A Anáfora e a Tessitura Do Texto - Gabriel de Ávila

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B B i i b b l l i i o o t t e e c c a a V V i i r r t t u u a a l l b b o o o o k k s s A A A A N N Á Á F F O O R R A A E E A A T T E E S S S S I I T T U U R R A A D D O O T T E E X X T T O O U U m m E E s s t t u u d d o o d d o o U U s s o o A A n n a a f f ó ó r r i i c c o o d d a a s s D D e e s s c c r r i i ç ç õ õ e e s s D D e e f f i i n n i i d d a a s s G G a a b b r r i i e e l l d d e e Á Á v v i i l l a a O O t t h h e e r r o o

Transcript of A Anáfora e a Tessitura Do Texto - Gabriel de Ávila

  • BBiibblliiootteeccaa VViirrttuuaallbbooookkss

    AA AANNFFOORRAA EE AA TTEESSSSIITTUURRAA DDOO

    TTEEXXTTOO UUmm EEssttuuddoo ddoo UUssoo

    AAnnaaffrriiccoo ddaass DDeessccrriieess DDeeffiinniiddaass

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  • 2

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  • A ANFORA E A TESSITURA DO TEXTO

    Um Estudo do Uso Anafrico das Descries Definidas

    Gabriel de vila Othero

    [email protected]

  • Renata

    por ter me apresentado to interessante rea

    dos estudos lingsticos;

    Patrcia

    por ser essa pessoa to maravilhosa e

    importante na minha vida;

    Ao Cassiano

    por sempre ter demonstrado uma grande e

    inquieta curiosidade cientfica;

    Leci

    pelos timos desafios intelectuais e

    comentrios sobre boa parte desta obra.

    4

  • NDICE

    Apresentao ................................................................................................................. 8

    Introduo ..................................................................................................................... 10

    Captulo 1 Anfora e Expresses Definidas ....................................................... 12

    1.1 Coeso e Coerncia Textuais .................................................................. 13

    1.2 O Conceito de Anfora .............................................................................. 15

    1.2.1 Anfora Lexical .............. 18

    1.2.2 Anfora Pronominal .................... 19

    1.2.3 Anfora Verbal ........................................ 21

    1.2.4 Anfora Adverbial ...................................................................... 22

    1.2.5 Anfora Numeral ............. 23

    1.2.6 Anfora Elptica ........... 23

    1.2.7 A Catfora .................................................................................... 24

    1.3 Uso de Expresses Definidas no Discurso .................................................. 25

    Exerccios ........................................................................................................... 28

    Captulo 2 Os Usos Anafricos das Expresses Definidas ........................................ 30

    2.1 Anfora Direta ......... 30

    2.2 Anfora Valorativa ......... 35

    2.2.1 Explicao/Esclarecimento ................. 38

    2.2.1.1 Anfora Hiponmica ................................................................. 39

    2.2.1.2 Anfora Hiperonmica ................................... 41

    2.2.2 Substituio por Sinonmia ........................................................... 43

    2.2.3 Recurso Estilstico ........................ 44

    5

  • 2.3 Anfora Associativa ............................... 45

    2.3.1 Hiperonmia ................................................................................. 48

    2.3.2 Hiponmia .................................................................................... 49

    2.3.3 Holonmia .................................................................................... 50

    2.3.3.1 Parte Integrante ......................................................................... 50

    2.3.3.2 Material ...................................................................................... 51

    2.3.4 Nominalizao .............................................................................. 52

    2.3.4.1 Nominalizao de Verbo ........................................................... 52

    2.3.4.1.1 Nominalizao de Verbo com Sinonmia ............................... 53

    2.3.4.2 Nominalizao de adjetivo ......................................................... 53

    2.3.5 Antonmia ..................................................................................... 54

    2.3.5.1 Oposies Simtrica e Assimtrica ............................................ 55

    2.3.6 Papis Temticos do Verbo........................................................... 56

    2.3.6.1 Argumento Externo ................................................................... 56

    2.3.6.2 Papel Instrumental ..................................................................... 56

    2.3.7 Membros de um Grupo ................................................................. 57

    2.3.8 Relao de Posse ........................................................................... 58

    2.3.9 Modelos Cognitivos e Esquemas Mentais .................................... 59

    2.4 Anfora Conceitual ...................................................................................... 60

    Exerccios .......................................................................................................... 65

    Consideraes Finais ..................................................................................................... 67

    Referncias Bibliogrficas ............................................................................................. 69

    Apndice ........................................................................................................................ 76

    6

  • O processo anafrico pode ser comparado com o deus Janus, da mitologia latina. Janus tinha duas faces: uma que olhava para frente e outra que olhava para trs.

    Uma via o passado; a outra, o futuro. Assim a anfora: liga o conhecido com o novo, recuperando antigas informaes do

    texto, apresentando-nos a informaes novas.

    7

  • APRESENTAO

    Este livro trata de um dos mais importantes processos-atividades de que se

    constituem as lnguas naturais (humanas): a anfora. A palavra texto tem origem no

    latim (textum) e quer dizer tecido. Ou seja, ela serve como metfora para designar

    aquilo que at hoje no se conseguiu explicar exatamente o que . Valendo-se dessa

    metfora, porm, pode-se dizer que a linha que costura esse tecido a anfora. Os textos

    se desenvolvem em uma relao complexa de manuteno (ordem) e progresso (caos)

    de informaes da qual as anforas so o cerne, uma vez que, atravs delas, contedos

    informacionais so retomados e introduzidos nos textos a todo momento. Os falantes,

    ento, a utilizam ora para tornar seus enunciados mais geis (valendo-se principalmente

    das anforas no-lexicais), ora tendo em vista um recurso a mais para a construo de

    sentido (para o qu so mais utilizadas as anforas lexicais). Os movimentos anafricos

    realizados com descries definidas, que so mais detidamente analisados nesta obra,

    so atividades que os falantes desempenham em situaes de comunicao dadas, s

    quais atividades subjazem vrios fenmenos co(n)textuais simultaneamente. Toda essa

    complexidade levada em considerao de maneira simples, mas acadmica, neste

    trabalho.

    Pode-se dizer que o prprio pensamento humano atravessado por uma natureza

    anafrica, ligando informaes velhas (o seu conhecimento prvio) s informaes

    novas atravs de processos semiticos complexos, sempre em busca da construo de

    sentido. Olha-se para trs para se poder olhar para frente. Bom exemplo para isso o

    nosso reveillon, quando, simbolicamente, paramos para refletir sobre o ano que passou,

    no sentido de criar expectativas sobre o ano que comea. quando mais assumimos

    para ns o deus Janus, um dos principais deuses da mitologia latina, que possui duas

    faces, uma voltada para frente e a outra para trs. Por isso, o ms de janeiro recebe esse

    nome. Alis, estudamos Histria para estabelecer relaes entre o que passou e o que

    est se passando, ou at com o que pode vir a acontecer. E quando vemos na

    8

  • videolocadora a caixa da fita Romeu e Julieta, com Leonardo di Caprio, e lembramos da

    pea de Shakespeare ou de adaptao outra qualquer dessa obra que se queira mais

    fiel ao teatro do sculo XVII ainda que no seja para fazer comparaes , ser que

    no estamos realizando longos movimentos anafricos dentro dos textos (tecidos-

    emaranhados) que so nossas vidas?

    O jovem autor desta obra tem se revelado um pesquisador promissor. Autor de

    outros dois livros (Introduo ao portugus histrico, 2000, e A lngua portuguesa nas

    salas de b@te-papo, 2002), Gabriel de vila Othero prope aqui uma nova tipologia

    para o estudo da anfora. Com muitos exemplos, esta obra mostra com clareza um

    estudo srio sobre esse fenmeno e se lana como uma nova referncia a se unir pouca

    bibliografia que se tem para o estudo do fenmeno anafrico em lngua portuguesa.

    Esta obra , portanto, um importante fundamento terico para o estudo do texto.

    Serve no apenas a quem se interessa em aprofundar-se no assunto como tambm a

    professores de lnguas que buscam tornar suas aulas mais intensamente voltadas ao

    estudo do texto.

    Cassiano Ricardo Haag

    9

  • INTRODUO

    Neste livro, estudaremos um fenmeno bastante freqente na comunicao

    humana: o uso de termos anafricos no discurso. No entanto, por ser um vasto assunto,

    iremos nos preocupar somente com uma de suas facetas a mais interessante segundo

    nosso ponto de vista o uso das anforas lexicais, envolvendo principalmente o uso

    anafrico das descries definidas no discurso.

    As descries definidas so aqueles sintagmas nominais que comeam por um

    artigo definido (em portugus, o e a e seus respectivos plurais, os e as).

    Exemplos:

    (1) Jos Sarney teve um sonho confuso. Um telefone tocava em algum lugar do

    palcio. (LFV1)

    (2) Elias acordou dizendo que no ia trabalhar. Hoje, na minha terra,

    comemoram o Dia do Perdo. (PC)

    Nos exemplos acima, as expresses destacadas so descries definidas. De

    acordo com as gramticas tradicionais, esse tipo de expresso serve para retomar

    entidades j mencionadas no texto ou supostamente conhecidas do interlocutor por

    estarem no contexto de comunicao. Contudo, muitos trabalhos baseados em corpora

    em lngua inglesa1 e um aplicado lngua portuguesa2 provaram que isto no

    verdadeiro: aproximadamente 50% das descries definidas podem ser classificadas

    como novas no discurso3, introduzindo um referente novo ao contexto discursivo.

    Deixando de lado as descries definidas que podem ser consideradas novas no

    discurso, ns enfocaremos aquelas descries que so usadas anaforicamente no

    1 Cf. Vieira (1998a), Gundel et al. (2001), Poesio & Vieira (1998). 2 Projeto ANACORT [http://www.inf.unisinos.br/~renata/Ana_Introduo.html] e cf. Vieira et al. (2000).

    10

  • contexto discursivo, atravs da anlise de textos em portugus brasileiro, extrados de

    jornais, revistas, livros tcnicos, romances, contos, crnicas e fbulas.

    Em portugus, o uso anafrico das descries definidas ainda no foi estudado

    detalhadamente e, por isso, merece ateno. Mesmo que a Gramtica Tradicional

    postule que uma descrio definida s usada em um processo endofrico (ou

    exofrico), nada mais sobre esse fenmeno mencionado. Com este trabalho, traremos

    uma classificao indita na literatura lingstica que pretende abranger uma grande

    variedade de casos em que uma descrio definida usada em um processo anafrico no

    discurso.

    Em relao organizao estrutural deste livro, voc, leitor, ir encontrar dois

    captulos alm desta introduo que est lendo: o primeiro fala sobre elementos

    coesivos e a coerncia de textos, enfocando os vrios tipos de anforas existentes e seus

    usos, alm de apresentar o que so e como so usadas as descries definidas em textos.

    O segundo captulo o cerne do trabalho: ele traz uma proposta indita de classificao

    para os usos anafricos das descries definidas em portugus. Ele est dividido em

    quatro grandes partes, uma para cada tipo de anfora envolvendo as expresses

    definidas (anfora direta, anfora valorativa, anfora associativa e anfora

    conceitual).

    3 Conforme classificao proposta em Vieira (1998a) e Vieira et al. (2000).

    11

  • 1. ANFORAS E EXPRESSES DEFINIDAS

    Sabemos que a comunicao humana no se d por frases ou sentenas isoladas,

    mas por textos inseridos em um contexto de comunicao. Nesse sentido, entende-se o

    texto como uma atividade verbal e interacional, em que os interlocutores esto

    envolvidos em um constante processo de construo de sentidos do discurso. Esse

    processo de construo de sentidos bastante complexo, e nele entram em jogo

    inmeros fatores, como aspectos pragmticos, textuais, cognitivos e interacionais.

    De acordo com Koch (1997),

    o texto pode ser concebido como resultado parcial de nossa atividade comunicativa, que compreende processos, operaes e estratgias que tm lugar na mente humana, e que so postos em ao em situaes concretas de interao social.

    Durante a comunicao, organizamos nosso discurso de modo que nosso

    interlocutor consiga construir um sentido a partir daquilo que verbalizamos. E mais,

    organizamos e elaboramos nosso discurso de tal maneira que nosso interlocutor

    construa o sentido que queremos que seja construdo ou, ao menos, um sentido

    prximo ao sentido almejado por ns, enquanto enunciadores. Para tanto,

    disponibilizamos de inmeras estratgias de coeso e coerncia textuais e organizamos

    a informao semntica de nossos enunciados de uma maneira condizente com o que

    queremos comunicar, como queremos comunicar, para que queremos comunicar e para

    quem queremos comunicar.

    Em geral, a informao semntica de nossos textos pode ser dividida em dois

    grandes blocos: o dado e o novo. As informaes dadas so aquelas que acreditamos ser

    conhecidas de nosso interlocutor, ou porque esto presentes no contexto de

    comunicao, ou porque j foram mencionadas no discurso. J as informaes novas

    so aquelas que acreditamos serem ainda desconhecidas, ou seja, so informaes

    literalmente novas para o nosso interlocutor.

    12

  • Neste trabalho, analisaremos detalhadamente um elemento importante da coeso

    textual: o uso da expresso definida como uma forma de retomada anafrica no

    discurso. Para isso, no entanto, devemos revisar alguns pontos importantes, como

    coeso e coerncia textuais, o conceito de anfora e o uso das descries definidas no

    discurso.

    1.1 COESO E COERNCIA TEXTUAIS

    Alguns autores preferem no fazer a distino entre coeso e coerncia. No

    entanto, a tradio na Lingstica Textual tem sido separar (mas no tornar

    independentes) esses dois importantes fatores de textualidade.

    A coeso relaciona-se ao nvel microtextual4, de ligao entre as palavras na

    frase e das frases no texto. Fvero (1997) conceitua a coeso dizendo o seguinte:

    A coeso, manifestada no nvel microtextual, refere-se aos modos como os componentes do universo textual, isto , as palavras que ouvimos ou vemos, esto ligados entre si dentro de uma seqncia.

    Para Halliday & Hasan5, a coeso textual depende de cinco categorias de

    procedimento: a referncia, a substituio, a elipse, a conjuno e o lxico.

    a primeira dessas categorias (a referncia) que aqui mais nos interessa. Ela

    trata sobre a questo da referncia dentro do discurso. Para esses autores, a referncia

    pode ser exofrica ou endofrica. O primeiro tipo trata de referncias extratextuais,

    enquanto que o segundo diz respeito s relaes textuais de anfora e catfora, que

    sero estudadas mais adiante, ainda neste captulo.

    Baseada em Halliday & Hasan (1976) e Beaugrande & Dressler6, Fvero (1997)

    apresenta uma classificao interessante dos fatores coesivos, dividindo-os em coeso

    referencial, coeso seqencial e coeso recorrencial.

    4 Segundo Guimares (1993), entende-se a microestrutura textual como o conjunto articulado de frases, resultante da seqencializao dos mecanismos lxico-gramaticais que determinam a conectividade do texto. 5 Halliday & Hasan (1976). 6 BEAUGRANDE, R.; DRESSLER, M. U. (1981). Einfhrung in die Textlinguistik. Tbingen: Max Niemeyer.

    13

  • A coeso recorrencial diz respeito progresso temtica no discurso. Ela trata da

    maneira como se articulam as informaes dadas e novas na organizao textual. De

    acordo com Fvero,

    a coeso recorrencial se d quando, apesar de haver retomada de estruturas, itens ou sentenas, o fluxo informacional caminha, progride; tem, ento, por funo levar adiante o discurso.

    A coeso seqencial tambm se preocupa com o progredir do texto, mas no

    trata de mecanismos de retomadas do texto, e sim de seqenciaes temporais ou por

    conexo. E a entram os operadores, ou nexos, discursivos.

    J a coeso referencial aquela que mais nos interessa. Ela trata da questo da

    referncia no discurso. A referncia

    constitui um primeiro grau de abstrao: o leitor/alocutrio relaciona determinado signo a um objeto tal como ele o percebe dentro da cultura em que vive. (...) Um item referencial, por exemplo, ele tomado isoladamente vazio e significa apenas: procure a informao em outro lugar. (Fvero, 1997)

    Assim, no exemplo (1), ela se refere velha tesoura de Ana Terra; enquanto, no

    exemplo (2), o mesmo pronome ela se refere televiso.

    (1) Ana conservava sempre junto de si, noite, a velha tesourai, pensando

    assim: Um dia inda elai vai ter a sua serventia. (EV)

    (2) Eu acho que o aspecto principal de tudo isso a televisoi. Elai faz a tabela

    de acordo com sua convenincia. (FSP2)

    Ainda segundo a autora, esse tipo de coeso pode ser obtido por substituio e

    por reiterao. A substituio acontece com a retomada de um termo por uma pro-

    forma, em casos de anforas e catforas (ver seo 1.2 O Conceito de Anfora). J a

    reiterao envolve o uso de expresses referenciais (entre elas as descries definidas)

    que retomam elementos do texto com novas expresses (ver seo 1.3 Uso de

    Expresses Definidas no Discurso).

    14

  • Se a coeso cuida, ento, das relaes microtextuais, a coerncia se preocupa

    com o sentido global dos textos. Como vimos, no entanto, para a construo de sentidos

    de um texto, os elementos responsveis pela coeso so fundamentais. por isso que

    coeso e coerncia caminham juntas. Como confirma Val (1993):

    A coeso a manifestao lingstica da coerncia; advm da maneira como os conceitos e relaes subjacentes so expressos na superfcie textual. Responsvel pela unidade formal do texto, constri-se atravs de mecanismos gramaticais e lexicais. (Grifos da autora)

    Porm, mesmo dependendo da coeso, a coerncia abrange outros fatores, como

    a situacionalidade, a informatividade, a intencionalidade etc. De acordo com Koch &

    Travaglia (1998),

    a coerncia est diretamente ligada possibilidade de se estabelecer um sentido para o texto, ou seja, ela o que faz com que o texto faa sentido para os usurios, devendo, portanto, ser entendida como um princpio de interpretabilidade, ligada inteligibilidade do texto numa situao de comunicao e capacidade que o receptor tem para calcular o sentido deste texto. Este sentido, evidentemente, deve ser do todo, pois a coerncia global.

    Apesar de a coerncia ser mais abrangente do que a coeso, estes dois fatores de

    textualidade esto intrinsecamente ligados. Uma diferena crucial que os elementos

    coesivos podem ser empiricamente analisados e apontados no texto; eles aparecem

    como marcas lingsticas. A coerncia, ao contrrio, subjaz ao texto e algo muito

    menos palpvel7.

    1.2 O CONCEITO DE ANFORA

    Como vimos, a informao semntica no texto pode ser dividida entre o dado e o

    novo. A informao dada tem como funo construir pontos de ancoragem para que a

    informao nova seja introduzida no contexto discursivo. Ou seja, para que o texto

    tenha continuidade temtica e seja coerente, a partir de informaes conhecidas do

    interlocutor, o locutor (ou emissor) do texto vai inserindo novas informaes semnticas

    7 Para saber mais sobre a distino entre coeso e coerncia em Portugus Brasileiro, o leitor pode consultar Fvero (1997), Koch (1997) e Koch & Travaglia (1998).

    15

  • de maneira gradual. Um texto com um grau muito elevado de informaes pode ser

    incoerente para um interlocutor que no consiga estabelecer pontes entre as informaes

    novas com aquelas que j lhe so conhecidas. Da que a coerncia no uma

    propriedade imanente ao texto, mas construda a partir de uma leitura dele pelo

    leitor/ouvinte. Um texto no coerente ou incoerente em si mesmo. Ele pode ser

    coerente ou incoerente, de acordo com o contexto discursivo em que est inserido e com

    o nvel interao entre ele seu leitor/ouvinte.

    Como vimos acima, dentre os processos de coeso de um texto est justamente

    um que diz respeito ligao, mostrao ou sinalizao entre a informao nova e a

    dada. Este processo o de anfora aqui, entendida segundo uma perspectiva

    discursiva e no sinttico-gerativa8.

    O termo anfora vem do grego e significa literalmente carregar para trs. A

    anfora um fenmeno textual de referenciao e correferenciao, de ativao e

    reativao de referentes ao longo do texto. Ela se define tradicionalmente como toda

    retomada de um elemento anterior em um texto. Segundo Rocha (1999), a anfora

    o nome dado a uma relao ou processo no qual um termo anafrico em uma instncia de discurso se vincula a um elemento identificvel chamado de antecedente para que a interpretao semntica seja realizada com xito. (Grifos do autor)

    Veremos mais tarde que esse um conceito muito restrito, e a nossa proposta

    pretende alargar um pouco o conceito de anfora.

    Dentro da rea da semntica dinmica, encontramos a seguinte definio de

    anfora, em Moura (2000),

    a anfora se situa, para a semntica dinmica, no campo da informao discursiva9. A anfora faz parte dos mecanismos que propiciam aos falantes manter o controle sobre o que j foi enunciado, num dado discurso, acerca dos itens de conversao (objetos e indivduos).

    8 Em uma viso sinttico-gerativa, no portugus as anforas so o pronome se reflexivo (e seu equivalente tnico si) e expresses um P outro, onde P equivale a uma preposio. Cf. Aoun (1986) e Mioto et al. (2000), especialmente o captulo V A teoria da vinculao. 9 Para o autor, a informao discursiva envolve dados sobre o prprio fluxo do discurso e da conversao. Por exemplo, preciso delimitar, numa conversao, os objetos e indivduos sobre os quais se est falando, e a referncia das variveis discursivas (os pronomes, por exemplo). Somente a partir da informao discursiva que se pode passar informao sobre o mundo.

    16

  • O processo anafrico exige ao menos dois termos: o termo anafrico e seu

    antecedente (ou sua ncora textual, como veremos no prximo captulo). O termo

    anafrico pode retomar seu antecedente em um processo de correferenciao (como no

    exemplo (3)), ou pode se ancorar em um termo que lhe servir de ncora textual,

    formando assim um processo de referenciao conhecido como anfora associativa

    (como no exemplo (4)).

    Exemplos:

    (3) Uma causai necessria quando, sem elai, o fenmeno no pode ser

    reproduzido. (FVR)

    (4) Se a bordo da nave Enterprisea, a tripulaor era como uma grande famlia, o

    mesmo no acontecia entre os atores da verso original de Jornada nas

    Estrelas. (FSP1)

    Assim, no exemplo (3), o termo anafrico ela retoma o termo uma causa, que

    seu antecedente no texto. Ambos esto marcados com o ndice referencial i subscrito

    para indicar que os dois termos se referem mesma entidade no discurso.

    J no exemplo (4), a descrio definida a tripulao no possui um antecedente

    discursivo, mas, ao mesmo tempo, no pode ser considerada nova no discurso. Na

    verdade, ela est ancorada em um termo anterior, na expresso a nave Enterprise. Por

    isso, decidimos adotar um sistema diferente de marcao: o termo anafrico est

    marcado com um r subscrito, enquanto que sua ncora textual est marcada com o

    ndice anafrico a subscrito. O r marca o termo anafrico (referente), enquanto o a

    marca sua ncora textual.

    O fenmeno da anfora muito freqente em nossa produo discursiva. Afinal,

    esse fenmeno crucial para a coeso de um texto, logo, sendo essencial tambm para

    seu entendimento global, ou seja, para sua coerncia. Como confirma Ilari (2001),

    na opinio de muitos estudiosos, a anfora no apenas um fenmeno entre outros que acontecem nos textos: o fenmeno que constitui os textos, garantindo sua coeso. Todo texto seria, nesse sentido, uma espcie de grande tecido anafrico. (Grifos do autor)

    17

  • O fenmeno de anfora pode ser classificado em seis grandes tipos: anfora

    lexical (ou nominal), anfora pronominal, anfora verbal, anfora adverbial, anfora

    numeral e anfora elptica.

    1.2.1 ANFORA LEXICAL

    Este tipo de anfora acontece quando o processo de retomada se d por meio de

    um substantivo que apresenta uma relao anafrica com seu referente ou correferente.

    Em nosso trabalho, enfocaremos especificamente este tipo de anfora (principalmente

    no prximo captulo).

    Exemplos:

    (5) Tudo comea quando o desastrado Dr. Fred Edison passa a despejar lixo

    txico em um riachoi atrs de sua manso. Os tentculos de estimao do

    cientista descobrem o riachoi e Purple no resiste: bebe a gua e se transforma

    em um ser diablico, super inteligente e poderoso (...). (RCG)

    (6) dipoi um homem desesperado em busca de esperanaa. Mas esse

    tormentor muito humano, que leva o herii a excessos, no pode ser responsvel

    pela runa. (DS)

    No exemplo (5), a descrio indefinida (artigo indefinido + substantivo) um

    riacho serve como antecedente para sua anfora, a descrio definida o riacho que

    aparece na sentena seguinte. Essa normalmente a relao anafrica em que esto

    envolvidas as descries definidas e indefinidas, como ser apresentado na seo 1.3

    Uso das Expresses Definidas no Discurso.

    No exemplo (6), h dois casos de anfora nominal. O primeiro envolve os

    termos dipo e o heri em uma relao de anfora valorativa. J o segundo exemplo de

    anfora nominal envolve a relao mais complexa de anfora associativa: o termo

    18

  • referente esse tormento no apresenta um antecedente propriamente dito, mas est

    ancorado em desesperado em busca de esperana, que lhe serve de ncora textual10.

    1.2.2 ANFORA PRONOMINAL

    Este o tipo mais comum de anfora encontrado. Ela acontece (na verdade,

    acabou de acontecer...) quando um pronome (pessoal ou demonstrativo) retoma um

    sintagma nominal, como aconteceu neste pargrafo mesmo que acaba de ler. Ao invs

    de comear a segunda frase deste pargrafo com A anfora pronominal acontece...,

    preferimos utilizar um pronome pessoal (ela) para retomar a mesma entidade j referida

    por a anfora pronominal, tornando-os assim termos correferentes e formando um caso

    de anfora pronominal. O termo anafrico retomado por uma pro-forma pronominal.

    Ambos remetem mesma entidade discursiva.

    Outros exemplos:

    (7) Estude bem o sumrioi. Elei o campo de pouso de qualquer dvida. (SF)

    (8) Lirocai no queria que ningum percebesse que elei hesitava, que era um

    covarde. (EV)

    Palavras como ele nos dois exemplos acima estudados, ou ela nos exemplos (1),

    (7) e (8) so praticamente vazias de significado: elas indicam apenas procure a

    informao em outro lugar, como diz Fvero (1997). No entanto, essas palavras no

    so totalmente vazias semanticamente: elas do pistas de como procurar o antecedente,

    j que ela s pode ser correferente de um substantivo feminino e singular; assim como

    ele indica que seu antecedente deve ser um nome masculino e singular11.

    10 Em relao seleo da ncora textual e de antecedentes na relao de anfora, cf. REICHELER-BGUELIN, Marie-Jos. (1995). Alternatives et dcisions lexicales dans lemploi des expressions dmonstratives. Pratiques. Metz, n. 85. 11 H, no entanto, o caso lembrado por Marcuschi (2000), em que o pronome eles (ou elas) retoma um sintagma nominal no singular, porm que apresenta uma idia de coletividade. Por exemplo: A equipe mdica ainda no sabe o estado de sade do paciente. Eles podero saber com certeza somente aps outros exames. Onde eles retoma o SN a equipe mdica.

    19

  • Em relao identificao dos antecedentes na resoluo de um processo

    anafrico, encontramos alguns problemas. Veja as seguintes sentenas:

    A) Minha colegai fez uma prova esta manh. Elai estava bem nervosa.

    B) Minha colega fez uma provai esta manh. Elai englobava toda a matria.

    C) *Minha colega fez uma provai esta manh. Elai estava bem nervosa.

    D) *Minha colegai fez uma prova esta manh. Elai englobava toda a matria.

    Como associamos o termo anafrico ela aos seus devidos antecedentes (minha

    colega na sentena A e uma prova na sentena B), sabendo que as relaes anafricas

    nas frases C e D as tornam agramaticais?

    Provavelmente, o processo anafrico no resolvido imediatamente em todos os

    casos. Em casos como esses apresentados, provavelmente aguardamos mais

    informaes para que possamos atribuir o antecedente correto anfora, guardando a

    informao em nossa memria de trabalho12.

    Para Coulson (1996), h duas opinies a respeito da resoluo de anforas. A

    anfora pode ser: a) imediatamente resolvida em um processo que ele chama de

    immediate on-line process, em que escolhemos aquele candidato que consideramos ser

    o melhor antecedente imediatamente; ou b) o nosso processador lingstico (o

    mecanismo cognitivo que se ocupa do processamento da linguagem) pode esperar que

    mais informaes se tornem disponveis antes de tomar uma deciso na identificao do

    antecedente de um processo anafrico.

    Se por um lado o processo imediato de resoluo de anfora libera nosso sistema

    de compreenso da linguagem de ter de manter uma anfora na memria de trabalho, ao

    mesmo tempo ele corre o risco de cometer erros na atribuio dos antecedentes. J o

    processo que aguarda a resoluo da anfora no comete tais erros, porm exige um

    enorme e talvez desnecessrio esforo da memria de trabalho.

    Baseado nessas duas vises de resoluo de anforas, Coulson prope o seguinte

    grfico:

    20

  • Grfico 1: resoluo de anforas Modelo de processamento Modelo de processa-

    simples Fontes de informao mento mltiplo

    Encontra a anfora Encontra a anfora Informaes lingsticas Sintaxe Nmero

    Seleciona o Gnero Seleciona todos os antecedente Informaes lexicais possveis

    antecedentes Informaes no-lingsticas Seleciona o antece- Foco dente correto Scripts

    Conhecimento de mundo

    Processa a anfora Processa a anfora e seu antecedente e seu antecedente

    1.2.3 ANFORA VERBAL

    Na anfora verbal, um verbo retomado por uma pro-forma verbal, sempre

    acompanhado de uma pro-forma nominal (o, o mesmo, isso etc.).

    Exemplos:

    (9) Saiu e o fez com presteza. (Exemplo de Borba, 1976)

    (10) Lcia corre todos os dias no parque. Patrcia faz o mesmo. (Exemplo de

    Fvero, 1997)

    No exemplo (9), a combinao o fez substitui o verbo saiu; no exemplo (10), faz

    o mesmo retoma o verbo correr expresso na primeira sentena. Em portugus, esse tipo

    de anfora s pode acontecer com os verbos ser e fazer.

    12 Sobre este assunto, cf. Haag & Othero (2003b).

    21

  • 1.2.4 ANFORA ADVERBIAL

    Na anfora adverbial, um SN retomado por uma pro-forma adverbial. Esse tipo

    de anfora costuma aparecer em casos de anfora associativa, como em Estou

    estudando francsa h dois anos, mas nunca estive lr. O advrbio l se refere Frana,

    mas em nenhum momento o enunciador mencionou esse pas. O que torna possvel a

    compreenso desta pro-forma adverbial sua ncora textual, francs. Veja s, leitor,

    como essa relao de anfora associativa envolve diversos fatores extratextuais (para

    no dizer extra-lingsticos). No prximo captulo, dedicamos uma parte a esse tipo to

    complexo de anfora13.

    Outros exemplos:

    (11) Os controles remotos de TV, vdeo e som ainda confundem e irritam muitas

    pessoas em suas horas de lazer. Depois, indo ao bancoi, elas so literalmente

    empurradas para o manejo de mquinas que substituram a maior parte do

    trabalho dos antigos caixas e escriturrios e, alii, perante comandos amigveis

    (...), esses cidados se vem obrigados a manipular teclas e comandos que lhes

    parecem estranhos e incompreensveis. (PSC)

    (12) Paula no ir Europai em janeiro. Li faz muito frio. (Exemplo de Fvero,

    1997)

    No exemplo (11), a pro-forma adverbial ali se relaciona a um lugar j

    mencionado anteriormente no contexto discursivo, com o SN o banco; no exemplo (12),

    o l retoma o SN Europa.

    13 A anfora adverbial tambm pode ser entendida como um processo de dixis discursiva ou mesmo dixis exofrica, conforme o autor.

    22

  • 1.2.5 ANFORA NUMERAL

    Esse tipo de anfora pouco lembrado pelos lingistas. Ela acontece quando um

    sintagma nominal serve de antecedente para uma pro-forma numeral. Em geral a

    anfora representada pelo numeral ambos, como no exemplo (13), ou por uma

    descrio definida que tem como ncleo um numeral substantivado (o primeiro, o

    segundo, os dois, os cinco etc.), como no exemplo (14).

    Exemplos:

    (13) Entre as foras dissolventes ativas em Atenas no tempo de Aristfanes esto

    a guerra do Peloponeso e a reviso crtica dos sofistasi. Aristfanes, saudoso da

    poca urea de Atenas, ataca ambasi, convertendo a comdia em instrumento de

    luta. (DS)

    ela e o maridoi

    (14) Ela sentou na beira da cama. Protestou, chorosa, quando o marido disse que

    sabia que estava no fim. (...) Os doisi sabiam que ele tinha pouco tempo de vida

    e era melhor que enfrentassem a situao sem drama.14 (LFV2)

    1.2.6 ANFORA ELPTICA

    A anfora elptica acontece quando um termo anterior substitudo por uma

    elipse (aqui representada pelo smbolo , que o smbolo matemtico para a representao de um lugar vazio). O fenmeno da elipse bastante curioso, e uma elipse

    pode substituir virtualmente qualquer elemento lingstico, porm costuma substituir

    elementos que podem ser substitudos por pro-formas.

    Segundo Coulson (1996),

    uma elipse uma anfora invisvel primeira vista, no parece estar l porque ela no representada por nenhuma palavra ou sintagma. claro, j que uma das vantagens das anforas que elas reduzem a quantidade de

    14 Esse tipo de anfora constitudo por um artigo definido mais um numeral tambm pode ser considerado um caso de anfora valorativa dentro do grupo das anforas lexicais. Veja captulo 2 Os Usos Anafricos das Expresses Definidas.

    23

  • informao que deve ser apresentada, a elipse deve ser a mais sofisticada de todas as anforas.

    De acordo com uma viso funcionalista da linguagem, a elipse no somente o

    processo anafrico mais utilizado nas lnguas humanas, mas tambm o que torna mais

    clara para o interlocutor a identificao do referente/antecedente. Veja o seguinte

    grfico:

    Grfico 2: viso funcionalista de referenciao em processos discursivos

    . Escalas quantitativas de identificao referencial (recursos contextuais para designar o referente)

    + previsvel - previsvel

    Elipse Pronome Pronome Descrio Descrio indefinida

    tono tnico definida modificada restritivamente

    Alguns exemplos da anfora elptica:

    (15) Os filsofosi perguntam at o que i j responderam, i voltam a investigar o que os outros apresentam como pronto. (DS)

    (16) Todos diziam que a Leninhai, quando crescesse, ia ser mdica. i Passava horas brincando de mdico com as bonecas. S que, ao contrrio das outras

    crianas, quando i largou as bonecas, i no perdeu a mania. (LFV2)

    1.2.7 A CATFORA

    A catfora um processo muito semelhante anfora. Como vimos, a anfora

    envolve um termo antecedente e um termo anafrico. Na catfora, h o termo

    subseqente15 e o termo anafrico.

    Exemplos:

    15 Nome proposto por Marcuschi (2001).

    24

  • (17) A Psygnosis (...) est lanando trs novos games de estratgiai: Lemmings

    2: the tribes; The Creepers e Pugsyi. (RCG)

    (18) Ouve-se tudoi: o creck de cordas prestes a se partir, o crepitar do fogo

    da lareira, o estrondo dos vulces, o deslocamento de ar provocado pelos

    movimentos da espada e, principalmente, os gritos de terror de Dirk ao se

    deparar com uma situao de perigoi. (RCG)

    Na relao de catfora, primeiro aparece o termo catafrico e s ento aparece

    seu antecedente chamado de subseqente, como vimos. No exemplo (17), a expresso

    trs novos games de estratgia apresenta seu subseqente logo em seguida, nomeando e

    especificando quais so os trs jogos lanados. No exemplo (18), o pronome tudo

    tambm se antecipa ao seu subseqente: o creck de cordas prestes a se partir, o

    crepitar do fogo da lareira, o estrondo dos vulces, o deslocamento de ar provocado

    pelos movimentos da espada e, principalmente, os gritos de terror de Dirk ao se

    deparar com uma situao de perigo.

    1.3 USO DE EXPRESSES DEFINIDAS NO DISCURSO

    As expresses definidas so aqueles sintagmas nominais que comeam por um

    artigo definido (o e a e seus plurais, os e as). Elas so tambm conhecidas como the-

    phrases em ingls.

    De acordo com a tradio gramatical, essas expresses definidas indicam ou se

    referem a um ser especfico, j conhecido dos interlocutores. No entanto, alguns

    trabalhos baseados em corpora mostraram que nem sempre acontece assim: em ingls,

    vrios trabalhos mostraram que aproximadamente 50 % das descries definidas em um

    texto podem ser consideradas novas no discurso, ou seja, fazem referncia a uma

    entidade ainda no conhecida do interlocutor do texto16.

    Neves (2000) apresenta uma viso mais funcional, porm, acaba concordando

    com o que postula a Gramtica Tradicional. Em sua Gramtica de usos do portugus,

    ela diz o seguinte sobre o emprego do artigo definido:

    25

  • Ele ocorre, em geral, em sintagmas em que esto contidas informaes conhecidas tanto do falante como do ouvinte. O que determina sua presena, entretanto, a inteno do falante e o modo como ele quer comunicar uma determinada experincia. (...) De modo geral, pode-se dizer que o artigo definido ocorre em sintagmas referenciais (...), em que a definio obtida no contexto extralingstico (exfora, ou referncia situacional).

    No entanto, como j dizemos, no nvel endofrico (textual), ao serem

    introduzidas no texto, as descries definidas podem estar se referindo a uma entidade

    que esteja aparecendo pela primeira vez no contexto discursivo, ou podem se referir a

    alguma palavra ou expresso j apresentada no texto. Dessa forma, elas podem ser

    novas no discurso, ou podem apresentar uma relao de correferncia ou de referncia

    com algum termo anterior j conhecido do interlocutor do texto.

    Em geral, para fazermos referncia a um objeto do discurso, utilizamos uma

    descrio indefinida na primeira referncia e descries definidas nas referncias

    seguintes.

    Exemplos:

    (19) Contou que se perdera na floresta com um guiai e um rdioj. O guiai era um

    mau guia. (...) O rdioj, ao contrrio, funcionava. (LFV1)

    (20) Para ter acesso a centenas de jogos, entre milhares de programas e

    utilitrios, basta discar o nmero de uma BBSa. (...) As BBSr (Bulletin Board

    System, ou sistema de quadro de aviso) so verdadeiros clubes que oferecem os

    mais variados servios. (RCG)

    H basicamente duas regras que regem o uso do indefinido e do definido: (a) um

    referente indefinido deve ser retomado por um definido ou lhe servir de ncora textual,

    como vimos nos exemplos (19) e (20) respectivamente; (b) para que a identidade

    referencial se mantenha, uma descrio definida pode ser retomada apenas por outra

    descrio definida.

    16 Cf. Vieira (1998a), Gundel et al. (2001), Poesio & Vieira (1998).

    26

  • Dentro de uma viso lgico-semntica, encontramos a definio de Frege17, aqui

    retomada por Moura (2000), afirmando que as descries definidas

    so expresses que fazem certa descrio de um ser especfico. Esses sintagmas nominais (...) servem para fazer a referncia, assim como os nomes prprios. (...) O uso de uma descrio definida pressupe a existncia do ser a que ela se refere. Esse tipo de pressuposio chamado tambm de pressuposto de existncia. (Grifos do autor)

    Como veremos a seguir, h diversos usos anafricos (por isso, endofricos) de

    descries definidas no discurso. No prximo captulo, trataremos de diferentes

    possibilidades do uso anafrico envolvendo as descries definidas em portugus.

    17 FREGE, G. (1978). Lgica e filosofia da linguagem. So Paulo: Cultrix/EDUSP.

    27

  • EXERCCIOS

    1. Como pode ser definida a coeso textual?

    2. O que voc entende por coerncia?

    3. O que a anfora, entendida como um fenmeno de coeso?

    4. O que anfora lexical? D um exemplo.

    5. O que a anfora pronominal?

    6. O que a anfora verbal? Como ela acontece em Portugus?

    7. O que a anfora adverbial? D exemplos.

    8. O que a catfora? Como esse processo se diferencia do processo anafrico?

    9. Dentre os tipos de anforas estudados neste captulo, identifique os tipos de

    anfora que ocorrem nos seguintes trechos, assinalando os termos anafricos e

    seus antecedentes:

    28

  • a) Joo e Maria sempre se perdem na floresta. Os dois pensam que sabem o

    caminho, mas eles esto sempre perdidos!

    b) Joo viajou para a Europa no ano passado. Neste ano, pretendo fazer o

    mesmo. Afinal, por que s ele pode viajar nas frias?

    c) Joo pegou a bicicleta de Maria no ms passado e ainda no devolveu a

    bicicleta para ela.

    d) Quando me disseram que estudar Lingstica era fascinante, fiquei meio

    receoso, mas com o tempo, percebi que essa cincia mesmo fantstica!

    10. O que so expresses definidas?

    29

  • 2. OS USOS ANAFRICOS DAS EXPRESSES DEFINIDAS

    Como vimos no primeiro captulo, a correferenciao (e tambm a

    referenciao) so elementos essenciais na coeso textual, responsveis pela progresso

    do texto. Elas reativam referentes j mencionados ou ativam novos referentes ancorados

    em outros j conhecidos. Veremos agora como as descries definidas so usadas em

    processos de correferncia e de referncia no discurso.

    Alm de as descries definidas poderem ser novas no discurso, elas tambm

    podem ter antecedentes (correferentes) ou ncoras (referentes) textuais. Neste captulo,

    iremos fazer uma abrangente anlise dos casos em que as descries definidas

    participam de relaes anafricas em textos de lngua portuguesa. Esperamos conseguir

    abranger todos os ou ao menos grande parte dos casos em que uma descrio

    definida ativada no discurso e apresenta um antecedente ou uma ncora textual. Nossa

    proposta uma tentativa de sistematizao do uso anafrico das descries definidas.

    Ela no pretende ser definitiva, nem sequer impositiva. A proposta representa o

    resultado de um estudo detalhado envolvendo as expresses definidas e seu uso

    anafrico no discurso, alm de uma possvel sistematizao de seus processos

    anafricos.

    Dividimos as relaes anafricas das descries definidas em trs grandes tipos:

    anfora direta, anfora valorativa e anfora associativa.

    2.1 ANFORA DIRETA

    Nos casos de anfora direta, h uma relao de correferncia18 entre a descrio

    definida e seu antecedente. Ou seja, ambos se referem (ou apontam) mesma entidade

    18 Entendemos a correferncia como um elemento da coeso referencial em que duas expresses no texto fazem remisso mesma entidade discursiva.

    30

  • discursiva. Alm do mais, na anfora direta, o mesmo item lexical repetido tanto no

    antecedente como no termo anafrico (em nosso caso, uma descrio definida).

    Exemplos:

    (1) Um dia ele chegou com um robi. O robi era baixinho. (LFV2)

    (2) Ia devagar, cabisbaixo, parando s vezes, para dar uma bengalada em algum

    coi que dormia; o coi ficava ganindo e ele ia andando. (MA)

    Marcuschi (2001) nos d a seguinte definio sobre as anforas diretas:

    Em geral, postula-se que as anforas diretas retomam referentes previamente introduzidos, ou seja, estabeleceriam uma relao de correferncia entre o elemento anafrico e seu antecedente. Parece haver uma equivalncia semntica e sobretudo uma identidade referencial entre a anfora e seu antecedente. (...) Pode-se dizer que a viso clssica da anfora direta se d com base na noo de que a anfora um processo de reativao de referentes prvios.19 (Grifos do autor)

    Em geral, nas anforas diretas, uma entidade introduzida no discurso com um

    artigo indefinido e mais adiante retomado por uma descrio definida, como mostra o

    esquema:

    um N --- o N

    Onde N = substantivo.

    Veja os exemplos:

    (3) Um dia ele chegou com um robi. O robi era baixinho. (LFV2)

    (4) H dois anos, Francisco Eduardo Castro, de 39 anos, diretor da Action

    Corretora de Cmbio, de So Paulo, cansou-se do concreto da varanda de 5,5

    metros quadrados de seu apartamento na regio sul de So Paulo. Ele contratou

    19 Marcuschi considera anforas diretas tanto aquelas que chamamos de anforas diretas quanto aquelas que chamaremos de anforas valorativas.

    31

  • um paisagista para montar um jardim em estilo oriental com direito at a uma

    fontei. (...) O projeto paisagstico incluiu um sistema de iluminao especial.

    noite, Castro regula as luzes de acordo com o clima que quer criar: alegre,

    romntico. Ligo a fontei, pego um aperitivo e curto o som agradvel da gua at

    descarregar as tenses, diz. (REX)

    H casos, no entanto, em que a anfora direta ocorre entre duas descries

    definidas (5), ou mesmo entre uma descrio definida e um elemento anteriormente

    mencionado que no precedido por artigo algum (6).

    Exemplos:

    (5) O tatu se enfiou dentro de sua toca, onde estava toda sua famlia. Entrou

    apressado, como quem vem fugindo de alguma coisa. De fato, ele viu por perto

    um leo e, embora soubesse que ele prefere um animal maior e mais gordo,

    como o veadoi, resolveu no arriscar e sair da vista do caador. No muito longe,

    o veadoi, ao perceber que havia um leo rondando por ali, saiu em disparada,

    correndo pra valer. (FAB)

    (6) Olhe, eu podia mesmo contar-lhe a minha vida inteira, em que h outras

    cousas interessantes, mas para isso era preciso tempoi, nimoj e papel, e eu s

    tenho papel; o nimoj frouxo, e o tempoi assemelha-se lamparina de

    madrugada. (MA)

    Na grande maioria dos casos, h uma relao de aspectos gramaticais, como a

    concordncia em gnero e nmero entre os nomes-ncleo de uma descrio definida e

    de seu antecedente. Porm essa no uma condio necessria para que a anfora direta

    acontea. Marcuschi (2001) lembra que

    a noo de correferencialidade nestes casos [de anfora direta] crucial, embora no se d sempre de modo estrito. Seguramente, aspectos gramaticais tais como concordncias de gnero e nmero sero decisivos em muitos casos, especialmente quando houver mais de um candidato a antecedente referencial.

    32

  • Com relao similaridade de funo sinttica, esse parece no ser um requisito

    necessrio para que a anfora direta acontea. A descrio definida freqentemente

    retoma itens lexicais que exerciam diferente funo sinttica no texto, como ilustra a

    tabela 1, que contm alguns casos de disparidades sintticas entre o antecedente e a

    descrio definida que a retoma:

    Tabela 1: funo sinttica e anforas diretas Funo sinttica do antecedente

    Funo sinttica da descrio definida

    Exemplos

    Objeto indireto

    Sujeito

    Ia devagar, cabisbaixo, parando s vezes, para dar uma bengalada em algum coi que dormia; o coi ficava ganindo e ele ia andando. (MA)

    Complemento

    nominal

    Sujeito

    Os sbios sabem, os que dialogam na praa pblica no sabem, por isto se chamam filsofos, amantes da sabedoriai, e porque a sabedoriai no se rende a seus assdios, so amantes insatisfeitos. (DS)

    Adjunto adverbial Sujeito Um dia ele chegou com um robi. O robi era baixinho. (LFV2)

    Adjunto adverbial

    Objeto direto

    Todos diziam que a Leninha, quando crescesse, ia ser mdica. Passava horas brincando de mdico com as bonecasi. S que, ao contrrio das outras crianas, quando largou as bonecasi, no perdeu a mania. (LFV2)

    Em relao carga semntica das anforas diretas, estas podem ser dividas em

    duas classes:

    a) Sem modificao na carga semntica do referente: o nome-ncleo do

    antecedente se repete na descrio definida, e no h alterao nenhuma de significado.

    Nenhuma propriedade atribuda entidade referida.

    Exemplos:

    (7) Todos diziam que a Leninha, quando crescesse, ia ser mdica. Passava horas

    brincando de mdico com as bonecasi. S que, ao contrrio das outras crianas,

    quando largou as bonecasi, no perdeu a mania. (LFV2)

    (8) Os sbios sabem, os que dialogam na praa pblica no sabem, por isto se

    chamam filsofos, amantes da sabedoriai, e porque a sabedoriai no se rende a

    seus assdios, so amantes insatisfeitos. (DS)

    33

  • Nesses exemplos, os nomes-ncleo foram simplesmente retomados pela

    descrio definida sem que nenhum acrscimo de significado fosse efetuado no

    sintagma nominal a que pertencem.

    b) Com modificao na carga semntica do referente: o nome-ncleo do

    antecedente se repete na descrio definida e h alterao de significado, seja por um

    acrscimo ou por uma supresso de termos que se referem quela entidade retomada

    pela descrio definida.

    Exemplos:

    (9a) Tudo comea quando um jovem cientistai realiza um experimento com um

    acelerador de partculas. (...) E o jogador deve ter cuidado: um passo errado

    significa a morte do cientistai. (RCG)

    (10a) No sculo XVII, Isaac Newton mudou a cincia ao descobrir que alguns

    fenmenos da naturezai poderiam ser explicados com leis matemticasj. A partir

    da, muitos pesquisadores acreditaram que as leisj poderiam explicar e prever o

    comportamento de todos os fenmenosi se fossem reunidas informaes

    suficientes. (SUP)

    Nesses casos, h uma supresso de informaes quando se d a anfora pela

    descrio definida. O item lexical se repete na expresso definida, porm alguns de seus

    atributos no so mais mencionados. assim que, em (9a), um jovem cientista

    retomado simplesmente por o cientista, e em (10a) fenmenos da natureza e leis

    matemticas so retomadas pelas descries definidas os fenmenos e as leis

    respectivamente.

    muito mais comum que ocorra essa supresso de carga semntica do que um

    acrscimo de informaes no processo de correferenciao com a descrio definida.

    Veja os exemplos hipotticos (9b) e (10b):

    (9b) ? Tudo comea quando um cientistai realiza um experimento com um

    acelerador de partculas. (...) E o jogador deve ter cuidado: um passo errado

    significa a morte do jovem cientistai.

    34

  • (10b) ? No sculo XVII, Isaac Newton mudou a cincia ao descobrir que alguns

    fenmenosi poderiam ser explicados com leisj. A partir da, muitos pesquisadores

    acreditaram que as leis matemticasj poderiam explicar e prever o

    comportamento de todos os fenmenos da naturezai se fossem reunidas

    informaes suficientes.

    2.2 ANFORA VALORATIVA20

    Neste segundo tipo de anfora, a descrio definida tambm mantm uma

    relao de correferncia com seu antecedente, porm no h mais uma identidade

    lexical entre os dois termos. O nome-ncleo do antecedente no retomado pelo termo

    anafrico. Essa diferena lexical entre o termo anafrico e seu antecedente que no

    representa problemas para a resoluo anafrica feita por ns torna o processamento

    anafrico bastante complexo em termos computacionais, uma vez que um programa de

    resoluo automtica de anforas perde a pista evidente da semelhana do nome

    ncleo21.

    A principal diferena entre a anfora direta e a valorativa pode ser visualizada na

    seguinte tabela:

    Tabela 2: diferenas anfora direta x anfora valorativa Nome-ncleo Entidade referida

    Anfora Direta = = Anfora Valorativa =

    Nas anforas valorativas, assim como nas diretas, em geral uma entidade

    introduzida no discurso com um artigo indefinido e mais adiante retomada por uma

    descrio definida que apresenta um nome-ncleo diferente, como mostra o esquema:

    um N --- o N

    20 Esse tipo de anfora tambm conhecido na literatura como anfora indireta, anfora infiel ou ainda anfora epittica. Decidimos, porm, chamar este tipo de fenmeno de anfora valorativa. 21 Cf. Poesio & Vieira (1998), Vieira (1998) e Vieira et al (2002).

    35

  • Onde N = substantivo X.

    N= substantivo Y.

    O termo valorativo, na semntica, pode ser aplicado a uma expresso que atribui

    certo valor subjetivo a um dado fenmeno lingstico. Por exemplo, na frase Joo

    lamentou ter deixado a escola, o verbo de sensao (lamentar) tambm valorativo,

    pois no apenas pressupe que Joo deixou a escola, como tambm atribui um valor a

    esse fato. Essa frase, na verdade, pressupe duas coisas:

    a) Joo deixou a escola;

    b) Joo ter feito isso no foi algo positivo.22

    Como veremos mais adiante, nem sempre o termo anafrico reflete uma opinio

    clara do locutor, porm a descrio definida em uma anfora valorativa sempre ir

    mostrar uma escolha lexical feita diretamente por ele. Da o nome anfora valorativa:

    a escolha de um novo item lexical para o termo anafrico pode revelar o valor subjetivo

    do locutor do texto com relao entidade mencionada.

    Apesar de Koch (1997) no abordar este tipo de anfora especificamente, ela diz

    o seguinte sobre este tipo de substituio lexical em anforas lexicais:

    (...) o uso de uma expresso definida implica sempre uma escolha dentre as propriedades ou qualidades que caracterizam o referente, escolha esta que ser feita de acordo com aquelas propriedades ou qualidades que, em dada situao de interao, em funo dos propsitos a serem atingidos, o produtor do texto tem interesse em ressaltar, ou mesmo tornar conhecidas de seu(s) interlocutor(es). (...) a escolha das descries definidas pode trazer ao interlocutor informaes importantes sobre as opinies, crenas e atitudes do produtor do texto, auxiliando-o na construo do sentido.

    Para ilustrar, a autora apresenta estes dois exemplos:

    (11) Reagani perdeu a batalha no Congresso. O presidente americanoi no tem

    tido grande sucesso ultimamente em suas negociaes com o Parlamento.

    22 Sobre verbos valorativos, cf. Moura (2000).

    36

  • (12) Reagani perdeu a batalha no Congresso. O cowboy do faroeste americanoi

    no tem tido grande sucesso ultimamente em suas negociaes com o

    Parlamento.

    No exemplo (11), Reagan retomado por uma descrio definida

    pragmaticamente discreta, que apenas especifica/esclarece quem o referente. No

    exemplo (12), no entanto, Reagan tem como correferente um epteto que demonstra

    como o locutor do texto v o referente e/ou como ele deseja mostr-lo ao seu

    interlocutor como um cowboy do faroeste americano. Em uma anfora valorativa, o

    nome-ncleo da descrio definida deixa transparecer uma escolha lexical do produtor

    do texto, deixando s vezes claramente expressos seus valores de juzo sobre o

    referente.

    Outro exemplo interessante vem de Hintikka & Kulas (1985):

    (13) Harryi pegou emprestado dez dlares, mas o desgraadoi nunca me

    pagou.23

    Nesse exemplo, o interlocutor tambm deixa uma forte impresso subjetiva

    sobre o referente, Harry. Clark (1979) chama este tipo de retomada de anfora epittica

    (epithets).

    Outros exemplos:

    (14) Billie Holiday morreu aos 44 anosi. A pouca idadei no significa que haja

    pequena quantidade de material gravado com a voz inconfundvel e a

    interpretao nica. (FSP2)

    (15) Billie Holidayi morreu aos 44 anos. (...) Para conhecer a vida da divai, ouvir

    canes em MP3 e trechos da autobiografia Lady Sings the Blues, entre no site

    no-oficial, o www.ladyday.net. (FSP2)

    23 Em ingls, no original: Harry borrowed ten dollars from me, but the bastard never paid me back.

    37

  • No exemplo (14), o locutor deixa a entender que 44 anos seja uma idade

    prematura para que algum morra; enquanto em (15), ele mostra sua opinio sobre o

    referente ativado com Billie Holliday. Para o produtor do texto, em

    (14) 44 anos = pouca idade (para morrer)

    e em

    (15) Billie Holliday = diva

    Entretanto, como dissemos, nem sempre essa opinio do locutor fica to

    fortemente gravada na escolha lexical do termo anafrico. Separamos alguns outros

    casos de anfora valorativa que revelam outras estratgias do produtor do texto na

    escolha de um nome-ncleo diferente. A esquematizao a seguir poder facilitar a

    resoluo automtica de casos de anfora valorativa, j que se baseia em uma relao

    lexical (de sinonma, hiponmia, hiperonmia etc.) entre anfora e antecedente.

    2.2.1 EXPLICAO/ESCLARECIMENTO

    Muitas vezes, uma entidade referida no texto e mais adiante retomada por

    uma anfora valorativa que d mais informaes ao interlocutor, esclarecendo,

    explicando ou tornando ainda mais claro o referente mencionado. De acordo com Koch

    (s.d.),

    verifica-se, portanto, que a escolha de determinada descrio definida pode trazer ao leitor/ouvinte informaes importantes sobre as opinies, crenas e atitudes do produtor do texto, auxiliando-o na construo do sentido. Por outro lado, contudo, o locutor pode ter o objetivo de, atravs do uso de uma descrio definida, dar a conhecer ao interlocutor, com os mais variados propsitos, propriedades ou fatos relativos ao referente que acredita desconhecidos do parceiro.

    Assim, temos aqueles casos de anfora em que a descrio definida adiciona

    informaes ao seu correferente. O item lexical escolhido pelo locutor em uma anfora

    desse tipo vem a ajudar na caracterizao mental da entidade referida na construo de

    sentidos do seu interlocutor.

    38

  • Exemplos:

    (16) Maior do que a dor de cabea dos estudantes para decorar a tabela peridica

    foi a dificuldade que Mendeleievi teve em mont-la. Embora tivesse todas as

    informaes das quais precisava os elementos qumicos e suas propriedades ,

    o qumico russoi no conseguia distribu-los de maneira ordenada. (SUP)

    (17) Em tom parodisaco, Aristfanesi narra o malogro de Anftheos, removido

    da assemblia ao declarar seus objetivos. Anftheos (um nome cmico: Deus de

    ambos os lados) mostra a ineficcia em conflitos reais das fantsticas solues

    do tragedistai. (DS)

    (18) O concordei subiu. Os sistemas de segurana do avioi detectaram ento

    que a origem do fogo eram as turbinas e no o tanque , o que fez o piloto

    deslig-las e tentar um pouso de emergncia com os motores que sobravam.

    (SUP)

    O interlocutor pode no conseguir reconhecer os referentes Mendeleiev,

    Aristfanes e concorde. Por isso, uma estratgia do locutor adicionar outras

    informaes ao referente quando de sua retomada por uma anfora valorativa. Alm de

    servir na progresso e coeso textuais, a anfora valorativa auxilia na compreenso do

    texto, neste caso auxiliando o interlocutor atravs de uma retomada explicativa, que

    apresenta mais caractersticas da entidade que est sendo retomada.

    Assim, possvel estabelecer as seguintes relaes:

    Em (16) Mendeleiev = qumico russo

    Em (17) Aristfanes = tragedista

    Em (18) concorde = avio

    2.2.1.1 ANFORA HIPONMICA

    A anfora valorativa explicativa tambm pode ser entendida como uma anfora

    hiponmica. Em um processo de substituio por hiponmia, primeiro o locutor insere

    39

  • um termo mais especfico no discurso, para ento retom-lo com uma expresso mais

    geral, em uma relao parte/todo. O antecedente tem como nome-ncleo um item

    lexical que apresenta essa relao parte/todo com seu termo anafrico. A descrio

    definida vem a ser, ento, um hipernimo de seu antecedente, enquanto este seu

    hipnimo.

    De acordo com Ilari & Geraldi (1994), a hiponmia uma relao que se

    estabelece entre um termo especfico e um termo mais abrangente (gato hipnimo de

    felino e felino hipnimo de mamfero) (grifos dos autores).

    Nesse tipo de anfora, a relao entre o antecedente e a descrio definida a

    seguinte:

    X um Y

    Onde X = antecedente

    Y = termo anafrico

    Em geral, a substituio lexical se d por meio de expresses cada vez mais

    abrangentes, ou seja, a descrio definida hipernimo de seu antecedente, que ser seu

    hipnimo. De acordo com Fvero (1997), a relao de hiponmia possvel porque na

    estrutura profunda semntico-lexical h uma definio ou uma incluso de traos

    semnticos que vo do termo mais particular para o mais geral.

    Exemplos:

    (19) Na entrada da garagem, havia um Volkswagen sedani estacionado,

    encostado numa caminhonete. Pela posio do carroi, Pedro percebeu que no

    conseguiria entrar em casa. Ps-se ento a buzinar furiosamente, esperando que

    o proprietrio do veculoi aparecesse. (exemplo de Ilari & Geraldi, 1994)

    (20) O tatu se enfiou dentro de sua toca, onde estava toda sua famlia. Entrou

    apressado, como quem vem fugindo de alguma coisa. De fato, ele viu por perto

    um leoi e, embora soubesse que ele prefere um animal maior e mais gordo,

    como o veado, resolveu no arriscar e sair da vista do caadori. (FAB)

    40

  • Em (19) e (20), podemos ver uma progresso referencial, vinda do menos

    abrangente (ou mais especfico) ao mais abrangente (ou menos especfico). As relaes

    mantidas entre os itens lexicais so as seguintes:

    (19) um Volkswagen sedan um carro

    um carro um veculo

    (20) um leo um caador

    Alm de dar uma explicao ou esclarecimento, esse tipo de anfora apresenta

    uma relao ESPECFICO ABRANGENTE na caracterizao do referente. A mesma relao acontece nos exemplos (19), (20) e (21), vistos anteriormente:

    Em (16) Mendeleiev um qumico russo

    Em (17) Aristfanes um tragedista

    Em (18) concorde um avio

    2.2.1.2 ANFORA HIPERONMICA

    Menos comum a substituio lexical se realizar por um processo contrrio ao

    da hiponmia, ou seja, pelo processo de hiperonmia. De acordo com Guimares (1993),

    d-se a hiperonmia quando a primeira expresso mantm com a segunda uma relao

    todo/parte. Assim, a palavra peixe superordenada em relao a lambari, trara, bagre

    etc. (grifos da autora). Na relao de substituio por hiperonmia, ao contrrio da

    anterior, a relao entre antecedente e termo anafrico a seguinte:

    Y um X

    Onde Y = termo anafrico

    X = antecedente

    41

  • Nesse tipo de anfora valorativa, o antecedente , ento uma expresso

    superordenada em relao descrio definida que lhe serve de termo anafrico. A

    progresso vai do mais abrangente ao menos abrangente.

    Exemplos:

    (21) H 35 anos, o jazz perdeu um de seus maiores sax tenores. John Coltrane

    morreu aos 40 anos, de cncer no fgado. (...) A pgina oficial tem vdeo de

    performance do msicoi e informaes sobre a fundao que leva seu nome. (...)

    Em www.jcmc.neu.edu, o internauta encontra a histria do jazzistai, que

    comeou a tocar com Miles Davis em 1955 (...) (FSP2)

    (22) A peai era um dramalho, cosido a facadas, ouriado de imprecaes e

    remorsos; mas Fortunato ouviu-a com singular interesse. (...) No fim do dramai,

    veio uma farsa. (MA)

    Assim, nos exemplos (21) e (22), a progresso se d do termo mais geral ao mais

    especfico.

    A relao entre antecedente e termo anafrico em (21) e (22) a seguinte:

    (21) jazzista um msico

    (22) drama uma pea

    Essa relao de hiperonmia bem menos comum, e muitos estudiosos a julgam

    incompreensvel ou inslita, ou at mesmo a ignoram (Fvero (1997), Ilari &

    Geraldi (1994)). Porm, como mostramos, ela acontece efetivamente. Em ambos os

    exemplos encontrados, no entanto, essa relao aconteceu sem nenhum problema ou

    estranhamento, mas devemos reconhecer que havia outros elementos, externos relao

    de correferenciao entre os termos, que ajudaram na compreenso do fenmeno. Em

    (21), o termo Jazz ativado antes de jazzista e de msico; e em (22), dramalho

    ativado antes da descrio definida o drama. Isso parece facilitar na compreenso deste

    tipo de anfora que bem mais raro do que seu oposto, a anfora valorativa hiponmica.

    42

  • 2.2.2 SUBSTITUIO POR SINONMIA

    Em casos de anfora valorativa, s vezes a troca de item lexical se deve mais a

    uma questo de estilo, para que no haja demasiadas repeties dos mesmos

    substantivos ao longo do texto. Nesses casos, uma escolha do locutor retomar o

    referente alterando o item lexical por outro que lhe sirva de sinnimo contextual. Ainda

    que parea neutra, a escolha por outro item lexical para a retomada do referente feita

    nica e exclusivamente pela motivao do produtor do texto, revelando ao interlocutor,

    portanto, a uma escolha subjetiva.

    O conceito de sinonmia bastante complexo, e no acreditamos que possa

    haver sinonmia pura. Por isso, resolvemos nos referir a esse fenmeno como sinonma

    contextual, e entendemos que h sinonmia quando dois ou mais termos se

    correspondem quanto ao seu aspecto semntico e se referem ao mesmo objeto de

    discurso, mantendo uma identidade referencial no contexto discursivo. Esses termos

    podem ser intercambiveis no texto, sem alteraes de significado, e nenhum deles

    apresenta uma carga semntica mais forte ou carregada do que outro. Contudo, sabemos

    que no existem sinnimos que sejam perfeitos. Portanto, a sinonmia acontece apenas

    dentro do limite textual, como confirma Guimares (1993):

    J est consabida e aceita a tese da inexistncia de sinnimos perfeitos, ou seja, passveis de serem permutados em quaisquer contextos, dada a diversidade de conotaes que pode circundar a essncia da carga semntica de palavras apontadas como sinnimas.

    Neste caso de anfora valorativa, a anfora no revela to fortemente um juzo

    de valor do locutor, mas ainda assim indica qual foi a opo dele na escolha do item

    lexical e, como no existem sinnimos que sejam perfeitos, deixa transparecer a idia

    que o locutor tem do referente na escolha de um termo que possa servir como um

    sinnimo contextual.

    Exemplos:

    (23) Out of this world um gamei cativante. quase um adventure, mas todas

    as cenas so recheadas da mais pura ao. (...) Os cenrios so bastante inslitos:

    as paisagens so tomadas por excessos de tons azuis, que combinam

    perfeitamente com o clima do jogoi. (RCG)

    43

  • (24) Quantos minutos voc j perdeu na fila do banco e, ao ser atendido, ainda

    teve de agentar o mau humor do caixa? (...) Pode no ser o seu caso, mas

    contratempos como esses j fizeram muita gente passar a mo no telefone ou

    mandar um e-mail ao Banco Centrali, reclamando de coisas assim. O BCi

    registra os resmungos e faz uma anlise dos problemas de cada banco no pas.

    (REX)

    Em (23), game e jogo podem ser considerados sinnimos naquele contexto

    comunicativo, assim como em (24), Banco Central e BC so sinnimos, pois so duas

    formas intercambiveis de se referir mesma entidade discursiva.

    2.2.3 RECURSO ESTILSTICO

    Para evitar a repetio lexical, o locutor tambm pode se valer de recursos

    estilsticos usando as formas o ltimo, o primeiro, o outro, o mesmo etc. Como podemos

    ver nos exemplos (25), (26) e (27):

    (25) Garcia tinha-se formado em medicina, no ano anterior, 1861. No ano de

    1860, estando ainda na escola, encontrou-se com Fortunatoi, pela primeira vez,

    porta da Santa Casa; entrava, quando o outroi saa. (MA)

    (26) Antes de entrar no elevadori, certifique-se de que o mesmoi esteja parado

    neste andar. (frase retirada de uma placa de elevador)

    ela e o maridoi

    (27) Ela sentou na beira da cama. Protestou, chorosa, quando o marido disse que

    sabia que estava no fim. (...) Os doisi sabiam que ele tinha pouco tempo de vida

    e era melhor que enfrentassem a situao sem drama. (LFV2)

    Como vimos, a anfora valorativa no utilizada simplesmente para evitar

    repetio lexical; ela tambm revela o julgamento de valor que o locutor do texto tem a

    respeito do referente, alm de poder servir como um esclarecimento na retomada dele.

    44

  • 2.3. ANFORA ASSOCIATIVA

    A classe das anforas associativas , talvez, a mais interessante de todas. Uma

    resoluo anafrica desse tipo envolve complexas associaes mentais que, muitas

    vezes podem ir alm do conhecimento lingstico estrito, valendo-se de processos

    cognitivos e relaes pragmticas entre os termos que compem a anfora. Apesar da

    complexidade, esse tipo de anfora muito freqente, tanto na fala quanto na escrita.

    Estudos em lngua alem demonstraram que a anfora associativa representa cerca de

    60% dos casos de anforas utilizados de um modo geral24.

    Temos em Schwarz (2000) uma boa definio das anforas associativas (as quais

    ela chama de anforas indiretas):

    (...) trata-se de expresses definidas que se acham na dependncia interpretativa em relao a determinadas expresses da estrutura textual precedente e que tm duas funes referenciais textuais: a introduo de novos referentes (at a no nomeados explicitamente) e a continuao da relao referencial global.

    A maior diferena entre as relaes anafricas correferenciais e a anfora

    associativa que as primeiras tm uma relao de identidade correferencial com seu

    antecedente, enquanto esta ltima introduz um elemento novo no mundo discursivo,

    reativando atravs dele elementos anteriores e ancorando sua existncia nesses

    elementos j conhecidos do interlocutor. Marcuschi (2001) diz que o fenmeno da

    anfora associativa uma espcie de ao remtica e temtica simultaneamente na

    medida em que traz a informao nova e velha, ou seja, produz uma tematizao

    remtica (grifos do autor).

    Exemplo:

    (28) Se a bordo da nave Enterprisea, a tripulaor era como uma grande famlia,

    o mesmo no acontecia entre os atores da verso original de Jornada nas

    Estrelas. (FSP1)

    24 Schwarz, Monika. (2000). Indirekte Anaphern in Texten. Studien zur domngebundenen Referenz und Kohrenz im Deutschen. Tbingen, Niemeyer, apud Marcuschi (2001).

    45

  • No exemplo (28), a descrio definida a tripulao no apresenta nenhum

    antecedente, porm est ancorada em um termo anterior, que reativado por essa

    expresso definida. A esse termo anterior, chamaremos de ncora textual25, e essa

    relao ser chamada de anfora associativa. Aqui, o termo anafrico no apresenta uma

    identidade correferencial com sua ncora textual, e seu nome-ncleo pode ser o mesmo

    ou outro que aquele usado pela ncora. Por isso, essa relao, ao contrrio das estudadas

    anteriormente, no de correferenciao, mas sim de referenciao. Ou seja, a

    descrio definida no retoma seu antecedente, apenas est relacionada com ele de

    alguma forma.

    Isso nos permite elaborar a seguinte tabela:

    Tabela 3: diferenas entre anfora direta, valorativa e associativa

    Nome-ncleo Entidade referida Anfora Direta = =

    Anfora Valorativa = Anfora Associativa

    =

    Nesses casos de anfora, resolvemos adotar outro tipo de identificao grfica

    dos termos envolvidos na resoluo da anfora: a descrio definida que serve de termo

    anafrico ganha o ndice referencial r subscrito (de item referencial), e a ncora textual

    recebe o ndice a subscrito, conforme proposta de Othero (2002a).

    De acordo com Marcuschi (2001), a anfora associativa uma estratgia

    endofrica de ativao de referentes novos e no de reativao de referentes j

    conhecidos, o que constitui um processo de referenciao implcita (grifos do autor).

    Esse processo extrapola o conceito estrito de anfora, pois prev uma ligao semntica,

    pragmtica ou cognitiva entre dois itens lexicais que fazem referncia a diferentes

    entidades discursivas, mantendo no entanto uma estreita ligao.

    A anfora associativa, segundo Marcuschi (2001)

    representa um desafio terico e obriga a abandonar a maioria das noes estreitas de anfora, impedindo que se continue confinando-a ao campo dos

    25 Conforme propostas de Marcuschi (2001); e Fraurud (Fraurud, K. 1990. Definiteness and the processing of NPs in natural discourse. Journal of Semantics, 7), apud Vieira (1998b).

    46

  • pronomes e da referncia em sentido estrito. Ameaa noes de texto e coerncia hoje no mercado, constituindo um problema central para as teorias formais da referncia (...). Por fim, reintroduz no contexto da gramtica aspectos sociocognitivos relevantes que permitem repensar tpicos gramaticais na interface com a semntica e a pragmtica.

    Em uma anfora associativa, nem sempre fcil identificar a expresso que

    serve de ncora textual para uma descrio definida. Da mesma forma, nem sempre

    uma tarefa fcil identificar a relao que uma descrio definida mantm com sua

    ncora. Alm disso, como podemos saber quando h essa relao de anfora

    associativa? Como sabemos que a descrio definida, uma vez que no possua nenhum

    antecedente correferencial, est relacionada com alguma entidade j mencionada no

    discurso?26

    Haag & Othero (2003a) propem o seguinte teste: quando desconfiarmos que

    uma descrio definida possa ser uma anfora associativa, podemos substitu-la por um

    termo que seja de um campo semntico bem distante do significado de nossa suspeita

    descrio. Por exemplo:

    (29a) Entrei em um restaurantea, e o garomr veio me atender.

    Em (29a), suspeitamos que a descrio definida o garom esteja ancorada na

    expresso um restaurante. Para termos certeza disso, faremos conforme prope o teste:

    trocaremos nossa descrio suspeita por uma de significado bem diferente e tentaremos

    estabelecer novamente a relao de anfora associativa entre os dois termos:

    (29b) *Entrei em um restaurantea, e o lutador de sumr veio me atender.

    Alterando a descrio definida o garom por o lutador de sum, percebemos que

    a relao de anfora associativa se torna impossvel, tornando agramatical uma frase

    que pretenda manter tal relao anafrica. De acordo com o teste, se a troca da

    descrio definida suspeita por uma de um campo semntico bem diferente (como a

    troca de o garom por o lutador de sum) for mal sucedida, tornando a anfora

    26 Estudos baseados em anotaes de corpora eletrnico, como o Projeto COMMOn-REFs (www.inf.unisinos.br/~renata), mostram que explicitar essa relao entre ncora textual e descrio definida pode ser complicada at mesmo para anotadores humanos.

    47

  • associativa impossvel e a frase agramatical, ento a suspeita estava certa: h a relao

    de anfora associativa entre a descrio e a ncora suspeitas.

    Apesar de a resoluo de uma anfora associativa no ser, como dissemos, uma

    tarefa fcil, tentaremos sistematizar o maior nmero de casos possveis em que este tipo

    de anfora acontece no portugus. Quanto mais pistas empricas houver entre ncora e

    termo anafrico, mais fcil ficar para se trabalhar com a resoluo de anforas deste

    tipo. Dentre as relaes que uma expresso definida pode apresentar com sua ncora

    textual, encontram-se as seguintes:

    2.3.1 HIPERONMIA

    O processo de hiperonmia, como vimos, consiste em introduzir um termo geral

    para ento fazer referncia a um que seja mais especfico. Em uma anfora associativa

    por hiperonmia, a descrio definida um termo mais particular que sua ncora textual.

    A ncora sobreordenada em relao sua anfora, como pode ser visto no seguinte

    esquema:

    GERAL --- PARTICULAR ncora textual --- descrio definida

    Segundo Fvero (1997), nessa relao, o primeiro elemento mantm com o

    segundo uma relao todo-parte, classe-elemento.

    Exemplos:

    (30) As mais prestigiadas revistas de cincia do mundoa vm dando cada vez

    mais espao para a cobertura de escndalos do mundo acadmico, preocupadas

    tambm que alguns desses casos terminem respingando na credibilidade de suas

    publicaes. Na revista americana Sciencer, por exemplo, o tema scientific

    misconduct (imposturas cientficas) j ganhou uma seo fixa. (SUP)

    48

  • (31) Eles enfeitaram as mesas com muitas floresa: as rosasr estavam no arranjo

    central, as tulipasr sobre as cadeiras e as orqudeasr ao lado dos pratos. (exemplo

    de Haag & Othero, 2003a)

    No exemplo (30), a descrio definida a revista americana Science um

    exemplar do conjunto mais geral de revistas prestigiadas de cincia do mundo, que

    referido por sua ncora textual. Em (31), o termo que serve de ncora textual tem a

    propriedade semntica de reunir em uma classe as descries definidas que seguem (as

    rosas, as tulipas e as orqudeas).

    2.3.2 HIPONMIA

    Como j vimos, em um processo de hiponmia, primeiro o locutor insere um

    termo mais especfico no discurso, que servir de ncora textual para uma descrio

    definida que apresentada por uma expresso mais geral, em uma relao parte/todo.

    Em outras palavras, a ncora textual tem como nome-ncleo um item lexical que

    apresenta essa relao parte/todo com seu termo anafrico. A descrio definida vem a

    ser, ento, um hipernimo de sua ncora, enquanto esta seu hipnimo.

    Exemplos:

    (32) Eu estava em Nova York quando os americanos invadiram Granada e

    lembro a indignao do homem-ncora de um dos noticirios da TVa no com

    a invaso, com fato de o trabalho da imprensar estar sendo dificultado pelos

    militares. (LFV1)

    (33) Ao capturar o lder humano (...) Smith confessa que tudo o que ele quer

    largar o emprego o quanto antes para ficar longe do vrus da humanidadea. Do

    ponto de vista biolgico, a comparao de Smith no descabida. At onde

    sabemos, os vrusr se diferenciam de outros microorganismos por um

    comportamento autodestrutivo. (SUP)

    49

  • Em (32), um termo mais especfico o homem-ncora de um dos noticirios da

    TV ancora semanticamente a descrio definida a imprensa que seu hipernimo. Em

    (33), um fenmeno curioso acontece: mesmo tendo iguais nomes-ncleo (vrus), os dois

    termos que compem a anfora no so correferentes. Ou seja, eles no se referem

    mesma entidade. H uma relao de especfico/geral entre eles. A ncora textual se

    refere a um vrus especfico, enquanto que sua anfora associativa se refere a todos os

    tipos de vrus.

    2.3.3 HOLONMIA

    Na holonmia, temos a seguinte relao:

    Y parte de X

    ou

    X contm Y

    Onde X = ncora textual

    Y = termo anafrico

    Nas anforas associativas por holonmia, a ncora textual um termo mais geral

    que sua anfora, e esta semanticamente parte daquela. Essa relao pode ainda ser

    subdividida em dois tipos:

    2.3.3.1 PARTE INTEGRANTE

    A descrio definida uma parte integrante da entidade referida por sua ncora

    textual.

    Exemplos:

    50

  • (34) O concordea subiu. Os sistemas de segurana do avio detectaram ento que

    a origem do fogo eram as turbinasr e no o tanquer , o que fez o piloto

    deslig-las e tentar um pouso de emergncia com os motores que sobravam.

    (SUP)

    (35) Decorreram algumas semanas. Uma noite, eram nove horas, estava em

    casaa, quando ouviu rumor de vozes na escadar; desceu logo do stor, onde

    morava, ao primeiro andarr, onde vivia um empregado do arsenal de guerra. Era

    este, que alguns homens conduziam, escada acima, ensangentado. O preto que

    o servia, acudiu a abrir a portar. (MA)

    Assim, sabemos que

    em (34) as turbinas e o tanque so partes do concorde

    em (35) a escada, o sto, o primeiro andar e a porta so partes da casa

    2.3.3.2 MATERIAL

    Nesse caso, a descrio definida apresenta um item referencial que se refere ao

    material de que a entidade referida por sua ncora textual constituda.

    Exemplos:

    (36) Em 25 de julho de 2000, um concorde da Air France acelerava na pista do

    Aeroporto Charles de Gaullea, em Paris, para atingir a velocidade de 400

    quilmetros por hora, como fazia em todas as decolagens. No caminho, passou

    em cima de um pedao de titnio de 45 centmetros que um DC-10 deixara no

    asfaltor minutos antes. (SUP)

    (37) Compre a panela cinzaa. O aor dura muito mais. (exemplo de Marcuschi,

    2000).

    51

  • Assim, temos que, em (36), o asfalto o material que compe a pista do

    Aeroporto Charles de Gaulle e, em (37), o ao o material que compe a panela cinza

    2.3.4 NOMINALIZAO

    Aqui, a descrio definida a forma nominal de um verbo o de um adjetivo que

    j tenha sido mencionado no discurso. Dividimos o fenmeno da nominalizao nas

    seguintes classes:

    2.3.4.1 NOMINALIZAO DE VERBO

    Nesse caso, a descrio definida a nominalizao de um verbo mencionado

    anteriormente.

    Exemplos:

    (38) Eu estava em Nova York quando os americanos invadirama Granada e

    lembro a indignao do homem-ncora de um dos noticirios da TV no com a

    invasor, com fato de o trabalho da imprensa estar sendo dificultado pelos

    militares. (LFV1)

    (39) O sistema promete reconhecer a caligrafia cursivaa do usurio, o que

    facilita a entrada de dados: basta redigi-los na tela usando a caneta embutida no

    aparelho. Infelizmente, o reconhecimento cursivor imperfeito e no entende

    textos em portugus. (FSP2)

    H ainda um subtipo desta nominalizao que bastante interessante: a

    nominalizao de verbo com sinonmia.

    52

  • 2.3.4.1.1 NOMINALIZAO DE VERBO COM SINONMIA

    A descrio definida a nominalizao de um verbo sinnimo ao verbo que lhe

    serve de ncora textual.

    Exemplos:

    (40) Quantos minutos voc j perdeu na fila do banco e, ao ser atendido, ainda

    teve de agentar o mau humor do caixa? (...) Pode no ser o seu caso, mas

    contratempos como esses j fizeram muita gente passar a mo no telefone ou

    mandar um e-mail ao Banco Central, reclamandoa de coisas assim. O BC

    registra os resmungosr e faz uma anlise dos problemas de cada banco no pas.

    (REX)

    (41) tila visitoua toda a Europa. A viagemr durou 30 dias. (exemplo de Haag &

    Othero (2003a))

    No exemplo (40), os resmungos a nominalizao do verbo resmungar, que

    serve de sinnimo contextual para o verbo reclamar. Em (41) acontece o mesmo: a

    descrio definida uma nominalizao do verbo viajar, que serve de sinnimo

    contextual do verbo visitar.

    2.3.4.2 NOMINALIZAO DE ADJETIVO

    Nesse caso, a descrio definida uma forma substantiva de um adjetivo

    previamente mencionado no texto (como em (42)) ou um substantivo que est

    diretamente ligado a um adjetivo precedente (como em (43)).

    Exemplos:

    (42) Ele criou a teoria dos jogos na dcada de 40 para ajudar na formulao de

    estratgias para os EUA na Guerra Fria e chegou a recomendar que a Unio

    Sovitica fosse atacada antes que se tornasse capaz de fabricar bombas

    nucleares. Era o racional a fazer. Eu sei, parece meio cnicoa, mas tem muito a

    53

  • ver com campanhas eleitorais, por exemplo e no apenas por causa do

    cinismor. (REX)

    (43) O castelo de Sauron era enormea! O tamanhor realmente impressionou os

    pequenos hobbits. (exemplo de Haag & Othero (2003a)).

    2.3.5 ANTONMIA

    Em uma relao de anfora associativa por antonmia, a descrio definida

    apresenta uma relao antonmica com algum termo anterior. De acordo com

    Charaudeau (1992), no processo de antonmia, duas palavras esto em oposio binria

    quando uma tem necessidade da outra para se constituir semanticamente: branco se

    define pela relao com preto e vice-e-versa.

    Exemplos:

    (44) O sistema promete rec