A America Latina e Os Desafios Da Globalizacao Ensaios Em Homenagem a Ruy Mauro Marini

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A AMÉRICA LATINA E OS DESAFIOS DA GLOBALIZAÇÃO ENSAIOS EM HOMENAGEM A RUY MAURO MARINI

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A AMÉRICA LATINA E OS DESAFIOS DA GLOBALIZAÇÃOENSAIOS EM HOMENAGEM A RUY MAURO MARINI

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ISBN: 978-85-7559-117-8

Prefácio

Paulo M. d`Avila Filho*

Independente da nossa relação com as reflexões de Marx ou dos marxistas, do grau de adesão ou recusa a esta tradição de pensamento, é forçoso admitir a importância desta corrente filosófica e política no mundo todo. O marxismo teve maior influência prática e as mais profundas raízes políticas na história do mundo moderno. Sua importância teórica e prática, apaixonando corações e mentes que se lançaram às tarefas revolucionárias em seu nome, se estendeu “desde as margens do Oceano Ártico até a Pa-tagônia, e desde China, passando pelo Ocidente, até o Peru”; como nos diz Eric Hobsbawm em sua introdução à História do marxismo1.

Como chamou nossa atenção meu colega de universidade Leandro Konder em 1991 em uma brochura intitulada Intelectuais brasileiros e o marxismo nossa intelligentzia não ficou alheia aos seus apelos: “não se pode escrever a história do pensamento brasileiro no nosso século sem falar na presença do marxismo”2. Uma presença nas artes plásticas, nas artes cêni-cas, na literatura, na arquitetura, na historiografia, na filosofia, nas ciências sociais, entre outros. Não se pode falar da presença do marxismo no pen-samento social e político brasileiro, ao mesmo tempo, sem considerarmos diversos importantes autores entre os quais se encontra Ruy Mauro Marini, como: Astrogildo Pereira, Oswald de Andrade, Octávio Brandão, Luis Car-los Prestes, Caio Prado Júnior, Nélson Werneck Sodré, Roland Corbisier e os que seguem fazendo essa história, como Luiz Jorge Werneck Vianna,

* Cientista Político, professor Dr. do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais do De-partamento de Sociologia e Política da PUC-Rio.1 Hobsbawm, Eric. História do marxismo. 2ª ed., vol. I. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993, p.12.2 Ed. Oficina de Livros, 1991, Belo Horizonte, p. 8.

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Carlos Nelson Coutinho, o próprio Leandro Konder e os coordenadores deste livro, entre outros.

No período entre os anos 1960 e 1980, na América Latina, é forjado um conjunto de intelectuais que produziram suas obras à luz de um momento, no qual a utopia humana da construção de um novo mundo, o do socialis-mo, liberto das amarras opressoras do capitalismo, se apresentava como uma tarefa não somente realizável como, muitas vezes, imediata. Nesses tempos, o destino da humanidade parecia lhes bater à porta, convidando-os a sonhar e a formular suas idéias pautadas pela paixão advinda da crença na possi-bilidade de conquistar a vitória da difícil batalha de reconstruir o mundo. Um mundo da liberdade, da participação democrática, e da autoconsciência dos homens ou indivíduos de seu papel como agentes na construção dessa tarefa. Ruy Mauro Marini pertence integralmente a esse tempo.

Dentre as contribuições de Marini para a reflexão marxista no conti-nente, a que mais chama a atenção é, sem dúvida, sua teoria da dependên-cia e seus estudos sobre a América Latina, mas sua constante preocupação com o caráter democrático de um projeto socialista, democracia calcada em modelos necessariamente participativos de decisão, dá a dimensão pro-fundamente atual de suas reflexões. Não fosse por isso, Marini pertence a uma geração para a qual o conhecimento é legítimo porque serve aos fins emancipatórios do homem; que busca por intermédio da razão um sentido que lhes explique o mundo à sua volta e que o faz com crença e paixão. Uma geração que não entregou, até o último minuto, ao sabor dos ventos, o rumo dos acontecimentos.

Hoje, o que vem caracterizando o nosso tempo é a incredulidade com relação às narrativas legitimadoras de outrora. A despeito da justeza de propósitos de seus bravos artífices, as experiências socialistas, provenientes da revolução leninista, produziram caminhos problemáticos que levaram ao desgaste da compreensão marxista da experiência humana na história. A deslegitimação se apresenta tanto na versão de um relativismo sem frontei-ras quanto na adoção de valores universais a-históricos ou supra-humanos. Substituem-se as determinações puramente econômicas de um material-ismo vulgar pela vulgata pseudo-humanista da determinação absoluta da

vontade do sujeito. O descrédito generalizado faz crescer o individualismo e o conformismo com os parâmetros do capitalismo, alvo da astúcia crítica de intelectuais e militantes revolucionários de outrora.

O rumo dos acontecimentos fez esmaecer o brilho da contribuição de vários intelectuais, inclusive de Marini, nos fazendo crer que suas aspira-ções jazem sepultadas. A retomada dessas questões, no entanto, me parece de fundamental importância para trazer novo sopro de ânimo, paixão e iluminação às novas gerações que muito têm a aprender e recolher com a contribuição de intelectuais, representantes de uma época em que a políti-ca, a vida pessoal e a produção intelectual se mesclavam intimamente em um todo nem sempre harmônico, mas em permanente efervescência.

Não há nada mais ousado no universo do que o homem, pois o con-teúdo mais íntimo de sua historicidade é precisamente a ousadia engendra-da pela teleologia do processo de trabalho. Na melhor vertente da tradição marxista, ao produzir socialmente, o homem passa a produzir-se como ser que reconhece alternativas e se apaixona por elas. Como assinalou Marx em O capital “em cada novo projeto o arquiteto imagina um edifício melhor”. Nesse sentido, o fenômeno humano de fato foi gesto “irresponsável” da natureza consigo mesma, uma “inconseqüência” que cabe exclusivamente à consciência resgatar e atribuir em sentido.

Para realizar essa missão, a consciência não deve começar perquir-indo a si mesma, pois não está nela a chave para entender as tendências objetivas da realidade, da materialidade prática e da práxis humana. As op-ções humanas, sejam dos indivíduos ou das classes, sempre se encontram constrangidas pelas condições históricas e sociais nas quais se plasmam. O fenômeno humano, no entanto, caracteriza-se, de certa forma, como rebel-dia permanente da criatura em relação a seu criador, a natureza. Por isso, como nos mostra Marx ao longo de boa parte de sua obra, em particular nos escritos de juventude, nos textos históricos e em O capital, o homem é um ser que conhece e se reconhece à medida mesmo que se constrói.

A matéria, tomado o conceito em sua amplitude filosófica, é anterior ao pensamento; a realidade, entretanto, é um pressuposto e um resultado como concreto pensado, como produto da práxis humana, como apontou

Prefácio

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Marx no Método da economia política. Nesse momento, a “realidade”, o concreto, torna-se objeto para o homem. Sua tentação idealista é atribuir-lhe um “em si” que possui uma anterioridade que ele, Homem, não possui, como se existisse já no universo, adormecido, anterior ao homem. Um an-terior que pode ser Deus, a economia, o mercado, as estruturas sociais, o espírito, entre outros.

A recusa a esta anterioridade me parece o espírito deste livro. Um livro que trata ao mesmo tempo de acertar contas com a memória desse marxista, acadêmico e militante que foi Ruy Mauro Marini e da mobilização do espírito crítico e livre que animava sua atividade teórica. Em um primeiro momento, somos levados a conhecer mais de perto a vida e a obra de Ruy Mauro Mari-ni, em um segundo momento somos brindados por argutas análises sobre o contexto da luta política contemporânea em âmbito internacional.

Os textos mobilizam filosofia, ciência social, economia e teoria políti-ca, sob o olhar sempre complexo e infenso a academicismos dos intelec-tuais animados pela sagacidade do estudioso sem preconceitos, bem equi-pado e atento ao “movimento do mundo”. A complexidade deriva mais da recusa em tratar os temas de forma simplista do que propriamente da démarche explicativa, marcada pela clareza e objetividade. Mauro Marini e seus companheiros de jornada, assim como os autores dos artigos que compõem esta obra, operam uma perspectiva que visa empreender a críti-ca radial das estruturas de dominação social sem sucumbir às determi-nações supra-humanas, procurando justamente desconstituir, desagregar, essa anterioridade única determinante, definida a priori.

O marxismo é uma filosofia profana e enquanto tal deve ser encarada aos moldes dos “hereges”, sem respeitar dogmas ou verdades imutáveis. Este livro procede à necessária revisão dos pressupostos que orientaram certa perspectiva analítica dos anos 1970, sem ceder às tentações do que os alemães chamaram de “espírito do tempo” (zeitgeist), tão característico dos anos 1990, que procura desconstituir a validade e a importância atual que possui a corrente de pensamento que anima as reflexões aqui produzidas, transformando a riqueza de suas contribuições em meras vulgaridades. Esta perspectiva está absolutamente distante desta publicação.

Sumário

ApresentaçãoCarlos Eduardo Martins e Adrián Sotelo Valencia

Parte I ■ O homem e a obra: política e revolução

Ruy Mauro Marini: um pensador latino-americano Theotonio dos Santos

Ruy Mauro, intelectual revolucionárioEmir Sader

Meu querido Ruy Ana Esther Ceceña

Parte II ■ Globalização e dependência

Mudando a geopolítica do sistema-mundo: 1945-2025Immanuel Wallerstein

Apresentando o Tio Sam – sem roupasAndre Gunder Frank

Neo-imperialismo, dependência e novas periferias na economia mundialAdrián Sotelo Valencia

A economia mundial e a América Latina no início do século XXI Orlando Caputo Leiva

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Parte III ■ Capital, trabalho e economia mundial

Dependência e superexploraçãoJaime Osorio

A superexploração do trabalho e a economia política da dependênciaCarlos Eduardo Martins

A abertura revisitada: crítica teórica e empírica do livre-comércio. Atualidade do pensamento de Ruy Mauro Marini sobre a mais-valia absolutaPierre Salama

Dependência e superexploração da força de trabalho no desenvolvimento periféricoMarcelo Dias Carcanholo

Parte IV ■ Pensamento latino-americano e mundo contemporâneo

Vigência e debate em torno da teoria da dependência Marco A. Gandásegui, filho

A intelectualidade crítica brasileira no México e o pensamento político de Ruy Mauro MariniLucio Fernando Oliver Costilla

Ser ou não ser subdesenvolvido: a dialética da dependência e a história do BrasilOswaldo Munteal

A Revolução Cubana e a teoria da dependência: Ruy Mauro Marini como fundadorFrancisco López Segrera

Teorias estruturalistas e teoria da dependência na era da globalização neoliberalCristóbal Kay

Apresentação

A publicação de A América Latina e os desafios da globalização: ensaios em homenagem a Ruy Mauro Marini faz parte das homenagens dedicadas a Ruy Mauro Marini nos 10 anos de sua morte. Reúne prestigia-dos pensadores contemporâneos para discorrer sobre temas ou conceitos desenvolvidos em sua obra à luz da conjuntura contemporânea.

Paradoxalmente pouco conhecido do leitor brasileiro, Marini possui extraordinária importância no desenvolvimento das ciências sociais latino-americanas. Fundador da teoria da dependência e, talvez, com Theotonio dos Santos, o principal expoente de sua versão marxista, o autor contribuiu decisivamente na construção de um novo paradigma de interpretação das formações sociais latino-americanas e do capitalismo mundial. Apro-priando-se criativamente da obra de Marx, e de sucessores como Lenin, Bujarin e Thalheimer, Marini aplica rigorosamente o seu método: move-se do abstrato ao concreto para compreender a problemática de totalidades complexas como as da economia mundial e do capitalismo periférico no pós-guerra e nos processos de globalização. A partir daí, desenvolve a teoria marxista e projeta o pensamento latino-americano para os grandes centros, criando novos conceitos para a economia política, como os de superexplo-ração do trabalho, subimperialismo, estados de contra-insurgência e de quarto poder, além de reinterpretar os esquemas de reprodução de Marx para inserir neles o progresso técnico.

Pensador que articulava a teoria com a prática revolucionária, Marini foi dirigente político da Polop e do MIR chileno. Teorizou os limites do capi-talismo latino-americano, os caminhos da revolução socialista na América

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Latina e os processos políticos que a ela se impuseram na região entre os anos 1960 e 1990: os estados de contra-insurgência e os processos de re-democratização sob controle liberal e neoliberal. Ao fazê-lo, travou con-tundentes polêmicas que marcaram a história das ciências sociais na região: com Fernando Henrique Cardoso e José Serra, defensores do capitalismo dependente como paradigma de desenvolvimento da América Latin a, ou com Agustín Cueva, teórico endogenista que via na articulação interna de modos de produção a principal chave explicativa de nossa especificidade histórica e social.

Para Marini, a derrota dos projetos socialistas na região não havia sido definitiva, muito pelo contrário. Uma prova disso é a persistência da revolução cubana, que sobrevive à queda da URSS e do bloco socialista no Leste europeu. Segundo o autor, a retomada dos processos de desen-volvimento sob a direção do neoliberalismo agudizaria os processos de superexploração, exclusão interna e periferização, levando à emergência de novos atores sociais e ao ressurgimento de antigos que relançariam de maneira renovada a problemática socialista.

Segundo o autor, esse processo exigiria uma reconstrução teórica capaz de enfrentar os novos desafios da região. Para isso, a teoria da dependência dos anos 1960 seria apenas o ponto de partida. Ela deveria ser transcendida no plano do marxismo, isto é, depurada de seus aspectos estrutural-funcio-nalistas e reorientada para a construção de um socialismo libertário e origi-nal. Esse socialismo deveria se distinguir pela sua capacidade de introduzir elementos de democracia direta que permitissem o controle do Estado pela sociedade e por sua capacidade de democratizar os processos de gestão internacionais. Trata-se, portanto, no plano teórico, de uma problemática que requer não apenas a consolidação da teoria marxista da dependência, mas a elaboração de uma teoria marxista do sistema mundial, capaz de compreender globalmente a civilização capitalista e ultrapassá-la.

O socialismo, como afirma Ruy Mauro Marini em América Latina: de-pendência e integração (1992), do mesmo modo que o capitalismo, não sur-giu de forma pronta e acabada, mas em um ambiente distinto que lhe limitou a potencialidade e as possibilidades. Se o capitalismo dos séculos XVI-XVIII,

ao comprometer-se com o feudalismo para dirigir o Estado, adicionou a si próprio características históricas que limitaram o pleno desenvolvimento de suas tendências internas, o socialismo, no século XX, ao emergir e compro-meter-se com um mundo capitalista através da política do socialismo em um só país ou região, apresentou características que deverão ser ultrapas-sadas e superadas para o pleno desenvolvimento de suas potencialidades.

A restrição à obra de Ruy Mauro Marini no Brasil e seu paradoxal desconhecimento por parte dos brasileiros têm três raízes. A primeira, o golpe militar de 1964, que o levou ao exílio antes que desenvolvesse grande parte de sua obra no Chile e no México. O golpe apartou o país do enfoque latino-americanista que marcou as ciências sociais da região nos anos 1960-1970. A segunda, a ofensiva da Fundação Ford voltada para a construção de uma comunidade acadêmica liberal capaz de gerenciar o capitalismo brasi-leiro em marcos democráticos, uma vez terminada a ditadura. Chave para isso foi o seu apoio a um enfoque analítico que fragmentasse as ciências sociais em disciplinas relativamente autônomas e impedisse uma com-preensão globalizante de nossa formação social. Centros de pesquisa e as-sociações de pós-graduação com foco disciplinar foram priorizados nesses investimentos, em vez de universidades, pois estimulavam a fragmentação do conhecimento em face de um enfoque mais universalizante das ciências sociais. O Cebrap, dirigido por Fernando Henrique Cardoso, cumpriu aí um papel importante, recebendo parte significativa dos investimentos, e publicando a crítica de Cardoso e Serra à Dialética da dependência sem a resposta de Marini. A terceira se refere à ofensiva neoliberal na região nos anos 1990, estimulada pelo consenso de Washington e pela crise das uni-versidades públicas, o que sujeitou a intelectualidade a pressões externas.

Entretanto, a crise de legitimidade do neoliberalismo potencializa a abertura de novos espaços. Ao homenagear Ruy Mauro Marini, este livro busca dois objetivos. Contribuir para romper o cerco à sua obra no Brasil e atender aos propósitos por ele enunciados na última fase da sua obra: revisitar criticamente a produção latino-americana dos anos 1960-1970 e seus temas para atender aos desafios do empoderamento social de nossos povos na primeira década do século XXI. Nesse sentido, convida e se soma

Apresentação

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a outras contribuições, entre as quais podemos destacar o primeiro volume da Coleção Pensamento Crítico Latino-Americano, dedicado a Ruy Mauro Marini, lançada por Clacso, e Latinoamericana: enciclopédia contemporânea de América Latina e Caribe, premiada no Brasil, em 2007, com os Jabu-tis de ciências humanas e livro do ano (não-ficção), fortemente inspirada no balanço do pensamento latino-americano que reivindica Marini, em meados dos anos 1990, no México, quando dirige o Centro de Estudos Latino-Americanos (Cela) da Faculdade de Ciências Políticas e Sociais da Universidade Nacional Autônoma do México.1

Este livro compõe-se de 16 artigos distribuídos em quatro partes que abordam aspectos ou temas da vida e obra do autor. Na primeira parte, Theotonio dos Santos, Emir Sader e Aña Esther Ceceña destacam, sob diferentes ângulos, a dimensão revolucionária e o caráter militante da obra de Ruy Mauro Marini, dedicada à transformação das condições de pobreza e marginalidade de nossos povos e formações sociais no mundo contemporâneo.

Na segunda parte, Immanuel Wallerstein, Andre Gunder Frank, Adrián Sotelo Valencia e Orlando Caputo analisam as grandes tendências contemporâneas do sistema e da economia mundial em perspectivas distin-tas que estimulam o debate e o pensamento crítico. Immanuel Wallerstein aborda a ascensão e crise da hegemonia estadunidense e suas implicações geopolíticas tomando como referência a longa duração braudeliana. Dis-tingue entre 1945-1970 um período de hegemonia indiscutível dos Esta-dos Unidos e, desde então, a sua lenta decadência. No período que se abre entre 2001-2025, essa hegemonia, segundo o autor, deverá se romper e dar lugar a uma profunda reorganização do poder mundial. Ele aponta que, na conjuntura das primeiras décadas do século XXI, as possibilidades de a América Latina vir a ter papel significativo no mundo contemporâneo são muitas, mas estão ligadas à sua desvinculação da liderança estadunidense

e ao desenvolvimento interno de sua capacidade de associação. Andre Gunder Frank enfatiza as debilidades do Tio Sam, a quem considera um tigre de papel. O autor destaca, na associação entre especulação cambial e proteção militar, que une o dólar ao Pentágono, uma aliança espúria que finca as raízes de uma imensa crise econômica, social e política dos Esta-dos Unidos, cujo detonante será a insustentabilidade das dívidas internas e externas que se acumulam com as suas políticas macroeconômicas especu-lativas e a estratégia de poder unilateral.

Orlando Caputo, em visão que discrepa em certa medida das ante-riores, identifica uma retomada da hegemonia estadunidense nos anos 1980-1990 vinculada à recuperação de sua taxa de lucro. Todavia, o au-tor destaca a presença crescente da China na economia mundial, de quem esta dependeria cada vez mais para manter o seu dinamismo econômico. Adrián Sotelo, por sua vez, analisa os efeitos provocados pela globalização capitalista na economia mundial. Esta mundializa a lei do valor; cria novas periferias com a integração de grandes porções do antigo bloco socialista do Leste europeu à economia mundial; aumenta as transferências de va-lor em detrimento das periferias ao elevar a concorrência nessas regiões; e agrega-lhes novas funções, como a criação de um mercado mundial de força de trabalho que generaliza a superexploração para o conjunto da eco-nomia, seja pela orientação da produção à economia mundial, seja pela exportação de força de trabalho aos grandes centros.

Na terceira parte, Jaime Osório, Carlos Eduardo Martins, Marcelo Carcanholo e Pierre Salama analisam as articulações entre a acumulação de capital e o trabalho na economia mundial. Jaime Osório e Carlos Eduardo Martins revisam as principais teses de Marini sobre o conceito de superexploração. Osório enfatiza sua gênese, atualidade e especificidade na teoria marxista e dedica-se a desfazer equívocos e confusões que ainda permanecem sobre esse conceito. Na mesma direção, Carlos Eduardo Mar-tins reivindica a pertinência do conceito de superexploração no âmbito da teoria marxista do valor, buscando sua formalização matemática. Mostra que este vincula-se, inicialmente, às condições de dependência e aponta os determinantes para sua generalização na economia mundial durante

1 Martins, Carlos Eduardo (Org.). Ruy Mauro Marini (antologia). Ed. Clacso/Prometeo, 2007; e Sader, Emir; Jinkings, Ivana; Martins, Carlos Eduardo; Nobile, Rodrigo (Org.). Lati-noamericana: enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe. Rio de Janeiro: Ed. Boitempo, 2006.

Apresentação

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globalização capitalista. O autor sugere ainda a pertinência de um quarto instrumento de superexploração: a queda dos preços da força de trabalho abaixo de seu valor através do aumento da qualificação do trabalhador sem o incremento salarial correspondente.

Marcelo Carcanholo analisa os processos de acumulação no capita-lismo periférico e mostra as diferenças de enfoque e projetos entre a teoria da dependência de Marini e Theotonio dos Santos, de um lado, e a teoria do desenvolvimento associado de Cardoso e Faletto, de outro. Analisa os pro-cessos de acumulação que se desenvolveram na América Latina nos anos 1990, sob o primado do capital fictício, mostrando sua compatibilidade com as teses da superexploração. Pierre Salama, por sua vez, analisa os proces-sos concretos de regulação da força de trabalho na economia mundial con-temporânea dominada pela globalização comercial e financeira, buscando analogias com as teses de Marini. Ele enfatiza a queda da massa salarial e a revitalização de mecanismos de extração de mais-valia absoluta como uma das principais características dessa economia mundial.

Na quarta e última parte, Marco Gandásegui, Lucio Oliver, Oswaldo Munteal, Francisco Lopez Segrera e Cristóbal Kay abordam grandes debates e questões do pensamento latino-americano e sua pertinência no mundo contemporâneo. Gandásegui resgata os principais pontos de confrontação e convergência do debate entre Ruy Mauro Marini e Agustín Cueva e re-flete sobre eles tomando em consideração as três décadas que o cercam. Lucio Oliver faz um balanço contemporâneo das principais contribuições dos pensadores brasileiros exilados no México sobre o modelo político la-tino-americano, destacando nestes o aporte de Marini. Oswaldo Munteal inscreve o pensamento de Marini e a teoria da dependência na história do pensamento crítico latino-americano. Evidencia as suas vinculações com as teorias do capitalismo colonial, das quais parte para superar seus limites, e com outras visões, em particular as do antigo sistema colonial e do sistema mundo. Munteal sublinha a necessidade de se trabalhar na convergência entre os esforços em teorizar os processos de acumulação no capitalismo periférico ou mundial, destacados na teoria da dependência, e os dedi-cados à formação do sistema interestatal e ao papel coercitivo do Estado,

enfatizados nos enfoques do antigo sistema colonial e do sistema-mundo. Francisco Lopez Segrera e Cristóbal Kay analisam a teoria da dependên-cia problematizando a questão das alternativas. Ambos, de forma polêmica e instigante, talvez não compartilhada por alguns dos fundadores da teo-ria da dependência, apontam a ruptura com a economia mundial como a síntese do seu projeto socialista. Criticando o isolamento desse projeto – apesar das ressalvas aos resultados consistentes da revolução cubana –, sobretudo após a ofensiva neoliberal, os autores propõem-se explorar as possibilidades de um caminho menos conflitivo de integração à economia mundial e de reconstrução do Estado latino-americano, tomando como referência o neo-estruturalismo cepalino ou formas menos ortodoxas de reconstrução do capitalismo nacional, fortemente apoiadas nos movimen-tos sociais, para alguns mais próximas do socialismo de mercado.

A América Latina e os desafios da globalização: ensaios em homenagem a Ruy Mauro Marini toma como referência uma das maiores expressões do pensamento social da região para refletir sobre a problemática latino-americana no mundo contemporâneo. Faz isso com o espírito crítico, sem dogmatismos, e com diversidade de enfoques. Não poderia ser de outra maneira, diante dos desafios da reconstrução societária e das incertezas com que nos defrontamos. Contribui, assim, para que o leitor brasileiro desenvolva os seus instrumentos de reflexão para participar da aceleração do tempo histórico que parece destinada a se projetar sobre a região neste início de século XXI.

Carlos Eduardo Martins Adrián Sotelo Valencia

Apresentação

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Parte I

O homem e a obra: política e revolução

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Ruy Mauro Marini: um pensador latino-americano

Theotonio dos Santos*

O pensamento social latino-americano alcançou, particularmente nas quatro últimas décadas, um alto reconhecimento internacional e influiu profundamente na metodologia e na temática das ciências sociais contem-porâneas. Mais ainda, alguns desses pensadores, independente de suas res-pectivas origens disciplinares (economistas, sociólogos, cientistas políticos, historiadores ou antropólogos), representam referências fundamentais nas lutas sociais de nosso tempo.

Entre todos, Ruy Mauro Marini ocupa uma posição privilegiada. Sua obra teórica é profunda e clara e antecipou grande parte dos campos de pesquisa e debate das ciências sociais contemporâneas. Ainda muito jo-vem, Ruy Mauro levantou, na Organização Revolucionária Marxista Polí-tica Operária (Polop) que fundamos, conjunto de militantes brasileiros de várias origens em 1961, a polêmica sobre as tendências bonapartistas na política brasileira e identificou a relação entre o populismo e as tendências autoritárias em que deveria desembocar o Estado Brasileiro.1

* Nascido em 1936, é um dos fundadores da teoria da dependência. Autor de 38 livros, co-autor, colaborador de 78 livros e de 150 artigos em revistas científicas, publicados em 16 línguas. Ex-presidente da Associação Latino-Americana de Sociologia (Alas), diretor da Cátedra e Rede Unesco/UNU sobre Economia Global e Desenvolvimento Sustentável (Reggen – www.reggen.org.br), lecionou em diversas universidades, entre elas: UnB, UFF, Unam, Universidade do Chile, Ritsumeikan University (Kioto), Northern Illinois University e Universidade de Paris-8.1 Refletindo os debates internos da Polop, Ruy Mauro já havia proposto um exame do bonapartismo como categoria para compreender o caráter do governo Goulart. Seu artigo de 1965 em Foro Internacional refletia esse enfoque: Contradicciones y conflictos en el Brasil contemporâneo. Foro Internacional, México, abr./jun. 1965.

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Dentro da tradição analítica da Polop, da qual foi um dos principais fundadores, já colocava também a inevitável capitulação da classe do-minante brasileira, diante das tarefas democráticas e nacionalistas que poderiam viabilizar um desenvolvimento nacional autônomo do país. Sua contribuição se tornou mais original quando, após o golpe de Estado de 1964, definiu a importância deste para a formação do capital financeiro e sua eminente hegemonia sobre a economia brasileira.2 Nessa época, forjou o conceito de subimperialismo. Através dele, mostrava que o nascente ca-pital financeiro brasileiro, surgido no bojo de uma forte dependência do capital internacional, teria de enfrentar a contradição entre sua tendência expansionista – na busca de novos mercados para seus investimentos e seus produtos – e sua condição subordinada e dependente do capital in-ternacional.3

Em 1967, o conceito de subimperialismo, aliado à concepção da nova divisão internacional do trabalho em formação, já apontava para o sur-gimento dos Novos Países Industriais (os NICs), entre os quais vieram a destacar-se, posteriormente, os tigres asiáticos. Há pouco, James O’Connor me escrevia, em uma carta, com certo humor, que o conceito de semipe-riferia de Immanuel Wallerstein correspondia de fato àquilo “que nós cha-mávamos subimperialismo”. Essa é uma das marcas de Ruy Mauro Marini no pensamento social contemporâneo.4

Mas sua contribuição alcançou um nível ainda mais alto com o livro Dialética da dependência.5 Nele, o cientista social assume com rigor a tarefa de explicar as relações econômicas desiguais entre os produtores apoiados

na alta tecnologia e as economias especializadas em atividades secundárias. Ele vai encontrar, na superexploração do trabalho, o fundamento das rela-ções desiguais na economia mundial. Posteriormente, ao dirigir um Centro de Pesquisas sobre o Movimento Operário, no México, aprofundou essas análises com especial ênfase na reestruturação da indústria automobilística mundial e, particularmente, latino-americana (“Análisis de los mecanis-mos de protección al salario en la esfera de la producción”, Secretaria do Trabalho, México).

Nos últimos anos de vida, Ruy Mauro lançou fortes luzes sobre a re-estruturação da economia internacional e a inserção da América Latina (Democracia e integração na América Latina, São Paulo) na mesma (apro-fundando o enfoque iniciado na segunda metade dos anos 1960), e realizou um levantamento amplo e profundo do pensamento social latino-americano dos anos de 1920 aos nossos dias.6 Sua morte veio colhê-lo na fase final da preparação de uma “Antologia do pensamento social latino-americano do século XX”, que organizava para a Unesco com a minha colaboração.

Nessas tarefas e nessas andanças, nas quais estivemos tantas vezes juntos a ponto de sermos identificados (ele, Vânia Bambirra e eu) como uma corrente da chamada “teoria da dependência”, Ruy Mauro Marini for-mou uma plêiade de discípulos magníficos que se podem ver nos quatro volumes que publicou sobre o pensamento social latino-americano pela Editora Caballito, do México. Sua obra terá necessariamente continuidade, e se aprofundará sua influência depois de sua morte, como é atestado no presente livro.

É lamentável que sua volta do exílio tenha sido precedida pela crítica de Fernando Henrique Cardoso e José Serra em um artigo infeliz dedicado à crítica de seu Dialética da dependência. Aqueles que identificaram, como RMM, Vânia Bambirra, André Gunder Frank e eu, já em 1964, a dinâmica do capitalismo mundial e brasileiro (mostrando sua entrada em uma nova

2 Brazilian interdependence and imperialist integration, Monthly Review, Nova Iorque, dez. 1965; La interdependencia brasileña y la integracion imperialista, Monthly Review en Castellano, Buenos Aires, 1966.3 O artigo de 1966 já anunciava esse conceito, que foi retomado e reelaborado no seu artigo de 1972 sobre o subimperialismo, também publicado na Monthly Review. Debati com Ruy Mauro a viabilidade do subimperialismo brasileiro, pondo ênfase nas suas contradições internas. Contudo, sempre concordei que a tendência ao subimperialismo seria uma constante na evolução do Brasil, apesar de seu caráter contraditório.4 Essas teses encontraram forma mais elaborada nos livros: Subdesarrollo y revolución, siglo XXI (12. ed. [1. ed., 1969], México, 1985) e Il subimperialismo brasiliano (Turim: Einaldi, 1974).5 Ver 1973, várias edições.

6 Ruy Mauro dirigiu um amplo seminário no Centro de Estudos Latino-Americanos da Unam (Cela) sobre o pensamento social latino-americano que deu origem a uma coleção de quatro livros de análise sobre o tema, publicada pela Editoria Caballito, no México, e três volumes de antologia de pensadores da região publicados pela Editora da Unam.

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fase caracterizada pela hegemonia crescente do capital financeiro, que en-cerrava tendências expansionistas e levava a um papel crescente do Estado junto ao capital privado nacional e internacional), procurou-se desqualificar como “estancacionistas”. Ruy Mauro Marini foi o oposto disso, e, antes de Fernando Henrique Cardoso (ou qualquer um de nós), foi o primeiro a identificar o caráter dinâmico do capitalismo dependente. Só que esse di-namismo não era visto no sentido do equilíbrio macroeconômico, das li-berdades públicas e do bem-estar social, como nos querem impingir hoje em dia Fernando Henrique e outros.

Sua resposta àquele artigo, só divulgada no Brasil muito recentemente, tem plena vigência.7 Não podíamos esperar do triunfo circunstancial dos autores daquelas críticas mal-intencionadas um Brasil melhor, mais demo-crático e mais justo. Pelo contrário: o que vemos são as densas nuvens de um enorme desequilíbrio cambial e fiscal, de uma crescente ação do Estado a favor do grande capital financeiro nacional e sobretudo internacional, de uma crescente superexploração da mão-de-obra assalariada8 e os evidentes sinais de um autoritarismo tecnocrático evidenciado na sucessão de “me-didas provisórias” que prescindem do Parlamento. Infelizmente, a recente derrota eleitoral dessa corrente no plano nacional não deu origem ainda a uma mudança radical dessa situação socioeconômica.

A morte de Ruy Mauro Marini deu-se no bojo dessa nova fase da luta de nosso povo. Ele, que foi militante clandestino, prisioneiro torturado do Cenimar, exilado em tantas terras, militante latino-americano e internacio-

nal da luta revolucionária de nossos povos, por sua intransigência revolu-cionária, só podia ser uma incômoda presença no nosso país. Nele, a maior parte da intelectualidade colocou-se a serviço do establishment oligárquico e entreguista, tornando-se os arautos disfarçados da pior distribuição de renda do planeta, dos assassinos de índios, crianças de rua e sem-terras, além de se converterem nos campeões do analfabetismo e da evasão esco-lar, da maior taxa de acidentes do trabalho de todo o mundo etc.

Se queriam intelectuais para ajudar a enfeitar esse quadro miserável com um palavreado pretensamente científico, não podiam definitivamente contar com Ruy Mauro Marini.

Bibliografia

Principais livrosMARINI, Ruy Mauro. Análisis de los mecanismos de protección al salario en

la esfera de la producción. México: Secretaria do Trabalho, 1983.________. Democracia e integração na América Latina. São Paulo, 1990.________. Dialéctica de la dependência. 10. ed. [1. ed., 1973]. México: ERA,

1990. [Dialectique de la dépendance. In: Critiques de l’économie politi-que. Paris: Maspero, 1973; Dialektik der Abhangigkeit. In: SENGHA-AS, Diezer (Ed.). Peripherer Kapitalismus. Analysen uber Abhangigkeit und Unterentwicklung. Francfort: Suhrkamp Verlag, 1974; Dialéctica da dependência. Coimbra: Centelha, 1976; Dialectica della dipenden-za. Milão: Franco Angeli, 1979.]

________. El reformismo y la contrarrevolución. Estudios sobre Chile. Méxi-co: ERA, 1976.

________. Il subimperialismo brasiliano. Turim: Einaldi, 1974.________. Sous-développement et révolution en Amérique Latine. Paris:

Maspero, 1972.________. Subdesarrollo y revolución, siglo XXI. 12. ed. [1. ed., 1969].

México, 1985.________. Subdesenvolvimento e revolução. Lisboa: Iniciativas Editoriais,

1975.

7 A sua resposta polêmica a Fernando Henrique Cardoso não foi publicada no Brasil, e sim em espanhol: Las razones del neo-desarrollismo, respuesta a F. H. Cardoso y J. Serra. Revista Mexicana de Sociología, México, número especial, 1978 (este mesmo número publica o artigo de Cardoso). Sobre a polêmica com Cardoso, veja-se meu artigo: Os fundamentos teóricos do governo Fernando Henrique Cardoso. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 17, p. 121-142, ago. 1996, também publicado na revista Política e Administração da Fesp/RJ, 1985. Uma tradução para o português do artigo de Ruy Mauro Marini só foi publicada na antologia de textos editada por Emir Sader pela Editora Vozes sob o título de Teoria da dependência.8 A importância dessas análises no plano internacional pode-se ver na divulgação ampla dos artigos citados: Brazilian sub-imperalism. Monthly Review, Nova Iorque, jan. 1972; Subimperialismo del Brasil. Monthly Review, Buenos Aires, 1-2 maio 1973; Subdesarrollo y revolución en América Latina. Tricontinental, Havana, com edições também em francês e inglês, 1968; Monthly Review – Selecciones en Castellano, Santiago, set. 1969.

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Principais artigosMARINI, Ruy Mauro. Brazilian interdependence and imperialist integration.

Monthly Review, Nova Iorque, dez. 1965. [La interdependencia bra-sileña y la integracion imperialista. Monthly Review en Castellano, Buenos Aires, 1966.]

________. Brazilian sub-imperialism. Monthly Review, Nova Iorque, jan. 1972. [Subimperialismo del Brasil. Monthly Review, Buenos Aires, 1-2, maio 1973.]

________. Contradicciones y conflictos en el Brasil contemporaneo. Foro Internacional, México, abr./jun. 1965.

________. La dialéctica del desarrollo capitalista en Brasil. Cuadernos Ame-ricanos, México, XXV-5, jun. 1966.

________. Las razones del neo-desarrollismo, respuesta a F. H. Cardoso y J. Serra. Revista Mexicana de Sociología, México, número especial, 1978 [este mesmo número publica o artigo de Fernando Henrique Cardoso].

________. Subdesarrollo y revolución en América Latina. Tricontinental, Havana, com edições também em francês e inglês, 1968. [Monthly Review – Selecciones en Castellano, Santiago, set. 1969.]

Ruy Mauro, intelectual revolucionário

Emir Sader*

Ruy Mauro Marini é o melhor exemplo de intelectual revolucionário na América Latina. Intelectual revolucionário porque pensou a realidade de forma rigorosa e do ponto de vista da sua transformação revolucionária. Intelectual revolucionário porque não apenas pensou a realidade do ponto de vista da sua transformação revolucionária, mas foi sempre um militan-te, um dirigente revolucionário, vinculado a organizações revolucionárias da América Latina. Trabalhou na construção da teoria revolucionária e da força revolucionária do nosso tempo.

Tendo-se formado na Escola de Administração Pública, no Rio de Janeiro, Ruy Mauro se desenvolveu em um ambiente marcado pelo nacio-nalismo de Getúlio Vargas e pela linha nacional-desenvolvimentista do Partido Comunista Brasileiro. Esta galvanizava a grande maioria da inte-lectualidade brasileira, assim com o conjunto da esquerda, seja no movi-mento sindical ou no estudantil.

Ruy Mauro foi influenciado por um sociólogo brasileiro que foi seu professor, Guerreiro Ramos, assim como por Eric Sachs, imigrante alemão, de formação luxemburguista, que terá influência determinante na organi-zação em que Ruy Mauro militou no Brasil – a Polop (Política Operária).

* Nascido em 1943, é secretário-executivo da Clacso, diretor do Laboratório de Políticas Públi-cas, professor da Uerj e professor aposentado da USP. Ex-presidente da Alas, é autor de centena de artigos e dezenas de livros em ciências sociais. Ganhador dos Prêmios Jabutis de livro do ano e de ciências humanas em 2007 pela coordenação e autoria de Latino-americana: enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe.

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Em viagem a Paris, Ruy Mauro pôde desenvolver seu estudo do marxismo e, no retorno, engajar-se definitivamente na militância política, que para ele esteve sempre associada à elaboração teórica crítica e alternativa.

Teoria e prática revolucionáriasAo contrário da grande maioria dos intelectuais de esquerda do conti-

nente, Ruy Mauro não pode ser incluído na categoria que Perry Anderson chamou de “marxista ocidental”, isto é, uma elaboração teórica desvinculada da prática política e dos seus problemas centrais. A obra de Ruy Mauro resgata de forma articulada, na melhor tradição marxista, a economia, a história, a política e a ideologia, recompondo essa totalidade que caracteriza o marxismo e faz dele – nas palavras de Sartre – “a filosofia insuperável do nosso tempo”. Tanto sua obra teórica está voltada para o deciframento da realidade, na perspectiva da ação militante, como sua militância política esteve sempre iluminada pela teoria revolucionária.

Chegado ao Brasil de volta da Europa, Ruy Mauro buscou compreender a natureza e o momento vivido pelo capitalismo brasileiro. O golpe de 1964 é o momento privilegiado para a compreensão desses fenômenos, porque instrumenta o capitalismo brasileiro a fazer sua grande opção no processo de acumulação de capital. A realização através da exportação e da esfera alta do consumo passa a ter papel central no processo de acumulação, fe-nômeno captado brilhantemente por Ruy Mauro e expresso mais adiante em seu Dialética da dependência.

Mas, antes disso, em dois artigos que circularam amplamente em pu-blicações clandestinas no Brasil – e no primeiro número da revista Teoria e Prática –, Ruy Mauro captou as razões que haviam levado ao golpe militar no Brasil. Com uma esquerda relativamente mais débil que as de outros países da região – como a da Argentina, do Chile e do Uruguai –, o Brasil acabou tendo um golpe relativamente precoce.

A análise das contradições e conflitos do capitalismo brasileiro lhe permitiu perceber o confronto entre as necessidades do processo de acu-mulação e o processo de mobilização social e de reivindicação social e política, na base da profunda crise que terminou desembocando na sua

resolução conservadora, mediante o golpe militar de 1964. Ao contrário do pensamento hegemônico naquele momento, Ruy Mauro pôde perce-ber como a democracia não era funcional ao desenvolvimento capitalista brasileiro. Ele percebeu como os espaços democráticos conquistados pelo movimento popular – extensão do sindicalismo urbano, rural, do funcio-nalismo público e até mesmo dos setores da baixa oficialidade das FFAA – ameaçavam a reprodução de nosso capitalismo.

Essa análise era de tal forma correta que a ditadura militar, ao con-trário do que alguns previram, não significou um retrocesso na expansão econômica, mas o seu redirecionamento, voltando-se mais para o mercado externo e o consumo das altas esferas do consumo. Marini demonstrou que, ao capitalismo, interessa a expansão do mercado, não importa se con-centrando renda. Em um caso como o brasileiro, nesse momento, a concen-tração de renda foi um mecanismo de aceleração da expansão econômica e preservação da taxa de lucro, fortalecendo a capacidade de consumo dos setores com maior poder aquisitivo. Ruy Mauro tornou-se, assim, leitura essencial para a compreensão não apenas do significado do golpe militar de 1964 no Brasil, mas também do caráter da política econômica colocada em prática pela ditadura militar.

Ainda no Brasil, como dirigente da Polop, Ruy Mauro foi detido e brutalmente torturado pelo Centro de Informações da Marinha (Cenimar), órgão de repressão da Marinha. Saiu posteriormente do Brasil para o Chile, trabalhando na Universidade de Concepción e ligando-se imediatamente ao movimento que tinha características similares às posições da Polop e que ele defendia: Movimento de Esquerda Revolucionária – MIR.

No mesmo estilo que havia desenvolvido no Brasil, Ruy Mauro seguiu combinando admiravelmente seu trabalho teórico com as responsabilida-des de militância política. Ocupou cargos de direção no MIR chileno, ao mesmo tempo em que desenvolvia sua obra teórica, dava cursos, dirigia te-ses e tinha papel destacado de direção no Centro de Estudos Socioeconômi-cos (Ceso), da Universidade do Chile, onde se agruparam intelectuais como André Gunder Frank, os brasileiros Theotonio dos Santos, Vânia Bambirra, Marco Aurélio Garcia, Emir Sader, os chilenos Marta Harnecker, Guillermo

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Labarca, Cristóbal Kay, Silvia Hernandez, Roberto Pizarro, José Bengoa, os cubanos German Sanchez, José Bell Lara, entre outros.

Sua obra desemboca no seu livro mais importante, Dialética da depen-dência. Lembro-me que Ruy Mauro havia pedido um tempo de férias para ir ao México, em pleno turbilhão de 1972, com as ofensivas golpistas da direita chilena e as contra-ofensivas do movimento popular. Começamos a ficar preocupados, na universidade e no MIR, quando havia passado uma, depois duas semanas, e ele não retornava e não mandava notícias, quando, de repente, Ruy Mauro reapareceu, trazendo consigo um manuscrito, que era simplesmente o texto da Dialética da dependência. Isto é, em meio ao furacão da luta de classes, Ruy Mauro encontrou o tempo e a forma de se concentrar para escrever uma das obras-primas do pensamento marxista contemporâneo, revelando como é sempre possível produzir teoricamente e se dedicar à militância política.

Dialética da luta de classes contemporâneaO conceito-chave de superexploração do trabalho permite decifrar

questões-chave da história contemporânea e da forma que assume a luta de classes. Pode-se dizer que, sem esse conceito, passar-se-ia ao largo das particularidades desse processo na periferia capitalista, mas – e daí a sua surpreendente atualidade – também da extração do valor nos países do centro do capitalismo, no período histórico marcado pela desregulação e pela deslocalização dos capitais, com a correspondente constituição de um mercado de trabalho no plano internacional marcado pela precariedade e pela mobilidade acentuada dos capitais.

Até a Dialética da dependência, o pensamento de esquerda da América Latina vivia dilemas que não conseguia resolver, preso em difíceis contra-dições. Uma parte das análises partia dos fundamentos do marxismo, sem, no entanto, conseguir dar conta da situação específica das formações sociais da periferia do capitalismo, sem uma compreensão histórica da configu-ração assumida pelo sistema capitalista internacional e do lugar particular ocupado por essas formações, com suas conseqüências concretas. Por ou-tro lado, análises da formação histórica concreta dos nossos países privile-

giavam a construção do Estado nacional, dos projetos de nação, as relações com o sistema internacional, com os centros do capitalismo, sem conseguir articular essa abordagem com os processos de acumulação de capital e de enfrentamento de classes.

A obra de Ruy Mauro retira precisamente daí sua originalidade. Ela vem da sua capacidade de compreender a constituição das nossas forma-ções sociais de forma indissoluvelmente intrincada com a constituição do sistema capitalista internacional, no interior da qual nascem, como um de seus elementos constitutivos e, ao mesmo tempo, condicionados por esse tipo de inserção subordinada.

O modelo de acumulação de capital das sociedades dependentes latino-americanas é enfocado na sua dupla ótica, ambas intrinsecamente articu-ladas: fornece fatores de produção que permitem a reprodução de capital nas economias centrais do capitalismo e, ao mesmo tempo, condiciona as burguesias da periferia, inferiorizadas na competição pelo mercado inter-nacional, a induzirem em nossas formações o processo de superexploração do trabalho. Integra-se, assim, o processo de acumulação em escala mun-dial e o processo de acumulação em nível nacional, com as características típicas da extração do excedente que a caracteriza.

Esse marco teórico permitiu, por um lado, a consciência de que os interesses da chamada “burguesia nacional” não tinham contradições sufi-cientes com os do imperialismo e nem sequer do latifúndio, para que pudes-sem estabelecer uma aliança com os trabalhadores da cidade e do campo, centrada em um modelo de desenvolvimento econômico em ruptura com o grande capital internacional e com a propriedade monopolizada da terra. O modelo de acumulação voltado para a exportação e para o consumo da alta esfera do mercado exigia a restrição do mercado interno e pavimentava os caminhos para a aliança com o latifúndio e o imperialismo, retirando da burguesia nacional qualquer caráter revolucionário.

Por outro, definiu um campo dos trabalhadores da cidade e do cam-po, como a força motriz das transformações anticapitalistas, com a classe operária como seu setor hegemônico.

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A visão de Ruy Mauro permite, ao mesmo tempo, entender o esgo-tamento da capacidade do capitalismo latino-americano de retomar o de-senvolvimento de forma sustentada, com distribuição de renda e expansão minimamente orgânica das forças produtivas. As burguesias de cada país se desnacionalizam cada vez mais, atrelando seus interesses e destinos aos do mercado internacional, via modelos exportadores. Seus ciclos expansi-vos, além de curtos, aprofundam o caráter desigual do desenvolvimento e deformam cada vez mais sua estrutura econômica, com conseqüências de profundos desequilíbrios no plano social. O desenvolvimento econômico possível na América Latina se daria somente com o aprofundamento da dependência e da desigualdade social.

A atualidade de Ruy Mauro MariniA atualidade da obra de Ruy Mauro Marini se deu no marco do período

hegemonizado pelo capital financeiro, na sua modalidade de capital especu-lativo. A desnacionalização das burguesias nativas se deu por intermédio da sua financeirização, esta estreitamente vinculada aos compromissos interna-cionais dos governos, endividados no marco das políticas de ajuste do FMI.

Mas o principal tema de sua obra, que revela mais profundamente sua atualidade, é o da superexploração do trabalho. Em primeiro lugar, por-que a globalização liberal acentuou a implementação de modelos de acu-mulação centrados na exportação e no consumo da camada de alto poder aquisitivo – agregando-lhes a esfera de acumulação financeira, com suas típicas contradições –, como contrapartida dos mecanismos de exploração da força de trabalho que bloqueiam a possibilidade de desenvolvimento de um mercado interno de consumo de massas.

Esse mecanismo é o que explica que a América Latina tenha se visto retroceder fortemente ao caráter primário exportador de suas economias. Modelos voltados para a exportação, em época de desregulação neoliberal, só podem abrigar-se de volta nos setores em que desfrutam das malfadadas “vantagens comparativas”. Daí as batalhas dos governos da região para des-bloquear os mercados de produtos primários – particularmente os agrícolas –, como se isso fosse representar um avanço significativo de suas economias.

Isso tem representado a formalização da regressão a economias primário-exportadoras, em que a soja passou a ser a estrela da pauta exportadora de grande parte dos países da região, em clara regressão dos espaços conquis-tados anteriormente no setor industrial – regressão esta de que o Brasil é o melhor exemplo.

Porém, os aspectos mais diretamente vinculados à extração do exce-dente presente nas teses da superexploração do trabalho se revelaram dra-maticamente os mais atuais da obra de Ruy Mauro. Por um lado, porque o Consenso de Washington trouxe no seu bojo as teses da “flexibilização labo-ral”, isto é, estender as propostas de desregulação para as relações de traba-lho. Estas significaram a precarização ainda maior das relações de trabalho, com a expropriação generalizada dos direitos dos trabalhadores, entre con-tratos provisórios, suspensão do pagamento de indenização por demissão e todas as formas de incentivo à informalização das relações de trabalho.

Os direitos trabalhistas, conquistados a duras penas através de longas lutas do movimento sindical, foram sendo atingidos de forma privilegiada pelas políticas neoliberais, revelando da forma mais crua seu caráter clas-sista. Como um de seus resultados, na América Latina a maior parte dos trabalhadores não tem carteira de trabalho assinada – nunca tiveram ou deixaram de ter. Assim, não são cidadãos, no sentido de serem sujeitos de direitos econômicos e sociais. Não podem associar-se, não podem acorrer à justiça do trabalho, não possuem direitos elementares, como um nível mínimo de remuneração salarial, férias, décimo terceiro salário, licença-maternidade e todos os direitos previdenciários e assistenciais conquistados nas décadas anteriores.

Desde que o capitalismo passou do seu ciclo longo expansivo do se-gundo pós-guerra a seu atual ciclo longo recessivo, a desregulação típica das políticas neoliberais incentivou amplamente a transferência de capitais da esfera produtiva para a especulativa. Esta passou a aparecer como a de-sembocadura dos capitais excedentes, características dos períodos recessivos do capital. O forte processo de reconcentração de renda, resultado da globalização neoliberal, acentuou esse processo de transferência, ao limitar ainda mais a capacidade de consumo da esfera baixa do mercado.

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Como uma de suas conseqüências mais claras, o capitalismo central passou de décadas de pleno emprego a níveis altos de desemprego – ausentes nas principais economias da Europa Ocidental ao longo de todo o ciclo longo expansivo. A mudança nas relações de força entre capital e trabalho, decorrente do ciclo recessivo, dos níveis de desemprego, da desaparição do campo socialista e seus reflexos na esquerda, assim como a recessão profunda nos países periféricos, promoveram a imigração maciça de mão-de-obra de países da periferia para países do centro do capitalismo.

Essa mão-de-obra, além daquela explorada pela chamada “desloca-lização”, com a utilização extensiva de força de trabalho em países como o México – com as chamadas “maquilas” –, a China, a Indonésia, a Índia, o Brasil, entre outros, permitida pela criação de uma espécie de merca-do mundial de mão-de-obra, generalizou a superexploração do trabalho, como modalidade essencial do processo de acumulação de capital na era neoliberal. No próprio ciclo curto expansivo da economia estadunidense dos anos 1990, grande parte dele foi devido aos mecanismos de enorme au-mento de produtividade, sem elevação significativa do nível de emprego e de renda dos trabalhadores, devido à “flexibilização laboral”, que teve como uma de suas conseqüências a elevação dos EUA a país com a maior jornada de trabalho do planeta.

Essa extensão se dá porque, conforme os trabalhadores mudam ainda mais constantemente de emprego nesse país, pelas facilidades que a des-regulação laboral permite, perdem em média 14% dos seus salários nes-sa mudança. Buscam compensação agregando novos empregos, elevando sua jornada de forma desmesurada, aumentando a mais-valia absoluta. Os maiores empregadores de mão-de-obra nos EUA são a Wall Mart e suas rigorosas proibições de sindicalização, entre outras normas coibidoras da defesa do poder de negociação dos trabalhadores, e a Man Power, que in-termedeia o aluguel de mão-de-obra temporária – de que os entregadores de pizza no fim de semana são o caso paradigmático.

Por outro lado, na periferia capitalista – nos países citados, entre outros –, a abertura para o ingresso de capitais estrangeiros e a sua busca, para recompor os deficits públicos, lançaram mão abertamente da oferta de

força de trabalho em condições ainda mais vantajosas para o grande capital internacional, favorecendo ainda mais as condições de superexploração do trabalho. A competição ganha pela China contra o México espelha bem essa situação. Apesar da proximidade com os EUA e da oferta de mão-de-obra barata – sobretudo de mulheres e crianças sem sindicalização –, o México viu esvaziarem-se em grande parte suas indústrias fronteiriças com o vizinho do norte, porque a China ofereceu condições ainda melhores de exploração da mão-de-obra, apesar da sua distância dos EUA. Tudo às cus-tas da expropriação intensiva e extensiva da força de trabalho.

O setor social que mais cresce no mundo – segundo os dados da pesquisa da ONU sobre as grandes metrópoles – é justamente o subpro-letariado da periferia das grandes metrópoles. Um setor social submetido às piores condições de exploração, sem direitos, sem socialização através de sindicatos, de movimentos sociais, de educação pública, em meio à vio-lência e ao narcotráfico, adotando religiões evangélicas ou islâmicas como formas contemporâneas de alienação.

Sem a organização, a consciência social e a incorporação dessas jovens gerações, dificilmente a esquerda poderá reconquistar força de massas e voltar a protagonizar os grandes combates políticos do novo século. Sem isso, o próprio Fórum Social Mundial seguirá privilegiando os direitos do cidadão e do consumidor, como substitutos aos grandes temas do mundo do trabalho – particularmente ausentes desses foros. Sem isso, será pratica-mente impossível imprimir um caráter anticapitalista à luta antineoliberal – objetivo pelo que certamente Ruy Mauro estaria lutando com todas suas forças, de teórico e de militante revolucionário.

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Meu querido Ruy

Ana Esther Ceceña*

IEra uma estranha reunião, dessas que eram feitas nos anos 1960.Um pequeno grupo de brasileiros se havia encontrado para esperar,

com toda a solenidade, a chegada de um misterioso personagem. Nervosos e ansiosos, eles se movimentavam, colocavam música e falavam de qual-quer coisa, contudo, mantendo um comportamento de circunstância.

O personagem, que chegou logo depois, era um importante dirigente que vinha do Chile, onde vivia exilado, depois de ter sido resgatado dos cárceres da ditadura do general Castelo Branco no Brasil. O México era em parte um longo percurso na procura de apoio para a luta do Movimiento de Izquierda Revolucionario (MIR), do Chile, e a Junta Coordinadora Revolu-cionaria (JCR),1 na qual se articulavam, além do Movimiento de Izquierda Revolucionario (MIR), o Ejército Popular Revolucionario (EPR), da Argen-tina, o Movimiento Tupamaro, do Uruguai, e o Ejército de Liberación Nacio-nal (ELN), da Bolívia.

* Economista mexicana. Professora e pesquisadora do Instituto de Investigaciones Económicas da Unam. Dirige a revista Chiapas e coordena o grupo sobre hegemonia e emancipações da Clacso. Possui vasta obra publicada em livros, e artigos em revistas científicas. 1 “(...) para debater sobre uma organização revolucionária unificada, concebida originariamen-te pelo líder do MIR, Miguel Enríquez. Os chefes do MIR, do ERP e dos Tupamaros começaram as reuniões em outubro de 1972, no Chile, e os bolivianos se uniram nos encontros posteriores na Argentina, por volta de junho de 1973 (...). Em agosto (...), um mês antes do golpe, as qua-tro organizações tinham aprovado uma aliança formal, conhecida como a Junta Coordinadora Revolucionaria [JCR]”. Dinges, 2004, p. 82.

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Durante duas horas, ou um pouco mais, o homem descreveu a situação geral da luta revolucionária no Cone Sul do continente, fazendo um balanço de suas perspectivas. Tudo indicava que era um momento decisivo, e a JCR estava envidando todos os esforços para consolidar a sua posição.

Era um momento de enorme tensão, em que se buscava que as for-ças revolucionárias de toda a América Latina e Europa, onde havia já um grande número de exilados, coordenassem as suas ações para alcançar um avanço definitivo em prol da construção do socialismo.

A JCR era a primeira experiência internacional de organização e luta contra o sistema de dominação. Sua própria existência constituía um enor-me desafio. E as suas possibilidades eram muito maiores do que tudo o que se havia tentado anteriormente.

O grupo ouviu atentamente a análise desse importante dirigente e se comprometeu com ele. Um forte sentimento latino-americano invadia a sala. Estava-se na época da crise capitalista do início dos anos 1970, era a época também das ferozes ditaduras da América do Sul, quando a dignidade só podia ser mantida lutando contra a barbárie.

Os exilados se abraçaram e decidiram manter a frente em voz alta. Esse homem era Ruy Mauro Marini.

IINos documentos não classificados da Operação Condor, de triste

memória, pode-se ler o seguinte:

Da documentação capturada de “Daniel” se depreende que Ruy Mauro Marini [“Luís”], segundo homem do C.E.2 do MIR e com amplas vincula-ções com a JCR, viajará por estes dias para a Argentina, com sua identidade verdadeira, para encontrar-se com Edgardo Enríquez. Ver a possibilidade de capturá-los...

Sobre Ruy Mauro Marini, seria muito importante que fossem mandadas fo-tografias, se vocês as tiverem. Rawson3 já está avisado sobre a possível entra-da de Marini na Argentina.4

Marini, como figura destacada do Comitê Exterior do MIR, era um dos alvos privilegiados dos agentes internacionais da Operação Condor. Membros da CIA (Central Intelligence Agency) dos Estados Unidos, como Vernon Walters (subdiretor da CIA nessa época) e os cubanos Osvald Bosch, Guillermo Novo, José Dionisio Suárez (Dinges, 2004, p. 181) e Luis Posada Carriles, que atuavam principalmente na América Central e na Venezuela, mantinham um contato estreito e permanente com os grupos de inteligência sul-americanos. A modernização dos métodos de contra-insurgência dos exércitos e dos organismos policiais dos países do Sul se beneficiou das experiências desses agentes anticastristas e dos ensinamen-tos da Escola das Américas, e de algumas outras estabelecidas em território norte-americano, onde se trabalhava com táticas anti-subversivas e méto-dos de interrogatórios de prisioneiros. Os militares brasileiros certamente, recolhendo sua experiência em ditaduras no seu país, instruíam os exérci-tos regionais sobre técnicas de tortura.

(...) a CIA fornecia treinamento através do Brasil (...) este país era o “cami-nho” através do qual os agentes da Dina (polícia secreta chilena) se familia-rizavam com as técnicas de tortura e de interrogatório. (Entrevista a Jahn,5 citada por Dinges, 2004, p. 156)

2 Comitê Exterior do Comitê Central.

3 “Osvaldo se transformou no homem de frente argentino em uma operação conjunta no Chile e na Argentina, que tinha como objetivo encontrar e eliminar o que resta dos líderes da JCR na Argentina. A verdadeira identidade de Osvaldo era José Osvaldo Riveiro, tenente-coronel desig-nado ao Batalhão de Inteligencia 601, a principal unidade operativa do Serviço de Inteligencia do Exército (SIE). Para suas operações clandestinas se fazia passar por ‘Jorge Osvaldo Rawson’.” Dinges, 2004, p. 159.4 http://abogarte.com.ar//turcojulian l.htm.5 O coronel das Forças Armadas Mario Jahn estava a cargo do projeto de internacionalização da Operação Condor, do ponto de vista global. Dinges, 2004, p. 169.

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A colaboração era ampla entre governos, exércitos, polícias, guardas de fronteira e grupos de inteligência. A Operação Condor constituiu um pri-meiro esforço coletivo de construção de um banco de informação continen-tal6 sobre militantes sociais e organizações políticas, que estava à disposição de todos eles com o propósito de aperfeiçoar os sistemas de perseguição e de comprometimento e eficiência no campo da contra-insurgência.

Tratava-se de informação de interesse vital para todas as forças de segurança e de inteligência que operam na América do Sul. Tradicionalmente cautelo-sos no momento de compartilhar as informações, agora os organismos de inteligência começaram a trabalhar conjuntamente de maneira nunca vista. (Dinges, 2004, p. 133)

Somente o golpe de Pinochet retirou Marini dessas terras sul-ame-ricanas e, depois de uma passada pelo Panamá e por alguns países da Europa, ele se instalou no México, onde continuou com suas atividades de apoio à JCR.

Pinochet começou a desenvolver uma estratégia internacional de longo pra-zo, quase imediatamente depois do 11 de setembro (data do golpe militar no Chile de 1973). De acordo com um informe da CIA datado de 3 de outubro, uma das suas primeiras medidas foi recorrer aos amigos que pensavam como ele: “As Forças Armadas aparentemente acreditam que a esquerda está se rea-grupando para levar a cabo atividades de sabotagem e guerrilha. Foi solicita-do a vários governos amigos material e treinamento em questões de contra-insurgência. Brasil e Estados Unidos foram os primeiros a ajudar o Chile a reconfigurar as Forças Armadas para as novas tarefas”. (Dinges, 2004, p. 75)

IIIRuy Mauro Marini se propôs compreender o capitalismo de todos os

seus pontos de vista, com suas contradições e modalidades contrapostas e articuladas. Tratava-se de um sistema desigual e combinado, como dissera Trotsky, e, em sua compreensão, apelava para uma abordagem multidimen-sional e multissituacional. Era preciso encontrar as complementaridades, em muitos casos perversas, que configuravam a dinâmica de conjunto. Foi assim que, com a América Latina na carne e a partir de uma leitura cuida-dosa e crítica das obras de Marx, Marini mergulhou nos mares da mais-valia e das estratégias multidimensionais de obtenção do lucro e produziu uma obra que, sem dúvida, condensa as suas maiores contribuições.

A Dialética da dependência propõe uma reinterpretação da história do capitalismo, colocando no centro a contribuição da América Latina e de outras regiões semelhantes, que no pensamento dominante eram depre-ciadas com termos como “atraso”, “estorvo” ou “subdesenvolvimento”. Para Marx, como é sabido, a construção de um modo de produção especifica-mente capitalista somente é possível no momento em que a concentração de riquezas permite gerar novos modos de produzir através da invenção de máquinas e da substituição relativa do trabalho vivo, ainda que, em termos absolutos, sejam mantidas altas taxas de crescimento. E, segundo Marx, “(...) é somente com o surgimento da grande indústria que se estabelece em bases sólidas a divisão internacional do trabalho” (Marini, 1991 [1973], p. 20), na qual a América Latina desempenhará um papel fundamental:

(...) à sua capacidade para criar uma oferta mundial de alimentos, que apa-rece como condição necessária de sua inserção na economia capitalista in-ternacional, se acrescentará logo a de contribuir para a formação de um mercado de matérias-primas industriais, cuja importância cresce em função do próprio desenvolvimento industrial.

Assim, não somente os custos de produção são diminuídos com a diferença de preços relativos, mas também a contribuição em grãos e ali-mentos permite desvalorizar a força de trabalho e, com isso, dar um salto de qualidade na produção e nos mecanismos de extração da mais-valia:

6 “O traço característico da Operação Condor mais explicitamente descrito nos documentos de fundação e reconhecido por Contreras em diversas entrevistas foi a criação de um banco de dados centralizado para o qual todos os países membros contribuiriam com informação de in-teligência. Esse banco de dados ficaria localizado no Centro de Coordenação do quartel central da Dina no Chile, designado como ‘Cóndor1’; foi formado para centralizar em um único lugar a melhor informação de cada país e de países fora do sistema, sobre ‘pessoas (...) organizações e outras atividades, direta ou indiretamente ligadas com a subversão’.” Dinges, 2004, p. 173.

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(...) a participação da América Latina no mercado mundial contribuirá para que o eixo da acumulação na economia industrial se desloque da produção de mais-valia absoluta para a produção da mais-valia relativa... (...) o desen-volvimento da produção latino-americana, que permite à região contribuir para essa mudança qualitativa nos países centrais, se dará fundamentalmente com base em uma maior exploração do trabalhador. Esse é o caráter contra-ditório da dependência latino-americana, [o] que determina as relações de produção no conjunto do sistema capitalista (...) (Marini, 1979, p. 23)

O modo de produção especificamente capitalista e a irreversibilidade do processo de subordinação dos outros modos de produção sobre os quais o capitalismo constrói o seu domínio se explicam pela combinação de di-ferentes dinâmicas e mecanismos de integração e subordinação. A geração das condições de possibilidade da mais-valia relativa se sustenta, parado-xalmente, na implantação de um sistema de extração da mais-valia abso-luta em amplas regiões do mundo. Por isso, a América Latina não pode ser compreendida como um processo idêntico, ainda que atrasado, como propunham os teóricos do capitalismo (Rostow, entre outros), mas como uma parte diferente e complementar de um processo global integrado.

A América Latina ganhava vida através dessa reinterpretação, e a dis-cussão sobre a linearidade do desenvolvimento era profundamente con-testada. O capitalismo era reconstruído a partir de suas estratégias, e, ape-sar do corte estruturalista que a análise de Marini apresentou em muitos momentos, os sujeitos reapareciam com seus conflitos e suas contradições. A especificidade do capitalismo latino-americano era parte constitutiva da modernidade, mostrando, não obstante, as suas facetas mais selvagens.

(...) chamada para contribuir para a acumulação de capital com base na ca-pacidade produtiva do trabalho nos países centrais, a América Latina pre-cisou fazê-lo mediante uma acumulação fundada na superexploração do trabalhador. Nessa contradição está enraizada a essência da dependência latino-americana. (Marini, 1991 [1973], p. 49)

IVColocar-se em perspectivas diferentes, a partir das chamadas margens

de manobra, implica um deslocamento epistemológico, uma modificação de planos que evita a cena cartesiana. Não se trata de olhar a situação a partir do lado oposto, mas de olhá-la de outro modo, com outra perspec-tiva e com outros olhos, como já insistiam na sua época Guillermo Bonfil e René Zavaleta. Implica recuperar (ou construir) as próprias matrizes de pensamento, com o objetivo de entender a si mesmo dentro da totalidade. Consiste em realizar a descolonização do pensamento para poder avançar na descolonização da vida social.

É nesse esforço coletivo de construção de visões de mundo emanci-patórias que o pensamento de Marini deve ser colocado. Nos anos 1960 e 1970, Ruy Mauro Marini realizou um salto epistemológico quando insistia em realizar uma leitura do capitalismo a partir da América Latina, muito embora nesse nível de abstração não se tenha feito referência às associações resistentes que se mantinham ocultas ou invisíveis em um processo que as negava. O capitalismo, dizia Marini, não podia ser compreendido a partir somente dos centros desenvolvidos; ele tinha de encontrar suas explicações na reconstrução da totalidade, e devia ser entendido a partir de qualquer de suas partes, ainda que as perspectivas fossem diversas. Entre outras coisas, é a economia dependente que explica em grande medida o desenvolvimento geral do sistema. Esse fator é insuficiente para explicar o capitalismo, tal como a grande indústria, sem o trabalho em domicílio. As economias de-senvolvidas não existiriam se não mantivessem uma relação simbiótica com as chamadas economias subdesenvolvidas.

No entanto, para descolonizar o pensamento e gerar visões eman-cipadas da realidade, é preciso mais que pensar a partir da margem de manobra ou a partir do subdesenvolvimento, é preciso antes pensar para além desse sistema de relações e imaginários sustentado na polaridade. A emancipação do operário não significa comparar o ser proletário e o ser capitalista, ou mesmo mostrar a sua superioridade; a emancipação do ope-rário implica se transformar e se colocar fora dessa dicotomia enganosa de dominado-dominador/dominador-dominado. O caminho consiste em

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deslocar os planos, como fazem as pinturas surrealistas de Remedios Varo, e demonstrar que as margens de manobra não existem, mas são produzidas pelas relações de poder.

VO México tinha deixado de pertencer à América Latina quando o neo-

liberalismo, através de uma alteração de sentidos, conseguiu ocultar, ainda que apenas temporariamente, as suas referências históricas. A ilusão das mercadorias ocupou o lugar das utopias, e os três mil quilômetros de fron-teira com o maior empório mundial se dissolviam nos imaginários.

Os espetaculares anúncios publicitários se apresentavam em inglês, e o homem unidimensional ocupava as ruas e os grandes centros comerciais. Essas eram as conseqüências do boom petrolífero que ampliou as expecta-tivas materiais da classe média.

Enquanto isso, na América do Sul, abriam-se processos de desmilita-rização, que, depois das experiências de aniquilamento dos golpes milita-res, das ditaduras e do Plano Condor, eram assumidos como um horizonte desejável. A construção da democracia, com todas as suas limitações, subs-tituiu os projetos socialistas de outras épocas e a meta geral se deslocou para a recuperação dos direitos civis. Os exilados, que viviam lembrando tristemente dos seus lugares e de sua gente, começaram a se postar decidi-dos a não perder esse processo.

O México perdeu. Ao longo dos anos 1970, a presença de pensadores e lutadores sociais do Cone Sul tinha estimulado os debates políticos e tinha enriquecido o ambiente de criação intelectual. A Universidade Nacional Autônoma do México tinha se latino-americanizado, e, nas suas aulas e sa-las de reunião, eram compartilhados idéias, visões, costumes, projetos. Nos momentos de compartilhamento, dançava-se samba, cantavam-se canti-gas e lembrava-se tristemente em ritmo de tango. A teoria da dependência abria campo entre os estudiosos, e os debates sobre a sua pertinência diante do marxismo que se instalava nos herdeiros de 68 eram habituais. Eram os tempos do Che e da esperança armada. Eram tempos de criar e lutar pela vida. Eram tempos de resistência e de reinterpretação. A teoria da depen-

dência, nas suas vertentes mais rigorosas, dialogava com o marxismo, intro-duzindo explicações para essa América Latina convulsionada que buscava caminhos próprios, que insistia na independência e descolonização, que combatia o imperialismo e trabalhava para a transformação social.

O Marx latino-americano que emerge da Dialética da dependência se toma das mãos de O capital monopolista e a economia mexicana de José Luis Ceceña, e ambos caminham por trajetórias que confluem para a recupera-ção-reconstrução da América Latina como objeto de estudo, mas sobretudo de transformação. A partir de perspectivas diferentes, elas coincidem na busca das causas da trajetória latino-americana. Ambas constroem impor-tantes genealogias que terão pontos de contato e desenvolvimentos dife-renciados, a demonstrar, por isso mesmo, a complexidade dos processos sociais nas terras de Zapata, Bolívar, San Martín, Tupac Amaru e Zumbi, entre outros muitos lutadores.

A extração da mais-valia absoluta para alimentar a grande indústria, que possibilita a revolução interna do modo de produção e o surgimento do modo especificamente capitalista, não somente permite controlar tecni-camente as proporções entre valor e mais-valia, dando origem à mais-valia relativa, mas também sustenta o aumento da capacidade produtiva e, com isso, o seu derrame pelo mundo. As grandes empresas que hoje dominam o mundo tiveram origem nesse processo de concentração e objetivação, nesse processo de conformação das classes e dos grupos de poder.

Nesses anos, grupos de poder, como o Morgan Guaranty, Chase Ro-ckefeller, First National City Bank e Du Pont Chemical Bank, os quatro superpoderosos dos Estados Unidos (Ceceña, 1963), junto com os primei-ros grandes grupos financeiros do mundo, apelando para políticas de Esta-do e para uma divisão internacional do trabalho impostas por eles próprios, eram os protagonistas privilegiados das relações de dependência e da ins-tauração concreta da Doutrina Monroe. Economia, política e militarização combinaram histórias e processos para conformar uma unidade diversa, mas controlada, na qual os mecanismos e as modalidades da mais-valia e do lucro reapareciam nas formas concretas de articulação e submissão de processos que estruturavam desestruturando.

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O ambiente acadêmico criado no México a partir do final da déca-da de 1970 era bastante propício para ampliar visões e perspectivas. Com olhares de muitos lugares do continente, armava-se o quebra-cabeças da dominação, para pensar nas condições e possibilidades do que então se chamava correntemente de mudança social. Sérgio Bagú, Theotonio dos Santos, René Zavaleta, Pedro Vaz, Vânia Bambirra, Pedro Vuskovic, Agus-tín Cueva e alguns outros, junto com Ruy Mauro Marini, José Luis Ceceña, Bolívar Echeverría, Pablo Gonzáles Casanova, Carlos Pereyra (o Tutti) e um conjunto de pesquisadores mexicanos formavam o que bem se pode chamar de a comunidade intelectual da época. O México era um aleph (pri-meira letra do alfabeto hebraico) do pensamento crítico latino-americano, que não somente permitiu um florescimento teórico comprometido com as lutas sociais, mas também contribuiu para formar uma boa parte dos intelectuais das décadas seguintes.

VIA ditadura tinha destruído muitas coisas. Uma das mais importantes

era a memória.Paradoxalmente, com uma presença internacional indubitável, Marini

retorna a um Brasil que não se lembra dele, que dificilmente o reconhece e onde as suas obras não eram quase conhecidas. Um Brasil que quer viver para frente para não carregar o peso de um passado que o compromete.

Em pleno neoliberalismo, com a ilusão de um Brasil potência, apesar da penetração cada vez mais evidente de capitais norte-americanos, a so-ciedade brasileira aponta para o primeiro mundo. Ninguém se interessava pelos teóricos da dependência, que eram vistos como emissários de uma realidade que era preferível ignorar. Os anos 1980 foram os da atonia, mas também do reencontro. No entanto, os exilados não pareciam ser espera-dos por quase ninguém, e na volta não foi possível encontrar o que se tinha deixado ao partir.

Nessas sociedades apressadas, o ambiente de reflexão não conseguia se recompor. Havia muita coisa que precisava ser reconstruída, e os mun-dos acadêmicos estavam totalmente transformados. Enquanto o México se

deslatino-americanizava com a repatriação dos exilados e com o avanço do neoliberalismo, havia uma triste lembrança comum: os vazios se tornavam evidentes para aqueles que voltavam e para aqueles que ficavam.

Dez anos depois, Marini estava de volta. Era necessário fortalecer o Centro de Estudos Latino-Americanos, um dos poucos espaços universi-tários que mantinham essa visão ampla e, na contracorrente, insistiam na importância de olhar para o Sul.

Foi então que Marini se propôs reencontrar os fios do pensamento latino-americano através de uma revisão que remontava ao início do século XX. Desde Ramiro Guerra e Mariátegui até chegar ao pensamento contem-porâneo, iam-se traçando as vias de explicação do mundo a partir de uma América Latina em luta. As visões estruturalistas, o enfoque gramsciano e as vertentes marxistas e cepalinas da América Latina se fizeram presentes, cada uma apresentando a sua versão dos diferentes momentos da história e da complexidade de um processo no qual economia, sociedade e cultura são mantidas em permanente tensão.

Discussões sobre a inserção da América Latina no capitalismo mun-dial e as particularidades sub-regionais colocaram em relevo os diferentes modos em que o capitalismo se apoderou dos processos de reprodução social e foi imprimindo comportamentos. A qualidade e a importância dos exércitos industriais de reserva, a reprodução de uma força de trabalho in-dustrial subvencionada pela agricultura camponesa, a formação de pólos marginais, os estratos do processo industrial e, conseqüentemente, do pro-letariado, o disciplinamento social por desapossamento, a ilusão naciona-lista das burguesias locais e o diferente conceito de nação que emanava da luta popular de descolonização, o impacto dos monopólios estrangeiros na conformação do perfil estrutural e na implantação das relações de poder, o caráter e a origem do capital e a sua capacidade de hegemonizar e impor normas de concorrência e políticas públicas, mecanismos e modalidades de dominação e alternativas de desenvolvimento ou de liberação – esses eram alguns dos temas que era preciso colocar em debate em um momento no qual o sistema mundial se reorganizava, transformando o conteúdo e o caráter da divisão internacional do trabalho.

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Nesse espaço de reflexão, em um contexto muito mais diverso, ou pelo menos desinteressado, que tinha mergulhado na dinâmica do desencanto ou do fim da história, ele conseguiu convocar um boa parte da comunidade acadêmica e recolocar o tema da mudança social, com suas perspectivas e limites para o futuro da região, e conseguiu recuperar os “fios soltos”, como ele dizia, do pensamento crítico latino-americano.

VIIA Dialética da dependência tinha ficado para trás. Correspondia a um

momento superado. O mundo do trabalho se movia da fábrica para as ruas, se informatizava, aproveitando a derrota das experiências socialistas e as inovações tecnológicas. Os processos de trabalho foram planetarizados e o mercado de trabalho se diversificava, combinando forças de trabalho com culturas e histórias diferentes, enquanto as submetia a um duplo movimen-to de cerco, reforçando as fronteiras nacionais e a diáspora, promovendo a migração temporária e o nomadismo. Estudar as profundas mudanças no mundo do trabalho e conseguir compreender a sua nova fisionomia e o seu caráter eram algumas das suas grandes preocupações. Escrever a etapa se-guinte da Dialética, reavaliar o capitalismo transformado do final do século e repensar o conteúdo e o significado do proletariado.

O câncer impediu a continuação desse trabalho, que, de alguma ma-neira, ele foi introduzindo nos seus discípulos, nos seus companheiros, nos seus amigos de luta e reflexão.

Meu último encontro com ele foi no Rio. Mesmo com poucas ener-gias, não deixava de se interessar pelos debates, pelas novidades inte-lectuais, pelas vias de investigação que se desenvolviam... Insistia muito em estudar a nova natureza do trabalho e das relações de trabalho e a maneira como, a partir disso, podia-se pensar a revolução.

Morreu perto do seu filho, do seu mar e nesse Brasil por quem tanto lutou.

Ele vive ainda em todos nós.

BibliografiaCECEñA, José Luis. El capital monopolista y la economia mexicana. México:

Cuadernos Americanos, 1963.DINGES, John. Operación Cóndor. Chile: Quebecor, 2004.HERRERA, Alicia. Pusimos la bomba... y qué?. La Habana: Política, 2005.MARINI, Ruy Mauro. Dialéctica de la dependência. México: Era, 1991.MARINI, Ruy Mauro; MILLÁN, Márgara. La teoría social latinoamericana.

México: El Caballito. 1994-1996. t. I-IV.

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Parte II

Globalização e dependência

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Mudando a geopolítica do sistema-mundo: 1945-2025

Immanuel Wallerstein*

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a geopolítica do sistema-mundo atravessou três fases diferentes. O período que vai de 1945 até mais ou menos 1970 foi um período de inquestionável hegemonia dos Estados Unidos no sistema-mundo. Os anos de 1970 a 2001 foram um período no qual a hegemonia dos Estados Unidos começou a declinar, mas a extensão desse declínio ficou limitada pela estratégia que esse país desenvolveu es-pecificamente para postergar e minimizar os efeitos do declínio. Os anos de 2001 a 2025 são um período no qual os Estados Unidos buscam recuperar a sua posição com políticas mais unilaterais, o que, contudo, tem um efeito bumerangue e realmente vem aumentando a velocidade e a profundidade do seu declínio.

1. De 1945 a mais ou menos 1970O fim da Segunda Guerra Mundial marcou a conclusão de uma luta

de 80 anos entre os Estados Unidos e a Alemanha. A rivalidade era sobre a questão de quem seria o poder hegemônico que sucederia a Grã-Bretanha no sistema-mundo, uma hegemonia que tinha começado a declinar pelo

* Nascido em 1930, é fundador do Fernand Braudel Center na Universidade do Estado de Nova Iorque, em Binghamton, e um dos criadores das análises ou teoria do sistema mundial. Ex-presidente da International Sociological Association (ISA), dirigiu a Comissão Gulbenkian de reestruturação das ciências sociais. Possui obra vastíssima, publicada em diversas línguas, onde se destaca a paradigmática trilogia O moderno sistema mundial, iniciada em 1974, mas ainda inédita em português. O autor se aproxima hoje do milhão de citações no google.

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menos desde 1873. A fase culminante dessa luta envolveu uma guerra de 30 anos, de 1914 a 1945. Essa guerra envolveu todas as maiores potências industriais do sistema-mundo, e, na sua última fase (a chamada Segunda Guerra Mundial), causou destruição física maciça às populações da Europa e da Ásia e a devastação da maior parte do seu equipamento industrial.

Os Estados Unidos venceram a guerra contra a Alemanha, obtendo sua “rendição incondicional” – com a indispensável assistência dos seus principais aliados, a União Soviética e a Grã-Bretanha, que suportaram pe-sadas perdas. Em 1945, os Estados Unidos emergiram da guerra como a única e maior potência industrial que tinha suas instalações intactas, algo que, de fato, tinha sido grandemente fortalecido pela expansão na época da guerra. Isso significou que, durante os 15 ou 20 anos seguintes, os Estados Unidos estavam em condições de produzir todos os principais produtos industriais com muito maior eficiência do que as outras nações industriais e, com isso, podiam vender mais do que os produtores localizados nesses outros países em seus próprios mercados internos.

No período imediatamente após a guerra, a destruição física na Eu-ropa e na Ásia foi tão maciça que muitos países dessas regiões sofreram inclusive com escassez de comida, moedas instáveis e graves problemas de balança de pagamentos. Eles precisavam de uma urgente assistência eco-nômica de muitos tipos, e olharam para os Estados Unidos para resolver a questão.

Os Estados Unidos estavam em condições de transformar facilmen-te a sua absoluta dominação econômica em uma primazia política. Eles também, pela primeira vez na sua história, se tornaram o locus central da geocultura. Nova Iorque substituiu Paris como a capital do mundo da arte em todas as suas formas, e o sistema universitário norte-americano rapida-mente veio a dominar o conhecimento, em virtualmente, todos os campos.

A única arena na qual os Estados Unidos estavam apreensivos, com toda a razão, era a arena militar. A política interna norte-americana tinha ordenado a rápida redução do seu exército, cujo contingente tinha sido sustentado por um sistema de destacamento universal. Do ponto de vista militar, esse país fiava-se principalmente em dois fatos: a posse de armas

nucleares e um comando aéreo capaz de soltar essas bombas em qualquer lugar do globo. Havia outro grande poder militar no mundo – a União Soviética. Embora tivesse sofrido uma enorme sangria durante a guerra, o exército soviético era ainda muito grande e não havia sido absolutamente desmantelado. Além disso, em quatro anos, a União Soviética estava em condições de produzir as suas próprias armas nucleares e, com isso, que-brar o monopólio dos Estados Unidos.

A única solução racional para essa situação militar era algum tipo de negociação política entre o que seria mais tarde chamado as duas superpo-tências. Essa negociação foi realizada. Chamamo-la pelo simbólico nome de Yalta, mas ela foi, naturalmente, muito mais do que acordos formalmente feitos na Conferência de Yalta. A negociação consistia, na minha visão, de três partes.

A primeira parte do acordo envolvia uma divisão do mundo em es-feras de influência. A Segunda Guerra Mundial tinha terminado em uma certa fronteira na Europa, grosseiramente o rio Elba na Alemanha, e em uma hipotética projeção para o sul no Mediterrâneo. Da mesma maneira, na Ásia Oriental, essa linha existia ao longo do rio Yalu, dividindo a Coréia em duas metades. De fato, o acordo era que cada uma das superpotências manteria o controle (militar e político) do seu lado dessa fronteira, com-prometendo-se tacitamente a não usar a força militar para tentar mudar o status quo. De fato, isso garantia o controle soviético sobre as áreas que ti-nham sido ocupadas pelo Exército Vermelho, cerca de um terço do mundo, e garantia aos Estados Unidos o controle sobre o resto.

Já que o acordo jamais fora explícito, houve algumas vezes em que ele foi colocado em questão nos anos seguintes: no norte do Irã, na guerra civil grega, no bloqueio de Berlim, na guerra da Coréia, no problema Quemoy-Matsu, nos vários levantes na Europa Oriental (1953, 1956, 1968 e 1980-1981), e, sobretudo, em toda a crise dos mísseis cubanos. O que deve ser observado em cada uma dessas “minicrises” é que ambos os lados sempre desistiam de usar armas nucleares (o chamado equilíbrio do terror), e cada um desses conflitos bélicos acabava com um retorno ao status quo ante. O fato é que a aceitação mútua das fronteiras geopolíticas do outro perma-

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neceu durante todo o período da chamada Guerra Fria, apesar de todos os tipos de pressões internas em cada campo no sentido de não respeitar os termos do acordo tácito.

A segunda parte do acordo se deu na arena econômica. Os Estados Unidos estavam determinados a reconstruir a infra-estrutura dos seus alia-dos. A razão para isso era, em parte, política (para assegurar a lealdade deles como satélites políticos) e, em parte, econômica (não teria muita utilidade ser o produtor mais eficiente no mundo se não houvesse suficientes com-pradores para os seus produtos). O que não se queria, de fato, era derramar dinheiro na reconstrução da infra-estrutura econômica da União Soviética e do seu bloco. Os dois lados tiraram vantagem do bloqueio de Berlim para estabelecer uma espécie de dique radical entre as duas zonas econômicas. Os Estados Unidos usaram o bloqueio de Berlim como a desculpa política para obter do Congresso norte-americano a aprovação do Plano Marshall. Eles usaram depois a Guerra da Coréia para justificar tipos similares de assistência econômica para o Japão, Taiwan e Coréia do Sul. A União So-viética, por sua vez, construiu o Comecon (Conselho para a Assistência Econômica Mútua), com os seus satélites da Europa Central e Oriental, e estabeleceu ligações econômicas extensas com a China e a Coréia do Norte.

O pano de fundo desse acordo era que um terço do mundo soviético se afastava de uma interação econômica significativa com o resto da economia-mundo capitalista, em uma espécie de protecionismo coletivo. Eles o usa-ram para se engajarem em uma considerável industrialização e para alcançar notáveis taxas de crescimento durante esse período. Os Estados Unidos o usaram para construir estruturas econômicas internacionais (que, nesse mo-mento, não incluíam os países do bloco soviético), criando uma ordem eco-nômica interestatal na qual o dólar seria a moeda de troca mundial e na qual as empresas industriais e financeiras norte-americanas poderiam florescer.

A terceira parte do acordo era ideológica. Era permitido e mesmo in-centivado a cada lado se empenhar em estrepitosas denúncias recíprocas. A retórica norte-americana dividia a arena entre o mundo livre e os Estados totalitários. A retórica soviética dividia a arena entre o campo burguês e o bloco socialista. Os nomes eram diferentes, mas a liça era essencialmente a

mesma. Nenhum lado aceitava como legítima a “neutralidade” nessa guerra ideológica. Mas, coerentemente, impedia-se que a ideologia fosse efetiva-mente o fator decisivo nas contínuas decisões políticas e econômicas. A real função da retórica era permitir que os líderes de cada campo controlassem os dissidentes potenciais no seu próprio campo e impedir o surgimento de qualquer grupo que pudesse colocar realmente em questão os acordos geopolíticos. O resultado disso era uma opinião pública mundial dividida em dois campos, cada um deles possuindo um substancial grupo de crentes e adeptos.

Com o acordo de Yalta na mão, os Estados Unidos não enfrentaram nenhum sério obstáculo para fazer aquilo que os poderes hegemônicos fa-zem: estabelecer uma ordem mundial que acomodasse os seus interesses, com base em uma espécie de projeto societário mundial de longo prazo. Na arena geopolítica imediata, os Estados Unidos podiam contar com obter quase tudo durante quase todo o tempo. Já que esse período foi um período de incrível expansão econômica da economia-mundo, os padrões de vida estavam crescendo em todos os lugares, as facilidades de educação e saú-de estavam se expandindo e as artes e as ciências estavam no seu apogeu. Apesar de muitas histerias passageiras, a confiança no futuro parecia reinar sobejamente.

As maravilhosas harmonias desse período – o que os franceses chama-riam depois de trente glorieuses (trinta anos gloriosos) – eram muito boas para durar. E não duraram. Havia duas moscas na sopa. A primeira era a recuperação econômica da Europa Ocidental e do Japão (mais os chama-dos quatro dragões). Essas áreas se recuperaram tão bem, como resultado de políticas colocadas em operação pelos Estados Unidos, que, na metade dos anos 1960, começaram a se aproximar de uma paridade econômica com os norte-americanos. Deixava de ser verdade que os produtores norte-americanos podiam vender mais do que os produtores alemães, franceses ou japoneses nos seus próprios mercados domésticos. Pelo contrário, os Estados Unidos começaram a importar produtos industrializados desses países. E todos eles vieram a se tornar relativamente competitivos em outros mercados. Uma vez que o fosso econômico entre os Estados Unidos

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e os seus maiores aliados foi drasticamente reduzido, o alinhamento po-lítico e financeiro automático desses países com os Estados Unidos podia ser revisado, e foi.

A segunda mosca na sopa foi o chamado Terceiro Mundo, ou todos aqueles países cujos interesses e inclusive visões estavam totalmente fora da jurisdição das duas superpotências. Eles buscaram agir autonomamente e com estardalhaço, onde e quando pudessem. Os comunistas chineses igno-raram a advertência de Stalin para fazer um acordo com o Kuomintang e, ao contrário disso, marcharam sobre Xangai e proclamaram a República Popular da China. O Viet Minh não se sentiu obrigado por acordos fei-tos em Genebra entre os Estados Unidos, a França e a União Soviética; ele continuou a tentar libertar totalmente o seu país. Os argelinos recusaram a idéia de que o Partido Comunista francês deveria ditar sua estratégia e seu futuro, e lançaram uma guerra de libertação nacional. E os cubanos de Sierra Maestra, conduzidos por Castro, ignoraram totalmente a presença do Partido Comunista cubano no governo de Batista. Eles continuaram a descer das colinas, tomaram, primeiramente, posse de Havana e, em segui-da, do Partido Comunista cubano.

Em suma, a capacidade da União Soviética de impedir as forças po-pulares no Terceiro Mundo de tentar frustrar os planos de Yalta se mos-trou insuficiente, e os líderes das superpotências se apressaram em ficar a reboque desses movimentos, embora relutantemente e tardiamente. O resultado foi que esses movimentos nunca obtiveram muita aprovação de nenhuma superpotência. As duas superpotências abandonaram as suas po-líticas “não neutras” e começaram a buscar os líderes nacionalistas desses países que pudessem se alinhar com elas. No caso dos Estados Unidos, isso significava que eles começavam a irritar os “velhos poderes coloniais”, que consideravam essa nova política norte-americana como sendo imprudente e intervencionista. Essa mudança na política tácita da superpotência mar-cou o triunfo de Bandung – o encontro em 1955 de 29 países da Ásia e da África que proclamaram o ingresso do mundo não ocidental no processo de tomada de decisão do sistema-mundo e forçaram tanto os Estados Uni-dos quanto a União Soviética a começar a cortejá-los.

A combinação da emergência econômica da Europa Ocidental e do Japão, o esgotamento econômico dos Estados Unidos para lutar na Guerra do Vietnã (e sua derrota final) e a disseminação da ideologia “libertária” não somente no Terceiro Mundo, mas dentro dos Estados Unidos e da pró-pria Europa Ocidental, fizeram soar o toque de finados da estrutura geopo-lítica do pós-1945. Simbolicamente, o seu fim estava situado na revolução mundial de 1968.

2. De mais ou menos 1970 a 2000O novo período foi modelado por duas novas realidades: as transfor-

mações político-culturais trazidas pela revolução mundial de 1968 e as trans-formações econômicas realizadas pelo fim da expansão da economia-mundo (a chamada fase A de Kondratieff) e o começo do que ficou comprovado como sendo a longa estagnação de 30 anos na economia-mundo (a chamada fase B de Kondratieff). Cada uma delas precisa ser decifrada, se quisermos entender como a arena geopolítica foi fundamentalmente reestruturada.

A revolução mundial de 1968 (que, realmente, durou mais ou menos de 1966 a 1970) foi uma violenta rebelião dos estudantes universitários e, em muitos casos, também dos trabalhadores contra todos os tipos de auto-ridade. Grandes revoltas mundiais eclodiram de repente, fulguraram e de-pois malograram, como uma Fênix. Enquanto prosseguiam, elas pareciam um furacão de categoria cinco para todo e qualquer um que fosse apanha-do em qualquer lugar próximo dos muitos locais do distúrbio. Podemos chamar isso de uma revolução mundial porque ocorreu virtualmente em todos os lugares do mundo e porque especificamente atravessou a divisão tripartite do sistema-mundo da época – o Ocidente, o Bloco Comunista e o Terceiro Mundo. Uma verdadeira história abrangente dos eventos está ainda por ser escrita, e muitos observadores estão somente conscientes dos acontecimentos mais espetaculares, aqueles cobertos pela mídia, mas não têm conhecimento da enorme quantidade de pequenas revoltas, especial-mente aquelas ocorridas em regimes muito autoritários.

Os problemas em cada lugar foram sempre definidos localmente, como agora gostamos de dizer. Houve, naturalmente, problemas locais

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em cada evento, e também uma retórica local, mas houve, realmente, dois problemas globais que foram proclamados em quase todos os eventos. O primeiro deles foi a rejeição dos acordos de Yalta. Isso, habitualmente, veio na forma da denúncia do imperialismo norte-americano (essa era a época da Guerra do Vietnã) e, simultaneamente, da denúncia do “conluio” entre a União Soviética e, o imperialismo, dos Estados Unidos. De fato, a descrição do mundo como estando dividido entre as duas superpotências e os outros – uma invenção conceitual maoísta chinesa – é fruto específico de 1968.

O segundo problema global que foi levantado em quase todo lugar foi a denúncia da “Velha Esquerda” pelos revolucionários de 1968, isto é, os três tipos clássicos de movimentos anti-sistêmicos – os partidos comunis-tas (no poder do chamado bloco socialista), os partidos socialdemocratas (em alternância de poder na maioria dos países ocidentais) e os movimen-tos de libertação nacional e populistas (no poder da maioria dos países do Terceiro Mundo). A acusação básica contra a Velha Esquerda era que ela tinha oferecido a seus seguidores um programa de dois passos – primeiro chegar ao poder estatal, depois transformar o mundo –, e que, tendo chega-do ao poder, esses movimentos da Velha Esquerda não cumpriram as suas promessas. Pois, era verdade que a Velha Esquerda tinha, de fato, chegado ao poder estatal em uma grande parte do mundo no período de 1945 a 1968, mas era também bastante claro que esses movimentos não tinham absolutamente transformado o mundo. O mundo permaneceu hierárquico, não democrático e desigual (internacional e nacionalmente). E, na visão dos revolucionários de 1968, os partidos da Velha Esquerda no poder ti-nham se tornado o maior obstáculo para alcançar a verdadeira mudança que tinham prometido quando estavam na sua fase de mobilização.

Essas duas visões – o conluio da União Soviética com o imperialismo dos Estados Unidos e o fracasso político da Velha Esquerda – traziam como conseqüência o fato de que o esforço político dos movimentos da Velha Es-querda fora fatalmente liquidado. Mas havia algo mais. Dissipou-se o fácil otimismo de longo prazo que tinha encorajado os sentimentos populares por mais de um século. Os levantes de 1968 obrigaram as forças popula-res a repensar suas estratégias; além disso, havia várias “novas esquerdas”

que buscavam responder ao sentido dessa desilusão que estava agora tão disseminada – uma desilusão particularmente referente à idéia de que o principal objetivo dos movimentos populares deveria ser ganhar o poder estatal, Estado por Estado.

A desilusão política foi rapidamente fortalecida pela desilusão eco-nômica. O período que vai de 1945 a 1970 foi movido pelo conceito de “desenvolvimento” – a idéia de que, de algum modo, adotando uma política estatal correta, qualquer país poderia atingir o alto padrão de vida dos paí-ses mais ricos. Os Estados Unidos, a União Soviética e os países do Terceiro Mundo tinham, sem dúvida, diferentes vocabulários sobre o desenvolvi-mento, mas as idéias básicas que todos eles alimentavam eram visivelmente semelhantes. A proposta subjacente era de que a combinação de urbaniza-ção, agricultura mais eficiente, industrialização, educação e protecionismo de curto prazo (substituição de importações) constituíam o caminho para a terra prometida do desenvolvimento.

Nos anos 1960, as Nações Unidas, sem a objeção de ninguém, anuncia-ram que a década de 1970 seria a década do desenvolvimento. Essa foi uma das previsões menos cautelosas já feitas. Os anos 1970 se tornaram a década da morte do desenvolvimento como idéia e como política. O que aconteceu é que a expansão da economia-mundo tinha alcançado os limites de muitos produtores nas indústrias de ponta (resultado da reconstrução da Europa Ocidental e da Ásia Oriental) e, por conseguinte, um agudo declínio dos níveis de lucros nos setores mais lucrativos da produção mundial. Esse é um problema recorrente na operação da economia-mundo capitalista, e le-vou a resultados padrões: remanejamento de muitas dessas indústrias para países semiperiféricos, onde os níveis salariais eram mais baixos (com esses países considerando esse remanejamento como sendo “desenvolvimento”); crescimento do desemprego no mundo (mais notadamente nos países mais ricos), levando ao declínio dos salários reais e dos níveis de tributação nes-ses países; concorrência na “tríade” dos Estados Unidos, Europa Ocidental e Japão com a Ásia Oriental para exportar reciprocamente o desemprego; transferência do capital de investimento das empresas produtivas para a especulação financeira; e a aguda crise da dívida pública.

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Os anos 1970 viram as duas escaladas do preço do petróleo, que fi-zeram sangrar os países do Terceiro Mundo. Tanto o Terceiro Mundo quanto os países do Bloco Socialista vieram a ter problemas de balanço de pagamentos negativo, como resultado do mercado enfraquecido para suas exportações nos países ricos combinado com os custos crescentes das importações em razão dos aumentos nos preços do petróleo. Os lucros ob-tidos pelos países produtores de petróleo foram colocados maciçamente nos bancos dos Estados Unidos e da Alemanha, de onde esse dinheiro foi “emprestado” para os agora desesperados países do Terceiro Mundo e do Bloco Socialista. Isso aliviou a situação deles durante alguns anos, mas as dívidas precisavam ser pagas. Não demorou muito, até que nos anos 1980 se viu a chamada crise da dívida, quando esses países descobriram o custo de suportar dívidas excessivas para os seus fracos tesouros. Esse “fracasso” da ideologia desenvolvimentista montou o cenário para o ataque neolibe-ral, desferido pelos regimes de Thatcher e Reagan, pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Fórum Econômico Mundial de Davos.

Uma nova definição do caminho para a terra prometida – o chamado Consenso de Washington – inverteu a maioria dos dogmas do desenvol-vimentismo. A industrialização por substituição de importações era agora definida como um processo de favorecimentos corrupto; a construção esta-tal, como alimentando uma burocracia inchada; a ajuda financeira dos paí-ses ricos, como dinheiro derramado na sarjeta; e as estruturas paraestatais, como barreiras mortais para uma atividade empresarial lucrativa. Os Esta-dos foram impelidos a adiar gastos com a educação e com a saúde. E foi re-alçado que as empresas públicas, consideradas, por definição, ineficientes, deveriam ser privatizadas o quanto antes. O “mercado”, mais do que o bem-estar da população, agora se tornava a medida de toda atividade adequada do Estado. O Fundo Monetário Internacional fortaleceu essa visão, tornan-do os seus empréstimos dependentes do “ajuste estrutural”, o que significa essencialmente seguir as prescrições do Consenso de Washington.

A geopolítica do sistema-mundo mudou radicalmente. Os países do Terceiro Mundo perderam a autoconfiança que tinham alcançado na épo-ca anterior e os melhoramentos do seu padrão de vida desapareceram na

medida em que as conseqüências econômicas da estagnação econômica mundial os atingiu negativamente. Muitos dos seus regimes políticos co-meçaram a cair, com guerras civis e outros tipos de tumultos internos, ao lado dos seus dilemas econômicos. Um por um, eles cederam às demandas do Consenso de Washington. Nem mesmo o Bloco Comunista ficou isento dessa deterioração. As suas um dia impressionantes taxas de crescimento declinaram vertiginosamente, a sua autoritária coesão interna se desinte-grou e a capacidade de a União Soviética agora controlar os ruidosos “sa-télites” pouco a pouco desapareceu. Finalmente, como sabemos, a própria União Soviética entrou no caminho da “reforma” política e econômica (Perestroika mais glasnost) com Gorbatchev. O remédio foi de muitas ma-neiras um brilhante sucesso; mas, infelizmente, o paciente morreu.

Então, pareceu a muitos que o sistema-mundo tinha entrado nesse período em uma era dourada para os Estados Unidos. Não, de maneira alguma, ocorreu exatamente o contrário. Em primeiro lugar, os Estados Unidos tiveram de admitir que tinham perdido a maior guerra para um país pequeno. Nixon se retirou do Vietnã ignominiosamente, e foi diagnos-ticado que os norte-americanos tinham sido acometidos por uma síndrome vietnamita – isto é, uma grave rejeição da população norte-americana em comprometer suas tropas com uma ruinosa guerra em regiões distantes do mundo. Ao Vietnã se juntou o escândalo de Watergate, o que obrigou Nixon a renunciar ao seu mandato de presidente.

A derrota militar e a crise política interna norte-americanas foram, de fato, apenas parte do cenário de um problema geopolítico mais grave dos Estados Unidos – a perda da sua automática superioridade econômica para os seus maiores aliados, a Europa Ocidental e o Japão. Pois, já que os três tinham se tornado mais ou menos iguais economicamente, os Estados Unidos não podiam mais contar com o comportamento da Europa Oci-dental e do Japão como satélites. A política externa norte-americana tinha de mudar, e mudou. Começando com Nixon e continuando nos 30 anos seguintes (de Nixon a Clinton, passando por Reagan), todos os presidentes dos Estados Unidos se concentraram em um objetivo não revelado: dimi-nuir a velocidade do declínio da hegemonia norte-americana.

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O programa que eles desenvolveram tinha três faces. O primeiro ele-mento destinava-se a manter o poder político dos Estados Unidos. Era a oferta de uma “parceria” para a Europa Ocidental e o Japão. Os Estados Unidos, de fato, disseram para os seus maiores aliados que dariam voz a eles na reconstrução de uma política geopolítica mundial conjunta, em tro-ca do que a Europa Ocidental e o Japão se absteriam de buscar políticas unilaterais no cenário mundial. A parceria foi implementada com a criação de uma série de instituições (a Comissão Trilateral, as reuniões do G-7, o Fórum Econômico Mundial em Davos, entre outras coisas). O maior ar-gumento que os Estados Unidos usaram era a necessidade de manter uma frente unida contra a União Soviética (que tinha começado a abrandar a implementação dos acordos de Yalta, por exemplo, envolvendo-se na sustentação do regime comunista no Afeganistão).

A parceria foi apenas em parte bem-sucedida em obrigar os maiores aliados. A Alemanha decidiu perseguir a chamada Ostpolitik (política oriental), contra os desejos do governo norte-americano. A Europa Oci-dental (incluindo o governo da Sra. Thatcher) concordou em construir o gasoduto da União Soviética ao Ocidente, contra os desejos do governo norte-americano. E, nos anos 1990, a Coréia do Sul decidiu lançar uma “po-lítica de amizade” para com a Coréia do Norte, também contra os desejos do governo norte-americano. Mas, ainda que parcialmente bem-sucedida, ela foi, pelo menos parcialmente, bem-sucedida. Os aliados dos Estados Unidos não se desviaram muito.

O segundo elemento destinava-se a assegurar a vantagem militar dos Estados Unidos. Agora que o Vietnã tinha indicado os limites das forças terrestres norte-americanas, era mais importante do que nunca manter a sua vantagem nuclear. Os Estados Unidos tinham já perdido o monopólio absoluto nas armas nucleares, por volta de 1964; a Grã-Bretanha, a União Soviética, a França e a China, todas tinham adquirido essas armas. Mas os Estados Unidos decidiram que era crucial que a expansão terminasse aí. O segundo elemento, por conseguinte, era fazer cessar a proliferação nuclear.

O Tratado sobre Não-proliferação de Armas Nucleares entrou com força em 5 de março de 1970. O tratado oferecia uma negociação. As cinco

potências nucleares trabalhariam para estabelecer negociações no sentido do desarmamento nuclear e para permitir, inclusive ajudar, outros países a desenvolver usos pacíficos da energia nuclear em troca de uma renúncia do resto do mundo em produzir armamento nuclear. Três países se recusaram a assinar o tratado – Índia, Paquistão e Israel –, e todos eles, desde então, adquiriram armamento nuclear. Mas todos os demais países finalmente as-sinaram. E muitos países de quem se pensava terem começado programas no sentido de desenvolver armamento nuclear, de fato, encerraram esses programas. A lista não é uma lista formal, mas provavelmente inclui pelo menos a Suécia, a Alemanha, a Coréia do Sul, o Japão, a África do Sul, o Brasil e a Argentina. E, desde o colapso da União Soviética, três repúblicas agora independentes – Ucrânia, Bielo-Rússia e Kasaquistão – renunciaram às armas que tinham sido instaladas no seu território. Há, naturalmente, um pequeno grupo de países cujas práticas reais têm há muito estado em disputa: o Iraque (cuja capacitação nuclear de Osirak foi bombardeada por Israel em 1981), a Líbia (que desmantelou suas capacidades em 2004), a Coréia do Norte e o Irã em particular.

A razão por que esse tratado é tão crucial para os Estados Unidos se deve a que parece claro que qualquer país, mesmo com algumas armas nucleares, representa um tal potencial para uma ação militar contra os Es-tados Unidos, que isso limita claramente as opções norte-americanas e a realidade da sua força militar. Podemos dizer que este segundo objetivo também foi parcialmente bem-sucedido, mas apenas parcialmente.

O terceiro elemento dessa revisada política externa era econômico. Quando o Consenso de Washington substituiu o desenvolvimentismo como doutrina econômica dominante no mundo, o que se fez foi tornar o envol-vimento econômico e, particularmente, financeiro dos Estados Unidos nos países do Terceiro Mundo muito mais extenso e lucrativo, e, por conseguinte compensou para alguns o declínio na lucratividade das antigas indústrias de ponta norte-americanas. De muitas maneiras, esse aspecto da política exter-na revisada foi o mais bem-sucedido dos três, até os últimos anos de 1990.

Tal como as políticas dos Estados Unidos no período de 1945 a 1970, a parcialmente bem-sucedida política norte-americana de diminuir o ritmo

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do declínio no seu papel hegemônico criou dificuldades para os Estados Unidos exatamente no momento, a década de 1990, em que esse país estava se felicitando com o seu “novo” papel de “única superpotência”. A primeira dificuldade foi que o colapso da União Soviética era negativo, não positivo, para a sua posição geopolítica. E, em meados da década de 1990, as muito extensas vantagens dos Estados Unidos na economia-mundo do Consenso de Washington impulsionaram consideráveis resistências populares. Deve-mos analisar cada uma dessas dificuldades.

A retórica norte-americana foi sempre que o sistema soviético teria terminado. Ronald Reagan tinha-o chamado de o “império do mal”, e gri-tou para Mikhail Gorbatchev: “derrube este muro (de Berlim)”. Quando Gorbatchev derrubou esse muro, de fato por suas próprias razões, e quan-do ele forçou um considerável desarmamento recíproco com os Estados Unidos, estes ficaram perplexos, em grande parte sem acreditar nisso e ab-solutamente inseguros sobre como manipular esse novo desenvolvimento. O fato é que, em um período relativamente curto, os Estados da Europa Oriental e Central derrubaram os seus regimes comunistas e encerraram as suas ligações econômicas e militares com a União Soviética. Isso foi seguido pela dissolução do Partido Comunista da União Soviética, pelo desmantelamento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas nas suas 16 repúblicas constituintes e pelo paralelo desmantelamento da República Federal da Iugoslávia. O que aconteceu então?

As principais conseqüências geopolíticas foram duas. Os Estados Uni-dos perderam o último argumento importante que tinham diante da Europa Ocidental para que ela permanecesse politicamente ligada a eles – a neces-sidade de manter uma frente comum contra a União Soviética. E os Estados Unidos perderam a última coerção indireta que tinham sobre as políticas dos países do Terceiro Mundo – o papel da União Soviética como o país que impunha (nos países que eram hostis aos Estados Unidos) as regras dos acordos de Yalta. Isto foi dramaticamente visto nas ações de Saddam Hussein nos anos 1990-1991.

Não deveríamos interpretar erradamente o que aconteceu quando Saddam Hussein decidiu capturar o Kuwait. Ele tinha uma série de motivos.

Tinha já completado uma inconclusiva e exaustiva guerra contra o Irã, uma luta com o ativo incentivo dos Estados Unidos. Tinha contraído grandes dívidas com o Kuwait e a Arábia Saudita, conseqüentemente, dívidas que tinha dificuldade de pagar. Acreditava que o Kuwait estava drenando pe-tróleo dos campos do Iraque usando poços diagonais. E o Iraque tinha ar-gumentado durante 70 anos que o Kuwait fazia parte do seu território, e que tinha sido apenas criado como um Estado separado pelos britânicos, obedecendo às suas próprias razões. Assim, ele achava que podia resolver todos esses problemas com um único golpe fatal, invadindo o Kuwait, que não era militarmente páreo para o exército iraquiano.

Ele naturalmente se preocupava com a reação mundial ao que obvia-mente era, pela lei internacional, uma agressão. Mas, por causa do iminente colapso da União Soviética, podia se permitir desconsiderar as visões so-viéticas. Sentiu que podia manipular militarmente a Arábia Saudita, caso precisasse fazer isso. O seu único obstáculo eram os Estados Unidos. Pro-vavelmente, raciocinou assim: ou os Estados Unidos não reagiriam (como ele se certificou com o embaixador dos Estados Unidos no Iraque dois dias antes da invasão), ou reagiriam. Ele provavelmente tinha 50% de chances. Se os Estados Unidos reagissem, o pior que possivelmente fariam seria ex-pulsar o Iraque do Kuwait. Assim, em tudo e por tudo, esse parecia um jogo que valeria a pena jogar. E evidentemente fez a aposta.

Os Estados Unidos, depois de uma hesitação momentânea, decidiram reagir. Mobilizaram uma campanha política e militar. Conseguiram quatro países (Alemanha, Japão, Arábia Saudita e Kuwait) para arcar com 90% dos custos da operação norte-americana. Os Estados Unidos e seus aliados expulsaram o Iraque do Kuwait e pararam na fronteira, porque se temia quanto às conseqüências negativas que poderiam vir da invasão norte-americana do Iraque. O resultado final foi o status quo ante. Este foi certa-mente modificado pelas sanções das Nações Unidas e por várias coerções à soberania do Iraque. Contudo, Saddam Hussein permaneceu no poder.

No front da economia-mundo, os anos 1990 deviam ser o momento da institucionalização de longo prazo da ordem global neoliberal, cujo principal instrumento devia ser a Organização Mundial do Comércio,

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encarregada de assegurar que os países do Sul abririam as suas fronteiras aos fluxos comerciais e financeiros do Norte e garantiriam a sua proprie-dade intelectual. O slogan básico foi aquele lançado pela Sra. Thatcher uma década antes: “Não há alternativa” (Tina: “There is no alternative”). Uma realização geopolítica inicial dos Estados Unidos foi a assinatura do Tra-tado de Livre-Comércio das Américas (Nafta: North American Free Trade Agreement), que devia ser implementado a partir de 1º de janeiro de 1994. Os países do antigo bloco socialista, incluindo a própria Rússia, engaja-ram-se em uma orgia de privatizações e fronteiras abertas. Assim o fez também um grande número de países do Sul.

O resultado imediato em um grande número de países não foi uma melhor situação econômica, mas uma economia grandemente agravada, com o desaparecimento das redes de segurança do bem-estar social, de-semprego crescente e moedas declinantes – tudo isso ocorrendo lado a lado com o surgimento repentino de novos estratos ricos. O quadro era de de-sigualdades internas grandemente aumentadas nos países menos ricos do mundo. Quando a única área do Sul que tinha estado melhor economica-mente – a Ásia Oriental e o Sudeste da Ásia – foi acometida por uma grave crise em 1997, seguida por crises semelhantes na Rússia e no Brasil, a opção neoliberal perdeu a sua máscara de solução para os problemas econômicos do mundo.

Houvera já reações políticas de vários tipos. Uma foi o retorno ao poder dos antigos partidos comunistas em vários países, agora remode-lados como partidos socialdemocratas que estavam pelo menos prontos para manter alguns fornecimentos de bem-estar. Outra foi a erupção dos zapatistas em uma pobre área remota do Sul, os Chiapas no México. Os zapatistas irromperam a sua revolta simbolicamente em 1o de janeiro de 1994, a data em que o Tratado de Livre-Comércio das Américas veio a se efetivar. Eles falaram em nome da população indígena, que clamava pelo controle autônomo de suas próprias vidas e rejeitava as opções neoliberais para si e para todo o mundo.

Quando a Organização Mundial do Comércio se reuniu em Seattle em 1999 para redigir as regras definitivas que criariam a ordem econô-

mica mundial neoliberal, ela precisou enfrentar demonstrações popula-res (principalmente os movimentos sociais norte-americanos) que de fato descarrilaram esses procedimentos. Isso foi seguido por outras tantas demonstrações em vários outros encontros internacionais nos cinco anos seguintes, e depois pela criação do Fórum Social Mundial, que se reuniu pela primeira vez em Porto Alegre (Brasil) em janeiro de 2001. O Fórum Social Mundial destinava-se a ser a contrapartida popular antineoliberal ao Fórum Econômico Mundial de Davos, o oficial encontro de base das forças mundiais que levavam adiante a agenda neoliberal.

O programa geopolítico dos Estados Unidos de 1970-2000 – a dimi-nuição do ritmo do declínio da hegemonia norte-americana – parecia estar sendo paralisado. Era hora de buscar outro olhar.

3. De 2001 a 2025Quando George Bush foi celebrado como presidente dos Estados Uni-

dos, em 2001, trouxe para as mais altas posições do seu governo um grupo de pessoas que chamamos de “neoconservadores”. Esse grupo realmente se constituiu em uma presença pública nos anos 1990, em uma organização chamada Programa para um Novo Século Americano (Program for a New American Century). Eles fizeram várias declarações públicas a respeito das suas visões geopolíticas no período de 1997 a 2000, de modo que o seu programa não era secreto. Embora George W. Bush não fosse um mem-bro desse grupo, este incluía o seu vice-presidente, o secretário e o vice-secretário de Defesa, o seu irmão e outras pessoas que se tornaram juízes e conselheiros do governo Bush.

Os neoconservadores eram extremamente críticos da política externa de Clinton, mas não somente de Clinton. De fato, eles estavam criticando todas as iniciativas da política externa norte-americana no período de 1970 a 2000, que estou chamando de a política externa de Nixon a Clinton, e que tinha como seu principal objetivo reduzir o declínio do poder hegemônico dos Estados Unidos. Esse grupo dizia que o copo do poder norte-ameri-cano não era meio cheio, mas meio vazio. Eles acreditavam que o declínio era muito real. Contudo, não o viram como o resultado de estruturas mu-

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tantes do sistema-mundo (por exemplo, o fim da superioridade econômica dos Estados Unidos diante da Europa e do Japão), mas, antes, da ineficácia política e da falta de decisão consistente dos sucessivos presidentes dos Estados Unidos. Eles não isentaram Ronald Reagan dessa crítica, embora não dissessem isso em voz alta.

Os neoconservadores exigiram uma revisão radical da política externa norte-americana. Eles desejavam substituir o “multilateralismo frouxo”, que era a base da “parceria” que os Estados Unidos ofereciam aos seus princi-pais aliados entre 1970 e 2000, por uma “decisão unilateral”, que ofereciam a seus aliados com base no “pegar ou largar” (take-it-or-leave-it). Queriam insistir sobre a adesão imediata à não-proliferação nuclear daqueles países que pareciam resistir à idéia, embora quisessem ao mesmo tempo desatre-lar os Estados Unidos das restrições que tinham aceitado sobre a expansão e a atualização do seu próprio arsenal nuclear. Desejavam recusar qualquer participação dos Estados Unidos em novos tratados que de alguma ma-neira limitassem as decisões nacionais norte-americanas (o Protocolo de Kioto, a Lei do Tratado do Mar etc.). E, principalmente, desejavam desti-tuir Saddam Hussein pela força. Sua impressão era de que Saddam Hussein tinha humilhado os Estados Unidos permanecendo no poder no Iraque. E censuraram implicitamente o primeiro presidente Bush (George H. W. Bush) por não ter marchado sobre Bagdá em 1991.

É importante observar que muitos, se não a maioria desses indiví-duos, tinham conservado altas posições nos governos de Ronald Reagan e George H. W. Bush, mas jamais tinham sido capazes de conseguir que esses governos comprassem tal programa. Eles tinham sido impedidos por um grande número de pessoas que aderiram à estratégia de Nixon a Clinton e viram as propostas dos neoconservadores como sendo extremamente ar-riscadas. Assim, foram frustrados não somente por Saddam Hussein, mas pelo que devia ser pensado como sendo o establishment da política externa norte-americana.

E nos primeiros oito meses da segunda presidência de Bush, os neo-conservadores continuavam frustrados. Então veio o ataque de 11 de se-tembro de Osama Bin Laden às Torres Gêmeas e ao Pentágono. E quase

imediatamente os neoconservadores se viram em condições de fazer George W. Bush comprar toda a sua abordagem da geopolítica. O que provavelmen-te o convenceu e a seus conselheiros imediatos foi o fato de que assumir o manto de um “presidente da guerra” parecia ser o caminho mais seguro para a reeleição, assim como para garantir o programa doméstico, que era muito caro a George W. Bush.

A lógica da posição dos neoconservadores era muito simples. Derru-bar Saddam Hussein pela força, preferencialmente por uma grande força unilateral, não somente restauraria a honra dos Estados Unidos, mas tam-bém, efetivamente, intimidaria três grupos cujas políticas pareciam cons-tituir a maior ameaça à hegemonia norte-americana: a Europa Ocidental, com suas pretensões de autonomia geopolítica, os proliferadores nucleares potenciais (especialmente a Coréia do Norte e o Irã) e os governantes dos Estados árabes, que estavam se movendo com força para ajudar a desati-var o conflito palestino-israelense, mas concordando com uma resolução “duradoura” que permanecia grandemente nos termos de Israel. Os neo-conservadores raciocinaram que, se pudessem alcançar esses três objetivos rápida e definitivamente, todas as graves oposições à hegemonia norte-americana se desintegrariam e o mundo entraria realmente em um “novo século americano”.

Eles cometeram muitos erros de avaliação. Admitiram que a conquista militar do Iraque seria relativamente simples e custaria pouco, tanto em homens quanto em dinheiro. Está claro agora que estavam errados nisso. Embora as tropas norte-americanas tivessem entrado rapidamente no Ira-que, elas foram incapazes de estabelecer a ordem no país. As forças do Baath escapuliram para formar a base de uma resistência de guerrilha, cuja am-plitude e eficácia cresceram permanentemente. Os Estados Unidos estavam claramente despreparados para manejar a complexidade da política interna do Iraque e chafurdaram no meio de um pântano não somente militar, mas também político, do qual ficou muito difícil se livrarem. De fato, enquanto o tempo passava, os Estados Unidos viram que tinham cada vez menos espaço de manobra e vieram a se parecer com Gulliver submetido pelos pequenos liliputianos.

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Além disso, a política de intimidação se inverteu totalmente. Longe de ceder à pressão dos Estados Unidos, a Europa Ocidental (particularmen-te a França e a Alemanha) começou a exibir um grau de independência política desconhecida desde 1945. Em 2003, os Estados Unidos privaram-se de recolher a resolução no Conselho de Segurança das Nações Unidas para endossar a invasão norte-americana, quando se tornou claro que a resolução receberia somente quatro dos 15 votos, uma margem de perda de sustentação que os Estados Unidos nunca tinham experimentado an-teriormente nas Nações Unidas. Longe de fazer voltar a Europa Ocidental do status de “parceiros” para o de “satélites”, a nova política unilateralista tornou virtualmente impossível que esse continente aceitasse novamente o status de meros “parceiros”, ao invés do de atores autônomos na arena po-lítica mundial que deviam ou não deviam se aliar com os Estados Unidos em questões particulares.

A intimidação também não funcionou melhor em relação aos proli-feradores nucleares. A Coréia do Norte e o Irã tiraram como conclusão da invasão norte-americana contra o Iraque que os Estados Unidos tinham praticado esse ato não porque o Iraque tivesse armas nucleares, mas exata-mente porque não tinha armas nucleares. Parecia óbvio aos governos desses dois países que a defesa mais segura dos regimes aí existentes era acelerar o seu projeto de adquirir armas nucleares. Por razões táticas, o Irã negou isso, mas a Coréia do Norte, não. Os Estados Unidos afirmaram que os dois países estavam de fato dando prosseguimento a esses programas, mas os norte-americanos se acharam enfraquecidos tanto militarmente quanto politicamente pela invasão do Iraque. Do ponto de vista militar, ficou claro que eles não estariam em condições de uma invasão por terra bem-sucedida. Dever-se-iam, é claro, previamente, usar armas nucleares aéreas, mas, politicamente, as conseqüências negativas para os Estados Unidos eram desanimadoras. Do ponto de vista político, eles se acharam enfraquecidos pela Europa Ocidental, mas também pela Ásia Oriental, em qualquer esforço para obrigar os dois países a abandonarem os seus programas. Os Estados Unidos estavam, por conseguinte, em piores condições para fazer parar a proliferação nuclear depois da invasão do Iraque, exatamente o contrário do que os neoconservadores esperavam que acontecesse.

Quanto aos chamados regimes árabes e muçulmanos, a conclusão que tiraram da invasão do Iraque era de que as políticas ambíguas que eles ti-nham conduzido por décadas eram de fato a única politicamente plausível para a sua própria sobrevivência. Eles ficaram em geral espantados com as conseqüências políticas da invasão do Iraque – para o Iraque, mas tam-bém para os seus próprios países. Certamente, não foram persuadidos para aprovar essa linha, mais do que tinham sido em relação aos projetos norte-americanos para o Oriente Médio.

Finalmente, no front do neoliberalismo, o Consenso de Washington não parecia mais obrigatório para os países do Sul, exatamente por causa da enfraquecida posição geopolítica dos Estados Unidos como resultado da sua política no Iraque. As negociações na Organização Mundial do Comér-cio, que o regime de Bush procurou ressuscitar, assim como o programa de Bush para criar a Área de Livre-Comércio das Américas (Alca) resultaram em impasses, nos quais o governo brasileiro assumiu a liderança junto com outros governos do Sul.

Nos encontros da Organização Mundial do Comércio de 2003, em Cancun, o Brasil juntou forças com a África do Sul, a Índia e a China para formar o bloco de países do G-20, para negociar com os Estados Unidos e com a Europa Ocidental. A posição básica do G-20 era de que, se eles deviam abrir mais amplamente as suas fronteiras aos fluxos comerciais e financeiros do Norte e proteger os direitos intelectuais das empresas do Norte, o Norte tinha, em troca, de abrir mais as suas fronteiras aos fluxos de comércio do Sul, em áreas como produtos têxteis e agrícolas. Os Estados Unidos e a Europa Ocidental acharam que era politicamente impossível (em vista de suas políticas domésticas) atender a essas demandas em qual-quer grau significativo. E o G-20 respondeu que, nesse caso, eles também não poderiam atender às demandas do Norte. O resultado disso foi um beco sem saída, que efetivamente liquidou a capacidade da Organização Mundial do Comércio de pressionar em qualquer nível para implementar os seus objetivos neoliberais.

A mesma coisa aconteceu com a Área de Livre-Comércio das Améri-cas (Alca). O Brasil e a Argentina, já ligados no Mercosul – a comunidade

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comercial que liga os dois países ao Uruguai e ao Paraguai –, pressionaram ou outros países sul-americanos para estreitarem seus laços com o Merco-sul, em vez de considerarem se alinhar com a Alca. Nisso, eles obtiveram forte apoio da Venezuela. Como conseqüência, o projeto da Alca nunca progrediu muito, e os Estados Unidos se refugiaram na tentativa de estabe-lecer pactos comerciais bilaterais com pequenos países, uma tática que, de fato, reduz mais o livre-comércio mundial do que o faz crescer.

O resultado líquido de toda a política externa de Bush foi acelerar o declínio da hegemonia norte-americana, mais do que invertê-lo, como se pretendia. O mundo adentrou uma divisão geopolítica do poder multila-teral e relativamente desestruturada, com uma quantidade de centros de poder de força variável manobrando por vantagens – os Estados Unidos, o Reino Unido, a Europa Ocidental, a Rússia, a China, o Japão, a Índia, o Irã, o Brasil, pelo menos. Não há qualquer superioridade esmagadora – econô-mica, política, militar ou ideológico-cultural – de nenhum desses centros. E não há nenhum forte conjunto de alianças no momento, embora seja provável que ele venha a existir.

Quando olhamos para frente, para 2025, que tipo de tendências pode-mos imaginar? A primeira é um total colapso da não-proliferação nuclear, com o surgimento de uma ou duas dúzias de pequenas potências nucleares, além daquelas já existentes. O grave declínio do poder norte-americano mais os interesses concorrentes dos vários centros de poder virtualmente garantem que aqueles países que encerraram esses programas no período de 1970 a 2000 vão retomá-lo, sem dúvida junto com outros países. Isso levantará ao mesmo tempo em muitas zonas do mundo um obstáculo ao lançamento de ações militares e tornará muito mais perigosa a conseqüên-cia dessas ações.

Na arena das finanças mundiais, o domínio do dólar norte-americano provavelmente desaparecerá e cederá espaço a um sistema múltiplo de mo-edas. Obviamente, o euro e o yen se tornarão os modos de acumulação financeira mais usados e as bases mais freqüentes das trocas de mercado-rias. A questão é se outras moedas também se juntarão à lista e o grau no qual a expansão da quantidade de moedas no uso econômico mundial irá

desequilibrar o sistema, ou pelo menos torná-lo extremamente volátil. Em qualquer caso, o declínio do papel central do dólar criará maiores dificul-dades econômicas para os Estados Unidos para lidarem com a sua dívida nacional acumulada já existente, e, provavelmente, isso poderá trazer como conseqüência uma redução do padrão de vida dentro desse país.

Três regiões recebem uma vigilância especial, porque todas estão em uma considerável desordem política, cuja conseqüência provavelmente mudará de maneira significativa o quadro geopolítico: a Europa, a Ásia Oriental e a América do Sul. A história européia é a mais conhecida e está no centro da evolução atual. Nos cinco anos que vão de 2001 a 2005, os dois maiores desenvolvimentos ocorreram na Europa. O primeiro foi a conse-qüência direta da revisão unilateral da política externa norte-americana de Bush. Tanto a França quanto a Alemanha se opuseram publicamente à in-vasão norte-americana do Iraque e obtiveram apoio de vários outros países europeus. Ao mesmo tempo, eles estreitaram suas ligações políticas com a Rússia e começaram a criar um eixo Paris-Berlim-Moscou. Em resposta a isso, os Estados Unidos, auxiliados pela Grã-Bretanha, criaram um contra-movimento, trazendo a maioria dos Estados da Europa Centro-Oriental para o seu campo. Foi o que Donald Rumsfeld chamou de “velha Europa” contra a “nova Europa”. As razões que motivaram os Estados da Europa Centro-Oriental derivavam principalmente dos seus temores permanentes em relação à Rússia, daí sua ênfase em estabelecer fortes vínculos com os Estados Unidos.

O segundo desenvolvimento foi a derrota da revisão da Constituição européia como resultado dos votos “não” nos referendos na França e na Holanda. Aqui, os alinhamentos eram bastante diferentes daqueles relacio-nados com a invasão do Iraque. Os motivos que levaram aos votos “não” fo-ram basicamente dois e eram muito diferentes. Alguns votos “não” vieram da forte oposição ao neoliberalismo e dos temores de que a nova Constitui-ção européia defendesse algumas doutrinas neoliberais. Mas outros votos “não” vieram dos temores que surgiram em relação à futura expansão da Europa para o Oriente (e, especialmente, a possível entrada da Turquia na União Européia). Em ambos os casos, os que votaram “não” estavam votan-

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do por uma Europa mais autônoma e uma Europa que eles achavam que deveria tomar mais distância dos Estados Unidos.

No entanto, a combinação dos dois desenvolvimentos – a cisão quanto à invasão do Iraque e a derrota da nova Constituição – parou momenta-neamente o ímpeto para uma Europa mais forte, mais unificada e mais autônoma. A questão é se, na próxima década, esse projeto poderá ser re-lançado em uma base institucional e popular mais firme. Está ainda aberta a questão sobre se esse relançamento do projeto europeu, caso ele decole, chegará a um tal acordo político com a Rússia, que nos permitirá falar de um pólo geopolítico Europa-Rússia.

Se nos voltarmos para a região da Ásia Oriental, o cenário é muito diferente do cenário europeu. Primeiro, estamos lidando com apenas três países, todos grandes: China, Coréia e Japão. Dois desses países estão atualmente divididos e a sua reunificação está definitivamente no mapa das propostas políticas. A reunificação (Coréia do Norte e do Sul, República Popular da China e Taiwan) também não será fácil de alcançar, mas ambas são absolutamente possíveis até 2025.

Há, então, um segundo problema muito diferente daquele que a Euro-pa enfrenta. Na Europa, a clivagem histórica entre a França e a Alemanha está grandemente sanada, enquanto a clivagem entre o Japão e a China e a Coréia não está absolutamente sanada. As paixões são ainda grandes em todos as partes. Por outro lado, as vantagens econômicas para todos três através de ligações mais estreitas são muito grandes e podem servir para colocar de lado os ódios históricos que ainda persistem. Há um problema complicado a resolver: quem, a China ou o Japão, desempenhará o papel de “liderança” em uma possível futura união da Ásia Oriental. Essa questão envolve problemas militares, monetários e político-culturais. Ela não é in-solúvel, mas exigirá uma grande dose de liderança política inteligente e de visão em todos os três países.

Porém, se os obstáculos forem superados, a união da Ásia Oriental deverá surgir como o membro mais forte da ainda existente tríade do Norte – América do Norte, Europa e Ásia Oriental. Além disso, se a união da Ásia Oriental, de alguma maneira, for realmente realizada, provavelmente será

capaz de atrair os Estados Unidos para o seu campo como uma espécie de “estadista mais velho”/parceiro júnior combinados. Esse não é exatamente o papel que os Estados Unidos vêem para si próprios com George W. Bush, mas, em 2025, poderá parecer um negócio atrativo para a liderança e tam-bém para a população desse país.

Finalmente, a América do Sul tem potencial para surgir como um ator autônomo importante – afastada dos Estados Unidos e associada economi-camente de alguma maneira. Se ela for capaz de atrair o México para o seu campo, estará então em condições de dar gigantescos passos econômicos e políticos para a frente – em detrimento, certamente, dos Estados Unidos.

Onde as outras forças potenciais – em particular, mas não somente, Índia, Irã, Indonésia e África do Sul – abririam espaço para esse realinha-mento geopolítico é a questão menos clara na arena geopolítica. E, à esprei-ta, atrás de todos esses realinhamentos, estará a questão do acesso à energia e à água, que não são problemas menores em um mundo acossado por embaraços ecológicos e vasta potencialidade de sobreprodução pelas forças da acumulação capitalista. Esse poderia ser o problema mais explosivo de todos, e um problema absolutamente não resolvido por toda essa manobra geopolítica.

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Apresentando o Tio Sam – sem roupas

Andre Gunder Frank*

O Tio Sam quebrou a regra do jogo e continua não pagando mais de 40% da sua dívida externa de trilhões de dólares, e ninguém disse uma pa-lavra sequer, exceto uma linha no Economist semanal. Em uma linguagem clara, isso significa que o Tio Sam passa mundialmente um conto do vigá-rio com os seus próprios dólares, baseado na certeza de que recebeu esse conto de outros em todo o mundo, sendo também um parasita na medida em que não honra e não paga o dinheiro que recebeu. Quanto do nosso risco-dólar perdemos depende de quanto nós, os credores, originariamente pagamos por ele. Através das suas políticas econômicas deliberadamente políticas, o Tio Sam deixou que seu dólar caísse significativamente contra o euro, o yen, o yuan e outras moedas. O dólar ainda está caindo, e é mesmo capaz de cair vertiginosa e completamente.1

Na verdade, com a queda do dólar, caiu também o valor real que os estrangeiros pagam pelo serviço de sua dívida com o Tio Sam. Isso funcio-na somente se eles próprios puderem ganhar um lucro com um aumento de valor das outras moedas diante do dólar. Caso contrário, os estrangeiros

* Nascido em 1929 e falecido em 2005. Um dos fundadores da teoria da dependência e das análises do sistema mundial. Deixou obra com 44 livros, 400 artigos em revistas científicas e 169 capítulos de livro publicados em 30 línguas. Parte de seus trabalhos pode ser acessada em www.rrojasdatabank.org/agfrank. O artigo que dedicou a Marini está entre seus últimos escritos. 1 Houve também uma torrente de desvalorizações de concorrência nos anos 1930, e ela foi cha-mada de “Sua Indigente Política de Vizinhança” (“Beggar Thy Neighbor Policy”), uma política de mudar os custos para que os vizinhos os suportassem.

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ganham e pagam com o mesmo dólar desvalorizado, e sofrem a perda da desvalorização desde o momento em que receberam o dólar e aquele em que devem pagá-lo ao Tio Sam. Mas a China e os outros países da Ásia Oriental de fato ganham com isso e fixaram suas moedas pelo dólar, na me-dida em que tinham já desperdiçado uma parte essencial do seu até agora maior risco-dólar do mundo. E eles, como todos os outros, perderão tam-bém em suas reservas desde que convertidas em dólar.

A dívida do Tio Sam com o resto do mundo já monta a mais de um terço da sua produção doméstica nacional anual, e ela continua crescen-do. Somente isso já torna a sua dívida econômica e politicamente im-possível de pagar, ainda que quisesse, o que ele obviamente não quer. A dívida federal do Tio Sam é agora de 7,5 trilhões de dólares, dos quais um trilhão foi construído nas três últimas décadas, os outros dois trilhões nos últimos oito anos e o último trilhão nos últimos dois anos. Isso custa mais de 330 bilhões de dólares em juros, comparados com os 15 bilhões gastos com a Nasa.

O Congresso fez subir o teto da dívida para 8,2 trilhões de dólares. Para que possamos ter uma idéia, apenas um trilhão de dólares em peque-nas contas acumuladas de 1.000 dólares equivaleria a um edifício da altura de 40 andares, de modo que 7,5 trilhões de dólares seriam 300 andares ou cerca de três vezes a altura do Empire State Building. Aproximadamente metade disso é devido a estrangeiros. Toda a dívida do Tio Sam, incluindo a dívida privada interna de cerca de 10 trilhões de dólares, mais a dívida cor-porativa e financeira, com suas opções, derivados e similares, mais a dívida do Estado e do governo, chega a um inimaginável 37 trilhões de dólares; para que vocês tenham uma idéia, 1.480 vezes a altura do Empire State Building, e aproximadamente quatro vezes o produto nacional interno.

Somente uma parte dessa dívida e sua negação próxima podem ser administradas internamente, mas com perigosas limitações para o Tio Sam, como foi observado antes. Essa é apenas uma das razões por que que-ro refutar o Tio Sam, o audacioso parasita, que pode lembrá-los do filme Meet Joe Black. Pois, tal como vamos identificar melhor o Tio Sam depois, veremos que ele é também um Shylock, e um Shylock corrupto.

A procuração da Guerra Fria do Tio Sam para a guerra do Noroeste contra o Sul

Antes de continuarmos, vamos primeiro traduzir essa confusão de números em uma linguagem clara. Isso já tinha sido feito em 1948 por George Kennan, aliás conhecido como Mister X, o arquiteto da Política de Contenção do Tio Sam:

Temos quase a metade da riqueza do mundo (...) mas somente 5% da sua população (...) Nessa situação (...) a nossa tarefa real nos próximos anos é traçar um padrão de relações que nos permita manter essa posição de desi-gualdade (...) Para fazer isso, temos de renunciar a todo sentimentalismo e devaneio (...) temos de nos concentrar em todo lugar nos nossos objetivos nacionais imediatos (...) [e] lidar com conceitos de poder direto. Quanto menos estivermos estorvados por slogans idealistas, melhor será.2

Naturalmente, essa afirmação estava voltada apenas para o consumo interno privado do Tio Sam. Para o resto do mundo, incluindo os Tios Sams, os “slogans idealistas” terão melhor sorte, até onde naturalmente não os impeçam. Pois eles exemplificam o maior Esquema Ponzi do Con-to do Vigário já passado em todo o mundo pelo Tio Sam. Como “manter essa desigualdade”? O poder nu e cru ajuda, mas não é o bastante. Tanto mais porque, desde que Mister X escreveu, a já então terrivelmente injus-ta distribuição mundial da renda se tornou três vezes mais desigual. Por agora, considere-se simplesmente este índice: 265 milhões de Tios Sams consomem mais petróleo, 22% do total do mundo, do que os 3 bilhões asiáticos, que todos juntos alcançam uns 20% – e eles querem mais, es-pecialmente os chineses. Para levá-lo a conseguir isso, ele também conta com Pentágono, que é provavelmente o maior e o menos observado único poluidor de tudo.

Essa observação também indica uma continuidade através deste outro muro, aquele que caiu em Berlim em 1989. Pois isso mostra que a Guerra Fria de Contenção de Mister X não era somente ou mesmo principalmente

2 Department of State Policy Planning Study, n. 23, 1948.

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contra os russos, mas também uma Contenção dos outros 95% do mundo e, especialmente, da enorme maioria pobre que sofre mais com a desigual-dade que ele observou. Realmente, Mister X afirma que a Guerra Fria entre Ocidente e Oriente, com a qual ele já tinha colaborado quando indicado como embaixador do Tio Sam em Moscou, era grandemente uma procura-ção – e especialmente para Tio Sam – na guerra real do Norte contra o Sul, para se apropriar dessa metade, ou das duas metades, da riqueza do mun-do. Isso nos deixaria menos surpresos com o fracasso do equivocadamente previsto “Dividendo da Paz” para materializar-se, depois, a derrubada desse pequeno muro em 1989. A outra guerra, ou melhor, a guerra real, continua; ela apenas assume outras formas, ou melhor, rótulos, como “direitos hu-manos”, “democracia”, “livre mercado”, “livre-comércio”, “liberdade” em ge-ral, “civilização”, todos eles aparecendo como ecos do “encargo do homem branco” do século XIX. Acrescentaram-se alguns novos inimigos e elemen-tos: primeiro o “narcoterrorismo”, por Bush Pai, contra Noriega; e agora o indefinido “terrorismo”, por Bush Filho, contra todos e cada um “que não esteja conosco”. Não podemos esquecer as “armas de destruição em massa”, aquelas que o Tio Sam tem e usa mais, e as armas de fraude em massa, que o Tio Sam usa como ninguém. Isso é naturalmente a condição sine qua non de qualquer Conto do Vigário, principalmente um dos maiores do mundo, como observaremos ad nauseam.

O Tio Sam vive divinamente da abundância da terra do mundo e do trabalho chinês

O Tio Sam é o mais privilegiado do mundo, pois tem o direito exclusi-vo de imprimir à vontade a reserva mundial de moeda com um custo ape-nas do papel e da tinta com que ela é impressa. Fazendo isso, ele pode tam-bém exportar para o estrangeiro a inflação que sua impressão irresponsável de dólares origina. Pois há já pelo menos três vezes mais dólares flutuando no mundo do que na casa do Tio Sam. Além disso, dele é também a única dívida “externa”, a maior designada na sua própria moeda. A maioria da dívida dos estrangeiros é também designada no mesmo dólar, mas eles têm de comprar dólar do Tio Sam com a sua própria moeda e produtos reais.

Assim, o Tio Sam simplesmente paga os chineses e os outros essen-cialmente com esses dólares que não têm valor real além do papel e da tinta. Especialmente a China pobre entrega por absolutamente nada ao Tio Sam um valor de centenas de bilhões de dólares de produtos reais pro-duzidos internamente e consumidos pelo rico Tio Sam. A China investe e comercializa esses mesmos bilhões de dólares de papel do Tio Sam em outro dólar-papel chamado bônus do Certificado do Tesouro, que é ain-da mais desvalorizado, a não ser que pague um percentual de juros. Pois, como já observamos, ele jamais poderia ser convertidos em dinheiro e res-gatado totalmente ou em parte, e já perdeu muito do seu valor para o Tio Sam. Em um ensaio anterior, afirmei que o poder do Tio Sam repousa em apenas dois pilares, o dólar e o Pentágono. Um sustenta o outro, mas a vulnerabilidade de um e de outro é também o calcanhar de Aquiles que ameaça a viabilidade do outro. Desde então, o Afeganistão e o Iraque mos-traram muito da sua certeza ao Pentágono para se terem extraviado. Isso ajudou a reduzir a confiança e também o valor na moeda dólar, o que, em troca, reduziu a capacidade do Tio Sam de usar esse dólar para financiar as aventuras externas do seu Pentágono. Ver meu ensaio de 2004, “Coup d’État e tigre de papel em Washington, o dragão fumegante do Pacífico”, que também invoca o crescimento produtivo da China: <http://rrojasdata-bank.info/agfrank/new_world_order.html#coup>.

Além disso, devemos imaginar que os números do Tio Sam para mais ou para menos são também literalmente relativos. Até agora, as relações – particularmente com a China – ainda favorecem o Tio Sam, mas elas tam-bém ajudam a manter uma imagem enganosa. Considere-se o seguinte:

(...) um brinquedo de dois dólares que sai de uma fábrica do Tio Sam na China é uma remessa de três dólares que chega a San Diego. No momento em que um consumidor do Tio Sam paga por isso 10 dólares no Wal-Mart, a economia do Tio Sam registra 10 dólares nas vendas finais, menos três dóla-res do custo de importação, para um adendo de sete dólares para o produto bruto interno do Tio Sam.3

3 <http://archives.econ.utah/archives/a-list/2004w07/msg00083.htm>.

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Além disso, nunca o inteligente Tio Sam arranjou coisas assim para ganhar 9% de suas holdings econômicas e financeiras no exterior, ao passo que os estrangeiros ganham para si apenas um retorno de 3%, e somente 1% sobre os seus Certificados do Tesouro, investidos na Terra Sagrada do Tio Sam. Observe-se que essa diferença de 6% dobra já o que o Tio Sam paga, e seu total tomado de 9% é o triplo dos 3% que ele devolve. Portanto, embora a reciprocidade de cada uma das holdings estrangeiras com o Tio Sam e no exterior seja agora quase igual, o Tio Sam é ainda o grande ga-nhador de juros, tal como qualquer Shylock, mas ninguém jamais fez um negócio tão grande.

Mas o Tio Sam também ganha muito bem, muito obrigado, de outras holdings no exterior, por exemplo, com os pagamentos de serviço pela maioria dos devedores estrangeiros pobres. As somas envolvidas não são insignificantes. Pois, dos seus investimentos diretos somente em proprie-dade estrangeira, o Tio Sam lucra agora 50%, e, incluindo suas receitas vin-das de outras holdings no exterior, agora são 100% redondos dos lucros do Tio Sam derivados de todas as suas atividades domésticas combinadas! Essas receitas externas acrescentam mais de 4% ao produto interno bruto. Isso ajuda bem a compensar o fracasso dos lucros domésticos, e ainda para recuperar inclusive o seu nível de 1972. Essa é a razão por que o Tio Sam fracassou na realização suficiente de bons investimentos reais no âmbito interno para eclodir produtivamente e lucrar com isso. Esse lucro extra vindo do exterior também compensa muito o ainda crescente deficit comercial do Tio Sam. Os mais de 600 bilhões de dólares por ano vindos do excesso do consumo interno sobre o que ele próprio produz e que logo se ampliarão. Isso resultou em trilhões de dólares (três trilhões, se diz) da sua dívida externa. Mas o Tio Sam joga as cartas próximo do seu Tesouro e é compreensivelmente avesso a fazer qualquer revelação oficial de quão grande (mais do que o Empire State Building em bilhões?) é realmente a sua dívida externa. No entanto, podemos ficar seguros de que sua dívida externa bruta é até agora a maior do mundo e permanece assim também como dívida externa líquida, ainda que deduzamos as dívidas dos estran-geiros para com ele.

A produtividade famosa da “nova economia” de Clinton dos anos 1990 se limitou a computadores e tecnologias de informação, e mesmo isso provou ser uma fraude quando a bolha estourou no mercado de ações. Além disso, não somente o aparente crescimento dos “lucros”, mas também da “produtividade” estava sendo explodido pela loja, pelo escritório e pelas vendas apressadas e/ou pelo tempo de trabalho mais longo na base. O Wal-Mart obriga a não-união (não se permite nenhuma) dos trabalhadores sob ameaça de demissão e marcação da hora do fim do serviço (clock-out) e da volta ao trabalho sem pagamento. No topo, a produtividade e os lucros eram explodidos pela fama da contabilidade criativa (accounting creative) pela Enron, Worldcom, Arthur Anderson e outros semelhantes engajados em fraudes.

O Tio Sam não pode se salvar: ele está preso no consumo e em outras drogas

Por que tudo isso?, devemos perguntar. A única resposta é que o Tio Sam, que está crescentemente preso no consumo, para não falar nas drogas mais pesadas, poupa não mais do que 0,2% da sua própria renda. O guru do FED (Federal Reserve), Alan Greenspan,4 o Doutor da mágica financeira e da mídia, observou que isso é assim porque os 20% mais ricos de Tios Sams, que são os únicos que poupam, reduziram suas poupanças a 2%. Po-rém, mesmo essas desprezíveis poupanças (os outros países e os países mais pobres poupam inclusive 20, 30 ou mesmo 40% da sua renda) são mais do que contrabalançadas pelo deficit de 6% do governo do Tio Sam, que faz tão largamente como representante deles. É isso que traz a média entre os dois juntos para aquele 0,2%. Assim, o Tio Sam tem um deficit orçamentário co-municado de mais de 400 bilhões de dólares, que é realmente mais de 600 bilhões de dólares, se contarmos, como deveríamos, os mais de 200 bilhões de dólares que o Tio Sam “toma emprestado” do superavit temporário no seu próprio fundo de Seguridade Social Federal, que está também falindo.

4 Presidente do Federal Reserve dos Estados Unidos de 11 de agosto de 1987 a 31 de dezembro de 2006. (N.E.)

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Mas não importa, o presidente Bush do Tio Sam prometeu privatizar muito nessa área e deixar o povo comprar a sua própria segurança de velhice em um mercado sempre inseguro.

O rico Tio Sam, principalmente os seus maiores ganhadores e consumi-dores felizardos, assim como, naturalmente, o Grande Tio em Washington, usufruem as melhores coisas do mundo. Além de imprimir a moeda mun-dial, o Tio Sam também faz isso com os seus “deficits gêmeos”, primeiro o seu deficit orçamentário de 600 bilhões de dólares e depois aquele outro mencionado, o deficit comercial de 600 bilhões de dólares, agora em uma média anual no mês passado de 666 bilhões de dólares.

Com eles, o Tio Sam absorve as poupanças daqueles que estão – fre-qüentemente muito – abaixo, em circunstâncias desfavoráveis. Particular-mente os seus bancos centrais colocam muitas das suas reservas em moeda mundial, em dólar, nas mãos do Tio Sam em Washington, e algumas tam-bém em dólar internamente. Seus investidores privados vendem dólar ou compram ativos em dólar em Wall Street, tudo com a convicção de que estão colocando todos os seus recursos no mais seguro do céu do mundo do Tio Sam (que, naturalmente, faz parte do mencionado Conto do Vi-gário). Somente dos bancos centrais, estamos olhando para somas anuais acima de 100 bilhões de dólares da Europa, acima de 100 bilhões de dólares do pobre Terceiro Mundo.

Como o Tio Sam cria e recolhe a dívida do Terceiro MundoAlém disso, o Tio Sam também obriga os Estados do Terceiro Mundo

a agirem como agências recolhedoras ou mesmo como provocadores (Repo Goons), em que provocadores são aqueles mandados para resgatar a pro-priedade do Poderoso Chefão (Godfather) por quaisquer meios. Somente nesse caso, não é ainda isso; pois ele está tomando posse novamente, já que a dívida original há muito já foi paga. Os Estados aumentam os impostos e os tributos da população, mas fazem menos gastos sociais com educação e saúde, e assim desviam fundos domésticos para pagar a dívida externa. Eles também, por outro lado, tomam empréstimos do capital privado doméstico com altas taxas de juros, juros que o Estado paga aos ricos emprestadores,

mas provenientes dos impostos extraídos dos pobres. Desse modo, a ren-da é “transferida” internamente dos pobres para os ricos, e também desses pobres através da dívida externa para exatamente os mais ricos no exterior. Essas poupanças literalmente forçadas dos pobres são então mandadas para o Tio Sam na forma de “serviço” da dívida em dólar que é “devido” a ele.

Privatização é o nome do jogo no Terceiro e no resto do mundo, exce-to para a dívida! Somente a dívida foi socializada depois que ficou sujeita principalmente pelo negócio privado, mas somente o Estado tem suficiente poder para extorquir uma grande massa de pagamentos do couro dos seus pobres e das pessoas da classe média e transferi-los como “pagamentos in-visíveis de serviço” para o Tio Sam. Somente a Argentina, e por enquanto, a Rússia declararam uma efetiva moratória sobre o “serviço” da dívida, mas isso somente depois de acatarem as políticas econômicas governamentais impostas pelos conselheiros do Tio Sam e pelo seu braço forte, o Fundo Monetário Internacional, políticas que destruíram inteiramente essas so-ciedades, como nunca antes em tempos de “paz”. A Secretaria do Tesouro do Tio Sam e o seu criado FMI alegremente continuam a se pavonear no mundo, insistindo para que o Terceiro Mundo – e o ex-segundo, agora também Terceiro Mundo – naturalmente continue a pagar suas dívidas externas, especialmente a ele. Não importa que, com taxas de juros multi-plicadas várias vezes pelo próprio Tio Sam depois do coup de Paul Volker do Tesouro (Federal Reserve) em outubro de 1979, a maioria já tenha pago os seus empréstimos originais mais de três a cinco vezes. Para pagar com essas taxas de juros que Volker aumentou para 20%, eles tinham de pedir mais empréstimos com taxas ainda maiores, de modo que a projeção da sua dívida externa dobrou e triplicou. E assim também ocorreu com a sua dívida interna, na qual a parte referente aos pagamentos externos aumen-tou, como particularmente no Brasil. Tudo isso, enquanto o Tio Sam fica alegremente não pagando a sua própria dívida externa, como já tinha feito várias vezes antes, no século XIX.

É bom lembrar pelo menos duas advertências daquela época: Lord Cromer, que administrou o Egito atendendo aos interesses imperiais britâ-nicos então dominantes, disse que o seu mais importante instrumento para

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alcançar isso eram as dívidas do Egito para com a Inglaterra. Estas multi-plicaram quando o Egito foi obrigado a vender as ações do seu Canal de Suez da Inglaterra para pagar suas dívidas anteriores. O primeiro-ministro britânico Disraeli explicou e justificou a sua compra igualmente alegando que isso fortaleceria os interesses imperiais britânicos. Atualmente, isso é chamado de “trocas de dívida por eqüidade” (debt-for-equity swaps), que é uma das políticas favoritas recentes do Tio Sam de usar a dívida para adquirir reais recursos lucrativos e/ou estrategicamente importantes, tal como foi o Canal o caminho mais rápido e seguro para a jóia do Império Britânico na Índia.

A outra recomendação prática veio do primeiro grande estrategista militar, Clausewitz: deixem que as terras que vocês conquistaram paguem por sua própria conquista e administração. Isso foi exatamente o que a Inglaterra fez na Índia através dos famosos “encargos domésticos” (home charges) remetidos para Londres em pagamento pela administração ingle-sa na Índia. Os próprios ingleses reconheceram que isso era um “tributo”, responsável por muito da “drenagem” da Índia para a Inglaterra. Era muito mais eficiente deixar que os próprios Estados dos países estrangeiros admi-nistrassem (a Inglaterra chamava isso de “domínio indireto”), mas através das regras estabelecidas e impostas pelo Tio Sam levadas a cabo pelo FMI, que então realiza, de algum modo, uma drenagem do serviço da dívida. Assim, nesse aspecto, a Inglaterra estabeleceu um precedente no século XIX com Estados “independentes”. Desde então, isso ficou conhecido como o “imperialismo do livre-comércio”.

Até onde as regras funcionam, tudo bem. Quando não funcionam, um pouco da diplomacia da canhoneira (gun-boat) pode ajudar, e o Tio Sam já aprendera a usar esse expediente no início do século XX. Quando nem mes-mo isso bastava, a primeira opção era invadir e, se necessário, ocupar – e de-pois confiar na regra Clausewitz de fazer com que as suas vítimas pagassem por sua própria ocupação. Observaremos vários exemplos disso adiante, e que se preste uma atenção especial ao que está acontecendo agora no Iraque.

Por último, mas não menos importante, os produtores de petróleo também colocam suas poupanças no Tio Sam. O Tio Sam consome e con-

trola o petróleo. Com o “choque” do petróleo, que recuperou o seu preço real depois de sua cotação em dólar cair em 1973, o sempre manhoso Henry Kissinger fez um negócio com o maior exportador de petróleo do mundo na Arábia Saudita, pelo qual ele continuaria a vender o petróleo em dólar e esses ganhos seriam depositados no Tio Sam, em parte compensados por aparato militar. Esse negócio de facto se estendeu para toda a Opep (Orga-nização dos Países Exportadores de Petróleo) e ainda permanece, menos para o Iraque, que, antes da guerra, optou subitamente por ligar o preço do seu petróleo ao euro, e o Irã ameaçou fazer o mesmo. A Coréia do Norte não tem petróleo, mas o comercializa totalmente em euro. Isso constitui o triplo “Eixo do Mal dos Estados Embusteiros”. Atualmente, a Venezuela é o maior fornecedor de petróleo para o Tio Sam, e também fornece algum com taxas preferenciais em trocas de comércio efetuado em outra moeda que não seja dólar para outros países pobres, como Cuba. Assim, o Tio Sam patrocinou e financiou os comandos militares do seu Plano Colômbia ao lado, promoveu um golpe ilegal, e quando também fracassou um referen-dum legal na sua tentativa de outra “mudança de regime”; a esses três países juntou-se a Venezuela para serem batizados como o novo “eixo do mal”.5

Tudo o que foi dito antes é parte e parcela do maior e jamais visto esquema Ponzi do Conto do Vigário mundial. Como todos os outros, a sua característica essencial é que ele só pode continuar a pagar dólares e se manter no topo enquanto continuar a receber de fato novos dólares, vo-luntariamente, se possível através de confiança, ou então pela força. (Natu-ralmente, as fórmulas de Clausewitz e de Cromer trazem como resultado que os mais pobres pagam o máximo, já que eles são os mais indefesos, de maneira que aqueles que se servem deles transferem grande parte do custo e do sofrimento para eles.)

Mas, o que ocorre se e quando a confiança se esgota e os dólares não chegam mais? As coisas já estão ficando mais tumultuadas na casa do Tio Sam. O dólar declinante reduz os necessários influxos de dólares. Assim, o

5 Em 2005, a Venezuela retirou as suas reservas do Estados Unidos para transferi-las a bancos europeus. (N.E.)

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FED precisa aumentar as taxas de juros para manter a atração do Tio Sam pelos dólares externos de que ele necessita para preencher o buraco comer-cial. Mas fazer isso ameaça explodir a bolha doméstica, que foi construída com baixas taxas de juros e hipotecas – e re-hipotecas. É nos seus valores domésticos que a maioria do povo do Tio Sam tem suas poupanças, caso as tenha. Essas poupanças e esse efeito de riqueza imaginária sustentaram o superconsumo e a dívida interna, que era aproximadamente tão alta quanto o produto interno líquido.

Para muito além de Osama Bin Laden, da Al Qaeda e de todos os ter-roristas colocados juntos, a maior ameaça real mundial ao Tio Sam é que o seu dólar não se mantenha em funcionamento. Por exemplo, os bancos centrais estrangeiros e os investidores privados (diz-se que esses “chineses ultramarinos” têm um fluxo de trilhões de dólares) podem, um dia desses, simplesmente decidir colocar o seu dinheiro em outro lugar que não no de-clinante dólar e abandonar o pobre Tio Sam a seu destino. A China poderia duplicar a sua renda per capita muito rapidamente, se fizesse reais investi-mentos internos em vez de investimentos financeiros com o Tio Sam.

Liquidar o dólar do Tio Sam por euro e pela moeda da comunidade da Ásia Oriental?

Os bancos centrais, os europeus e os outros, podem agora colocar as suas reservas – em alta! – em euros ou mesmo, imediatamente, revalorizar o yuan chinês. Daqui a não muito tempo, pode haver uma moeda da Ásia Oriental, por exemplo, uma cesta primeiro da Asean (Associação das Na-ções da Ásia e do Sudeste Asiático) + 3 (China, Japão, Coréia) – e depois + 4 (Índia). Embora o total das exportações da Índia nos últimos cinco anos subissem 73%, aquelas para a Asean cresceram o dobro dessa média e as para a China, seis vezes. A Índia se tornou um parceiro de primeira linha da Asean, o seu primeiro-ministro declarou que a Índia quer relações cada vez mais próximas com a Asean, e suas ambições se estendem mais para um EAC (Comunidade da Ásia Oriental) da Índia ao Japão (EPW). Não sem razão, em 1997, na crise da moeda da Ásia Oriental e, posteriormente, na crise econômica generalizada, o Tio Sam armou fortemente o Japão para

não dar início à proposta de um fundo monetário da Ásia Oriental, que teria prevenido pelo menos o pior da crise econômica. Mas, atualmente, o verdadeiro amigo do necessitado Tio Sam, a China, já está dando passos na direção desse arranjo, só que em uma escala financeira e agora também econômica muito maior.

No dia seguinte ao que escrevia isso, li no Economist (11-17 de dezem-bro 2004, p. 50) uma reportagem sobre o encontro de cúpula da semana anterior da Asean + 3 na Malásia. O seu primeiro-ministro anunciou que essa cúpula deveria estabelecer os fundamentos para uma Comunidade da Ásia Oriental (EAC) que “construiria uma área de livre-comércio, de cooperação financeira, e assinaria um pacto de segurança (...) que trans-formaria a Ásia Oriental em um bloco econômico coeso (...). De fato, alguns destes esquemas estão já em andamento (...) a China, como poder econômico e militar preeminente da região, sem dúvida dominaria (...) e seria a anfitriã da segunda Cúpula da Ásia Oriental”. A matéria continua a lembrar que, em 1990, o Tio Sam derrubou uma iniciativa prévia por medo de perder sua influência na região. Agora a reportagem se intitula “Yankees fiquem em casa”.

Ou, tal como tudo passa, os exportadores de petróleo simplesmente deixam de fixar o seu preço em um dólar continuamente desvalorizado e, em vez disso, fazem uma casa da moeda ligando-se ao euro em alta e/ou criando uma cesta de moedas da Ásia Oriental. Para que se ponham de acordo, para ainda estarem em condições de comprar petróleo, eles am-plamente diminuem a demanda mundial e o preço do dólar, obrigando qualquer um que queira comprar petróleo a comprar e aumentar o preço de demanda do euro ou do yen/yuan em vez de dólar. Isso levaria o dólar à falência e faria o Tio Sam desabar em uma queda vertiginosa, na medi-da em que os proprietários estrangeiros e mesmo domésticos de dólares também venderiam o máximo que pudessem e o mais rápido possível, e os bancos centrais dos outros países afastariam suas reservas do dólar no não mais seguro céu do Tio Sam. Isso derrubaria ainda mais o dólar, e, natu-ralmente, faria parar qualquer outro influxo de dólares para o Tio Sam por parte dos estrangeiros que estavam financiando a sua farra de consumo.

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Já que vender petróleo por dólar declinante em vez de euro em elevação é, evidentemente, um mau negócio, os maiores exportadores mundiais na Rússia e na Opep têm considerado de fato fazer exatamente isso. Até agora, muitos exportadores de petróleo e outros ainda colocam o seu montante acrescido de dólares com o Tio Sam, ainda que ele atualmente ofereça um céu bem menos atrativo e menos seguro, mas a Rússia está agora compran-do mais euros com alguns dos seus dólares.

Assim, os bancos centrais de muitos países começaram a colocar uma boa parte das suas reservas em euro e em moedas diferentes do dólar do Tio Sam. Agora, inclusive o melhor amigo de fato, o Banco Central da Chi-na, o maior amigo do Tio Sam precisado, começou a comprar alguns euros. A própria China também começou a usar alguns dos seus dólares – até onde eles ainda são aceitos – para comprar produtos reais de outros países asiáticos e toneladas de minério de ferro e aço do Brasil etc. Seu presidente recentemente levou uma enorme delegação comercial para China, e uma delegação chinesa foi à Argentina. Eles estão indo atrás do petróleo africa-no e também dos minerais sul-africanos.

Tio Sam e sua própria economia são o verdadeiro vazio de uma roscaTodos os esquemas Ponzi constroem uma pirâmide financeira. Muitos

daqueles que depositam neles também vivem em um mundo financeiro, mas outros precisam derivar suas receitas a partir de ganhos da produção no mundo real. No mundo das transações financeiras de hoje, que a cada dia são cem vezes maiores do que todas a receitas de produtos e serviços reais juntos, as receitas financeiras colocam as receitas reais na sombra atrás do seu brilho. Além disso, para simplificar muito uma questão bastante com-plexa em uma linguagem humana mais inteligível, as opções, os derivati-vos, as trocas e outros instrumentos financeiros recentes foram bem mais longe, convertendo já os juros compostos nas reais propriedades em que o seu dinheiro apostado e as dívidas estão baseados, o que contribuiu para o crescimento espetacular desse mundo financeiro. No entanto, a pirâmi-de financeira que vemos em todo o seu esplendor e brilho, especialmente no seu centro, na casa do Tio Sam, ainda assenta no topo de uma base

mundial real de produtor > comerciante > consumidor, ainda que a base financeira também forneça crédito para essas reais transações mundiais. E, se olharmos para o mundo como uma rosquinha frita (doughnut6), ana-logamente a tantas cidades no cinto enferrujado do Tio Sam, o centro está desamparado e oco, enquanto a produção e o consumo se moveram para os subúrbios próximos (na Detroit do automóvel, as janelas da principal loja de departamento de Hudson foram fechadas por anos, mesmo quan-do Detroit construiu um caro “Renaissance Center” para enobrecer nova-mente o seu centro urbano, um processo que “alcançou êxito” em algumas outras cidades). Uma General Motors Flint negligente nos foi apresentada por Michael Moore, que retratou isso (GM CEO) de “Roger and me” até “Fahrenheit 9-11”. Deveríamos olhar para todo o mundo em termos de ros-quinhas fritas, com todo o Tio Sam colocado em um buraco vazio no meio, que não produz quase nada que possa vender no exterior. As principais ex-ceções são os produtos agrícolas e o material bélico, que são pesadamente subsidiados pelo governo do Tio Sam, subsídios originados dos pagadores de impostos e da impressão de dólar, e, mesmo assim, ele incorreu em um deficit orçamentário de mais de 600 bilhões de dólares em 2003.

A grande diferença dessa rosquinha frita que é o Tio Sam é que tanto o orçamento quanto o deficit comercial de 600 bilhões de dólares são fi-nanciados pelos estrangeiros, como já vimos.7 O Tio Sam excluiria a maio-ria deles como pessoas, mas alegremente recebe os produtos reais que eles produzem. Na condição de consumidor mundial de último recurso, como já afirmado, o Tio Sam realiza esta importante função na divisão político-econômica internacional do trabalho: todos os demais produzem e preci-sam exportar, e o Tio Sam consome e precisa importar.

A falência do dólar desintegraria (desintegrará) essa rosquinha frita político-econômica que envolve e organiza o mundo e lançaria centenas de milhões de pessoas, para não mencionar uma quantidade indetermina-da de dólares e seus possuidores, em uma desordem com conseqüências

6 Rosquinha de massa frita, geralmente recheada com geléia ou creme. (N.E.)7 Dados para 2003. (N.E.)

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imprevistas e imprevisíveis. Muitas pessoas, no alto e no baixo pólo totê-mico mundial, têm um grande interesse em evitar isso, ainda que isso exija continuar a encher o vazio Tio Sam como um balão. Ou, para se referir a uma bem conhecida comparação, continuar a fingir que o Imperador Nu está vestido e mandar para ele algo para calçar. Isso também inclui a China, para quem uma revelação diante do Tio Sam seria uma sorte no infortúnio. Isso obrigaria a China a mudar o seu curso econômico-político e, em vez de entregar de graça os seus produtos ao Tio Sam, a transferir sua produção e seu consumo para dentro, para o seu pobre interior e para a vizinhança pró-xima da Ásia Oriental. Tudo isso podia e devia já estar sendo feito; quanto à transferência da produção e do consumo para os vizinhos próximos na Ásia, a China recentemente começou a fazê-lo, mas não para o seu interior.

Então, o que acontecerá aos ricos no topo do esquema Ponzi do Tio Sam, quando a confiança dos bancos centrais mais pobres e dos exporta-dores de petróleo no meio se esgotar, e quando os pobres mais destituídos no mundo, confiantes ou não, não puderem mais, de fato, fazer os seus pagamentos? O esquema Ponzi do Conto do Vigário do Tio Sam viria – ou virá – a se despedaçar, como todos os outros esquemas anteriores, só que agora com um grande estrépito mundial. Isso, em última instância, derru-baria a demanda atual de consumo do Tio Sam para o tamanho mundial real e feriria muitos exportadores e produtores em todo o mundo. De fato, isso pode envolver uma reorganização fundamental da venda por atacado da economia política mundial agora liderada pelo Tio Sam.

O dólar tigre de papel coloca uma louca armadilha geopolítica 22Naturalmente, a quebra do dólar poderia também, em um golpe cruel,

eliminar, isto é, fazer desaparecer toda a dívida do Tio Sam. Com isso, essa quebra também faria, simultaneamente, todos os estrangeiros e os ricos norte-americanos perderem o total de seus ativos em dólar. Eles estão tentando desesperadamente salvar o máximo possível para não caírem na falência, isto é, para não ficarem sem dinheiro. Ou seja, eles estão tentando proteger o resto da sua capacidade de investimento em dólar, garantindo que o seu dólar viva mantendo a bomba de ar funcionando. Todo o negó-

cio de manter o esquema Ponzi do Tio Sam coloca a maior e a mais louca Armadilha-22 (Catch-22).

Todos os outros argumentam por que isso deve ser resolvido. Mas a maneira da louca Armadilha-22 não precisa ser uma aterrissagem macia. Pode ser uma aterrissagem dura realmente. Essa dissolução do esquema Ponzi do Tio Sam será dispendiosa, e os maiores custos serão, como habi-tualmente ocorre, provavelmente descarregados sobre os mais pobres, que são os menos aptos a suportar esses custos, mas que são também os menos capazes de se protegerem contra a pressão de suportá-los. E a transição historicamente necessária, a partir do mundo da rosquinha frita que o Tio Sam põe em movimento, pode mergulhar todo o mundo na maior depres-são de que se tem notícia. Somente a Ásia Oriental está em uma posição relativamente boa para se defender de ser arrastada – ou empurrada – para o fundo, mas, mesmo assim, somente depois de pagar um alto preço por essa transição – para si própria!

Contudo, o mundo está enfrentando uma Armadilha-22 geopolítica e militar global ainda mais louca. Ela permanece grandemente desconhe-cida ou talvez incognoscível. Como o Tio Sam reagiria (ou reagirá) como um Tigre de Papel (dinheiro) que se encontra ferido por um colapso do Esquema Ponzi do Conto do Vigário a partir do qual ele e milhões de Tios Sams desconhecidos levaram uma boa vida? Ao compensar com menos pão e menos direitos civis, porém com mais atos “patrióticos” em casa, um Tio Sam mais chauvinista pode fornecer o circo da Terceira Guerra Mundial no exterior. Uma quebra do dólar puxará ardilosamente o tapete financeiro, e isso desencorajará suas vítimas estrangeiras a continuar pa-gando novas aventuras do Pentágono no exterior. Mas algumas guerras a mais poderiam ainda ser possíveis com as armas que ele ainda teria e com um outro deficit governamental keynesiano militar gasto em casa, também com as novas “pequenas” armas nucleares (nukes) que ele está fabricando para a ocasião. Esse poderia muito bem ser – horrivelmente – o custo para o mundo que são as políticas atuais para “defender a Liberdade e a Civilização”. A Superarmadilha-22 significa que quase ninguém, a não ser Osama Bin Laden, quer correr esse risco.

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Contudo, essa transição não seria (será?) historicamente nova. Lem-brem o quanto a transição custa para o Tio Sam? Uns 30 anos de guerra de 1914 a 1945, com a interposição da Segunda Grande Depressão em um século que custa 100 milhões de vidas perdidas na guerra, mais do que em toda a história prévia combinada do mundo, para não falar literalmente de (centenas?) milhões que sofreram e morreram de fome e doença. Ou a transição anterior para Major Bull britânico que custou as guerras napo-leônicas, a Grande Depressão de 1873-1895, o colonialismo e o semicolo-nialismo, para falar apenas de algumas coisas, e seus custos humanos. Este último custo coincidiu com as mais pronunciadas mudanças climáticas El Niño em dois séculos, mudanças que devastaram indianos, chineses e mui-tos outros pela fome. Mas essa fome foi em troca aumentada pelos poderes coloniais imperiais, que a usaram em vista dos seus próprios interesses, por exemplo, aumentando as exportações de trigo da Índia, especialmente du-rante os anos de fome. Os paralelismos com a atualidade, incluindo, de fato, novamente tirar vantagem de um século que, mais tarde, renovou um El Niño mais forte, são horríveis demais e geradores de uma culpa que dificil-mente alguém suportaria. Eles incluem o “ajuste estrutural” imposto pelo FMI do Tio Sam, que obriga os camponeses mexicanos a já ter comido o próprio cinto que o FMI quer que eles apertem ainda mais. Os três milhões de mortos, número que vem aumentando em Ruanda e Burundi, e depois alguns no Congo vizinho, vieram depois dos estrangulamentos impostos pelo FMI e do cancelamento, principalmente pelo Tio Sam, do Acordo do Café que tinha sustentado o seu preço para esses produtores. E agora, não somente desde o assassinato de Lumumba pela CIA e da ascensão de Ko-savubu em Katanga em 1961, mas, realmente, desde a reserva privada do Congo no século XIX pelo rei da Bélgica, temos lá o arrasto, a produção e a venda de ouro para o Fort Knox do Tio Sam, e agora também titânio, para que possamos nos comunicar através de telefones celulares móveis, dia-mantes certamente, e assim por diante. O Tio Sam também tirou vantagem de um outro forte evento do El Niño que devastou o Sudeste da Ásia, espe-cialmente a Indonésia, simultaneamente com a posterior crise financeira de 1997, que o Tio Sam deliberadamente desdobrou em uma depressão eco-

nômica. Ela foi tão grande que varreu o governo do presidente Suharto, que o Tio Sam tinha instalado lá há 30 anos antes com um golpe da CIA contra Sukarno, o pai popular da independência da Indonésia. Isso custou entre pelo menos meio e um milhão de vidas, que Suharto tirou diretamente, mais a pobreza gerada pela infame “Máfia de Berkely”, que ele instalou para levar ao chão a economia da Indonésia. Os paralelos com o passado incluem tam-bém a degradação ambiental e a transferência do dano ecológico dos ricos que os produziram para os pobres do Terceiro Mundo, que suportaram a sua maior carga. E, naturalmente, não podemos esquecer a Terceira Guerra Mundial (a terceira depois da segunda e travada no Terceiro Mundo), que Bush Pai começou contra o Iraque em 1991. (Ver o meu “A terceira guerra”. <http://rrojasdatabank.info/agfrank/nato_kosovo/msg00080.html>.)

Contudo, há também outros no mundo que não experimentaram (ainda?) tudo o que se pode obter com a Armadilha-22. Calculadamente, logo antes da eleição do Tio Sam do ano 2004, um deles disse em alta voz em um programa de televisão para todo o mundo. Parece ter sido menos publicamente notado por seu principal destinatário, o Tio Sam, que deveria ter sido a parte mais interessada: pois não foi outro senão o próprio Bin Laden a anunciar que ele “iria arruinar o Tio Sam”. Em vista da cegueira deliberada do Tio Sam diante da instabilidade da base do seu mundo no exterior, um colapso tão maciço no exterior não pode ser mais difícil de arrumar do que era simplesmente derrubar o seu símbolo doméstico das Torres Gêmeas.

O Pentágono é a maior economia planejada do mundo para transferir a renda dos pobres para os ricos interna e externamente e para chantagear amigos e adversários a fazerem o mesmo.

No entanto, de volta para a fazenda (back on the farm), como se diz no Texas, o que o próprio Tio Sam alegremente faz com as poupanças e o dinheiro ganhos com dificuldade no mundo? Os seus consumidores ainda os consomem demais, sem que os 99,9% deles saibam o que estão fazendo, já que dificilmente alguém diz isso para eles. E o governo do Tio Sam usa quase todo o seu aumento de centenas de bilhões de dólares no Pentágono. Esse dinheiro não é gasto para pagar os seus pobres soldados profissio-

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nais que chegam, na sua maioria, de pequenas cidades rurais da América e agarram a única ocupação que podem obter, e se gasta menos ainda com os infelizes reservistas.

O complexo industrial-militar, contra o qual o general Eisenhower se acautelara no seu discurso presidencial de despedida em 1958, está vivo e impetuoso, mais do que nunca sob a administração do “vice”-presidente Cheney e do seu secretário de Defesa Rumsfeld.8 Com seus trabalhos de-sastradamente bem-executados, ambos estão sendo mantidos para um se-gundo mandato. Entre 1994 e a metade de 2003, o Pentágono do Tio Sam fez mais de 3.000 contratos avaliados em mais de 300 bilhões de dólares com 12 companhias militares privadas de Tio Sam, de 35 estimadas pelo New York Tribune, sendo as outras, pequenas, e oferecendo serviços merce-nários. Contudo, mais de 2.700 desses contratos foram dados a apenas duas companhias: para a Kellog Brown & Root, uma subsidiária da Halliburton de Cheney, e para a Booz Allen Hamilton (Centro do Consórcio Interna-cional de Jornalistas Investigativos para a Integridade Pública, citado em Mafruza Khan e-mail, 16.8.2003). No Iraque, essas companhias militares privadas têm agora tantos mercenários quanto as tropas do Tio Sam e do Reino Unido juntas. Mas, naturalmente, isso são somente “pequenas” bata-tas, já que o grosso do dinheiro do Pentágono Tio Sam o dirige para a com-pra de caros sistemas de armas dos únicos quatro maiores contratadores de “defesa” do Tio Sam e preferidos do vice-presidente Cheney da Halliburton. O Tio Sam, então, usa essas armas unilateralmente para cingir as outras armas pela ameaça armada e pela chantagem e, se isso não for o bastante, invadir o mundo que forneceu primeiramente o dinheiro. Finalmente, o Tio Sam tem de fazer o que deve para manter o dinheiro entrando.

Dar suporte ao “encargo do homem branco” de defender a sua “civilização”: a lei do Ocidente é a lei do “Western Spaghetti” da vigilância do bando armado

O unilateralismo do Tio Sam não o é tanto, por assim dizer, como freqüente e equivocadamente se supôs, solitário. Ele se proclama estar lu-tando pela “Liberdade” (de quem?, poderíamos perguntar) e “salvando a civilização”, como o presidente Bush do Tio Sam e sua mais eloqüente voz no Reino Unido, o ex-premiê Tony Blair, proclamavam diariamente. A sua maneira mais simples de “salvar” a civilização foi, simplesmente, abolir de um dia para o outro o precioso conjunto de leis internacionais para manter a paz, que o Ocidente levou séculos para desenvolver, reconhecidamente a partir dos seus próprios interesses imperiais. No entanto, isso era a única lei internacional e o melhor que tínhamos, que ao menos é muito melhor do que nada. Agora, a única “Lei do Ocidente” que permanece é de fato a lei do “Western Spaghetti”: a lei de vigilância do bando armado que, com ou sem um juiz conivente, toma a “lei” nas suas próprias mãos para formar um par-tido do linchamento. Eles vão atrás de quem, onde e quando lhes aprouver. Lamentavelmente, agora, no mundo real, os autoproclamados bandos ar-mados operam “fora da área”, em uma escala muito maior do que qualquer filme espaguete ocidental de ficção jamais poderia ter imaginado.

Isso também significa estripar e paralisar a instituição das Nações Uni-das, que foi estabelecida para manter a paz, exceto quando o Tio Sam, de-pois de suas próprias guerras, recicla a ONU para recolher os pedaços que ele destruiu na Iugoslávia, no Afeganistão e agora no Iraque. Mas fazer isso significa também enganar, ameaçar, induzir, chantagear todos os outros – amigos e inimigos igualmente – para manter sua autoridade sobre qualquer problema, grande ou pequeno. Ele treinou todo um exército civil de fun-cionários para fazer isso. Desse modo, o Tio Sam “unilateralmente” atira o seu ainda aparente peso sobre todas as outras instituições internacionais que lidam com esforços, desde a agricultura e a aviação até a zoologia. O Tio Sam extorque reais favores unilaterais para si, através de suas relações bilaterais. Por isso, a Organização Mundial do Comércio morreu no nasce-douro. O Tio Sam agora prefere para si relações unilateralmente bilaterais,

8 Secretário de defesa de Gerald Ford (1975-1977) e de George W. Bush (2001-2006). Rumsfeld, um dos principais ideólogos da invasão ao Iraque, foi substituído por Robert Gates, ex-diretor da CIA, em função da derrota do Partido Republicano nas eleições legislativas, em que desem-penhou papel significativo o rechaço da população à ocupação e à sua manutenção.

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enquanto se isola progressivamente no plano internacional. Assim, ele pode exercer um poder de barganha militar, político e econômico ainda maior sobre qualquer uma das suas vítimas do que pode sobre todas ou ainda muitas delas nas instituições internacionais.

A marcha orgulhosa do Tio Sam das montanhas de Montezuma às praias de Trípoli – no Panamá, duas vezes no Iraque, no Afeganistão

Quando essa barganha não é o bastante, o Tio Sam simplesmente ataca e invade: a pequena Granada (população total de 300 mil habitantes); a Ni-carágua (com a ajuda do arquiinimigo Irã); o Panamá (sete mil civis mortos em uma noite para capturar apenas um homem, o antes amigo e aliado de Bush Pai, Noriega – há uma foto sorridente deles apertando as mãos); o Ira-que em 1991 (que foi inclusive uma especulação financeira, na medida em que o Tio Sam extorquiu mais dólares dos seus aliados para pagar a guerra do que ela efetivamente custava para ele! Mas o Iraque foi contaminado por urânio refinado do Tio Sam, o que aumentou o nascimento de pessoas de-feituosas por lá – e que acarretou a infame “síndrome da Guerra do Golfo” nas suas próprias tropas e na tropas britânicas, o que o Tio Sam negou e recusou admitir). Quanto menos dizer sobre a Somália, melhor. A Iugoslá-via foi atacada, em parte, para dar um exemplo sobre o que pode acontecer quando um Estado é fraco o bastante, alvo de abjeta desconfiança do Tio Sam e do seu FMI, quando pretende manter alguma propriedade estatal de importantes meios de produção e ainda fornecer proteção social do Es-tado do bem-estar para a sua população. Tal como ocorreu agora também na Bielo-Rússia, onde o Tio Sam tentou igualmente obter uma “mudança de regime”, mas a ação militar é mais difícil na fronteira da Rússia, salvo quando há um pacto, como contra o Afeganistão, ou se é comprado. Além disso, a Iugoslávia somente desistiu em 1999, depois de a Rússia retirar o seu apoio a ela, uma vez que o Tio Sam usou, com sucesso, a chantagem econômico-política e parcialmente a comprou em Berlim.

O Afeganistão se tornou a vítima visada com a ajuda do Irã e da Rús-sia. Isto é, depois que o Tio Sam criou e patrocinou o governo Talibã que erradicou o ópio. Mas o Afeganistão “libertado” produz ainda mais ópio

do que quando o Talibã o erradicou, representando um terço do produto interno bruto do Afeganistão, de acordo com o anúncio do novo presiden-te instalado pelo Tio Sam. No momento em que escrevo, o Tio Sam está lançando uma renovada ofensiva militar contra o Talibã; mas já não se faz mais qualquer menção a Bin Laden. E agora o inocente Iraque é novamente o alvo e a vítima do Tio Sam. Quem será o próximo? O Irã? A Síria? – não a Líbia, que está agora obedientemente fazendo negócios de petróleo com o Tio Sam; e também não a Coréia do Norte, que produz armas nucleares para se proteger exatamente disso.

Podemos ainda mencionar duas alternativas adicionais, desde que possíveis, anteriores à invasão. Uma é naturalmente patrocinar, organizar ou mesmo dar um coup d’État ou militar, do que a CIA tem uma orgulhosa recordação: Irã em 1953, Guatemala em 1954, Congo em 1960, Brasil em 1964, Guiana em 1964, Indonésia em 1964-1965, República Dominicana em 1965, Gana em 1966, Grécia em 1967, Camboja em 1970, Chile em 1973, Argentina em 1976, Bolívia sempre, Fiji em 1987, Nicarágua em 1990 pela “eleição” sob ameaça de continuar a Guerra dos Contras, Haiti sem-pre – contra o ex-fantoche do Tio Sam colocado lá em primeiro lugar, para citar alguns dos mais conhecidos (naturalmente, não na casa do Tio Sam).

A outra alternativa, a dos atentados contra lideranças que desafiam seu poder, é mais conhecida e tentada várias vezes seguidas contra Fidel Castro em Cuba, com charutos explosivos e outras imaginativas “sujas arti-manhas” da CIA, todas fracassadas. Assim foi o bombardeamento da tenda do coronel Ghadafi, que acabou matando a sua filha. Mas podemos men-cionar uma tentativa bem-sucedida da CIA.

Os japoneses queriam financiar e construir um canal-de-nível no Pa-namá. (O seu presidente Omar) Torrijos conversou com eles sobre isso, fato que muito aborreceu a Bechtel Corporation, cujo presidente era George Schultz, e o presidente do conselho, Casper Weinberger. Quando Carter perdeu a eleição para Reagan (e essa é uma interessante história de como isso ocorreu), Schultz chegou como secretário de Estado da Bechtel, e Weinberger veio da Bechtel para ser Secretário da Defesa. Ambos estavam extremamente furiosos com Torrijos – tentaram conseguir dele a renego-

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ciação do Tratado do Canal e que ele não falasse disso com os japoneses. Ele recusou firmemente. Torrijos era um homem surpreendente. Morreu em um estrepitoso desastre de avião, onde se encontrava um toca-fitas ligado a explosivos. Não tenho qualquer dúvida de que foi a CIA que o matou, e mais, muitos investigadores latino-americanos chegaram à mes-ma conclusão.9

Torrijos tinha anteriormente assinado um tratado com o presidente Carter para entregar o Canal do Panamá ao – Panamá! Um simples exame também revela que ser um amigo político muito bom ou um instrumento do Tio Sam pode ainda ser muito arriscado. Este pode proferir a sua sen-tença de morte política ou física ou o apunhalar pelas costas. Um sucessor de Torrijos está agora sentado em uma prisão do Tio Sam, depois de leal-mente servi-lo e sorrir em uma foto com George Bush (o pai). Mas a lista é longa e vai pelo mundo todo, começando nos anos 1950 e 1960: Rhee na Coréia; Diem no Vietnã; Trujillo na República Dominicana; Somoza na Nicarágua; virtualmente todos no Haiti, de Papa Doc e Baby Doc ao padre Aristide, instalado por Clinton e removido por Bush; o xá do Irã – colocado lá depois do coup da CIA em 1953 contra Mossadegh, depois que ele nacio-nalizou o petróleo iraniano, e retirado quando a sua utilidade desapareceu; o caso de Mobutu depois de três décadas no Zaire; de Saddam Hussein – o próprio Rummy10 foi vê-lo duas vezes na sua já prévia encarnação como secretário de Defesa; de Milosevic da Iugoslávia – ele era o necessário e o confiável implementador do acordo de Dayton do Tio Sam na Bósnia; e, é claro, do Talibã – o próprio Tio Sam formou-o e colocou-o a cargo do Afeganistão; para não falar de Osama Bin Laden – ele também serviu o Tio Sam lá.

(Não?) por acaso, um simples exame de fatos palmares revela que, se as “linhas de defesa” mencionadas fracassarem e o Tio Sam for à guerra, exceto para a pequena Granada, nem uma única linha ou qualquer ou-tra guerra do Tio Sam foi sempre ganha por sua força militar, a não ser

a guerra no Pacífico contra o Japão. A Segunda Guerra Mundial foi ven-cida na Europa, em Stalingrado, em 1943, pelas tropas russas que teriam chegado a Berlim, mesmo que o Tio Sam não tivesse chegado depois. A Guerra da Coréia foi e continua sendo um beco sem saída. A guerra contra o Vietnã foi perdida. A guerra contra a Iugoslávia foi “vencida” somente quando os russos retiraram o seu apoio e apenas sete tanques iugoslavos e todos os seus aviões ficaram em Kosovo ilesos. Somente Kosovo e a infra-estrutura civil da Iugoslávia foram bombardeadas e feitas em pedaços, e o mais amplo ambiente dos Bálcãs poluído por neônio pelo uso continuado de urânio refinado do Tio Sam. A guerra contra o Afeganistão está sendo perdida, tal como também a guerra contra o Iraque, apesar do uso referido mais uma vez do urânio refinado, também outra vez com napalm, tal como no Vietnã, e gás.

A geopolítica muçulmana do Tio Sam e o plano do petróleo do “meio oriente” de Casablanca a Jacarta

Não obstante, o Tio Sam possui muitos outros planos militares geopo-líticos novamente em andamento. Para começar, ele já construiu 800 bases militares em todo o mundo e, especialmente, na “terra” rica em petróleo, o tabuleiro de xadrez global de Zbigniew Brzezinski (de Ziggy), para cercar a China. O Pentágono deve também transferir 60% da frota submarina dos Estados Unidos para o Pacífico Ocidental (de acordo com P. Jakob Förg: j.foerg@msc-salzburg, de 12 de dezembro 2004, e-mail). Tudo isso para ser empregado no futuro, mas também na já atual influência política. Além disso, o presidente Bush do Tio Sam tem um novo “Plano para o Oriente Médio”, que agora se estende do Marrocos para além do Paquistão – para a Indonésia muçulmana? O que esse plano exatamente envolve não está claro ainda, mas a sociedade civil já está também abrindo caminho: a Yale University Press já lista o Paquistão entre os seus estudos sobre o “Oriente Médio”, e a Swissair tem o papel de estabelecer uma esteira que coloca Karachi, Dehli e Mumbai como suas destinações no “Oriente Médio”. O que está claro é que Israel deve permanecer como o Cavalo de Tróia político e militar do Tio Sam na região, o que sempre foi. Não importa que sejam os

9 <http://www.democracynow.org/article.pl?sid=04/11/1526251>.10 Ronald Rumsfeld, secretário de Defesa dos Estados Unidos durante os governos Gerald Ford (1975-1977) e Bush filho (2001-2006).

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republicanos ou os democratas a dominarem em Washington, permanece o papel de cão de caça de Israel para o Tio Sam na sua rica área petrolífera de operação. Em troca, a segurança de Israel goza da proteção internacio-nal diplomática, política e militar do Tio Sam, em qualquer coisa, assim como recebe o apoio direto econômico e militar, sem o qual Israel não po-deria existir. Somente agora, o alcance regional atribuído e autoconferido de Israel pode se expandir, inclusive para mais longe, na medida em que os dois neoconservadores mencionados, altamente colocados no Pentágono, foram inclusive lá operar um plano para o racista-chauvinista Partido Li-kud, agora no poder.11 E o próprio Bush foi à África, especialmente à África Ocidental, para ver o seu petróleo.

Nas Américas, o seu Plano “Colômbia” (ela tem petróleo também) foi estendido para toda a região andina (o Equador também exporta petróleo), mas ele tem ainda outro plano para a Amazônia (talvez algum petróleo possa ser achado lá e, nesse ínterim, ele constrói aí uma imensa base, su-postamente para a Nasa – a Agência Espacial Norte-Americana –, o que não é desconhecido, para utilizá-la em aventuras militares), um plano para “garantir” que o Banco Mundial socorra o maior depósito subterrâneo de água doce do mundo, nas Cachoeiras do Iguaçu, onde Brasil, Argentina e Paraguai se encontram, e ele está já agora novamente treinando 40.000 militares latino-americanos nas bases internas do Tio Sam, e ele tem mais meia dúzia delas fora da sua costa.

Tudo isso é uma gigantesca base global, econômica, política e militar sobre a qual se pode manter o Esquema Ponzi financeiro do Conto do Vi-gário, e baratear duas vezes o preço para aqueles que acabam por possuir dólar, enquanto possam pagar por tudo com o dólar-papel feito em casa, o que, até agora, também mantém o negócio global de Ponzi.

Não somente o Tio Sam precisa comprar cada vez mais petróleo, agora com o seu próprio dólar, mas talvez amanhã com euros ou yuan. Ele tam-

bém tenta se certificar de ter sua mão sobre qualquer torneira para contro-lar quem mais pode e, especialmente, quem não pode comprá-lo. Essa é a razão por que podemos vê-lo tentando o controle político e financeiro do dólar das torneiras de petróleo, onde quer que ele ainda possa, uma pre-sença militar na Ásia Central, ou o seu poder militar para entrar no Iraque. Usá-lo como uma alavanca de controle e/ou para advertir seus vizinhos sobre o que pode acontecer a eles se eles não continuarem a concordar com o Tio Sam. Felizmente para ele, a maior parte da Ásia Oriental e, especial-mente, a China também parecem que estão obrigadas a comprar o petróleo estrangeiro, mesmo se amanhã talvez não mais com dólar, mas com yen ou yuan. Por outro lado, é também verdadeiro que o maior vendedor de petró-leo do mundo é a Rússia, cujas torneiras permanecem fora do controle do Tio Sam. Mas, como poderia o Tio Sam continuar a pagar e manter todas essas audaciosas aventuras suas em Defesa da Liberdade com esse próprio dólar de papel – se ninguém o aceita mais? E por que alguém deveria?

A grande causa do Tio Sam no Iraque: dar seus 30 bilhões de dólares para Halliburton e outros

Dos 18 bilhões de dólares que o Congresso do Tio Sam destinou para a “reconstrução” do Iraque, não mais do que 388 milhões de dólares – ou 2,15% – desse dinheiro do Tio Sam tinham sido gastos. E somente 5 bi-lhões de dólares desse dinheiro tinham sido orçados pelo Tio Sam no Ira-que, na época em que o pró-cônsul Brenner do Tio Sam voltou para casa com a tarefa bem-cumprida. O Bom Tio achou que era melhor ter gastado 13 bilhões dos 20 bilhões de dólares dos fundos iraquianos. Isso era 65% do dinheiro iraquiano comparados com somente 2% do montante aproxima-damente equivalentes do dinheiro original do Tio Sam. Na época em que o novo governo iraquiano assumiu a direção de algumas tarefas do Tio Sam, que o colocou lá, eles descobriram que um total de 20 bilhões de dólares dos seus fundos tinham sido gastos, 11 bilhões das vendas de petróleo (In-ternational Herald Tribune). Como vieram? – podemos perguntar. Muito simples foi a resposta do funcionário financeiro “responsável”, o almirante Oliver do Tio Sam: “Eu sei que gastamos algum dinheiro do fundo (ira-

11 O Likud permaneceu no poder durante o governo do primeiro-ministro Ariel Sharon, entre 2001 e 2005. Em novembro de 2005, Sharon abandona o Likud, funda um novo partido, o Kadima, dissolve o parlamento e convoca novas eleições legislativas que consolidarão a lideran-ça do Kadima e de Ehud Olmert, que o substitui como primeiro-ministro. (N.E.)

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quiano). Isso porque nós não tínhamos mais o dinheiro do Tio Sam” – do qual havia simplesmente outros 17,5 bilhões não gastos. Deveríamos ima-ginar que o bom general tinha sido instruído em Clausewitz sobre a guerra e ocorreu descobrir seu bom conselho de fazer a vítima conquistada pagar por sua própria ocupação militar, nesse caso pelo Tio Sam.

O representante iraquiano para o desembolso do fundo e o comitê de supervisão foram somente a uma das suas 43 reuniões; mas, por que se envolver com mais, quando a maioria dos gastos foi autorizada abso-lutamente sem qualquer reunião? Então, embora os fundos do Tio Sam tenham sido orçados para todo tipo de projetos, eles foram pagos pelos fundos iraquianos. Desses fundos, muitos gastos foram mesmo feitos sem qualquer contrato; em um único caso foram 1,4 bilhões de dólares. A maio-ria dos outros ocorreu sem qualquer concorrência múltipla, também não com uma proposta aberta. Os fundos do Tio Sam, por outro lado, conti-nuaram virtualmente sem gastos no Iraque. Talvez o almirante Oliver “não tivesse mais o dinheiro do Tio Sam” no Iraque porque este permaneceu com o Tio Sam em casa, em Washington; e se foi realmente desembolsado, simplesmente mudou de mãos e de contas bancárias exatamente lá. Além do mais, isso é muito mais eficiente do que seria mandá-lo de um lado para o outro, e uma parte dele não voltar. Isso nada mais é do que aquilo que o Tio Sam faz com o Terceiro Mundo: empresta ou mesmo “dá” a esses países, justamente com o intuito de deixar os dólares em casa, a quem ele pertence e para onde deverá retornar de uma maneira ou de outra. Mas isso não im-porta, o Congresso do Tio Sam já havia se apropriado de outros 30 bilhões de dólares para “preparar a transição para as eleições” que ocorreram no Iraque em janeiro de 2005.

Sendo esse o caso, seria, naturalmente, de todo indesejável que os fun-dos do Iraque, deixado o Tio Sam livre, fossem esbanjados em qualquer serviço da velha dívida externa do Iraque com outros. Essa era, de fato, a ló-gica para os fortes aliados que não podem já remediar a perdida dívida do Tio Sam para com eles, e também perdoar a dívida iraquiana. Isto é, como podemos lembrar do que foi dito, embora o Tio Sam ainda insista em que o resto do Terceiro Mundo deva continuar a manter em dia suas dívidas

para com ele! Deus nos livre de que qualquer novo pagamento da dívida do Iraque fosse para aqueles russos irreligiosos, franceses traidores ou mesmo para os melhores amigos chineses, que mais investiram no Iraque, o que é, antes de tudo, uma coisa covarde de fazer, quando o Tio Sam tem muito mais valiosas causas para o dinheiro iraquiano.

Mas podemos perguntar: quais são essas mais altamente valiosas cau-sas do Tio Sam? O maior único pagamento de 1,4 bilhões de dólares foi naturalmente para a mesma Halliburton do vice-presidente Cheney. Con-tudo, sabemos agora que, ao mesmo tempo, ele estava também trapace-ando lateralmente, inclusive contra o seu generoso benfeitor Tio Sam, em outras centenas de milhões de dólares, comprando petróleo por dólares no Kwait e vendendo-o no Iraque a um preço de cinco a 10 vezes maior, além de outras fraudes dissimuladas. No todo, a Halliburton obteve os contratos do Iraque por um descarado de 10 bilhões de dólares – mais o troco (In-ternational Herald Tribune). (Cheney também tem interesse na Unocal,12 que há muito tem desejado construir um oleoduto da Ásia Central ao Oce-ano Índico através do Afeganistão, primeiramente com a ajuda do Talibã, a quem o Tio Sam tinha posto a cargo exatamente com esse propósito e a quem depois ele convidou para o Texas para conversações, embora eles ainda parecessem estar fazendo o trabalho que lhes foi atribuído. De fato, eles também visitaram inocentemente a equipe da “pesquisa acadêmica” afegã na Universidade de Nebraska em Omaha. Mas, que pena, o Talibã não estava cumprindo a tarefa que lhe foi conferida de manter a ordem para a construção do oleoduto, por isso tinha de ser afastado. Agora o Tio Sam e Unocal usariam, em vez disso, os bons ofícios do novo presidente do Afeganistão e do embaixador do Tio Sam lá, “ocorrendo” ambos serem justamente as primeiras (?) pessoas da Unocal.)

12 A Unocal é uma empresa petrolífera da Califórnia, fundada em 1890 e incorporada pela Chevron em 2005, empresa da qual Condoleeza Rice foi diretora entre 1991-2001, e com quem a Halliburton tem contratos multimilionários.

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A “Medalha de Liberdade” do Tio Sam para Brenner, Franks, Tenet – por uma tarefa bem feita de roubar o Iraque em benefício de Cheney e de outros

Sem sombra de dúvidas, a maior parte dos outros abundantes dólares iraquianos e até agora esparsos do Tio Sam, gastos no Iraque, foram para as mãos de outro amigo íntimo do Tio Sam. Algumas migalhas caídas da mesa para corporações do Reino Unido e mesmo para indivíduos privados e militares que tinham seus dedos na caixa registradora. Que pena, nunca saberemos quem são eles; já que, conforme o inspetor-geral do Tio Sam, “eu estava candidamente não interessado em ter auditores militares porque achava que tínhamos de penetrar sorrateiramente no sistema iraquiano tão rapidamente quanto possível”. Francamente, não sendo eu um militar e na condição de um anti-militarista, eu próprio não li Clausewitz. Então, não sei que bom conselho que ele dá em confiar na corrupção como sendo o primeiro princípio para cortar e dividir o bolo conquistado.

Toda esta minha “especulação” foi escrita antes de o Conselho Con-sultivo e de Monitoramento para o Desenvolvimento das Nações Unidas no Iraque (International Advisory and Monitoring Board for Development in Iraq) ter publicado um relatório das suas investigações sobre a adminis-tração do Tio Sam. Depois que conseguimos o relatório, devemos ter em mente que o FT observa diplomaticamente que “as Nações Unidas têm se mostrado relutantes em incumbir publicamente o Tio Sam dos seus gastos dos fundos iraquianos”. O FT cita diretamente do relatório: “Houve fraque-zas de controle (...) sistemas de contabilidade inadequados, aplicação irre-gular de acordo sobre procedimentos contratuais e observância de registro inadequada.” O International Herald Tribune também faz o seu próprio re-sumo do mesmo relatório: “Houve amplas irregularidades, incluindo má administração financeira, falha em cortar o contrabando (saída do petróleo e de outras propriedades físicas iraquianas; ninguém sabe a que preço e para benefício de quem) e dependência excessiva de contratos não declara-dos.” O FT, por seu turno, oferece um traço específico a mais do relatório: “Particularmente importantes (...) foram os contratos de às vezes bilhões de dólares que foram conferidos às companhias do Tio Sam, tais como a

Halliburton, saídos dos fundos iraquianos sem proposta de concorrência.” Ontem, o presidente Bush do Tio Sam deu o certificado mais elevado do Tio Sam, a Medalha de Liberdade, para L. Paul Bremer III, o pró-cônsul civil do Tio Sam que examinou isso tudo, e para o general Tommy Franks, que, principalmente, conduziu a invasão que tornou tudo isso possível. George Tenet, o diretor da CIA que forneceu toda a informação adulterada de Tio Sam para “legitimar” todo o seu empreendimento que ele iria come-çar e que foi, desde então, desacreditado e forçado a renunciar, também não foi esquecido e recebeu o terceiro prêmio. O International Herald Tribune publicou uma fotografia cerimonial de todos três sorrindo com George W. Bush, que estava sorrindo também. Enfim, esse é o reconhecimento devido por um trabalho bem-feito. Graças a vocês, podemos descansar seguros como aqueles que estão a serviço da “Liberdade” (para quem e o quê?, podemos perguntar).

Em conclusão: Tio George W. Sam diz que o único direito dos nos-sos rapazes é colocar suas vidas em jogo para proteger a liberdade de a Halliburton roubar o Iraque.

Podemos estar seguros de que os outros que têm suas mãos na caixa registradora e na sarjeta estão entre aqueles a quem, podemos lembrar, o Doutor Greenspan do Federal Reserve rotulou como sendo os 20% ganha-dores superiores de renda do Tio Sam. Eles são os maiores superconsumi-dores privilegiados, que são totalmente (ir)responsáveis pela subpoupança do Tio Sam, disse ele, e também pelo crescente deficit comercial, o qual o Doutor recentemente lamentou em Berlim. Se examinarmos a distribui-ção de renda do Tio Sam um pouco mais, poderemos bem aprender que, entre esses 20%, a parte do leão desses dólares, como a maior parte dele do Pentágono, termina nos bolsos dos 2% superiores mais superprivilegia-dos, na medida em que eles podem superconsumir ainda mais da nata da terra. Quem negaria a eles que isso é seguramente uma causa valiosa para a proteção da Liberdade a qualquer preço? Isso inclui o convite (in)fame do presidente Bush para os iraquianos “deixá-los vir para o Tio Sam”. É difícil compreender o presidente quando ele incentiva os iraquianos “a vir”

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quando eles estão já em casa no Iraque e quando foi o próprio Tio Sam que mandou suas tropas para lá. Mas talvez Faluja explique o que o presidente tinha em mente sobre os iraquianos “virem” para o Tio Sam. Mas, como o próprio presidente Bush do Tio Sam disse ao mundo, é um direito exclu-sivo “nosso” excluirmos os outros países da sarjeta e da caixa registradora no Iraque. Afinal, ele explicou que, quando os iraquianos aceitaram o seu convite, foram “os nossos rapazes que puseram suas vida em jogo”. Eu de-sejaria que a personificação do Tio Sam tenha também explicado para que e para quem.

Os poucos números que não estão geralmente disponíveis, ou no cita-do FT de 10 e 15 de dezembro de 2004 e em outras fontes, como o Interna-tional Herald Tribune, também de 15 de dezembro, e o Economic and Politi-cal Weekly (Mumbai: 4 de dezembro de 2004, p. 5.189) são de “A economia de imperialismo do Tio Sam na virada do século XXI”, de Gerard Dumenil & Dominique Levy, na Review of International Political Economy, 11 de 4 de outubro de 2004, p. 657-676. O autor ficou agradecido a eles em Paris, a Jeffrey Sommers em Riga, William Engdahl em Frankfurt e Mark Weisbrot em Washington por seus úteis e muito usados comentários do Tio. Barry Gills em Newcastle insistiu em que eu me refiro apenas a Tio Sam e propôs a divisão do trabalho mundial entre os consumidores e produtores do Tio Sam em todo lugar e me referiu a Clausewitz. Os leitores serão mais gratos a Arlene Hohnstock por ter tornado tudo isso um conto legível. Natural-mente, nenhum deles tem qualquer responsabilidade pelo uso da forma rosquinha frita (doughnut) que eu fiz deles. Muito mais das minhas – atra-vés dos olhos deste menininho – observações podem ser encontradas no meu website em <rrojasdatabank.info/agfrank/new_world_order.html> e <http://rrojasdatabank.info/agfrank/online.html#current>.

Neo-imperialismo, dependência e novas periferias na economia mundial

Adrián Sotelo Valencia*

IntroduçãoO presente ensaio1 pretende ser uma modesta contribuição ao co-

nhecimento da nova configuração histórico-estrutural da dependência e do subdesenvolvimento no contexto do sistema capitalista globalizado. Ele parte da avaliação da teoria da dependência no seu filão marxista no século XXI, assim como das inestimáveis contribuições teóricas, metodológicas e políticas que no seu desenvolvimento trouxe Ruy Mauro Marini, a quem agora rendemos homenagem neste livro.

O trabalho se divide em quatro partes. A primeira trata da lei do valor e da superexploração do trabalho; a segunda versa sobre o contexto estru-tural e histórico do surgimento das novas periferias; a terceira se situa na análise da política de deslocamento de empresas européias para os países do ex-bloco socialista; finalmente, a quarta parte reflete sobre o impacto da tendência que essa nova divisão internacional do trabalho e do capital acarreta para as economias dependentes da América Latina.

* Sociólogo, professor titular do Centro de Estudios Latinoamericanos da Universidade Nacional Autônoma do México (Cela/Unam). Um dos principais assistentes de Ruy Mauro Marini nos anos 1970-80, é autor de vários livros e dezenas de artigos em várias línguas. 1 Este trabalho constitui parte de um projeto de pesquisa sobre as novas periferias que chega-ram à economia mundial depois da queda da União Soviética e do bloco socialista na Europa Oriental no final da década de 1980. Nele, faço uma avaliação do seu impacto tanto nas velhas periferias dependentes da América Latina como particularmente no mundo do trabalho e nas suas projeções de futuro.

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1. Premissa teórica: duas hipóteses e um resultadoA hipótese central com que lidamos neste ensaio é a de que a base

material, política e econômica da globalização do sistema capitalista con-temporâneo é a lei do valor e a sua generalização para o conjunto do sis-tema econômico. Além disso, como segunda hipótese, depreende-se que o regime de superexploração do trabalho, que Marini circunscreveu no seu livro Dialética da dependência basicamente às economias subdesenvolvidas e dependentes da periferia do capitalismo, começa a se estender significa-tivamente aos países desenvolvidos, embora com formas particulares, nas suas novas periferias surgidas no bojo da desintegração do bloco socialista. Esta última proposta, objeto de estudo deste ensaio, é causa de debates e de reflexão. No entanto, ela encontra respaldo no pensamento de Marini, particularmente no texto publicado no meio de um trabalho coletivo (cf. Marini, 2000, p. 48-68. In: Marini & Millán, v. IV, 2000), no qual ele resume as seguintes formulações:

1a) A economia mundial capitalista entrou em uma nova fase carac-terizada pela progressiva diminuição das fronteiras econômicas nacionais (globalização), para se estender a mercados cada vez mais amplos e com-plexos, o que produziu uma intensificação da concorrência intercapitalista entre as grandes empresas, com o intuito de obter aqueles lucros extra-ordinários que são o verdadeiro motor do desenvolvimento histórico do capitalismo.

2a) Nesse contexto, foi gerada uma tendência caracterizada pelo fato de que a difusão tecnológica tende a padronizar as mercadorias para faci-litar o seu intercâmbio em escala global que, com o passar do tempo, (a) provocou (como tendência) a homogeneização dos processos produtivos; (b) a igualação da produtividade do trabalho e, concomitantemente, da sua intensidade. Das afirmações anteriores, Marini conclui que (c)

paralelamente, o notável avanço alcançado em matéria de informação e comunicação proporciona uma base muito mais firme do que antes para conhecer as condições da produção e, portanto, para estabelecer os preços relativos. O mercado mundial, pelo menos nos seus setores produtivos mais

integrados, caminha assim no sentido de nivelar de maneira cada vez mais efetiva os valores e, tendencialmente, de suprimir as diferenças nacionais que afetam a vigência da lei do valor. (Marini, 2000, p. 64; grifo meu)

3a) Além disso, a introdução e a aplicação de nova tecnologia trazem como resultado a extensão do desemprego e do subemprego, o que provoca um aumento da exploração dos trabalhadores ocupados, através do aumento da jornada de trabalho, de sua intensificação, assim como da remuneração da força de trabalho abaixo do seu valor, elementos que hoje são avaliados praticamente na maior parte das estruturas produtivas do mundo.

4a) Dessa forma, conclui Marini: “generaliza-se em todo o sistema, in-clusive nos centros avançados, o que era um traço distintivo (ainda não operativo) da economia dependente: a superexploração generalizada do trabalho” (2000, p. 65).

Tão importante e simbólica é essa extensão da superexploração em escala planetária, que autores como Hardt & Negri reconhecem que: “é pre-ciso ser geógrafo para traçar o mapa topográfico da exploração” (2004, p. 195), sem menoscabo de sustentar posturas pós-modernistas muito pró-ximas do neoliberalismo (desses autores, ver seus livros Império, 2002, e Multidão, 2004). E no mesmo sentido se expressa Ulrich Beck quando, ao afirmar a existência da sociedade do risco na Europa avançada, do capital e das corporações, diz também que

quanto mais as relações de trabalho são “desregulamentadas” e “flexibili-zadas”, mais rapidamente se transforma a sociedade laboral em uma socie-dade de risco (...) a insegurança endêmica será o traço que caracterizará no futuro o modo de vida da maioria dos homens, inclusive das camadas médias, aparentemente bem situadas! (2000, p. 11)

A extensão da lei do valor e do regime de superexploração do trabalho está moldando a nova fisionomia que as estruturas produtivas e as socie-dades do século XXI terão de adotar. Os trabalhadores – que continuam existindo produzindo valor, mais-valia e lucros para o capital, apesar das

Neo-imperialismo, dependência e novas periferias na economia mundial

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evidentes mudanças das estruturas e das formas organizativas de tipo flexí-veis do mundo do trabalho – inserem-se nessa nova conjuntura com orga-nizações sindicais e políticas fracas, situação que possibilitou a saraivada de golpes sistemáticos desfechados pelo neoliberalismo em todo o mundo no curso das duas últimas décadas do século XX. Isso, juntamente com o ciclo de crise e recuperação capitalista, contribuiu para introduzir o regime de superexploração do trabalho nos centros dos países avançados e em suas respectivas periferias “endógenas”.

O esquema que Wallerstein elaborou na sua teoria do moderno siste-ma mundial, baseado na existência de centros, periferias e semiperiferias, diversifica-se com as novas periferias surgidas da transição do socialismo para o capitalismo na Europa Oriental na última década do século passado. Hoje, essa nova divisão internacional do trabalho está redefinindo e pres-sionando as antigas periferias dependentes da América Latina para ado-tarem mudanças de ordem econômica, produtiva e trabalhista de acordo com a (nova) lógica da mundialização do capital, caracterizada pela simul-taneidade dos seus ciclos econômicos (produção-circulação-produção) e pelo predomínio do neo-imperialismo como forma dominante do modo de produção.

O mundo do trabalho e os seus protagonistas, os trabalhadores, terão de travar suas lutas em torno da restituição de suas condições de vida e de trabalho, que o capitalismo neoliberal lhes arrebatou através da imposição da desregulação e da flexibilização do trabalho. Estes últimos regimes, que abrem totalmente as portas da superexploração do trabalho, são essenciais para a sobrevivência do capitalismo como modo de produção e de explo-ração universal.

2. Contexto histórico-estrutural do surgimento das novas periferiasA desintegração da União Soviética no final do século XX desenca-

deou uma série de acontecimentos e transformações econômicas e políticas que estimularam, entre outros processos, a formação de novas periferias na economia internacional capitalista em crise sistêmica. Ao ficarem vincu-lados à dinâmica da acumulação e da centralização do capital dos centros

dos países imperialistas da União Européia – Alemanha e França, princi-palmente – e dos Estados Unidos, assim como à influência de empresas transnacionais, como a Siemens ou a Volkswagen, os países e economias anteriormente do bloco comunista, incorretamente chamados “em transi-ção”, transformaram-se em autênticas plataformas produtoras e importa-doras de mercadorias e de serviços estrangeiros com muito baixos salários, altos índices de exploração do trabalho e intensos ritmos de atividade.

Fenômenos como a globalização do capital, a reestruturação produtiva e tecnológica, a concorrência muito aguda entre países e empresas capita-listas em escala mundial, a concentração e centralização de ativos, capital e tecnologia na esfera dos circuitos de acumulação do G-7, o enorme e crescente desemprego, assim como a dinâmica própria do ciclo da crise capitalista, estão provocando a transformação paulatina, mas iminente, das velhas periferias dependentes e subdesenvolvidas que se constituíram his-toricamente desde meados do século XIX na América Latina e no Caribe (Marini, 1973; Halperin, 1993).

Como está amplamente documentado pela análise socioeconômica e a ciência histórica, essas periferias em boa medida foram responsáveis pela expansão capitalista durante todo o século XX. Entre outros efeitos desses processos de expansão-destruição capitalista das novas periferias surgidas do desastre dos sistemas socialistas, figura o fenômeno que Jorge Isaac (2004, p. 168) caracteriza como um “severo processo de esvaziamento produtivo do espaço econômico”, quando estuda o caso mexicano, mas que pode ser estendido muito bem ao conjunto da periferia latino-americana, concomitantemente ao ascendente processo de desindustrialização de amplas regiões, países e localidades da periferia do centro capitalista (Sotelo, 2004).

Em virtude da instauração de relações político-econômicas de domi-nação e de dependência entre o centro e a periferia, os países dependentes desempenharam o papel predominante como produtores de matérias-pri-mas e alimentos para abastecer a crescente demanda dos centros imperiais, sendo ao mesmo tempo veículo para acelerar a passagem do eixo de acu-mulação de capital da produção da mais-valia absoluta para a produção da

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mais-valia relativa (e depois para a articulação dessas duas categorias em condições histórico-concretas de produção) nas economias dos países im-perialistas (Marini, 1973, p. 23 e segs.; Martins, 1999, p. 121-138).

Em meados do século XVIII, essa articulação virtuosa, entre outros fenômenos, desencadeou a primeira revolução industrial na Inglaterra, que mais tarde se estendeu aos principais países mais desenvolvidos da Europa Ocidental e, posteriormente, aos Estados Unidos e ao Japão, sob a forma de fordismo, pós-fordismo e taylorismo flexíveis.

Com a generalização do sistema industrial e produtivo no curso do século XX e, particularmente, depois da Segunda Guerra Mundial, os países da América Latina e outros do Terceiro Mundo conseguiram desenvolver suas forças produtivas, instaurar alguns segmentos da indústria, primeiro leve e depois pesada – especialmente de produção de meios de produção –, e, ao mesmo tempo, adotar e desenvolver nichos de produção e de mercado de tecnologia de ponta. Esse foi o caso do Brasil, do México e de outros como a Coréia do Sul no curso da década de 1970, quando se desencadearam os processos de substituição de importações e quando, neste último, o Estado impulsionou as exportações. Mas na década seguinte foi imposto o padrão de acumulação de capital de matiz neoliberal e desindustrializador (Sotelo, 2004), ao lado do influxo das políticas de ajuste estrutural do neoliberalis-mo. Na década seguinte, esse processo seria completado em escala universal, particularmente depois do Tratado de Maastricht (1992) na Europa, quando deu início o processo de desmoronamento do Estado de bem-estar.

(...) sob o golpe de políticas econômicas neoliberais que preparavam a in-trodução do euro e estendiam o mercado único. A ampliação para os novos Estados-membros da Europa Central levou este processo adiante, ao exercer uma pressão externa sobre os salários e os direitos trabalhistas com a chan-tagem dos deslocamentos. A precariedade e a concorrência desregulada com os trabalhadores emigrantes estão sendo a última fase deste processo, que não somente está reestruturando a própria composição da classe operá-ria européia, mas também as suas identidades e as suas lealdades políticas. (Búster, 30 de maio de 2005)

A pressão que a política de unificação exerce de cima por parte das burguesias européias a partir de Bruxelas aponta nesta direção: tornar precário o mundo do trabalho, flexibilizá-lo, pressionar os salários para baixo e estender o regime de superexploração do trabalho ao conjunto das classes operárias dos países da União Européia. Sobre essas tendências, pressiona a crise capitalista, que agora, com o recente “não” e a rejeição majoritária (55% do total de votos) dados pela cidadania francesa à Cons-tituição da União Européia (29 de março de 2005), assim como com o “não” no mesmo sentido dos holandeses em uma proporção de 62% do padrão nacional, engendra, além disso, uma crise de legitimidade do pro-jeto neoliberal nessa região.

Ambas as crises possuem raízes estruturais e subjetivas, como postula Búster (30 de maio de 2005), quando afirma que:

O processo de reestruturação neoliberal da economia européia, iniciado na sua fase atual com o Tratado de Maastricht, responde e agrava por sua vez um já baixo nível de crescimento econômico e da capacidade de concorrer na economia global com os Estados Unidos e o Japão.De acordo com este autor, o mecanicismo que o capital europeu encontrou desde os anos 1990 para contrabalançar a queda da taxa de lucro que, entre outros fatores, resulta do baixo crescimento da produtividade da economia européia e que, por sua vez, segue o fraco investimento em tecnologia, é o “aumento da exploração do trabalho, ou diretamente reduzindo salários e aumentando as horas de trabalho, ou desmantelando o chamado ‘modelo social europeu’”. (Búster, 30 de maio de 2005)

À lógica neoliberal mercantilista, que restringe os países latino-ame-ricanos a estas duas funções: abastecimento de matérias-primas para os centros industrializados e transferências de valor e de mais-valia exclu-sivamente em benefício destes, deve-se acrescentar a função de ter-se constituído em exportadores de mão-de-obra – principalmente para os Estados Unidos – e em plataformas de transformação do capital produtivo em capital fictício, entendido este como o conjunto dos “meios de circulação

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imaginários”, como na sua época J. W. Bosanquet o denominou.2 Claro e evidentemente, trata-se da especulação que hoje representa uma das ca-racterísticas da economia capitalista mundial. O fato realmente importante aqui é que o capital fictício serve para reciclar o capital de maneira rentável para os países industrializados e informatizados do sistema neo-imperia-lista, provocando, em contrapartida, um crescente endividamento externo na maior parte dos países latino-americanos, que, por essa via circular e contraditória, mantêm-se prostrados diante dos organismos financeiros e monetários internacionais.

Uma quarta função complementar do neoliberalismo pode ser obser-vada nas mudanças que se deram na configuração da economia mundial e na divisão internacional do trabalho, sintetizadas na nova mudança da função histórica do subdesenvolvimento, que indica que “este deixou de ser um desenvolvimento subordinado, caótico-elitista, complementar às necessidades dos países centrais, para se transformar em depredação das forças produtivas, aniquilamento de populações” (Beinstein, 9 de agosto de 2004).

Para grandes partes da África, da Ásia e da América Latina, o surgi-mento das novas periferias nos centros imperiais e sua possível expansão como espaços consolidados de superexploração do trabalho e de produção de valor, como pilares da globalização do capital, representam enormes de-safios e grandes problemas para as populações e os trabalhadores dessas regiões. Eles terão de enfrentar fortes desvalorizações de suas economias, de suas exportações e sobretudo de seus salários e rendas, com todas as conseqüências sociais e políticas que isso representa.

Entre outros efeitos desastrosos na ordem social e cultural para as po-pulações desses países e regiões, destaca-se o fato de que os Objetivos do Desenvolvimento da ONU para o Milênio, que foram estabelecidos expli-citamente pelas Nações Unidas (a respeito disso, ver na Internet: <http://www.un.org/spanish/milleniumgoalsl>) e com os quais ela presume reduzir

em 50% o nível de pobreza no mundo para 2015, simplesmente não serão cumpridos, ou melhor, praticamente ficarão postergados indefinidamente devido aos efeitos e à lógica perversa da aplicação das políticas microeco-nômicas e macroeconômicas do neoliberalismo.

Essas dimensões (queda da rentabilidade, deterioração crescente e constante dos preços dos produtos de exportação e contração da demanda interna pelo influxo da diminuição geral das rendas da sociedade) consti-tuem a contrapartida perversa das exigências das grandes empresas trans-nacionais e dos Estados imperialistas, para se decidirem investir nos países da periferia do capitalismo dominante.

Como estímulo dessas transformações, figuram a revolução tecnoló-gica e a sua monopolização nesses Estados e empresas, e ainda as determi-nações econômicas e políticas que o capital financeiro (fictício) acarreta na dinâmica das economias dependentes, entre outras coisas, que provocam graves e recorrentes crises estruturais e financeiras e ciclos de desacumulação de capital (desindustrialização); transferência de valor e de mais-valia a que se vêem submetidas as economias subdesenvolvidas para poder continuar sendo “sujeitos de crédito” dos organismos internacionais do Fundo Mone-tário Internacional e do Banco Mundial; a dinâmica e o ciclo das migrações maciças de força de trabalho dos países dependentes aos desenvolvidos, que atualmente se transformaram em peças-chave do padrão de acumula-ção capitalista dependente neoliberal; e as pressões e ameaças imperialistas de utilização da força militar, quando esta se transforma na última garantia de manutenção da ordem imperialista imposta pela supremacia militar dos Estados Unidos, como de resto exemplarmente indica a situação de ataque e ocupação de países pobres como o Afeganistão e o Iraque por tropas de intervenção norte-americanas.

Nos últimos anos, as políticas do capital, a reestruturação produtiva e a força desagregadora do capitalismo financeiro de matiz especulativo, com sua onda de bolhas financeiras, provocaram o surgimento de um conjunto de fenômenos que podem ser resumidos em três vertentes: a desregulação do trabalho, a implementação da flexibilidade do trabalho e, finalmente, o fenômeno conhecido e detectado pelos trabalhadores e estudiosos de pers-

2 Metalic, paper and credit currency. Londres, 1842. Apud Marx. O capital. México: FCE, 2000. t. 3, cap. XXV, p. 382.

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pectiva crítica concernente à precarização do trabalho. Esses três elementos articulados constituem um novo regime que, de maneira progressiva, ten-dencial e inexorável – na medida em que não seja contrabalançado pelas lutas dos trabalhadores e da sociedade – está se impondo praticamente em todo o mundo e em todas as dimensões das relações sociais e humanas: nas fábricas, nas oficinas, na indústria, nas localidades, regiões e países, assim como na vida cotidiana, que cada vez mais fica exposta às vicissitudes que marcam e sobredeterminam a lógica do capital na sua vertente neoliberal e mercantilista.

A queda da União Soviética no final da década de 1980, no sécu-lo passado, acontecimento que, diga-se de passagem, ficou marcado na mundialização do capital e na confirmação dos Estados Unidos como neo-imperialismo unilateralista; a derrota dos levantes revolucionários na América Central; a arremetida imperialista através do decálogo do Con-senso de Washington e de suas políticas neoliberais; a implementação da democratização formal dos regimes políticos ditatoriais latino-america-nos a partir de meados da década de 1980; o início da guerra preventiva dos Estados Unidos depois da primeira Guerra do Golfo, em 1991, são fenômenos que, da perspectiva da sociologia crítica e da economia políti-ca marxista, abriram novos mercados e ampliaram o raio de ação da acu-mulação e reprodução do capital em escala planetária, para tentar resolver de maneira duradoura os graves problemas de acumulação e reprodução de capital e produção de lucros extraordinários que se apresentaram no período anterior.

Explica-se, assim, nesse contexto, que as “novas áreas liberadas”, tal como as pertencentes ao velho sistema estatal-socialista e planificado que existiu na Europa Oriental até o final da década de 1980, no contexto da formação da União Européia, estejam se abrindo e se configurando como novas periferias no contexto e no espaço econômico-político e territorial dos centros capitalistas imperiais. Isso assinala enormes reptos e desafios (teóricos, metodológicos, analíticos e políticos) para as velhas zonas sub-desenvolvidas e dependentes da periferia do capitalismo desenvolvido, particularmente em função do mundo do trabalho, das migrações e re-

messas (exportação de força de trabalho) que o novo modo de reprodução capitalista neoliberal está provocando praticamente em todos os países e regiões do planeta.3

As novas e as velhas periferias estão se estruturando em função dos, cada vez mais freqüentes, deslocamentos do capital e de suas empresas transnacionais, que, partindo dos países dinâmicos do centro imperialista, como Alemanha e França – países que até agora são a coluna vertebral da União Européia –, estão sendo levados a cabo para impor novas formas organizativas e de exploração das relações sociais, trabalhistas e políticas entre o capital e o trabalho, com absoluto prejuízo deste.

Dessa forma, os deslocamentos (outsourcing) estão mudando a corre-lação econômica e política da antiga dependência com o surgimento nos próprios centros de periferias capitalistas, porque esse novo modo de pro-dução e de dominação do capital está articulando novas formas de conceber a dependência e o atraso, estabelecendo, ao mesmo tempo, enormes desa-fios para a compreensão dessa nova etapa do desenvolvimento histórico do capitalismo universal no despontar do século XXI.

As novas migrações que se desenvolvem praticamente por todos os países e regiões do mundo; o crescente e paradigmático envio de remessas dos trabalhadores estrangeiros dos países desenvolvidos a seus países de origem; o processo de fragmentação dos sistemas produtivos que se desen-volve de maneira concomitante com os chamados processos de integração (TLC, Mercosul, Alca); o despovoamento de grandes extensões e regiões do sul da Europa, da Espanha (particularmente em regiões como a Galícia), de Portugal e outros, como a Estônia e a Lituânia, e o seu repovoamento com contingentes humanos de força de trabalho provenientes da África, da Ásia e da América Latina, são características que o surgimento e a expansão das novas periferias vão consolidar no futuro mediato.

3 Para avaliar a importância do fenômeno migratório e do envio de remessas para a América Latina, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) calcula que, nos próximos 10 anos, a América Latina receberá em torno de 300 bilhões de dólares a esse título, dos quais 80%, cerca de 240 bilhões de dólares, caberão ao México, à América Central e ao Caribe. Ver López Espinoza [s.d.].

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A Organização Internacional do Trabalho reconhece que os deslocamen-tos não transferem empregos de uma parte a outra do mundo e que o aumen-to da produtividade nos países desenvolvidos não se traduz necessariamente em aumento de emprego. Pelo contrário, provocam “a destruição de empre-gos que não são substituídos, particularmente no setor manufatureiro” (OIT, 12 de dezembro de 2004), mas, ao contrário, aumentam os investimentos:

O deslocamento dos postos de trabalho para países com salários muito mais baixos aumenta o ritmo dos investimentos alemães no estrangeiro, ao passo que diminuem os que ficam na Alemanha: de 90 bilhões de euros na segun-da metade de 2000 passaram a 71 bilhões na primeira metade de 2004. E isso apesar de o Governo não ter outra política de emprego a não ser aumentar o lucro empresarial (baixa de impostos, moderação salarial), a única que ele considera adequada para que os investimentos cresçam, e com eles os postos de trabalho. (Sotelo, 8 de janeiro de 2005)

James Petras constata que o aumento da dependência também de al-guma maneira, deriva do forte aumento dos investimentos, que, por sua vez, são produtos dos deslocamentos e da expansão das novas periferias na economia mundial:

A Europa e o Japão estão investindo fortemente no Irã, na Rússia, na Líbia e na África para garantir o fornecimento de energia. Essa concorrência interimpe-rial aprofunda a dependência da América Latina, no seu papel tradicional na divisão internacional do trabalho como um fornecedor de matérias-primas e importador de artigos industriais. (Petras, 28 de dezembro de 2004)

Por sua vez, Chossudovski também constata que:

O capitalismo alemão está se expandindo para além do [rio] Oder-Neisse até o seu Lebensraum4 de antes da guerra. Nas montadoras da Polônia, da

Hungria e das repúblicas Tcheca e Eslováquia, o custo da mão-de-obra [da ordem de 120 dólares por mês] é essencialmente menor do que na União Européia. Diferentemente, os trabalhadores das montadoras de automó-veis alemães têm salários da ordem de 28 dólares por hora. (Chossudovski, 2002, p. 90)

Um dirigente da Confederação Intersindical da Galícia (CIGa) subli-nha as causas da precarização do trabalho, concretamente na província da Galícia no Estado espanhol:

As causas e os fatores que alimentam e estendem a precariedade e criam um âmbito maior de superexploração estão relacionados à expansão universal e às necessidades do modelo neoliberal, à sua doutrina de desintegração do sistema de economia mista na redução máxima da economia pública estatal, à aplicação de reformas trabalhistas para desregular o mundo do trabalho, flexibilizando a contratação temporária e causal e intensificando, flexibilizando e ampliando a jornada de trabalho, à externalização e tercei-rização do sistema produtivo e de serviços, igualmente nos setores públicos e privados, e à criação de um universo subsidiário de microempresas, com o conseqüente aprofundamento da estratificação trabalhista e de classe, à diminuição da produção de valor e mais-valia no sistema produtivo com a conseqüente crise do padrão de acumulação de capital, com queda livre de salários e das condições de trabalho nos países subdesenvolvidos e sua derivação magnética desse metabolismo aos países centrais do capital, as-sim como pelo desvio dos investimentos de capital para o terreno financeiro especulativo, o que poderia explicar que, durante esse período de recessão prolongada na economia produtiva, os valores financeiros, em situação con-trária, tenham um constante decréscimo e rentabilidade. (Alcántara, 2004)

4 Termo alemão que significa “espaço vital”. A expressão foi cunhada pelo geógrafo alemão Friedrich Ratzel e posteriormente adotada pelos geopolíticos da primeira metade do século XX.

Adolf Hitler utilizava essa palavra para descrever a necessidade que o III Reich alemão tinha de encontrar novos territórios para onde se expandir, especialmente à custa dos povos eslavos da Europa Oriental (Biblioteca de Consulta Microsoft, Encarta, 2005).

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Um dos efeitos desses processos de reestruturação e deslocamento exerce um impacto negativo nos mercados de trabalho. Na literatura con-vencional, os mercados de trabalho tradicionais se consideram estrutu-rados quando 70 a 80% da força de trabalho se encontram ocupados em postos formais, em relação de dependência para com o capital. No entan-to, agora, os empregos formais em relação de dependência estão em vias de diminuir e, em alguns casos, estão em extinção. Em vastas regiões do mundo, predomina o trabalho “golondrina” (barco), os contratos são de curta duração, por contratação, e, em outros países desenvolvidos, é o te-letrabalho. Aumentaram o número de trabalhadores por conta própria, os empregos informais e transitórios. Inclusive os trabalhadores qualificados, com altas rendas e títulos universitários, diminuíram e estão submetidos à instabilidade do emprego e a regimes de precarização e superexploração do trabalho.5

Enquanto nas décadas anteriores, na América Latina, geralmente mais de 80% dos postos de trabalho eram de longa duração, com contratos in-tegrais e com prestações, agora, ao contrário, calcula-se que o setor não estruturado dos mercados de trabalho, constituído por trabalhadores por conta própria, empresas familiares, ocupados em microempresas e serviço doméstico, represente 85 de cada 100 empregos na década de 1990, ao passo que os empregos modernos vêm diminuindo e, cada vez mais, registra-se uma criação menor de emprego nas grandes empresas (Aspiroz, Fossati & Mendoza, [s.d.]).

Confirma-se, assim, a passagem de uma economia capitalista que crescia com a criação de postos de trabalho em relação de formalidade jurídico-trabalhista com o capital para o predomínio de uma economia com crescentes dificuldades para prosperar e que, quando o faz, a geração de empregos tende a ser precária e a diminuir os direitos e as prestações dos trabalhadores, que são submetidos ao império da superexploração do trabalho.

3. Deslocamentos e novas periferias na economia mundialNo contexto do desaparecimento de empresas, da perda de postos de

trabalho e da crise econômica,

as autoridades governamentais e os sindicatos discutem sobre a necessi-dade de renunciar a certas conquistas alcançadas, especialmente no marco do chamado Estado de bem-estar. Assim, discutem sobre a urgência de es-tabelecer maior flexibilidade da jornada de trabalho e aumentar as horas de trabalho, sem que isso necessariamente conduza a aumentos de salário, o que ocorre já há muito, em detrimento da situação da classe trabalhadora. (Swiney González, 23 de agosto de 2004)

Por isso, foi colocada a reforma trabalhista na União Européia para alcançar “(...) a flexibilidade na jornada de trabalho com ênfase na amplia-ção das horas (...) para poder adaptá-la ao longo do ano às condições que o mercado exigir a fim de melhorar a produtividade” (ibid.).

Empresas transnacionais como a Siemens conseguiram, sob pressão e chantagem, deslocar a sua produção para a Hungria (onde o salário médio em 2004 é de 3,8 euros por hora, comparado com 26,5 euros na Alemanha), em junho de 2004, e fazer um acordo com a direção do sindicato IG Metall no sentido de um aumento da jornada de trabalho de 35 a 40 horas por semana para quatro mil trabalhadores no ramo da telefonia móvel, sem compensação salarial e com a renúncia explícita ao pagamento a título de benefício natalino (abono) e férias. O exemplo, com seus matizes particu-lares, está sendo seguido pela Mercedes Benz, Volkswagen, Continental e outras companhias que oferecem essa modalidade de emprego para 25% dos trabalhadores alemães.

O efeito de demonstração da Siemens veio em cascata na Alemanha e, por extensão, promete se estender por toda a Europa. É assim que, para “salvar o emprego”, a empresa Daimler Chysler, com o consentimento da direção sindical, aceitou aumentar as horas de trabalho semanais com re-dução salarial em torno de 3% em média, com o único objetivo de conse-guir da empresa a promessa de garantia de emprego pelo menos até o ano

5 Entende-se aqui por precarização do trabalho o processo crescente de perda de direitos e prestações para os trabalhadores, com o objetivo de submetê-los a regimes de exploração do trabalho, ao livre-arbítrio dos patrões e das empresas.

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2012 e manter os postos de trabalho na casa dos 160 mil. O mesmo está ocorrendo nas companhias Mercedes Benz (que ameaçou se transferir para a África do Sul), na Volkswagen, na Continental e em outras empresas des-se país. Na França, os trabalhadores da companhia Bosch Vénissieux (que ameaçou se transferir para a República Tcheca) “aceitaram” trabalhar uma hora a mais em troca da manutenção do emprego. A empresa Opel estuda a possibilidade de aumentar a jornada de trabalho para 40 horas semanais sem compensação salarial. Recentemente, em novembro de 2004, a trans-nacional Volkswagen, na Alemanha, conseguiu um acordo com a direção sindical para congelar os salários dos trabalhadores durante 28 meses, com o pagamento, em uma única vez de 1.000 euros para cada trabalhador. Dessa forma, a jornada de trabalho de 35 horas se transformou em um verdadeiro pesadelo para o patronato europeu.

Esses acontecimentos, cifrados em deslocamentos, em reorientação dos investimentos, na arrogante política da chantagem patronal, na des-regulação, flexibilidade e precarização do trabalho, estão levando a uma verdadeira reversão histórica das conquistas operárias, que tinham con-seguido se materializar, entre outras conquistas, na redução da jornada de trabalho, no seguro contra o desemprego, nos aumentos importantes dos salários globais e em um conjunto de prestações que permitiram a estudio-sos e direções sindicais caracterizar o Estado como sendo de bem-estar, o qual, justamente em razão desses acontecimentos, está hoje em crise e em processo de destruição.6

Na França, a situação é complexa: o patronato e o governo conserva-dor de Jacques Chirac ameaçavam os trabalhadores com levar a cabo uma reforma trabalhista para reverter a legislação das 35 horas (a única que na Europa está regulada por lei), com o objetivo de codificar juridicamente

o aumento da jornada, reduzir a massa salarial e aumentar a intensida-de do trabalho (elementos, certamente, do regime de superexploração do trabalho que Marini formulou nos seus textos fundamentais para o caso da América Latina). À medida que isso ocorresse, estar-se-ia assistindo à quebra definitiva do Estado de bem-estar, tal como este surgiu depois da Segunda Guerra Mundial do século passado, e à transição para um regime específico de superexploração do trabalho no capitalismo avançado.

Exemplo paradigmático dos embates dos deslocamentos empresa-riais, estimulados pela feroz concorrência intercapitalista e pela lógica neo-liberal de direção imperial da União Européia, é a ameaça de extinção dos estaleiros espanhóis, sob as pressões que a direção da União Européia em Bruxelas vem exercendo para que o governo do Estado espanhol retire em torno de 300 milhões de euros a título de subsídios, que até agora vinham sendo feitos para esse importante ramo da economia espanhola. Outro ele-mento que trabalha contra a existência dos estaleiros estatais é a enorme competitividade dos asiáticos que ameaça colocar na rua mais de 45.000 trabalhadores, que não terão outra saída senão imiscuírem-se nas corren-tes migratórias da União Européia, concorrendo com trabalhadores prove-nientes do Marrocos e, em geral, dos países africanos e latino-americanos.

Outro ângulo do problema pode ser observado em regiões inteiras, como a Galícia, onde, segundo o coletivo Mulheres(em)causaencantada.org, aproximadamente 60.000 mulheres trabalham em oficinas clandesti-nas, sem luz natural, durante 12 horas e com soldos de 200 euros por mês para a empresa Inditex, que é a matriz de marcas como Zara, Stradivarius, Oysho, Pul & Bear, Bherska, Massimo Dutti e Kiddy’s (apud Corpas, 7 de maio de 2005).

Além disso, ocorre um outro fenômeno derivado do processo de des-locamento de empresas na Galícia:

as empresas de moda já ocupam mais trabalhadoras fora do que dentro da comunidade autônoma. Mais da metade da produção se instalou no estran-geiro, em países com mão-de-obra muito mais barata e em condições de trabalho deficientes, como são Marrocos, Romênia, Peru, Paquistão, Índia e

6 As políticas do capital assentadas na privatização e na desregulação, além de provocarem crises catastróficas no mundo do trabalho, incidem também na crise econômica. Nesse sentido, referindo-se à crise nos setores de telecomunicações, de eletricidade e do sistema bancário dos Estados Unidos, diz Stiglitz (2003, p. 127): “Embora o decréscimo econômico de 2001 só tenha sido uma manifestação benigna destas doenças mais virulentas, não há dúvida de que esta que-da econômica foi em grande parte atribuída à desregulação dos anos de 1990.”

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Malásia. O deslocamento, que prejudica mais de 400 oficinas de confecção instaladas na Galícia, permitiu aos 15 maiores industriais galegos, encabe-çados por Inditex, Adolfo Dominguez, Caramelo, Lonia e Roberto Verino, consolidar ainda mais a sua posição no setor (...) No Marrocos, as traba-lhadoras podem chegar a trabalhar por menos de 180 euros mensais, su-perando a semana de 48 horas que a legislação marroquina estabelece. No caso de Tanger, onde estão concentradas numerosas fábricas que trabalham para empresas como El Corte Inglés ou Stradivarius, o salário não chega a 60 centavos de euro por semana e se trabalha em condições subumanas de salubridade e habitação (...) firmas como Mango e Induyco (El Corte Inglés) submetem as mulheres a jornadas de trabalho de 12 a 16 horas na alta temporada, porque na Espanha são pedidos prazos de entrega de seis dias. (Corpas, 7 de maio de 2000)

Como se pode observar, o surgimento de novas periferias e a política de deslocamento estão se transformando em verdadeiras fontes de obten-ção de valor e de acumulação de capital para as grandes empresas, que, dos seus centros e Estados imperiais,7 pressionam tanto os seus próprios traba-lhadores quanto os de outras latitudes, com o objetivo de lhes impor condi-ções de trabalho, de emprego e de salários em função de suas prerrogativas de concorrência internacional e de obtenção de lucros extraordinários.

4. Dependência, neo-imperialismo e novas periferiasÉ preciso entender que estamos diante de um novo mapa de formação

das novas migrações em nível internacional, regional e local que corres-ponde a uma nova estruturação dos processos de acumulação e reprodução do capital e de uma divisão internacional do trabalho caracterizada pelo surgimento de novas periferias dentro do próprio centro do capitalismo

desenvolvido e imperial. Isso certamente acarretará uma concorrência interimperialista mais acirrada e indiscriminada – e na própria força de trabalho – com as populações trabalhadoras das velhas periferias que constituíram as relações de dependência nos séculos XIX e XX.

Do ponto de vista da economia política e da teoria da dependência, considero que as novas periferias tendem a cumprir as seguintes funções atribuídas a elas tanto pela divisão internacional do trabalho quanto pela própria dinâmica regional, que, nesse caso, está circunscrita ao âmbito europeu e à dinâmica de deslocamento das empresas multinacionais com base em países como a Alemanha e a França:

1a) Servir como plataformas de recepção de grandes empresas que decidam se deslocar para aproveitar vantagens como proximidade geo-gráfica, diferenças salariais, jornadas de trabalho flexíveis, nenhuma ou pouca legislação trabalhista, baixo ativismo sindical e disposição de go-vernos neoliberais.

2a) Pressionar as empresas localizadas em países desenvolvidos, como na Alemanha e na França, para que as suas respectivas burguesias empresa-riais e os governos possam chantagear suas classes operárias e o mundo do trabalho no sentido de baixar os salários, aumentar as taxas de exploração do trabalho e acirrar a concorrência entre os trabalhadores por postos de trabalho precários e escassas oportunidades de emprego.

3a) Uma vez assumida a superexploração do trabalho em qualquer modalidade no capitalismo avançado, as novas periferias se transformam em verdadeiras concorrentes das antigas periferias, como as da América Latina, para atrair e manter barata a força de trabalho, a tecnologia, os in-vestimentos estrangeiros e as empresas, o que, por sua vez, é aproveitado pelos países imperialistas para aprofundar essa desigualdade em benefício da rentabilidade e da expansão dos seus negócios.

4a) Dessa forma, se em um primeiro momento as antigas periferias historicamente serviram como plataformas para a expansão do capital in-ternacional, hoje as novas periferias tendem a desempenhar esse mesmo papel no plano regional, o que pressiona as antigas periferias para que estas aprofundem as políticas neoliberais e ajustem as suas economias à lógica

7 Isso reforça a tese do Estado forte na globalização do capital, muito distante da concepção fascistóide de um Fukuyama (2004), que, ao se referir aos “Estados fracassados” de países sub-desenvolvidos, como o Haiti, o Afeganistão ou o Iraque, justifica qualquer intervenção impe-rialista por parte da mal-afamada “comunidade internacional”, certamente encabeçada pelos Estados Unidos, contra o “terrorismo”.

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mercantilista e de lucros que o grande capital monopolista internacional lhes impõe.

Somente a teoria da dependência, na sua vertente crítica e marxista, pode esclarecer estes acontecimentos estruturais e sociopolíticos e caracte-rizá-los dentro da lógica expansionista da economia capitalista mundial.

A América Latina precisa enfrentar grandes desafios, entre outros o fato de que o capital e os fortes Estados dos países centrais encontraram, nas novas periferias, elementos suplementares e mecanismos de pressão e de submissão para redobrar a sua dependência e redefinir o seu papel dentro do esquema dominante de divisão internacional do trabalho, em detrimento dos setores industrial, de serviços e, de maneira fulminante, da agricultura, com grandes repercussões para as classes camponesas e pro-dutoras latino-americanas, que verão assim depreciados os preços de seus produtos, assim como as suas já deterioradas condições gerais de vida e de trabalho.

Durante a segunda metade do século XX, a América Latina e o Caribe perderam a vantagem e a participação no comércio internacional, tanto em relação aos países desenvolvidos como perante os novos países industria-lizados (NICs), que floresceram nesse período. A tal ponto, que a região atualmente não supera 5% do comércio internacional, e isso apesar das pri-vatizações neoliberais ocorridas nas décadas de 1980 e 1990 e da entrega dos seus recursos naturais e estratégicos ao capital internacional.

Além disso, a maior parte dos países latino-americanos reestruturou os seus aparelhos produtivos e os seus padrões de acumulação de capital em benefício de setores tradicionais (primário-exportadores), fundados na produção de petróleo, gás, agricultura, gado, minerais, frutas e, nos casos do México e da América Central, na exportação de força de trabalho para os Estados Unidos.

Diante desses fatos, o Estado latino-americano impulsionou certos processos de integração, como o Tratado de Livre-Comércio, o Mercosul, o Caricom e o Mercado Comum Centro-Americano, entre outros. No entanto, estes foram levados a cabo no contexto de políticas neoliberais, geralmente em benefício de frações restritas das burguesias dependentes e, majorita-

riamente, das grandes empresas transnacionais, mas muito pouco em be-nefício das grandes massas populares latino-americanas. Por isso, vale a pena perguntar: o que significa essa integração? Estão integradas nações neocoloniais, como o Haiti, ocupadas por exércitos imperialistas e subim-perialistas? O México, país dependente e subdesenvolvido, está realmente integrado às economias imperialistas dos Estados Unidos e do Canadá, em condições de igualdade e de competitividade internacional, ou antes se trata de uma subordinação absoluta que incrementa a sua multidependência?

Essas são perguntas que devem ocupar a atenção dos estudiosos, pelo menos dos críticos da integração forçada, que estão interessados em encon-trar verdadeiras respostas de fundo para essas problemáticas que deveriam ser vislumbradas e reavaliadas à luz do surgimento e da consolidação das novas periferias, que, ao que parece, têm como objetivo estratégico subs-tituir as velhas como territórios de investimento, de acumulação e como plataformas de exportação e de pressão para aumentar a concorrência in-ternacional das grandes empresas transnacionais, que, agora, articuladas com seus Estados neo-imperiais, são as únicas que mostram vocação pla-netária para impor a globalização e redefinir a dependência estrutural em seu benefício.

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A economia mundial e a América Latina no início do século XXI1

Orlando Caputo Leiva*

Publicamos este artigo em homenagem a Ruy Mauro Marini. Nele, estão presentes orientações e temas centrais desenvolvidos pelo autor, em particular sua visão sobre economia mundial na seção “Economía mundial e as limitações da ciência econômica”, e sobre a superexploração do traba-lho nas seções que tratam dos seguintes temas: o incremento da exploração do capital sobre o trabalho e a mudança nas relações sociais de produção; aprofundamento do desenvolvimento desigual e do subdesenvolvimento da América Latina; e da proeminência do capital financeiro à proeminên-cia do capital produtivo.

Este artigo está baseado em dois anteriores: “Estados Unidos e China: locomotivas na recuperação e nas crises cíclicas da economia mundial?” e “Economia mundial e as limitações da reprodução econômica na América Latina”. Nas partes sobre os Estados Unidos e a América Latina, são apre-sentados novos desenvolvimentos com informação recente de algumas das séries estatísticas relevantes, incluindo a forte presença dos investimentos

* Economista chileno, ex-diretor geral da Codelco durante o governo Allende, é destacado au-tor da escola da dependência. Entre seus inúmeros escritos, destaca-se o clássico Dependencia y relaciones internacionales (1973). Atualmente, dirige o Centro de Estudios sobre Transnaciona-lización, Economia y Sociedad (Cetes), é membro da Red de Estudios de la Economia Mundial (Redem) e faz parte do Grupo de Estudos sobre Estados Unidos, da Clacso. 1 Agradeço à economista Graciela Galarce, pesquisadora do Centro de Estudos sobre Transnacionalização, Economia e Sociedade (Cetes), com quem dividi por muitos anos alguns temas de pesquisa. Ela participou ativamente na elaboração deste documento.

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da Espanha na América Latina, que concorrem com os Estados Unidos e que, em certos setores, desempenham um papel de protagonista.

Várias das conclusões das nossas pesquisas – para as décadas recentes, ou pelo menos para a próxima década – são diferentes daquelas tiradas por Robert Brenner e diferentes também das conclusões de Gérard Duménil e Dominique Lévy. Essas diferenças estão presentes, entre outras, nas seguin-tes questões: no enfoque teórico da economia mundial; sobre o crescimento dos lucros, sobre o crescimento dos investimentos e a reconquista da hege-monia dos Estados Unidos; sobre a preeminência do capital financeiro ou a preeminência do capital produtivo.

A China está modificando todo o panorama mundial. Em trabalhos recentes e neste artigo, destacamos o papel desse país na produção mun-dial, no comércio mundial e nos lucros. A China é um centro nevrálgico na recuperação dos lucros da economia mundial. No entanto, poderia afetá-los diminuindo-os. O capitalismo está dependendo cada vez mais da China do que a China do capitalismo. A mudança na hegemonia da economia mundial está se dando mais rapidamente do que as projeções previstas.

1. A economia mundial e os limites da ciência econômicaExiste uma economia mundial e, no entanto, a ciência econômica, nas

suas principais escolas teóricas, tem como cenário o estreito espaço nacio-nal, razão por que é incapaz de prever e explicar os principais problemas contemporâneos e que desenvolveremos depois. Entre eles, as mudanças no nível da hegemonia econômica mundial; os ciclos econômicos; as cri-ses cíclicas da economia mundial etc. Na realidade, a economia mundial, as economias nacionais e as grandes empresas transnacionais transitam e promovem grandes transformações, adiantando-se à ciência econômica e à margem dela, que, posteriormente, tenta assimilá-las sem conseguir enten-der e explicar essa realidade.

A existência objetiva da economia mundial capitalista fica em evidên-cia através do desenvolvimento crescente de uma estrutura produtiva mun-dial, da circulação mundial de mercadorias e de capitais, que se superpõem às economias nacionais e que são superiores ao mero somatório delas.

Sua origem remonta às primeiras fases do desenvolvimento do capi-talismo. O protecionismo e o livre-comércio sempre foram pensados como as políticas econômicas mais globais que caberia adotar de acordo com o grau de desenvolvimento e as necessidades dos capitalismos nacionais em sua participação na economia mundial.

O enfoque de economia mundial foi desenvolvido por Marx, como fica claramente demonstrado a partir de suas primeiras obras, particularmente no Manifesto comunista e nos diferentes planos da sua obra. No entanto, a maioria das interpretações no interior do marxismo compreende Marx como um economista de economia nacional.

Na história da economia mundial se encontram períodos de alta in-tegração das economias nacionais, tal como o desenvolvimento anterior à crise dos anos 1930 e como é a globalização atual.

As principais categorias econômicas e leis tendenciais funcionam no nível da economia mundial e das economias nacionais, ainda que o façam com algumas diferenças. Existem mercados mundiais para muitos produtos específicos, formam-se preços internacionais de mercadorias semelhantes, produzidas em diferentes condições e em diferentes países.

O desenvolvimento da estrutura produtiva mundial e da circulação mundial das mercadorias tem por base um desenvolvimento diferente e desproporcional dos diferentes ramos e setores das economias nacionais, que pode ou não alcançar uma proporcionalidade em nível mundial, pro-duzindo os diferentes momentos do ciclo e as crises cíclicas, quando não se consegue a proporcionalidade em nível mundial.

Na economia mundial, estão presentes também as principais formas de movimento: o desenvolvimento desigual, as ondas longas, o movimento cíclico e as crises cíclicas periódicas. As verdadeiras crises cíclicas se mani-festam como crise de mercado mundial.

Apesar da existência objetiva da economia mundial, a ciência eco-nômica, na sua construção teórica, raciocina com uma suposta economia nacional fechada. Posteriormente, são analisadas as modificações das estru-turas teóricas em condições de economia aberta. Em seguida, nos ramos especializados, vai adiante, relacionando as economias abertas, que ela

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designa como comércio internacional, finanças internacionais, e a econo-mia internacional. Nesse sentido, o título que escolhe é muito ilustrativo: “economia internacional”; ele se refere a relações econômicas entre países, como assinalou Javier Peinado no seu trabalho “O que há por trás do con-flito do Iraque” (março de 2003).

A ciência econômica, por ter como cenário fundamental de análise a economia nacional e assumir a economia mundial somente como relações econômicas entre países, fica muito limitada para entender o funcionamen-to da economia mundial, e também das economias nacionais. Por essas razões, muitos fatos e transformações, assim como as crises da economia mundial, foram uma verdadeira surpresa para a ciência econômica no nível acadêmico e nos organismos internacionais. Por exemplo, a crise do início dos anos 1980 e a sua gravidade na América Latina; a decadência atual da América Latina como conseqüência da globalização; e assim ocorreu tam-bém com a crise asiática do final de 1997, que foi uma surpresa, como, de resto, foi amplamente reconhecido.

2. A nova hegemonia dos Estados Unidos e a nova política de segurança nacional

No artigo de Monthly Review, “As ambições imperiais dos Estados Unidos no Iraque”, afirma-se que a nova estratégia de segurança nacional dos Estados Unidos, comunicada pelo Poder Executivo ao Congresso (New York Times, 20 de setembro de 2002), estabelece três princípios fun-damentais da política estratégica norte-americana:

1o) Assegurar permanentemente o indiscutível domínio global dos Estados Unidos, de modo que a nenhuma nação seja permitido rivalizar ou ameaçar os Estados Unidos.

2o) A disposição permanente dos Estados Unidos de realizar de forma rápida ataques militares preventivos contra Estados ou forças em qualquer parte do mundo, que sejam consideradas uma ameaça à segurança dos Es-tados Unidos, às suas forças e às suas instalações no exterior, ou a seus amigos aliados.

3o) A imunidade de cidadãos norte-americanos perante processos nos Tribunais Criminais Internacionais.

No texto que estamos citando, acrescenta-se o seguinte:

Ao comentar esta nova estratégia de segurança nacional, o senador Edward M. Kennedy declarou que: “a doutrina da Administração é um chamado ao imperialismo norte-americano no século XXI, que nenhuma outra nação poderia ou deveria aceitar”. (7 de outubro de 2002)

A reestruturação da economia dos Estados Unidos e a reconquista da hegemonia econômica em nível mundial constituem uma das bases funda-mentais da nova estratégia de segurança nacional dos Estados Unidos.

De forma rápida, apresentaremos a reestruturação da economia dos Estados Unidos e a sua transformação em única potência mundial, o que lhes permite afirmar, na sua nova política de segurança nacional, que os Es-tados Unidos não aceitam dividir com ninguém, incluindo os outros países desenvolvidos, esse “indiscutível” domínio global.

Essa reestruturação da economia norte-americana, com forte apoio estatal, produz-se na época da globalização da economia mundial, o que lhe permitiu passar novamente a ser a única potência mundial. Em meados da década de 1980, os principais setores da economia norte-americana e a própria economia dos Estados Unidos se caracterizavam como uma econo-mia decadente, que estava sendo substituída pela Europa, e, especialmente, pelo Japão e pelo Sudeste Asiático.

O crescimento dos lucros a partir de meados dos anos 1980 No artigo “Estados Unidos e China...”, afirmávamos o seguinte: os lu-

cros globais se mantiveram estagnados e em um nível extremamente baixo por muitos anos. Também a taxa de lucro desde 1970 até meados dos anos 1980 esteve muito deprimida.

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Gráfico 1 – Estados Unidos: lucros globais das empresas(bilhões de dólares)

Os lucros globais tiveram uma forte queda na recessão do início dessa década. Mas, a partir de 2002, ocorre uma forte recuperação até o primeiro trimestre de 2004, contemplado no gráfico.

A informação recente – fevereiro de 2006 – confirma a informação do gráfico e da tabela, que mostra que, depois da queda dos lucros na crise do início dessa década, a partir de 2002, produz-se uma forte recu-peração. Tanto é assim que os lucros como média simples dos três primei-ros trimestres de 2005 superam o 1 trilhão e 300 bilhões de dólares, que, em dólares correntes, é superior em 54% os lucros globais de 1999, o ano anterior à crise.

Tabela 1 – Estados Unidos: lucros globais das empresas(bilhões de dólares)

1998 1999 2000 2001 2002 2003 204 2005Lucros 801,6 851,3 817,9 767,3 886,3 1031,8 1161,5 1309,6

Fonte: Departamento de Comércio dos Estados Unidos.

Para 2005, os lucros correspondem a uma média simples dos três pri-meiros trimestres.

Crescimento do investimento a partir de meados da década de 1980Junto com os lucros, os investimentos, como outra categoria econô-

mica fundamental, também tiveram um crescimento significativo como tendência nos últimos 20 anos. Deve-se destacar especialmente que o in-vestimento global dos Estados Unidos cresce de forma exponencial desde 1991 até 1999. Sua “inclinação” não encontra um comportamento seme-lhante nos últimos 40 anos. Em 1991, o investimento tinha caído, como conseqüência da crise do início dos anos 1990, para 822 bilhões de dólares americanos. Em 1999, chegou a 1 trilhão e 643 bilhões de dólares. De 1991 a 1999, o crescimento do investimento foi de 100%.

1959 1962 1968 1971 1974 1977 1980 1983 1986 1989 1992 1995 1998 2001 1-2004

1.3001.2001.1001.000

900800700600500400300200100

0

Lucros (Correntes) Lucros (US$ 2 mil)

Fonte: Departamento de Comércio dos Estados Unidos.

O gráfico mostra a estagnação prolongada que sofreram os lucros globais – em dólares de 2000 – no período que vai do final de 1960 até meados de 1980. Esse período se caracterizou como de crescimento lento e perda crescente da hegemonia dos Estados Unidos a favor da Europa e do Japão.

A partir de meados de 1980, observa-se um grande crescimento dos lucros no conjunto das empresas – financeiras e não financeiras. De 1960 até 1968, os lucros nos Estados Unidos mostram um crescimento signifi-cativo de 55%; no período que vai de 1968 a 1983, crescem somente 2,2%; e de 1983 a 1997, 125%. Quando se amplia este último período até o pri-meiro trimestre de 2004 – o ano como critério –, o crescimento dos lucros é de 183%.

Acrescentamos que também os lucros das empresas norte-americanas no exterior aumentaram enormemente. Além disso, os lucros das empre-sas e a taxa de lucro foram beneficiados por uma grande diminuição dos impostos.

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Gráfico 2 – Estados Unidos: investimento interno privado bruto(bilhões de dólares em dólares de 2000)

O coeficiente que mede o investimento global, que inclui os investi-mentos privados e públicos, é mais categórico ainda. Aumenta de 12,5% em 1970 para 20,8% em 2000 e em 2005. A reestruturação da economia norte-americana se dá particularmente na década de 1990, quando ocorre um grande aumento desse indicador.

Tabela 3 – Investimento público como porcentagens do investimento privado (em porcentagens)

1970 1980 1990 1995 2000 2005Inv. Público/Privado 10,2 15,6 24,1 20,5 17,5 20,9

Fonte: Departamento de Comércio dos Estados Unidos.

Como dissemos, a reestruturação da economia dos Estados Unidos teve um grande apoio estatal. Isso fica claro, já que em 1970 o investimento público era somente de 10% do investimento privado. Em 1990, ele aumen-tou para 24%, e, daí por diante, mantém-se em níveis que quase dobram os níveis de 1970.

3. O grande crescimento do investimento em equipamentos de alta tecnologia e a forte diminuição dos preços

No interior do investimento privado, o investimento nas empresas cresce mais do que os investimentos residenciais. No interior das empresas, os investimentos que mais crescem são os de equipamentos e software de alta tecnologia. No entanto, os investimentos em edifícios e em estruturas físicas das empresas têm um crescimento muito pequeno.

Em síntese, os grandes investimentos, particularmente em equipamen-tos de alta tecnologia, em vez de ampliarem a base tecnológica existente, têm substituído os equipamentos anteriores usando os mesmos prédios ou es-truturas físicas das empresas. Isso se revela como uma outra característica essencial da reestruturação da economia dos Estados Unidos.

Fonte: Departamento de Comércio dos Estados Unidos.

O gráfico mostra que os investimentos caem profundamente nas cri-ses cíclicas. É notória a queda na crise de 1974-1975, na crise de 1980-1982, na crise do início dos anos 1990, e foi particularmente forte a queda do investimento na recessão do início dessa década.

Os investimentos começam a se recuperar a partir de 2003. Em 2004 e 2005, eles apresentam um forte crescimento. Em 2005, chegam a 1 trilhão e 916 bilhões de dólares, bastante superior ao nível alcançado antes da crise, que, em 2002, foi de 1 trilhão e 735 bilhões de dólares.

A reestruturação da economia norte-americana foi tão profunda que modificou substancialmente a relação de investimento e produto. Em 1970, o investimento sobre o PIB (Produto Interno Bruto) nos Estados Unidos era de 11,3%; em 2000 e em 2005, alcançou 17,7% e 17,2%, respectivamente.

Tabela 2 – Estados Unidos: investimento/PIB(em porcentagens)

1970 1980 1990 1995 2000 2005Inv. Int. Privado/PIB 11,3 12,5 12,6 14,1 17,7 17,2Inv. Int. Privado e Público/PIB 12,5 14,4 15,6 17,0 20,8 20,8

Fonte: Departamento de Comércio dos Estados Unidos.

1959 1962 1968 1971 1974 1977 1980 1983 1986 1989 1992 1995 1998 2001 2004

2.500

2.000

1.500

1.000

500

0

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Além disso, outra mudança importante foi a grande diminuição dos preços das máquinas e dos equipamentos de alta tecnologia. No trabalho anterior que citamos, dizíamos: “De 1980 a 2003, os preços dos bens de consumo e daqueles utilizados na construção residencial e de edifícios das empresas aumentaram em mais de 100%. No entanto, os preços de máquinas, equipamentos e software diminuíram nesse mesmo período em 6%.”

Quer dizer, os preços relativos dos equipamentos e software de 1980 a 2003 diminuíram em 56% em relação aos bens que são utilizados na estru-tura física das empresas. Essa grande mudança acontece particularmente na década de 1990, constituindo outra mudança essencial da reestrutura-ção da economia dos Estados Unidos.

Do ponto de vista da economia política, isso significa uma diminuição de uma das partes principais do capital constante. Marx tinha previsto no tomo III de O capital a diminuição do valor do capital constante, junto com outras modificações, para períodos nos quais, em vez de ocorrer a tendên-cia decrescente da taxa de lucro, esta começa a crescer.

Como dissemos, as crises cíclicas mostram uma queda profunda do investimento. No entanto, essas crises permitem substituir maciçamente maquinaria e equipamentos obsoletos por novos equipamentos tecnologi-camente muito mais avançados e de menor valor, que permitem um salto na produtividade de todos os setores e ajudam a recompor os lucros globais e a taxa de lucro.

4. Na perspectiva histórica, o capitalismo dependerá mais da China do que a China do capitalismo

O capitalismo mundial depende cada vez mais da China e a China de-pende cada vez mais do capitalismo mundial. Em uma perspectiva histórica, o capitalismo dependerá mais da China do que a China do capitalismo. Sobre a economia chinesa, aparecem cada vez mais artigos destacando a sua potencialidade econômica. Nestas notas, destacamos o significado da economia chinesa na produção mundial, no comércio mundial e no papel vital dos lucros que são gerados na China, como parte dos lucros globais

da empresa. Destacamos também o papel da China no aprofundamento do ciclo e nas crises cíclicas da economia mundial.

A produção da economia da China na produção mundial foi de 13,2%, baseada na paridade do poder de compra em 2004. A dos Estados Unidos foi de 20,9%. Quer dizer, a produção chinesa equivale a 63% da produção dos Estados Unidos em 2004. A produção chinesa (13,2%) é maior do que o produto da Alemanha, da França, da Itália e da Espanha, que somam todos 12% da produção mundial, e ela é quase o dobro do produto do Japão, que fica em 6,9% da produção mundial.

A China precisou de 10 anos, nas exportações mundiais, para aumen-tar a sua presença com 1% nos anos 1980. Agora, só precisa de um ano. Em 2004, tomou o lugar do Japão e ocupa o terceiro lugar nas exportações mundiais, depois dos Estados Unidos e da Alemanha. Supera em 40% o total das exportações da América Latina. Cada vez mais, a China exporta todo tipo de bens, maquinarias e equipamentos de alta tecnologia, equipa-mentos de transporte, têxteis e brinquedos, entre outras coisas.

As importações da China aumentaram mais rapidamente do que as exportações nos últimos anos. Muitas regiões e países do mundo estão de-pendendo crescentemente das importações chinesas.

A recuperação do Japão em 2003 e 2004 foi baseada nas exportações para a China, com um grande componente de maquinarias e equipamentos de alta tecnologia. A China é um grande importador de bens primários. Em 2002, importou 4% das importações mundiais de produtos naturais, 15% de cobre, 20% de alumínio e cerca de 20% de soja. Ao mesmo tempo, usa três vezes os níveis de consumo de aço dos Estados Unidos.

Como se sabe, a China se constituiu em um dos principais destinos dos investimentos estrangeiros de muitas empresas de diversos países. No entanto, o mais recente e a maior novidade são os investimentos chineses no exterior, comprando e criando empresas no estrangeiro. Por exemplo, as siderúrgicas chinesas pretendem construir fundições no Brasil, na Aus-trália e nos Estados Unidos. A China procura comprar jazidas de petróleo e de minerais. “Se não ajudar a desenvolver novas fontes de matérias-primas, o resto do mundo vai passar por maus momentos.” Isso devido ao forte

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aumento dos preços básicos nos últimos tempos, assinala The Wall Street Journal (março de 2004).

A China possui a segunda reserva monetária internacional maior do mundo. Ela cresce de forma acelerada, e, em 2004, superava os 500 trilhões de dólares. A China é um dos principais investidores financeiros no mundo e principalmente nos Estados Unidos.

A China está acirrando a concorrência no mercado mundial e nos mercados nacionais, provocando quebras de empresas e deslocamento da produção para esse país. Aprofunda a superprodução de produtos indus-triais e transformou a superprodução de matérias-primas e energia em subprodução com aumentos significativos de preços. A China está gerando uma mudança histórica nos termos de intercâmbio.

As exportações chinesas equivalem a 80% das exportações de bens dos Estados Unidos, e as importações equivaliam a 50% em 2004. Essa equiva-lência está se estreitando a cada ano. Portanto, a China se transformou e, tal como os Estados Unidos, atua como locomotiva da economia mundial. Assim foi a partir da crise asiática e na recuperação da crise no início dessa década. Também poderia atuar como locomotiva da economia mundial em uma próxima crise cíclica.

A China, ao aprofundar a superprodução de produtos industriais, provoca uma diminuição adicional de preços. A sua crescente demanda de matérias-primas eleva os preços e aumenta os custos na economia mun-dial. Esse país pode desempenhar um papel superior em uma nova crise cí-clica mundial. Na atualidade, uma diminuição, por mais leve que seja, da já elevada taxa de crescimento da China gera pânico em diversos mercados. Uma crise da economia chinesa na atualidade seria desastrosa.

Para evitar uma possível crise na China, ou o impacto de uma crise da economia mundial, esse país iniciou uma nova etapa em 2002, que privile-gia o desenvolvimento para dentro: a indústria de casas, automotriz, imo-biliária e também a infra-estrutura. A China combina o desenvolvimento para dentro com o já forte desenvolvimento para fora. Dessa maneira, ela poderia deslocar, em uma eventual crise, uma parte significativa da sua exportação para o mercado interno. Mercado interno que tem uma grande

potencialidade de crescimento. Essa alternativa é muito limitada nos países desenvolvidos, nos quais o mercado interno tem um alto nível de satura-ção. Na China, a força combinada e potenciada de mercado, a regulação e a planificação podem levar a que o capitalismo dependa cada vez mais da China do que a China do capitalismo.

Um dos fatos mais significativos é que a China é um centro nevrálgico dos lucros na economia mundial atual. Os lucros na China em 2003 equi-valem a 44% dos lucros globais dos Estados Unidos. Equivalem também a 66% dos lucros da indústria doméstica e são superiores aos lucros das empresas não financeiras dos Estados Unidos.

As empresas não financeiras incluem todas as empresas industriais que produzem maquinaria e equipamentos, computadores, veículos, ele-trônicos etc. Incluem, além disso, todas as empresas produtoras de bens de consumo durável e não durável, transporte e outros serviços e comércio por atacado ou a varejo.

A China é um centro nevrálgico dos lucros na economia mundial e o será muito mais. Nesse sentido, também o capitalismo está dependendo cada vez mais dela. A transformação da hegemonia na economia mundial está se transformando mais rapidamente do que as projeções previstas.

No entanto, queremos destacar que o crescimento chinês provocou grandes problemas sociais e danos ao meio ambiente. Se a China continuar ampliando os níveis de consumo na lógica do capitalismo desenvolvido, os problemas internos permanecerão. Os recursos naturais do mundo se tornarão insuficientes e ficarão aceleradamente esgotados. É de se esperar que a transição para uma economia sustentável aprovada em nível político se torne efetiva.

5. O domínio aumentado do capital sobre o trabalho, sobre os recursos naturais e sobre os Estados

A globalização da economia mundial tem provocado transformações profundas nas relações capital-trabalho, capital-recursos naturais, entre os capitais e entre os capitais e os Estados nacionais. Essas transformações permitem um aumento da dominação do capital sobre a sociedade, sobre a natureza e nos níveis de ingerência nos Estados nacionais.

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A dinâmica econômica da globalização baseada nas exportações apro-funda a concorrência em nível mundial e em cada economia nacional. Ne-las diminuem os custos, particularmente os custos salariais, e se promove um grande incremento da produtividade e da produção. A globalização da economia mundial está fundamentada teoricamente no neoliberalismo. Este promove a liberdade dos mercados, a livre circulação internacional de mercadorias e de capital. O domínio crescente do capital que se expressou grandemente na flexibilidade do trabalho e no fracionamento dos proces-sos produtivos aprofundou a fraqueza das organizações dos trabalhadores.

A concorrência internacional promove também a diminuição dos custos de acesso aos recursos naturais. A tendência extrema é a apropriação privada dos recursos naturais por parte das grandes empresas transnacio-nais, o que se manifestou com muita força na América Latina. A legislação que promove investimentos estrangeiros contemplou a entrega como pro-priedade privada dos diversos recursos naturais, incluindo valiosos recursos energéticos, mineiros e hídricos. A propriedade privada desses recursos lhes permite obter, além dos lucros do capital, a renda dos recursos naturais.

O caso emblemático foi a desnacionalização do cobre no Chile, que estava nacionalizado em quase 100% com Salvador Allende. As empresas estrangeiras controlam há alguns anos cerca de 70% da produção de cobre no Chile. O cobre é a principal riqueza básica, e cerca de 40% das reservas mundiais desse metal se encontram no Chile.

Outra situação emblemática é o tratado mineiro chileno-argentino, que entrega os recursos naturais da Cordilheira dos Andes e parte das pla-nícies dos dois países às grandes mineradoras mundiais.

A desnacionalização das empresas, o fracionamento dos processos produtivos, as diferentes associações empresariais expressam as novas re-lações entre diversos capitais. A privatização e a desnacionalização de em-presas e de recursos naturais expressam as novas relações entre as grandes empresas mundiais e os Estados nacionais.

O neoliberalismo, o mercado, a liberdade individual, a propriedade privada se apresentam como os grandes vencedores diante do fracasso his-tórico do deformado “socialismo”. O neoliberalismo, no campo das idéias,

conseguiu o controle da mente humana de grande parte da sociedade. A concorrência e não a solidariedade predomina no senso comum e na vida cotidiana.

As mudanças nas relações sociais de produção, que o capitalismo conseguiu com a globalização, expressam-se em todas as categorias eco-nômicas e na forma de síntese nos lucros globais, na taxa de lucro e na reprodução do capital.

6. As seis crises cíclicas nas três últimas décadasA globalização está associada ao funcionamento mais livre dos merca-

dos. O neoliberalismo afirma que, se os mercados funcionassem livremente, as crises não se produziriam. Inclusive, os chamados “shocks externos”, que poderiam provocar crises nas economias nacionais, seriam neutralizados, caso se deixasse que os mercados funcionassem livremente. No entanto, em oposição às formulações teóricas, a partir dos anos 1970, com a globa-lização e o predomínio do neoliberalismo, houve seis crises na economia mundial. De 1991 a 2001, ocorreu quatro dessas seis crises cíclicas. Isso reflete claramente a acentuação do movimento cíclico e a presença muito mais periódica dessas crises.

Também se produz uma mudança importante na origem das crises. A crise de 1994 teve origem no México, e a de 1997, no Sudeste Asiático. Pela primeira vez na história, as crises tiveram origem na periferia do capitalis-mo mundial e em locais de grande dinamismo e que se apresentavam como exemplos de globalização.

As crises cíclicas aparecem separadas no tempo, mas não é assim. Elas fazem parte de um movimento único no tempo, movimento que, através das crises e das outras fases do ciclo, vai relacionando-as umas com as ou-tras, reproduzindo algumas condições e gerando novas situações.

O encadeamento da crise e dos ciclos permite visualizar no tempo a economia mundial. Por exemplo, a crise de 1974-1975 foi uma crise de superprodução de produtos industriais e de subprodução ou de falta de matérias-primas, alimentos e energia. Os preços das matérias-primas, dos alimentos e da energia não foram muito afetados e logo aumenta-

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ram. As perspectivas de lucros levaram a um incremento muito grande dos investimentos, o que provocou a transformação da subprodução em superprodução. A partir de 1980-1982 até a crise do início desta década, as crises se apresentaram como crise geral de superprodução de todo tipo de mercadorias.

Os ciclos e as crises cíclicas mundiais também estão relacionados, en-volvendo cada vez mais países e regiões. Os ciclos e as crises estão encadea-dos no tempo e no espaço geográfico. A superprodução provém de muitos países e regiões, responde a uma estrutura produtiva mundial por cima dos países que vendem as suas mercadorias no mundo.

Na recuperação atual, novamente se apresenta uma subprodução ou uma escassez de matérias-primas e de produção de energia, razão por que a próxima crise cíclica pode ser parecida com aquela de 1974-1975. Quer di-zer, uma crise de superprodução de produtos industriais, além disso, agora, produtos indústrias de alta tecnologia, e também uma crise de subprodu-ção ou escassez relativa de energia e de matérias-primas não renováveis. É possível que nesta crise, diferentemente da crise de 1974-1975, produza-se uma superprodução relativa de alimentos.

A globalização da economia mundial exige a ampliação permanente do capitalismo em regiões onde ele não havia chegado ou tinha mesmo abandonado. Por outro lado, as crises cíclicas são momentos de apro-fundamento das tendências, destruição de condições e criação de novas situações.

Não se deve descartar a possibilidade de uma crise cíclica profunda no capitalismo como aquela que ocorreu nos anos 1930, uma crise que con-duza a uma ruptura da globalização e à estruturação da economia mundial com base em blocos regionais.

7. O aprofundamento do desenvolvimento desigual e do subdesenvolvimento na América Latina: o fracasso do neoliberalismo

O desenvolvimento desigual de países e regiões está se aprofundan-do, manifesta-se com mais velocidade e se apresenta em todos os níveis na

etapa atual da globalização. Nos países centrais, são redefinidos os graus de hegemonia. Algumas regiões têm um grande desenvolvimento, outras têm estagnações e involuções.

Os Estados Unidos superaram a decadência e reconquistaram a he-gemonia, como já observamos. O desenvolvimento desigual se apresentou com muita força nos países asiáticos. Nas últimas décadas, destaca-se o grande desenvolvimento da China. O capitalismo mundial, por sua lógica interna, produz o desenvolvimento e o subdesenvolvimento. As estratégias nacionais de inserção criadora na economia mundial podem superar essa lógica interna.

O desenvolvimento desigual se apresentou de forma muito acentuada na América Latina, quando comparada aos países desenvolvidos, e parti-cularmente em relação aos Estados Unidos, isso por causa da ausência de uma estratégia nacional e regional de inserção na economia mundial.

A reestruturação na América Latina, impulsionada pela globaliza-ção e pelo neoliberalismo, aprofundou o subdesenvolvimento. O aumento da pobreza e a má distribuição da renda se devem em grande medida a uma reprodução simples do capitalismo com níveis muito baixos de in-vestimento para a criação e ampliação de empresas. Isso, apesar dos lucros elevados. Os lucros na América Latina crescem como nos Estados Unidos, e, possivelmente, até mais. A diferença é que nos Estados Unidos há um forte processo de investimento e, na América Latina, uma estagnação do investimento nas últimas décadas. Essa estagnação combina uma diminui-ção dos investimentos em maquinaria e equipamento com um aumento do investimento em novos ramos residenciais e turísticos.

Em 1980, o investimento global da América Latina equivalia a 53% do investimento dos Estados Unidos. Nos últimos anos, essa cifra gira em torno de 20%. Isso contrasta com o grande crescimento do investimento estrangeiro. Mas, na realidade, o investimento estrangeiro veio fundamen-talmente comprar empresas já existentes.

A desnacionalização foi acentuada. No ano 2000, das 200 maiores empresas exportadoras, 98 eram estrangeiras. No período de 1998-2000, das 100 principais empresas manufatureiras, 59 eram estrangeiras e contro-

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lavam 62% das vendas.2 Os estrangeiros também controlavam respectiva-mente 76,5% e 54,5% dos ativos totais dos bancos. Na Bolívia, controlavam 85% dos fundos de pensão; no Peru, 78,5%; na Argentina, 73,6%; no Méxi-co, 66,6%.3 As empresas estrangeiras controlam grande parte das empresas de serviços públicos e suas concessionárias de infra-estrutura.

Os investimentos estrangeiros na América Latina e no Caribe tiveram um grande crescimento no período de 1990 a 1994 e um crescimento extra-ordinário dos investimentos anuais no período de 1995 a 1999 e nos anos 2000-2001. No período de 2002 a 2005, a média anual dos investimentos diminuiu um pouco, mas continua sendo bastante elevada. Os investimen-tos estrangeiros dos anos 1990 até agora são muito significativos em relação a indicadores econômicos globais da região. O investimento estrangeiro se orientou fundamentalmente para a compra das principais empresas em cada um dos países e criou muito poucas novas empresas. A diminuição do investimento nos últimos anos na região está em parte associada ao fato de que o processo de desnacionalização de empresas está se esgotando.

Tabela 4 – América Latina e Caribe:fluxos de investimento estrangeiro direto líquido – 1980-2005Médias anuais por períodos(milhões de dólares)

1980-1984 1985-1989 1990-1994 1995-1999 2000-2001 2002-20055.833 5.419 12.973 53.337 67.000 42.124

Fonte: construída com base no Anuário Estatístico da Cepal (2004) e no Balanço Preliminar das Economias da América Latina (2005).

Os governos da América Latina, apoiados no neoliberalismo, promo-veram a desnacionalização das empresas nacionais, outorgando condições especiais na legislação para os investimentos estrangeiros, condições que foram aproveitadas especialmente pelas grandes empresas estrangeiras.

O investimento estrangeiro se localizou em todos os setores, com ên-fase diferenciada nos países para os quais a Cepal fornece informação. É necessário destacar que o investimento não somente se orientou para o se-tor primário, mas é muito mais importante na indústria manufatureira e particularmente nos serviços. Nos serviços, destacam-se os investimentos financeiros em bancos, seguros, associações de fundos de pensão e em ser-viços públicos residenciais: água, gás, eletricidade e telefonia.

Tabela 5 – América Latina: distribuição setorial do investimento estrangeiro direto – 1996-2003(em porcentagens)

Argentina Brasil Chile Colômbia Equador México TotalPrimários 42,7 4,1 27,8 19,2 84,8 1,0 13,6Manufaturados 18,6 24,0 11,5 18,0 3,8 47,9 27,9Serviços 30,9 71,9 60,7 62,9 11,4 51,1 57,3Outros 7,8 0,0 0,0 0,0 0.0 0.0 1,2

Fonte: construída a partir de O investimento estrangeiro na América Latina e no Caribe (2003).

Brasil, México, Argentina, Venezuela e Colômbia, no período de 1996 a 2002, captaram 83% dos fluxos líquidos de investimento estran-geiro direto da América Latina e do Caribe. Aos Estados Unidos coube 33%; à Espanha, 18%; aos Países Baixos, 8%; e a outros países coube uma porcentagem menor.

No entanto, é preciso destacar que os fluxos de investimento estran-geiro direto da Europa, nesse período, nos principais países da América Latina mencionados, correspondem a 40,4%, mais do que os fluxos dos Estados Unidos e do Canadá, que têm 36%. Os investimentos do Japão participam somente com 2,2%. Isso demonstra que, com a globalização, a América Latina foi uma região de disputa aberta entre os Estados Unidos e a Europa. Na realidade, deu-se um verdadeiro processo de absorção da região por parte do capitalismo desenvolvido.2 Cepal. O investimento estrangeiro na América Latina e no Caribe. Informe 2001.

3 Banco Interamericano de Desenvolvimento. Informe 2002.

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As empresas espanholas desempenharam um papel de liderança nes-sa disputa e absorção. Os investimentos espanhóis foram tão elevados que equivalem a cerca de 55% dos investimentos dos Estados Unidos no perío-do de 1996-2003, nos países já referidos da América Latina. Na Argentina, os investimentos espanhóis (43%) superam amplamente os investimentos dos Estados Unidos (12%). Na Colômbia, no Chile e no Brasil, os investi-mentos espanhóis são tão importantes quanto os dos Estados Unidos. Os investimentos dos Estados Unidos na Venezuela e no México superam am-plamente os investimentos espanhóis.

Tabela 6 – Fluxos de investimento estrangeiro direto no período 1996-2003(em milhões de dólares)

Argentina Brasil Chile Colômbia Venezuela México TotalEspanha 26.020 25.612 8.882 2.882 2.218 6.068 71.671EUA 7.552 33.998 9.613 2.592 6.231 70.579 130.565

Fonte: construída a partir de Investimento estrangeiro na América Latina e no Caribe, Cepal (2003).

Entre as 10 maiores empresas transnacionais, de acordo com as ven-das consolidadas em 2003, três pertencem à Espanha, quatro pertencem aos Estados Unidos, duas à Alemanha e uma à Itália. A “Telefônica de España S.A.” aparece em segundo lugar, depois da “General Motors Corp.”; “Repsol-YPF de España”, em sétimo lugar; e a “Endesa España”, em oitavo lugar.

Quando se amplia a lista para as 50 maiores empresas, não se registra nenhuma nova empresa espanhola. Os investimentos espanhóis são eleva-dos, mas estão concentrados em um número pequeno de empresas (Inves-timento estrangeiro na América Latina e no Caribe, 2004).

Essa situação se apresenta de forma mais categórica no setor finan-ceiro da América Latina e do Caribe. Dos 25 maiores bancos transnacio-nais, de acordo com os ativos consolidados em junho de 2004, o Banco

Santander Central Hispano e o Banco Bilbao Vizcaya Argentaria, da Es-panha, ocupam o primeiro e o segundo lugares, respectivamente. Os dois, em conjunto, concentram 48,3% dos ativos consolidados. Substituíram o City Bank dos Estados Unidos e todos os outros bancos transnacionais, em um período curto de tempo. Os outros 23 bancos que individualmente possuem ativos muito menores e bastante distantes dos bancos espanhóis controlam o restante, 51,7% (O investimento estrangeiro na América Latina e no Caribe, 2004).

De acordo com a Cepal, em 2003 e 2004, diminuiu a participação das empresas estrangeiras em diversos indicadores de produção e venda. Deve ser assinalado que a diminuição se deve em parte às dificuldades das expor-tações manufatureiras do México, ao aumento dos preços das exportações de recursos naturais. Em alguns países, entre os quais figuram a Argenti-na, a Bolívia e a Venezuela, as empresas petroleiras estatais começaram a despertar um renovado interesse. Nesses três países mencionados, está se desenvolvendo uma estratégia de desenvolvimento e de inserção interna-cional oposta àquela desenvolvida pelo neoliberalismo.

A lógica interna do capitalismo na América Latina produz o estrangu-lamento da reprodução econômica e social da América Latina. Estimamos que o total dos investimentos estrangeiros na América Latina – dívida externa, investimento estrangeiro direto, bônus internacionais, créditos associados e com correções para evitar contabilidades duplas – alcança 1 trilhão e 230 bilhões de dólares. Quanto às amortizações, aos juros, às amortizações e às depreciações do capital estrangeiro e outras saídas de capital da América Latina, estimamos que se aproximam de 230 bilhões de dólares anuais, que representam 13% do PIB da região, contrastando com o limitado investimento, que nos últimos anos alcança níveis de 18% e 19% do PIB. A relação desses dois processos mostra claramente o estrangula-mento do processo de reprodução econômica e social da região. Chama a atenção o fato de que, nas análises econômicas, desapareceu a importante diferença entre PIB (Produto Interno Bruto) e PN (Produto Nacional).

O estrangulamento é mais evidente quando somente consideramos o PIB das empresas produtoras de bens e serviços e deixamos de lado o PIB

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produzido pelos trabalhadores por conta própria, a contabilização imputada como arrendamento dos proprietários de bens de raizes e outros compo-nentes que aumentam o PIB.

Uma das expressões mais evidentes do estrangulamento da reprodução econômica e social da região se manifesta no fato de que, novamente, a par-tir de 1999, a América Latina transferiu grandes recursos para o exterior.

Gráfico 3 – América Latina: transferências líquidas de recursos 1976-2005(milhões de dólares)

Na região, assim como nos Estados Unidos, há um aumento dos lucros globais e da taxa de lucro. A participação dos salários nas rendas globais dos países da região diminuiu em vários pontos percentuais e aumentaram os excedentes operacionais e os montantes por depreciação. Como já assi-nalamos, os investimentos globais e particularmente os investimentos em maquinaria e equipamentos na América Latina permanecem estagnados. O aumento dos excedentes operacionais se destina preferencialmente ao consumo suntuário, aos investimentos residenciais em novos bairros e zonas turísticas, e uma parte importante é transferida para o exterior.

Esse estrangulamento pode continuar nas condições atuais da globali-zação, através de novos investimentos estrangeiros que aprofundam a des-nacionalização. Esses investimentos estrangeiros estão contemplando de forma crescente o reinvestimento de amortizações e de juros.

8. A nova etapa: superprodução de produtos industriais e subprodução de matérias-primas e energia?

Os aumentos recentes de preços das matérias-primas e da energia po-deriam ser o início do fim da superprodução destes, e a transição para um momento de subprodução ou escassez relativa. Pelo lado da demanda, isso se deve em parte ao grande desenvolvimento da economia chinesa. Pelo lado da oferta, trata-se de uma superprodução com preços baixos que limi-taram os investimentos para uma subprodução, explicada também por um esgotamento relativo de recursos.

A oferta mundial se modificou através dos ciclos e das crises cíclicas. Como já dissemos, a crise de 1974-1975 foi de superprodução de produtos industriais e subprodução de matérias-primas, alimentos e energia. As ou-tras cinco crises cíclicas desde o início dos anos 1980 até a do início desta década foram de superprodução geral de mercadorias. Na etapa atual, assim como ocorreu no início dos anos 1970, estão se combinando uma superprodução de produtos industriais e de serviços com uma subprodu-ção de matérias-primas e energia.

1976 1978 1980 1982 1984 1986 1988 1990 1992 1994 1996 1998 2000 2002 2004

40.000

20.000

0

-20.000

-40.000

-60.000

-80.000

Fonte: construído com base no Anuário Estatístico da Cepal (2004) e no Balanço Preliminar das Economias da América Latina (2005).

As transferências líquidas de recursos são calculadas como a renda líquida de capitais menos o saldo da balança de renda, que, na sua grande maioria, corresponde aos pagamentos líquidos de amortizações e juros. A renda líquida de capitais totais corresponde ao saldo da balança de capital e financeira, mais erros e omissões, mais empréstimos e uso do crédito do Fundo Monetário Internacional e financiamento excepcional. As cifras ne-gativas indicam transferências de recursos para o exterior.

No gráfico, pode-se observar que as transferências líquidas de recur-sos nos últimos anos são bastante superiores às transferências de recursos que se seguiram à profunda crise do início dos anos 1980, que provocou o prolongamento da crise durante toda a década de 1980.

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9. Para um período de termos de intercâmbio favoráveisA combinação anterior se expressa em mudanças significativas nos

preços relativos e nos termos de intercâmbio em nível internacional. Pode-ríamos estar no início de uma mudança estrutural de médio e longo prazo, que poderia ser muito positiva para os países atrasados do capitalismo.

No entanto, como já mencionamos, com a globalização, desenvol-veu-se uma mudança profunda da relação de capital com os recursos na-turais. Nos últimos 20 anos, uma parte importante dos recursos naturais dos países atrasados se transformou em propriedade privada das empresas transnacionais. Estas se apropriam dos lucros acrescidos pelo aumento dos preços e também da renda dos recursos naturais, já que agora possuem a propriedade privada deles. As principais mobilizações e mudanças políti-cas na América Latina nos últimos anos estão vinculadas ao resgate dos recursos naturais.

10. Da deflação à inflação?Antes da crise de 2001, durante e depois, houve uma grande preocupa-

ção com a deflação, que ganhava força em vários países importantes, entre eles a China, o Japão, a Alemanha e em vários setores e ramos da economia dos Estados Unidos. Foram realizadas análises comparativas para ver as se-melhanças e as diferenças com a deflação mundial na crise dos anos 1930 – FMI, World Economic Outlook, 2001 e 2002, e Banco Internacional de Pagos, BIS, Informes Anuais 2000 e 2001. Afirmava-se nesses documentos que, se a deflação ganhasse força em nível mundial, essa seria uma situação desastrosa. Foram recomendadas e executadas políticas fiscais e monetárias para promover a demanda agregada, para evitar que a crise de 2001 se apro-fundasse e, com ela, a deflação. Elevou-se o crédito e diminuiu-se a taxa de juros. Nos Estados Unidos, passou-se de um superavit fiscal, que tinha sido alcançado por alguns anos, a um avultado deficit fiscal, com o aumento dos gastos em defesa, com a segurança nacional e com a invasão do Iraque.

O aumento dos preços das matérias-primas e da energia, devido à es-cassez relativa por parte da produção e ao aumento da demanda da China, ajudou para que a deflação parcial não se transformasse em deflação global.

A passagem da deflação parcial para um novo período de inflação é a grande preocupação atual. As empresas vêem aumentar os custos – o pe-tróleo a 60 dólares o barril, janeiro-fevereiro de 2006 – e enfrentam redu-ções de preços. O resultado mais viável é a diminuição da rentabilidade das empresas, o que pode levar a uma nova crise cíclica mundial.

11. Da preeminência do capital financeiro à preeminência do capital produtivo

As empresas produtoras de bens e serviços se libertaram do domí-nio que, em décadas anteriores, exerceu sobre elas o capital financeiro dos países desenvolvidos. Nos anos 1980 e no início dos anos 1990, o capital financeiro captava em torno de 35% dos lucros das empresas; posterior-mente, isso foi diminuído para menos de 20% dos lucros. Nos períodos de auge, aproximam-se dos 10%. Essa mudança se apóia na forte diminuição da taxa de juros. Os grandes investimentos que foram realizados foram autofinanciados com o grande crescimento dos lucros e com a colocação no mercado de ações e bônus.

A nós nos parece um grande erro continuar caracterizando o capita-lismo mundial atual como dominado pelo capital financeiro, como ocorre na maioria das análises, incluindo os cientistas sociais críticos, que usam inadvertidamente as concepções dos organismos internacionais, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Essas instituições ex-plicam o ciclo econômico internacional e as crises cíclicas quase exclusiva-mente como sendo causadas pelos movimentos financeiros e monetários e sua relação com o deficit externo e fiscal. Deixam completamente de lado as condições de produção e de realização das mercadorias.

O predomínio do capital produtivo sobre as outras formas de capital permite atribuir maior significado à relação de dominação do capital sobre o trabalho e a sociedade, que se expressa na flexibilidade do trabalho, e atribuir menor importância às relações entre as frações do capital.

Diferentemente do que ocorre nos países desenvolvidos, na Améri-ca Latina o capital produtivo e o capital financeiro atuam conjuntamente, potencializando-se reciprocamente. Os investimentos diretos das grandes

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empresas transnacionais produtoras de bens e serviços são os que domi-nam o panorama na América Latina. Esses investimentos têm um alto componente de créditos associados. O capital produtivo das transnacio-nais, em conjunto com o capital financeiro internacional e seus vínculos com os capitais e Estados nacionais da região, explica em grande parte o estrangulamento da reprodução econômica e social na América Latina e do Caribe.

12. Abundância ou escassez de capital?É possível que o capitalismo mundial esteja passando para uma etapa

na qual o capital se torne relativamente abundante. Junto com o capital que se amplia com os incrementos da produção e dos lucros, ganhou força cres-cente o capital-dinheiro, que tem sua origem nos Fundos de Pensão e nos Fundos de Investimentos, que aumentam a disponibilidade de capital.

Marx e Keynes previam que nas etapas avançadas do capitalismo se produziria um excesso de capital. Keynes afirma:

Estou seguro de que a demanda de capital está limitada estritamente no sentido de que não seria difícil aumentar a existência do mesmo até que sua eficácia marginal descesse a uma cifra muito baixa (...) significaria a eutanásia do rentista e conseqüentemente a eutanásia do poder de opressão acumulativa do capitalista para explorar o valor de escassez do capital (...) se a poupança coletiva pudesse se manter, por meio da intervenção do Estado, a um nível que permitisse o crescimento do capital até que deixasse de ser escasso (...). Vejo portanto o aspecto rentista do capitalismo como uma fase transitória que desaparecerá tão logo tenha cumprido o seu destino e, com o desaparecimento do aspecto rentista, muitas coisas que há nele sofrerão uma mudança radical. (Keynes, 1956)

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Parte III

Capital, trabalho e economia mundial

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Dependência e superexploração

Jaime Osorio*

Em 2003, cumpriram-se 30 anos da publicação de Dialética da dependência,1 material que, dentro de uma produção ampla, constitui o trabalho mais importante de Ruy Mauro Marini. Esse livro, como muitas obras clássicas, suscitou, desde o seu aparecimento, múltiplas – e não poucas – encarniçadas discussões, tanto a partir de posições alheias ao marxismo, como de dentro dessa corrente.

Essa situação não é por acaso. A Dialética da dependência constitui o ponto mais alto na explicação das particularidades da reprodução do capi-talismo dependente. As críticas de fora do marxismo em geral se encontram ligadas à idéia de que o capitalismo latino-americano pode alcançar os mo-dos de desenvolvimento central, ou pelo menos uma forma mais “civilizada” (mais equânime?, mais integrada?, menos heterogênea?) do que aquela que se apresenta na região, razão por que as suas “barbaridades” atuais fariam parte de “atrasos”, “deformações” ou estágios que serão superados, à medida que o capitalismo justamente avance. Daí seu recurso a termos como “países em vias de desenvolvimento” e outros tantos semelhantes.

Diante de uma obra que dá sustentação teórica a afirmações “radi-cais”, como as formuladas por Andre Gunder Frank sobre o fato de que o capitalismo na região leva ao “desenvolvimento do subdesenvolvimento”,2

* Economista chileno e importante autor da escola da dependência. Autor de diversos livros e artigos, é professor e pesquisador da Universidade Autônoma do México (UAM). 1 México: Era,1973.2 In: Capitalismo y subdesarrollo en América Latina. Buenos Aires: Siglo XXI, 1970.

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não é fácil entender o enorme esforço para desacreditar a cientificidade das formulações de Dialética da dependência.

Na perspectiva do marxismo, as críticas se apegam a uma ortodoxia mal-compreendida (por exemplo, a afirmação de que a análise de Marini é “circulacionista”, quando deveria predominar a “produção”; que tudo aqui-lo que ocorre com o capitalismo “real” já foi dito em O capital, razão por que qualquer conceito que ali não esteja desenvolvido se transforma em objeto de suspeita). Mas também se encontram críticos que se apegam a um Marx que o próprio Marx desconheceria (seja porque se situam em um pré-marxismo e/ou porque desconhecem as questões centrais dessa teoria).

O objetivo deste trabalho é uma síntese teórica que permita esclarecer a atualidade das teses da Dialética da dependência para pensar o capitalismo latino-americano dos nossos dias e sua pertinência para explicar as tendên-cias fundamentais que o atravessam. A exposição terá como núcleo central a categoria da “superexploração” (ou exploração redobrada), assinalada por Marini como “fundamento da dependência” (p. 101) e que concentrou os debates principais nas críticas à Dialética da dependência.

1. Breve contextualizaçãoA partir da década de 1950 até meados dos anos 1970, a América

Latina presenciou uma etapa de febril produção intelectual. Os debates têm como um dos eixos centrais a caracterização do capitalismo na re-gião.3 Depois da vitória da Revolução Cubana em 1959, o aspecto político do debate teórico tornou mais intenso esse ponto. Como era possível a revolução em uma ilha do Caribe, onde se supunha haver um capitalismo imaturo e, de acordo com a ortodoxia, onde as forças produtivas não es-tavam desenvolvidas a ponto de entrar em contradição com as relações de produção?4

O caminho das respostas a esses problemas tomou rumos insuspei-tados. O marxismo latino-americano, em geral cristalizado em interpreta-ções mecânicas e evolucionistas da “sucessão dos modos de produção”, não podia encontrá-las. A crítica marxista a esse marxismo só alcançará uma forma madura na região nos anos 1960.

Com a criação da Comissão Econômica para a América Latina (Ce-pal), no final dos anos 1940, um organismo dependente das Nações Unidas, abrir-se-á uma porta por onde menos se esperava. A crise regional que a grande crise do mercado mundial propiciou, que vai da Primeira até a Segunda Guerra Mundial, e a queda quase generalizada dos preços das ma-térias-primas que sustentam o padrão agromineiro exportador dessa zona propiciaram na Cepal que se prestasse atenção à chamada “deterioração dos termos de intercâmbio”.

As mercadorias que a América Latina exportava (como parte da perife-ria) reclamavam montantes maiores para obter os mesmos bens industriais importados dos países centrais, que se viam favorecidos no intercâmbio, em detrimento dos países especializados na produção primária. Essa consta-tação alcançada por Raúl Prebisch, juntamente com um grupo seleto de economistas (entre eles, Celso Furtado e Aníbal Pinto), colocou em evidên-cia os erros das teses clássicas do comércio internacional, que postulavam que a especialização produtiva em bens sobre os quais se tinham vantagens comparativas propiciaria o desenvolvimento das nações que participavam nessas relações comerciais.

Para a Cepal daqueles anos, a solução se encontrava na industrializa-ção, na medida em que esse processo permitiria o progresso técnico e, des-sa forma, poderia inverter ou pelo menos deter a transferência de recursos da “periferia” para o “centro”.

No interior do marxismo, surgiria uma corrente que poria em questão esse pressuposto, enfatizando que é o capitalismo como sistema mundial que gera desenvolvimento e subdesenvolvimento, tese que foi partilhada pelas vertentes de esquerda da Cepal, em particular pelo Instituto Latino-Americano de Planificação Econômica (Ilpes), organismo dependente

3 Este debate teve uma de suas derivações na discussão sobre o caráter feudal ou capitalista da América Latina.4 O tema foi desenvolvido em Osorio, Jaime. América Latina hoy. Entre la explotación redobla-da y la actualidad de la revolución. Herramienta, Buenos Aires, n. 35, jun. 2007.

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da Cepal.5 Contudo, vai-se mais longe. A industrialização não resolverá o problema, já que a lógica que orienta o capitalismo dependente leva ao “desenvolvimento do subdesenvolvimento”,6 ou, nas palavras de Marini, “o fruto da dependência não pode ser (...) senão mais dependência” (Dialéti-ca da dependência, p. 18), razão por que aquele projeto somente aguçaria os velhos problemas estruturais e criaria outros novos. A história regional terminaria dando razão a essa formulação, qualificada pelo menos de ex-tremista naquela época.

Mas, apesar da sua correção, essa tese carecia de sustentáculos teó-ricos que pudessem explicar as razões que tornavam possível o seu fun-cionamento.7 Esse é o vazio que Dialética da dependência termina por preencher. Em poucas páginas, em que foram pintadas “em largos traços” (a brochazos) “algumas das conclusões às quais tinha chegado a sua pes-quisa”, Marini acaba por fechar um círculo na definição das tendências que regem a reprodução do capital nas economias dependentes, no marco do desenvolvimento do capitalismo como sistema mundial. Somente isso, mas isso não é pouco. Por isso, afirmamos em outro lugar que a Dialética da dependência é aquela obra na qual são formuladas “as bases da economia política da dependência” e de uma “teoria marxista da dependência”.8

2. A superexploração do trabalho no marxismoA superexploração pretende dar conta de uma modalidade de acumu-

lação em que, de maneira estrutural e recorrente, viola-se o valor da força de trabalho. É uma categoria que não aparece em O capital,9 o que provoca reticências em muitos críticos de Dialética da dependência.

Para compreender o seu significado como categoria que busca dar con-ta do aspecto central da reprodução do capital dependente, isto é, no seio de formações econômico-sociais específicas, geradas pelo funcionamento do capitalismo como sistema mundial, é necessário partir de uma questão metodológica elementar: a existência de diferentes níveis de abstração e de unidades de análise no marxismo, isto é: modo de produção, sistema mundial, padrão de reprodução do capital, formação econômico-social e conjuntura.

Cada um desses níveis, como unidades que vão da abstração maior para a menor, ainda que façam parte de um sistema conceitual e categorial inter-relacionado, reclama por conceitos específicos, porque dizem respei-to a problemas particulares.

Em O capital, temos os elementos centrais que definem o modo de produção capitalista, em que se destacam as noções de mais-valia (forma que assume o produto excedente em uma organização societária definida pela relação capital-trabalho assalariado) e a tendência descendente da taxa de lucro.

As categorias e as relações daquela obra constituem o ponto de partida para analisar a organização das unidades de análise menos abstratas (ou mais concretas), mas não as esgotam. Daí a necessidade de novas categorias para abordar a análise do sistema capitalista mundial, os padrões da repro-dução de capital, as formações econômico-sociais e a conjuntura.

5 Foi aqui que F. H. Cardoso e Enzo Faletto escreveram Dependencia y desarrollo en América Latina. México: Siglo XXI 1969, e Oswald Sunkel e Pedro Paz escreveram o seu livro El subde-sarrollo latinoamericano y la teoría de la dependência. México: Siglo XXI, 1970.6 Andre Gunder Frank. Op. cit. Esta formulação nada tem a ver com a idéia de “estagnação” ou da impossibilidade de crescimento das economias dependentes, como de maneira errônea e reiterada repetem muitos críticos. Se puede crecer, pero acentuando los desequilíbrios propios del subdesarrollo.7 No ensaio “América Latina como problema teórico”, pode-se encontrar uma crítica aos pres-supostos teóricos e metodológicos do trabalho de Frank. No meu livro Las dos caras del espejo. Ruptura y continuidad en la sociología latin-americana. México: Triana, 1995.8 In: El marxismo latinoamericano y la dependência. Cuadernos Políticos, México, n. 39, jan./mar. 1984. Para José Valenzuela Feijóo, esses são juízos “ditirâmbicos”. (Ver Sobreexploración y dependencia. Investigación Econômica, n. 21, jul./set. 1997, nota de rodapé, p. 108.) Mas elogios “excessivos” também foram feitos por outros autores, muitos deles em desacordo com as teses de Marini. Em um trabalho crítico da Dialética da dependência, que se propõe “levantar obstá-culos que fechem as falsas saídas”, um trabalho igual ou maior do que a obra que eles criticam, Fernando Henrique Cardoso e José Serra assinalam que se ocuparão da obra de Marini, já que este “foi sem dúvida quem apresentou uma quadro explicativo mais geral para dar coerência às

análises” e quem “propôs uma ambiciosa teoria para explicar a dialética da dependência”. In: Las desventuras de la dialéctica de la dependência. Revista Mexicana de Sociología, v. XL, número extraordinário 78, 1978. A resposta de Marini (“Las razones del neodesarrollismo”) se encontra no mesmo número dessa revista, razão por que não nos ocuparemos aqui com este trabalho.9 Marx fala de “exploração redobrada” e, como veremos, é um nível que não desenvolve pelo plano de abstração em que realiza sua reflexão. Mas ele não o desconhecia.

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Noções como imperialismo e dependência (ou “centros” e “periferias” na antiga linguagem cepalina), ou intercâmbio desigual, por exemplo, ofe-recem ferramentas para a análise do sistema capitalista mundial e das di-ferenças e heterogeneidades em matéria de formações econômico-sociais que o capitalismo gera nesse nível de análise.

A noção de superexploração explica a forma como o capitalismo se reproduz nas economias dependentes, no marco do desenvolvimento desse sistema. Seu tratamento não pode ser encontrado na maior obra de Marx, tal como aquele do imperialismo ou das categorias para a análise de con-juntura, porque as unidades de análise que estes expressam não é o que se aborda em O capital.

A discussão sobre se o capitalismo nas regiões dependentes reclama a violação do valor da força de trabalho para funcionar, como postula Ruy Mauro Marini,10 exige responder às razões pelas quais Marx, na sua aná-lise em O capital, não desenvolve esse problema. Isso é assim porque esse processo não pode se reproduzir? É uma decisão assumida a partir da con-sideração de que ele constitui um fenômeno irrelevante? Ou simplesmente porque o nível de abstração aplicado na análise exige não contemplá-lo?

2.1. Os pressupostos na análise de O capitalEsta última posição é a correta. São muitas as observações em que

Marx manifesta a sua atenção pelo problema. Já no tomo I, editado e publi-cado em vida do autor, Marx indica que “fazer descer o salário do operário abaixo do valor da força de trabalho” é um “método que desempenha um papel muito importante no movimento real dos salários”, e que “fica excluí-do” das suas considerações “por uma única razão: porque aqui partimos do pressuposto de que as mercadorias, incluindo entre elas a força de trabalho, são compradas e vendidas sempre por todo o seu valor”.11

A análise do “capital em geral” obriga a deixar de lado considerações que no terreno histórico podem desempenhar papéis significativos. Mas

aparece como o único caminho que permite alcançar o núcleo interno que organiza a economia política capitalista, a fim de que “a transformação do dinheiro em capital possa ser investigada com base em leis imanentes à troca de mercadorias, tomando portanto como ponto de partida a troca de equivalentes”.12 E, apesar disso, o capital consegue obter uma mais-valia, dada a diferença entre o valor criado pela força de trabalho na sua utiliza-ção, quer dizer, colocada para trabalhar, e o seu valor de troca.

No plano de trabalho de Marx, a passagem para níveis mais concre-tos de análise (por exemplo, aproximar-se de situações em que alguns dos pressupostos considerados não se cumprem, mas agora com elementos teóricos para compreender por que não se cumprem) foi contemplada. Assim, ele assinalava em 185713 a redação de seis livros,14 e no primeiro analisa o capital em geral: a seção sobre a concorrência, a seção sobre o sistema de crédito e a seção sobre o capital acionário.

Em 1866, a obra havia se reduzido a quatro livros, os três de O capital, que conhecemos, mais um quarto formado pelas Teorias da mais-valia. Se nos primeiros livros de O capital a análise se move em torno do capital “em geral”, no terceiro se incluem também os temas da concorrência, do crédito e do capital acionário (...), ainda que não (...) da forma que havia se propos-to Marx inicialmente.15

Isso explica, por exemplo, que nesse terceiro livro de O capital, apesar de que já se consideram diferenças entre valores e preços (assunto de que não se trata nos livros I e II), seja assinalado que, embora a redução do sa-lário abaixo do valor da força de trabalho seja “uma das causas mais impor-tantes que contribuem para contrabalançar a tendência decrescente da cota de lucro”, o problema não é analisado e apenas é citado “empiricamente, (...) já que (...) como tantas outras coisas (...) nada tem a ver com a análise

10 Ver sua Dialética da dependência. México: Era, 1973.11 Marx. El capital. t. 1, p. 251 (segundo grifo meu).

12 Ibid. p. 120 (primeiro grifo meu).13 Plano esboçado por Marx no final da Introdução de 1857. Ver Grundrisse. México: Siglo XXI, 1971. t. 1, p. 29-30.14 Eram eles: o livro do capital, o da propriedade da terra, o do trabalho assalariado, o do Estado, o do comércio exterior e o do mercado mundial e das crises.15 Rosdolsky, R. Gênesis y estructura de El capital de Marx. México: Siglo XXI, 1978. p. 69.

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geral do capital, mas se relaciona com o problema da concorrência, que não é estudado nesta obra”.16

Como fica evidente, o fato de que, pelo nível de abstração em que se move a análise de O capital, não seja abordado o tema da violação do valor da força de trabalho, isso não significa que o fenômeno fosse desconhecido por Marx ou que ele o considerasse um assunto irrelevante. Muito pelo contrário, os limites que ele se auto-impõe por razões de método, a fim de desentranhar a lógica que organiza, articula e reproduz a economia burguesa, levam-no a não analisar o problema.

Esses limites já não existem quando postos em níveis mais concretos de análise, e, particularmente, quando se considera o sistema capitalista mundial: aí é necessário distinguir as particularidades entre economias que funcionam como centro do sistema e outras que operam como semipe-riféricas e dependentes (ou periféricas, na linguagem da Cepal dos anos 1950 e 1960).

Definitivamente, o nível de historicidade e de aproximação a reali-dades mais concretas (como as consideradas por Marx no seu plano de trabalho de 1857 e que ele não chegou a escrever, referentes, por exemplo, ao comércio exterior ou ao mercado mundial) requer a consideração de processos que antes, apesar de conhecer a sua importância, foram deixados de lado, mas que agora se transformam em elementos essenciais para dar conta dos problemas abordados.

É nessa lógica que Marini postula que “o fundamento da dependência é a superexploração do trabalho”17 (nome que outorga ao processo de vio-lação do valor da força de trabalho). Com isso, postulava a tese mais signifi-cativa gerada até agora para identificar o núcleo central de como se reproduz o capitalismo dependente.

Essa tese não nega a existência de superexploração nas chamadas eco-nomias centrais, seja de maneira conjuntural, seja em tempos de maior duração. A diferença reside em que, nas economias dependentes, essa mo-

dalidade de exploração se encontra no centro da acumulação. Não é então nem conjuntural nem tangencial à lógica de como essas sociedades se or-ganizam. E ganha sentido quando se analisa o capitalismo como sistema mundial, que reclama transferências de valores das regiões periféricas para o centro, e quando as primeiras, como forma de compensar essas transfe-rências, acabam transformando parte do “fundo necessário de consumo do operário” em um “fundo de acumulação de capital”,18 dando origem a uma forma particular de reprodução capitalista e a uma forma particular de capitalismo, o dependente.

3. Exploração e superexploraçãoA superexploração, como violação do valor da força de trabalho, não

implica uma maior exploração. Essa foi outra das pedras na qual muitos crí-ticos da superexploração tropeçaram. A noção de exploração no capitalis-mo remete ao problema da apropriação por parte do capital de um produto excedente gerado pelos trabalhadores. A geração desse produto excedente se dá pela diferença entre o valor da força de trabalho e o valor produzido acima daquele valor. Ou, dito de outra maneira, pela existência de um tra-balho excedente acima do tempo de trabalho necessário.

O aumento do produto excedente pode se dar de muitas maneiras: prolongando a jornada de trabalho, elevando a produtividade do traba-lho e reduzindo o tempo de trabalho necessário, intensificando o trabalho, apropriando-se de parte do fundo de consumo (ou de parte do tempo de trabalho necessário) para transformá-lo em fundo de acumulação.

A superexploração remete a uma forma de exploração em que não se respeita o valor da força de trabalho. E isso pode se dar, como vimos, de ma-neira direta sobre o seu valor diário, via apropriação de salários. Ou então, de maneira indireta, via prolongamento da jornada ou intensificação do

16 Marx. El capital. t. 3, p. 235 (grifo meu).17 Marini, R. M. Dialética da dependência. México: Era, 1973. p. 101.

18 Marx. El capital. t. 1, p. 505. Reforçando as considerações metodológicas e as abstrações que assinalamos anteriormente, Marx afirma aqui que, “ao estudar a produção de mais-valia, parti-mos sempre do pressuposto de que o salário representa pelo menos o valor da força de trabalho. No entanto, na prática, a redução forçada do salário abaixo desse valor tem uma importância muito grande (...)”. (Id., ibid.)

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trabalho, que, ainda quando venham acompanhadas de aumentos salariais, acabam afetando o valor total da força de trabalho e, por intermédio disso, o seu valor diário.

Nesse quadro é que devem ser lidas certas frases do trabalho de Mari-ni, em que a superexploração é assimilada à “maior exploração do trabalho” (Dialética da dependência, p. 23, por exemplo). Sua afirmação, vista no con-texto geral das formulações da Dialética da dependência, é para diferenciar entre uma exploração que se apóia no “aumento da capacidade produtiva”, o que pode ser alcançado respeitando o valor da força de trabalho e pro-piciando melhores salários e maior consumo (que predomina no mundo “central”), das formas de exploração que se sustentam na violação do valor da força de trabalho (que predomina no mundo dependente), como vere-mos um pouco mais adiante.

4. Valor da força de trabalho e luta de classes4.1. Dimensões no valor da força de trabalho

Na análise feita por Marx sobre o valor da força de trabalho, encon-tram-se presentes duas dimensões: por um lado, o valor diário, por outro, o valor total. Este último considera o tempo total de vida útil do trabalhador ou o total de dias que o possuidor da força de trabalho pode vender a sua mercadoria no mercado em boas condições, além dos anos de vida em que não participará na produção (ou os anos de aposentadoria).

É o valor total da força de trabalho que determina o seu valor diário. A isso Marx alude quando indica que “o valor de um dia de força de trabalho é calculado (...) sobre a sua duração normal média ou sobre a duração nor-mal da vida de um operário e sobre o desgaste normal médio (...)”.19

Então, o valor diário da força de trabalho deve ser calculado consi-derando um determinado tempo de vida útil dos trabalhadores e de vida média total, de acordo com as condições existentes na época. Os avanços na medicina social, por exemplo, permitiram elevar a expectativa de vida,

razão por que o tempo de vida produtiva e de vida total também se prolon-garam. Isso implica que, se atualmente um indivíduo pode trabalhar por 30 anos sob condições normais, o pagamento diário da força de trabalho deve permitir a ele se reproduzir de tal forma que possa apresentar-se no mercado de trabalho durante 30 anos e viver por um determinado número de anos de aposentadoria em condições normais, e não menos.

Um salário insuficiente ou um processo de trabalho com superdesgaste (seja pelo prolongamento da jornada de trabalho, seja pela intensificação do trabalho), que encurte o tempo de vida útil total e de vida total, cons-titui um caso no qual o capital está se apropriando hoje dos anos futuros de trabalho20 e de vida. Definitivamente, estamos diante de processos de supe-rexploração, na medida em que se viola o valor da força de trabalho.21

Podem-se produzir processos de trabalho que aumentem a jornada ou que a intensifiquem a tal ponto que – apesar dos pagamentos de horas extras ou de aumentos salariais por aumento nas mercadorias produzidas – aca-bam reduzindo a vida útil e a vida total do trabalhador. Acontece assim por-que, ainda que se possa atingir a quantidade necessária (e inclusive maior) de bens que conformam os meios de vida para assegurar a reprodução do trabalhador, este não pode alcançar as horas e dias de descanso necessários para repor o desgaste físico e mental de longas e intensas jornadas. Quando isso ocorre, o salário extra só compensa uma parte dos anos futuros que o capital se apropria com jornadas extenuantes ou de trabalho redobrado.22

19 Marx. O capital. t. 1, p. 440 (grifo meu). Marx reitera essa idéia quando indica: “Sabemos que o valor diário da força de trabalho é calculado tomando como base uma determinada duração de vida do operário (...).” (Id., ibid. p. 451 (grifo meu))

20 Sob a forma do discurso de um operário a um capitalista, Marx argumenta assim essa situ-ação: “calculando que o período normal de vida de um operário médio que trabalhe racional-mente é de 30 anos, teremos que o valor diário da minha força de trabalho, que tu me abonas um dia com outro, representa 1 / 365 × 30, ou seja, 1 / 10950 do seu valor total. Mas se deixo que a consumas em 10 anos e me abones 1 / 10950 em vez de 1 / 3650 do seu valor total, resultará que só me pagas um terço do seu valor diário, roubando de mim portanto dois terços diários do valor da minha mercadoria. É como se pagasses a força de trabalho de um dia empregando a de três”. (Marx. O capital. t. 1, p. 180)21 A formulação teórica desse tema se encontra no livro de Ruy Mauro Marini: Dialética da dependência.22 Essa é uma das expressões do poder despótico do capital de pôr a vida entre parênteses, tema que está na base da proposta de Michel Foucault para sua formulação de biopoder, mas que pelos limites teóricos de sua reflexão não pode desenvolver. Veja-se de Jaime Osório: Biopoder y bio-capital. El trabajador como moderno homo sacer. Herramienta, Buenos Aires, n. 33, out. 2006.

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Uma vez estabelecido o tempo de vida útil e de vida média total dos trabalhadores, cifra que em cada época é determinada pelas condições mé-dico-sociais existentes, deve-se passar ao cálculo do valor diário da força de trabalho, aquele que deve tornar possível a venda da força de trabalho em condições normais pelo número de anos considerados.

O valor diário da força de trabalho é determinado pelo valor dos meios de vida necessários para assegurar a subsistência e a reprodução do seu possuidor. Aparecem aqui as necessidades referidas de alimentação, vestuário, moradia, educação, saúde etc.

Com as dimensões espaço e tempo, fazem-se presentes novos elemen-tos a considerar. O lugar geográfico é importante em relação ao valor da força de trabalho, já que as particularidades climáticas definem necessida-des específicas. Considerem-se simplesmente as diferenças que exige uma zona de clima frio diante de outra de clima tropical em relação ao tipo de alimentação, vestuário, moradia etc.

Também devem ser consideradas questões concernentes à educação, à cultura e aos costumes em que foram educados os trabalhadores, o que faz com que determinadas necessidades básicas se resolvam de maneiras distintas em diversos países, regiões e culturas. Por exemplo, uma cultura sustentada pelo milho soluciona as suas necessidades básicas em matéria de alimentação de maneira diferente de outras sustentadas com o trigo ou o arroz.

Mas a historicidade do problema não termina aqui. As necessidades básicas da população trabalhadora não são as mesmas, hoje, que no final do século XIX ou no início do século XX, simplesmente porque variaram para o conjunto da sociedade. Contar com um rádio, um refrigerador ou uma televisão, por exemplo, constituem necessidades sociais tão essenciais na nossa época quanto contar com o pão (ou tortillas), leite ou frijoles.

A reprodução dos trabalhadores – que inclui as novas gerações, razão por que se deve contemplar no seu valor a família operária – não pode ser calculada como a soma de um montante determinado de calorias, proteínas e vitaminas que se encontrem em quaisquer bens, o que implicaria conside-rar a reprodução fisiológica como quem dá de comer a um animal de carga.

Existem elementos históricos e morais que não podem ser deixados de lado, elementos que fazem com que essas calorias, vitaminas e proteí-nas não possam ser calculadas com base em qualquer alimento, mas sobre aqueles que fazem parte da cultura e da história alimentar de um povo.

O desenvolvimento material da sociedade e a generalização de novos bens vão transformando estes em bens necessários em épocas determina-das. Por isso, não há nada de estranho no fato de que, nas periferias urbanas pobres, multipliquem-se as antenas de televisão, apesar de que os seus habi-tantes não contem com alimentos básicos. O que deve surpreender não são as antenas, mas que, nesse grau de desenvolvimento social, existam pessoas que não possam contar com os bens materiais básicos, próprios da época em que vivem, e satisfazer ao mesmo tempo o resto de suas necessidades de maneira suficiente.

O aumento do número de bens necessários que o desenvolvimento histórico propicia pressiona no sentido da elevação do valor da força de tra-balho. Mas o aumento da produtividade e o barateamento dos bens indis-pensáveis em geral atuam em sentido contrário, com o que o valor da força de trabalho se veja permanentemente pressionado por essas duas forças.

4.2. A luta de classes e o valorÉ sobre as bases objetivas que definem o valor da força de trabalho

que pode ser entendido o papel do desenvolvimento da luta de classes na determinação dos salários, tal como são a mais-valia e a sua transfiguração em lucro e lucro médio na concorrência os elementos fundamentais para compreender a disputa entre capitais. Definitivamente, não é a luta de clas-ses que determina o valor, mas é este que define o eixo em torno do qual se desenvolverá a luta de classes.

Visto em uma perspectiva geral, o problema que Marx procura resolver é a definição das bases objetivas que explicam a luta de classes no capitalismo, e não, ao contrário, que a luta de classes explique os problemas que devem ser investigados. Por este último caminho, ficamos presos em um beco sem saída: a luta de classes acabaria por explicar tudo; mas o que explica a luta de classes? Quais são as suas determinações no capitalismo?

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A partir disso, podemos entender o erro de quem sustenta que uma diminuição nos salários, qualquer que seja a forma, implicaria uma dimi-nuição do valor da força de trabalho.23

Vimos que somente pela via de aumentos na produtividade dos bens de salário e pela diminuição do valor e dos preços desses bens é que se pode alcançar uma diminuição do valor da força de trabalho, em proporção ao peso desses bens naquele valor. Mas uma diminuição salarial propiciada por outros efeitos (como pela força alcançada pelo capital na luta de classes, o que permite a ele “impor” diminuições salariais), somente esta nos pode esclarecer sobre as condições através das quais o capital acaba violando o valor da força de trabalho.

Se a produtividade do trabalho é mais elevada nos países imperialistas (ou centrais),24 é lógico supor que ela também se estende aos ramos pro-

dutores de bens de salário, com os quais o valor da força de trabalho e os salários nesses países e regiões precisam ser mais baixos do que nos países dependentes. O curioso é que ocorre exatamente o contrário. Isso seria ex-plicado porque a luta de classes é mais exacerbada nos primeiros do que nos segundos? Certamente, como já afirmamos em páginas anteriores, a resposta não pode ser encontrada nesse nível.

5. Diversas modalidades do capitalismoNos países e regiões imperiais, o capital se reproduz de uma maneira

particular. Em um determinado momento do seu desenvolvimento, eles deverão incorporar de maneira ativa os trabalhadores na realização, isto é, gerarão uma modalidade de capitalismo em que uma parte substantiva da sua produção se dirige ao mercado interno e os assalariados desempenham um papel relevante. Isso ocorre não porque os capitalistas do mundo cen-tral são mais civilizados ou tenham mais ética no momento de tomar essas decisões. O problema, nesse nível, remete ao fato de que eles precisavam do mercado interno para a enorme produção que a elevação da produtividade gerava, razão por que deveriam criar as condições para aumentar a explo-ração e, ao mesmo tempo, elevar o consumo dos assalariados. Isso pode ser obtido pela via da elevação da produtividade do trabalho em geral e, a partir daí, baratear os bens de salário em particular, com o que se reduz o tempo de trabalho necessário e se amplia o tempo de produção de mais-valia.

Essa transformação no capitalismo central foi marcada por revoluções tecnológicas que cresceram no seu seio – processo que exigiu acumulações em que não são alheias as transferências de metais preciosos da periferia para o centro –, assim como pela ativa incorporação da América Latina no mercado mundial como região produtora de alimentos, o que barateou ele-mentos do capital variável e incidiu na redução do tempo de trabalho neces-sário nas economias centrais, no momento em que as exportações regionais de matérias-primas operavam no sentido de baratear o capital constante.

Dessa forma, a América Latina ajudou para que o capitalismo cen-tral conseguisse resolver a equação de elevar a taxa de exploração acom-panhada de uma elevação dos salários; resolver problemas de realização,

23 Como sustenta Valenzuela Feijóo, quando indica: “O que acontece quando, por exemplo, o salário real tende a cair? (...) Devemos falar aqui de superexploração? Na nossa opinião, não devemos fazer isso. O que de fato cabe é falar de uma diminuição no valor da força de trabalho, de uma redefinição para baixo, e pela via da redução salarial, desse valor.” Op. cit. p. 113 (último grifo meu). Em Marx, o caminho vai na direção contrária daquilo que Valenzuela Feijóo postu-la. Não é o salário que é o critério para determinar o valor. Caso fosse assim, não se entenderia todo o trabalho de Marx para ir além do mundo imediato (o mundo onde os valores transfigu-ram os preços e o valor da força de trabalho em salário) e o seu aprofundamento na tarefa de precisar uma teoria do valor. Aquilo não somente não tem nada a ver com Marx, nem sequer com a economia clássica pré-marxista.24 Velenzuela Feijóo aqui se equivoca novamente, afirmando que Marini sustentava o contrário (Op. cit. p. 109). Sua base é uma frase isolada, tirada do post scriptum que acompanha a Dialética da dependência, que diz, considerando as outras linhas, que “a superexploração não correspon-de a uma sobrevivência de modos primitivos de acumulação de capital, mas é inerente a esta e cresce proporcionalmente ao desenvolvimento da força produtiva de trabalho” (Dialética da dependência, p. 98). A frase está inscrita na discussão de Marini com F. H. Cardoso, que pos-tula que a superexploração se identifica com a mais-valia absoluta, ao passo que o capitalismo industrial se sustenta na mais-valia relativa, “por mais importante que seja (a) importância histórica [da superexploração], ela carece de interesse teórico” (V, p. 92). Nesse quadro, Marini argumenta que, particularmente no capitalismo dependente, as fórmulas da mais-valia relativa propiciam superexploração, ao favorecer a produtividade e a intensificação do trabalho. Nisso segue Marx, que afirma que a intensidade do trabalho permite impor “um desgaste maior de trabalho durante o mesmo tempo”, “tapando mais densamente os poros do tempo de trabalho” (Marx. O capital. t. 1, p. 336-337). Basta ler o conjunto da Dialética da dependência para cons-tatar a descontextualização que Valenzuela Feijóo realiza da posição de Marini. Tampouco se entende que um pesquisador sério, apoiado em fórmulas que não acabam por tapar os erros teóricos, festeje sua “descoberta” de que “os Estados Unidos é uma economia dependente e a Nicarágua uma potência dominante” (Ibid. p. 112).

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ampliando o seu mercado interno com a incorporação crescente da sua população trabalhadora ao mercado; e contrabalançar as tendências de queda da taxa de lucro.

Nesse marco estrutural é que se dá a luta de classes nessas regiões, ao que se deveria acrescentar a permanente transferência de recursos das regiões dependentes para o mundo central, processo que apresenta moda-lidades diversas em diferentes momentos históricos.

Como bem assinala Marini, enquanto a inserção da América Latina no mercado mundial no século XIX concorreu para gerar os efeitos antes referidos no mundo central, os seus resultados no interior da região foram diametralmente distintos (Dialética da dependência, p. 23 e segs.). A contar a partir da etapa colonial, com uma economia voltada para o mercado ex-terno, processo que se aprofunda depois dos processos de independência e com maior força na segunda metade do século XIX (conformando-se ao padrão ou ao modelo agromineiro exportador), o capital latino-americano contou com todas as condições objetivas para aguçar ao máximo a tensão que o capital enfrenta de procurar explorar ao máximo os trabalhadores, no momento da produção, e esperar que contem com salários suficientes no momento em que esses produtores, na segunda fase da circulação, transfor-mam-se em consumidores para participar na realização da mais-valia.

Aqui já se fazia presente um primeiro fator objetivo para colocar em marcha os mecanismos da superexploração. Os trabalhadores locais não constituíam um fator fundamental na realização, já que o grosso da produ-ção era destinado a outros mercados, situados preferencialmente na Euro-pa e nos Estados Unidos.

A esse primeiro fator se junta um outro: as transferências de valores e o intercâmbio desigual entre essas e aquelas economias, dada a diferença de produtividade (sobre isso e além disso, a diferença de força no mercado mundial), procuraram ser compensados pelo capital nas economias depen-dentes, pelo fácil expediente de se apropriar de parte do “fundo de consu-mo” dos assalariados e transformá-lo em “fundo de acumulação”. Com isso, faziam-se presentes as condições objetivas para criar uma modalidade de capitalismo, o dependente, que acaba fazendo da superexploração um mo-

tor fundamental da sua reprodução, processo que termina se expressando na fratura de seu ciclo do capital, ao criar um aparato produtivo que se distancia das necessidades de consumo da população trabalhadora.

É sobre essas bases estruturais que se desenvolve a luta de classes na região e a partir do que se pode interpretar os diversos projetos (ou pa-drões) de reprodução presentes na história posterior da América Latina, os quais se reorientam em alguma medida nos primeiros passos do chama-do modelo de industrialização, com a gestação de ramos que privilegiam o mercado interno e a fraca incorporação de assalariados a esse mercado (em um mercado mundial tresloucado e em crise pelos efeitos da Primeira Guerra, da crise de 1929 e da Segunda Guerra), para voltar a se aguçar a ruptura nas últimas décadas do projeto industrializador, até chegar a nos-sos dias, com a gestação de um padrão de reprodução que tende a privile-giar os mercados externos e o alto mercado interno, com o que se volta a reiterar, sob novas condições, a brutal fratura entre o que se produz e para quem e as necessidades do grosso da população local.25

Diante dessa situação, não é difícil entender o mal-estar de certos crí-ticos, que quiseram ver um capitalismo mais civilizado ou menos selvagem no mundo dependente e na América Latina em particular, ou que acredi-taram ser possível que este se pudesse fazer presente em algum futuro não distante.26 Mas aí os desejos se chocam com a realidade.

25 Esses são os temas centrais abordados no ponto 1 (Integração ao mercado mundial) e 2 (O segredo do intercâmbio desigual) de Dialética da dependência. Este último ponto Valenzuela qualifica como “uma confusão teórica descomunal”, a qual “mais vale esquecer”, já que é “im-possível [dela] se desenredar”. Curiosa forma de discutir: o que não se entende se desqualifica. Bastaria voltar à discussão de Cardoso-Serra com Marini, citada na nota 7, na qual se encontra uma extensa critica e réplica esclarecedora sobre o tema. Mas se compreendem as desqualifi-cações quando Valenzuela Feijóo afirma que o pesquisador só deve “recolher” dados, estabe-lecer “médias ponderadas”, constatar a queda de salários e com essas coisas dar como certa a diminuição do valor da força de trabalho. Dados estão dados, basta apenas “recolhê-los”. Além disso, com algumas sofisticações estatísticas, os problemas ficam resolvidos. Tudo soa como um empirismo de extrema ingenuidade. Estranho em um pesquisador que teoriza e conta com uma sólida formação, não somente em economia política.26 As formulações de F. H. Cardoso e J. Serra se situam claramente nessa perspectiva (Op. cit.). Suas práticas nas tarefas governamentais que realizam no Brasil anos depois (o primeiro como presidente e o segundo como secretário de Fazenda) acabam por confirma o que foi dito.

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Pensar que os capitalistas que dominaram esses processos na América Latina poderiam ter atuado de maneira diferente daquilo que aqui foi resu-mido é esquecer as determinações objetivas nas quais se registram as ações das classes. Por que não iniciaram processos de industrialização no sécu-lo XIX? Por que não levaram a cabo revoluções industriais e posteriores gastos na busca de inovações tecnológicas? Por que não incorporaram os trabalhadores no consumo e ampliaram o mercado interno por intermédio de melhores salários?

Se não o fizeram e continuam não fazendo, não foi porque foram (ou sejam) menos civilizados do que seus pares nos Estados Unidos e na Europa. Não foi porque desconhecessem (e porque desconheçam) os fundamentos da economia e as teorias do desenvolvimento. Eles agiram e agem na racionalidade que a lógica da reprodução do capital impõe em circunstâncias determinadas.

Ao contar com mercados externos para a produção de banana, açúcar, salitre ou estanho, não havia elementos que os levassem a inventar ou criar indústrias no século XIX. Se naqueles mercados resolviam a venda prin-cipal dos seus produtos, o que poderia impulsioná-los a produzir outros bens de salário para ampliar o mercado interno? Se seus trabalhadores não participavam de maneira fundamental na realização, a título de que – que não sejam pressupostos imperativos morais e religiosos – iriam elevar os salários?

Se transferirmos essas perguntas para a situação atual, as respostas caminharão na mesma direção.

6. A título de conclusão: superexploração e totalidadeNos esforços para tentar explicar o atraso e o subdesenvolvimento

latino-americano, as correntes dos mais variados matizes coincidem em um aspecto: elas oferecem elementos dispersos que jamais terminam por se integrar em qualquer esquema explicativo.

A lista de fatores dessas diversas correntes que caracterizam e/ou pro-piciam o subdesenvolvimento pode ser grande: fraco crescimento, falta de eqüidade, polarização social, baixos salários, enorme população excedente,

27 Muitos desses elementos se fazem presentes nos “diagnósticos” de organismos internacionais, como a nova Cepal, aderida ao pensamento neo-estrutural.

elevados níveis de pobreza e miséria, insuficiente capacitação dos recursos humanos, mercados internos fracos, pobre desenvolvimento tecnológico, ausência de empresários empreendedores, investimentos insuficientes, he-terogeneidades estruturais, ausência de profundas reformas no campo, falta de integração produtiva, carência de instituições sólidas, corrupção etc.27

Em geral, nas visões que recolhem um ou vários elementos antes anunciados, nunca aparecem os fatores que explicam as razões do porquê a América Latina apresentar essa (ou outras) característica. Muito menos os processos que poderiam reverter o que se considera como tendências an-tidesenvolvimento. No fundo, nada disso pode ser alcançado, porque esses diagnósticos apresentam uma aguda carência de explicações teóricas, que primeiro dêem conta do que existe e depois se perguntem – a partir das tendências que predominam e do que ocorre – como modificar o estado de coisas dominante.

A ausência de teorizações é suprida, em geral, com a transferência me-cânica de algum modelo de desenvolvimento construído a partir da expe-riência de um ou vários países centrais e/ou alguns países “emergentes”, e a partir daí são constatados os “desvios”, as “distorções” ou as “insuficiências”. Desse ponto de vista, tudo se reduz a enquadrar a realidade ao modelo pro-posto. Mas, como a realidade se comporta com outras lógicas, pior para a realidade, a fim de que o modelo – geralmente acompanhado de fórmulas mais ou menos sofisticadas – esteja lógica e racionalmente construído.

No marxismo as coisas não caminham melhor. Ou são repetidas fór-mulas em um nível de generalidade válidas para toda a economia capitalista em algum momento, como debilidades ou crises na acumulação, quedas da taxa de lucro, desproporção entre os setores etc., ou a lista dos elementos se faz com linguagem “marxista”: fraco desenvolvimento das forças produti-vas, baixa composição orgânica do capital e baixa produtividade, redução de salários, aumento do pólo da riqueza diante do pólo da miséria, expansão do exército industrial de reserva etc. As razões do porquê esses processos

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e fenômenos se apresentam brilham por sua ausência. Muito mais a in-tegração delas em um esquema que não seja a repetição do que O capital estabelece. A “teoria”, assim concebida, nunca termina por se integrar com a realidade que ela tenta explicar.

A partir da proposta teórica formulada por Martini na Dialética da dependência, que gira em torno da noção de superexploração, o processo histórico que deu vida à forma particular de reprodução do capital no ca-pitalismo dependente alcança um nível de integração que outros esquemas interpretativos não alcançaram, permitindo-nos compreender os seus mo-vimentos e períodos, à luz das tendências presentes no sistema capitalista mundial, como, de maneira resumida, esboçamos nas páginas anteriores.

Diante do desarme teórico e da especialização fragmentária que pre-valece nas escolas, nas faculdades e nos centros de pesquisa de economia e das ciências sociais em geral, alimentadas pelo auge de vertentes neoclás-sicas e neo-estruturais, a proposta teórica e metodológica da Dialética da dependência caminha na contracorrente. Seu radicalismo é somente a re-construção, no plano do conhecimento, de uma realidade obstinadamente radical.

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A superexploração do trabalho e a economia política da dependência

Carlos Eduardo Martins*

O conceito de superexploração do trabalho foi estabelecido por Ruy Mauro Marini, no final dos anos 1960 e na década de 1970, em um conjunto de trabalhos, dentre os quais Dialética da dependência (1973) é a expressão clássica e concentrada.1 Tal conceito constitui um dos principais pilares da teoria marxista da dependência. Todavia, devido ao caráter paradigmático do aporte de Marini e à relativa dispersão de suas contribuições em livros, artigos ou trabalhos de circulação restrita, torna-se necessário um aprofun-damento da teoria da superexploração, uma vez que, como afirmava Mari-ni, Dialética da dependência (1973) não pretendia mais do que introduzir o tema, ainda que tenha lançado suas bases de forma definitiva.2

* Nascido em 1965, é doutor em Sociologia pela USP. Professor do Departamento de Ciência Política/UFF, pesquisador da Reggen e membro do Grupo de Estudos sobre Estados Unidos (Clacso). Autor de dezenas de artigos, colaborador e organizador de diversos livros. Ganhador dos Prêmios Jabutis de livro do ano e de ciências humanas em 2007 pela coordenação e autoria de Latino-americana: enciclopédia contemporânea de América Latina e do Caribe. 1 Esse conceito começa a se esboçar em Subdesarrollo y revolución (1968), adquire uma forma mais sistemática em Dialética de la dependencia (1973) e continua a se desenvolver em Las razones del neodesarrollismo (1978), Plúsvalia extraordinária y acumulación de capital (1979) e El ciclo del capital en la economía dependiente (1979). Posteriormente, nos anos 1990, Marini o retoma à luz das transformações do capitalismo globalizado, principalmente através do artigo “Proceso y tendencias de la globalización capitalista” (1995).2 “Dialéctica de la dependencia não pretende ser senão isto: uma introdução à temática de inves-tigação que me vem ocupando e às linhas gerais que me orientam este trabalho. Sua publicação obedece ao propósito de adiantar algumas das conclusões a que tenho chegado, suscetíveis talvez de contribuir ao esforço de outros que se dedicam ao estudo das leis de desenvolvimento do capitalismo dependente, assim como ao desejo de dar-me a mim mesmo a oportunidade de contemplar no seu conjunto o terreno que busco desbravar” (Marini, 1973, p. 81).

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Neste artigo, tentaremos sintetizar os principais resultados teóricos alcançados por Ruy Mauro Marini na elaboração do conceito de superex-ploração, enfatizando sua relação com a gênese da acumulação capitalista. Buscamos contribuir para o avanço do estado da arte da teoria mediante a formalização matemática e quantitativa do conceito. Essa formalização permite visualizar as condições concretas em que se desenvolve a super-exploração e ilumina a pertinência da contribuição do autor ao campo marxista da teoria do valor. Seguimos, assim, as indicações de Cristóbal Kay (1989) que, em seu livro clássico sobre o pensamento social latino-americano, afirma que a formalização do conceito de superexploração é um complemento necessário à obra de Ruy Mauro Marini.3 Ao final, desta-camos o novo alcance histórico que assume esse conceito a partir do desen-volvimento da globalização neoliberal no sistema mundial. A análise dessa fase apenas chegou a ser esboçada nos escritos do autor.

Desde a sua formulação, esse conceito vem despertando intensas po-lêmicas. Não é nossa intenção, neste momento, retomá-las de forma mais ampla, tarefa que, em parte, realizamos em outros trabalhos (Martins, 2003, 2006-A e 2006-B). Mas a elas faremos referência no que for indispensável para a elucidar e desenvolver o enfoque de Marini.

1. Superexploração e a acumulação de capitalRuy Mauro Marini afirma, em Dialética da dependência (1973), que o

regime capitalista de produção desenvolve duas grandes formas de explora-ção, que seriam o aumento da força produtiva do trabalho e a maior explo-ração do trabalhador. O aumento da força produtiva do trabalho ocorreria quando, no mesmo tempo e com o mesmo gasto de força de trabalho, hou-vesse maior quantidade de mercadorias produzidas. Já a maior exploração do trabalhador se caracterizaria por três processos, que poderiam atuar de forma conjugada ou isolada: o aumento da jornada de trabalho, a maior

intensidade de trabalho e a redução do fundo de consumo do trabalhador (Marini, 1973, p. 95-96).4

A maior exploração do trabalho, embora caracterizasse as formas da acumulação em situações de baixo desenvolvimento tecnológico, não se resumiria a esse cenário, expandindo-se durante a evolução tecnológica do modo de produção capitalista. Segundo Marini, essas duas grandes formas de exploração tenderiam a se combinar durante o desenvolvimento capi-talista, produzindo economias nacionais com maior incidência de uma ou outra. Ao predomínio da maior exploração do trabalho corresponderia, pre-cisamente, a superexploração do trabalho.5 Mas, antes de identificarmos as condições que levam ao protagonismo da maior exploração do trabalho, vejamos mais em detalhe o porquê de esta se vincular ao aumento da força produtiva do trabalho.

As razões para que essas formas de exploração se articulem no regi-me capitalista de produção e na economia mundial que o desenvolve são estabelecidas no conjunto da obra de Marini e encontram a mais rica ela-boração em seu artigo “Mais-valia extraordinária e acumulação de capital” (1979), considerado pelo autor um complemento indispensável à Dialética da dependência (Marini, 1990, p. 43). Como fundamentos dessa tendência à combinação, podemos mencionar:

a) O aumento da produtividade do trabalho, que, ao reduzir o tempo necessário para a produção de uma certa massa de mercadorias, permite ao capital exigir a expansão do trabalho excedente do operário, combinando a

3 Ao mencionar a obra de Marini, Kay assinala: “Sua análise poderia ter ganho maior precisão e clareza se ele tivesse usado as formulações algébricas de Marx e suas notações, do que se re-pousasse exclusivamente em palavras” (Kay, 1989, p. 243).

4 A maior exploração do trabalhador, mediante os três processos assinalados, significaria um maior desgaste de sua força de trabalho, que se reproduziria apenas parcialmente, esgotando prematuramente sua capacidade produtiva ou impedindo a sua conservação em estado normal: “Nos três mecanismos considerados, a característica essencial está dada pelo fato de que se negam ao trabalhador as condições necessárias para repor o desgaste de sua força de trabalho: nos dois primeiros casos, porque se lhe obriga a um dispêndio de força de trabalho superior ao que deveria proporcionar normalmente, provocando assim seu esgotamento prematuro; no último, porque se lhe retira inclusive a possibilidade de consumir o estritamente indispensável para conservar sua força de trabalho em estado normal” (Marini, 1973, p. 41-42).5 “A superexploração do trabalho não corresponde a uma sobrevivência de modos primitivos de acumulação de capital, mas é inerente a esta e cresce correlativamente ao desenvolvimento da força produtiva do trabalho” (Marini, 1973, p. 98).

A superexploração do trabalho e a economia política da dependência

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maior produtividade com a maior exploração do trabalho. Marini assinala, ainda, que a elevação da produtividade do trabalho impulsiona o aumen-to da intensidade de trabalho e conduz à maior exploração do trabalho e desgaste da força de trabalho, caso a extensão da jornada não seja redu-zida. Nos países centrais, a rigidez apresentada pela jornada de trabalho desde várias décadas indica que a maior exploração do trabalho, longe de representar uma etapa pretérita, acompanha a elevação da produtividade (Marini, 1973, p. 96-97).

b) A distinção que realiza entre produtividade e mais-valia relativa, afirmando que o aumento da produtividade cria apenas mais produtos ao mesmo tempo, e não mais valor para o capitalista individual. O aumento da produtividade se expressaria em uma mais-valia extraordinária, ao per-miti-lo reduzir o valor individual das mercadorias e manter o seu valor so-cial, resultando na apropriação por esse capitalista de uma maior massa de mais-valia e na queda das taxas de mais-valia e da taxa de lucro dos outros capitalistas, por manter-se constante a massa de mais-valia no ramo. A ge-neralização do aumento de produtividade no ramo suprimiria essa alteração na repartição do valor, expandindo a massa global de produtos sem elevar a massa de valor. O resultado disso seria a queda da massa de mais-valia no ramo, pois uma parte dela seria absorvida pelo aumento da composição orgânica do capital que a generalização do aumento de produtividade esta-belece. A única possibilidade de burlar essa queda e sustentar a mais-valia extraordinária, afirmará Marini mais adiante, será mediante a sua extensão e deslocamento do interior do ramo produtivo para as relações intersetoriais.

O aumento da produtividade apenas geraria mais-valia relativa quan-do a elevação da produtividade atingisse o setor que produz bens-salário, implicando a desvalorização da força de trabalho e o aumento do tempo de trabalho excedente.

c) O desenvolvimento em “Mais-valia extraordinária e acumulação de capital” (1979) dos argumentos anteriores (a e b) apresentados em Dia-lética da dependência. Nesse artigo, Marini assinala que o progresso técni-co somente é introduzido pelo capital individual e que a sua liderança em âmbito setorial cabe ao setor produtor de bens de consumo suntuário e aos

segmentos do setor I que para ele produzem. Essa análise é desenvolvida a partir de uma profunda releitura dos esquemas de reprodução capitalista de Marx, em que introduz o progresso técnico no seu funcionamento.6

De acordo com Marini, o subsetor IIa (que produz bens-salário) e o setor I (que produz insumos para esse) não são capazes de sustentar a generalização do progresso técnico no ramo, pois a conservação da mas-sa de valor representada pelo capital variável entra em contradição com o progresso técnico e/ou com a elevação da intensidade do trabalho, neces-sários para a obtenção da mais-valia extraordinária no ramo. As mercado-rias constituídas de bens-salário, ao manterem o seu valor social apesar da redução do valor individual, não encontram demanda para sua realização, pois se expressam em uma maior massa física de produtos.

Já o setor IIb e os segmentos do setor I, que produzem direta ou in-diretamente bens suntuários, podem sustentar, até certo ponto, a gene-ralização do progresso técnico e da intensidade do trabalho na busca de mais-valia extraordinária. A perda da participação relativa do capital va-riável na estrutura produtiva, gerada pelo aumento da produtividade ou da intensidade do trabalho, forneceria a demanda para a maior oferta de produtos suntuários.7

6 Marx, no livro II de O capital, demonstra que a reprodução do capital depende da proporcionalidade entre os valores de uso e de troca que são intercambiados pelos setores dedicados à produção de meios de consumo e de meios de produção. A reprodução ampliada do capital exige como condição para a sua realização que a soma de valores, representada pelo capital variável e as mais-valias, acumulada e improdutiva do setor que se dedica à geração de meios de produção, equivalha ao capital constante e à mais-valia acumulada do setor produtor de bens de consumo.Mediante os esquemas de reprodução, Marx busca determinar as condições de equilíbrio que permitem ao capital se reproduzir em sua totalidade, articulando os ciclos dos capitais produtivo, mercantil e financeiro. A introdução da noção de equilíbrio foi a razão pela qual se desatou uma ampla polêmica, na qual alguns procuraram ver nos esquemas uma contradição com o livro I, em que o autor postula a vinculação entre o capital e o progresso tecnológico a partir de desequilíbrios provocados pela mais-valia extraordinária. A contribuição de Marini enfatiza a compatibilidade entre os esquemas de reprodução e o progresso técnico, destacando que são níveis de análise, não apenas compatíveis, mas articulados do processo de acumulação de capital. Ele afirma que é possível haver equilíbrio entre o setores I e II e, simultaneamente, mais-valia extraordinária e elevação do progresso tecnológico, como veremos.7 “Estabeleçamos algumas premissas essenciais. A demanda se encontra estruturada diretamente por relações de distribuição, as quais, ainda que determinadas pela produção, como vimos,

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d) O nivelamento das taxas de lucro entre os ramos produtivos.8 Esse nivelamento tenderia a ocorrer quando a expansão da acumulação em IIb e o segmento de I correlato atingissem uma tal intensidade, que a oferta de mercadorias do setor IIa e I produtor de capital circulante9 não conseguisse manter-se à altura da procura em IIb e I. Isso porque a concentração da produtividade em IIb e I criaria uma situação em que, de um lado, o aumento da composição orgânica do capital nesses subsetores exigiria escalas de produção crescentes, que se manifestariam no aumento mais que proporcional de seu consumo de matérias-primas, na crescente intercambiabilidade tecnológica e no aumento de seu consumo de força

de trabalho.10 De outro lado, a capacidade do segmento IIa e I, produtor de capital circulante, de proporcionar os insumos materiais para IIb e I, produtor de capital fixo, é limitada pelos crescentes diferenciais de produti-vidade que vão se desenvolvendo entre esses subsetores. Em conseqüência, esgota-se, a médio e longo prazo, a ampliação da circulação de mercadorias pela via da extensão da divisão nacional e internacional do trabalho, o que permite aumentar a massa física de produtos destinadas ao subsetor IIb e à produção de capital fixo sem reduzir-se o diferencial de produtividade em face deles. Então, apenas o nivelamento das taxas de lucro e a transferência tecnológica correlata de IIb e I, produtor de capital fixo, para IIa e I, produ-tor de capital circulante, permitem romper com a queda das taxas de mais-valia e de lucro nos primeiros subsetores (ao desvalorizarem e depreciarem os insumos fornecidos por IIa e I correlato), elevando as taxas globais de mais-valia e de lucro do capital em geral. Mas também realizam uma sig-nificativa transferência da massa de mais-valia para os segmentos IIb e I, produtor de capital fixo, o que tende a eliminar cada vez mais a autonomia de um segmento produtor de capital fixo exclusivo ao subsetor IIa. O ni-velamento das taxas de lucro se estabelece segundo uma lógica geral que responde às necessidades de concentração de mais-valia nos segmentos IIb e I correspondente para atender à valorização de sua maior composição técnica e orgânica. Esse nivelamento não elimina as restrições produzidas à expansão do consumo popular pelos segmentos que impõem a mais valia extraordinária intersetorial. Antes pelo contrário. Atende aos seus condi-cionamentos e demandas de valorização, produzindo os insumos necessá-rios para o consumo de capital circulante e de bens-salários que resulta de sua liderança no processo de acumulação.

Todo esse processo de acumulação de capital, descrito por Marini, que parte: da mais-valia extraordinária introduzida pelo capitalista indi-vidual (de maior composição técnica e orgânica do capital); de sua fixação nos ramos ligados ao consumo suntuário em detrimento dos dedicados

repercutem sobre esta, desde o momento em que se transformam em determinações da demanda, com o que sobredeterminam a produção de valor e mais-valia (...). Verifiquemos agora como as mudanças na produção afetam as relações intersetoriais em nível de mercado, partindo de uma situação de equilíbrio (...). Consideremos o setor IIa. O aumento da mais-valia ali verificado se acompanha, como sabemos, de uma massa maior de mercadorias. Se não se modifica o valor individual destas, não se pode aumentar a sua demanda por parte de I e IIb, já que v se mantém ali constante; mas sim, caso se reduza relativamente a demanda criada por IIa, pela redução da participação de v em seu produto (ainda que mantenha seu valor absoluto). (...) Assim, do ponto de vista do mercado, IIa – ainda menos que I – não está em condições de realizar sustentadamente um lucro extraordinário.Suponhamos agora que aumente a mais-valia e o produto mercantil em IIb. Este pode manter o princípio do valor individual de suas mercadorias, pelo fato de que a demanda para estas deriva exclusivamente da mais-valia, a qual se encontra aumentada. Este pode manter, em princípio, o valor individual de suas mercadorias, pelo fato de que a demanda para estas deriva exclusivamente da mais-valia,, a qual se encontra aumentada pela mudança da relação básica de distribuição no próprio setor, o que confere uma maior elasticidade à demanda para os produtos de Iib” (Marini, 1979b, p. 28-29).8 Em Dialética da dependência (1973), o nivelamento das taxas de lucro é o principal fundamen-to para a combinação da maior exploração do trabalho com a maior produtividade do trabalho. Ele permite deslocar o intercâmbio da regulação pelo valor para a sua determinação pelos pre-ços de produção, o que implica desvios de preço em relação à quantidade de trabalho abstrato que são determinados pelos diferenciais de produtividade do trabalho entre capitais de distinta composição orgânica e técnica. Tal temática é desenvolvida e ampliada em Mais-valia extraor-dinária e acumulação de capital (1979) e em O ciclo do capital na economia dependente (1979).9 O subsetor I produtor de capital circulante tenderia a se situar como um segmento apenas parcialmente vinculado à mais-valia extraordinária produzida nos subsetores IIb e I produtor de capital fixo para este. O segmento produtor de capital circulante gera os insumos energéticos de ampla aplicação e os insumos materiais passíveis das mais vastas transformações produtivas, produzindo bens que indiretamente entram no consumo da força de trabalho. Entretanto, a aplicação da revolução científico-técnica à natureza permite um crescente nível de diferencia-ção e de agregação das matérias-primas, impulsionando sua especificação setorial e suntuária.

10 Esse aumento é necessário para que o capital domine os elementos materiais de um processo de trabalho que aprofunda cada vez mais a sua composição técnica.

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ao consumo popular; da limitação do nivelamento das taxas de lucro às necessidades de valorização e consumo dos setores suntuários; até atingir um novo ciclo ampliado de fixação de mais-valia extraordinária em favor dos subsetores IIb e Ib, constitui o quadro teórico e conceitual de inscrição do conceito de superexploração, no âmbito da teoria do valor, como uma tendência dinâmica do capitalismo.11 O movimento de produção de mais-valia torna-se simultaneamente um movimento de apropriação de mais-valia, implicando desvios de preços em relação ao valor que resultam na depressão das taxas de lucro dos capitalistas individuais e subsetores desfa-vorecidos. Estes buscam, na fixação dos preços da força de trabalho abaixo de seu valor, os mecanismos de compensação e restauração da mais-valia que lhes foi apropriada por meio da concorrência. Estabelece-se a superex-ploração do trabalho, que significa o predomínio da maior exploração do trabalho sobre o aumento da capacidade produtiva do trabalhador como mecanismo de acumulação de mais-valia. Ela se expressa, como vimos, por três mecanismos: a extensão da jornada de trabalho ou da intensidade de trabalho, sem a correspondente elevação salarial; e a redução do fundo de consumo do trabalhador.12

Essas tendências enunciadas por Marini no plano da concorrência (itens b, c e d) podem ser lidas como absolutas ou hegemônicas do de-senvolvimento capitalista. As primeiras remeteriam à existência de uma economia capitalista pura, que realizasse suas tendências mais agudas de desenvolvimento, pois supõem a plena liderança dos segmentos IIb e I cor-respondentes na introdução do progresso técnico e a completa dependên-cia tecnológica dos subsetores IIa e I correspondentes.13 Como tendências hegemônicas, manifestam-se no fato de explicarem uma parte crescente e a maior parte do crescimento econômico.

A superexploração do trabalho se estabelece, a partir do desenvolvi-mento da produtividade do trabalho, naquelas empresas, ramos ou regiões capitalistas que sofrem depreciação do valor de suas mercadorias, em razão da introdução, em seu espaço de circulação, de progresso técnico realizado por outras empresas, ramos ou regiões. Isso ocorre quando a maior parte

11 Marini define duas grandes situações em que se desenvolve a apropriação de mais-valia que gera a superexploração. A primeira, desenvolvida em Dialética da dependência (1973), quando os preços de produção se afirmam na economia mundial e deslocam as relações de troca do intercâmbio com base no valor, reduzindo os preços dos segmentos exportadores da periferia para fixá-los segundo o nivelamento das taxas de lucro internacionais, o que beneficia os capi-tais de maior composição técnica e menor taxa de lucro. A segunda, desenvolvida, sobretudo, em Mais-valia extraordinária e acumulação de capital (1979), quando a superexploração é de-terminada a partir da mais-valia extraordinária e sua atuação entre os diversos setores produti-vos, nivelando os preços no conjunto da economia de acordo com a produtividade.12 Marini segue rigorosamente o pensamento de Marx e desenvolve o grau de elaboração da economia política marxista. Na obra deste autor, o progresso técnico não tem relação necessária com a mais-valia relativa. Ela não é o objetivo do capitalista que introduz a inovação tecnológica e só se estabelece quando o aumento da produtividade ou da intensidade do trabalho se generaliza no setor que produz bens de consumo, conduzindo a uma redução do valor da força de trabalho. O que impulsiona o capitalista a introduzir a tecnologia é a concorrência, e a obtenção de mais-valia extraordinária torna-se seu objetivo central por lhe permitir uma posição favorável no jogo competitivo.O predomínio da mais-valia relativa na regulação da força de trabalho dos países centrais não foi, portanto, um resultado direto da inovação tecnológica. Foi uma construção histórica, e desde os anos 1970, tem sido questionada em favor da superexploração. Essa construção se

explica, entretanto, por três fatores principais: a) a constituição do sistema mundial que faz parte da gênese do capitalismo histórico e atua para transferir excedentes da periferia e semi-periferia aos países centrais e limitar a ação depressiva exercida pelo setor de bens de consumo suntuário sobre o consumo popular; b) o relativo equilíbrio tecnológico entre os subsetores a e b, que permite aos segmentos dedicados aos bens de consumo reagir à introdução de inovações ligadas aos bens suntuários, quando da convergência entre a disponibilidade de tecnologias e de demanda interna; c) a luta dos trabalhadores dos países centrais, desde os anos 1840, para elevar sua renda e estabelecer sua cidadania, aproveitando as possibilidades estruturais do capi-talismo dos países centrais. O resultado foi o impulsionamento do progresso tecnológico junto aos segmentos de bens de consumo, que, ao atenderem a um mercado mais amplo, impulsio-naram as escalas tecnológicas e direcionaram para si o subsetor mais dinâmico do capital fixo. Essa análise é confirmada pelas estatísticas fornecidas por Wallerstein sobre salários reais na Inglaterra (Wallerstein, 1979, p. 111). Segundo o autor, o salário de um carpinteiro inglês medi-do em quilogramas de trigo cai de um índice de 143,5 em 1451-1500 para 94,5 em 1801-1850. Apesar de a Revolução Industrial se desenvolver desde fins do século XVIII, é apenas a partir da segunda metade do século XIX, quando a abolição da lei dos cereais impulsiona a especia-lização na economia mundial e Índia e China se integram efetivamente à divisão internacional do trabalho, que os salários dos trabalhadores mudam a inflexão para baixo que vinham desen-volvendo secularmente.Como veremos, em maior detalhe, a ruptura desse equilíbrio relativo interno entre as frações burguesas dos países centrais em conseqüência da própria concentração monopólica que resul-ta do desenvolvimento tecnológico impulsiona a superexploração nessas regiões.13 As formas puras e absolutas devem ser tomadas apenas como indicativas pelo pensamento dialético, pois o seu compromisso com a história e o movimento impede que se aceite a plena realização desse absoluto.

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do crescimento da produtividade, nesse âmbito, origina-se de inovações tecnológicas externas – produzidas em outras empresas, setores ou regiões –, não podendo os primeiros compensar com a geração endógena de pro-gresso técnico o movimento de apropriação de mais-valia que sofrem.14

As inovações atuam sobre o trabalho aplicado nas condições da capa-cidade instalada, depreciando a massa de valor e de mais-valia produzida nesses segmentos, e exigem a depreciação do valor da força de trabalho como mecanismo de compensação para reequilibrar as taxas de mais-valia e de lucro.

É justamente a situação descrita que fundamenta o desenvolvimen-to dependente de uma região ou formação social; isto é, quando a maior parte do aumento da produtividade de seus capitais decorre de inovações tecnológicas produzidas pela acumulação capitalista de outros centros, ou quando, na ausência de dinamismo tecnológico interno, suas mercadorias sofrem somente a depreciação oriunda da concorrência estabelecida por inovações introduzidas em outros pólos.15

Nessa região, estabelece-se uma separação entre a expansão da cir-culação da massa de mercadorias ligadas às inovações tecnológicas e a circu-lação de mercadorias ligadas à reprodução da força de trabalho, que tende a se restringir. Desse modo, as inovações passam a vincular-se à produção de mercadorias que não se destinam à reprodução da força de trabalho (con-sumo suntuário nos próprios países dependentes ou consumo produtivo ou popular nos países centrais). Quando estas se associam à produção de mercadorias destinadas à reprodução da força de trabalho, o fazem margi-nalmente.16 Tal fato possui duas implicações:

a) As inovações tecnológicas introduzidas nos segmentos dinâmicos, ao não desvalorizarem a força de trabalho, não ampliam a taxa global de mais-valia da formação social em questão e desenvolvem a contradição en-tre o aumento da composição orgânica do capital e a redução da massa de mais-valia no conjunto da economia, tornando a superexploração neces-sária para que a taxa de lucro global seja preservada. A redução da massa de mais-valia no conjunto da economia dependente é função da inovação tecnológica, baseada na tecnologia estrangeira. De um lado, ela deteriora os termos de troca ao elevar a composição orgânica do capital, transferindo mais-valia para fora da região. De outro, altera internamente a repartição da massa de valia sem aumentá-la, ao gerar mais-valia extraordinária. Assim, deprecia a massa de mais-valia dos ramos produtivos que produzem para o conjunto da economia, gerando uma baixa na taxa geral de mais-valia e de lucro que se conjuga com a fixação da mais-valia extraordinária nos setores dinâmicos e dirigidos ao consumo não-popular.17

b) A baixa competitividade produzida pelo regime de acumulação fundado na superexploração do trabalho permite que as empresas estran-

14 Mais adiante, procuramos delimitar as condições específicas da concorrência capitalista em que um capital não consegue compensar, com o recurso à tecnologia, a apropriação de mais-valia que sofre.15 Na seção 3 fazemos uma demonstração detalhada desse ponto.16 Parte da literatura crítica à obra de Marini tem buscado mensurar certas modificações no consumo popular, vinculadas à industrialização e ao avanço tecnológico introduzido pelo ca-pital estrangeiro, para invalidar suas postulações. Em Las razones del neodesarrollismo (1978), Marini responde a parte dessas críticas. Todavia, é importante frisar que a esfera de realização da circulação é posterior à esfera da produção, e não anula suas determinações. Assim, pou-co importa que os trabalhadores passem a consumir novos produtos e realizem modificações

em seus gastos, pois isso não elimina os seguintes fatos: que a grande massa de mercadorias introduzidas por inovações de processo e produto destina-se ao consumo suntuário e não des-valoriza a força de trabalho; e que a circulação das mercadorias que compõem a reprodução da força de trabalho tende a se restringir, ainda que existam importantes contratendências à sua concreção. Entre elas podemos citar, no âmbito estrito da superexploração, o aumento da intensidade e da jornada de trabalho e a elevação da qualificação da força de trabalho sem o equivalente salarial, ou, de maneira mais independente, mas a ela vinculada, a ampliação do mercado de trabalho. Em suas reflexões sobre os níveis de consumo dos trabalhadores superexplorados, Marini não integrou, com toda a amplitude, as potencialidades da elevação da qualificação da força de trabalho, que, combinadas ao aumento da intensidade de trabalho, podem estabelecer uma im-portante contratendência à redução do fundo de consumo dos trabalhadores. Em razão disso, o autor desenvolveu, por vezes, uma visão bastante cética sobre as possibilidades de reprodução da força de trabalho superexplorada, manifesta, por exemplo, em algumas passagens do texto citado. Mas isso em nada afeta a estrutura de sua obra e de seus argumentos. Entretanto, as con-tratendências à restrição dos bens-salários, que se desenvolvem em certas conjunturas históri-cas, são provisórias. As tendências seculares do desenvolvimento do capitalismo apontam para o direcionamento da superexploração às suas formas mais graves, o que ganha plena concreção com a globalização neoliberal.17 Como vimos, só a desvalorização dos produtos que compõem o consumo do trabalhador aumenta a taxa de mais-valia.

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geiras, estabelecidas em formações sociais em que esse processo se estru-tura, mantenham altas taxas de remessas de capitais para suas regiões de origem, de onde parte e se organiza a circulação global e ampliada de seu capital, uma vez que sua liderança no processo local de acumulação é pou-co ameaçada. Essas remessas, que são realizadas através de diversos meca-nismos (pagamentos de juros e serviços do financiamento externo, envio de remessas de lucros, pagamentos de royalties, patentes e assistência téc-nica, prática de sobrepreços nas relações intrafirmas, pagamentos de fretes ou simplesmente deslocamento de capitais para regiões onde as condições macroeconômicas são mais seguras e atrativas), superam amplamente as entradas de capitais realizadas, resultando em significativo processo de ex-propriação de capitais e divisas.18

2. Dependência e superexploraçãoDe acordo com Theotonio dos Santos (1978 e 1991), a dependência

representa uma situação em que a estrutura socioeconômica e o cresci-mento econômico de uma região são determinados, em sua maior parte, pelo desenvolvimento das relações comerciais, financeiras e tecnológicas de outras regiões.19 A dependência é gerada e reproduzida a partir da in-ternacionalização capitalista e de sua tendência a concentrar e centralizar os excedentes que resultam da acumulação mundial nos centros dinâmicos do sistema mundial.

Do século XVI até meados do século XIX, a internacionalização esteve sob a hegemonia dos capitais comercial e usurário e, posteriormente, a par-tir do final do século XIX, sob a hegemonia do capital produtivo. A partir daí, o desdobramento de D em D’ fundamenta-se no capital produtivo,20 e a reprodução ampliada da economia mundial adquire uma base sustentada e orgânica ao possuir um fundamento técnico (Dos Santos, 1978a). A depen-dência ganha, então, caráter sistemático e passa a se vincular às tendências econômicas do desenvolvimento capitalista, em que o componente tecno-lógico torna-se a base da apropriação de mais-valia das sociedades depen-dentes e da expansão das formas usurárias e comerciais de apropriação do valor produzido nessas sociedades.

Os países centrais passam a concentrar, em seu aparato produtivo, os elementos tecnológicos que articulam o crescimento da composição técni-ca e orgânica do capital e que permitem o desdobramento internacional de D em D’. Os países dependentes são objeto dessa articulação e oferecem os elementos materiais para a especialização do centro através de sua integra-ção à divisão internacional do trabalho. Essa integração é constantemente redefinida pelo centro, segundo as necessidades do crescimento mundial da composição técnica e orgânica do capital.

Diferentemente dos países centrais, onde a combinação entre a re-lativa homogeneização da base tecnológica e as pressões das massas para partilhar parte dos superlucros obtidos no mercado mundial permitirá ao subsetor IIa responder tecnologicamente às inovações introduzidas pelos segmentos vinculados ao consumo suntuário, criando a base para um mer-cado de massas e para a indústria de bens de capital que alavancarão de forma orgânica a industrialização no centro,21 os países dependentes, ao se

18 Para os anos 1950-1960 e 1970, o texto clássico para a mensuração das relações entre as remessas ao exterior e os fluxos de entrada do capital estrangeiro é Dependencia y relaciones Internacionales (1973), de Orlando Caputo e Roberto Pizarro. Em nossa tese de doutorado, Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina (2003), estendemos essa meto-dologia para os anos 1980, 1990 e a primeira década do século XXI. Os resultados, publicamos em Pensamento latino-americano e sistema mundial (2006) e no ensaio para a Latinoamericana: enciclopédia de América Latina e Caribe (2006), intitulado “Pensamento social”.19 “A relação de interdependência entre duas ou mais economias, e entre estas e o comércio mundial, assume a forma de dependência quando alguns países (os dominantes) podem expandir-se e auto-impulsionarem-se enquanto os outros, os dependentes somente podem fazê-lo como reflexo desta expansão que pode atuar de forma positiva e/ou negativamente sobre seu desenvolvimento imediato” (Dos Santos, 1978, p. 305).

20 Isso não quer dizer que, após a fundamentação da acumulação capitalista sobre o capital produtivo, o capital usurário não possa vir a ter preponderância como forma de acumulação capitalista, particularmente durante os períodos depressivos da economia mundial que impul-sionam a centralização de capitais. Entretanto, essa preponderância gira em torno dos limites determinados pelos ciclos do capital produtivo e pela concentração da produção, que impulsio-na a formação do capital financeiro e a apropriação de mais-valia.21 Para os países centrais, as tendências descritas por Marini se apresentam como dinâmicas até o final do boom do pós-guerra, quando o salto no processo de oligopolização dessas economias

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integrarem no mercado mundial a partir de grandes desníveis tecnológi-cos, sofrem, inversamente, descapitalização, e não poderão responder da mesma forma, recorrendo à superexploração do trabalho.22

Portanto, como se observa, o enfoque de Marini articula os livros I, II e III de O capital e reposiciona amplamente os enfoques usuais sobre a maturidade da acumulação capitalista, os quais, ao priorizarem o livro I de Marx – que abstrai a concorrência, esfera real na qual se dá a acumu-lação capitalista –, consideram a mais-valia relativa e a produtividade do trabalho como as formas normais dessa acumulação. Não se trata de uma visão estagnacionista, como lhe atribuíram, entre outros, Cardoso e Serra (1978),23 fundada na incompreensão da capacidade do capitalismo indus-trial e “pós-industrial” gerar a mais-valia relativa, mas sim de uma visão dialética, capaz de levar em consideração os diversos níveis do processo de acumulação capitalista e o movimento do simples ao complexo.

Na visão de Marini, o capitalismo surge na sua globalidade, isto é, como um modo de produção e de circulação de mercadorias. Primeira-

mente, ele analisa o dinamismo tecnológico capitalista no interior da con-corrência e considera a produtividade do trabalho e a maior exploração do trabalho como pólos associados, que expressam a presença da produção e da apropriação de mais-valia na acumulação internacional capitalista, para depois verificar em que medida a elevação da composição técnica e orgâ-nica do capital resulta em maior exploração do trabalho e superexplora-ção ou, inversamente, no aumento da produtividade do trabalho para um capital particular. A obra de Marini descreve e associa teoricamente dois movimentos, que não ocorrem separadamente: a) um, de elevação da com-posição técnica do capital e conseqüente desvalorização de mercadorias, que, direcionado à produção de bens de consumo necessários, é capaz de expandir a massa de mais-valia; b) outro, concorrencial, em que os dife-renciais da composição técnica fundamentam a apropriação da mais-valia de uma determinada estrutura capitalista por outra. Quando o segundo movimento predomina sobre o primeiro, estão estabelecidas as condições para a superexploração do trabalho.

3. Para uma formalização do conceito de superexploração do trabalhoParte das críticas feitas a Marini considera que sua análise é circulacio-

nista, afirmando que ele se dedica à apropriação da mais-valia e se esquece do livro I de O capital, em que a expansão da mais-valia é realizada funda-mentalmente através do recurso à tecnologia, tornando a maior exploração do trabalho secundária diante do aumento da força produtiva do trabalho.

Em nossa opinião, o equívoco dessas críticas está em não situar ade-quadamente os níveis do modo de produção e do capital em geral, de um lado, e da concorrência e das formações sociais concretas, de outro, em que o primeiro nível se realiza, como planos de análise diferenciados e necessa-riamente articulados do funcionamento da economia mundial capitalista.

Nesta seção, demonstraremos que a apropriação de mais-valia e a su-perexploração são compatíveis com o modo de produção especificamente capitalista e com o recurso à maior intensidade tecnológica pelo capital ex-propriado. Para isso, construiremos um modelo que nos permitirá visuali-zar essa situação. Nosso modelo partirá da situação mais avançada descrita

parece vincular a maior parte das inovações ao consumo suntuário, tornando a pressão salarial das grandes massas negativa para as taxas de mais-valia e de lucro do setor IIa, que passa a sofrer forte desnível tecnológico. 22 As diferenças entre a industrialização dos países centrais e dos países dependentes têm levado os teóricos marxistas da dependência a designar o processo de industrialização dependente como submetido a uma acumulação externa de capitais, em que o setor I, produtor de bens de capital, é em grande parte externo às formações dependentes (Dos Santos, 1978; Bambirra, 1978). Nesse sentido, Marini assinala: “A aquisição dos meios de produção no mercado mundial não é de per si uma característica da economia dependente. Nenhum país capitalista, nenhuma economia em geral, vive hoje isolado. O que caracteriza a economia dependente é a forma agu-da com que adquirem esta característica (...). Efetivamente, nos países capitalistas avançados, a tendência geral do processo de industrialização foi a de produzir primeiro bens de consumo, para desenvolver, depois, a produção de bens de capital (...). Entretanto, a expansão da indús-tria produtora de bens de consumo obriga a desenvolver a produção de bens de capital para esta indústria, dando lugar a uma industrialização que poderíamos chamar de orgânica” (Marini, 1979a, p. 45).23 O artigo de Fernando Henrique Cardoso e José Serra (1978) teve, principalmente no Brasil, importância na formação da opinião da comunidade acadêmica sobre a obra de Marini. Isso deve ser atribuído não apenas à projeção desses autores no âmbito das ciências sociais brasi-leiras, mas também ao fato de essa crítica ter sido publicada pelo Cebrap, sem a correspon-dente resposta de Marini, inversamente do ocorrido no México, onde a Revista Mexicana de Sociologia, na edição especial de 1978, apresenta ambos os textos em uma seção dedicada à polêmica sobre a dependência.

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por Marini, referente à ação da mais-valia extraordinária entre os setores produtivos. Por referir-se à situação mais avançada, incide sobre a forma-ção dos preços de produção e o nivelamento da taxa de lucro, que supõem a redução de preços, segundo a produtividade, no setor que recebe o capital migrante.

A superexploração acontece sempre que a apropriação de mais-valia de um capital por outro não puder ser compensada pela expansão de mais-valia (mediante a geração endógena de tecnologia) pelo capital expropriado, estabelecendo-se de maneira irrevogável a sua necessidade para a sustentação das taxas de mais-valia e de lucro. A superexploração torna-se a base do regime de acumulação quando a expansão do diferen-cial de produtividade entre o capital A (que determina os valores médios das mercadorias em um espaço determinado da circulação) e o capital B (expropriado) for suficiente para neutralizar o movimento de expansão da mais-valia em B, ou para torná-la inferior à elevação da composição orgâ-nica que a gera, derrubando sua taxa de lucro.

Levando-se em consideração a dinâmica concorrencial da acumula-ção capitalista, se a variável-chave da apropriação e expansão de mais-valia é a tecnologia, o ponto de equilíbrio para o capital B – em que a apro-priação sofrida neutraliza a expansão de mais-valia – é aquele em que o aumento do diferencial de produtividade intercapitalista for equivalente ao crescimento da produtividade em B. Portanto, uma vez que há aumento na composição técnica média dos capitais, a elevação da composição técnica em B terá de ser equivalente a 50% do crescimento total da composição técnica média, pois somente assim o aumento da produtividade em B se igualará ao diferencial de expansão de produtividade entre A e B.

Em resumo, a superexploração ocorreria sempre que o crescimento da composição técnica em B não alcançasse a metade do aumento da com-posição técnica do capital que determina as condições da concorrência, ou quando, mesmo alcançando metade ou mais, não conseguisse gerar uma massa de mais-valia suficiente para compensar o aumento da própria composição orgânica do capital que a elevação de sua composição técnica propiciaria.

Se elevarmos o nível de abstração, do capital particular para as estru-turas de produção capitalistas nacionais e regionais, poderemos concluir que a dependência é a condição do atraso interestatal e inter-regional que determina a correlação entre a apropriação e a produção de mais-valia que fundamenta a superexploração. Isso porque a dependência descreve uma situação na qual uma região se insere em um espaço de circulação de mercadorias em que a maior parte do crescimento da composição técnica do capital origina-se de inovações introduzidas ou geradas por capitais estrangeiros.24

Vejamos isso mais em detalhe. Nas equações a seguir trabalhamos com as fórmulas de preço de produção de Marx e, para fins de simplifica-ção, estamos o considerando equivalente ao preço de mercado.

A equação I descreve o preço de produção de um capital que produz nas condições médias e que, portanto, não sofre perda de mais-valia para a concorrência. A equação II descreve uma situação na qual a perda da massa de mais-valia de um determinado capital é função da variação da composição técnica média em relação à sua produtividade. A variação da produtividade externa em relação à interna está representada por x, e a perda de mais-valia, por y. A equação III indica como o aumento de produ-tividade, gerado pelo capital que determina os valores médios, é traduzido em elevação de sua massa de mais-valia. O aumento da produtividade é expresso por z, e a massa de mais-valia acrescentada, por m’. A equação IV indica a tentativa do capital expropriado de reagir à perda de mais-valia, mas, ao mesmo tempo, assinala seu caráter parcial e limitado, uma vez que o aumento da produtividade z pode corresponder, no máximo, a 50% do crescimento da produtividade externa.

24 A tecnologia estrangeira é gerada ou introduzida por capitais estrangeiros e não é, em seus fundamentos, dominada pelos países dependentes. Em nosso modelo, deve ser entendida como um nível de produtividade que esses países não são capazes de introduzir por iniciativa própria.

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I) c + v + m = p

II) (c + v + m) – y = p Donde: se p – y = p ; y = p – p = px - p x x x x

III) (c + v + m) z = p + m’ Donde: se pz = p + m’; z = 1 + m’; m’ = pz – p p

IV) (c + v + m) z – y = pz Donde: (c + v + m) z – y = p + m’ x’ x

Sabendo-se que:

x = λ – w + 1 x’ = λ – z + 1

Considerando que:

c = capital constantev = capital variávelm = mais-valia criada por um determinado capital e que se reflete em sua estrutura de preços py = depreciação que incide sobre determinado capitalp = massa de valor expressa sob a forma-preçou = produtividade externa inicial em um momento (t1)λ = produtividade externa inicial (u) acrescentada de sua variação em determinando período de tempo (∆t)w = produtividade interna inicial de determinado capital (= 1) em um momento (t1)z = produtividade interna inicial (= 1) somada à sua variação endógena – sem o recurso à queda dos preços da força de trabalho abaixo de seu valor. Na equação IV, a variação endógena de z oscila entre 0% e 50% da variação da produtividade externa.x = relação entre a produtividade externa acrescentada de sua variação (λ) e a produtividade interna igual a 1 de determinado capital

x' = relação entre a produtividade externa acrescentada de sua variação (λ) e a produtividade interna igual a 1 de determinado capital somada à sua variação endógena em determinado período de tempo (∆t)pz = massa de valor, expressa sob a forma-preço, incrementada pela elevação da produtividade internam' = mais-valia criada com a variação da produtividade interna

A equação II corresponde à dimensão mais geral das condições de progresso técnico que criam a superexploração. Aqui, a sua determinação como compensação à perda de mais-valia é evidente e absoluta. A introdu-ção de progresso técnico no espaço de circulação das mercadorias dos países dependentes, através do investimento direto, da importação de tecnologia ou da mera concorrência internacional, cria uma depreciação no valor da grande massa de trabalho desses países.25 Nessa equação, demonstra-se como o diferencial de produtividade entre estruturas de produção capita-listas significa, para o capital desfavorecido, uma perda de mais-valia.

Na equação IV, evidenciamos a compatibilidade da teoria da supe-rexploração com a geração endógena de progresso técnico pelas estrutu-ras capitalistas desfavorecidas no processo de concorrência capitalista. Os capitais, que sofrem depreciação de sua mercadoria, somente conseguem neutralizar a perda de mais-valia quando conseguem elevar sua composi-ção técnica do capital em pelo menos 50% do aumento ocorrido no capital concorrente. A partir de qualquer exemplo numérico, verifica-se que m’ e y equivalem-se, resultando em anulação mútua da depreciação sofrida e da

25 Convém mencionar que a depreciação do valor ocorre principalmente nos ramos da pequena e média burguesia, que concentram a grande massa de trabalho local. Estes não são capazes de recorrer à importação de tecnologia e, quando o fazem, é com fraco dinamismo, que é incapaz de impedir a depreciação, ficando sujeitos à mais-valia extraordinária. O trade-off entre a tec-nologia local e a estrangeira exige alta concentração de poupança local para impulsionar essa importação e restringe amplamente o seu acesso aos setores majoritários e menos dinâmicos da burguesia. A introdução da tecnologia estrangeira, ao ser dirigida pela concorrência e acumu-lação capitalista – muitas vezes através do auxílio da intervenção do Estado, como nas políticas de substituição de importações –, resulta em transferências de mais-valia intra e intersetoriais, com as implicações assinaladas.

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mais-valia gerada pelo capital em questão. Tal situação configura o limite técnico a partir do qual atua a superexploração e a articula organicamente com a situação de dependência.26 Entretanto, mesmo na equação IV, cabe assinalar que, para efeitos de simplificação, estamos desprezando a eleva-ção da composição orgânica do capital propiciada pelo aumento da produ-tividade interna do capital. Quando isso ocorre, parte de m’ transforma-se em capital constante, a taxa de lucro é reduzida e a superexploração do trabalho estende-se para além do limite técnico assinalado.

Façamos, todavia, um exercício numérico a título de exemplificação das equações II e IV:

Em uma primeira situação, um capital A e um capital B partem das condições médias de produtividade, em um momento (t1). Supõe-se que, uma vez decorrido um período (∆t), o capital B não gere qualquer dinâ-mica tecnológica e apenas mantenha a sua produtividade anterior; e que o capital A aumente a sua produtividade em 100%, em exata equivalência com a variação das condições médias de produtividade que determinam o valor. Dessa forma: w = u = 1. Sabendo-se que c = 500; v = 200; m = 300; p = 1.000, teríamos ainda que: λ = 1 + 100% = 2; x = 2. Portanto, nesse caso,

utilizando-se a equação II, teríamos que y = 500, o que representa a perda líquida de mais-valia do capital B, já que essa não seria compensada por nenhuma geração interna de mais-valia (m’), pois a variação endógena em z equivale a zero e torna z = w.

Em uma segunda situação, um capital A e um capital B partem também das condições médias de produtividade, em um momento (t1). Entretanto, supõe-se que, uma vez decorrido um período (∆t), o capital B gere uma dinâmica tecnológica própria, equivalente a 50% do aumento da produtivi-dade do capital A, que, por sua vez, aumenta a sua produtividade em 100%, em exata equivalência à variação das condições médias de produtividade que determinam o valor. Tomando-se os mesmos valores para c, v, m, p, teríamos que: x = 2; λ = 2; z = 1 + 50% = 1,5; x' = 1,5. Assim, o capital B geraria internamente um acréscimo em mais-valia (m') através da elevação de sua produtividade, de tal forma que m' = 500 – aceitando-se a suposição de que não haveria alteração do valor em c. Todavia, ao situar-se abaixo das condições médias de produção do valor, o capital B sofreria uma perda de mais-valia (y), calculada na equação IV, em que y = 500 = m’, neutralizando a geração do acréscimo de mais-valia.

Se admitirmos que ocorre um aumento da composição orgânica do capital de B, nessa segunda situação, para produzir-se m’, expresso em uma elevação do valor de c, parte de m’ deverá converter-se em c, tornando y > m’. Tal resultado, como mencionamos, ativaria as condições de atuação da superexploração do trabalho.

Quanto mais as tendências absolutas do desenvolvimento dependen-te se afirmarem e os capitais de uma determinada região tenderem a se subordinar de maneira total às estruturas monopolísticas do capitalismo internacional, mais a geração endógena de progresso técnico dos capitais dependentes estará próxima a 0% do crescimento da produtividade intro-duzida pelos capitais que determinam os valores médios das mercadorias, reduzindo a equação IV à equação II.27 Esse foi o ponto mais acentuado

26 É preciso considerar que o elemento técnico não é o único determinante da superexploração do trabalho. Entre os diversos outros fatores, destacamos os elementos financeiros e a expa-triação de capitais sob a forma de remessas de lucros, que se fundam na internacionalização dos centros de decisão da economia dependente. Todavia, a situação técnica é a que, em última instância, fundamenta a evolução dos diversos aspectos que atuarão no desenvolvimento da superexploração do trabalho.Essa maneira de abordar a superexploração, situando inicialmente seus determinantes tecno-lógicos no âmbito da acumulação capitalista para depois identificar seus aspectos financeiros e socioeconômicos, foi o caminho metodologicamente seguido por Marini em Dialética da dependência:“Não examinaremos aqui os efeitos próprios às distintas formas que reveste a absorção tecno-lógica e que vão desde a doação até a inversão direta do capital estrangeiro, já que do ponto de vista que orienta nossa análise, isso não tem maior importância. Ocupar-nos-emos tão-somente do caráter desta tecnologia e de seu impacto sobre a ampliação do mercado” (Marini, 1973, p. 70).A importância do componente tecnológico, na apropriação do valor produzido nas sociedades dependentes e no impulsionamento das formas comerciais e usurárias vinculadas ao capital financeiro, será tanto maior quanto maior for a presença da inovação tecnológica na geração do crescimento econômico dessas formações sociais e da economia mundial. 27 Ainda que esse limite nunca seja atingido.

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por Marini, por representar as tendências de longo prazo da geração de progresso técnico nos países dependentes.

No post-scriptum que faz ao seu artigo “Dialética da dependência: a economía exportadora” (1972), que integra a Dialética da dependên-cia (1973), Marini alerta o leitor para o nível de abstração do seu ensaio. Visando ao desenho das leis fundamentais do capitalismo dependente, al-guns traços foram feitos a grossas pinceladas, sem que fossem examinadas situações particulares que introduzissem um certo grau de relativização ao estudo. Todavia, o autor indica o caráter tendencial dessas leis:

Aproveitarei, pois, este post-scriptum para esclarecer algumas questões e desfazer certos equívocos que o texto tem suscitado. Efetivamente, apesar do cuidado em matizar as afirmações mais contundentes, sua extensão limi-tada levou a que as tendências analisadas se pintassem em grossas linhas, o que lhes conferiu, às vezes, um perfil muito extremo. Por outra parte, o nível mesmo de abstração do ensaio não propiciava o exame de situações particu-lares, que permitissem introduzir no estudo um certo grau de relativização. Sem pretender justificar-me com isso, os inconvenientes mencionados são os mesmo a que alude Marx, quando adverte (...) teoricamente, que se parte do suposto de as leis de produção capitalista se desenvolvem em estado de pureza. Na realidade, as coisas ocorrem sempre aproximadamente; mas a aproximação é tanto maior quanto mais desenvolvida se faz a produção ca-pitalista (...). (Marini, 1973, p. 82)

4. O balanço do conceito de superexploraçãoProcuramos demonstrar que a teoria da superexploração do trabalho,

elaborada por Ruy Mauro Marini, não apenas é compatível, mas exige, para o seu pleno desenvolvimento, a introdução do progresso técnico e do dina-mismo tecnológico nas sociedades capitalistas. A vinculação entre progres-so técnico e superexploração do trabalho está demonstrada, não apenas em Dialética da dependência (1973), mas em um conjunto de artigos que compõem parte da obra de Marini. Por isso, recuperamos os elementos centrais de sua reflexão para sistematizar sua visão sobre a relação entre superexploração e capitalismo dependente.

São totalmente incorretas as críticas a Marini, que tomam como su-posto a necessidade de uma estagnação tecnológica do capitalismo depen-dente para que a superexploração venha a ocorrer. Essas críticas refletem em grande parte razões políticas, mas também a dificuldade em perceber os elementos centrais do conceito formulado por Marini. O conceito de supe-rexploração do trabalho é dos mais complexos dentro da economia política marxista. A sua compreensão como parte da teoria do valor requer a arti-culação dos níveis da produção e da circulação para podermos identificar os efeitos produzidos pela concorrência na economia global capitalista e em seus diversos rincões. Procuramos evidenciar a compatibilidade entre a teoria da superexploração do trabalho e a teoria do valor, demonstrando-a matematicamente. Para isso, partimos das equações dos preços de produ-ção, pois constituem a instância analítica que permite a comunicação entre os níveis da produção e da concorrência, e inserimos nelas a formação da mais-valia extraordinária entre os ramos produtivos, descrevendo as con-dições maduras do desenvolvimento da superexploração. Ao fazermos isso, respeitamos a lógica interna do pensamento de Marini e suas observações sobre as tendências mais dinâmicas da acumulação capitalista.28

28 “Convém ter presente que, ao transferir os aumentos de produtividade aos preços em menor medida que I e IIa, o subsetor IIb estabelece com os demais uma relação que implica uma transferência intersetorial de mais-valia, via preços, que vai mais além do que corresponderia estritamente aos mecanismos de nivelamento da taxa de lucro e que os viola; em outros termos, configura-se uma situação similar a que alude à noção de intercâmbio desigual na economia internacional. Isso reduz a massa de lucro que toca a I e IIa (ainda que os ramos de I que pro-duzam fundamentalmente para IIb possam ressarcir-se, recorrendo também ao lucro extraor-dinário) e pressiona para baixo sua taxa de lucro. Em outras palavras: o subsetor IIb exerce um efeito depressivo sobre a taxa de geral de lucro, a qual é rigorosamente a contrapartida da taxa de lucro que nele se verifica.Observemos, finalmente, que a especificidade de IIb, quanto à produção de mais-valia extra-ordinária e sua conversão em lucro extraordinário, acentua-se necessariamente ali onde rege a superexploração do trabalho, configurando uma situação em que se estabelecem salários baixos e lucros elevados. Isso implica que, ao tempo que se apresenta com pouco dinamismo, a esfera baixa da circulação, criada pelos primeiros, tende a inflar-se a esfera alta, gerada pelos segun-dos. Em tais circunstâncias, entende-se perfeitamente que o subsetor IIb tenda constantemente ao crescimento desproporcionado, em relação aos demais, assim como faça mais acentuada, no plano do mercado, a subordinação do setor I em relação ao subsetor IIb, mais que ao subsetor IIa. Como em qualquer outro campo observado, também aqui a economia dependente, baseada na superexploração do trabalho, sofre de maneira ampliada as leis gerais do regime capitalista de produção” (Marini, 1979, p. 29).

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A formalização matemática, em nosso entender, é fundamental para desenvolver a teoria da superexploração. Marx também formalizou os prin-cipais conceitos de sua economia política como os de mais-valia, mais-valia absoluta, mais-valia relativa, mais-valia extraordinária, valor de mercado, preços de produção, taxa de lucro, tendência decrescente da taxa de lucro etc. Sua utilidade é vincular os níveis mais abstratos do pensamento aos mais concretos e delimitar as condições específicas em que um conceito se torna um lugar real de existência.

Esperamos, ao revisitar o conceito de superexploração, contribuir para esclarecer os equívocos e mal-entendidos sobre sua gênese. Retomar sua força analítica nos parece fundamental. Nos anos 1960 e 1970, Ruy Mauro Marini, Theotonio dos Santos, Vânia Bambirra e Florestan Fernandes se esforçaram em mostrar o caráter superexplorador do capitalismo latino-americano para assinalar a inviabilidade de um caminho de reformas so-cioeconômicas em seu interior que resolvesse os problemas da pobreza e miséria das grandes massas e proporcionasse consistência a uma democra-cia burguesa. O capitalismo latino-americano, afirmavam os autores, pro-duz desenvolvimento e subdesenvolvimento em sua expansão e é politica-mente instável. A erradicação da pobreza, a construção de um padrão de crescimento socialmente equilibrado e de um modelo político estável são conquistas a serem alcançadas na transição para formas de desenvolvimen-to socialistas. Enquanto as perdas de mais-valia do capitalismo dependente impediam que a ação dos trabalhadores derrogasse a superexploração sem liquidar esse sistema, no capitalismo dos países centrais, a acumulação da mais-valia apropriada criava os marcos estruturais para impulsionar a ação dos trabalhadores em busca da generalização da mais-valia relativa.

Hoje é fundamental aprofundar o domínio teórico do conceito inau-gurado por esses autores, pois a superexploração não apenas se aprofunda na América Latina, mas estende-se aos próprios países centrais do sistema mundial capitalista. Essa extensão foi percebida e denunciada por Marini, que começou a teorizá-la em seus últimos escritos, como Proceso y tenden-cias de la globalización capitalista (1995). A emergência das chamadas em-presas globais, como uma etapa mais avançada da transnacionalização em-

presarial, é chave nesse processo de globalização da superexploração. Elas reorganizam a divisão internacional do trabalho em escala mundial e criam novas unidades de produção que concentram a maior parte das inovações tecnológicas e produzem para o mercado mundial, tornando obsoletas as empresas estritamente nacionais e pequenas e médias dos países centrais, que empregam a maior parte da força de trabalho dessas regiões e passam a sofrer perdas de mais-valia em função do redesenho das transnacionais. De um lado, as empresas globais monopolizam a ciência e o conhecimento simbólico – que se transformaram desde os anos 1970 na principal força produtiva – em suas unidades localizadas nos países centrais e produzem mercadorias de alto valor agregado para o mercado mundial; de outro, des-centralizam a tecnologia e o conhecimento incorporado para elevar a in-tensidade tecnológica do trabalho superexplorado da periferia e semiperi-feria, dirigindo-os à elaboração de partes e componentes de baixo e médio valor agregado, também para a economia mundial. Com isso, deslocam a concorrência de bases nacionais para globais, bem como os padrões de competição empresarial.

A formalização matemática da superexploração em condições de de-pendência ajuda a compreender a sua extensão aos países centrais, na medi-da em que situa como componente-chave para a sua ativação a concentração da inovação tecnológica em monopólios. A economia mundial contempo-rânea, ao integrar crescentemente os mercados nacionais no mercado inter-nacional e converter as empresas globais em seu centro de dinamismo tecno-lógico, inscreve-se dentro dos padrões de geração de superexploração.

Como afirma Marini (1995), a extensão da superexploração aos países centrais unifica os regimes de reprodução da força de trabalho e as lutas mundiais da classe trabalhadora. Elas se materializam na formação de um sujeito global capaz de articular – desde periferias, semiperiferias e centros – as lutas nacionais e regionais e reivindicar no interesse das grandes maio-rias temáticas de alcance universal: a erradicação da pobreza e da exclusão, a democratização radical do mundo contemporâneo, a sustentabilidade planetária, a paz e o fim do imperialismo, e a construção de uma civilização global diversificada e solidária.

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A constituição desse sujeito é um processo que caminha em meio a um passado de chauvinismos e estranhamentos. A consciência das leis de acumulação que enfrentamos na conjuntura contemporânea do capitalis-mo é um importante instrumento para superá-los. E, para isso, a economia política da dependência joga um papel crucial, projetando-se como parte indispensável da economia política mundial.

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A abertura revisitada: crítica teórica e empírica do livre-comércio.Atualidade do pensamento de Ruy Mauro Marini sobre a mais-valia absoluta

Pierre Salama*

Um dos traços característicos da evolução das rendas na América Latina nestes últimos 15 anos reside no desatrelamento dos salários reais em relação à produtividade do trabalho. Ainda que a produtividade do tra-balho retome um ritmo sustentado, fora dos períodos de crise, os salários testemunham um crescimento fraco. Portanto, a parte das rendas do traba-lho no valor agregado diminui fortemente, a parte dos lucros aumenta e os lucros financeiros apresentam uma progressão espetacular (ver Gráfico 1). Outro traço diz respeito à heterogeneidade crescente dos salários. As de-sigualdades entre os assalariados são acentuadas, os salários menores têm a tendência de diminuir, os salários mais elevados, a crescer, em um ritmo próximo daquele da produtividade do trabalho. No entanto, no conjunto, as desigualdades, medidas globalmente pelo coeficiente de Gini,1 são mais

* Economista egípcio, nascido em 1943 e naturalizado francês. Professor da Universidade de Paris XIII, dirige a revista Thiers Monde e deu grande impulso a Critiques d`Economie Politique. Possui obra de grande prestígio e difusão internacional e foi distinguido em 2006 como doutor honoris causa pela Universidade de Guadalajara.1 O coeficiente de Gini é um indicador das desigualdades: coloca-se em relação às porcentagens da população e às porcentagens da renda distribuída. População e rendas, em porcentagens, formam os dois lados de um quadro. Se, por exemplo, a 5% da população cabem 5% da ren-da, se a 10% cabem 10% etc., obtém-se uma distribuição das rendas absolutamente igual. Ela corresponde à diagonal do quadro. A distribuição das rendas é, na realidade, mais ou menos desigual de acordo com o país: a 10% da população cabem, por exemplo, 5% das rendas; 20% recebem 9% etc., por exemplo. Obtém-se uma linha que reflete essa distribuição das rendas. Ela carrega o nome de Lorentz. A superfície que existe entre essa linha e a diagonal, relacionada à metade da superfície do quadro, constitui um indicador das desigualdades, chamado Gini.

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ou menos estáveis nesse período. Elas permanecem em um nível extrema-mente elevado. No entanto, a curva de Lorentz muda: a relativa estabilidade do coeficiente de Gini mascara um processo de bipolarização das rendas. As camadas médias “baixas e médias” diminuem na distribuição das ren-das, assim como as camadas pobres e modestas; as camadas “altas” e as camadas médias “altas” aumentam o peso na distribuição das rendas.

Gráfico 1 - Evolução da estrutura do valor acrescentado das empresas não financeiras no Brasil

Tal como se pode observar, a parte dos impostos aumenta, a parte dos juros cresce sensivelmente desde 1997 e, sobretudo, a parte dos salários diretos e indiretos cai consideravelmente, já que passa de 60,3%, em 1955, a 43,2%, em 2002 (fonte: M. Bruno, 1995).

Quanto mais a curva de Lorentz se aproxima da diagonal, menos a superfície ocupada entre essa curva e a diagonal é grande e mais o Gini é elevado, e vice-versa. Compreende-se também que a superfície ocupada entre essa curva e a diagonal pode ser produzida por duas curvas de Lorentz diferentes na sua curvatura. Isso significa que um mesmo grau de desigualdade pode significar situações diferentes e que é preciso então recorrer a outros indicadores mais precisos.

A abertura revisitada: crítica teórica e empírica do livre-comércio

É preciso lembrar que uma das teses desenvolvidas por Ruy Mauro Marini na Dialética da dependência dizia respeito à especificidade dos mo-dos de exploração da força de trabalho na América Latina e, mais particu-larmente, nas grandes economias semi-industrializadas, “subimperialistas”, como o Brasil. Em vez de uma evolução para modos de exploração que privilegiam a mais-valia relativa,2 como aquela que se pôde observar nos países ditos desenvolvidos, assistir-se-á a uma persistência dos modos de exploração “antigos”: a mais-valia absoluta constituindo o modo de explo-ração por excelência nas economias semi-industrializadas. Essa persistência desses modos de exploração não seria, assim, isenta de conseqüências na radicalização dos trabalhadores e no seu grau de conscientização. O nosso artigo estará centrado nessa questão.

O mundo mudou: ele é mais globalizado do que era antes. A globa-lização comercial avança a passos a largos, a globalização financeira está quase totalmente completada na América Latina. A distribuição das ren-

2 A intensificação do trabalho se refere aos mecanismos de mais-valia absoluta “moderna”, em oposição à mais-valia absoluta arcaica ligada ao prolongamento do tempo de trabalho. Em um nível conceitual, ela é distinta da mais-valia relativa, ainda que as duas se traduzam estatistica-mente, ou diretamente, ou indiretamente, por uma variação da produtividade do trabalho. O campo da primeira é microeconômico e significa que, em um mesmo tempo de trabalho, mais bens e mais valor são produzidos quando a intensificação aumenta, ou por crescimento das cadências, ou por uma organização do trabalho que reduz o tempo morto, ou por uma flexi-bilidade aumentada da força de trabalho quando os equipamentos se prestam a isso. O campo da segunda – a mais-valia relativa – é macroeconômico, ainda que o seu local de aplicação seja a empresa. Em uma mesma jornada de trabalho, produzem-se mais bens graças à introdução de novos equipamentos. Portanto, a produtividade do trabalho aumenta. O valor de cada um desses bens baixa e o valor da cesta de bens necessários à reprodução da força de trabalho é reduzido. Esse mecanismo de mais-valia relativa é difícil de distinguir da mais-valia absoluta “moderna” quando nos limitamos à leitura da evolução da produtividade do trabalho, pois elas se traduzem ambas por uma melhora da produtividade do trabalho. A distinção é importante para compreender o uso da força de trabalho: quando a intensificação aumenta, ela produz um cansaço prematuro, físico, porém, hoje, cada vez mais psíquico, sentido como uma degradação das condições de trabalho, o que não acontece necessariamente quando o grau de tecnicidade cresce. No entanto, sem entrar nessa discussão conceitual, a literatura recente demonstra que a ligação entre intensidade e produtividade só é pertinente se o trabalho é decomposto em operações relativamente homogêneas: nesse caso, a ligação entre produção e esforço é imediata. Quando a organização do trabalho se torna mais complexa, quando os objetivos coletivos são definidos, a ligação entre intensidade e produtividade é mais diluída, pois a medida de intensi-dade individual é difícil de se realizar.

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das evolui para uma bipolarização na América Latina, o desatrelamento do crescimento dos salários em relação ao crescimento da produtividade, as desigualdades mais acentuadas entre os salários traduzem uma com-binação original de formas de exploração. A mais-valia absoluta de tipo arcaico (prolongamento da jornada de trabalho) diz respeito sobretudo aos trabalhadores assalariados que ocupam empregos informais e a um cer-to número de trabalhadores “por conta própria”.3 A mais-valia absoluta de tipo moderno, mas também às vezes arcaica, caracteriza o emprego de uma grande parte dos assalariados, não qualificados e qualificados, que ocupam os empregos formais. A mais-valia relativa não está, contudo, ausente. Ela diz respeito aos assalariados, aí incluídos aqueles que ocupam os empregos mais qualificados, em razão do crescimento da produtividade do trabalho no setor de bens de consumo, ligado à introdução de equipamentos mais eficazes. A especificidade das economias latino-americanas em relação às economias ditas desenvolvidas, mas também em relação a certas economias emergentes asiáticas,4 reside na articulação entre os três modos de extração da mais-valia: absoluta, arcaica e moderna, e enfim relativa, privilegiando os dois primeiros. Essa especificidade está ligada à maneira como a globali-zação se realizou nestes 15 últimos anos: selvagem na América Latina, mais controlada na Ásia.

O objetivo deste artigo não é discutir a lógica interna da tese de Marini sobre as formas de exploração, nem retomar a discussão sobre as relações possíveis entre radicalização e formas de exploração. A nossa abordagem é essencialmente teórica, centrada nas teses que tratam dos efeitos benéficos da abertura comercial em termos de crescimento, de distribuição de rendas e de salários. Na literatura teórica, considera-se, de fato, muito freqüente-mente, que a globalização comercial, compreendida como a adesão estrita

às regras do mercado, deveria conduzir a uma convergência das economias pouco desenvolvidas e daquelas que o são mais, isto é, com as economias desenvolvidas. Em outras palavras, as economias “atrasadas” deveriam re-cuperar aquelas que existiam antes... Em termos de salários, a tradução des-sas evoluções deveria conduzir a uma diminuição das desigualdades, gra-ças a uma especialização relacionada às dotações relativas dos fatores, a um aumento dos salários e dos empregos. Os modos de colocação no trabalho deveriam, portanto, evoluir e sua avaliação deveria se aproximar daquela dominante nos países ditos desenvolvidos. Nada disso. É por essa razão que fazemos uma crítica dessas teses que têm freqüentemente o atrativo da evidência. A abertura, compreendida como o estrito respeito às regras do mercado, conduz a uma evolução do crescimento e das rendas que não tem nada a ver com as premonições dessas teses, mas explica em parte a per-sistência de formas de dominação fundadas principalmente na mais-valia absoluta. Mas há abertura e abertura, aquela dos livre-cambistas e aquela dos intervencionistas ditos estruturalistas. A segunda poderia conduzir a uma modificação dos modos de submissão do trabalho ao capital e a uma melhora do nível de vida; ela é rejeitada pelas instituições internacionais, mais preocupadas com os interesses dos credores estrangeiros do que com uma distribuição das rendas mais equânime.

Duas ou três coisinhas antes de dizer muitas bobagens...1. O crescimento do comércio exterior foi em média muito mais ele-

vado do que o crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) nestes últimos 30 anos (ver Gráfico 1 anexo). A idéia de estabelecer uma relação de cau-salidade entre o crescimento de um e de outro vem naturalmente à mente. Indo mais longe, muitos economistas consideram que o único meio de fazer crescer a taxa de crescimento do PIB é deixar o mercado operar livremente uma alocação ótima de recursos de cada país graças à livre-troca. Alguns economistas5 consideram (ainda...) que a abertura das economias, seguida da adoção de uma política de livre-comércio que reconhece as virtudes do

3 Em toda lógica, não se deveria fazer referência a esses conceitos para essa categoria de traba-lhadores, já que eles não são assalariados e não entram em relação salarial. No entanto, na me-dida em que, para a maioria deles, têm empregos de estrita sobrevivência e que, por razões que não podemos analisar aqui, são “por sua própria conta”, na falta de poderem ser assalariados, sua sobrevivência passa pelo prolongamento da duração do trabalho, que lhes é imposto pelo sistema no seu conjunto, em vez de sê-lo por um empresário.4 Mais particularmente, as economias ditas da primeira geração, a saber, os quatro “dragões”: Coréia, Taiwan, Cingapura e Hong Kong.

5 Ver principalmente o relatório do Banco Mundial (2004), páginas 31 e 32, em que se faz refe-rência a essa abordagem.

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mercado, deveria conduzir os países grandemente dotados de trabalho não qualificado e de pouco capital a se especializarem na produção e na expor-tação de produtos manufaturados labor using.

A abertura de uma economia não significa necessariamente o re-conhecimento das virtudes das leis do mercado. Ela é freqüentemente o resultado de uma política deliberada do Estado: os subsídios para exporta-ção, as políticas de taxas de juros seletivas, o protecionismo temporário e seletivo, a manifestação de uma política industrial ativa têm caracterizado os modos e as seqüências da abertura dos principais países asiáticos nestes últimos 40 anos. Sabe-se também que a abertura das economias produz sobretudo especializações intra-setoriais, bem distantes das especializações intersetoriais, fundadas nas dotações relativas de fatores de produção. Os países que permanecem especializados em produtos primários, agrícolas e minerais são hoje marginalizados no comércio internacional, a menos que eles se voltem para a “industrialização” da sua agricultura, desenvolven-do uma agroindústria que utiliza tecnologias de ponta, tanto no nível dos inputs quanto no setor de equipamentos (Chile e Argentina, por exemplo). A estrutura do comércio internacional dos países em vias de desenvolvi-mento foi profundamente transformada há pouco mais de duas décadas. Em 1980, 25% das exportações dessas economias eram constituídos de produtos manufaturados; em 1998, essa porcentagem se elevou para 80%, e, desde então, continua a crescer (Banco Mundial, 2004, p. 45). Esses pa-íses, pouco numerosos, orientam então as suas exportações para os pro-dutos manufaturados. Os outros, os países menos avançados, são cada vez mais marginalizados no comércio internacional. Essa nova orientação não corresponde, portanto, a uma especialização de acordo com os “cânones” da “teoria pura do comércio internacional”.6

2. Como sempre, a realidade é, no entanto, mais complexa do que parece. As economias asiáticas que se tornaram emergentes puderam, por exemplo, se beneficiar das “vantagens” ligadas às dotações relativas de fato-res (mão-de-obra pouco cara e, essencialmente, pouco protegida), mas, por

um lado, são vantagens de custos absolutos de tipo smithiano,7 e, por outro, somente para melhor criar para si novas “vantagens” mais úteis. O preço da sua mão-de-obra lhes permitiu, assim, obter vantagens absolutas em uma quantidade restrita de produtos, quando existia um espectro de técnicas que permitiam utilizar combinações produtivas pouco intensas de capital, substituíveis às combinações intensivas de capital e que permitiam uma ren-tabilidade superior. E foi a partir dessa vantagem que elas puderam, graças a uma política industrial ativa, flexibilizar o seu aparelho de produção para a produção de produtos que exigiam mais capital, trabalho qualificado, que apresentava uma elasticidade tornada maior. Quer seja no caso da Coréia, de Taiwan, do Brasil e já da China, pode-se observar esse movimento para uma tecnicidade aumentada, e isso apesar do custo ainda pequeno da sua mão-de-obra. A verdadeira “ameaça” para os países desenvolvidos, para um período mais ou menos próximo, não é que aqueles países se especia-lizem em produtos ricos de mão-de-obra pouco qualificada (labor using), o que eles fizeram no início, mas que venham a concorrer finalmente com as empresas neles localizadas em produtos de alta tecnologia, intensivos de capital, utilizando uma mão-de-obra qualificada, com baixa remuneração.8 O seu crescimento é financiado por um duplo processo de acumulação pri-mitiva: o primeiro no sentido dado por Marx, visando à superexploração da migração de camponeses para as cidades, impondo uma “gestão livre da sua força de trabalho”; a segunda, nova, original, consiste em tirar vanta-gens dos ganhos obtidos nos empreendimentos que utilizam muita mão-de-obra pouco remunerada para investir em setores com tecnologia mais sofisticada e que utilizam uma mão-de-obra mais qualificada, mais bem remunerada do que aquela que não é qualificada, mas recebendo rendas menores, quando comparadas com as rendas vigentes nas economias semi-industrializadas.

6 Ver infra seção C para maiores desenvolvimentos.

7 O que não deve ser confundido com as vantagens comparativas do tipo Ricardo, versão Hecker Ohlin, como se lê freqüentemente.8 Tal como sublinha, por exemplo, a revista Business Week: ver o número de 6 de dezembro de 2004, intitulado “The three scariest words in US industry: cut your price...” (“As três palavras mais marcantes na indústria norte-americana: corte seu preço...”).

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3. A abertura comercial impõe novas regras do jogo para as econo-mias semi-industrializadas. Incapazes de se beneficiarem das vantagens li-gadas à “competitividade fora dos custos”, exceto para raros países e em um número restrito de produtos, elas sofrem a “competitividade-preço” muito mais fortemente do que a velocidade em que se abrem para o exterior. As empresas são colocadas diante da seguinte escolha: ou se adaptar, ou desa-parecer, ou enfim tentar uma terceira via, a saber, buscar uma ajuda – direta ou indireta – do Estado, e adotar uma política “malthusiana” nos salários e no emprego, quando isso é possível. Quando, nas empresas, o desvio dos custos unitários do trabalho (salário real na sua relação com a produtivi-dade do trabalho), associado a uma taxa de câmbio determinada, é muito importante, a probabilidade de desaparecimento é muito forte na ausência de uma rentabilidade suficiente.9 É isso que pudemos observar, com mais ou menos amplitude, na maioria das economias latino-americanas como conseqüências do estabelecimento de políticas de ajustes liberais inspiradas pelo Consenso de Washington (ver Quadro 1). As importações substituem então os segmentos de linha de produção. Trata-se de um processo inverso daquele que caracterizou os regimes de acumulação durante os 30 ou 40 anos seguintes à crise dos anos 1930. Uma “de-substituição” (désubstitui-tion) das importações que se chama geralmente pelo vocábulo “de-verticali-zação” (déverticalization). Quando as importações se concentram nos bens de equipamentos e nos produtos intermediários, o efeito positivo sobre a valorização do capital das empresas que utilizam esses bens importados é, em geral, positivo. Eles custam menos, incorporam outras tecnologias mais recentes do que os produtos da concorrência produzidos localmente e ameaçados de desaparecimento. O efeito abertura é comparável àquele da crise a priori. As empresas obsoletas desaparecem e sua produção é substi-tuída pelas importações naturais para melhorar a valorização do capital.

Quadro 1 – Do Consenso de Washington aos objetivos do milênio

Originariamente, o primeiro objetivo do Consenso de Washing-ton (1990) era conter a alta de preços, vertiginosa na América Latina nos anos 1980. Ele se apresenta sob a forma de 10 mandamentos e um fio condutor: a liberalização dos mercados.

Os 10 mandamentos10 são: 1o) uma disciplina fiscal; 2o) uma re-orientação das despesas públicas visando a adequar as despesas com a infra-estrutura, a saúde, a educação, centradas nas necessidades de base, e isso em prejuízo de uma intervenção do Estado no setor econô-mico; 3o) uma reforma fiscal a partir de uma ampliação da estabilidade fiscal e uma baixa dos tributos obrigatórios; 4o) uma liberalização das taxas de juros com o abandono das taxas preferenciais a fim de eliminar a “repressão financeira” e melhorar a seleção dos investimentos graças a uma alta das taxas de juros; 5o) uma taxa de câmbio competitiva sem que seja claramente indicado se esta deveria ser fixa ou flexível; 6o) a liberalização do comércio exterior graças à baixa drástica dos direitos alfandegários, o fim dos contingenciamentos e o abandono de autoriza-ções administrativas; 7o) a liberalização dos investimentos estrangeiros diretos, o que significa o abandono dos procedimentos administrativos, pesados e custosos, de autorização da remessa dos lucros, dos dividen-dos e de outros royalties; 8o) a privatização das empresas públicas; 9o) o abandono das regulamentações cujo objetivo fosse instituir barreiras à entrada e à saída de capitais, favorecendo os monopólios e diminuindo a mobilidade; 10o) a garantia, enfim, dos direitos de propriedade.

É interessante observar que esses 10 mandamentos não implicam explicitamente a liberalização da conta capital do balanço de pagamen-tos, posto que se fez explicitamente referência à liberalização da conta mercadoria (comércio exterior) e do investimento estrangeiro direto, sem se referir aos outros movimentos de capitais.11 Mas isso é o que

9 A menos que uma política específica (subsídios, proteção em caráter temporário) seja colo-cada em prática.

10 Tal como foram reformulados em 2000 por Williamson.11 É interessante observar a ausência de acordo entre os economistas do FMI e muitos eco-

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ocorre com qualquer projeto: há o que é escrito e o que é colocado em prática. O “sucesso” do Consenso de Washington, quer dizer, mais exata-mente, a referência obrigatória às políticas de ajuste estruturais assinadas com o Fundo Monetário Internacional, traduzir-se-á por sua vez em uma ampliação das medidas de liberalização e em uma extensão geográfica, aplicando para a Ásia e a África medidas que visam a conter os preços, legitimadas pela “década perdida latino-americana dos anos 1980”.

O sucesso (desaparecimento da hiperinflação), mas também o fra-casso (a) incapacidade de promover um crescimento conseqüente com pouca volatilidade; b) dificuldades para dominar o funcionamento, o desenvolvimento e as conexões dos mercados financeiros; c) incapa-cidade para reduzir de maneira significativa a pobreza absoluta; d) in-compreensão quanto ao forte crescimento chinês e, de maneira geral, quanto ao crescimento asiático, a partir desses 10 mandamentos) con-duziram a uma “nova versão” do Consenso de Washington, centrada dessa vez na necessidade de encontrar “boas instituições”. Progressiva-mente, a esses 10 mandamentos serão acrescentados 10 outros manda-mentos (D. Rodrik, 2003b): 11o) o governo da empresa; 12o) as medidas contra a corrupção; 13o) uma liberalização estendida ao mercado de trabalho; 14o) a adesão aos princípios da Organização Mundial do Co-mércio; 15o) a adesão aos códigos e padrões que regulam as finanças; 16o) uma abertura “prudente” da conta capital; 17o) a ausência de regi-

mes de câmbio intermediários entre o fixo e o flexível; 18o) a indepen-dência dos bancos centrais e o estabelecimento de metas em matéria de inflação; 19o) a constituição de redes de proteção social; 20o) enfim, os objetivos claramente definidos de redução da pobreza absoluta.

A proximidade mais freqüentemente elástica das instituições (cf. supra) e a manutenção das principais orientações contidas nos 10 pri-meiros mandamentos constituem os limites dessa nova versão do Con-senso de Washington. Os dois últimos “mandamentos”, que, no quadro da lógica do Consenso de Washington renovado, chegam um pouco “como um cabelo na sopa”, estão na origem de um projeto mais ambi-cioso dito do Milênio que combina primeiramente, mas não finalmen-te, a redução drástica do nível de pobreza (reduzir o nível de pobreza absoluto em 1990 à metade de agora em 2015, mas também melhorar a saúde – baixar em dois terços a taxa de mortalidade infantil de menos de cinco anos, reduzir em três quartos a taxa de mortalidade das mu-lheres no momento do parto, combater a AIDS e as epidemias; a edu-cação – fazer de modo com que as crianças de sete a 14 anos, de ambos os sexos, possam cumprir uma educação de base, promover a igualdade de homens e mulheres em todos os níveis da educação) com (1) polí-ticas macroeconômicas e despesas públicas eficazes; (2) uma parceria público-privada; (3) uma harmonização do auxílio em face dos países mais pobres, levando em conta os critérios do bom governo; (4) uma diminuição do protecionismo de facto dos países mais ricos e um me-lhor acesso do seu mercado para os países mais pobres; (5) a garantia de um desenvolvimento duradouro (ambiental, mas também redução à metade da porcentagem das pessoas que não têm acesso à água potá-vel). O conjunto desses objetivos envolve um caráter importante. Os in-dicadores sociais e ambientais são levados em consideração. Mas, para que eles não permaneçam no nível do “catálogo das boas intenções”, a articulação das ligações entre esses diferentes objetivos deve ser precisa. Assim, deve ser a ligação positiva estabelecida entre o desenvolvimento do comércio, o crescimento e, portanto, a redução da pobreza. De um

nomistas ortodoxos sobre esse ponto: o FMI preconiza uma liberalização da conta capital, e alguns economistas, como McKinnon, vêem aí um perigo. Para uma apresentação do debate entre os economistas partidários do big bang e aqueles que se inclinam para medidas gradua-listas, ver P. Salama e J. Valier (1994). Observa-se uma discordância também no que se refere à taxa de câmbio: o FMI apoiou durante todos os anos 1990 a manutenção de uma política de câmbio fixa (anunciar um câmbio flexível para sair da inflação poderia ter um impacto negativo na credibilidade das medidas tomadas, mas, ao contrário, o abandono de uma possibilidade de regulamentar os fluxos de capitais quando os câmbios são fixos é no mínimo perigoso, quan-do o afluxo de capitais é brutal em um sentido ou em outro, tal como o exemplo extremo da Argentina demonstrou), e a maioria dos economistas ortodoxos se inclinam para as taxas de câmbio flexíveis, mas foi preciso “esperar” a crise financeira do final dos anos 1990 para que este último regime fosse preconizado.

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lado, a liberalização comercial produz muitos “perdedores” que devem ser auxiliados; de outro, a liberalização deve ser perseguida pelo estabe-lecimento de boas instituições, e não ser decidida independentemente da qualidade destas, por exemplo, como observa Maxwell (2005).

Com essas duas ou três coisinhas ditas e escritas, podemos analisar mais a fundo as relações complexas que existem entre a abertura e o cresci-mento, do ponto de vista do comércio.

Globalização comercial: mais abertura, mais crescimento?

1. Um indicador que diz freqüentemente o inverso do que ele pretende medir

Um indicador simples, mas discutível, permite a priori medir a evolu-ção do grau de abertura das economias: trata-se da soma das importações e das exportações sobre o PIB no tempo t e no tempo t + 1. De 1977 a 1997, por exemplo, China, México, Argentina, Filipinas, Malásia, Bangladesh, Tailândia, Índia e Brasil conheceram um progresso mais rápido do seu nu-merador do que do seu denominador. Essas economias foram, portanto, abertas, ao contrário do Paquistão, Quênia, Togo, Honduras, Senegal, Nigé-ria, Egito e Zâmbia, para retomar os exemplos dados por D. Dollar (2004). Esse autor classifica os países segundo essa ratio (calculada nos períodos de 1975-1979 e 1995-1997 para 68 países em vias de desenvolvimento), com-pletada por um outro indicador (a redução dos direitos alfandegários entre 1985-1987 e 1995-1997). Uma porcentagem de 30% (ou seja, 24 países), que, ao mesmo tempo, mais fizeram crescer o seu comércio em relação aos respectivos PIBs e reduziram mais os seus direitos alfandegários, seriam os globalizers (globalizadores), que teriam conhecido uma aceleração do seu crescimento, mesmo no caso de eles serem relativamente “fechados”, aí incluídos depois dessa fase de abertura (Brasil e Argentina, por exemplo). Daí a atribuir virtudes à abertura... é somente um passo, logo transposto.

Esse indicador se presta mais à confusão, porque ele não mede a evolu-ção da abertura. Birdsatll e Hamoudi (2002), nas suas críticas aos trabalhos

de Dollar e Kraay (2001), sublinharam essa ambigüidade e mostraram que “o conteúdo das exportações e as mudanças nos preços mundiais contam mais na história da globalização dos globalizers do que a sua liberalização” (p. 15). Esse indicador coloca de fato em relação um denominador compos-to da absorção e do saldo das trocas externas, e um numerador que compre-ende a soma das importações e das exportações. Considerando dois países idênticos, basta que um aceite um deficit como conseqüência de suas trocas externas para que ele apareça como mais “aberto” do que outro que não ad-mite esse deficit. Na mesma ordem das idéias, basta que haja uma melhora dos termos de intercâmbio para que os países principalmente exportadores de matérias-primas apareçam como mais abertos, e façam parte do grupo dos globalizers de Dollar e Kraay, e, ao contrário, basta que haja uma der-rocada do curso das matérias-primas e que esses países sigam uma política rigorosa visando a equilibrar suas contas externas, para que eles não façam mais parte desse grupo, assim como mostram Birdstall e Hamoudi (Op. cit.) e o relatório da Unctad sobre os países menos desenvolvidos (2004).

Estabelecer uma relação econométrica de causalidade entre abertura externa – considerada sob o único aspecto da redução dos direitos alfan-degários e do aumento do indicador de abertura – e o nível da taxa de crescimento do PIB, sem considerar, de uma parte, o que se passa do lado das medidas de contingenciamento, das licenças de importação, da prote-ção pela qualidade e, sobretudo, sem levar em consideração, de outra, as políticas industriais empreendidas (subsídios, reduções preferenciais das taxas de juros), pode, portanto, dar uma visão distorcida dos processos em curso e conduzir a interpretações simplistas, quando não errôneas.12 Al-

12 Como dizem muito bem Birdstall e Hamoudi (p. 6): “Não estamos argumentando a favor do fechamento ao comércio internacional (...) mas a afirmação de que ‘a globalização é boa para os pobres’ [como o fazem Dollar e Kraay] – e também a afirmação de que ela ‘fere os pobres’ – não é útil para aqueles muitos países que já estão razoavelmente ‘abertos’, mas ainda lutando com o que ocidentalmente é chamado de ‘a enganosa busca do crescimento’” (“We are nor arguing in favor of closure to international trade (...) but the claim that ‘globalization is good for the poor’ – just like tha claim that it ‘hurts the poor’ – is not helpful to those who are already reasonably ‘open’ but still struggling with what Easterly calls ‘the elusive call for growth’”).

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guns países se abrem, mas controlando a sua abertura através de medidas de proteção indiretas, transitórias, acompanhadas de políticas industriais específicas que permitem proteger uma produção local que, no final, será destinada às exportações (como demonstram as experiências asiáticas). Outros países se limitam a aplicar as medidas liberais preconizadas pelas instituições internacionais sem medidas de acompanhamento, assim como se pôde observar na América Latina e de maneira caricatural na Argenti-na nos anos 1990. Como, aliás, observa Kandur (2004), a ratio exportação mais importação sobre o PIB não é um indicador de política econômica em si, mas antes uma variável dependente, e o seu aumento não depende necessariamente da redução dos direitos alfandegários, mas do “clima dos negócios”, da eficácia das instituições.13

Enfim, como mostra Rodrik (1995), em um artigo antigo, medir o grau de abertura pela ratio exportação mais importação sobre o PIB e deduzir que o seu crescimento está na origem de uma aceleração do crescimento desse PIB pode estar errado. Tomando o exemplo de Taiwan e da Coréia do Sul, Rodrik mostra que há um descolamento entre o progresso do crescimento e o aumento do PIB nos anos 1950, no início do processo de industrialização “em marcha forçada”. A aceleração da taxa de crescimento do PIB procede do crescimento das exportações. Observa-se, ao contrário, que as curvas do investimento e do PIB correspondem: é porque a taxa de formação bruta se eleva que o crescimento se acelera. Quando se refina a análise, observa-se finalmente que há também um paralelismo entre a curva dos investimentos e a curva das importações, e, mais particularmente, das importações de bens de equipamento. A lição é clara: por um lado, as importações de bens de equipamento permitem ao mesmo tempo incorporar tecnologias recentes e melhorar de maneira significativa a produtividade do trabalho, e, por ou-tro, os investimentos maciços aceleram o crescimento impulsionando um

forte processo de modernização. As exportações podem então continuar, tanto mais porque se beneficiam de uma política industrial conseqüente (protecionismo temporário e seletivo para as indústrias nascentes, até que elas tenham atingido um nível de competitividade que lhes permita expor-tar maciçamente, antes mesmo de buscar satisfazer o seu mercado interno, política de baixas taxas de juros e risco de câmbio assumido pelo governo). Não são, portanto, as exportações que estão na origem da aceleração do crescimento, e a ratio de abertura crescente, porque se acrescentam uma causa (as importações) e um efeito (as exportações), perde a sua pertinên-cia em explicar o crescimento. Compreende-se, então, o quanto a alta dessa ratio, para retomar Kandur, é um produto (uma variável dependente) mais do que um indicador de política econômica (abrir para crescer).

2. A relação entre abertura e crescimento é mais complexa do que aquela apresentada geralmente14

2.1. A abertura não é redutível às leis do mercado livre de qualquer intervenção

Wing Thye Woo (apud Akkerman & Teunissen, 2004), em um estudo muito interessante, analisa de maneira crítica os fundamentos teóricos da relação positiva entre a liberalização comercial e o crescimento que funda o Consenso de Washington (ver Quadro 2). Esse estudo repousa sobre três pilares: a) a média dos direitos alfandegários era mais elevada na Ásia do que na América Latina; b) o desvio típico desses direitos era mais elevado na América Latina do que na Ásia, o que significava, segundo a corrente ortodoxa, que a intervenção do Estado no primeiro caso tinha um caráter “intempestivo”, que menos mercado se traduz por menos eficácia e mais ganhadores e perdedores do que na Ásia;15 c) na Ásia, a taxa de proteção

13 Birdstall e Hamoudi (p. 4): “muitos deram um pulo de uma associação entre a ratio comércio e o crescimento para uma recomendação política de reduzir as tarifas, mas isso existe em um abismo que não é fácil transpor metodologicamente (...)” (“many have made the leap from an association between the trade ratio and growth to a policy recommendation to reduce tariffs, but this is not easily bridged methodologically (...)”).

14 Para uma apresentação do conjunto das questões levantadas por diferentes testes economé-tricos, ver Winters, A. et al. (2004), e para uma apresentação do debate no seio das instituições internacionais, ver Lora E.; Pagés, C.; Paniza, U.; Stein, E. (sob a direção de) (2004, p. 29-34).15 É interessante observar que, de acordo com essa abordagem, a relação Estado-mercado é considerada como um jogo de soma zero: quanto mais o Estado, significa menos mercado,

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efetiva era aproximadamente a mesma que o subsídio efetivo voltado para as exportações, enquanto na América Latina a primeira taxa tinha grande-mente uma superioridade sobre a segunda, o que significava que a proxi-midade das taxas produziria um efeito semelhante à ausência de taxas, anu-lando-se os dois efeitos produzidos por essas taxas, o que não seria o caso na América Latina. Na Ásia, o jogo de forças do mercado seria reconheci-do, o que explicaria a vivacidade do seu crescimento, enquanto na América Latina, a intervenção do Estado frearia o crescimento, favorecendo o mer-cado interno. Wing Thye Woo critica fortemente este último diagnóstico, partindo da apresentação que dele fez Lal (1985) e mostrando o seu caráter equivocado: a proximidade das taxas de proteção das importações e das taxas de subsídio para as exportações, observada nas economias asiáticas, não é suficiente para concluir pela neutralização dos efeitos dessas duas ta-xas (ver Quadro 2) e deduzir que as economias asiáticas testemunham um crescimento elevado graças ao free trade (livre-comércio), ao contrário das economias latino-americanas.

Quadro 2 - De um erro às conclusões erradas...

Seja Pi o preço dos produtos importados, Px o preço dos bens exporta-dos, “t” a taxa de proteção, “s” a taxa de subvenção creditada aos bens exportados, PWi o preço no mercado mundial das importações e PWx o preço das exportações no mercado doméstico. Teremos a seguinte igualdade Pi/Px = PWi (1 + t) / PWx (1 + s) [1].Se “t” aumenta ou baixa “s”, então a relação Pi/Px se eleva e os empre-sários preferirão produzir mais para o mercado interno do que para o mercado externo. Se t = s > 0, então a equação [1] se torna Pi/Px = PWi / PWx [2], o que parece justificar o argumento segundo o qual os dois

efeitos se neutralizam. As economias asiáticas, graças a essa neutraliza-ção e também porque o desvio padrão das taxas de proteção é menos elevado do que na América Latina, podem ser assim qualificadas como regimes de free trade, cujo crescimento vivo seria então puxado pelo crescimento das exportações, graças ao papel mais importante desem-penhado pelo mercado, mais eficaz hipoteticamente do que o Estado. Um tal resultado “matemático” vai em sentido oposto a muitas análises da industrialização das economias asiáticas (Amsten, Wade, Rodrik] e causa espanto.

Essa demonstração é uma “farsa”, segundo Wing Thye Woo (p. 18): ela não distingue os bens segundo estejam submetidos à concorrência externa (tradable), tanto para as importações quanto para as exporta-ções, ou protegidas desta (non tradable). Uma elevação da proteção de-termina mais a produção dos bens importados em prejuízo dos bens exportados, favorecendo, assim, a produção para o mercado interno, mas ela se traduz também por um declínio da produção dos bens non tradable. Daí se deduz que as duas situações t = s > 0 e t = s = 0 não são equivalentes, e que é, portanto, abusivo deduzir da primeira situação um regime de free trade.

Seja Pt o preço local dos bens tradable, Pn o preço local dos bens non tradable e PWt o preço mundial dos bens tradable. Então pode-remos escrever:

Pt = para Pi + (1 – a) Px com 0 < a < 1 [3]PWt = para PWi + (1 – a) PWx [4]A equação [3] pode ser escrita utilizando a equação [1]:Pt = (1 + t) + (1 – a) PWx (1 + s) [5]Quando t = s > 0, podemos escrever esta última equação sob a

forma:Pt = (1 + t) PWt [6]Esse é o caso de uma economia que conhece um regime de cresci-

mento puxado pelas exportações (RCE). Quando comparamos a ratio dos preços dos bens tradable e dos preços dos bens non tradable com a

tendo-se, portanto, menos eficácia. Aqui se está longe das abordagens que concebem a relação Estado-mercado de maneira orgânica: o funcionamento do mercado só se tornando possível graças a uma intervenção do Estado que defina as regras, intervenha diretamente para que o mercado exista e funcione.

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ratio dos preços sob o regime free trade, temos: Pt / Pn sob RCE = [(1 + t) PWt / Pn] > PWt / Pn = Pt / Pn sob free trade [7].

A conclusão é simples: o regime de crescimento puxado pelas ex-portações faz crescer a produção de bens tradable às expensas da pro-dução dos bens non tradable. O crescimento não vem, portanto, de uma vizinhança de “t” com “s”, neutralizando os seus respectivos efeitos e provocando um comportamento da economia do tipo free trade, mas da queda da produção de bens protegidos (non tradable). O que faz com que o crescimento possa ser alimentado pelo crescimento da pro-dução de bens tradable em detrimento dos outros bens é que a primeira tem uma valorização mais elevada – graças a uma política de apoio a esse setor – do que a segunda, mais arcaica, representada em geral pela agricultura de subsistência não modernizada. Conseqüentemente, toda política industrial que visa à expansão da primeira, por intermédio de subsídios seletivos e temporários, pode ser favorável ao crescimento. A conclusão é, portanto, exatamente o inverso daquela tirada pelos auto-res da mainstream (corrente dominante). Não é a alocação ótima pro-duzida pelo livre jogo do mercado que explica o forte crescimento, mas um combinado de intervenção do Estado e das forças do mercado.16

2.2. Não esquecer o “terceiro excluído”A relação entre as taxas de crescimento e a abertura ao comércio in-

ternacional é complexa. O crescimento maior pode ser o produto de uma melhora no funcionamento das instituições17 (ver Quadro 3, infra), de uma política industrial efetiva e coerente que controla a abertura, da situação e da estrutura da economia.18 A relação entre o crescimento “y” e as variáveis explicativas xi parece com aquela habitualmente testada do tipo y = Σ ai xi, ela pode tomar a forma: y = [Σ ai xi] + [x4 Σ bi xi] + x1 x2 x3 x4] + e, na qual os “i” do primeiro termo vão de 1 a 4 e no segundo de 1 a 3. O primeiro termo indica a influência das variáveis explicativas, o segundo termo influi no crescimento apenas se x4 não for nulo, o terceiro termo não exerce qualquer influência se uma das variáveis for nula. Ela pode, de maneira mais radical, tomar a forma somente do segundo termo, seja y = x4 Σ bi xi, a variável x4 sendo então freqüentemente considerada como representando a qualidade

16 Tal como observa D. Rodrik (2003, p. 11), as ligações entre os fundamentos teóricos da análise neoclássica e as recomendações de política econômica são fracas. Referindo-se às principais conclusões dos trabalhos teóricos recentes, Rodrik lembra que a correspondência entre os fun-damentos e as políticas deveria levar em consideração os seguintes pontos: “a liberalização dos mercados deve ser completa, ou melhor, a redução das restrições às importações deve levar em conta as possibilidades de substituição e de complementaridade entre esses bens; não deve haver nenhuma imperfeição do mercado em nível microeconômico, a não ser aquelas que dizem res-peito a essas restrições, caso contrário, as interações de ‘second best’ [segundo melhor] não de-vem ser negativas; a economia deve ser pequena relativamente ao mercado mundial, ou melhor, a liberalização não deve conduzir a se situar sobre o mau declive da tarifa ótima; a economia deve estar próxima do pleno emprego e, no caso contrário, as autoridades fiscais e monetárias deve-riam ter a capacidade de gerar a demanda; os efeitos distributivos da liberalização não devem ser considerados pela sociedade como indesejáveis e, no caso contrário, uma política de com-pensação, via fisco, deveria poder ser posta em operação; a liberalização deve ser politicamente sustentável e acreditada de tal maneira que os agentes não tenham de temer sua realização”. A maioria dos países está longe de cumprir essas condições. Isso não impede que os trabalhos eco-nométricos, cada vez mais sofisticados, sejam cada vez mais numerosos (ver Winter para uma

survey da literatura), querendo muitas vezes justificar as políticas de liberalização preconizadas pelas instituições internacionais mais importantes. Supõe-se que os fundamentos teóricos dessas políticas existam na maioria dos trabalhos, o que está longe de ser o caso.17 Para alguns autores (D. Acemoglu, S. Johnson, J. Robinson e Y. Thaicharoen, 2002), em uma perspectiva histórica, desde a Segunda Guerra Mundial, a qualidade das instituições explica mais o crescimento e a sua volatilidade do que as boas ou más políticas macroeconômicas. Estas seriam somente mais sintomas do que causas dos desempenhos econômicos. A qualidade das instituições é medida nesse estudo por uma variável proxy (substituta): a taxa de mortali-dade dos colonos na época colonial.18 Wing Thye Woo estabelece uma comparação interessante entre os países orientais e as eco-nomias asiáticas socialistas. Os primeiros conheceram uma primeira fase no mínimo difícil no momento da sua adoção das regras do mercado, depois da ruptura do sistema soviético (hiperinflação, depressão econômica profunda, empobrecimento, elevação exponencial das desigualdades), e uma segunda fase mais positiva (fim da inflação, retomada do crescimento, diminuição da pobreza). As economias asiáticas conhecem, há várias décadas, uma fase de pro-gresso pronunciado (crescimento pujante e pouco volátil, diminuição drástica da pobreza, mas aumento substancial das desigualdades) com a adoção do “socialismo de mercado”. De acordo com Wing Thye Woo (p. 25-26), não é o ritmo das reformas que explica a diferença das taxas de crescimento, mas principalmente o fato de que as primeiras eram economias industriais, que podiam ser reformadas, ao passo que as segundas eram, e são ainda, economias “camponesas”. Existe nestas últimas um reservatório de mão-de-obra, e passar do campo para a cidade permi-te, ao mesmo tempo, pagar pouco à mão-de-obra e melhorar o seu poder de compra relativo, criando, com todas as peças, uma indústria manufatureira e de serviços moderna. Sem o dizer, Wing Thye Woo utiliza um modelo de tipo Lewis para explicar o crescimento e a “facilidade” da transição, mas, fazendo isso, sublinha a importância das estruturas originárias para explicar a possibilidade de obter um crescimento elevado.

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das instituições: as instituições muito ruins conduzem a um crescimento nulo qualquer que seja o grau de abertura. A definição das instituições é, no entanto, freqüentemente “elástica”, cada uma pode aí colocar o que desejar: os aparelhos do Estado, o conjunto das regras, dos costumes e das práticas, ainda que, se elas não são precisas, medem então o “grau de ignorância”, para tomar uma expressão de Abramovitz aplicada residualmente aos testes das funções de produção macroeconômica well behaved (bem comportada) do tipo Cobb Douglas.

Quadro 3 - Algumas observações sobre as instituições

É preciso desconfiar das palavras, sobretudo quando são úteis, pois poderiam ser muito úteis e, no entanto, mascarar a incapacidade de compreender um processo, um fenômeno, ou apresentar sob no-vos hábitos mais atraentes as políticas econômicas as quais não se ousa chamar pelo seu próprio nome. As definições muito elásticas ocultam grandes ambigüidades, principalmente quando são muito importantes. Como aquela dada por P. Petit:

O que se entende por instituição permanece muito amplo, indo dos hábitos e convenções até os ordenamentos constitucionais funda-mentais, passando pelas leis e pelos regulamentos (...) A noção de ins-tituição reenvia assim a tudo aquilo que “regula” o comportamento dos agentes, quer se tratasse de coagir as suas margens de ação ou, pelo contrário, ampliar o seu campo (para facilitar a coordenação e a coo-peração). Além disso, as regras em questão não são todas de aplicação estrita, e os agentes podem dispor de uma margem de avaliação (...) Os agentes podem ou não achar legítimos os sistemas de coerções que vêm pesar sobre suas decisões. Opções políticas, culturas e ideologias vão portanto condicionar o funcionamento das instituições. Com o correr do tempo, todas estas diversas formas vão permitir adensar uma rede institucional. A cada período, um processo de institucionalização, que toca diferentemente as diversas formas estruturais, vai especificar as

situações, diferenciar os tratamentos, criar novas oportunidades (...) (p. 6)

Essa definição é rigorosa, mas tem um inconveniente, o de ser muito ampla, de modo que deixa espaço para a ambigüidade, quando as instituições são evocadas para explicar um processo, uma crise, um crescimento. Não se sabe mais muito bem a que se está referindo: aos ordenamentos constitucionais fundamentais, mas também ao sistema financeiro, ao sistema educativo etc., ou, antes, aos hábitos e às conven-ções, e assim qual seria então a parte do pressuposto na definição das regras (um pouco de conhecimento de antropologia seria muito bom para os economistas...). Sabe-se, por exemplo, que, para alguns autores pertencentes ao mainstream, as instituições são más quando as nor-mas de propriedade não são respeitadas... e a ausência de crescimento é então explicada por esse desrespeito. Como lembra Rodrik (2004), com humor, medir as instituições para analisar os seus efeitos “revela um conjunto de questões sem resposta”; capturar as percepções dos in-vestidores a partir das regras do direito, como é o respeito às regras de propriedade,19 não permite compreender por que a China apresentou uma expansão sem precedentes do seu PIB, dos investimentos estran-geiros diretos, lá onde esses direitos são negados. Enfim, Rodrik, conhe-cido por suas contribuições ao papel das instituições, cita um estudo de Haussman et al. que mostra que a aceleração do crescimento observado em 80 casos (aceleração de 2% que dura sete anos) desde 1950 não pro-cede geralmente de reformas importantes, como a abertura e a libera-lização econômica... (p. 10). Por muito utilizar as instituições, julgadas

19 No relatório de 2005 do Banco Mundial, são encontradas referências evidentes sobre o respei-to devido aos direitos de propriedade. A eficácia do governo (medida pela qualidade do serviço público, da burocracia, da competência dos funcionários, da sua independência e, enfim, da credibilidade da engrenagem dos compromissos assumidos pelos governos) seria muito maior do que seria importante o respeito pelos direitos de propriedade e inversamente, também no caso de voice and accountability (voz e responsabilidade) fracos ou fortes (medidos por um conjunto de indicadores referentes aos processos políticos, ao respeito pelas liberdades, à pos-sibilidade de os cidadãos participarem na escolha dos seus governos).

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boas ou más de acordo com critérios que se deseja de facto impor, para se enganar com isso, coloca-se freqüentemente a conclusão procurada na hipótese e o raciocínio científico se torna tautológico: a Argentina teria passado por uma crise porque teria más instituições; idem para os países do Oriente logo depois da queda do muro de Berlim, a “desco-berta” de que o capitalismo coreano, funcionando segundo as relações de “companheirismo” (crony capitalism = capitalismo de amigos), esta-ria minado a ponto de engendrar a crise dos anos 1990 (mas então qual é a razão da retomada robusta e duradoura, por que o crony capitalism teria desaparecido tão rapidamente?).

Essas observações têm justamente por objetivo sublinhar o abuso dessa palavra trazida à moda e servindo muitas vezes para apresentar velhas receitas sob novos hábitos. Elas não têm por objetivo negar às instituições um papel importante, com a condição de que, a cada vez que se utilize o termo, diga-se o que ele recobre exatamente.

A abertura pode, portanto, permitir um aumento da taxa de cresci-mento, mas somente quando ela é acompanhada de medidas que não têm nada a ver com o free trade.20 Estas constituem o “terceiro excluído”, aquilo que não aparece em primeiro lugar, mas sem o que nada fica compreensí-vel. Não acompanhada dessas medidas, a abertura não produz os efeitos desejados.

Uma abertura de tipo big bang (explosivo), sem medidas de acompa-nhamento, pode ser empobrecedora quando conduz a uma especialização que privilegia os produtos cujas elasticidades-rendas seriam fracas no ní-vel internacional, ainda que fosse “legitimada” pelas dotações relativas dos fatores. Como observa a Unctad (2004), fazendo isso, os defensores dessa abordagem colocam “a carroça à frente dos bois”: em vez de analisar pri-meiramente os efeitos da liberalização do comércio exterior sobre o cres-

cimento, melhor seria analisar em primeiro lugar, previamente, os efeitos do comércio sobre o crescimento, sobre a distribuição das rendas e sobre a pobreza.

Novamente... sobre os efeitos benéficos da abertura compreendida como uma vitória do mercado sobre o Estado

De acordo com os economistas que pertencem ao mainstream, a aber-tura deveria permitir que se estabelecesse uma economia mais eficiente graças a uma alocação dos fatores segundo a sua raridade relativa. Essa corrente certamente evoluiu e, para muitos economistas, convém consi-derar hoje a qualidade das instituições (mas então como medi-la, a partir de que critérios?), e levar em conta a ética.21 No entanto, para vários eco-nomistas, não levar em conta a raridade relativa dos fatores entrava o fun-cionamento eficiente do mercado e, portanto, é uma heresia. Adotar uma política econômica voluntarista que visa a substituir as importações pela produção local favorece o rent seeking (especulador), o excesso de Estado e a burocracia, o clientelismo e a corrupção, e conduz a uma alocação não ótima dos recursos. A observação histórica, porém, ressalta que os gran-des períodos de industrialização, tanto na América Latina quanto na Ásia, caracterizam-se por uma intervenção conseqüente do Estado, a ponto que se pôde, às vezes, qualificar essas economias como “capitalismo de Estado”: o Estado investidor em vez de uma burguesia industrial fraca, em vias de constituição...22 Esquecidos são os períodos suntuosos da industrialização “a mercado forçado” que algumas economias sul-americanas apresentaram durante mais de 40 anos, deformadas são as interpretações das experiências das economias asiáticas, ditas emergentes, durante várias décadas, lembra-dos somente os difíceis anos 1980 (a “década perdida” latino-americana),

20 Pelo contrário, não se pode demonstrar econometricamente, de maneira substancial, que as res-trições à abertura favoreceram o crescimento desde a Segunda Guerra Mundial, contrariamente ao que se pôde freqüentemente observar no século XIX e na primeira metade do século XX.

21 Ver, por exemplo, o relatório do Banco Mundial de 2005, centrado nessas questões.22 Sublinhou-se, inclusive, que uma das especificidades dessa intervenção do Estado era que ela produziu a camada social que ela estava destinada a representar. Encontrar-se-á no nosso livro (Mathias & Salama, 1983) uma apresentação do conjunto dessas discussões, assim como uma proposta teórica para compreender a importância dessa intervenção. Para as economias asiáti-cas, podemos nos referir às obras que se tornaram clássicas de A. Amsten (1989).

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como se estas, independentemente dos efeitos depressivos e inflacionários do serviço da dívida externa, fossem representativas da justeza da tese libe-ral do market friendly (mercado amigável).

É preciso reconhecer que a tese do crescimento puxado pelas expor-tações e o papel principal atribuído ao livre jogo das forças do mercado têm, primeiramente, o atrativo da evidência. Como se opor a uma redução da intervenção do Estado quando, a partir de uma leitura superficial da situação de crise, observa-se que esta é ineficaz, que os preços se curvam e, com eles, a pobreza, que o crescimento se torna negativo e grandemente volátil, como foi o caso nos anos 1980 na América Latina? O peso do Es-tado se assemelha, então, àquele da burocracia, do clientelismo e da cor-rupção, quando inclusive esse Estado perde a sua eficácia em razão de sua incapacidade para superar a crise da dívida externa, que solapa e destrói os aparelhos de Estado, cresce consumando o seu “deficit de racionalidade”. Mas, entre “parecer” e “ser”, há grandes diferenças e, ainda que se trate mui-tas vezes de reconstruir o Estado e os seus aparelhos, a corrente liberal se obstina em colocar abaixo o fantasma do Estado, criando assim um choque de modo a romper o círculo vicioso da hiperinflação, da volatilidade de um crescimento em média fraco quando não negativo, do crescimento da pobreza, mas isso ao preço de uma vulnerabilidade externa muito elevada como conseqüência, de uma tendência à estagnação econômica e de uma incapacidade para reduzir a pobreza.

1. O perigo dessa tese justifica que nos demoremos sobre ela e que anali-semos outros argumentos colocados previamente para justificar sua perti-nência. A abertura acoplada ao livre-comércio seria de modo a dinamizar o crescimento. A demonstração se realiza a partir da combinação de duas teses que se desejaria complementares e de uma constatação econométri-ca obtida a partir de uma análise panorâmica, mais exatamente em bando (uma amostra de países em um período longo). A primeira é a análise de Hecsker-Ohlin sobre os custos comparativos. As dotações dos fatores são dadas, somente as mercadorias podem ser trocadas e os fatores de produ-ção são, portanto, supostos imóveis entre os países, mas totalmente móveis

(portanto, sem custo de transação) no seio de cada país. Supõe-se que as funções de produção, para cada produto, são idênticas em cada país, con-tínuas e derivadas. O raciocínio consiste em comparar dois equilíbrios, um como autarquia, o outro como livre-comércio. Essa tese explica a especia-lização intersetorial segundo as dotações relativas de fatores, e mostra, por exemplo, que um país pouco dotado de capital e “rico” em trabalho deve-ria optar pelos produtos que privilegiam a utilização intensiva de mão-de-obra. Ele ganharia de fato em bem-estar, praticando o livre-comércio mais do que a autarquia. A segunda tese analisa os efeitos distributivos da nova especialização obtida segundo as dotações relativas. Os países pobres de capital e mão-de-obra qualificada, mas ricos em mão-de-obra não quali-ficada e escassez de capital, especializaram-se segundo uma combinação produtiva que utiliza mão-de-obra não qualificada e pouco capital, sem que, por isso, a especialização tivesse de ser absoluta. O raciocínio inverso é concebido para os países que têm uma dotação rica de capital e de mão-de-obra qualificada. A mobilidade da mão-de-obra no interior de cada país, pressuposição para que essa especialização possa ocorrer, fará crescer re-lativamente a demanda de trabalho não qualificado em relação àquela que é qualificada nos primeiros países e inversamente nos segundos. A curva de salário deveria, portanto, ser reduzida nos países em vias de desenvolvi-mento e se acentuar nos países desenvolvidos. É nesse momento que inter-vém a análise econométrica. Observa-se que, em um longo período (de 20 a 25 anos), os países – asiáticos, em geral – que têm a desigualdade menos pronunciada são aqueles que conheceram um crescimento pujante, ao con-trário daqueles cujas desigualdades são relevantes. A conclusão é grave de um ponto de vista ético: as desigualdades são insuportáveis, é legítimo que elas sejam reduzidas. Essa redução pode ser alcançada quando se “respei-tam” as leis do mercado, quer dizer, quando se favorece o livre-comércio e se rejeita qualquer política voluntarista de industrialização que não res-peita as dotações relativas. Ao contrário, uma intervenção do Estado que substitui o mercado produz as desigualdades. Ela é, portanto, condenável.

A conclusão parece grave de um ponto de vista econômico: a abertura permite uma redução das desigualdades dos países em desenvolvimento,

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esses países poderão fazer parte do clube dos países de forte crescimento. Mas trata-se aqui de um sofisma. A supor que as desigualdades pudessem ser reduzidas graças à abertura, o que é contestável, não é porque elas são menos importantes que ipso facto isso implicaria um maior crescimento, a menos que se comprovasse economicamente a relação, o que não é fato senão sob a forma de pressupostos: a liberalização dá mais eficácia e produz mais crescimento. E quando se abandona a análise panorâmica, na qual a Birmânia se avizinha aos Estados Unidos, em que o período considerado não tem nada a ver com os subperíodos que cada país conhece segundo o seu regime de acumulação dominante, não se pode compreender por que o Brasil apresentou as suas mais fortes taxas de crescimento nos anos 1970 com desigualdades crescentes, que se tornaram possíveis com a chegada de ditaduras militares. Não se pode compreender por que, nas economias latino-americanas e asiáticas, submetidas a uma abertura rápida nos anos 1990, as desigualdades salariais cresceram nesses anos. Não se pode com-preender, enfim, a explosão das desigualdades na China, a manutenção da sua taxa de crescimento em um nível muito elevado, a sua inserção cada vez maior no comércio mundial.

2. Duas objeções podem ser feitas. Os países “pobres” de capital utilizam de facto, quando podem, técnicas intensivas de capital, pois as suas empresas não poderiam, caso contrário, resistir à concorrência internacional, sendo a sua competitividade muito insuficiente, exceto se fossem extremamente protegidas por direitos alfandegários, contingenciamentos e outras licenças de importações dissuasivas. Desde os anos 1960, a escola da Cepal mostrou então que, na América Latina, com economias supostamente pobres de ca-pital (em relação à mão-de-obra), gastava-se mais capital do que os países desenvolvidos, sendo suas capacidades ociosas de produção relativamente mais importantes, o que, no mínimo, é um paradoxo para os defensores da especialização internacional de acordo com as dotações relativas de fa-tores. O comércio internacional obedece cada vez mais a uma lógica de especialização intra-setorial. A nova teoria do comércio internacional, sob o impulso de Kaldor via Krugman, conciliou mais fatos e teoria do que o

fizeram os defensores de uma divisão internacional segundo as dotações relativas dos fatores. Incorporando os rendimentos de escala crescentes, a diferenciação dos produtos, ela mostrou teoricamente que o comércio se realizava segundo uma especialização intra-setorial, o que era pelo menos bem-vindo. A observação, mesmo elementar, das especializações mostra, de fato, ao mesmo tempo, que estas operam principalmente no interior dos setores e que, enfim, aquelas que continuam a se realizar entre os setores são cada vez mais abandonadas, reservadas aos países “menos avançados” que não chegam a “decolar”. A composição das exportações dos países em desenvolvimento foi completamente subvertida nestas últimas décadas. Eles exportam mais de 80% de produtos manufaturados, como já indica-mos.23 Certamente, o custo da mão-de-obra é geralmente baixo, quando comparado com aquele dos países desenvolvidos,24 e isso pode constituir uma vantagem relativa, isto é, permitir que as exportações desses países concorram com os produtos nacionais dos países desenvolvidos. Mas duas observações devem imediatamente ser feitas. A primeira diz respeito ao próprio raciocínio: dizer que o custo da mão-de-obra menos elevada pode constituir uma vantagem não é, por isso, raciocinar em termos de custos comparativos (Ricardo, depois a “teoria pura do comércio internacional”), mas em termos de custos absolutos comparados (Adam Smith, em segui-da, freqüentemente, a nova teoria do comércio internacional), o que está longe de ser a mesma coisa, a comparação se fazendo produto por produto entre dois países, e não em termos relativos no interior de um país que se compara em seguida ao custo relativo no interior de outro país. A segunda está relacionada com a função de um produto: ela não é nem contínua, como imaginam os teóricos da “teoria pura do comércio internacional”, nem semelhante nos dois países. Ela é descontínua, quebrada em peque-nos segmentos. As possibilidades de escolha entre as técnicas são, portanto, restritas. Não se pode utilizar uma técnica antiga, sob pretexto de que ela

23 Mais exatamente, em 1980, 25% das exportações dos países em vias de desenvolvimento eram de produtos manufaturados, e em 1998 eram de 80% (Banco Mundial, 2004, p. 32).24 O custo da hora de trabalho era de 31,88 dólares na Alemanha, 19,34 dólares na França e 0,25 centavos de dólar na China e na Índia em 1995 (Banco Mundial, 2004, p. 45).

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emprega muita mão-de-obra e pouco capital, senão para uma quantidade restrita de produtos.

De fato, a comparação dos custos unitários do trabalho entre os países subdesenvolvidos, que utilizam uma combinação produtiva intensiva de trabalho não qualificado e exigindo pouco capital, e os países desenvol-vidos, que utilizam uma combinação produtiva, não é possível, do ponto de vista da competitividade, senão para um número restrito de produtos. Essa é a razão por que muitos países asiáticos (Coréia do Sul, Taiwan etc., a China agora) que utilizaram essa “vantagem absoluta comparada” busca-ram em seguida (Coréia do Sul, Taiwan etc.), buscam (China, Índia), graças a uma política industrial voluntarista, ampliar a gama dos seus produtos, utilizar técnicas de ponta, e, para alcançar isso, empreenderam grandes es-forços em formação e pesquisa, como já vimos. A tese dos custos compara-tivos25 tem o aspecto da evidência, mas em economia é preciso se prevenir contra o que parece evidente.26 As empresas procuram valorizar os seus capitais e, portanto, minimizar os seus custos unitários de trabalho (salário e produtividade); elas buscam se beneficiar dos subsídios diretos do Esta-do, de uma política de câmbio, depreciada quando exportam ou trabalham para seu mercado interno, mas apreciada quando importam. Em outras palavras, não são os custos comparativos que são importantes, mas os custos absolutos. Abandonando David Ricardo (análise dinâmica), extraviado por Hescker-Olin (análise estática), retorna-se para Adam Smith... Fazendo-se isso, descobrem-se novamente os “terceiros excluídos”, aqueles sem os quais se compreendem mal os fenômenos econômicos, quando não se os compreendem absolutamente. Um dos “terceiros excluídos” ou ainda um “presente ausente”: as instituições, como vimos. Mas, como faz observar

Rodrik em muitos dos seus artigos, estes não podem se reduzir aos “câno-nes” da ortodoxia: respeito aos direitos de propriedade, transparência. O crescimento sustentado da China e também, mais recentemente, o cresci-mento da Índia estão aí mesmo para demonstrar isso ao vivo.27

A liberalização da economia pode não estimular o crescimento nem favorecer o aumento da produtividade; ela pode arruinar muitas pessoas, destruir mercados sem permitir que outros sejam reconstituídos, se as eco-nomias se mostrarem incapazes de responder aos choques externos sem um apoio adequado do Estado e estiverem na origem de uma vulnerabi-lidade maior, quando a nova inserção repousa em especializações pouco dinâmicas, sujeitas a uma demanda internacional volátil (Winters et al., 2004), produzindo especializações ditas “empobrecedoras”. A relação que parece se impor entre maior abertura comercial e mais crescimento não é, portanto, mais evidente do que gostariam de fazer crer as instituições internacionais. A abertura pode favorecer o crescimento e, com isso, con-tribuir para diminuir a pobreza, mas, para que seja eficaz e mantenha a coesão social, quer dizer, a consolide, ela deve se realizar segundo modali-dades que têm pouco a ver com o livre-comércio. Para além das confusões existentes que atrelam abertura e livre-comércio, para além do simplismo que consiste em opor o Estado e o mercado sem compreender as suas rela-ções orgânicas, propor uma inserção mais forte na economia mundial não é incompatível com o desenvolvimento do mercado interno, algo possível graças a uma distribuição de rendas que respeite mais as regras simples da eqüidade, na condição, todavia, de que a abertura mais importante seja... pensada. A abertura, compreendida dessa maneira, pode então permitir uma distribuição de rendas mais equânime, e as obrigações que pesam so-bre os modos de exploração da força de trabalho poderiam assim evoluir. À medida que as causas da persistência da mais-valia absoluta do tipo arcaico 25 Observemos que ela se beneficia de uma ambigüidade de linguagem: quer seja no quadro da

teoria das vantagens absolutas, ou daquela das vantagens comparativas, compara-se sempre; mas, em um caso, trata-se de custos comparativos comparados, e, no outro, de custos absolutos comparados.26 Sem querer entrar no detalhe, este artigo não pode explicar por que as empresas fariam um raciocínio em termos de custos comparativos. Para que elas pudessem fazer isso, seria preciso que houvesse de fato um “avaliador público” (commissaire priseur) ou, na sua falta, um “dita-dor”, no caso de seguirmos Oskar Lange.

27 Retomando os trabalhos de Qian, Rodrik indica que essas podem ser “instituições de tran-sição”, colocando em prática políticas pragmáticas de transição, como aquelas dos preços du-plos, das formas intermediárias de propriedade etc. Ver Rodrik (2003a) e Qian, in Rodrik (ed.) (2003a), e, sobretudo, in Rodrik (2003b).

A abertura revisitada: crítica teórica e empírica do livre-comércio

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vão sendo atenuadas graças a uma política industrial ativa, a sua persis-tência como modo de exploração da força de trabalho pode também ser atenuada.

Conclusão A globalização comercial sem controle explica em grande parte a bi-

polarização das rendas na América Latina, a persistência de modos de ex-ploração arcaicos da força de trabalho, a importância da flexibilidade. Essa globalização comercial não é, certamente, a única responsável pelas busca de modos de exploração que privilegiam a mais-valia absoluta arcaica e moderna. A globalização financeira, muito mais adiantada e com pouco controle na América Latina, produz coerções de um novo tipo. Estas levam a buscar uma flexibilidade maior da força de trabalho e um desligamento dos salários reais, acentuando os efeitos perversos de uma globalização co-mercial não controlada, compreendida como sendo o livre jogo das forças do mercado. Mas isso é uma outra história... Outras vias são possíveis, bas-ta comparar e aprender para imaginar políticas econômicas diferentes. A escolha não se dá entre abertura ou fechamento, mas entre modalidades de abertura. Os efeitos da globalização comercial sobre a persistência e a im-portância dos mecanicismos de mais-valia absoluta mais a sua articulação específica com os mecanicismos de mais-valia relativa dão uma atualidade segura aos trabalhos de Ruy Mauro Marini.

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Anexo

Gráfico - Produto Interno Bruto e exportações mundiais a preços constantes (1990-2004) (taxas anuais de variação)

Fonte: Elaboração com base em FMI. World economic Outlook, set. 2004.a) com base em paridades do poder de compra de 2000.b) valor estimado.

Dependência e superexploração da força de trabalho no desenvolvimento periférico

Marcelo Dias Carcanholo*

1. Acumulação de capital na periferia: dependência e (sub)desenvolvimento

Costuma-se entender como economia periférica aquele país, ou região, que apresenta, em geral, instáveis trajetórias de crescimento, forte depen-dência de capitais externos para financiar suas contas correntes (fragilidade financeira), baixa capacidade de resistência em face de choques externos (vulnerabilidade externa) e altas concentrações de renda e riqueza. Isso ca-racterizaria o subdesenvolvimento dessas economias.1

A percepção convencional, a partir dessa constatação factual, tende a conceber a situação de subdesenvolvimento como sendo equivalente à ausência de desenvolvimento, isto é, como um “atraso” em relação às experiências históricas de desenvolvimento. Assim, seria possível extrair modelos de desenvolvimento das experiências de economias avançadas, com a definição de estágios que pudessem superar o atraso e atingir a mo-dernidade. Mesmo concepções um pouco mais críticas, como a visão clás-

* Economista brasileiro, nascido em Santiago do Chile em 1973, é professor da Universidade Federal Fluminense e ex-professor da Universidade Federal de Uberlândia. Vice-presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política, é autor de diversos artigos em livros e revistas in-ternacionais. Membro do grupo de estudos sobre economia mundial da Clacso, é pesquisador da Reggen e da Redem.1 A nomenclatura para essa situação varia de acordo com as circunstâncias/conjunturas polí-tico-econômicas de cada momento. As economias nessa situação já foram chamadas de sub-desenvolvidas, em vias de desenvolvimento, periféricas, “mercados emergentes”, dentre outros neologismos.

1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004b/

% 14.0

12.0

10.0

8.0

6.0

4.0

2.0

0.0

-2.0

Exportações MundiaisPIB Mundial

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sica da Cepal, entenderam desenvolvimento e subdesenvolvimento como fenômenos quantitativamente diferenciados, podendo resolver o segundo com medidas corretivas, no plano do comércio internacional, e com uma política econômica adequada, que dependeria das situações concretas vi-venciadas pela economia mundial.2

Restrição ao crescimento, fragilidade financeira, vulnerabilidade exter-na e perfil concentrado de renda e riqueza seriam, dessa forma, anomalias das economias periféricas, passíveis de correção por arranjos internacionais e/ou políticas econômicas adequadas, ortodoxas ou não, dependendo da filiação teórica dos proponentes.

O que esse tipo de perspectiva não consegue captar é que desenvolvi-mento e subdesenvolvimento são fenômenos qualitativamente diferenciados e ligados tanto pelo antagonismo como pela complementaridade, ou seja, que, embora sejam situações antagônicas, os dois fenômenos pertencem à mesma lógica/dinâmica de acumulação de capital em escala mundial.

A dialética do desenvolvimento assim percebida concebe que o sub-desenvolvimento de alguns países/regiões resulta precisamente do que de-termina o desenvolvimento dos demais. A lógica de acumulação de capital em escala mundial possui características que, ao mesmo tempo, produzem o desenvolvimento de determinadas economias e o subdesenvolvimento de outras. É para essa dependência dos países periféricos, em face da acu-mulação de capital, centrada em determinadas regiões, que a teoria da dependência chamou a atenção.3

A partir dessa perspectiva, todas as características de uma economia periférica, citadas anteriormente, possuem um caráter estrutural, deter-minado pela própria condição de dependência, não passíveis de supera-ção/solução pelo mero manejo “adequado” do instrumental de política econômica.

O conceito de dependência, assim entendido, implica uma situação em que uma economia está condicionada pelo desenvolvimento e expansão de outra a quem está subordinada, isto é, a condição de subdesenvolvimento estaria conectada estreitamente à expansão dos países centrais. Essa con-dição, portanto, representaria uma subordinação externa, mas com mani-festações internas nos “arranjos” social, político e ideológico.4

Marini (1977, p. 18) sintetiza o significado da dependência: “(...) relación de subordinación entre naciones formalmente independientes, en cuyo marco las relaciones de producción de las naciones subordinadas son modificadas o recreadas para asegurar la reproducción ampliada de la dependencia”.

Isso não é o equivalente à constatação óbvia, e quase tautológica, da interdependência entre as diversas economias no cenário mundial. Quan-do essa interdependência implica, no país dominante, expandir-se (crescer) auto-sustentadamente, enquanto os outros só o fazem como reflexo des-sa expansão, tendo efeitos positivos e negativos no seu desenvolvimento, define-se a condição de dependência. Dessa forma, o subdesenvolvimento não seria um primeiro estágio de evolução rumo à modernidade desen-volvida, mas, ao contrário, característica antagônica e complementar ao processo de desenvolvimento dentro de uma mesma lógica global de acu-mulação capitalista.5

2. Condicionantes da dependência e superexploração da força de trabalhoEntendendo assim o desenvolvimento e o subdesenvolvimento como

um par dialético, têm-se os dois fenômenos como qualitativamente diver-sos – em vez de uma mera diferenciação quantitativa, contornável através da superação de estágios de desenvolvimento – e marcados pelo antago-nismo e pela complementaridade. Antagonismo justamente por se tratar

2 No contexto de formação da Cepal, as políticas econômicas defendidas como “corretas” esta-vam ligadas ao projeto industrializante de substituição de importações.3 Referimo-nos aqui à teoria da dependência na sua versão marxista, como pode ser encontrada em Marini (1977), Santos (1970) e Santos (2000).

4 Santos (1970) identificou três formas históricas de dependência: (i) colonial; (ii) financeiro-industrial; e (iii) tecnológico-industrial do pós-guerra, sob a liderança das empresas transna-cionais. A identificação da atualidade neoliberal como uma nova forma histórica de dependên-cia financeira poderia ser tematizada.5 A influência da teoria marxista do imperialismo é inegável, uma vez que o subdesenvolvimen-to é uma conseqüência e uma parte do processo de concentração/centralização do capital, em escala mundial.

Dependência e superexploração da força de trabalho

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de situações distintas dentro da lógica de acumulação capitalista mundial, mas complementaridade por serem necessariamente elementos constitu-tivos dessa lógica.

De um ponto de vista esquemático, e correndo todos os riscos redu-cionistas desse tipo de procedimento, é possível identificar três condicio-nantes histórico-estruturais da dependência: (i) o fato empírico recorrente de perda nos termos de troca, ou seja, a redução dos preços dos produtos exportados pelas economias dependentes – geralmente produtos primá-rios e/ou com baixo valor agregado – vis-à-vis aos preços dos produtos industriais e/ou com maior valor agregado importados dos países centrais, em um verdadeiro processo de transferência de valores; (ii) remessa de ex-cedentes dos países dependentes para os avançados, sob a forma de juros, lucros, amortizações, dividendos e royalties, pela simples razão de os pri-meiros importarem capital dos últimos; (iii) instabilidade dos mercados financeiros internacionais, geralmente implicando altas taxas de juros para o fornecimento de crédito aos países dependentes e colocando os países dependentes periféricos à mercê do ciclo de liquidez internacional.

Marini (1977) procura explicar os mecanismos de transferência de valor inerentes ao condicionante (i) a partir de dois lados. Em primeiro lugar, operam os mecanismos internos a uma mesma esfera de produção. Como as mercadorias tendem a ser vendidas a partir do valor de mercado, isto é, do valor referente às condições médias de sua produção (produtivi-dade média), e os países dependentes possuem padrões de produtividade inferiores aos dos países do centro, ocorre a transferência de valor exceden-te (mais-valia extra) da periferia para o centro por conta do processo de concorrência entre os capitais externos e internos, dentro de uma mesma esfera de produção. Em segundo lugar, opera o processo de concorrência entre distintas esferas de produção. Esse processo de concorrência reflete a entrada e saída de capitais de várias esferas, conforme as diferentes taxas de lucro vigentes nessas esferas, o que tende a igualar as taxas de lucro. Entre-tanto, o monopólio de produção de mercadorias com maior valor agregado no centro faz com que os capitais externos possam vender seus produtos a um preço que supera aquele que prevaleceria com iguais taxas de lucro, de-

finindo também um mecanismo de transferência de valor. Esses dois meca-nismos operam dentro do condicionante (i) de dependência.

Adicionalmente, dada a característica atual de aprofundamento da desregulamentação e abertura financeira, deve-se ressaltar o funcionamen-to de outro mecanismo de transferência de valor, além daquele próprio do comércio internacional de mercadorias. O capital externo, na forma de in-vestimento direto, tende a repatriar lucros e dividendos e, portanto, remete valor criado na periferia para o centro. Por outro lado, na sua forma de endividamento, implica a transferência de valor a partir do pagamento de juros e amortizações de dívida. Por fim, a dependência tecnológica tam-bém coloca a transferência de valor produzido na periferia para o centro na forma de pagamento de royalties.

De um ponto de vista histórico, pode-se afirmar que, do período pré-capitalista até a consolidação inicial do modo de produção capitalista, os países desenvolvidos extraíam o excedente produzido na periferia por meio da expropriação, dentro da acumulação primitiva de capital. Mais tar-de, nas regiões periféricas, a extração do excedente passa a se dar por meio dos fluxos comerciais, dentro dos mecanismos de transferência de valor já observados, da expansão do capital que conduz à extração da mais-valia localmente, através dos investimentos diretos estrangeiros, e da desregula-mentação interna e externa dos fluxos de capitais.

Esses elementos condicionantes da dependência provocam uma forte saída estrutural de recursos, levando a recorrentes problemas de estrangu-lamento externo e restrições externas ao crescimento. A única maneira que a acumulação de capital interna à economia dependente tem para prosse-guir seria aumentar a sua produção de excedente. Assim, ainda que uma parcela crescente desse excedente seja apropriada e, portanto, acumulada, externamente, o restante (a partir da taxa de lucro interna) pode sustentar uma dinâmica de acumulação interna, mesmo que restringida e dependen-te. A forma associada à condição de dependência para elevar a produção de valor é a superexploração da força de trabalho, o que implica o acréscimo da proporção excedente/gastos com força de trabalho, ou a elevação da taxa de mais-valia, por arrocho salarial e/ou extensão da jornada de trabalho, em associação com aumento da intensidade do trabalho.

Dependência e superexploração da força de trabalho

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Ou seja, os condicionantes da dependência colocam uma maciça transferência de valor produzido na periferia que é apropriado no centro da acumulação mundial, e a dinâmica capitalista na periferia é garantida pela superexploração da força de trabalho, ao invés de bloquear esses me-canismos de transferência de valor.

Marini (1977: 37) resume o processo:

lo que aparece claramente, pues, es que las naciones desfavorecidas por el in-tercambio desigual no buscan tanto corregir el desquilibrio entre los precios y el valor de sus mercancías exportadas (lo que implicaría un esfuerzo redobla-do para aumentar la capacidad productiva del trabajo), sino más bien com-pensar la pérdida de ingresos generados por el comercio internacional, através del recurso a una mayor explotación del trabajador.

Com essa dinâmica de acumulação de capital, o capitalismo depen-dente pode crescer, contornando sua restrição externa.6 Entretanto, com esse quadro, fica fácil entender como essa dinâmica traz consigo as conse-qüências inevitáveis da dependência: distribuição regressiva da renda e da riqueza, associada a uma marginalidade e violência crescentes.

A superexploração da força de trabalho não coloca, em princípio, empecilhos para a acumulação interna de capital, ao restringir o consumo da força de trabalho, porque sua dinâmica de realização pode depender do mercado externo e/ou de um padrão de consumo que privilegie as cama-das média e alta da população. Neste último caso, entretanto, o incremento dos lucros pode ser direcionado não como demanda interna (sem contra-partida de produção interna), mas orientado para aumento de importa-ções, seja de bens de consumo para essas camadas da população, seja para meios de produção necessários para a acumulação. Tanto um caso quanto

o outro complexificam os deficits estruturais de balanço de pagamentos, formas de manifestação dos mecanismos de transferência de valor. Logo, a manutenção de taxas de crescimento sustentadas na periferia recoloca de forma ampliada os seus condicionantes restritivos. A condição de depen-dência é estrutural (própria da lógica de acumulação mundial) e tende a se aprofundar, justamente porque esses condicionantes são reforçados por essa própria lógica.

A essa perspectiva teórica da dependência são associadas, erronea-mente, ao menos duas teses que lhe são estranhas. Por um lado, afirma-se que essa perspectiva supervaloriza os fatores externos (de dependência), em detrimento dos fatores internos. Ao contrário, se, de fato, a dependência é um fenômeno externo, suas manifestações e arranjos internos não pos-suem papel secundário. A aliança e o conflito entre as classes internas, sem desconsiderar a adesão destas à ideologia e aos projetos das classes externas, assim como a luta política que é correlata, são determinantes,7 por exem-plo, na opção de inserção externa passiva dos países latino-americanos nas últimas décadas. A implementação das políticas neoliberais de abertura ex-terna e desregulamentação dos mercados, que aprofundam a dependência, pode ser entendida como fruto de uma conformação entre os interesses da classe dominante da região e os imperativos político-ideológicos do centro da economia mundial, implícitos no Consenso de Washington.

Por outro lado, também é atribuído erroneamente à teoria da depen-dência o que se chama de estagnacionismo. Afirma-se que, a partir dos condicionantes da dependência (restrição e estrangulamentos externos), a economia dependente não teria como crescer, definindo uma tendência à estagnação crônica. Isso, como visto, é falso. Afirmar que subdesenvolvi-mento e desenvolvimento são elementos de um mesmo processo contradi-

6 A resposta periférica à sua condição dependente é mais atual do que nunca, no sentido de que, “nas economias subdesenvolvidas, os ganhos de produtividade foram obtidos principalmente através do aumento nas taxas de desemprego, da jornada de trabalho e da precarização dos trabalhadores” (Nakatani, 2002, p. 1).

7 Nesse ponto específico não se pode desconsiderar que, em cada país/região periférico, as con-dições de formação e desenvolvimento das classes dominantes locais são específicas, de forma que é possível tanto a constituição de uma classe dominante local altamente vinculada a inte-resses externos até uma associação mais explícita entre as duas. As especificidades de formação e desenvolvimento também são importantes no que diz respeito à classe trabalhadora.

Dependência e superexploração da força de trabalho

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tório de acumulação de capital8 não significa que a economia dependente não possa crescer, mas que, quanto mais cresce, no alicerce da superex-ploração da força de trabalho, mais aguça as diferenças específicas do capitalismo central. Dessa forma, em situação de dependência, maior desenvolvimento capitalista, com o crescimento da economia dependente, implica maior dependência,9 o que não é sinônimo de estagnação.

A teoria da dependência, assim entendida, em nada se parece com a abordagem da interdependência presente em Cardoso & Faletto (1970). Entender a relação da economia periférica com a economia mundial como interdependência significa defender a possibilidade de um desenvolvimen-to capitalista associado. Para essa perspectiva, seria possível um desenvol-vimento capitalista periférico, associado a regimes políticos liberais e de-mocráticos, que amenizasse os efeitos da dependência com políticas sociais compensatórias e conseguisse uma certa elevação do emprego nas fases de crescimento do ciclo mundial. Para esse pensamento, os inimigos do de-senvolvimento periférico seriam as forças internas, que impediriam a eco-nomia periférica de aproveitar as oportunidades de associação com o ciclo econômico do centro sistêmico, a saber, o populismo e o corporativismo.10

Qual é a proposta de associação com o centro capitalista? Uma vez que este tem a possibilidade de exportar capitais, em determinadas conjuntu-ras cíclicas, caberia à periferia oferecer condições para o crescimento desse fluxo de capital externo, nos momentos favoráveis da conjuntura mundial, que teria duas funções básicas. Por um lado, o capital externo superaria a escassez de divisas que caracteriza a periferia. Por outro, sob a forma de in-

vestimento direto, não só financiaria o crescimento econômico, como seria portador de inovações tecnológicas necessárias para o choque de produ-tividade, que, em conjunto com as políticas sociais compensatórias, com-pletaria o “jardim do Éden” periférico, possibilitando elevação dos padrões de vida e redução das desigualdades. Restaria à periferia implementar a abertura e a desregulamentação dos mercados para atrair esse capital ex-terno.11 Desenvolvimento capitalista associado e neoliberalismo são termos distintos para uma mesma proposta. Como a década de 1990 é considerada “mais do que perdida” para a economia latino-americana, justamente por conta da aplicação desse tipo de perspectiva, isso dispensa maiores comen-tários críticos a essa interpretação da interdependência.

O importante a reter é que, dados os condicionantes histórico-estru-turais da dependência, reforçados pela própria dinâmica de acumulação mundial, a resposta periférica para o desenvolvimento capitalista está baseada na superexploração da força de trabalho e, conseqüentemente, na distribuição regressiva da renda e da riqueza, assim como no aprofunda-mento dos problemas sociais.

3. Dialética do capital fictício: (dis)funcionalidade do capital fictício para a acumulação

A essa dinâmica de acumulação de capital na periferia agregam-se, com maior força na atualidade, o desenvolvimento e a dialética do capital fictício.

O capital fictício pode ser entendido como um desdobramento (com-plexificação) do capital portador de juros. O desenvolvimento da autono-mização das formas do capital e a separação entre o capital-propriedade e o capital-função permitem o aparecimento do que Marx chamou de mercadoria-capital.12 É possível, a partir disso, que o capitalista-proprie-

8 É nisso, basicamente, que consiste a tese do desenvolvimento do subdesenvolvimento segun-do Frank (1980). Sobre isso, Marini (1992, p. 88) afirma que “o subdesenvolvimento não é uma etapa que precede o desenvolvimento, ele é um produto do desenvolvimento do capitalismo mundial; nesse sentido, ele corresponde a uma forma específica de capitalismo, que se apura em função do próprio desenvolvimento do capitalismo”.9 O caso do recente “milagre” asiático é característico. Embora esses países tenham optado por maior soberania em suas inserções externas ativas, isso não resolveu o caráter dependente de suas economias, relembrado e reposto pela crise de 1997.10 Assim como nas origens da teoria do desenvolvimento, quando o subdesenvolvimento era mero estágio para a modernidade, a culpa pela situação de subdesenvolvimento seria responsa-bilidade única e exclusiva de “escolhas” erradas dos próprios países dependentes.

11 A proposta da nova Cepal, expressa na Reforma das reformas e na Transformação produtiva com eqüidade, guarda insignificante distância com essa perspectiva, como pode ser constatado em Ocampo (1999), Ffrench-Davis (1999), Cepal (1990) e Cepal (1998).12 Marx (1985, livro III, cap. 21) desenvolve essas categorias dentro da temática do capital por-tador de juros. Especificamente sobre o capital fictício, os caps. 25, 27, e 29 são a referência principal.

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tário abdique de utilizar seu capital-dinheiro como meio para inserir-se no processo de produção de mercadorias e empreste seus recursos para outro capitalista que pretenda fazê-lo. Esse capital-função entrará no processo de circulação do capital, comprando meios de produção e contratando força de trabalho, produzindo mercadorias com um valor acrescido, um exce-dente ou mais-valia, e vendendo essas mercadorias. A partir do resultado obtido, com a realização da mais-valia, esse capital-função poderá pagar o seu empréstimo, acrescido dos juros (remuneração do capital-propriedade, ou seja, do capital portador de juros), e mesmo assim poderá apropriar-se de um lucro. Juros constituem o rendimento do capital-propriedade, en-quanto lucro constitui o rendimento do capital-função.

O desenvolvimento desse processo faz com que todo rendimento ob-tido a partir de uma determinada taxa de juros apareça como o resultado da propriedade de um capital, isto é, da propriedade de um capital porta-dor de juros. Do ponto de vista do indivíduo, trata-se realmente de capital para o seu proprietário, dado que ele consegue um rendimento em deter-minado período. A partir dessa remuneração, para uma certa taxa de juros, obtém-se um montante de capital através do que se chama de capitaliza-ção.13 Entretanto, do ponto de vista da totalidade da economia capitalista, esse capital é fictício, uma vez que tem como base a participação de títulos de crédito em rendimentos futuros, que podem nem se realizar; além do que, o mesmo título pode ser revendido inúmeras vezes, a partir da mesma taxa de juros, formando várias propriedades (direitos de participação) com base em apenas um montante de capital inicial, que pode nem completar o seu processo de circulação.14

Assim, do ponto de vista individual, trata-se de capital para seu pro-prietário; mas, do ponto de vista do capital global, é fictício. Entretanto, o

caráter fictício desse capital não lhe retira influência sobre a acumulação de capital; sua lógica interfere na dinâmica da acumulação. Essa interferência é, como a própria dinâmica capitalista, contraditória, dialética. A dialética do capital fictício está relacionada à sua (dis)funcionalidade para o processo de acumulação de capital.

Como todo o processo de autonomização das formas do capital, o ca-pital fictício apresenta uma funcionalidade para a acumulação de capital. A sua centralização por parte do capital bancário15 permite o funcionamen-to de atividades produtivas que, de outra forma, teriam de esperar muito tempo para serem implementadas. Além disso, essa forma autonomizada promove a liberação de capital para o processo produtivo, uma vez que recursos que seriam gastos para a compra de meios de produção e força de trabalho, assim como para cobranças de mercadorias vendidas e ainda não pagas, não precisam mais se ocupar dessas funções, permitindo ao capital produtivo individual ocupar-se apenas do processo produtivo.16

Isso permite a maior acumulação global de capital, a redução do tempo de rotação do mesmo e, portanto, o aumento da taxa de lucro por período. A rotação do capital, reduzindo o tempo de seu ciclo, é uma resposta da economia capitalista à redução da taxa de lucro, imposta por seu próprio funcionamento de crise cíclica. O capital fictício, nesse momento, pode contribuir com essa resposta do capital para sua própria crise.17

Todavia, o capital fictício não produz apenas benesses para a dinâ-mica de acumulação de capital. Ele possui a funcionalidade descrita, mas possui uma disfuncionalidade que não pode ser negligenciada. O capital fictício, do ponto de vista individual, por si só não é capaz de produzir

13 Capitalização seria, assim, a formação do capital fictício. A partir de um determinado ren-dimento que, aplicando-se à taxa de juros vigente, forma um montante de recursos (capital), independentemente do fato de esse capital existir ou não (Marx, 1985, v. V, p. 5).14 O caráter autônomo da circulação do capital fictício é explicitado quando a cotação dos pa-péis supera o valor do capital industrial em que foi transformado o capital-dinheiro, e oscila com independência desse capital industrial em movimentos puramente especulativos.

15 Que não precisa se restringir à instituição financeira bancária. Instituições financeiras não bancárias podem perfeitamente cumprir essa função, como ocorre na atualidade. A categoria capital bancário, nesse sentido, não pode ser confundida com a instituição concreta banco.16 O capital comercial autonomizado permite o mesmo no que se refere à comercialização das mercadorias produzidas. Aliás, o capital portador de juros e o capital fictício, enquanto opera-dos pelo capital bancário, podem ser entendidos como desdobramentos dialéticos do capital de comércio de dinheiro.17 “O período recente da expansão americana só foi possível através da transferência de mais-valia produzida em todo o mundo e pela gigantesca expansão do capital fictício, o que masca-rou a pressão decrescente da taxa de lucro” (Nakatani, 2002, p. 1).

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valor excedente, mais-valia, pelo simples fato de que não entra no processo produtivo. O que ele faz é possibilitar/facilitar o financiamento do capital produtivo, em alguns momentos específicos. A sua lógica diz respeito à apropriação do excedente (via juros), não à sua produção, embora ele con-tribua indiretamente – via rotação do capital global – para o aumento da acumulação. Assim, se a lógica da apropriação de mais-valia é alastrada/ex-pandida, em detrimento da produção do excedente, uma parcela cada vez maior do capital global procurará apropriar-se de um valor que está sendo produzido cada vez menos. O resultado final é a redução da taxa de lucro e o aprofundamento do comportamento cíclico da crise.

Por um lado, a funcionalidade do capital fictício permite o prolonga-mento da fase ascendente do ciclo, possibilitando a redução do tempo de rotação do capital global e elevação da taxa de lucro. Por outro lado, quando sua lógica individual de apropriação se expande, a fase descendente (cri-se) do ciclo também é aprofundada. A disfuncionalidade do capital fictício amplia as potencialidades da crise. A dialética do capital fictício, com sua (dis)funcionalidade, complexifica/amplia a tendência cíclica do processo de acumulação de capital.

Qual é a relação dessa característica, inerente ao funcionamento do modo de produção capitalista, com a possibilidade de desenvolvimento ca-pitalista na periferia, baseada na superexploração da força de trabalho?

A superexploração da força de trabalho por arrocho salarial e/ou ele-vação da jornada e da intensidade do trabalho faz com que se produza uma maior massa de mais-valia em relação ao valor criado no processo pro-dutivo, aumentando a taxa de mais-valia. Quando esse maior excedente é apropriado em maior proporção pelo capital produtivo, são criadas as con-dições para a acumulação de capital acelerada, “virtuosa”.18 Por outro lado, quando a lógica de apropriação do excedente se amplia, sob a lógica do ca-

pital fictício, que não contribui diretamente na produção desse excedente, a mais-valia passa a ser apropriada cada vez mais em termos financeiros do que produtivos. Maior remuneração financeira (manifestada em altas taxas de juros, por exemplo) do que taxa de lucro do capital produtivo incentiva os capitais individuais a se transferirem para essa primeira esfera, a operar segundo a lógica do capital fictício. Isso deprime ainda mais a taxa de lucro do capital produtivo, uma vez que se tem menor produção de excedente, definindo um círculo vicioso de acumulação de capital travada.

Assim, a acumulação de capital “virtuosa” expande as fases ascenden-tes do ciclo, impulsionadas pela funcionalidade do capital fictício, enquan-to a acumulação de capital travada aprofunda a fase descendente – crise –, complexificada pela disfuncionalidade do capital fictício.

Essa dialética do desenvolvimento periférico permite entender, por exemplo, o que ocorreu na economia da América Latina durante os anos 1990. Nos poucos períodos em que o capital fictício foi funcional à acu-mulação de capital, acelerando sua rotação e financiando investimentos produtivos, as economias apresentaram um leve crescimento. Entretanto, durante a maior parte do período, a região apresentou uma dinâmica de acumulação de capital travada, de forma que a elevação da taxa de mais-valia por intermédio da superexploração da força de trabalho não se trans-formou em maior ritmo de acumulação de capital, porque a apropriação fi-nanceira pelo capital fictício reduziu as taxas de lucro do capital produtivo, principal incentivo para a acumulação de capital.

A década mais do que perdida para a região, como ficou conhecido o período, combinou superexploração da força de trabalho com uma acumu-lação de capital travada.

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18 Obviamente, o “virtuoso” aqui diz respeito aos interesses do capital que aumenta o ritmo de sua acumulação com maiores taxas de lucro. Do ponto de vista da força de trabalho, sua superexploração redunda, como visto, em distribuição regressiva da renda e da riqueza e na ampliação das mazelas sociais.

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Parte IV

Pensamento latino-americano e mundo contemporâneo

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Vigência e debate em torno da teoria da dependência

Marco A. Gandásegui, filho*

Este artigo começará com uma breve introdução ao debate em tor-no da teoria da dependência que caracterizou a década de 1970, centrado nos sociólogos Ruy Mauro Marini e Agustín Cueva. Em continuação, uma abordagem da relação entre as noções de desenvolvimento e dependência, para compreender os elementos constitutivos da teoria da dependência e a crítica dos “marxistas tradicionais”. Serão abordados três conceitos centrais ao debate em torno da teoria da dependência – teoria do valor, imperialis-mo e sujeito histórico –, e o artigo termina com uma conclusão relevante para o começo do século XXI.

As contribuições que foram feitas durante o debate sobre a teoria da dependência na década de 1970 estão reaparecendo por causa da urgência de encontrar os instrumentos teóricos que orientem a ação política dos povos nesta conjuntura dominada pela crise do neoliberalismo (Sotelo, 2001). Nesta comunicação, queremos resgatar o debate em torno da teoria da dependência que Ruy Mauro Marini e Agustín Cueva personificaram na década de 1970. Para Marini, a essência da dependência reside em uma profunda contradição que aparece como conseqüência do contraste entre a capacidade produtiva do trabalho nos países que se situam no centro do sistema capitalista (consumidores de “bens de salário”) e a superexploração

* Doutor em Sociologia pela Universidade do Estado de Nova Iorque (Suny). Desde 1971, é professor de Sociologia na Universidade do Panamá. Diretor do Cela (Panamá), ex-presidente da Alas, fundador e ex-ccordenador do grupo sobre Estados Unidos da Clacso.

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do trabalhador nos países periféricos (consumidores de “bens de produ-ção” dos países centrais). Isso explica a crescente separação entre os países do centro e os países da periferia. Ao contrário, segundo Cueva, a divisão entre países mais e países menos desenvolvidos é o resultado da presen-ça de formas pré-capitalistas de produção ainda enquistadas nos países dependentes. Cueva rejeitou a proposta de Marini, por entender que a dependência e a superexploração eram “tendências” históricas e, como tais, careciam de consistência teórica.

Queremos demonstrar neste artigo que a teoria da dependência ainda tem vigência e que pode ser aplicada em escala global e também nas análises por região e mesmo por país (por cada formação social). As idéias sobre a dependência, desenvolvidas na América Latina nas décadas de 1960 e 1970, partem do princípio de que as leis que caracterizam o desenvolvimento do capitalismo podem ser aplicadas onde essa organização da produção (social e material) é dominante ou exerce uma influência importante. Além disso, elas podem explicar o surgimento de pólos diferenciados de desenvolvi-mento no sistema capitalista mundial.

No início do século XXI, existem incertezas sobre a pertinência dos conceitos associados à teoria da dependência. Agustín Cueva diria que, no calor dos acontecimentos que sacudiram a região latino-americana no final da década de 1970, há 25 anos, o debate em torno das noções de dependên-cia perdeu o seu impulso original. Segundo Cueva, o debate girava

entre a teoria da dependência e uma teoria da “articulação de modos de produção sob o domínio capitalista”, discussão que na sua época levantou acesas paixões, mas que hoje, à distância (final da década de 1980), parece em grande medida superada (...). (Cueva, 1987, p. 178)

Ruy Mauro Marini atribuiria a perda de vigência das noções em torno da dependência a outros fatores. De acordo com o sociólogo brasileiro,

a pobreza teórica da América Latina na década de 1980 é, em ampla medida, o resultado da ofensiva contra a teoria da dependência, o que preparou o terreno para a reintegração da região ao novo sistema mundial que come-

çava a nascer e que se caracteriza pela afirmação hegemônica, em todos os planos, dos grandes centros capitalistas. (Marini, 2005)

Não se pretende, neste momento, fazer uma avaliação dos debates em torno da teoria da dependência. O seu aparecimento na década de 1960 e a sua preeminência na década seguinte se deveram, em parte, aos processos sociais que sacudiam o mundo e, em particular, ao continente americano naquela época. O desenvolvimento do capitalismo no quarto de século após a Segunda Guerra Mundial (1945-1970) introduziu profundas transforma-ções na região latino-americana (a Revolução Cubana foi o epicentro), o que não deixou de revolucionar a estrutura social.

Agustín Cueva diria que

a década de 1960 inicia um tipo de época de ouro das nossas ciências sociais, que pela primeira vez deixam de ser uma mera caixa de ressonância do que se diz na Europa e nos Estados Unidos para configurar sua própria proble-mática e até pretender elaborar sua própria teoria: a teoria da dependência. (Cueva, 1987, p. 176-177)

Ruy Mauro Marini dá um passo a mais ao destacar a influência das ciências sociais e, em particular, as noções sobre a dependência naquele período, sobre a produção teórica em todo o mundo. Segundo Marini, a teoria da dependência contribuiu para o “estudo da América Latina pelos próprios latino-americanos...”; da mesma maneira, ela conseguiu inverter “pela primeira vez o sentido das relações entre a região e os grandes cen-tros capitalistas (...). Em vez de receptor, o pensamento latino-americano passou a influir sobre as correntes progressistas da Europa e dos Estados Unidos” (Marini, 2005).

Sobre a influência das correntes de pensamento da periferia em escala mundial, Samir Amim diria que “o pensamento social crítico se moveu durante as décadas de 1960 e 1970 para a periferia do sistema”.1

1 “No centro dessa crítica havia uma nova advertência sobre a polarização criada pela expansão global do capital, que tinha sido subestimada e às vezes ignorada há já um século e meio. Essa crítica está na origem da entrada da periferia no pensamento moderno (...). Mais ainda, essa

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Dependência e desenvolvimento As idéias sobre a dependência penetraram em amplos setores das ciên-

cias sociais em todos os centros acadêmicos e políticos do mundo. O con-ceito mais comum sobre as relações de desigualdade (que faziam referência à oposição entre dominação e dependência) fazia referência à antinomia desenvolvimento e subdesenvolvimento. Para muitos, essa relação era um eufemismo para diferenciar os países ricos dos países pobres. Também se referia ao contraste entre Estados poderosos e Estados fracos.

A maioria dessas abordagens tinha como referência elementos em-píricos e de sentido comum. Não se podiam negar as relações coloniais, neocoloniais e de outra natureza que caracterizavam as relações entre os países mais ricos e os países mais pobres, tanto no presente quanto no passado. Essas relações são de dominação, são impostas – a maioria das vezes – por meios violentos.

A teoria da dependência, no entanto, não tinha como propósito fa-zer uma descrição das relações na estrutura de poder ou das diferenças na organização econômica entre os países em escala global. Esse trabalho já tinha sido realizado, de maneira minuciosa. As correntes positivistas são suas paisagens contrastantes entre “civilização” e “barbárie”. Do mesmo modo, o funcionalismo deu suas contribuições sistemáticas, desenhando um mundo “dual”, separando os povos “modernos” daqueles apegados ao “tradicional”. Os avanços da pesquisa funcionalista, que se autodenomina-vam “científicos”, criavam indicadores de natureza diversa para medir as diferenças, os avanços e os retrocessos das instituições sociais.2

É preciso reconhecer as importantes contribuições das teorias do desenvolvimento que incorporaram noções sobre o intercâmbio desigual e a exploração da força de trabalho (Kay, 2001). Talvez a proposta mais destacada que as teorias desenvolvimentistas fizeram se referia à suposta viabilidade de um desenvolvimento capitalista sem transformações radi-cais ou levantes violentos. A proposta, ancorada nas críticas à economia política de Marx e Keynes, assegurava que os países da periferia podiam alcançar o centro do sistema capitalista mediante negociações políticas e político-econômicas. Cardoso e Faletto, no seu texto clássico publicado em 1969, afirmariam que

a superação ou a manutenção das “barreiras estruturais” ao desenvolvimento e à dependência, mais do que as condições econômicas tomadas isolada-mente, dependem do jogo de poder que permitiria a utilização em vários sentidos dessas condições econômicas. (Cardoso & Faletto, 1969, p. 165)

Enquanto os desenvolvimentistas propunham um desenvolvimento capitalista com “dependência associada”, os marxistas rejeitavam essa pro-posta em diferentes graus. O debate entre as diferentes correntes marxistas girou precisamente em torno do conceito de dependência e dos seus efeitos sobre o desenvolvimento capitalista. É preciso recordar, como assinala Sotelo, que são muito diversas as correntes

que concorrem para caracterizar a dependência como conceito, hipótese ou teoria (...). Ainda que todas falem da dependência, o que as distingue é o predomínio ou a subordinação que o conceito de dependência ocupa dentro de aparato teórico-conceitual. Para a Cepal, a dependência é uma categoria conjuntural, “na medida em que pode ser superada pela ação da política econômica dos governos”. Ao contrário, Frank sustentava que “a dependência e o subdesenvolvimento são categorias estruturais que correspondem ao modo de produção capitalista e somente são superadas com a sua abolição”. (Sotelo, 2001, p. 52)

crítica fez reviver o debate sobre o marxismo e sobre o materialismo histórico, entendendo desde o início a necessidade de superar os limites do eurocentrismo que vinha dominando o pensamento moderno” (Amim, 2000).2 “Por exemplo, Gino Germani (1971) dizia que “todos os estudos comparativos, baseados na utilização de uma variedade de indicadores de modernização econômica, política e social, si-tuam a América Latina em uma posição na metade superior da escala” (p. 13). Esse autor, no entanto, também dizia que “muito pouco se poderia entender acerca da situação da América Latina sem levar permanentemente em consideração as diversas formas e os graus de depen-dência implicados na ‘situação periférica’ (...)” (p. 9).

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Os chamados marxistas tradicionais, apoiados em noções elaboradas pelos desenvolvimentistas, sustentavam a viabilidade de uma aliança po-pulista entre capitalistas e operários. Também subscreviam parcialmente as teses da Cepal no sentido de que, se eles tomassem o poder, poderiam impulsionar políticas transformadoras a partir do governo. Os marxistas da “nova esquerda” rejeitaram essa possibilidade, assinalando que as leis próprias do desenvolvimento capitalista cancelavam essa alternativa.3

A respeito desse ponto, a teoria da dependência da corrente marxista desenvolveu uma proposta original. Nas palavras de Ruy Mauro Marini, era preciso “buscar uma teoria intermediária que, baseada na teoria mar-xista, conduzisse a compreensão do caráter subdesenvolvido e dependente da economia latino-americana e sua legalidade específica”.

Na Dialética da dependência, Marini rejeitaria

a linha tradicional da análise do subdesenvolvimento, mediante a qual esta se fazia através de um conjunto de indicadores que, por sua vez, serviam para defini-lo (...). O resultado não somente era descritivo, mas também tautológico: um país seria subdesenvolvido porque seus indicadores corres-pondiam a um certo nível de uma escala determinada e esses indicadores se situavam nesse nível porque o país era subdesenvolvido. (Marini, 2005, p. 19-20)

Marini mudou o eixo sobre o qual se estudava o subdesenvolvimento e começou a investigar a relação e a integração da América Latina no mer-cado mundial. O seu estudo sobre a economia exportadora do século XIX o levou a concluir que esse processo era o resultado de uma transição para o capitalismo, no marco de uma determinada divisão internacional do traba-lho. Portanto, as transferências de valor que eram feitas da periferia para o centro não constituíam “anomalias ou obstáculos”, mas antes eram normais

dentro do padrão de acumulação capitalista e eram mesmo um estímulo para a sua consolidação com base em suas duas premissas: abundância de matéria-prima e abundância de mão-de-obra. A industrialização posterior do século XX estaria solidamente assentada nas premissas deixadas pela economia exportadora (em todos os sentidos). Dessa análise, Marini diria que “a história do subdesenvolvimento latino-americano é a história do desenvolvimento do sistema capitalista mundial”.

A teoria da dependência e sua crítica marxistaMarini entendeu a relação de dependência, no marco do desenvol-

vimento capitalista, como o produto de uma “profunda contradição” que emerge como conseqüência do contraste entre a capacidade produtiva do trabalho, nos países centrais, e a acumulação fundada na superexploração do trabalhador, nos países periféricos. “Nesta contradição reside a essência da dependência latino-americana” (Marini, 1973, p. 49). É preciso ver esse processo um pouco mais de perto. Assinalava Marini:

Nos países industriais, apesar de que o capital privilegie o consumo produti-vo do trabalhador (o processo de trabalho) e se incline a negar o seu consu-mo individual (para repor a sua força de trabalho), isso se dá exclusivamente no momento da produção. Ao se abrir a fase de realização, esta contradição aparente entre o consumo individual dos trabalhadores e a reprodução do capital desaparece, uma vez que esse consumo (somado ao dos capitalistas e das camadas improdutivas em geral) faz retornar para o capital a forma que lhe é necessária para começar um novo ciclo, um elemento decisivo na cria-ção da demanda para as mercadorias produzidas (...). (Marini, 1973, p. 51)

Ao contrário, afirma ainda ele:

na economia exportadora latino-americana, as coisas se dão de outra ma-neira. Como a circulação se separa da produção e se realiza basicamente no âmbito do mercado externo, o consumo individual do trabalhador não in-terfere na realização do produto, ainda que determine a taxa da mais-valia.

3 Agustín Cueva assinalaria, em meados da década de 1980, que, “para o caso da América Latina, não é supérfluo recordar que também existem diferenças muito claras no desenvolvi-mento dos partidos comunistas” (Cueva 1987, p. 166).

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Em conseqüência, a tendência natural do sistema será a de explorar ao má-ximo a força de trabalho do operário, sem se preocupar com criar as con-dições para que este a reponha, sempre e quando ele possa ser substituído mediante a incorporação de novos braços no processo produtivo (...). [O] resultado foi o de dar livre curso à compressão do consumo individual do operário e portanto à superexploração do trabalho. (Marini, 1973, p. 52)

Levando em consideração essa contradição, entende-se como

a produção latino-americana não depende, para a sua realização, da capa-cidade interna de consumo. Assim, se dá, a partir do ponto de vista do país dependente, a separação dos dois momentos fundamentais do ciclo do capi-tal – a produção e a circulação de mercadorias –, cujo efeito é fazer com que apareça de maneira específica na economia latino-americana a contradição inerente à produção capitalista em geral, quer dizer, a que opõe o capital ao trabalhador enquanto vendedor e comprador de mercadorias. (Marini, 1973, p. 50)

A conclusão de Marini é simples. Quanto maior for o desenvolvimen-to capitalista, maior será a superexploração do trabalhador na periferia e, em particular, do trabalhador latino-americano. A única solução é romper a relação de dependência e começar a construir uma nova forma de acu-mulação que beneficie os trabalhadores da região.

O “marxismo tradicional” questionou essa tese e confrontou a teoria da dependência. Do mesmo modo que as outras correntes de pensamento, os marxistas vinculados à linha tradicional apresentaram as suas críticas à totalidade das propostas “dependentistas”. Poder-se-ia colocar Agustín Cueva à cabeça dessa ofensiva.4 Diferentemente da maioria dos críticos, no entanto, Cueva teve o bom critério de distinguir entre os “dependentistas” marxistas, os desenvolvimentistas e mesmo os funcionalistas.

Cueva reconheceu a contribuição teórica de Marini, mas indicou o seu desacordo com a corrente desenvolvida pelo sociólogo brasileiro, afirmando que ela distorcia alguns conceitos centrais do marxismo. Para aquele autor, não havia como negar a “situação” real da dependência, a partir de uma perspectiva histórica. No entanto, considerava que não era correto colocar uma teoria da dependência com fins explicativos (Roit-man, 2005).

É interessante constatar que Marini trabalhou no seu livro Dialética da dependência durante vários anos, quando trabalhava no Ceso da Uni-versidade do Chile. Na sede do Ceso, em Santiago do Chile, trabalhava com pesquisadores como Theotonio dos Santos e Vânia Bambirra, entre outros. O livro foi publicado na Cidade do México pela Era em 1973. Cueva, ao contrário, encontrava-se trabalhando na Unam no marco das correntes marxistas tradicionais (em estreito contato com Sergio de la Peña e Roger Bartra, entre outros), que desenvolviam noções em torno da “articulação dos modos de produção”.

Apesar das distâncias que separavam os diferentes centros de produ-ção de ciências sociais na região, existiam excelentes meios de comunicação. Não surpreende, portanto, que, mesmo quando o livro de Marini veio a público em setembro de 1973, já no XI Congresso da Associação Latino-Americana de Sociologia (Alas), realizado em julho de 1974, Cueva tenha feito uma severa crítica às teses dependentistas sustentadas pelo sociólogo brasileiro.

Na comunicação que apresentou no Congresso da Alas, organizado pela Universidade da Costa Rica em San José, Cueva começou fazendo uma clara separação de águas:

A teoria da dependência, pelo menos na sua vertente de esquerda, nasce marcada por uma dupla perspectiva (...). Em primeiro lugar, surge como uma violenta impugnação da sociologia burguesa (...). Por outro lado, surge em conflito com o que, a partir de certo momento, resolverá chamar-se de “marxismo tradicional”. (Cueva, 1979, p. 65)

4 Anos mais tarde, Cueva admitiria que “nunca achamos que as nossas críticas de meados da década de 1970 à teoria da dependência, que pretendiam ser de esquerda, poderiam se somar ao aluvião direitista que depois se precipitou sobre aquela teoria” (Marini, 2005, p. 43).

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Nessa vertente de esquerda, Cueva colocaria de forma explícita os tra-balhos de Vitale, Frank, Quijano, Theotonio, Vânia Bambirra e Ruy Mauro Marini. Também menciona Stavenhagen, Weffort e Cardoso.5

Cueva questionou a forma como Marini utilizou o processo de produ-ção capitalista e sua manipulação da noção de circulação. Dizia ele:

Essa mesma produção exportável, que torna possível a implantação de um modo de produção especificamente capitalista nos países industrializados, tem como contrapartida, nos países dependentes, o estabelecimento de um modo de produção baseado na superexploração. Quer dizer, na remune-ração permanente do trabalho abaixo do seu valor, o que por sua vez se transforma em um freio para o desenvolvimento (...). (Cueva, 1979, p. 89)

Essa abordagem de Cueva despertou equívocos. Afirmava-se que Marini tinha proposto um novo modo de produção dependente para ex-plicar o desenvolvimento latino-americano e do Terceiro Mundo em geral. Qualquer consideração desse tipo foi descartada logo depois, sem que Marini tivesse de discutir a fundo as suas implicações.

Cueva também criticou Marini, na sua memorável comunicação, pelo que chamou de falta de rigor histórico. Rejeitou sua proposta que susten-tava que, para entender o padrão de acumulação dos países da periferia, era necessário entender o desenvolvimento capitalista em escala mundial. Nesse caso, Cueva subordinava o desenvolvimento capitalista mundial a supostas formações históricas feudal-oligárquicas que resistiam às trans-formações que o imperialismo lhes impunha.

Finalmente, Cueva rejeitou a abordagem da teoria da dependência, que assinala que a natureza das formações sociais seria determinada, em última análise, por sua forma de articulação no sistema capitalista. Sugeriu inclusive inverter a afirmação e se perguntar se não era antes a natureza das

nossas sociedades que determina, em última análise, a sua vinculação ao sistema capitalista mundial.

Enquanto Cueva descarregava todo o seu peso conceitual na sua crí-tica a Marini, este não parou de indicar os erros metodológicos em que incorriam os marxistas tradicionais. Nas primeiras páginas de Dialética da dependência, Marini mostrava que

os pesquisadores marxistas incorreram, no geral, em dois tipos de desvios: no primeiro caso, os estudos marxistas chamados de ortodoxos (...) [dão] lugar a descrições empíricas que correm paralelamente ao discurso teórico, sem se fundir com ele. No segundo (...) os estudiosos de formação marxista recorrem simultaneamente a outros enfoques metodológicos e teóricos; a conseqüência necessária desse procedimento é o ecletismo (...).

E acrescentava:

Estes desvios nascem de uma dificuldade real: diante do parâmetro do modo de produção capitalista puro, a economia latino-americana apresenta pecu-liaridades, que são tidas às vezes como insuficiências e outras – nem sempre distinguíveis facilmente das primeiras – como deformações (...). Por isso, mais do que um pré-capitalismo, o que se tem é um capitalismo sui generis que só adquire sentido quando o contemplamos na perspectiva do sistema no seu conjunto, tanto em nível nacional, como principalmente em nível internacional. (Marini, 1973, p. 14-15)

Os enfrentamentos entre Cueva e Marini – em congressos, nas sa-las de aula e em publicações – contribuíram para esclarecer um conjunto de perguntas sobre o desenvolvimento do capitalismo, particularmente a teoria do imperialismo do final do século XX. Podemos mencionar seis antinomias que foram enfocadas pelos dois sociólogos:

1a) Dominação e hegemonia. Sem desconhecer o valor do conceito de hegemonia de Gramsci, Cueva o relegava a um segundo plano diante da noção de dominação. Provavelmente, essa diminuição de importância da contribuição crítica de Gramsci se deveu ao embate entre os eurocomunis-

5 Sobre o livro de Cardoso e Faletto (1969), Cueva pontua “que todo o discurso teórico dos autores parece remeter constantemente a um duplo código e ser suscetível, portanto, de duas leituras, uma marxista e outra desenvolvimentista (...)” (Cueva, 1979, p. 74).

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tas e marxistas tradicionais da época. Marini empregou ambos os conceitos e os utilizou de forma dialética, afirmando que os dois faziam parte de um só movimento na luta de classes.

2a) Etapas e sistemas. No caso de Cueva, ele apresentava as três etapas no desenvolvimento do capitalismo na América Latina como articulações de diferentes modos de produção. Ao contrário, Marini situava sua crítica no marco de um sistema internacional capitalista, em que a burguesia dos países dominantes exercia a sua dominação em escala global, em um pro-cesso caracterizado por contradições e conflitos.

3a) Colonialismo e dependência. Segundo Cueva, a dependência da América Latina em relação às potências européias remonta à colônia e à conquista. É um fenômeno histórico com adornos econômicos e culturais explícitos. Para Marini, a dependência é um produto do desenvolvimento do capitalismo, que gera uma relação dialética entre o centro do sistema que se expande e a periferia que é submetida à sua lógica.

4a) Processos nacionais e processos globais. Segundo Cueva, a luta de classes deve ser estudada em cada formação social, e daí a importância das lutas de libertação nacional. O papel dos partidos marxista-leninistas e o en-frentamento do imperialismo são de vital importância para conduzir essas lutas. Para Marini, a luta de classes ocorre entre os capitalistas e os trabalha-dores submetidos a uma lógica global. É entendendo esse processo em escala internacional que os setores mais avançados da classe operária de cada país podem culminar com êxito as revoluções políticas e a tomada do poder.

5a) Somente um sistema capitalista e dois sistemas capitalistas. A crí-tica mais severa de Marini aos marxistas tradicionais estava baseada no conceito retirado dos estruturalistas, que colocava em lugares opostos o desenvolvimento e o subdesenvolvimento, um conceito inserido em uma articulação de dois ou mais modos de produção, o que levava à proposta de que podiam coexistir dois sistemas capitalistas. Por um lado, o capitalismo avançado; por outro, o capitalismo atrasado, cada um com as suas próprias características. Marini sustentava que o desenvolvimento e o subdesenvol-vimento eram indicadores que podiam ser úteis para descrever situações concretas. No entanto, a tendência da acumulação capitalista segue um

mesmo padrão em escala mundial, que pode apresentar manifestações dis-tintas em diferentes momentos conjunturais (a noção de superexploração é um bom exemplo).

6a) Um bloco socialista em construção ou um socialismo realmente exis-tente. Reforma ou revolução. Para Marini, era necessário colocar as reformas no marco de alternativas revolucionárias, ao invés de processos contínuos que conduziam o regime político capitalista ao seu fortalecimento. Cueva sustentava a construção do socialismo em um país por via de aproximações e reformas cumulativas.

Em seguida, foram enfocados três conceitos marxistas desenvolvidos por Marini para explicar a dialética do desenvolvimento capitalista mun-dial e o modo como aparecem as relações de dependência. Nessa aborda-gem, serão incorporadas as críticas de Cueva.

Em primeiro lugar, Marini sustentou que qualquer estudo do capita-lismo (entendido como sistema mundial) tinha de partir da teoria do valor (do trabalho social) desenvolvida por Marx na sua crítica da economia po-lítica. A pergunta fundamental era (e continua sendo): como se produz a mais-valia e como esta se transforma em lucro para o capitalista? Por um lado, ela é fundamental porque ainda é a pergunta que serve para poder entender o nível que alcançou a luta de classes no início do século XXI. Por outro, o debate serviu para descartar definitivamente, naquele momento, a suposta necessidade de erradicar um feudalismo inexistente.

Em segundo lugar, Marini sustentava a necessidade de utilizar a teoria do imperialismo e a sua aplicação nas contradições geradas pelo desenvol-vimento do capitalismo na segunda metade do século XX. Nesse aspecto, todas as implicações teóricas do imperialismo foram submetidas a um exa-me no marco das antinomias assinaladas supra.

Finalmente, Marini introduziu no debate o problema do sujeito his-tórico e o papel das classes sociais, da nação e dos partidos políticos. A discussão em torno do estatuto teórico da classe operária, de suas alianças e do seu projeto socialista é o elemento central nesse tema. Além disso, a discussão sobre a construção do socialismo e o rompimento com o sistema capitalista vai desempenhar um papel importante.

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A teoria do valorApoiando-se na teoria do valor, Ruy Mauro Marini penetrou nas áre-

as mais profundas do modo de produção capitalista. A sua primeira pre-ocupação estava relacionada com a forma na qual as relações sociais de produção capitalistas produzem excedentes (mais-valia) e como estes se transformam em lucros. É nessa exploração que Marini coloca a sua prin-cipal tese, a qual, por outro lado, foi objeto de severas críticas por parte dos marxistas tradicionais.

Para entender o desenvolvimento do capitalismo na América Latina, na periferia do sistema capitalista, Marini afirma que é preciso desen-tranhar o problema da circulação (dos valores de troca no processo de produção). Diferentemente dos países centrais, nos quais o momento da produção determina todo o ciclo, nos países dependentes é a circulação que ainda define o processo. É importante levar em consideração essa dis-tinção, diz Marini, já que ela permite explicar por que a força de trabalho na periferia é objeto de superexploração.

Como a circulação se separa da produção e se realiza basicamente no âmbito do mercado externo, o consumo individual do trabalhador não in-terfere na realização do produto, embora determine a taxa de mais-valia. Em conseqüência, a tendência natural do sistema será a de explorar ao má-ximo a força de trabalho do operário (Marini, 1973, p. 49).

A transferência desses lucros para os países industriais se transforma, de acordo com Marini, em uma condição necessária do capitalismo mun-dial. A crise de superprodução que afetava o sistema capitalista mundial a partir da década de 1970 alterou parcialmente esse processo.6 Autores como Harvey (2005) afirmam que, atualmente, o capitalismo voltou às suas práticas “primitivas” de rapina, por não conseguir as taxas médias de lucro necessárias para a sua reprodução.

Uma das conseqüências mais importantes, do ponto de vista político, que teve o debate em torno das noções de circulação e superexploração

foi que, na prática, pôs fim às ideologias que pretendiam explicar o sub-desenvolvimento como uma conseqüência do suposto atraso (escassez de instituições modernas) dos países periféricos. Mais importante, nesse sen-tido, os debates deram um ponto final aos discursos que colocavam entre as prioridades a liquidação do feudalismo na América Latina.

O subdesenvolvimento capitalista é o resultado de uma lógica que é própria do desenvolvimento capitalista. Em outras palavras, o desenvol-vimento capitalista e o subdesenvolvimento capitalista só podem ser expli-cados através da compreensão das próprias leis gerais do capitalismo. Essa lógica eliminava das discussões teóricas qualquer menção ao feudalismo como forma de organização social da produção, que freava o desenvolvi-mento capitalista. Desaparecia, por sua vez, a proposta de uma aliança entre as classes capitalista e operária para liquidar os remanescentes feudais supos-tamente enquistados nas formações sociais dos países subdesenvolvidos.

Obviamente, isso não implicava desconhecer a forma de organização da produção social historicamente associada ao feudalismo. Como resulta-do do debate em torno da teoria da dependência, a discussão política sobre as tarefas correspondentes à classe operária não passou mais por alianças de classe para combater senhores feudais inexistentes.

A superexploração não era um remanescente do feudalismo, tal como a preeminência da circulação tampouco era. Marini deixou assentada a ne-cessidade de continuar aprofundando na descoberta das relações entre os processos de acumulação do capitalismo como sistema mundial.

Segundo Sotelo, alguns autores vêem a noção de Marini sobre a supe-rexploração como a sua contribuição mais acabada e original. Vânia Bam-birra diria que “a grande contribuição de Marini à teoria da dependência foi ter demonstrado como a superexploração do trabalho configura uma lei de movimento própria do capitalismo dependente” (Sotelo, 2001, p. 55).

Agustín Cueva, porém, tinha outra posição diante dos avanços de Marini. Diria ele: “A nós nos parece extremamente controvertidas aquelas posições teóricas que, a partir de um fato certo, qual seja, a situação de de-pendência, consideram que a história das nossas nações é um mero reflexo, positivo ou negativo, do que acontece fora delas.”

6 Segundo Harvey, “o único ponto de acordo geral é que algo significativo tinha mudado no modo de funcionamento do capitalismo desde 1970”. Apud Giovani Arrighi (1999, p. 16).

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Cueva afirmava ainda “que o desenvolvimento do capitalismo não é outra coisa senão o desenvolvimento das suas contradições específicas, quer dizer, de um conjunto de desigualdades presentes em todos os níveis da estrutura social”.

Até aqui, não há contradições com as noções de Marini. De acordo com essa lógica, Cueva acrescentaria que o desenvolvimento do capitalismo na “América Latina não constitui propriamente uma infração à regra, mas antes uma realização ‘extrema’ dela própria”. Para Marini, aqui se apresenta uma ambigüidade que levaria Cueva por um caminho sem saída. Por isso, Cueva acaba afirmando que, “aqui, o desenvolvimento desigual adquire por isso o caráter de uma verdadeira ‘deformação’, ao mesmo tempo em que a exploração e a conseqüente pauperização das massas assumem o caráter de uma ‘superexploração’ (...)” (Cueva, 1977, p. 99).

Cueva insistiria, diversamente das colocações dos teóricos da depen-dência marxistas, que os investimentos do centro capitalista contribuíam para a redefinição das relações de produção nos países da periferia. Marini, por sua vez, consideraria que esse enfoque passava por alto a mais impor-tante análise do desenvolvimento capitalista em escala mundial. A repro-dução de relações desiguais entre os setores que configuram a sua estrutura social é parte medular do desenvolvimento capitalista e a constituição de relações de dependência é uma das características mais importantes do sistema capitalista mundial.

De acordo com Marini, a modalidade do desenvolvimento capitalis-ta na América Latina não tem características “extremas” ou “deformadas”. Essa modalidade “funciona” para a economia capitalista mundial e “altera” a economia latino-americana. Marini afirmaria que “a economia exportadora, que surge em meados do século XIX, aparecia como o processo e o resultado de uma transição para o capitalismo e como a forma que assume esse capita-lismo, no marco de uma determinada divisão internacional do capitalismo”.

Como conseqüência disso:

as transferências de valor não podiam ser vistas como uma anomalia ou um obstáculo, mas antes como uma conseqüência da legalidade própria do

mercado mundial e como um estímulo ao desenvolvimento da produção capitalista latino-americana com base em duas premissas (abundância de recursos naturais e abundância de mão-de-obra = superexploração do tra-balho). (Marini, 2005, p. 20)

De acordo com a exposição de Cueva, o desenvolvimento do capitalis-mo na América Latina, através dos investimentos e da modernização, leva-va à criação de novas condições favoráveis para uma transformação social. Em outras palavras, o desenvolvimento do capitalismo na América Latina acabaria por criar contradições de classe que só poderiam ser resolvidas pelo aparecimento de novas formas de organização social. A posição de Marini era que precisamente o desenvolvimento do capitalismo na região (ou no terceiro mundo, em geral) aprofundava as relações sociais capitalis-tas de dependência, quer dizer, a superexploração da força de trabalho.

Cueva assinalaria depois, no final da década de 1980, em um capítulo intitulado “A superexploração revisitada”, que, “no plano da abstração mais elevada, acaba sendo praticamente impossível sustentar uma teoria da superexploração” (Cueva, 1988, p. 53). No entanto, acrescentaria:

só o fato de que algo não apareça com nitidez no plano teórico não demons-tra que não exista no plano histórico. Tal como a dependência, a superex-ploração pode se dar dentro de uma constelação histórico-concreta sem que necessariamente reflita uma legalidade teórica inexorável.

Cueva também não aceitou a fundamentação teórica da superexplora-ção exposta por Marini. Mas admitiria que se trata “de um fato pelo menos tendencial, dadas não tanto as características teóricas do modo de produ-ção capitalista, mas antes as modalidades concretas de articulação do capi-talismo em escala mundial, isto é, do imperialismo”.

Além disso, em um gesto muito próprio de Agustín Cueva, ele con-cluiu que “se algum erro podemos detectar (...) esse erro não residiria na superexploração, mas no que diz respeito ao subimperialismo (...)” (Cueva, 1988, p. 54).

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A teoria do imperialismo Nas décadas de 1960 e 1970, as teorias marxistas do imperialismo

entraram em uma fase de grande produção, respondendo aos processos sociais que caracterizavam o desenvolvimento capitalista mundial nesse momento histórico. Arrighi7 diria que foram décadas nas quais a teoria do imperialismo parecia se encontrar em uma Torre de Babel, onde os pró-prios marxistas não se punham de acordo sobre o seu objeto de estudo.

O período foi semelhante àquele gerado no início do século XX, meio século antes, quando foram discutidas as noções de um imperialismo que, por um lado, impulsionava a expansão permanente do capitalismo (obriga-do a resolver as suas crises periódicas), e, por outro, descrevia um capitalis-mo que crescia seguindo etapas sucessivas e cumulativas.

No início do século XX, os personagens que deixaram suas marcas políticas em torno da discussão foram Lenin e Rosa Luxemburgo. Duas figuras teóricas, mas sobretudo revolucionárias, que encabeçavam proje-tos de transformação social, respectivamente, na Rússia e na Alemanha.8 Meio século depois, na América Latina, a discussão girava também em torno de dois teóricos: de um lado, Agustín Cueva; de outro, Ruy Mauro Marini. Na melhor escola leninista, Cueva formularia a tese do desenvol-vimento capitalista por etapas. A característica central do capitalismo no século XX seria o imperialismo, a última e superior etapa do desenvolvi-mento capitalista, posterior aos seus diversos desenvolvimentos nacionais. Marini, ao contrário, entenderia a economia mundial e suas assimetrias como uma característica inerente ao desenvolvimento do capitalismo, pre-

sente em todas as suas fases do desenvolvimento e abarcando todas as suas contradições sociais.

Para Cueva, o imperialismo tinha três efeitos na América Latina. Em primeiro lugar, desnacionalizava a economia latino-americana com suas conseqüências políticas. Em segundo lugar, deformava o aparelho pro-dutivo local. Em terceiro lugar, dizia Cueva, “estes investimentos são o veículo mais expedito para a sucção do excedente econômico. O capital imperialista flui para a América Latina atraído pela possibilidade de obter superlucros (...)”.

Marini rejeitou essa concepção do imperialismo. Por causa disso, foi alvo de críticas tanto dos marxistas tradicionais como também de parte dos desenvolvimentistas. Segundo Marini, “não é no interesse do imperialismo que é preciso rejeitar este tipo de raciocínio, mas no interesse das possibi-lidades das massas exploradas da América Latina em abrir caminho para a sua libertação”.

Sua visão pode ser sintetizada na seguinte citação: “Para lutar contra o imperialismo, é indispensável entender que ele não é um fator externo à so-ciedade latino-americana, mas antes o terreno onde esta finca as suas raízes e um elemento que a permeia em todos os aspectos” (Marini, 1974a).

Essa relação dialética entre o interno e o externo é o aspecto que os marxistas tradicionais não aceitavam. Marini incorpora ao quadro ocu-pado por noções econômicas o elemento político, ao falar do papel das “massas exploradas”. Acrescentaria que “as conseqüências do conhecido símbolo gráfico, que nos mostra o malvado Tio Sam manipulando suas marionetes, não são para a análise política e a estratégia de luta que dele deve derivar, mas a denúncia lacrimosa e a impotência indignada” (Marini, 1974a, p. VII-XXIII).

Em outras palavras, as afirmações de Cueva no sentido de que “o capital imperialista flui para a América Latina atraído pela possibilidade de obter superlucros” não se sustenta. O capital se distribui no sistema segundo as suas possibilidades de gerar excedentes. A superexploração se efetua através da redução do salário abaixo dos níveis de reprodução da força de trabalho.

7 Giovani Arrighi (1999, p. 14) diz que, “durante a década de 1970, a tendência predominante parecia apontar para a recolocação destes processos a partir dos países de renda mais elevada (centro) para os países e regiões de renda baixa (periferia). Durante a década de 1980, pelo contrário, tendência predominante parecia apontar para uma nova centralização do capital nos países e regiões de renda elevada”.8 Sobre esse caso particular, é interessante, por duas razões, a comunicação de Franz Lee (1983), apresentada à V Conferência da Associação Nigeriana de Ciência Política, em abril de 1981, em que ele diz que “o enfoque da teoria da ‘dependência’ começou nas análises marxistas ‘clássicas’ [no período entre] 1910 e 1920”. A primeira razão se refere à ascendência que Lee atribui às noções sobre a dependência. A segunda razão é comprovar como, naquela época, as noções de dependência eram discutidas na África.

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Para Cueva, essas afirmações eram “extremamente controvertidas”. Cueva aceita que “a nossa história particular está inserida naquela (do centro do sistema) (...)”. No entanto, acrescentaria que “esta inserção não se dá de forma passiva, mas com um dinamismo próprio”. Referindo-se a Marini, sem dúvida, formula que “são extremamente controvertidas aque-las posições teóricas que, a partir de um fato certo, qual seja, a situação de dependência, consideram que a história das nossas nações é um mero refle-xo positivo ou negativo do que acontece fora delas” (Cueva, 1977, p. 147).

Marini, no entanto, não se referia a uma relação entre nações. Para isso, teria de retornar a Marx, que, em meados do século XIX, assegurava que, com a construção de ferrovias na Índia, este país podia ver o seu futuro refletido na Inglaterra, país dominado pela nova tecnologia do transpor-te. A preocupação de Marini estava no desenvolvimento do capitalismo em escala mundial e nos seus efeitos sobre a região latino-americana. Ele insistia em que a reprodução capitalista nos países que eram alvos da do-minação imperialista devia ser estudada a partir da circulação mundial de mercadorias. O ciclo da produção, no que se refere à realização, assume forma específica no país dependente.

Nesse enfrentamento com os marxistas tradicionais, que sustentam a tese que Sotelo (2001) chama de “endogenista”, Marini assinalava que, para aquela corrente de pensamento, “o imperialismo constituiria uma variável a ser introduzida ex post, uma vez entendida a particularidade da formação social estudada”. O edifício teórico dos seguidores da vertente tradicional estaria no desenvolvimento histórico latino-americano ao longo de sua conquista e colonização até o século XX. Seu ponto de partida “é a acu-mulação primitiva do capital nessas economias, que deve ser seguida, de acordo com o esquema de Marx, pelas fases manufatureira e fabril, em um processo que está entrelaçado e articulado com outros modos de produção que preexistiram ao capitalismo” (Marini, 1992, p. 93).

O processo de acumulação originária atravessado pela América Lati-na não foi para a acumulação de economias ou para impulsionar a ascensão das classes sociais do continente americano recém-aberto à exploração em escala maciça. Ao contrário, respondia a um processo global cujo benefi-

ciário imediato era a classe burguesa ascendente na Europa. Caso se possa falar de articulações entre as formas de exploração introduzidas pela Euro-pa e pelas organizações socioeconômicas existentes na região, tratava-se de relações que se ajustavam aos interesses dos colonizadores.

A reação de Agustín Cueva consistiria em assinalar que querer explicar o desenvolvimento histórico da América Latina e os efeitos do imperialis-mo nas diferentes formações sociais da região não conduziria a conclusões teoricamente sustentáveis. Segundo ele, explicar o desenvolvimento interno de cada formação social a partir da sua articulação com outras formações sociais tem suas “limitações inerentes”. Ele sugere que seria mais produtivo inverter a pergunta e colocar para si se “não seria antes a índole de nossas sociedades aquilo que determina em última análise a sua vinculação com o sistema capitalista mundial”.

Cueva rejeitaria as formulações de Marini, que lança mão da teoria marxista para demonstrar a forma pela qual o continente americano foi incorporado a um incipiente desenvolvimento capitalista depois da con-quista e que, desde então, continuou a crescer dentro da lógica expansiva do padrão de acumulação capitalista. As três etapas de desenvolvimento formuladas por Cueva (feudal, oligárquico e burguês) foram reduzidas por Marini a um só movimento de acumulação capitalista sob formas depen-dentes de dominação.

O sujeito históricoAo se perguntarem sobre a identidade do sujeito histórico, Marini e

Cueva rapidamente se separam. Para Cueva, com sua noção de “articulação dos modos de produção”, aparece a possibilidade de estabelecer vínculos e alianças entre os sujeitos ou classes sociais que, em um dado momento, são os mais progressistas. Nesse sentido, identifica a “burguesia nacional” surgida no calor da política de industrialização, baseada na substituição de importações, entre as décadas de 1930 e 1960, como uma classe progres-sista que se opõe ao imperialismo. Ao contrário, Marini sustentou que não existe a chamada burguesia nacional, tal como é concebida por Cueva (que compartilha essa noção com os desenvolvimentistas e estruturalistas). A

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burguesia subordinada ao padrão de acumulação capitalista mundial, com maior (Brasil) ou menor (El Salvador) grau de autonomia, é o obstáculo principal que a classe operária e os setores populares precisam superar, segundo Marini.

Marini descarta a possibilidade de construção de alianças entre a burguesia e os setores populares. Assinala que não se pode confundir a burguesia ascendente, e sua aliança com o “povo”, com a burguesia “na era do imperialismo”. Ele afirmaria que “a revolução burguesa corresponde a uma etapa definida do capitalismo, marcada pela ascensão de uma burgue-sia que se incluía ainda em uma ampla medida no movimento popular”. No entanto, “na era do imperialismo, que hoje vivemos, todo movimento autenticamente burguês só pode ser antipopular e, como tal, contra-revo-lucionário” (Marini, 1974).

Inicialmente, Cueva envolve Marini nas acusações gerais que, na época, os marxistas tradicionais faziam aos cientistas sociais que buscavam ca-minhos mais apropriados para encontrar respostas para as perguntas que resistiam a se dobrar. No caso de Marini, ele mudou as perguntas para bus-car respostas fora dos marcos tradicionais dos partidos comunistas lati-no-americanos. A inovação de Marini custou-lhe uma severa reprimenda por parte de Cueva. Segundo Cueva, o que Marini tentava era legitimar as práticas políticas das “vanguardas de origem intelectual [que] acreditavam poder substituir o proletariado nas suas tarefas revolucionárias” (Cueva, 1979, p. 92). A saída fácil ao problema que Marini expunha não obteve êxito. Cueva pensou que a sua comunicação na Costa Rica poria um fim ao debate com Marini. Disse que a teoria da dependência “parece encontrar-se agora – 1974 – em franco declínio, ou em vias de uma positiva superação” (Cueva, 1979, p. 93).

A posição de Cueva foi mudando e começou a apresentar problemas muito mais complicados. No entanto, a sua interpretação do sujeito histó-rico não mudou. Diferentemente de Marini, ele define três etapas no desen-volvimento das lutas sociais da região. Em uma primeira instância, a massa de trabalhadores está submetida a relações de dominação com característi-cas coloniais e feudais. As guerras de independência abrem caminho para

uma segunda instância dominada por uma oligarquia agroexportadora, em que os remanescentes feudais continuam presentes. Na terceira instância, surge o Estado dominado por uma classe burguesa, que deve negociar com os remanescentes oligárquicos e feudais enfraquecidos, ao mesmo tempo em que enfrenta uma classe operária ascendente e suas organizações partidárias. Nesta última fase analisada por Cueva, também está presente a “questão so-cial” e o aparecimento de Estados do “bem-estar” que tentam se transformar em “árbitros reguladores do conflito social” (Cueva, 1977, p. 162).

Cueva foi o primeiro a destacar e celebrar a presença e a militância, a partir do início do século XX, de uma crescente classe operária, que inclu-sive organizou partidos comunistas e socialistas. No entanto, ele assinalaria a importância que teve para essas organizações o cumprimento das tarefas “democrático-burguesas” e o fato de deixar para outra etapa a luta pelo so-cialismo. Cueva também afirmava a existência, ainda em muitos países, de “um corpo social predominantemente pré-capitalista, com uma estrutura de classes caracterizada pela presença onipresente das massas pequeno-burguesas e dos camponeses feudais (...)”.

Tanto Cueva quanto Marini descrevem a transição do Estado oli-gárquico para o Estado burguês industrial como “relativamente pacífica” (Marini, 1974, p. 10), ou “sem transformações verdadeiramente radicais” (Cueva, 1977, p. 163). Para Marini, a transformação é precisamente obra da mesma classe que muda o padrão de acumulação. A oligarquia exportado-ra se transforma em burguesia industrial. No processo das transformações, ela tem de manter um controle sobre as massas camponesas despossuídas de suas terras e, além disso, administrar sua relação com a crescente classe operária trazida pela industrialização. Marini, por conseguinte, descarta a alternativa de uma aliança política populista (capital e trabalho), por causa das suas implicações negativas.

Em um livro publicado posteriormente por Cueva, ele afirmaria que a estratégia dos partidos comunistas na América Latina mudou radicalmente depois da Revolução Cubana de 1959. Segundo ele, a insurreição armada da década de 1950 e a declaração do socialismo em Cuba na década de 1960 modificaram o pensamento dos partidos comunistas.

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Era evidente que, nos outros países da região, a “burguesia nacional”, apavorada com o curso da Revolução Cubana, ia se transformando em uma força cada vez menos progressista (Cueva, 1987, p. 176).

Acrescentou ele que a transnacionalização das economias regionais tinha tornado raquítica a “antiga burguesia nacional”.

Marini já tinha estabelecido uma postura diferente nesse sentido. Em 1974, ele afirmava:

a revolução burguesa não se faz às custas da própria burguesia, como se deu no Brasil em 1964 e depois em 1968, mas contra as forças que entravam o desenvolvimento do capitalismo. Ao contrário de uma revolução burguesa, o processo brasileiro representa a derrota das camadas médias burguesas e pequeno-burguesas – e imediatamente das massas trabalhadoras – diante do grande capital nacional e estrangeiro. [A burguesia] inclusive não vaci-lou, sobretudo na primeira fase do processo, em se aliar com os setores mais reacionários do país, para impor a eles a sua hegemonia. (Marini, 1974a)

Marini também analisa o processo cubano e a transição do período caracterizado pelas reformas no marco do regime burguês até o momento em que se declara a revolução socialista: “A luta pelo socialismo é funda-mentalmente uma luta política, no sentido de que o proletariado tem de contar com o poder do Estado para quebrar a resistência da burguesia.” Essa posição descartava a via gradual que se pregava naquela época. Ele ainda acrescentaria:

as tarefas democráticas que o proletariado levanta não são tarefas da bur-guesia, nem podem ser cumpridas no marco da democracia burguesa. Isto é certo principalmente para as tarefas que se referem à democratização do Estado. Recordemos que o Estado burguês cria obstáculos e afoga a parti-cipação política das massas, seja porque restringe as tomadas de decisão aos órgãos do Estado, que se situam fora de qualquer controle por parte do povo, seja porque exerce sobre este a coerção armada. (Marini, 1976a)

O caso da Unidade Popular e sua vitória eleitoral de 1970 foi objeto de análise também por parte de Marini. Ele pontua:

A especificidade da “via chilena” estaria em que a tomada do poder não precede, mas segue a transformação da sociedade. (...). Em outras palavras, a modificação da infra-estrutura social é aquilo que, alterando a correlação de forças, impõe e torna possível a modificação da superestrutura. A toma-da do poder (segundo a via chilena) se realizaria assim gradualmente e, em certo sentido, pacificamente, até conformar um novo Estado, correspon-dente à estrutura socialista que se foi criando.

Ainda de acordo com Marini:

[tratando-se] da revolução burguesa (produto de processos históricos que se prolongam por mais de dois séculos), dá-se a possibilidade de uma mu-dança política gradual e pacífica (...) porque as duas classes que lutam entre si pelo poder se baseiam também na exploração das outras. [Ao contrário], a situação do proletariado, cuja condição de existência não é o socialismo, mas o próprio capitalismo, coloca em um plano totalmente distinto o pro-blema do enfrentamento político e da possibilidade de proceder à mudança social através de adaptações ou reformas.

Para Cueva, a aliança com a burguesia nacional era um imperativo histórico, na medida em que ele parte do suposto encadeamento dos modos de produção como sistemas concretos que subjazem a uma variedade de formações sociais concretas. As classes dos modos mais avançados pactuam para eliminar as classes dos modos mais atrasados. Em outras palavras, as tarefas da aliança populista entre capitalistas (mais progressistas) e operá-rios têm de ser a liquidação dos remanescentes feudais que protegem os senhores feudais e as suas relações de exploração com os camponeses.

Para Marini, era preciso ter claro que “as transformações superestru-turais seguem, não precedem a revolução política”. As reformas não trazem como efeito criar os elementos da nova sociedade dentro da velha, mas

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tão-somente melhorar as condições a partir das quais a classe que nega a sociedade existente acumula forças para liquidar essa sociedade. O refor-mismo só conduziria a mais do que já existe.

É certo que em todas as sociedades, em um grau maior ou menor, so-brevivem remanescentes das organizações de classe anterior ao capitalismo. No entanto, não são esses resquícios que definem as características de uma formação social. Inclusive, já em 1894, Lenin reconhecia que na Rússia o inimigo principal não era a monarquia absoluta, os rentistas ou os senhores feudais. Segundo Lenin, era o capitalismo que constituía o sistema de domi-nação que devia ser destruído. Alguns anos depois, em 1899, ele diria que caberia aos camponeses lutar contra os senhores da terra. Enquanto isso, à nascente classe operária rural caberia lutar contra a burguesia do campo.

Marini nos remete à velha disputa entre Rosa Luxemburgo e Berns-tein. O reformista socialdemocrata “pretendia liquidar progressivamente o sistema capitalista através de reformas legislativas” (Marini, 1974b). Berns-tein chegou à conclusão de que a revolução consistia em transformar os operários em “cidadãos” e, como conseqüência, a sua maioria acachapante lhes permitiria tomar o poder a partir das urnas (Cueva, 1988, p. 47). Ma-rini e Cueva concordaram com Luxemburgo e Lenin no sentido de que o sujeito histórico é a classe operária. Eles partem de diferentes direções, tal como Luxemburgo e Lenin, quanto à constituição da “vanguarda” ou do partido político. Luxemburgo criticava Lenin pelo “centralismo acerbado” do Partido Bolchevique. Lenin respondia assinalando que “na Rússia já se davam todas as premissas necessárias para que fossem acatadas as decisões dos congressos e que já tinha passado o tempo em que os organismos do partido podiam ser superados por círculos privados” (Lenin, 1969, p. 67).

Lenin e Luxemburgo partiam de experiências muito diferentes. En-quanto na Rússia Lenin lutava para manter as comunicações entre os seus militantes (tanto dentro como fora do país), no caso da Alemanha (onde Luxemburgo militava), a socialdemocracia afogava a “espontaneidade” dos seus militantes. Na sua resposta a Luxemburgo, Lenin lembrava a ela que, depois da fundação da socialdemocracia na Rússia, “o partido se transfor-mou em um conglomerado disforme de organizações locais (os chamados

comitês). Entre eles não havia mais nexo de união, a não ser um nexo ideológico (...)” (Lenin, 1969, p. 70).

O objetivo verdadeiro da crítica de Luxemburgo, no entanto, não era o suposto centralismo do partido revolucionário russo dirigido por Lenin, mas antes ela utilizava as experiências bolcheviques como um exemplo para atacar a socialdemocracia alemã. Afirmava ela que

se a tática do partido é o produto, não do Comitê Central, mas do conjunto do partido, ou melhor, do conjunto do movimento operário, é evidente que as seções e as federações precisam dessa liberdade de ação que é a única que lhes permite utilizar todos os recursos de uma situação e desenvolver a sua iniciativa revolucionária. (Luxemburgo, 1969, p. 51-52)

As posições assumidas por Cueva e Marini também divergiam teo-ricamente e também na prática. No caso da Unidade Popular, Cueva sus-tentou que a “via chilena para o socialismo” era viável, na medida em que as forças políticas envolvidas administravam a transição de uma maneira eficaz. Ao contrário, Marini sustentou que

não é tentando obter o apoio da maioria do povo que o proletariado pode tomar o poder, mas é tomando o poder que o proletariado pode ganhar para si o apoio da maioria. Porque somente o exercício do poder permite ao proletariado demonstrar praticamente para as classes aliadas e as camadas vacilantes do povo a sua disposição e a sua capacidade (...). (Marini, 1976a)

ConclusãoO objetivo deste artigo era demonstrar que a teoria da dependência

pode ainda ser aplicada em escala global e também nas análises por região e inclusive por país (por cada formação social), para entender o desenvol-vimento do capitalismo. As noções sobre a dependência desenvolvidas na América Latina nas décadas de 1960 e 1970 partem do suposto de que as leis que caracterizam o desenvolvimento do capitalismo podem ser aplicadas onde essa organização da produção (social e material) é dominante ou exerça

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uma influência importante. Além disso, elas podem explicar o surgimento de pólos diferenciados de desenvolvimento no sistema capitalista mundial.

Mesmo quando o propósito era resgatar o debate da década de 1970, permanece aberta a discussão em torno do estudo das contradições que atualmente sacodem o sistema capitalista mundial e a utilidade da teoria da dependência.

No que se refere à forma como o centro capitalista extrai os excedentes gerados pela periferia, fica mais claro no início do século XXI do que na década de 1970 o fato de que “o fruto da dependência” só pode ser mais de-pendência e que a “sua liquidação supõe necessariamente a supressão das relações de produção que ela envolve” (Marini. 1973, p. 18).

Por outro lado, em relação ao debate em torno do imperialismo, a te-oria da dependência continua vigente ao levar em conta o fato de que, mais do que um desenvolvimento insuficiente do capitalismo na periferia, essa realidade tende a se reproduzir e se aprofundar. Não há uma alternativa de desenvolvimento através de uma estratégia de “dependência associada” que possa sustentar a ilusão de “alcançar” (catch up) os países desenvol-vidos. A teoria da dependência indica com clareza que “por causa da sua estrutura global e do seu funcionamento, [a periferia] não poderá jamais se desenvolver da mesma maneira como as economias capitalistas tidas como avançadas se desenvolveram” (Marini, 1973, p. 14).

Sobre o sujeito histórico, a teoria da dependência não deixa dúvida de que a classe operária tem de estabelecer a sua própria estratégia, definindo as suas alianças com as demais forças populares e colocando a classe capi-talista no lugar que lhe cabe. Situando a teoria da dependência no marco do período dos ajustes que dominaram os últimos 25 anos (políticas neo-liberais), pode-se entender Marini quando ele afirmava o caráter contra-revolucionário de nossa “revolução burguesa” por representar a derrota das camadas médias burguesas e pequeno-burguesas – e logo das massas traba-lhadoras – diante do grande capital nacional e estrangeiro (Marini, 1974a). Ou, ainda, quando ele afirmava também que: “A luta pelo socialismo é fun-damentalmente uma luta política, no sentido de que o proletariado precisa contar com o poder do Estado para quebrar a resistência da burguesia.”

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A intelectualidade crítica brasileira no México e o pensamento político de Ruy Mauro Marini

Lucio Fernando Oliver Costilla*

A condição de perdaO tema da presença e das contribuições da intelectualidade crítica per-

mite uma construção muito positiva do exílio brasileiro no México. Mas, antes de entrar no assunto, quero insistir no fato de que todos esses homens e mulheres, sobre os quais vamos falar, estiveram aqui sob uma condição de perda e, portanto, de busca de compensações. A “condição de exílio” é normalmente de perda: perdem-se uma atividade, uma integração po-lítica e social, um território, uma sociabilidade cheia de interesses, afetos, cultura, família. Nisso, os vocábulos desterro e expatriação são sinônimos. Nesse sentido, o exilado é um ser na condição de desprotegido. Por isso, a tendência será normalmente a de ressentimento pessoal com os diretamen-te responsáveis por sua situação e de uma busca de compensações afetivas: de novas amizades, de outra sociabilidade, de um afeto que nunca substitui o que foi deixado para trás. Intimamente, a situação envolve um espírito em uma posição delicada. Comento isso porque, normalmente, quem vive com os exilados a partir de sua condição pessoal de normalidade não re-flete o suficiente sobre o significado dessa “outra condição” que essas pes-soas carregam. Certamente, aqui se abre uma interrogação no campo das ciências sociais: haveria uma sociologia do exílio, tal como existe toda uma literatura do exílio? Em que medida esse tipo de exilados (os intelectuais)

* Sociólogo mexicano e professor titular do Cela/Unam, que dirigiu. Possui artigos em revistas científicas publicados em vários países.

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projeta a sua subjetividade dolorosa nas ciências sociais? Será que todos os temas são iguais para quem está nessa condição, ou há alguns que eles se recusam a pensar e outros sobre os quais pensam obsessivamente? Como se adaptam as temáticas antigas da vida anterior e como são adotadas novas temáticas a partir da interação com a nova realidade? Por agora, não tenho ainda respostas para essas perguntas.

A comemoração dos 500 anosHá alguns anos, participei dos eventos relacionados com as relações

Brasil-México, a partir da perspectiva da comemoração no México dos 500 anos do Brasil em convocação conjunta de instituições da Unam (Univer-sidad Nacional Autónoma de México) e a embaixada do Brasil no México. Essa ocasião se prestou “não só para a reflexão, mas também para uma profunda avaliação do desenvolvimento do país sul-americano em todos os âmbitos de sua expressão histórica, política e cultural”.

Avaliar o exílio brasileiro a partir dos anos 1970 em um país como o México nos obriga a contextualizá-lo em toda a experiência do exílio latino-americano, já que, nesses anos, o nosso país era considerado como uma espécie de Meca do latino-americanismo. No meu caso, sou levado a pensar o exílio a partir do que ocorreu entre os anos 1964 e 1976, quer di-zer, a partir de dois momentos políticos significativos: o momento do golpe de Estado militar de 1964 no Brasil e o que se produziu nove ou 10 anos de-pois, nas ondas de golpes militares no Chile, Uruguai, Bolívia e Argentina, onde foram se refugiar um conjunto de brasileiros de oposição ao regime militar do seu país e que logo tiveram de exilar-se novamente, mudando-se para o México ou para outros países distantes do Brasil. O México era um lugar muito atrativo porque, devido à política de Estado do presidente Luis Echeverría Álvarez, foram abertas as portas para os desterrados da América do Sul, que vieram em grandes quantidades, produto da onda de militarismo que ocupou a região nesses anos.

Estimativas iniciais indicam, por exemplo, três mil intelectuais chile-nos e outro tanto de países da região sul-americana.

Os dois paísesRefletir sobre a presença e as contribuições do exílio brasileiro no

México nos leva a pensar os dois países, suas identidades e diferenças, suas relações e sua distância. Trata-se de dois países que são, em certo sen-tido, os maiores da região, econômica e demograficamente, ambos com um processo de construção histórica interna muito forte, cada um com uma área de influência própria e separada, com força cultural e com grande per-sonalidade internacional. Ambos compartilham estruturas econômicas e sociais atrasadas que geram muitos dos problemas do subdesenvolvimento que são comuns a eles. Mas, para além dessas identidades, há evidentes diferenças: uma delas é o peso da herança escravista em um lado e servil no outro; outra é a tendência colonial portuguesa de privilegiar os assentamen-tos nos litorais, e a indo-espanhola de procurar o altiplano; outra diferença forte está vinculada aos aspectos federais descentralizados do Brasil, que periodicamente reaparecem, apesar das políticas concentradoras de alguns dos governos nacionais, e o contraste com a rígida e permanente centrali-zação econômico-política do México, que nunca se apaga totalmente. Há, por outro lado, um elemento de atração mútua entre as culturas de ambos os países: os ganhos na industrialização, a urbanização, o esporte, a cultura, a música e o forte nacionalismo sem raízes do Brasil atraem os mexicanos, assim como a integração nacional, a impressionante cultura mesoamerica-na e o nacionalismo milenarista do México atraem os brasileiros. É uma pena que nenhum dos dois Estados nacionais tenha procurado unir suas forças e sua capacidade de direção em um projeto de integração latino-americana e que ambos tenham cedido tanto à dominação imperial dos Estados Unidos.

A investigaçãoEntre as referências com as quais conto para uma investigação como a

que me proponho fazer, posso mencionar a existência de uma equipe extra-ordinária na Unam, que está já há algum tempo estudando o exílio latino-americano no México a partir de entrevistas com antigos exilados. Mas, em geral, os seus estudos e as suas entrevistas têm uma intenção diferente da

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minha; trata-se de uma intenção própria das humanidades: historiadores, antropólogos, psicanalistas. Meu interesse é outro, ele me conduz por vere-das peculiares que em seguida quero comentar.

Primeiro: interessa-me o enfoque dos intelectuais críticos e sobre eles. O meu estudo está relacionado com a questão dos intelectuais e sua relação com a evolução do Estado e da nação. Em particular, desejo rea-lizar uma avaliação analítica da trajetória e do amadurecimento da inte-lectualidade crítica do Brasil, tanto no próprio país como fora dele. Nesse sentido, trata-se de levar a cabo um estudo da intelectualidade brasileira, que certamente me parece impressionante e surpreendente. Impressionan-te por seu rigor e universalidade, mas também surpreendente por seu alto grau de desenvolvimento, que contrasta com os antecedentes coloniais, tão pobres, que o Brasil teve no que diz respeito à educação, e porque, na trajetória da desigualdade social brasileira, não há um grande processo de seleção socionatural de intelectuais. Contudo, o meu interesse está re-lacionado com a contribuição que a intelectualidade brasileira deu para a construção nacional do Brasil e com a crítica da nação capitalista, para a partir daí procurar entender as suas contribuições no México para o co-nhecimento da América Latina.

Um conhecimento ainda superficial da intelectualidade do Brasil permite ver que o mundo intelectual deste país, hoje, está permeado de influências culturais distintas do mundo intelectual mexicano. Interessa-me indagar sobre as raízes dessa diferença. E, sobretudo, como assinalei, pensar a evolução e o amadurecimento da intelectualidade do Brasil na sua própria história.

Segundo: o eixo do meu enfoque sobre a análise da presença e das contribuições da intelectualidade é a sua contribuição para a sociologia na-cional e para o pensamento social latino-americano. No meu caso, tenho o conhecimento das pessoas e dos temas relacionados com as ciências sociais. A minha hipótese é de que a presença da intelectualidade crítica brasileira no México e as suas contribuições a partir dos anos 1970 para o pensamento social latino-americano estão vinculadas fortemente a temas fundamentais do pensamento sociológico brasileiro. Com a reserva das novas impressões

que possa receber no transcurso da minha investigação, por agora posso comentar que a intelectualidade brasileira, como tal, tem, evidentemente, uma origem teórica e analítica distinta da intelectualidade mexicana, o que tem repercussões na sua forma de entender a América Latina.

A intelectualidade mexicana produz o seu conhecimento e as suas fi-liações culturais, ideológicas e políticas basicamente a partir da sua relação contraditória com as diferentes revoluções e contra-revoluções nacionais (de independência em 1810-1821, de reforma em 1857-1867, de instaura-ção revolucionária de um projeto nacional-capitalista de 1910-1921 e de reformas profundas de caráter nacional e popular de 1934-1940), e a par-tir de suas dificuldades para caracterizar o Estado e as oposições surgidas dessas revoluções. A intelectualidade desse século foi formada no marco das mudanças radicais do Estado-nação mexicano no começo do século, mas também na década de 1930, como facilmente se pode ver no caso de Octavio Paz, e poucos foram os intelectuais críticos que ampliaram os seus horizontes para outras perspectivas. Nos anos que nos ocupam, destacam-se várias personalidades da crítica sociopolítica: José Revueltas, Rodolfo Stavenhagen, Pablo González Casanova, Enrique Semo, Roger Bartra, Ser-gio de la Peña, Lorenzo Meyer, entre outros, cuja luta principal foi entender e criticar o Estado mexicano e suas políticas “reformadoras”, para poder passar a outro tipo de análise do desenvolvimento capitalista no México e na América Latina. Mas a sua reflexão teve, inclusive, um horizonte latino-americano, e se achou de tal modo isolada em um mar de intelectuais me-xicanos obcecados por caracterizar as transformações, que não conseguiu situar o México como um país latino-americano, e, com isso, abriu espaço para uma política demasiadamente local e eurocêntrica de ver o mundo.

No caso dos brasileiros, trata-se de uma leitura que não parte de qual-quer revolução, mas das raízes oligárquicas e de um projeto industrial estatal autoritário “de compromisso” entre a velha classe dominante da agricultura e as novas frações da indústria nacional, imposto a um país extremamente descentralizado. Sua reflexão se apóia em pensadores críticos tanto do fe-deralismo como do projeto de centralização e em pensadores importantes do Brasil e do Cone Sul, preocupados em entender a integração ou a desin-

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tegração do Brasil ao mundo, a partir da economia agroexportadora e da economia industrial que se desenvolveram na primeira metade do século XX. Um exemplo disso foi a influência que teve o argentino Silvio Frondizi em alguns pesquisadores históricos, como Caio Prado Jr., Florestan Fer-nandes e, por essa via, em intelectuais do exílio brasileiro no México nos anos 1964 a 1976, influência que se registra facilmente, por exemplo, em dois exilados da época, Theotonio dos Santos e Ruy Mauro Marini.

Destaca-se, então, uma diferença básica, não obstante as exceções citadas: a intelectualidade brasileira parece ver a região latino-americana e o seu país a partir do mundo e da perspectiva de manter a unidade interna em um processo de expansão geográfica, ao passo que a mexicana o obser-va a partir de seus ganhos de coesão ideológica e política interna, da defesa nacional e popular e dos conflitos locais.

Terceiro: o meu interesse sobre a visão dos intelectuais críticos brasi-leiros procura se aprofundar na especificidade do latino-americanismo que contribuiu para trazê-los para o México nos anos 1960 e 1970. E de como se desenvolveu na América Latina uma importantíssima polêmica contra as teses nacionalistas e desenvolvimentistas da época.

Os personagensEntre 1965 e 1975, há duas levas de exilados brasileiros no México, for-

mada por umas 300 ou 400 pessoas, entre outras por dissidentes políticos, por pesquisadores e professores e por estudantes de ciências sociais. Uma contagem inicial e superficial nos diz que na primeira onda, dos anos 1960, chegaram “Ruy Mauro Marini, Francisco Julião, Isaac Scheinwar, um líder sindical, Flávio Tavares, que chegou ao México trocado por um embaixador, além de outros” (Severo de Salles, on-line, 29 de novembro de 1999).

De qualquer modo, parece que a grande maioria das pessoas dessa primeira leva do exílio partiu do Brasil para a Europa, para o Canadá e para países vizinhos do Brasil, como Chile, Bolívia, Argentina, Uruguai etc. De acordo com Emir Sader, a orientação política dessa leva de exila-dos foi “principalmente brizolista” (Emir Sader, on-line, 29 de novembro de 1999). Produziu-se uma diferença entre os exilados sul-americanos e os

brasileiros: o exílio destes últimos foi seletivo, ao que parece, pela negativa do governo mexicano em conceder vistos a exilados brasileiros. Emir Sader comentou o seguinte:

Sei que o exílio brasileiro para o México, a partir do Chile, foi seletivo, porque o México não aceitava dar vistos a eles. Assim que as pessoas saíram do Chile passaram pelo México e foram para outro lugar. (Emir Sader, on-line, 29 de novembro de 1999)

Nos anos 1970, aumenta o número de exilados e muda, em parte, sua composição para incluir vários estudantes. Severo Salles nos diz: “Nos 70, voltou Marini; Theotonio dos Santos e Vânia Bambirra voltaram do Chile. Também chegaram Raimundo Arroio, Severo Salles, outro líder sindica-lista. Betinho e Neiva Moreira (por pouco tempo). Estavam nos 70 muitos estudantes opositores que organizaram uma associação de brasileiros pela democracia no México, muito ativa” (Severo de Salles, on-line, 29 de no-vembro de 1999).

A épocaA América Latina viveu grandes comoções sociais no início da segun-

da metade do século XX. A luta política recrudesceu enormemente, envol-vendo quase todas as sociedades nos conflitos. Atrás deles, produziu-se um agudo choque de estratégias, concepções e personalidades das diferentes forças econômico-políticas continentais. Já desde os anos 1950 a região viveu a crise do Estado populista e sua posterior substituição no final dessa década pelo Estado desenvolvimentista. Embora ambos os modelos de Estado tivessem em comum o modelo de acumulação de capitalismo de Estado, chamado teoricamente de “fordismo periférico”, e vivenciassem as tentativas tímidas e parciais de criar Estados de bem-estar latino-america-nos, a relação entre a sociedade e o Estado nesses anos trouxe modificações substanciais.

Nos anos 1960, a precariedade das condições de trabalho, a perda da condição de cidadania social que as grandes massas tinham conquistado

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nos anos 1940, a evolução política sindical dos trabalhadores e a formação de grandes monopólios privados que cresceram no calor do capitalismo de Estado levaram à crise do Estado populista, fato que fica demonstrado na multiplicidade das lutas sociais de contestação e na sua importância nacio-nal e regional. O Estado desenvolvimentista pretendeu afirmar um capitalis-mo democrático liberal associado com o capital transnacional, em benefício das forças dos monopólios, com um acentuado controle do Estado sobre os trabalhadores, o que gerou ainda mais resistências e lutas sociais im-portantes. Efetivamente, há nos anos 1950 e no início dos anos 1960 uma ascensão do movimento de massas em vários países da região, entre outros, no Brasil (1960-1964) e no México (1957-1968). Também se destacam as lutas sociais no Peru, na Colômbia, na Argentina e no Equador. Há, inclu-sive, três processos revolucionários importantes: na Bolívia (1950-1952), na Guatemala (1945-1955) e em Cuba (1952-1960), que contribuem para estimular e desenvolver as lutas populares. Esse ambiente de ascensão da luta social interna topou com uma reação política extrema em nossos paí-ses, articulada com a estratégia norte-americana de contra-insurgência do pós-guerra, que assumiu a forma de uma concepção militar da luta políti-ca nos países periféricos. O resultado foram os golpes de Estado militares que assolaram a região sul da América Latina, dentre os quais o do Brasil aparece logo em 1964. Os novos regimes militares implantaram Estados burocrático-militares e levaram ao extremo as formas de repressão ideo-lógica, política e social, obrigando uma enorme quantidade de políticos e universitários a esconderem-se na clandestinidade, a envolverem-se na luta armada e a sair para outros países. O período mais agudo da repressão brasileira ocorreu por volta de 1968-1970, e em geral abarca os 10 anos que vão de 1964 a 1974.

Não é difícil imaginar que doía na cabeça dos perseguidos a idéia de que os projetos de desenvolvimento nacional inclusivos e democráticos ti-nham acabado ou eram impossíveis, diante da reação política extrema dos militares e da facilidade dada à entrada maciça de capital externo e de as-sessores norte-americanos. Era preciso pensar na razão por que tudo isso tinha acontecido e também em quais seriam então as alternativas.

A década de 1970 foi palco de novos e mais fortes embates sociais, inclusive de caráter revolucionário, na Bolívia (1971) e no Chile (1970-1973). Houve também um crescimento das lutas sociais no Uruguai e na Argentina. Enquanto nessas lutas foram desenvolvidas plenamente estraté-gias políticas dos movimentos populares, no lado da reação foram urdidas as políticas do autoritarismo militar da contra-insurgência e da segurança nacional. Novamente entre 1973 e 1976 se produz uma onda de golpes de Estado militares que leva a novas clandestinidades e a migrações, dessa vez, inclusive, a novos exílios dos já anteriormente exilados.

Às perguntas dos anos 1960 sobre os projetos de desenvolvimento na-cional se juntam novas e mais elaboradas perguntas, relacionadas agora com o problema direto de como, com que políticas, impedir a repressão autoritária e como contribuir para tornar mais complexas a organização e a estratégia política para tomar e manter o poder, assumindo a inevitável resistência dos militares e das classes capitalistas em vista do avanço dos projetos populares. O projeto de Assembléia Popular na Bolívia e o projeto do Estado de transição da Unidade Popular do Chile sucumbiram. Alguns dos portadores materiais dessas perguntas são os exilados brasileiros que reiniciam, pela segunda vez, uma nova vida, e se encontram com o México.

A presençaEm um texto muito interessante, “A década de 1970 revisitada”,1 Ruy

Mauro Marini, um brasileiro exilado nesses anos no México, nos diz que, para o movimento popular subcontinental de então,

o México se transformou no centro desta elaboração crítica, seja porque tinha concentrado a massa de intelectuais exilados da região, seja porque, por sua infra-estrutura acadêmica e cultural e pelo clima de liberdade que ali se respirava, erigiu-se como a Meca dos cientistas sociais de todo mundo que visitavam a América Latina.2

1 Ver Marini, Ruy Mauro; Moncayo, Márgara Millán (Coord.). La teoría social latin-americana. La centralidad del marxismo. Colección de ensayos. México: El Caballito/Unam, 1995. t. III.2 Ibid. p. 37.

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Essa visão coincide com a emitida em 1985 pelo pesquisador equato-riano Agustín Cueva, que nos diz:

Qualquer balanço a propósito do desenvolvimento dos estudos latino-ame-ricanos no México (neste caso, sociológicos), não pode ignorar este fato evi-dente: grande parte da história da ciências sociais latino-americanas trans-correu neste país – o México – e através dele, pelo menos durante os últimos quinze anos.3

No México, o exílio latino-americano dos anos 1970 coincidiu, feliz-mente, com vários elementos que permitiram que esse país se tornasse o centro da criatividade intelectual e do interesse político pela América Lati-na; isso surge da presença de milhares de exilados latino-americanos, mas também do fato de que o México divide nesse momento os problemas dos outros países da região, coloca-se em um lugar geopolítico especial por ser a fronteira entre os Estados Unidos e a América Latina e pelo fato de que o nosso país começou a ter uma presença mais ativa no âmbito internacional nesses anos.

Por outro lado, a incorporação dos exilados à vida nacional coincidiu com uma necessidade política do presidente mexicano Luis Echeverría Ál-varez (1970-1976) de levar a cabo uma ampliação das instituições públicas de educação superior e das matrículas para responder à crise de legitimi-dade do governo, crise surgida como resultado da repressão contra o mo-vimento estudantil popular mexicano de 1968. Foram criadas várias uni-versidades, como a Universidade Autônoma Metropolitana, e também foi aprovada uma política de professores de carreira para os exilados na Unam, no Colégio de México e em universidades privadas, como professores de tempo integral ou como conferencistas convidados. Foi aí que desenvol-veram suas atividades professores brasileiros da estatura do próprio Ruy

Mauro Marini, Theotonio dos Santos, Vânia Bambirra, Thiago Cintra, Va-nia Salles, Severo de Salles e outros. Também aí estiveram por algum tempo Fernando Henrique Cardoso, Francisco de Oliveira e outros. Os cursos de pós-graduação se encheram de estudantes brasileiros que, posteriormente, ingressariam também como professores universitários. Dessa época vieram Guadalupe Teresinha Bertussi e Magda Fischer.

O grande desenvolvimento do pensamento latino-americano e a im-portante presença que adquiriram os exilados latino-americanos no Mé-xico e no mundo se devem também à atividade de três editoras da época: Era, Nuestro Tiempo e Siglo XXI, e à atividade de várias revistas e publi-cações periódicas que se propuseram como objetivo explícito desenvolver o pensamento latino-americano (Historia y Sociedad, Revista Mexicana de Ciencias Políticas y Sociales, Cuadernos Políticos). Também cabe mencionar que o exílio não foi somente individual: “algumas vezes ele é também insti-tucional. Isso ocorre, por exemplo, com a revista Marcha de Montevidéu, ou com a própria Asociación Latinoamericana de Sociologia”.4

As contribuições Segundo Agustín Cueva:

convém recordar que os estudos latino-americanos no México não foram feitos “de fora”, por “latino-americanistas” interessados em conhecer um objeto mais ou menos exótico e alheio, nem tampouco respondem a uma perspectiva de dominação. Pelo contrário, trata-se de pesquisas ou de ativi-dades docentes realizadas por profissionais de diversas nacionalidades, con-vencidos de que, através do conhecimento da América Latina, descobrem eles novas dimensões da sua própria identidade, ao lado de um conjunto de problemas comuns.5

De fato, como disse o próprio autor, trata-se da construção3 Ver Cueva, Agustín. El desarrollo contemporâneo de los estudios latinoamericanos en México. In: Balance y perspectiva de los estudios latinoamericanos. Cuadernos de Estudios Latinoamericanos I, México: Centro de Estudios Latinoamericanos, División de Estúdios de Posgrado, FCPyS, Unam, p. 7, 1985.

4 Cueva, Agostín. Ibid. p. 8.5 Ibid. p. 9.

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de um sujeito histórico cuja identidade e integração estão constantemente ameaçadas, não só por epidêmicos brotos de um chauvinismo conservador e balcanizador, mas sobretudo pelas concepções “pan-americanistas”, “he-misféricas”, cuja origem imperial é amplamente conhecida.6

Cabe aos intelectuais críticos brasileiros exilados no México, nas duas levas, dos anos 1960 e dos anos 1970, terem dado uma contribuição fun-damental aos estudos latino-americanos no campo das ciências sociais: a corrente conceitual da dependência e a teorização sobre o Estado de con-tra-insurgência.

Quanto à primeira contribuição, sobre a dependência, Marini nos diz o seguinte: “o golpe militar de 1964 precipitou a crise do desenvolvimen-tismo cepalino e abriu o caminho para a afirmação da teoria da dependên-cia”. O fato político da ditadura militar do Brasil permitiu a aquisição de um novo horizonte de visibilidade: o da articulação dependente dos nossos países. No entanto, essa franja da criação teórica não se produziu no Bra-sil, por causa exatamente das condições de repressão. Foi no Chile onde a intelectualidade crítica brasileira começou a construir teoricamente as suas interpretações sobre a dependência. O capitalismo dos nossos países depende, isto é, está condicionado pelo desenvolvimento e pelas possibili-dades ou limitações do capitalismo central dos países altamente industria-lizados. No entanto, logo se viu que, entre os próprios brasileiros, o mesmo horizonte produzia um conhecimento diferente, que logo derivou em três grandes núcleos explicativos sobre a dependência.

A primeira contribuição foi produzida pelo ex-presidente do Brasil, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, que entendeu o problema da de-pendência a partir da conformação de estruturas internas de dominação que dependiam das estruturas econômicas articuladas com o exterior. Isso permitia pensar em novos processos de desenvolvimento sempre e quando as velhas estruturas de dominação fossem substituídas por outras em con-formidade com as novas relações econômicas de dependência. Concepção

que o autor não mudou muito, em contraposição com a idéia generalizada nas universidades de que ele tinha abandonado as suas teses básicas. O texto mais importante dessa elaboração foi o Dependência e desenvolvi-mento na América Latina, escrito com Enzo Faletto, em 1969.

O segundo núcleo explicativo foi elaborado por três exilados no México: Theotonio dos Santos, Vânia Bambirra e Ruy Mauro Marini, que avançaram para uma teoria marxista da dependência, cujos acentos estão em assinalar que na América Latina se desenvolveu um capitalismo local tanto no período da economia agroexportadora como na fase industrial, condicionado pelas relações imperialistas, baseado na superexploração da mão-de-obra e na ausência de um ramo significativo de produção de bens de capital. Capitalismo dependente que pode significar crescimento econômico, mas que não permite resolver os grandes problemas econômi-cos, sociais e políticos do desenvolvimento. O texto mais importante dessa elaboração foi o chamado Dialética da dependência, preparado em 1969 e publicado em 1973.

Um terceiro núcleo de contestação de ambos foi a elaboração de Fran-cisco Weffort, intitulada “Notas sobre a teoria da dependência: teoria de clas-se ou ideologia nacional?”, publicado em 1971, e que, basicamente, criticava as contribuições de Cardoso e Marini, assinalando que essas elaborações não tinham abandonado o enfoque da Cepal e esqueciam a importância dos processos nacionais internos, mesmo quando não o tinham proposto.

A teoria da dependência entrou em crise posteriormente. Isso ocorreu não tanto por causa do desenvolvimento de concepções alternativas mais bem sustentadas, mas por todos os questionamentos intelectuais que surgi-ram a partir da derrocada de Allende no Chile, do posterior deslocamento das lutas revolucionárias para a América Central nos anos 1980 e do ad-vento da mundialização do capital e das transformações da última década do século XX.

Outra contribuição importante do exílio brasileiro dedicado às ciências sociais no México foi o estudo dos regimes militares e a polêmica em torno do caráter desses regimes. Dessa ótica, participaram Ruy Mauro Marini, Theotonio dos Santos, Severo de Salles, Emir Sader e outros. A maturidade 6 Ibid. p. 10.

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intelectual dos exilados e a experiência com a ditadura militar brasileira, que em 1974 iniciou uma fase de refluxo e de retrocesso na sua política re-pressiva, permitiram que eles analisassem a especificidade do novo Estado militar. Em sua definição, não predominará a caracterização de fascista, mas a de que eram Estados de contra-insurgência e de segurança nacional que a contra-revolução capitalista tinha impulsionado para enfrentar a as-censão popular. Entretanto, estes não tinham força para se estabilizarem por muito tempo como regimes de terror, sendo vulneráveis à ofensiva de uma recomposição democrática. A história posterior desses regimes daria razão a eles e a seus enfoques e os transformaria em uma importante con-tribuição para o estudo do poder na América Latina.

Algumas contribuições de Marini na sua terceira época mexicanaOs anos 1970 passaram, e agora a América Latina vive outra fase do

seu desenvolvimento. No entanto, o estreito vínculo entre os exilados bra-sileiros e o México se manteve com presenças e relações permanentes. Vá-rios brasileiros regressaram a seu país e outros tiveram a oportunidade de voltar ao México convidados pela universidade e por outras causas. Entre eles, fica a grata recordação do mestre Marini, que voltou ao México pela terceira vez: em 1992, veio dirigir o Centro de Estudos Latino-Americanos da Faculdade de Ciências Políticas e Sociais da Unam, em um momento delicado dos estudos latino-americanos, quando pesava uma onda de con-servadorismo que exigia das universidades mexicanas um ingresso no pri-meiro mundo e que entendia que o Tratado de Livre-Comércio da América do Norte (Nafta) significava que o México deixava de pertencer à América Latina. Marini soube entender o momento, não somente como de necessá-ria resistência contra essas políticas, mas como renovação do programa de pesquisa e docência dos Estudos Latino-Americanos, um projeto renovado de vinculação com o Brasil, e ele deixou uma herança inestimável, assim como uma grande marca no coração das novas gerações de pesquisadores e estudantes de pós-graduação em Estudos Latino-Americanos.

No contexto dessa contribuição, quero externar algumas das idéias expressadas por Ruy Mauro Martini sobre como ele concebia, nos últimos

anos de sua vida, a situação do Estado e a democracia na nossa região, no contexto da emergência de uma nova ordem estatal promovida pela rees-truturação do capitalismo e pela transnacionalização, e pela existência dos movimentos sociais de resistência à globalização pelo alto. Essas idéias fo-ram expostas em nossas reuniões de trabalho no Centro de Estudos Latino-Americanos do México, entre os anos 1992 e 1994, algumas já expostas no livro América Latina: dependência e integração,7 que ele mesmo trouxe para nós no México, nos prólogos aos textos de A teoria social latino-americana,8 e outras que estão no livro Dialética da dependência, coleção de ensaios do autor publicada por Emir Sader no Brasil.9 Sobre outras épocas, Marini ti-nha já deixado clara a sua profundidade analítica sobre os temas do poder e da política em textos como o Subdesenvolvimento e revolução,10 dedicado sobretudo a analisar as mudanças do Estado brasileiro e chileno, “O Estado de contra-insurgência”,11 no qual ele analisa o caráter e o projeto dos regi-mes militares da América Latina dos anos 1960 e 1970, e “O Estado e as lutas de classes na América Latina”,12 no qual analisa sobretudo o sentido da resistência das massas de trabalhadores aos regimes militares e tecno-cráticos dos anos 1970.

No final dos anos 1980 e início dos anos 1990, Marini estudou o sen-tido e o caráter da nova ordem emergente na América Latina e das lutas sociais e políticas dos trabalhadores na busca de afirmar e ampliar a sua participação nas novas democracias renovadas e continuar resistindo no embate contra o neoliberalismo. Esse é o contexto no qual se produzem as últimas contribuições de Ruy Mauro Marini.

7 Marini, Ruy Mauro. América Latina: dependência e integração. São Paulo: Brasil Urgente, 1992.8 Marini, Ruy Mauro; Millán, Márgara. La teoría social latinoamericana, textos escogidos. México: Unam, 1995; Id. La teoría social latinoamericana, colección de ensayos. México: El Caballito, 1994 e 1995.9 Marini, Ruy Mauro. Dialética da dependência. Petrópolis: Vozes/Clacso (Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais)/LPP, 2000.10 Id. Subdesarrollo y revolución. México: Siglo XXI, 1975.11 Id. El Estado de contrainsurgencia. Revista Cuadernos Políticos, México, Era, n. 18, out./dez. 1978.12 Id. El Estado y las luchas de clases en América Latina. Folheto publicado pelo Centro de Estudios Latinoamericanos/FCPyS/Unam, 1978.

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Novas premissas da luta democrática popularEm primeiro lugar, Marini apontava que as políticas de repressão dos

regimes autoritários dos anos 1970 e 1980 criaram no movimento popular latino-americano (e particularmente brasileiro) um retorno a situações de luta social por direitos em âmbitos locais: o bairro, a habitação, o local de trabalho, os problemas de abastecimento de alimentos, água, luz, gás etc. (Dependência e integração na América Latina, 1992). Isso deu origem a no-vos movimentos sociais de bairro, ecologistas, geracionais, feministas etc., que criaram um tecido denso no movimento popular e uma capacidade de compreender, manipular e controlar os complexos mecanismos de pro-dução e circulação de bens e serviços. Isso, juntamente com a herança dos fenômenos de urbanização e assalariamento, criou potencialidades de par-ticipação popular nas estruturas e no exercício do poder que não existiam antes. Dessa forma, Marini se mostrava otimista em relação ao fato de que, na América Latina, existisse um novo movimento de massas pela democra-cia, portador de um enraizamento local e de uma dimensão social que lhe daria condições de força na luta social que antes não tinha:

De fato, se é certo que o modo como se desenvolveu o movimento po-pular se constituiu em obstáculo para sua plena afirmação política, pro-porciona-lhe porém as premissas para uma estratégia de luta pelo poder e para um projeto novo de sociedade. (América Latina: dependência e integração, 1993)

A hegemonia das frações capitalistas na luta pela democraciaJá nos anos 1990, no entanto, para Marini, estava claro que tinha pre-

valecido a hegemonia conjunta do imperialismo e da burguesia na luta social para influir e dirigir o processo de democratização. Essa hegemonia impôs uma separação entre essas lutas populares locais e a luta política geral, mas também uma desagregação no plano do Estado. Durante os anos 1980, a burguesia aderiu às lutas sociais e sua hegemonia se traduziu no predomínio de um regime de eleições e parlamentos. Foram as frações mais ligadas ao grande capital transnacional que se colocaram no coman-do da transição para a democracia.

Os novos Estados nacionais debilitados e submetidos ao capital transnacional

Marini também analisava as variações na situação dos Estados na-cionais da região, pelo menos dos mais bem constituídos. Enquanto, “nos anos 1980, o declínio relativo do poderio norte-americano abriu caminho para uma maior autonomia dos Estados latino-americanos no plano inter-nacional, nos anos 1990, pelo contrário, já estava claro que se estava ‘im-pondo uma política de transformação econômica funcional aos objetivos dos grandes centros capitalistas’, que, internamente, estava levando a um desmantelamento das nossas estruturas produtivas e dos nossos próprios mercados e, politicamente, à perda da autonomia relativa dos Estados” (América Latina: dependência e integração, 1992). Podemos constatar atu-almente que as políticas de integração à globalização foram consolidadas através das reformas conservadoras do Estado e de uma submissão maior à hegemonia norte-americana.

Inclusive no plano da organização política do Estado, a transforma-ção democrática liderada pelas frações modernizadoras do capital trans-nacionalizado veio na fórmula da democracia governável, orientada para o controle político e social, para o parlamentarismo e para a luta eleitoral, uma fórmula aceitável para processar a transição para uma nova institucio-nalidade de acordo com os padrões neoliberais. Para Marini, estava claro que mesmo essa estratégia tinha sido elaborada pelos Estados Unidos para renovar a sua hegemonia na América Latina. No interior dos nossos países, as forças armadas, os setores duros dos ministérios de governo, desenha-ram a política do quarto poder, no qual aos processos democratizantes se acrescentam a tutela do exército e das polícias especiais que cuidam da boa ordem democrática. Com isso, produz-se uma continuidade sui generis das políticas de contra-insurgência, cuja terceira fase era reinstalar uma demo-cracia tutelada e governável (A teoria social latino-americana, 1995).

Marini considera que, em face do enfraquecimento e da transnacio-nalização do Estado, a esquerda já não pode voltar atrás para “defender in-discriminadamente sua presença na economia, nem para bater-se por um protecionismo exagerado”, mas tem de apelar para o Estado no sentido de

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“que assuma um papel de direção a fim de orientar o processo e controlar a cobiça dos grupos nacionais e transnacionais”. A experiência indica que já não é desejável postular a concentração de poderes nas mãos do Esta-do, dado que isso o fortalece como instrumento de opressão da burguesia (América Latina: dependência e integração, 1993). Ruy Mauro chegou mes-mo a defender a idéia de enfraquecer o Estado, retirar dele força econômica e política, sempre que isso implicasse transferir atribuições e riqueza ao povo e não à burguesia. E, para tanto, propunha a criação de uma área so-cial regida pelo princípio de autogestão e subordinação dos instrumentos estatais de regulação às organizações populares.

Dessa maneira, para Marini, as propostas da esquerda deviam susten-tar alguns pontos programáticos básicos de sua tradição, tais como postu-lar que o Estado assuma o papel de direção na economia e que as políticas de austeridade redirecionem o gasto estatal para as políticas sociais, nas quais seriam prioritárias a saúde e a educação, para que

a população latino-americana seja capaz de ajustar-se às exigências que as mudanças técnico-científicas acarretam no âmbito da produção e dos ser-viços, além de ser fator essencial na elevação do nível político e cultural dos trabalhadores.

No entanto, em vista da transformação do capitalismo mundial e das políticas da globalização, Marini estava consciente da precariedade das alternativas da esquerda. Mais ainda, ele falava já de “um vazio teórico e ideológico” e da ausência de uma estratégia adequada para fazer frente a essa problemática (A teoria social latino-americana, 1994).

Uma América Latina integrada e solidária perante os blocos mundiaisTambém quero me referir à preocupação de Marini com o fato de as

políticas de reforma do Estado poderem levar à balcanização definitiva da região, caso esta não conseguisse se orientar para uma integração econô-mica, política e cultural. De fato, para Marini já estava claro que projetos como a Associação de Livre-Comércio das Américas (Alca), liderados pe-

los Estados Unidos, realmente não integram as nossas sociedades e os nos-sos Estados, e muito menos introduzem uma especialização produtiva ou uma complementaridade entre eles. Eles são anexações em separado dos nossos países dispersos e isolados, que inclusive concorrem entre si para isso, aos interesses e ao projeto político internacional dos Estados Unidos de construir seu próprio bloco no mundo, países submetidos a políticas econômicas de transnacionalização do capital norte-americano e de inte-gração externa e desintegração interna das nossas economias.

Marini atualizou o sonho de Bolívar assinalando com clareza que a in-tegração econômica da América Latina havia se tornado um pré-requisito indispensável para a nossa integração à economia mundial. Pensava no de-senvolvimento conjunto, através de mecanismos multinacionais, de novos setores produtivos e de serviços, baseados em tecnologia de ponta e com mecanismos compensatórios que minimizassem os custos sociais da trans-formação (América Latina: dependência e integração, 1993).

No entanto, um projeto de integração avançada dos países latino-americanos não poderia ser visto como um objetivo de governos e da classe dominante interna, mas como um projeto sob a iniciativa dos povos, re-sultado da coordenação de esforços em todos os planos: sindical, social, cultural, parlamentar e partidário. Para Marini, a integração não é um ne-gócio, mas um grande projeto político e cultural. Daí que a unificação das demandas e das lutas das forças populares fizesse parte do processo de in-tegração. Assim, Marini propunha a latino-americanização das lutas e das plataformas de ação como sendo a resposta globalizada dos nossos povos às políticas de globalização dos impérios (América Latina: democracia e integração, 1993).

Além de Ruy Mauro Marini, outros exilados de antes fazem hoje parte dos espaços acadêmicos e dos programas de pós-graduação no Mé-xico e contribuem com os seus conhecimentos e sua atividade acadêmica para os fins e a produção de um acervo de riqueza incalculável para a América Latina.

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Ser ou não ser subdesenvolvido: a dialética da dependência e a história do Brasil1

Oswaldo Munteal*

(...) o rancor de Fernando Henrique Cardoso e de José Serra em relação a minha análise econômica não os leva à atitude suicida de rejeitar a existência de contradições no modo de produção capitalista. Além disso, o reformismo em suas diversas variantes mostrou que é possível aceitá-las sem que isso implique assumir uma posição revolucionária. Não, o que Cardoso e Serra não podem aceitar é que se identifiquem contradições concretas na socie-dade latino-americana e, em especial, na brasileira. Diante disso, clamam pela pureza do marxismo, querendo reduzi-las outra vez à contradição abs-trata, ou não vacilam em lançar mão de analogias formais e por isto mesmo caricaturescas, para desqualificar a possibilidade de que essas contradições concretas sejam reconhecidas.Ruy Mauro Marini. Dialética da dependência.

O dilema hamletiano se encaixa perfeitamente no desafio enfrentado nos últimos 40 anos no Brasil acerca da condução do nosso destino. Afi-nal, para onde eu vou? O que eu desejo ou quero concretamente? Quais escolhas ou caminhos a serem trilhados são mais justos e adequados à mi-nha vida? Essas indagações do príncipe Hamlet diante da morte do rei da

* Historiador brasileiro nascido em 1965. Professor da Uerj, PUC-Rio e das Faculdades Inte-gradas Helio Alonso. Possui dezenas de artigos e vários livros publicados ou organizados. 1 Este estudo deve muito à minha assistente de pesquisa Nashla Dahás, pela contribuição para a elaboração do quadro “A dialética da dependência e a história do Brasil”, e à pesquisadora Gláucia Pessoa, pelas sugestões para a redação deste trabalho.

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Dinamarca são comparáveis em uma escala ampliada, mas não superior, ao conjunto da sociedade brasileira. O que efetivamente nós desejamos, se compreendemos nós como essa complexa aliança entre o povo e as elites, dirigidos para um único foco? O Brasil não construiu um Estado prussia-no, tampouco possui uma sociedade civil orgânica. A miséria, a corrupção, a traição das oligarquias relativamente ao seu povo e a ignorância impedem o país de arrancar para o seu futuro. A obra e a vida de Ruy Mauro Marini estão inscritas nessa zona turbulenta de possibilidades quanto à conquista da soberania nacional, que se apresenta debaixo de uma lógica perversa de expectativas e frustrações.

Nos dias que correm, o sujeito na história foi esquecido, ou melhor, fragmentado e dissolvido na luta pela sobrevivência imediata. A sedução em torno de uma estratégia de salvação pessoal foi consagrada em detri-mento da instituição da coletividade. Nesse sentido, o papel dos intelec-tuais foi drasticamente reduzido no Brasil no que concerne a uma criação teórica original que chegue aos círculos de poder de forma independente e crítica. Nas décadas de 1960 e 1970, Ruy Mauro Marini foi um dos ex-poentes de uma tradição de combatividade em torno da questão nacional e da relação complementar e contraditória do Brasil referido ao cenário internacional. Como pensador, Marini estabeleceu direta ou indiretamente um diálogo permanente com os historiadores latino-americanos, especial-mente os brasileiros. O nosso esforço neste trabalho repousa em um exame sobre a contribuição da teoria da dependência para a compreensão da his-tória do Brasil.

O pensamento crítico latino-americano, em seus diversos matizes e matrizes, sofreu pesadas derrotas, porém traduziu uma consciência social em torno do Terceiro Mundo como um problema a ser investigado e, se possível, equacionado pelos intelectuais engajados. Marini, no seu livro Dialética da dependência, apresenta uma interseção com a produção teó-rica de Caio Prado Júnior e de Sérgio Bagú, ambos representantes de um estilo de pensamento responsável pela integração filosófica da América La-tina. Esse patrimônio intelectual apresentou desdobramentos importantes que serão expostos mais adiante neste trabalho.

Caio Prado Júnior publicou o livro Evolução política do Brasil em 1933, dentro da efervescência do pensamento intelectual daqueles anos, sendo também a primeira análise da história brasileira, em um curto ensaio de síntese da Colônia até o Império, a utilizar o materialismo histórico de forma consistente. Nessa obra, via o feudalismo da Colônia apenas como uma “figura de retórica”, ainda que o regime das capitanias tenha sido “em princípio caracteristicamente feudal”. No entanto, o paralelismo entre a economia nacional e a da Europa medieval era inexistente, já que, desde o início da colonização, nossa estrutura econômica foi capitalista. Também nessa obra pode-se destacar a análise sobre as rebeliões regenciais, vistas por ele como movimentos relativamente organizados e oriundos de uma fermentação popular, que tentaram romper a ordem colonial. Ele colocava o povo em um lugar de relevo na história do Brasil, o que não era tratado pela historiografia tradicional. A Independência foi um movimento mais de “arranjo político” do que propriamente de libertação, pois se preserva-ram as instituições e a ordem colonial.

Em um segundo momento, Caio Prado Júnior escreveu Formação do Brasil contemporâneo, publicado em 1942, no qual fez um corte temporal do fim do século XVIII e a primeira metade do século XIX para caracteri-zar o que foi a Colônia. O capítulo “O sentido da colonização” serve como principal referência de sua obra histórica. Para Caio Prado, a compreensão da história brasileira se faz ao se desvelar o seu sentido, que se definiria na sua formação colonial. Para tanto, ele parte do início do século XIX, quando a obra colonizadora se encerra, retornando ao passado para en-tender esse sentido e, mais ainda, entendê-lo relacionado à expansão dos séculos XV e XVI. Todas as políticas de conquistas e colonização daquela época tinham um caráter comercial, voltado para as atividades mercantis e imediatas. Caio Prado defendeu que o caráter colonial permanecia na estruturação da sociedade brasileira ainda quando escreveu sua obra, re-sultante de uma sociedade que se moldara na especialização da produção de bens agrícolas de grande valor para o mercado europeu, produzida em latifúndios monocultores. Em 1945, publicou História econômica do Brasil, um texto interpretativo da formação econômica do país, atendendo a uma

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expectativa de se ampliar uma bibliografia voltada para a história política. Uma parte da obra é reaproveitada da Formação, inovando a partir de “A era do liberalismo”, que aborda o período de 1808 a 1850. Trata dos proble-mas da industrialização, do imperialismo, da vida econômica e financeira, insuficientemente analisados até então. Não era uma obra de grandes dados econômicos de exemplificação, mas de interpretação, o que lhe valeu algu-mas críticas.

Caio Prado Júnior integrou um movimento de revisão da história do Brasil nos anos 1930, que revolucionou a maneira de compreender a evo-lução política e social do nosso país. Contribuiu para uma renovação teó-rica que enxergava como horizonte de sentido da economia brasileira um destino periférico e dependente, que afinal definiu a própria história do Brasil contemporâneo. Até a década de 1930, a tese de que o Brasil era um país sem povo vigorava. A partir desse momento e com as contribuições decisivas de Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e do próprio Caio Prado, houve uma mudança nesse panorama, trazendo novos paradigmas, como cultura, tradição, modernização, patriarcalismo e revolução, que fo-ram sendo assim incorporados ao vocabulário corrente dos círculos inte-lectuais e universitários brasileiros. A revolução brasileira aparece como uma das estratégias para superação do atraso e a ruptura com o passado oligárquico vem através da idéia de modernização.

Caio Prado, com lentes de aumento e imune às metodologias micros-cópicas e arrivistas, constata que o passado persiste teimosamente a retor-nar e a condenar o Brasil aos seus vínculos seculares com a escravidão. A influência do materialismo histórico se faz presente na sua obra através dos estudos em torno da história econômica e administrativa e da teoria da história. As obras Evolução política do Brasil, Formação do Brasil con-temporâneo e História econômica do Brasil representam um esforço de sis-tematização dos conceitos tomados da tradição do pensamento marxista, aliados a uma narrativa pormenorizada dos principais acontecimentos que atravessam a nossa evolução sociopolítica. Esse conjunto de obras está liga-do a um momento da produção intelectual de Caio Prado, que se refere à fase considerada, a partir de uma interpretação mais superficial, ortodoxa

da reflexão crítica do autor. A descrição que faz sobre o Brasil revela um sentido que está implícito na própria visão de mundo que dominava a sua concepção de história. Nasceu com essa geração uma preocupação com o método e com a teoria. A universidade recebeu forte influência da obra do autor que, afinal, marcou os estudos sobre o colonialismo durante mais de 50 anos, com orientações, conferências e a formação de quadros docentes que fizeram época, a partir do momento que tinham uma visão do Brasil, partindo da questão nacional. O olhar sobre o Brasil foi marcado por uma relação constante entre as estruturas macro e determinadas singularidades regionais. Nessa direção, toda a abordagem sistêmica acerca das relações entre o Brasil e o contexto internacional tem muito a dever a um dos seus principais historiadores latino-americanos do século XX. Após 1964, Caio Prado Júnior questiona os seus críticos e exegetas da sua obra, com a pu-blicação, em 1966, de A revolução brasileira. Nessa obra, e mais tarde em A questão agrária, ele revê o marxismo que fora utilizado em suas primeiras obras e demonstra que aqueles que as estudaram não penetraram fundo nos conceitos e nas categorias da teoria crítica da sociedade. A influência do PCB e das respectivas teses do aparelho partidário simplificou a história do capitalismo brasileiro. E, com isso, Caio Prado amplia as suas formula-ções incorporando as leituras do marxismo italiano e recusando o ranço stalinista que predominava nos círculos comunistas da época. Em A re-volução brasileira, ele lembra que a tradição do pensamento de esquerda no Brasil tem invertido o processo metodológico adequado – ao invés de partir da análise dos fatos, a fim de derivar daí os conceitos com que se estruturará a teoria, procede-se em sentido inverso, partindo da teoria e dos conceitos, que se buscam em textos consagrados e clássicos, para, em seguida, procurar os fatos ajustáveis em tais conceitos e teoria.

Com a publicação de Economía de la sociedad colonial (1949) e Es-tructura social de la colonia (1952), o historiador argentino Sérgio Bagú transformou os estudos históricos sobre a América colonial, rompendo as-sim com a interpretação clássica da historiografia que vigorava até então. Briseida Allard elucida: “La antigua historiografía fue quedando paulati-namente aislada en las cátedras, las revistas y las academias tradicionales,

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mientras se difundía un análisis especializado, que se tradujo en la creación de cátedras de historia económica, historia demográfica e historia social, así como en la aparición de revistas dedicadas a esas especialidades.”2

Para Allard, a partir da década de 1950, as ciências sociais na América Latina deixaram de representar disciplinas isoladas. Começou a haver a ne-cessidade de se eliminarem as fronteiras entre as áreas, para assim se poder ter uma melhor compreensão do complexo tecido social que emergia. Foi dessa forma que a história, a economia e a sociologia se encontraram inte-gradas em diversos trabalhos e livros da época. Esse foi o caso de Bagú que reconheceu a pluralidade de variáveis política, sociais e econômicas presen-tes no contexto histórico da região. Nesse sentido, S. Bagú considera que:

Cuando un sociólogo busca en la perspectiva histórica un instrumento que le permita esclarecer mejor su propio panorama, o bien cuando un historiador se vuelca hacia el análisis sociológico de una coyuntura, lo que ocurre es que tanto uno como otro, en el afán por enriquecer su propia capacidad de análi-sis, atraviesan los lindes de su especialidad y se van ubicando en esa frontera incierta donde lo sociológico se transforma en histórico y a la inversa. (...). La ciencia, por fuerza, explora parcelas de la realidad y en la misma medida en que la ciencia se hace más exigente y abarca realidades más amplias, la especialidad se impone como una necesidad perentoria que se origina en la limitación de la capacidad de trabajo del ser humano.3

Em Tiempo, realidad social y conocimiento, apresenta três dimensões distintas da temporalidade que são importantes para a reflexão do papel dos indivíduos na sociedade. A primeira dimensão indica o tempo como se-qüência ou duração – o “transcurso”. A segunda aponta para o tempo como “radio de operações” – o “espaço”. A terceira remete à rapidez dos aconteci-mentos, à multiplicidade de combinações possíveis – a “intensidade”. Suas

idéias foram marcadas por um marxismo e socialismo latino-americanos, definidas por uma “creación heróica”, respeitando as especificidades cultu-rais, econômicas e políticas da América Latina. Tinha como uma de suas principais referências o pensamento do peruano Mariátegui. Dessa forma, não reproduziu ou importou idéias do marxismo que se aplicavam a uma outra realidade histórica. Buscou, em primeiro lugar, entender a América Latina para então dialogar dialeticamente com o ideário marxista, apon-tando para a transformação do continente. Bagú questiona, já em 1949, em A economia da sociedade colonial, o pretenso passado feudal da América Latina. As colônias espanholas e portuguesas constituem um capitalismo colonial, não sendo, assim, um mero apêndice da economia européia. Nes-se mesmo livro, afirma Ricupero, ele “indica também caminhos que poste-riormente se mostrarão ricos para a historiografia latino-americana, apon-tando para o papel do colonialismo e do tráfico de escravos na acumulação primitiva de capital, ocorrida no período de transição entre o feudalismo e o capitalismo industrial”.4

Dessa forma, podemos perceber que Bagú acredita ser indispensável o conhecimento da realidade histórico-social do continente. É a partir da noção da situação histórica de colonialismo e imperialismo que se pode transformar esse contexto. Com isso, permaneceu ao lado das lutas po-pulares, sempre buscando a igualdade, a democracia, a autonomia latino-americana em face da dominação européia e norte-americana. Assim, aponta para a situação de dependência de “nuestra América”. Theotonio dos Santos destaca a importância da crítica de Bagú e outros pensadores latino-americanos: “A crítica de Bagú, Vitale e Caio Prado Júnior ao con-ceito de feudalismo aplicado à América Latina foi um dos pontos iniciais das batalhas conceituais que indicavam as profundas implicações teóricas do debate que se avizinhava.”5

O método herdado dessa tradição e seguido por Ruy Mauro Marini possibilita um padrão de explicação histórica que parte da premissa básica

2 Allard, Briseida. Homenaje: Sergio Bagú. Tareas, Panamá: Cela, n. 113, p. 125-135, jan./abr. 2003.3 Bagú. Apud Allard. Op.cit.

4 Ricupero, Bernardo. Celso Furtado e o pensamento social brasileiro.5 Santos, Theotonio dos. Imperialismo y dependencia. México: Era, 1977. p. 31.

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de que a História está fundamentada em leis gerais e categorias abstratas, que afinal se articulam em torno de um todo conceitual. As relações econô-micas e socais de produção são deduzidas a partir de um levantamento em-pírico dos dados objetivos que estão na realidade, portanto o real existe e é concreto, não se trata de uma ilusão de sentido dos homens. A realidade não pode ser confundida com a ideologia que a informa, seduz e falsifica. O mé-todo dialético proposto por Marini advém de uma formação teórica prévia. Mais uma vez ressalto que o real se impõe não como um ideal utópico, dis-tante e intangível, mas sim através de procedimentos teórico-metodológicos que possibilitem ao cientista não supor o que é a realidade, mas afirmar, por conceitos e categorias precisos e concisos, como a sociedade evolui.

O tronco genético crítico da teoria da dependência na discussão his-toriográfica tem os seus desdobramentos com a produção intelectual acer-ca do espaço colonial e as relações entre as metrópoles européias e as colô-nias nas Américas. A discussão em torno do sistema colonial tem no Brasil como seu principal expoente o historiador Fernando Novais. No final dos anos 1960 e início da década de 1970, Novais desenvolveu uma tese sobre a crise do antigo sistema colonial luso-brasileiro, entre 1777 e 1808, que acabaria por se transformar em um clássico da nossa historiografia.6

A perspectiva sistêmica que afinal integrou o Brasil aos quadros da divisão internacional do trabalho ocupou um espaço relevante nos estu-dos e teses de Celso Furtado, Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fer-nandes e Fernando Novais. A zona de interseção não se refere apenas às franjas da teoria da dependência, mas sim ao âmago dos conceitos e da sua

formulação dialética. O diálogo de Ruy Mauro Marini com esse enfoque se acelera, por exemplo, nesta passagem: “Ninguém nega a influência dos fatores internacionais sobre as questões internas, principalmente quando se está em presença de uma economia das chamadas centrais, dominantes ou metropolitanas, e de um país periférico, subdesenvolvido. Mas, em que medida se exerce essa influência? Que força tem frente aos fatores internos específicos da sociedade sobre a qual atua?”7 A interação entre Marini e os historiadores, sobretudo do período colonial, refere-se à lógica da explora-ção do excedente (exclusivo) e, conseqüentemente, à fórmula encontrada pelas economias metropolitanas para impor um padrão de acumulação ca-pitalista à periferia.

A função do monopólio é decisiva na análise do sistema colonial, pois é a condição necessária para o movimento de acumulação dependente, que se agudiza com a concentração e acumulação de capital realizado pe-los Estados metropolitanos. Portanto, de fora para dentro e com a parceria cada vez maior das elites internas, o quadro se completa em um acordo de siameses. O monopólio objetiva garantir a nova divisão internacional do trabalho, transferindo, de uma forma desigual, mercadorias, homens e riquezas naturais de uma maneira geral. Até mesmo a compreensão da natureza se altera com o monopólio colonial. Animais, minérios e plantas são transformados em coisas passíveis de comercialização. As colônias são grandes empórios, e a sua natureza é transformada em mercadoria, sob o manto do fetiche da abundância.

A história do monopólio colonial é trabalhada com intensidade por Marini no conjunto de sua obra. Ruy Mauro afirma que:

A história do subdesenvolvimento latino-americano é a história do desen-volvimento do sistema capitalista mundial. Seu estudo é indispensável para quem deseja compreender a situação que se enfrenta atualmente neste sis-tema e as perspectivas que se abrem. Somente de uma forma contraditória pode-se compreender a evolução e os mecanismos que caracterizam a eco-

6 A obra de F. Novais foi muito bem focalizada por Paulo Arantes: “Fernando Novais deslo-cou inteiramente o eixo da questão, que de local se torna mundial. Aí a grande inovação: pela primeira vez, o centro de gravidade de uma História do Brasil deixa de ser nacional – mais ou menos como nas teorias da Dependência, das quais a nova explicação historiográfica é contem-porânea. Tudo bem pesado, uma verdadeira desprovincianização da História do país, que de comparsa, torna-se protagonista de uma transição cujo centro está na Europa, mas cujo raio de ação é internacional. Nesse novo enquadramento, a periferia colonial se apresenta como o pon-to nevrálgico em que o capitalismo metropolitano revela a sua natureza. Doravante a categoria básica vem a ser a noção inclusiva de Sistema Colonial” (Arantes, Paulo Eduardo. Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira. São Paulo: Paz e Terra, 1992. p. 84-85). 7 Marini, Ruy Mauro. Dialética da dependência. Petrópolis: Vozes, 2000. p . 11.

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nomia capitalista mundial proporcionando uma análise da problemática latino-americana.8

Para os historiadores e cientistas sociais comprometidos com a abor-dagem sistêmica e dialética do desenvolvimento capitalista no Brasil, a perspectiva de crise do sistema é fundamental. A crise deriva da noção de movimento, portanto os críticos do sistema colonial devem examinar com cuidado duas questões: 1) o papel do Estado moderno como instrumento efetivo para o processo de acumulação de capital nas colônias; 2) a crise do sistema colonial não pode ser estática pela própria natureza do processo histórico atrelado às concepções de tempo e espaço. A teoria da dependên-cia e a análise do sistema colonial apresentam muitos pontos de contato, inclusive no que tange ao momento de ruptura: “Crise do sistema colo-nial é, portanto, aqui entendida como o conjunto de tendências políticas e econômicas que forcejavam no sentido de distender ou mesmo desatar os laços de subordinação que vinculavam as colônias ultramarinas às metró-poles européias.”9 Não se deve afirmar que as posturas metodológicas são idênticas, entre a teoria da dependência proposta por Marini e o enfoque desenvolvido por Novais, entretanto não se pode dizer também se tratar apenas de uma coincidência teórica de uma geração. A atitude de pensar o Brasil,10 e as suas contradições internas e tensões com o externo remonta à obra de Caio Prado e tem a sua culminância analítica no final dos anos 1950, 1960, e início de 1970, com a Cepal, a teoria da dependência, a nova dependência de Fernando Henrique e Faletto, os neocepalinos, como Con-

ceição Tavares, Carlos Lessa e Antonio Barros de Castro, e a historiografia dedicada à estrutura e montagem do sistema colonial. Lembrando mais uma vez F. Novais, observemos os pontos de convergência com a dialética proposta pela teoria da dependência:

(...) a economia capitalista comercial, e pois a burguesia mercantil ascen-dente não possuía ainda suficiente capacidade de crescimento endógeno, a capitalização resultante do puro e simples jogo do mercado não permitia a ultrapassagem do componente decisivo – a mecanização da produção. Daí a necessidade de pontos de apoio fora do sistema, induzindo uma acu-mulação que, por se gerar fora do sistema, Marx chamou de originária ou primitiva. Daí as tensões sociais e políticas provocadas pela montagem de todo um complexo sistema de estímulos. O mercantilismo foi, na essência, a montagem de tal sistema.11

Marini confirma essa preocupação com a história do mecanismo mo-nopolista e as suas articulações com o mercado mundial em construção, quando afirma:

A vinculação ao mercado mundial na América Latina surge enquanto tal ao incorporar-se ao sistema capitalista em formação, quer dizer, quando da expansão mercantilista européia do século XVI. (...) No curso dos três pri-meiros quartos do século XIX, e concomitantemente com a afirmação defi-nitiva do capitalismo industrial na Europa, sobretudo na Inglaterra, a região latino-americana é chamada a uma participação mais ativa com o mercado mundial, já como produtora de matérias primas e como consumidora de uma parte da produção industrial européia. A ruptura com o monopólio colonial ibérico se impõe nesse sentido como uma necessidade, desencade-ando o processo de independência política.12

8 Marini, Ruy Mauro. Subdesarrollo y revolución. México: Era, 1974. p. 54. 9 Novais, Fernando. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). São Paulo: Hucitec, 1983. p. 13.10 Consultar a esse respeito o instigante ensaio de Fernando Uricoechea: Os intelectuais e a po-lítica na América Latina. Cadernos Adenauer, Rio de Janeiro, ano IV, n. 5, 2003. Especialmente esta passagem: “O ideário do intelectual republicano no contexto latino-americano do século XX gravita em torno de duas questões tópicas: a idéia de nacionalidade e a de Estado. (...) As peculiaridades históricas e institucionais próprias da gênese e desenvolvimento de nosso intelectual – por contraste, como já vimos, com as do europeu – deram ocasião para uma sin-gular percepção sobre as relações entre Estado e nação ou, dito de outro modo, entre cultura e política” (p. 50).

11 Novais, Fernando. Ibid. p. 69-70. Consultar sobre a relação entre o mercantilismo e o de-senvolvimento econômico: Falcon, Francisco J. C. Mercantilismo e transição. São Paulo: Brasiliense, 1981.12 Marini, Ruy Mauro. Sudesarrollo y revolución. México: Era, 1974. p. 58.

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Marini demonstra que a evolução histórica da América Latina aponta para um cenário em que o sentido da colonização parece claro e os males do presente dialogam com o passado. Para Ruy Mauro, no conjunto da sua obra, só existe uma alternativa para o Brasil e para o Terceiro Mundo: su-perar a condição de periferia. A história do Brasil, para Marini, deve ser estudada a partir dos seus ciclos de acumulação, crescimento e crise, e, des-sa forma, com esse entendimento, auxiliar-nos a explicar as circunstâncias de cada colapso político. Ainda na linha de raciocínio que aponta para as contradições seculares que envolvem a história econômica do Brasil com o sistema mundial capitalista, deve-se retomar F. Novais:

De fato, a ultrapassagem do último e decisivo passo na instauração da ordem capitalista pressupunha, de um lado, ampla acumulação de capital por parte da camada empresária, e de outro, expansão crescente do mer-cado consumidor de produtos manufaturados. Ambos esses pré-requisitos geram-se no processo mesmo de desenvolvimento da economia de merca-do, pois a dissolução das antigas formas de organização econômica, ao en-volver e acentuar a divisão social do trabalho e especialização da produção, cria ao mesmo tempo mercado e acumula capital; já vimos porém que esse mecanismo na sua pureza esbarra em obstáculos intransponíveis, em cuja superação se mobilizam a política mercantilista e o sistema colonial.13

A clave de discussão que ora se encerra serve a uma retomada de um longo debate que foi interrompido pela interdição do debate em torno da questão nacional desde os anos 1970, e também para rever toda a rede de aproximações intelectuais em torno de uma perspectiva mais abrangente e crítica sobre a história do Brasil.

Ruy Mauro Marini sofreu dois exílios ao longo da vida. O primeiro em função da ditadura militar implantada no Brasil em 1964, e pela seqüên-cia de golpes desferidos contra os regimes constitucionais em boa parte da América Latina, e o segundo em função de um silêncio imposto pelos seus

próprios colegas na universidade brasileira. A trajetória intelectual de Ma-rini se confunde muitas vezes com a história da comunidade cientifica no Brasil. Um clima de intolerância com a diferença que, afinal, confunde-se com determinados padrões de competitividade universitária de orienta-ção liberal.

Um dos episódios marcantes desse ataque às idéias verificou-se no debate entre Marini e Fernando Henrique Cardoso em torno do neodesen-volvimentismo reformista proposto pelo Cebrap. A discussão política na teoria da dependência refere-se ao caminho para a conquista da soberania nacional: os dependentistas como Marini acreditavam na ruptura com a ordem econômica internacional capitalista, e na via revolucionária para a chegada ao socialismo. Enquanto isso, Cardoso e Faletto perguntavam se a alternativa era a revolução, ou a aliança com o capital estrangeiro a fim de possibilitar o desenvolvimento. Fernando Henrique, em nenhum momen-to, demonstra confiança na burguesia nacional como um instrumento ca-paz de tirar o país do subdesenvolvimento. Para agravar a situação, segun-do Marini, a aposta de FHC e José Serra vai toda na direção de um modelo econômico que pudesse aliar dependência com desenvolvimento.

Para Marini, a história do Brasil se confunde com a história da sua subordinação econômica. Nessa direção, em suas Memórias, Ruy Mauro sintetiza as suas grandes teses em um dos seus principais livros, Dialética da dependência: 1) o ciclo do capital na economia dependente; 2) a trans-formação da mais-valia em lucro; 3) a teoria do subimperialismo. No que se refere ao ciclo do capital, a investigação partiu da relação circulação-produção-circulação, aplicando-a, primeiro, às mudanças da economia brasileira, a partir do primeiro choque do petróleo. No plano da teoria ge-ral, analisou o movimento da economia dependente no contexto do ciclo do capital-dinheiro.

Em seu livro sobre a dialética da dependência, Ruy Mauro Marini de-senvolve as teses do sistema mundial articulando-as ao debate em torno das origens oligárquicas do nosso país. A posição de Giovanni Arrighi a respeito dos confrontos em uma escala territorial é decisiva:

13 Novais, Fernando. Op. cit. p. 70.

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Em parte alguma, com exceção da Europa, componentes do capitalismo fundiram-se na poderosa mescla que impeliu as nações européias à conquis-ta territorial do mundo e à formação de uma economia mundial capitalista poderosíssima e verdadeiramente global. Por essa perspectiva, a transição realmente importante, que precisa ser elucidada, não é a do feudalismo para o capitalismo, mas a do poder capitalista disperso para um poder concentra-do. E o aspecto mais importante dessa transição é a fusão singular do Estado com o capital, que em parte alguma se realizou de maneira mais favorável do que na Europa.

Fatores endógenos determinaram o modelo de apropriação precária do excedente e os conflitos inerentes à própria compulsão das elites estatais. Os elementos exógenos, e não somente as conjunturas estáticas, contribuí-ram decisivamente para a exclusão do jogo do poder dos Estados moder-nos, aqueles que, mais tarde, viriam a constituir a periferia do capitalismo.

A obra de Ruy Mauro Marini adquire uma importância fundamental para o enfoque sistêmico ao tratar das relações coloniais. Essa contribuição deve ser revista, com a inclusão da evolução da concorrência entre os Esta-dos, pela via de um conjunto de forças que integram o esforço de militari-zação, controle fiscal e financeirização crescente. O arranque da contempo-raneidade está indissoluvelmente associado ao movimento de acumulação de forças pelos Estados nacionais articulados à lógica de acumulação de capital em uma escala planetária. Para uma compreensão apurada da his-tória do movimento de capitais entre os blocos econômicos, é necessário entender a história dos Estados nacionais que, no tempo longo, conduzi-ram o processo de gestão do capitalismo até o momento mais recente. Os termos de troca estão também condicionados pela compulsão dos Estados hegemônicos à destruição das economias nacionais da periferia, a imposi-ção do flagelo do endividamento, da pobreza e da recolonização. O sistema mundial permanece, assim, uma economia mundial capitalista, baseada em uma divisão dual do trabalho, trocas desiguais e um sistema interestatal.

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A dialética da dependência e a história do Brasil

Teoria do sistema mundial

Immanuel Wallerstein (O moderno sistema mundial)Fernand Braudel (Civilização material, economia e capitalismo)Giovanni Arrighi (O longo século XX) Relação Estado / mercado auto-regulável

Sistema interestatal

Sistema Colonial

Conceito de trabalho produtivo – Ruy Mauro Marini• Dialética da dependência • Teoria do subimperialismo • Teoria da seperexploração do trabalho • O imperialismo e a mais-valia relativa

Sentido exógeno da colonização – Caio Prado Júnior• O sentido da colonização brasileira • A revolução brasileira • A relação centro-periferia e a história do Brasil • A concepção dialética da históriaNexos complementares e contraditórios entre colonos e colonizadores – Maria Odilla Dias e Ilmar R. Mattos• O enraizamento da lógica metropolitana • As relações entre colono, colonizado e colonizador • A moeda colonial e os nexos complementares e contraditórios da plantation escravista • A função da região de agricultura mercantil escravista e a dinâmica endógena da classe senhorial • A influência das idéias Reformistas-Ilustradas e o projeto colonizador (manutenção do “exclusivo” e da lógica do sistema colonial mercantilista)

A dinâmica do exclusivo e o trabalho produtivo (mercantilismo) – Francisco J. C. Falcon• Mercantilismo, excedente econômico e Estado moderno • Absolutismo Ilustrado e a política econômica mercantilista • Reformismo Ilustrado e tensões coloniais • Aparelho de Estado, burocratização e controle dos meios de administração

Dinâmica do “exclusivo” metropolitano – Fernando Novais – Eric Williams• Apropriação do “exclusivo”e a lógica mercantilista • Acumulação dependente e a questão colonial • Sistema colonial e sistema mundial • Relações entre as metrópoles européias e as colô-nias nas Américas

Teoria da dependência CEPAL • O processo de substituição de importações• Construção de um mercado interno• Política de distribuição de renda gradual• Ritmo de desenvolvimento econômico acelerado• Estado equilibrado• Sociedade civil organizada• Desenvolvimento auto-sustentável• Renegociação da dívida externa

Fernando Henrique Cardoso e a nova teoria da dependência• Fortalecimento dos vínculos com o capital estrangeiro• Desenvolvimento econômico depen-dente associado• Estado equilibrado• Reforma fiscal, política e patrimonial• Ritmo de desenvolvimento econômico prolongado• Captação de poupança externa • Descrença no papel da burguesia nacional

• Método dialético• Classe e Estado• Burocracia, centralização

e concentração do poder

Dependentistas• Vertente revolucionária para o desen-volvimento nacional• Guerra de movimento• Oriente versus Ocidente• Sociedade civil fragmentada• Saída da condição de país periférico como alternativa

para o crescimento econômico• Ruptura com as agências financeiras internacionais

(FMI, Banco Mundial e credores norte-americanos)

Keynes e o neomercantilismo

• Política econômica neoclássica• Abertura das fronteiras econômicas• Criação de uma infra-estrutura necessária

para fomentar o desenvolvimento• Concentração das atividades econômicas

nos países periféricos para obtenção de vantagens comparativas

• Fim do laissez-faire = Liberdade política versus liberdade econômica• Pleno emprego• Multiplicador Keynesiano (pressão sobre os salários)• Agenda do Estado: convicções políticas; orientação macroeconômica

Consenso

• Longa duração • Ciclo Kondratieff (Estrutura, conjuntura e coerção e acontecimento) • Norbert Elias (O processo Civilizador – O mecanismo monopolista)• Charlles Tilly (Coerção e Estado )• Karl Polanyi (A grande transformação – centralização e concentração)

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A Revolução Cubana e a teoria da dependência: Ruy Mauro Marini como fundador

Francisco López Segrera*

I. Um pensador latino-americano: teoria da dependência e Revolução Cubana

Acho que nunca se fez uma biografia e definição mais precisa de Rui Mauro Marini do que a realizada por Theotonio dos Santos em “Rui Mau-ro Marini: um pensador latino-americano”, imediatamente depois de sua morte.1 Apesar de ser algo sintético, fornece-nos de maneira correta a tra-jetória desse intelectual revolucionário, desse fundador, junto com Theo-tonio dos Santos e Vânia Bambirra, da teoria da dependência.2

Não penso, neste breve ensaio, em avaliar a dimensão de Rui Mauro Marini, pai fundador da teoria marxista da dependência, a importância que tiveram os seus conceitos de subimperialismo e superexploração, a sua visão da dialética da dependência, o seu conceito de trabalho produtivo, ou melhor, a sua análise dos fundamentos da dependência na economia exportadora. Essa avaliação, eu já a fiz profusamente, de maneira implí-cita, citando os seus textos nos meus livros sobre a economia, a política,

* Ex-diretor de Iesalc-Unesco; membro do GT de Clacso de Universidade e Sociedade; mem-bro do Comitê Científico Latino-americano do Foro Unesco de Educação Superior, Investi-gação e Conhecimento. Professor visitante do Iuce, da Universidade de Salamanca, Espanha. Investigador titular adjunto do Centro Juan Marinello, Cuba. Autor de dezenas de artigos em revistas internacionais e diversos livros. Em português, publicou Cuba Cairá? (Editora Vozes). 1 Ver p. 39 de El pensamiento social latinoamericano en el siglo XX. Coordenadores: Rui Mauro Marini; Theotonio dos Santos. Editor: Francisco López Segrera. Caracas: Oficina Unesco, 1998.2 Carlos Eduardo Martins, p. 44, em Los retos dela globalización. Ensayos en homenaje a Theotonio dos Santos. Editor: Francisco López Segrera. Caracas: Oficina Unesco, 1998. t. I.

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a sociedade e a cultura cubanas, incluindo-os em antologias editadas por mim de forma explícita em Herencia y perspectivas de las ciencias sociales en América Latina y el Caribe.3 Nesse ensaio, analisei brevemente a teoria da dependência e me referi àquelas que são, na minha avaliação, as contribui-ções principais das ciências sociais latino-americanas na segunda metade do século XX. Vejamos uma parte dessa análise.4

No final dos anos 1950, o futuro da América Latina era visto através dos paradigmas estrutural-funcionalista, do marxismo tradicional (e, em seguida, da nova versão que apareceu como conseqüência da Revolução Cubana) e do pensamento desenvolvimentista da Cepal (Comissão Eco-nômica para a América Latina). Se a falha do funcionalismo foi considerar que se podia reproduzir na periferia o esquema clássico do desenvolvi-mento capitalista do centro – tese validada pelo marxismo tradicional, que via a América Latina como uma sociedade feudal –, e o erro da Cepal era pensar que, somente com a substituição de importações e com um Estado e um setor público fortes, seria alcançado o desenvolvimento, a Escola da Dependência, na sua crítica ao chamado capitalismo dependente latino-americano, não foi capaz de oferecer uma reflexão com resultados viáveis a respeito de como construir um modelo alternativo de sociedade.

O desenvolvimentismo cepalino de Raúl Prebisch foi considerado pe-los teóricos da dependência como um paradigma que, embora colocasse a necessidade de reformas estruturais modernizadoras, na prática, foi inca-paz de superar o reformismo. A crítica neoliberal do desenvolvimentismo se concentrou no excessivo intervencionismo estatal, no estrangulamento da iniciativa privada e na concessão de recursos de forma irracional.

O defeito essencial da teoria da dependência foi não ter percebido que nenhum sistema pode ser independente do sistema histórico atual, da eco-nomia mundial. Essa realidade interdependente não implica, no entanto, validar o neoliberalismo e as suas políticas de ajuste estrutural – que ten-dem a privilegiar a função do mercado em detrimento da sociedade civil e do Estado – como a única receita válida, e muito menos como fim da histó-ria. Sobretudo quando hoje sabemos, depois de mais de duas décadas eco-nomicamente perdidas, que o ajuste estrutural implicou para a região uma profunda deterioração das condições sociais e uma concentração cada vez maior da riqueza, junto com o crescimento da pobreza e a exclusão social. Se hoje falamos de desenvolvimento humano sustentável (conceito enun-ciado pelo Bruntland Report em 1987), é porque o outro desenvolvimento, na realidade, foi um crescimento econômico perverso e desequilibrado que atenta contra o homem e seu habitat.5

As duas influências teóricas que predominaram nas ciências sociais latino-americanas nos anos 1990 – o neoliberalismo e o pós-modernismo – carregam consigo alguns perigos. O neoliberalismo se inclina para a rea-firmação dogmática das concepções lineares do progresso universal e para a idéia de um desenvolvimento, e o pós-modernismo, para a apoteose do eurocentrismo. O fato de que os metarrelatos em voga no século XX te-nham entrado em crise no final desse século não significa a crise de todo modo de pensar o futuro, e muito menos deste.

Como axiomas e/ou contribuições fundamentais das ciências sociais latino-americanas e caribenhas na segunda metade do século XX, pode-mos mencionar, entre outros, os seguintes:

1o) O axioma do capitalismo colonial de Sérgio Bagú:

O regime econômico luso-espanhol do período colonial não é o feudalismo. É o capitalismo colonial, (...) que apresenta reiteradamente nos diferentes con-tinentes algumas manifestações externas que são semelhantes ao feudalismo.

3 Segrera: Franscico López. Cuba: capitalismo dependiente y subdesarrollo (1510-1959). Havana: Colección Premio Casa de las Américas, 1972; Id. Raíces históricas de la Revolución Cubana (1868-1959). Havana: Premio Uneac de Ensayo 1978, 1980; Id. Cuba: cultura y socie-dad (1510-1985). Havana: Letras Cubanas, 1989. Os livros que editei como conselheiro regional de ciências sociais da Unesco e citados nas notas 2 e 3: El pensamiento social en el siglo XX e Los retos de la globalización, incluem textos de Rui Mauro Marini.4 Ver Segrera, Francisco López. Herencias y perspectivas de las ciencias sociales en América Latina y el Caribe. In: Segrera, Francisco López; Filmus, Daniel (Coord.). América Latina 2020. Buenos Aires: Flacso/Unesco/Temas Grupo Editorial, 2000. p. 403-406.

5 Existe uma abundante literatura sobre a teoria da dependência, mas, na minha avaliação, a melhor análise dessa teoria foi levada a cabo por Theotonio dos Santos. La teoría de la depen-dencia: un balance histórico e teórico. In: Los retos de la globalización. Op. cit. v. I, p. 93.

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É um regime que conserva um perfil equívoco, sem alterar por isso a sua inquestionável índole capitalista. Longe de reviver o ciclo feudal, a América ingressou com surpreendente celeridade no capitalismo comercial, já inau-gurado na Europa (...) e contribuiu para dar a este ciclo um vigor colossal, tornando possível a iniciação do capitalismo industrial anos mais tarde.6

2o) O axioma do “centro-periferia” de Raúl Prebisch: “em outras pala-vras, enquanto os centros conservaram integralmente o fruto do progresso técnico da sua indústria, os países da periferia transferiram para eles uma parte do fruto do seu próprio progresso técnico”.7

3o) O axioma do “subimperialismo” de Rui Mauro Marini:

Passou o tempo do modelo simples de centro-periferia, caracterizado pela troca de manufaturas por alimentos e matérias-primas (...). O resultado foi uma reestruturação, uma hierarquização dos países de forma piramidal e, por conseguinte, o surgimento de centros médios de acumulação, que são também potências capitalistas médias – o que nos levou a falar da emergên-cia de um subimperialismo.

Este conceito acaba sendo equivalente ao de semiperiferia de Wallerstein, pois se refere ao papel desempenhado por países como o Brasil e os tigres asiáticos na nova divisão internacional do trabalho.8

4o) O axioma da “dependência” de Theotonio dos Santos: a depen-dência é

uma situação na qual a economia de um certo grupo de países está condi-cionada pelo desenvolvimento e pela expansão de outra economia, à qual se

encontra atada; uma situação histórica que configura a estrutura da econo-mia mundial de tal maneira, que determinados países ficam favorecidos em detrimento de outros e que determina as possibilidades de desenvolvimento das economias internas.9

Os autores citados são especialmente emblemáticos, mas expressam amplos movimentos de reflexão na região, dos quais são tributários. Esses axiomas apresentam uma especial relevância, do nosso ponto de vista, para a compreensão do papel da América Latina e do Caribe no atual sistema-mundo capitalista. Há muitas outras contribuições relevantes das ciências sociais na Nossa América, às quais me referi no trabalho citado, mas a con-tribuição de Rui Mauro Marini, na minha percepção, esteve entre as quatro que considero de maior relevância.

Tive vários encontros no início dos anos 1970 – época quando o conheci pessoalmente, pois já conhecia os seus trabalhos publicados na segunda metade dos anos 1960 – com Rui Mauro Marini no México e em Cuba. Impressionou-me a sua agudeza intelectual para examinar as simpli-ficações de Revolução na revolução, de Regis Debray, e como considerava que a teoria do foco, mesmo sem ser proposta, legitimava a tese do serviço de inteligência dos Estados Unidos (CIA: Central Intelligence Agency), que considerava os revolucionários como um corpo estranho nas sociedades latino-americanas. Em contraposição à luta de um pequeno foco guerri-lheiro que se transforma no motor inicial da futura luta revolucionária, ele enfatizava a importância da luta de massas e as condições objetivas, sem cair absolutamente no conformismo típico de muitos partidos comunistas latino-americanos dos anos 1960, que não consideravam que o dever dos revolucionários era fazer a revolução. Continuamos a nos ver ocasional-mente e me encontrei novamente com ele no Rio de Janeiro em 1996, no momento em que acabava de ser nomeado conselheiro regional de ciências

6 Bagú, Sérgio. Economía de la sociedad colonial. México: Grijalbo, 1993. p. 253.7 Prebisch, Raúl. El desarrollo económico en América Latina y algunos de sus principales problemas. In: Marini, Rui Mauro. La teoría social latinoamericana. Textos escoljidos. México: Unam, 1994. t. I, p. 238.8 Marini, Rui Mauro. La acumulación capitalista mundial y el subimperialismo. Cuadernos Políticos, México, Era, n. 12, p. 21, abr./jun. 1977.

9 Dos Santos, Theotonio. La crisis de la teoría del desarrollo y las relaciones de dependencia en América Latina. In: La dependencia político económica de América Latina. México, 1969. p. 184.

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sociais para a América Latina e o Caribe da Unesco (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization). Pude visitá-lo na sua casa, com Theotonio dos Santos, e propus a ele que preparasse uma an-tologia do pensamento social latino-americano no século XX, junto com Theotonio. Essa foi a sua obra póstuma. Tivemos muito contato a propósito da mencionada antologia – que foi publicada com o título de O pensamen-to social latino-americano no século XX –, e ele se transformou, até a sua morte, em um dos assessores principais que tive, junto com outros colegas, como Theotonio dos Santos, Atílio Borón, Pablo Gonzáles Casanova, Emir Sader, Julio Carranza, Germán Sanches e, naquela época ainda muito jovem, Carlos Eduardo Martins, nas minhas tarefas como conselheiro regional de ciências sociais. Recordo também a emocionada homenagem organizada por Emir Sader que rendemos a Rui Mauro Marini, recém-falecido, quando do XXI Congresso da Associação Latino-Americana de Sociologia (Alas), realizado na Universidade de São Paulo (USP) em 1997. Participei dessa homenagem junto com outro cubano, Fernando Martínez, que, como di-retor da revista Pensamento Crítico, teve um papel fundamental na difusão da teoria da dependência em Cuba.

Vejamos agora o que significou para a Revolução Cubana a teoria da dependência e a obra de Rui Mauro Marini. Alguns dos trabalhos de Marini foram publicados pela primeira vez em Cuba. Foi o caso de “Subdesenvolvi-mento e revolução na América Latina”.10 Também os seus textos publicados na Monthly Review, “Interdependência brasileira e integração imperialista” (dezembro de 1965) e “Subimperialismo brasileiro” (janeiro de 1972) fo-ram amplamente difundidos em Cuba. Durante os anos 1960, a Revolução Cubana e a difusão do pensamento de Fidel Castro e Ernesto Che Guevara contribuíram para a radicalização das ciências sociais latino-americanas e tiveram um grande impacto no surgimento dos novos enfoques da teoria marxista da dependência. No entanto, o fechamento da revista cubana Pen-samento Crítico e a adoção, em muitos aspectos, do modelo soviético em Cuba no início dos anos 1970 implicaram um certo fechamento do debate

revolucionário, depois da morte de Che e dos reveses sofridos pelo movi-mento guerrilheiro latino-americano. Nesse marco, os textos dos teóricos da dependência foram uma lufada de ar fresco.

Os trabalhos de Fernando Martinez Heredia, Joel James e Germán Sánchez, analisando o capitalismo dependente cubano e os aspectos essen-ciais da história de Cuba mais recente, e os livros já citados de Francisco López Segrera, entre outros trabalhos, inscreveram-se nesse esforço an-tidogmático. A vitória da Revolução Sandinista de 1979 contribuiu para fortalecer a tese de Fidel Castro, de setores da liderança cubana e dos se-guidores da teoria da dependência, que consideravam que a revolução não estava morta na América Latina. O Centro de Estudos da América – e sua revista Cuadernos de Nuestra América –, onde se concentraram intelectuais da estatura de Luis Soares, Juan Valdés, Illya Villar, Fernando Martinez, Rafael Hernández e Julio Carranza, entre outros, marcou uma continuida-de do esforço para entender, com os paradigmas da teoria da dependência adequados à nossa realidade, os problemas mundiais, latino-americanos e cubanos. Também a revista Casa de las Américas, sabiamente dirigida por Roberto Fernández Retamar, publicou textos de dependentistas. É nessas duas revistas que se podem encontrar as melhores análises das ciências so-ciais cubanas. Nos anos 1990, foi fundada a revista Temas, dirigida com grande acerto por Rafael Hernández, na qual se encontram as melhores análises e debates das ciências sociais cubanas no denominado “Período Especial”, como ficou conhecido nos anos posteriores à crise e à derrubada do “socialismo real”. Muitos autores que publicaram nessa revista são tribu-tários da teoria da dependência e do pensamento de Marini.

Já mencionamos que uma das principais conseqüências da Revolu-ção Cubana na área da América Latina foi contribuir para o florescimento de uma nova ciência social marxista – capaz de diagnosticar com segu-rança os fatores que produzem o subdesenvolvimento, mas menos capaz de trazer projetos alternativos para superá-lo –, contraposta às concepções ideológicas da burguesia dependente e do imperialismo. A Revolução Cuba-na demonstrou que era possível o socialismo em um país dominado pelo imperialismo, por mais fortes que fossem os laços de dependência, e que 10 Tricontinental, Havana, n. 7, jul./ago. 1968.

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as formas peculiares do socialismo na América Latina eram determina-das pela específica configuração socioeconômica do continente. Em razão de suas raízes históricas e das características da sua liderança, a Revolu-ção Cubana não foi derrubada junto com o “socialismo real”, e isso é sem dúvida uma homenagem aos lutadores revolucionários da estatura de Rui Mauro Marini, que nunca perdeu a confiança na Revolução Cubana e nas possibilidades da luta revolucionária.

II. Vigência da teoria marxista da dependência: do triunfo da Revolução Cubana às vitórias de Chávez, Lula, Kirchner e Tabaré Vasquez1. Triunfo, refluxo e renascimento do movimento revolucionário na Amé-rica Latina e no Caribe

Como conclusão deste ensaio que, como uma modesta homenagem, dedicamos à obra de Rui Mauro Marini, faremos uma breve análise da re-gião latino-americana entre 1959 e 2005. Análises recentes de autores como Emir Sader, Theotonio dos Santos, Atílio Borón e Aníbal Quijano, entre outros, mostram-nos a plena vigência de uma análise aggiornada que parte da teoria marxista da dependência. O período que analisamos começou com a Revolução Cubana – herdeira do independentismo cubano, da Re-volução Mexicana e das lutas de Sandino, entre outras – e continuou com o objetivo de transformar os Andes em uma Sierra Maestra através do processo de luta guerrilheira que viu surgir as novas ditaduras militares, entronizadas no poder e/ou apoiadas pelos Estados Unidos, salvo no bre-ve interlúdio da presença de Jimmy Carter com sua política de defesa dos direitos humanos. Outro marco foi a Década Perdida (dos anos 1980) na economia e as novas democracias, ficando demonstrada a tese dos que consideravam que era possível construir a “democracia” no capitalismo dependente (Cardoso), diferentemente daqueles que acreditavam que a alternativa era na América Latina entre socialismo ou fascismo. Nos anos 1990 – embora a sua incubação remonte aos anos 1970 –, surgiu com for-ça o neoliberalismo, apoiado no Consenso de Washington; e finalmente a região chegou agora à crise estrutural mais profunda da sua história, como explicaremos em seguida.

A morte de Che na Bolívia (1967) e de Allende em La Moneda (1973) marcaram o início do refluxo do movimento guerrilheiro e revolucionário que, com a vitória dos sandinistas na Nicarágua em 1979 e de Maurice Bishop em Granada – invadida pelos Estados Unidos em 1983 –, teve as suas últimas vitórias de importância, sem esquecer a significação do go-verno de Omar Torrijos no Panamá e de Velasco Alvarado no Peru. As ditaduras militares no Cone Sul começaram com o golpe de 1964 no Brasil e se estenderam a todos os países dessa área nos anos 1970. Foi um projeto contra-revolucionário dirigido pelos Estados Unidos, uma vez fracassada a Aliança para o Progresso de Kennedy. Nos anos 1970, os governos militares estiveram na ordem do dia em toda a América Latina e o Caribe.

2. O impacto do neoliberalismoO resultado das ditaduras militares dos anos 1960 e 1970, das frágeis

democracias dos anos 1980 – década na qual a região sofreu a sua mais grave crise em 50 anos, segundo o então secretário executivo da Cepal, Enrique Inglesias – e do neoliberalismo das três últimas décadas foi uma América Latina e Caribe com estagnação econômica, com a maior quanti-dade de pobres da sua história, com a maior porcentagem de desemprego, afundados no caos social e com sua independência e soberania ameaçadas pelos esquemas integracionistas (Alca, Tratado de Livre-Comércio) e pela estratégia militar dos Estados Unidos.

Dessa situação caótica, parecem emergir as novas alternativas ao neoliberalismo, através de mobilizações populares contra os regimes que entronizaram o neoliberalismo na forma do Consenso de Washington. A deslegitimação do neoliberalismo coloca, finalmente, diferentes propostas para o debate, diferentes opções para superar a crise. Antes de analisá-las, vejamos alguns dados adicionais sobre a situação da América Latina e do Caribe (Sader, 2001; Gambina, 2002).

A América Latina e o Caribe enfrentam uma crise do seu capital social que envolve diversos fatores: clima de confiança social, grau de associacio-nismo, consciência cívica, valores culturais (Kliksberg, 2001). De acordo com a Cepal (2000): “os anos noventa contribuíram para estabelecer uma

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nova estratificação ocupacional que não favorece a mobilidade social nem uma melhor distribuição da renda. Aumentam o emprego precário (...) e a vulnerabilidade social”. De acordo com uma pesquisa de opinião da Latinobarómetro (2000), há a percepção de que “a minha geração está pior do que a anterior”. Em 2000, a população mundial era de 6.200 milhões. A cifra na América Latina e Caribe era de 481 milhões (América do Sul: 319; América Central: 126; Caribe: 36). Segundo o Banco Mundial, a América Latina e o Caribe são as regiões com “a maior polarização distributiva do mundo”: 150 milhões nos anos 1990 (BID: Banco Interamericano de De-senvolvimento) viviam com menos de dois dólares por dia e 250 milhões, de acordo com a Cepal, no ano 2000. Quarenta por cento da população trabalhavam no setor informal da economia. Cinqüenta por cento das ex-portações da região eram dirigidos para o pagamento da dívida externa. De acordo com a Cepal (2002), o desemprego chegava a 9,1% e os pagamentos de juros da dívida externa (39 bilhões de dólares) equivaliam a 2,4% do PIB da região. O Banco Mundial assinalou no WDR (1990) que, caso se transferisse 0,7% da renda do PIB, a pobreza seria erradicada. Isso equiva-leria a um imposto de 2% da renda para os 20% mais ricos da população. Ainda segundo a Cepal, com 1% da renda do PIB, a pobreza extrema seria eliminada, e com 4,8%, a pobreza em geral. Na América Latina e no Caribe, no final dos anos 1990, o imposto sobre os lucros como proporção do PIB era de 2,5% contra 15% nos países da Europa Ocidental, situação essa que não mudou. Os impostos que prevalecem são os indiretos sobre os pobres, através do IVA (Imposto do Valor Agregado).

No caso da América Latina e do Caribe, passou-se do projeto cepa-lino de substituição de importações, produção para o mercado interno e fortalecimento do Estado, para as ditaduras militares e, em seguida, para o modelo neoliberal, para chegar aos anos 1990 ao que foi chamado de Novo Modelo Econômico. O drama parece consistir em que, enquanto nos anos 1950, na era da Cepal, existia um sujeito político e social na região na forma de líderes populistas e de um incipiente empresariado industrial, que aspirava a um desenvolvimento nacional autônomo, nos anos 1990 e no início do século XXI, essa vontade política e econômica não parece es-

tar tão presente nos setores empresariais – e inclusive políticos – de certos países da região. A tendência para a transnacionalização e o caráter des-nacionalizador que se estabeleceram na região, a falta de capacidade de aggiornamento com o novo paradigma tecnológico e a crise de paradigmas e alternativas são desafios que a região enfrenta na transição de uma socie-dade de produção para outra do conhecimento. A chave para solucionar esses desafios é a existência ou não de uma vontade política para realizar as inadiáveis mudanças. A democracia foi viável no marco do chamado capi-talismo dependente com exclusão social. A pergunta que muitos se fazem é: até quando? “A experiência histórica e contemporânea são concludentes: somente obtêm êxito os países capazes de pôr em execução uma concepção própria e endógena do desenvolvimento e, com base nisso, integrar-se ao sistema mundial” (Ferrer, 1999, p. 23).

É, portanto, o Estado nacional que deve criar a estratégia de desen-volvimento necessária e implementar políticas que fortaleçam as empresas nacionais. A passagem do ajuste estrutural à “retórica” com rosto humano e depois social não parece oferecer perspectivas realistas de eqüidade e desenvolvimento. Serão a integração econômica e o renascimento da cul-tura política que tornarão viável esse processo na região? Ou os prazos já estão esgotados e a dependência no marco da interdependência globali-zada é inevitável? Poderosas forças políticas e sociais na região, excluídas da ordem atual, expressam o seu protesto de várias maneiras: Chiapas, os Sem-Terra, a crise na Argentina, a situação de guerra na Colômbia, as crises que os países andinos atravessam, o drama da América Central agravado por ciclones como o Mitch, as vitórias eleitorais de Chávez, Lula, Rafael Corrêa, Kirchner e Tabaré Vazquez, junto com as crises boliviana e equatoriana que levaram Evo Morales e Rafael Corrêa à presidência – são somente algumas expressões dos desafios à governabilidade das democra-cias. O investimento fugiu dos mercados latino-americanos. Dentre as 10 moedas que maior valor perderam no ano 2003 em face do dólar, seis são latino-americanas: o peso argentino caiu 72%; o bolívar venezuelano, 44%; o peso uruguaio, 40%; o real brasileiro, 27%; o peso colombiano, 15%; e o peso mexicano, 6%.

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O aggiornamento que a terceira via representou para o Estado de bem-estar na Europa não parece ter aplicabilidade na nossa região. Na sua nova fundação em 1951, a socialdemocracia falou de “terceira via”, também o economista tcheco Ota Sik e, no final dos anos 1980, os socialdemocratas suecos (Giddens, 1999). A sua apropriação por Clinton – durante a sua presidência – e Blair – simultânea às vitórias eleitorais dos socialdemocra-tas no Reino Unido, na França, na Itália, na Áustria, na Grécia e em vários países escandinavos e à sua crescente influência na Europa Oriental, sem esquecer o Congresso em 1999 da socialdemocracia em Buenos Aires, an-terior à Cúpula do Rio –, e a teorização da terceira via como renovação da socialdemocracia feita por Anthony Giddens colocaram-na na ordem do dia. É uma ironia da história que se tenha produzido o ataque da Otan ao Kosovo durante governos socialdemocratas. Mas talvez isso esclareça o fato de que a terceira via não é para nós, latino-americanos e caribenhos, que jamais tivemos um Estado de bem-estar.

O conceito de terceira via não é aplicável à realidade latino-americana. Aqui, não temos de escolher entre dois caminhos distintos, mais ou menos eficazes de desenvolvimento, a distribuição da renda e a inserção interna-cional, tal como se coloca agora para a socialdemocracia européia. Aqui, é preciso deixar para trás um legado histórico de atraso e subordinação, agra-vado em épocas recentes pela estratégia neoliberal, e iniciar um caminho diferente. Um caminho novo que produza desenvolvimento e bem-estar e insira a América Latina na globalização como uma comunidade de nações capaz de decidir sobre o seu próprio destino na ordem mundial. (Ferrer, 1999, p. 22)

Poderia parecer paradoxal que, enquanto nos Estados Unidos se ins-taura um governo de extrema direita – orientado ideologicamente pelos falcões e por Norman Podhoretz, que, em um artigo publicado em setem-bro de 2002 em Commentary, considera que a Doutrina Bush de guerra preventiva é excelente, e na tradição de Reagan e não do pai de Bush –, que adota um comportamento imperial e rechaça o multilateralismo, ao

mesmo tempo em que aumenta os gastos militares e as pressões para con-seguir uma adesão incondicional no plano interno (Congresso) e interna-cionalmente dos aliados do governo norte-americano, primeiro na guerra e depois na ocupação do Iraque, na América Latina, desenvolve-se acele-radamente uma nova liderança política de centro-esquerda e movimentos sociais anti-sistêmicos, apesar de ser a região mais diretamente submetida aos Estados Unidos. A crise do projeto Fox no México; a recuperação do sandinismo na Nicarágua e do Farabundo Martí em El Salvador; a radicali-zação em torno de Chávez na Venezuela; o reagrupamento das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e do ELN (Exército de Libertação Nacional) na Colômbia diante da tentativa de liquidação militar; os resul-tados das eleições no Equador com a vitória de Lucio Gutierrez; o movi-mento indígena na Bolívia; o renascimento do Apra e da esquerda unida no Peru; o desmoronamento do modelo neoliberal na Argentina e a vitória de Kirchner; a evolução e fortalecimento do processo cubano, apesar do embargo e do bloqueio; a vitória de Lula e do PT no Brasil; o triunfo da Frente Ampla e a eleição de Tabaré Vazquez à presidência do Uruguai; e a fusão como em um crisol desse novo pluralismo anti-sistêmico no Fó-rum de Porto Alegre – todas essas coisas testemunham a afirmação feita anteriormente (Dos Santos, 2002; Sader, 2003). Enquanto a Ásia, apesar da sua diversidade e dos seus diversos espaços, está próxima do status quo, a América Latina, o mundo árabe e a África Sul-Saariana parecem buscar formas originais, ao se verem excluídos da “nova ordem internacional” e da globalização neoliberal, e são, sem dúvida, vulcões em erupção.

O aumento da desigualdade na forma de exclusão social influiu ne-gativamente no desenvolvimento dos programas educativos nos anos 1980 e 1990. De 1980 a 1990, os latino-americanos abaixo da linha de pobreza aumentaram de 37% para 39% no caso da pobreza urbana, e de 25% para 34% no caso da pobreza rural. Em 1970, a distância entre o 1% mais pobre e o 1% mais rico da população latino-americana era de 363 vezes; em 1995, aumentou para 417 vezes. Segundo o Banco Interamericano de Desenvolvi-mento, nos anos 1990, produziu-se um aumento da pobreza de mais de 150 milhões de latino-americanos, que equivale a cerca de 33% da população

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que recebe menos de dois dólares por dia, mínimo necessário para cobrir as necessidades básicas de consumo. Em 1998, apesar de o PIB ter crescido em 2,6%, o desemprego na região aumentou de 7,2% para 8,4%. Ao lado disso, observa-se uma diminuição dos empregos no setor formal e o fato de que, no período de 1990-1997, de cada 10 empregos que foram criados, nove deles pertencem ao setor informal. A Cepal, no seu Panorama Social da América Latina 2000, estima que a população vivendo em condições de pobreza cresceu de 204 milhões em 1997 para 220 milhões em 2000. Hoje, na América Latina, 5% da população são donos de 25% da renda nacional, ao passo que 30% somente possuem 5% da renda nacional. A Cepal, no seu Panorama Social da América Latina 2002, afirma que há 220 milhões de latino-americanos na pobreza, dos quais 95 milhões são indigentes. Isso representa 43,4% da população e 18,8%, respectivamente. Na Argentina, a taxa urbana de pobreza dobrou, passando de 23,7% a 45,4%, ao passo que a indigência subiu de 6,7% para 20,9% (Filmus, 1998; Tedesco, 2000; Cepal, 2000; Cepal, 2002; BID, 1998; Kliksberg, 2001).

O que caracteriza a região no período que vai de 2003 a 2005 são, en-tre outras coisas, quatro fenômenos: 1o) a extinção dos movimentos guer-rilheiros, a não ser o caso de Chiapas (Exército Zapatista de Libertação Nacional) e as guerrilhas colombianas; 2o) a vigência das democracias; 3o) a vigência, apesar da sua crise, das políticas econômicas neoliberais; 4o) um estado generalizado de revolta popular contra essas políticas e seus representantes políticos, que teve uma expressão das forças do conjunto da região nos Fóruns de Porto Alegre. A mobilização popular contra essas políticas se expressou: votando contra os partidos tradicionais (Venezuela, Brasil); elegendo líderes radicais (Equador); com rebeliões contra a dola-rização da economia, como no Equador, desalojando o então presidente Jamil Mahuad e, posteriormente, Lúcio Gutierrez; derrubando presidentes por corrupção, como no caso de Fujimore no Peru; destituindo presidentes identificados com as políticas do Fundo Monetário Internacional, como no caso de Fernando de la Rua na Argentina; ou, ainda, por suas políticas de entrega dos recursos nacionais, no caso de Sánchez Losada ou Carlos Mesa na Bolívia; arrasando eleitoralmente a hegemonia da direita tradicional,

como na vitória da Frente Ampla no Uruguai; agindo através de mobiliza-ções de massa contra as tentativas das forças políticas tradicionais de desle-gitimar os líderes da esquerda que encabeçam as pesquisas de opinião para as eleições presidenciais ou de fraudar eleições, como no caso do PRD no México com a pessoa de López Obrador (López Segrera, 2004).

3. América Latina no século xxiA oração fúnebre entoada pelo livro de Jorge Castañeda – A utopia

desarmada –, em 1990, que dava notícia da perda de poder dos sandinistas nas eleições e da institucionalização do movimento guerrilheiro centro-americano de El Salvador e Guatemala, anunciando um longo termidor para a esquerda e para as forças revolucionárias, teve apenas quatro anos de vigência. A crise mexicana de 1994 foi o primeiro grande anúncio da cri-se do neoliberalismo e do Consenso de Washington. Aos sobreviventes da pós-Guerra Fria – a Cuba revolucionária, o PRD mexicano, a Frente Ampla no Uruguai, o PT no Brasil, o Farabundo Martí em El Salvador – uniram-se na luta contra o neoliberalismo, com diferentes programas e táticas: os zapatistas do subcomandante Marcos; os seguidores de Chávez, de Lula, de Kirchner; a vitória da Frente Ampla no Uruguai e a força crescente de Evo Morales na Bolívia e do PRD no México (Sader, 2003; López Segrera, 2004).

Essa crise de hegemonia foi o resultado de uma polarização social sem precedentes, como vimos nas já mencionadas estatísticas de desemprego, pobreza e desigualdade na distribuição de renda. Para aplicar os programas de ajuste estrutural, com o fim de pagar os serviços da dívida e se ade-quar às receitas do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, o Estado reduziu os gastos fiscais nos serviços públicos, como na saúde, na educação, na seguridade social, na infra-estrutura urbana e nos transportes (Ziccardi, 2001; Briceño, 2002).

Aldo Ferrer (1999) explicou a concentração de riqueza e a crescen-te estratificação social e política dos anos 1980 e 1990 como expressão da ausência de vontade política nas classes dominantes na América Latina e no Caribe para alcançar o desenvolvimento nacional. As prioridades dos

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servidores do neoliberalismo foram na América Latina e no Caribe: a esta-bilidade da moeda e o pagamento da dívida externa.

As reformas do Estado nos anos 1980 e 1990 deram lugar a Estados menores na América Latina e Caribe. No início dos anos 1990, os funcio-nários públicos eram em torno de 9% da população nos Estados Unidos, na Alemanha, na França, na Inglaterra... e apenas 3% na Argentina, no Chile e no Brasil. Áreas completas do setor estatal foram privatizadas no México, no Chile, na Argentina, na Venezuela, no Equador...

O neoliberalismo aplicou, diferentemente do modelo cepalino, um novo modelo econômico que se caracteriza por um Estado menor, como resultado das privatizações e da redução do gasto social, sob a alegação da estabilidade macroeconômica. O crescimento econômico se baseia nas ex-portações, na desregulação do mercado de trabalho, na abertura ao comér-cio internacional e no endividamento externo. O Consenso de Washington – hoje em crise – promoveu esse novo modelo econômico. No começo do século XXI, apareceu uma nova teoria em substituição ao Consenso de Washington, a teoria dos Estados viáveis (Brasil, México, Chile...) e dos não viáveis (América Central, Países Andinos...).

Segundo Atílio Borón (1999), ao contrário do que dizem os especia-listas do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial – e do que fazem os governos da América Latina e do Caribe –, nenhum país se de-senvolveu combinando: auge exportador, mercados internos deprimidos, desemprego e baixos salários. Essa fórmula da América Latina e do Caribe nas últimas duas décadas é uma rota segura para perpetuar o atraso e o subdesenvolvimento.

O neoliberalismo significou também a transnacionalização e a su-bordinação das burguesias latino-americanas – com exceção da brasileira – e o controle dos recursos produtivos e da acumulação de capital pelas corporações transnacionais, que aumentam o desemprego, aplicando a “reengenharia”, não pagam impostos em geral, exportam os seus lucros e contaminam o meio ambiente. O capital especulativo financeiro também não paga impostos e tem a proteção do Estado, como mostram os casos da Argentina, da Venezuela, do Equador, do Peru, entre outros.

Em uma conjuntura em que os governos da América Latina e do Ca-ribe foram eleitos democraticamente, aumentam as irrupções sociais e as mobilizações contra as políticas neoliberais e vislumbra-se um horizonte de crise social generalizada. No entanto, não parece que os golpes militares nem as revoluções estejam na ordem do dia. Os discursos anti-sistêmicos não parecem anunciar, pelo menos por agora, uma ruptura, como aquela que significou o triunfo da Revolução Cubana e o auge dos movimentos guerrilheiros e a vitória do sandinismo entre 1959 e 1979. Isso não nos deve estranhar, já que, depois da derrocada do socialismo em 1989 e da desin-tegração da União Soviética, a esquerda ficou sem um projeto alternativo claro. O mosaico de posições que se expressa em Porto Alegre é expressão de uma revolta social contra o status quo, mas ainda não é um programa claro de organização da economia, da política e da sociedade.

Apesar dessas ambigüidades, um novo sujeito social surge na forma de movimentos indígenas – em protestos sociais indígenas com diferentes sinais no México, na Guatemala, no Equador, na Bolívia e inclusive em pa-íses de fraca etnia indígena, como a Colômbia; nos lacandones do Exército Zapatista de Libertação Nacional liderados pelo subcomandante Marcos; e nos movimentos camponeses – Movimento dos Sem-Terra (MST) no Bra-sil – que puderam se fundir em um bloco, que, em alguns países, pude-ram se incorporar ao protesto social dos afro-latino-americanos e de todos aqueles excluídos dos escassos benefícios do bloco oligárquico.

A percepção de que, por um lado, sem o mercado, ninguém pode vi-ver e, por outro, de que, somente com o mercado, também não pode viver uma crescente maioria das populações, dá-se em um contexto de aumento da escravidão, da servidão pessoal e da economia informal na forma de pequena produção mercantil independente; ou melhor, do intercâmbio da força de trabalho e produtos, evitando o mercado, à maneira dos movi-mentos piqueteros na Argentina. Este último movimento demonstra como a crescente massa de desempregados se orienta para além dos reclamos tradicionais de emprego, salários e serviços públicos, organizando-se em redes de autogestão e governo de caráter comunitário. A base social de Kir-chner na Argentina, de Chávez na Venezuela, de Lula no Brasil, de Tabaré

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Vázquez no Uruguai... está composta por muitos dos membros dos setores excluídos que se unem no marco da crise com os setores médios urbanos desempregados.

O impacto excludente do neoliberalismo e a emergência dos novos sujeitos sociais mencionados se dão no marco de condições positivas e ne-gativas para os movimentos políticos de esquerda.

Entre as condições positivas se encontram: a crise e o esgotamento do modelo neoliberal e do Consenso de Washington; a incapacidade para ag-giornar as políticas neoliberais e incorporar o protesto social contra o status quo; o aumento das mobilizações sociais e políticas contra essas políticas e a substituição violenta do poder das classes dominantes-subordinadas que as representam; a emergência de novas forças sociais e políticas – Equador, Bolívia... – e o fortalecimento das forças constituídas em períodos anterio-res: a Frente Ampla no Uruguai, o PT no Brasil, o PRD no México.

Entre as condições negativas se encontram: um contexto internacio-nal extremamente hostil às forças da esquerda, no qual a socialdemocracia européia escorregou para a direita, transformando-se em um social-neo-liberalismo, em que o governo dos Estados Unidos aplicou a sua doutrina da “guerra preventiva”, tomando como pretexto os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, com o objetivo de alcançar uma recomposição he-gemônica. Essas posições conservadoras das classes dominantes européias e norte-americanas se tornaram evidentes nas reuniões da Organização Mundial do Comércio (OMC), em que um novo bloco liderado pelo Brasil, pela Índia e pela China se confrontou com o unilateralismo norte-ameri-cano e com a retórica multilateral dos europeus, que preferem subsidiar alguns poucos agricultores dos seus países, enquanto milhões de pessoas dos países do Sul não podem ter acesso aos mercados do Norte com seus produtos e vêem como se aprofunda a fome nos seus países. Outras condi-ções negativas para a região e para as forças da esquerda são: o ciclo reces-sivo da economia mundial, que impede a expansão do comércio exterior das economias latino-americanas e reduz os investimentos; a inexistência de um forte movimento internacional com um programa ou um projeto al-ternativo à ordem neoliberal, pois Porto Alegre é ainda muito fraco diante

de Davos; a situação crítica em que o neoliberalismo mergulhou o aparato de Estado, trazendo uma grande incapacidade e debilidade para desenvolver políticas públicas, mesmo quando há vontade, como são os casos da Vene-zuela e Argentina, entre outros; e a fragilidade da esquerda latino-americana em nível nacional, continental e internacional para estruturar um programa alternativo ao neoliberalismo e ser capaz de organizar, aglutinar e liderar os diversos movimentos de protesto social e político (Sader, 2003).

Como conseqüência disso, no marco da crise de hegemonia das bur-guesias e das classes políticas da região produzida pela aplicação de políticas neoliberais – que significa um esgotamento dos blocos de poder tradicio-nais nos diversos países –, os movimentos anti-sistêmicos que surgem às vezes parecem se esgotar antes mesmo de alcançarem as reivindicações prometidas: o caso de Chávez na Venezuela, que superou “milagrosamen-te” o golpe de Estado de abril de 2003; ou antes, no caso do Brasil, suscitam fortes críticas da esquerda, em que alguns consideram que a tática de se aliar com o capital produtivo brasileiro contra o especulativo e de fortalecer o Mercosul poderia transformar o projeto de Lula em um refém das forças tradicionais neoliberais da oligarquia brasileira, caso não se avance simul-taneamente no aprofundamento do projeto social de setores radicais, como o Movimento dos Sem-Terra (MST).

As ciências sociais latino-americanas são ricas de tipologias – Darcy Ribeiro, Vânia Bambirra... – para analisar as formas políticas e econômi-cas do capitalismo dependente latino-americano. Na conjuntura de 2003, é necessário elaborar novas tipologias que enquadrem as diversas propostas para o debate, como o fez Aníbal Quijano (2003).

Temos, em primeiro lugar, a emergência em um novo contexto para a proposta de um capitalismo nacional – defendida por Prebisch e Furta-do na Cepal nos anos 1950 e 1960 e derrotada nos últimos 30 anos –, nos casos da Venezuela (Chávez), do Brasil (Lula), da Argentina (Kirchner) e do Uruguai (Tabaré Vazquez) e Bolívia (Evo Morales). No caso do Equador (Lucio Gutierrez), que parecia semelhante aos anteriores, ao que parece, afastou-se desse caminho, retomado através de Rafael Correa. O PRD no México se inscreve nessa corrente.

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Em segundo lugar, temos a continuidade das políticas neoliberais, representada essa corrente pelas forças políticas dos governos do México, da América Central e do Chile, apesar da sua especificidade.

Em terceiro lugar, temos o caso sui generis de Cuba. O seu mode-lo, apesar das deformações que a sua vinculação com o “socialismo real” produziu, subsistiu devido à sua ampla base social, às características da liderança histórica e ao fato de que, no seu caso, fundem-se os temas das reivindicações sociais e da independência nacional diante da ameaça dos Estados Unidos. Esse é o único caso no Ocidente de um regime que se guia explicitamente pelos princípios do socialismo científico, ao mesmo tempo em que se move lentamente para o denominado socialismo de mercado que existe na China e no Vietnã.

Por último, no Fórum Mundial de Porto Alegre, observam-se corren-tes tradicionais vinculadas ao marxismo e ao socialismo científico e uma nova corrente radical que ataca não somente a forma neoliberal do capita-lismo, mas também o sistema capitalista como tal. Em ambas as tendên-cias e, especialmente, nesta última, há uma total rejeição das propostas do chamado “socialismo real”, que é percebido como estatizante e antidemo-crático. Os debates no Fórum Social Mundial de Porto Alegre – em 2001, 2002, 2003, 2004 e 2005, como alternativa a Davos – mostraram uma gran-de diversidade de propostas e planos de ação e alcançaram um consenso em torno de três pontos importantes: 1) a globalização neoliberal está au-mentando as desigualdades em nível mundial e nacional e está destruindo o meio ambiente; 2) as agências internacionais, como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e a Organização Mundial do Comércio, são consideradas como parte de um poder mundial que produz os males da globalização neoliberal através do capitalismo financeiro de caráter es-peculativo em uma economia cassino; 3) a política de “guerra preventiva” da administração Bush é a antítese da construção da paz pela via do multi-lateralismo. (Seoane & Tadei, 2001; López Segrera, 2004).

A nova esquerda latino-americana no poder se caracteriza pelo se-guinte: pela chegada ao poder através das urnas (Chávez, 1998; Lula, 2002; Kirchner, 2003; Vazquez, 2004), pela coordenação e união nas ações de po-

lítica externa, em vez de negociar unilateralmente (fortalecer o Mercosul, aliança do Brasil com a Argentina e de ambos com a Venezuela, apoio da Venezuela ao Uruguai e aos referidos países), e pela busca de fórmulas al-ternativas de financiamento e desenvolvimento (novos mercados de expor-tação de petróleo e gás por parte da Venezuela, incentivos ao investimento chinês na Argentina, vários acordos econômicos desses países com a Chi-na, novas formas de negociar a dívida externa, especialmente no caso da Argentina).

Foi possível um dia combinar capitalismo dependente e democracia. Será ainda possível harmonizar um capitalismo nacional com a globali-zação? Para isso, seriam necessárias, entre outras condições, uma grande massa de investimento do capitalismo mundial na região e a flexibilização e/ou o perdão da dívida externa. São necessárias políticas que diminuam sensivelmente o desemprego e que reduzam a polarização social. Quer di-zer, retornar ao Estado cepalino em um novo contexto – ou constituí-lo onde ele não existiu, como na Venezuela – sem as corruptelas que foram geradas anteriormente. Se observarmos as negociações do Fundo Monetá-rio Internacional com a Argentina, poderemos concluir que talvez isso seja possível, mas se observarmos o que ocorre nas reuniões da Organização Mundial do Comércio, as conclusões serão opostas.

A vitória do capitalismo nacional não parece fácil no contexto de uma nova primarização e terceirização – e finalmente desindustrialização – da estrutura produtiva da região, com a única exceção do Brasil. Isso significa que as burguesias industriais com base nacional são débeis ou inexistentes, assim como a classe operária industrial, em um contexto de crise da exis-tência social das camadas médias, como se viu na Argentina, entre outros países. O caso da Argentina ilustra de forma dramática o que foi dito an-teriormente em relação à burguesia, ao proletariado e às camadas médias. Também no México se produziu uma transnacionalização da burguesia. Somente o Brasil é uma exceção. Esses três países nos anos 1980 concentra-vam 77% da produção industrial da região.

O neoliberalismo implicou que as burguesias latino-americanas aban-donassem o caminho da industrialização por substituição de importações e

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da produção para o mercado interno, caminho seguido entre os anos 1930 e 1970, e empreenderam a estratégia de produção para a exportação, dando lugar ao crescimento dos produtos primários e dos serviços e à diminuição da produção industrial. Devido ao fato de que o mercado de produtos pri-mários e de serviços estava controlado em nível mundial pelas burguesias metropolitanas, os setores sobreviventes da “burguesia compradora” lati-no-americana ficaram totalmente subordinados a essa burguesia financeira internacional.

Em resumo, a crise do Estado oligárquico e da burguesia urbano-in-dustrial que foi seu protagonista deu lugar à hegemonia de uma “burguesia compradora”, integrada por especuladores financeiros e produtores de pro-dutos primários e de serviços, subordinados à burguesia internacional. Em vista dessa situação sociológica, é extremamente difícil reconstituir o capi-talismo nacional, exceto em um país como o Brasil, onde existe um forte setor produtivo de burguesia nacional. Não obstante, isso não significa que seja impossível a vitória do capitalismo nacional em outros países, em um contexto em que a via para uma ruptura sistêmica não parece visível.

A alternativa ao neoliberalismo – independentemente das vias nacio-nais que ele adote – não pode ser outra senão a reconstrução do Estado na América Latina e no Caribe.

Em suma: fortalecimento do Estado; reforma da administração; luta contra a corrupção; novo papel do Estado na vida econômica e social; reconstrução das instituições democráticas; novas políticas do Estado orientadas para o investimento no recolhimento de impostos e em recur-sos humanos (capital humano) enquanto recursos sociais (capital social).

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Teorias estruturalistas e teoria da dependência na era da globalização neoliberal

Cristóbal Kay *

Na fase atual da globalização neoliberal, torna-se ainda mais impor-tante do que nunca reafirmar e continuar a desenvolver as teorias sociais latino-americanas. Isso não deveria ser interpretado de uma estreita ma-neira chauvinista, mas, pelo contrário, como uma contribuição dos cien-tistas sociais latino-americanos a uma teoria crítica internacionalista que adquire hoje a maior urgência em vista das devastações da globalização neoliberal. Ao oferecer uma crítica à globalização neoliberal, os cientistas sociais latino-americanos podem confiantemente dar uma contribuição para a emancipação das pessoas no mundo, particularmente nos países subdesenvolvidos. Desde as originais reflexões marxistas de José Carlos Mariátegui sobre a realidade peruana nas décadas de 1920 e 1930, o mar-xismo latino-americano se tornou uma das principais contribuições para essa teoria emancipadora. Nesse sentido, Ruy Mauro Marini não somente deu a maior contribuição para a teoria crítica social latino-americana, mas também para o marxismo na América Latina, especialmente através dos seus escritos sobre a teoria da dependência.1

* Economista e sociólogo chileno. Professor e pesquisador do Institute of Social Studies na Ho-landa. Com vasta obra publicada, é autor de livros de grande repercussão como Latin-american theories of development and underdevelopment (1989), entre outros. 1 Para um breve resumo das idéias de Ruy Mauro Marini, ver Sotelo (2002), entre outros. A mi-nha própria visão de algumas das contribuições de Marini para a teoria social latino-americana e para o marxismo pode ser encontrada em Kay (1989) e Kay (1991).

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Além disso, Ruy Mauro Marini foi também um dos primeiros defen-sores e difusores da teoria social latino-americana, não somente através dos seus escritos, cursos e participação em debates públicos, mas também atra-vés da sua obra publicada.2 Subscrevo totalmente (1994, p. 14) a afirmação de Marini de que

No passado, a nossa região soube criar paradigmas e linhas interpretativas que conformaram uma teoria social rica e original, cujo impacto se fez sen-tir inclusive nos países de maior desenvolvimento científico e cultural. Mais do que adotar a atitude fácil de seguir as modas que esses centros nos ditam, parece-nos que, para captar a problemática em que nos encontramos inse-ridos, é a esta teoria que devemos recorrer, não para aplicá-la acriticamente aos problemas atuais, nem com o propósito de ignorar os avanços do pensa-mento em outros lugares, mas para – a partir dos ganhos teóricos e metodo-lógicos que foram alcançados anteriormente em nossos países – estabelecer bases mais sólidas para a tarefa de chamar para nós o grande desafio histó-rico com o qual estamos em confronto.

É com esse espírito que desejo sublinhar a relevância contemporânea das teorias estruturalistas e da teoria da dependência latino-americanas.

O meu argumento neste ensaio é de que as teorias estruturalistas e a teoria da dependência latino-americanas apresentam uma relevância ainda maior agora, em uma fase em que as forças que se ocultam atrás do capi-talismo global são ainda menos retraídas do que no passado, comparado com o período em que essas teorias foram originariamente formuladas, ou seja, na época da industrialização por substituição de importações e do capitalismo de Estado. Porém, paradoxalmente, as teorias estruturalistas

e da dependência são raramente visualizadas hoje. Isso parece surpreen-dente, já que elas observaram os problemas do subdesenvolvimento e do desenvolvimento dentro de um contexto global. Sem dúvida, as teorias es-truturalistas e da dependência apresentam várias limitações e precisam ser reformuladas.3 Mas, nas seções seguintes, vou lançar luz em alguns temas nos quais essas teorias continuam a ter muita relevância, com o que podem dar outras contribuições válidas para a teoria social crítica e para a teoria do desenvolvimento latino-americano.4

A globalização e a crescente assimetria no mundoA globalização tem sido associada a uma série de transformações eco-

nômicas, políticas, sociais e culturais na América Latina. Em termos de glo-balização econômica, deveria ser enfatizado que o capitalismo foi sempre um sistema internacional. Contudo, atualmente, a integração internacional da economia de mercado mundial está progredindo em um passo muito rápido. Esse processo envolve transformações econômicas na produção, no consumo, na tecnologia e nas idéias. Muitos cientistas sociais definem a realidade atual como uma globalização sem precedentes e demandam novas formas de governo global. Muitos observadores apresentam a globa-lização como uma manifestação concreta e inquestionável do capitalismo contemporâneo. Contra essa tendência, há agora também um poderoso movimento antiglobalização. O movimento antiglobalização é uma am-pla coalizão de uma grande variedade de grupos que desejam fazer ouvir sua preocupação sobre o impacto negativo do processo de globalização em questões como meio ambiente, direitos trabalhistas, condições de trabalho e identidade cultural de grupos e nações. Contudo, esses protestos antiglo-balização ainda não se consolidaram em um movimento social permanente e coerente. Embora esse movimento possa não ter fundamentalmente con-

2 Em relação à sua obra publicada, ver, entre outros, os quatro volumes que ele editou com Márgara Millán sobre La teoría social latino-americana (t. 1: Los orígenes; t. 2: Subdesarrollo y dependência; t. 3: La centralidad del marxismo; t. 4: Cuestiones contemporâneas), publicados pelas Ediciones El Caballito, no México, entre 1994 e 1996. Ele também editou com Márgara Millán La teoría social latinoamericana. Textos escojidos (t. 1: De los orígenes a la Cepal; t. 2: La teoría de la dependência; t. 3: La centralidad del marxismo), publicados pela Universidad Nacional Autónoma de México, entre 1994 e 1996.

3 Há uma vasta literatura crítica das teorias estruturalistas e da dependência, algumas das quais examinei em Kay (1989). Para algumas tentativas válidas de reformulação dessas teorias e a relação delas com a atual fase neoliberal da globalização, ver Frank (1991), Sunkel (1993), Hills (1994), Marini (1996), dos Santos (1998, 2002), Ocampo (2001) e Slater (2004).4 Parte do texto que se segue foi escrito juntamente com R. N. Gwynne. Ver Gwynne & Kay (2004).

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testado ou mudado o sistema capitalista global, ele teve um relativo sucesso em levantar uma preocupação mais ampla sobre as conseqüências negati-vas do processo de globalização. Um movimento antiglobalização maior no Sul está sendo construído pelo Fórum Social, que teve várias reuniões em Porto Alegre, no Brasil, e também um encontro na Índia. Milhares de re-presentantes de ONGs, sindicatos e outras organizações do Norte e do Sul se reuniram durante uma semana para discutir uma grande variedade de problemas relativos ao impacto econômico, social e político da globalização e do neoliberalismo, principalmente sobre os povos do Sul. Busca-se forjar um movimento internacional que enfrente as corporações transnacionais e as políticas seguidas por governos no Norte e no Sul que tentam alimentar a globalização neoliberal. Esses encontros e movimentos de protesto anti-globalização vêem a globalização como um termo guarda-chuva que cobre uma grande variedade de transformações atuais, atribuídas à extensão e in-tensificação do capitalismo e vistas como trazendo efeitos deletérios sobre povos, culturas e o meio ambiente em todo o mundo.

A globalização não acarretou uma convergência ou menores desigual-dades entre os países e dentro deles, como pregavam os neoliberais; pelo contrário, acarretou desigualdades crescentes. Essas desigualdades pare-cem ser o resultado do fato de que a produção, o comércio e as finanças se tornaram crescentemente transnacionais em dimensão. No entanto, se alguns países, regiões, comunidades e famílias se beneficiarão economica-mente por estarem ligados intimamente aos sucessos da economia global, outros (e talvez a maior parte da América Latina) ficarão em desvantagem. Como conseqüência disso, a globalização está associada a novos padrões de estratificação global, nos quais alguns Estados, sociedades e comunida-des estão ficando cada vez mais implicados na ordem global, ao passo que outros estão ficando cada vez mais marginalizados.

Portanto, a disparidade entre os países e a desigualdade entre dife-rentes regiões do mundo ficaram entrelaçados com a globalização. A evi-dência da disparidade crescente entre os países latino-americanos, por um lado, e as economias desenvolvidas ou centrais, por outro, é inquestionável (Eclac, 2002). Embora houvesse períodos nos quais a convergência pode-

ria ocorrer, eles teriam relativamente uma vida curta e seriam transitórios. Tal como há assimetrias entre as regiões na economia global, há também assimetrias crescentes na América Latina e no Caribe. A disparidade entre os países ricos e os países pobres da América Latina continuou a crescer rapidamente nos últimos 25 anos. Os países maiores tiveram mais sucesso na industrialização e no desenvolvimento de estruturas econômicas mais complexas; eles têm um pouco mais de espaço de manobra em um mundo globalizado do que os países menores. Enquanto isso, os países menores ficam economicamente vulneráveis, não somente em termos dos setores tradicionais, como a agricultura, mas também em relação a novos setores, como produção de vestuário e finanças externas. Assim, a periferia e a se-miperiferia da América Latina estão se tornando cada vez mais diferencia-das. Aqueles espaços (seja na escala do Estado-nação, da região ou da cida-de) que estão ficando mais totalmente inseridos em uma economia global e em condições de alcançar um melhoramento sustentado na concorrência internacional parecem estar operando como novos pólos de crescimen-to na América Latina, atraindo capital, tecnologia e trabalho (quando se permite a mobilidade do trabalho). No entanto, tanto os grandes quanto os pequenos Estados na América Latina precisam cada vez mais perseguir alvos e objetivos nacionais dentro de parâmetros e estruturas definidos glo-balmente, devido à sua dependência. A conseqüência de estar mais total-mente inserido na economia global significa cada vez menor espaço para uma ação política independente. Em parte, isso existe porque os governos dos países em desenvolvimento são mais dependentes da aprovação políti-ca das instituições globais que “supervisionam” a economia mundial (como são o Fundo Monetário Internacional, a Organização do Comércio Mun-dial e o Banco Mundial) e das decisões de investimento das companhias transnacionais que podem ser fortemente influenciadas pelas decisões das instituições internacionais.

A queda do Muro de Berlim e a crise do mundo soviético no final dos anos 1980 reafirmaram a dominação do sistema capitalista mundial e enfatizaram a importância do sucesso econômico para estabelecer núcle-os de poder no mundo. A morte do mundo bipolar, que estava fundado

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nas ideologias políticas da Guerra Fria, mudou a ênfase para as variações da economia política no interior do sistema capitalista mundial. Embora haja variações dentro da América Latina, a chave das relações políticas e econômicas se dá com os Estados Unidos, a personagem dominante no sis-tema econômico e político global do início do século XXI. Mas as relações econômicas entre a América do Norte e a América Latina são assimétri-cas. As exportações dos países da América Latina para os Estados Unidos (fora aquelas do México e do Brasil) existem principalmente na forma de produtos primários, e os produtos manufaturados dominam as importa-ções que vêm dos Estados Unidos. As exportações para os Estados Unidos são também inferiores às exportações norte-americanas para a América Latina. O superavit comercial dos Estados Unidos com a América Latina está em contradição com o seu permanente deficit comercial com o Japão e com a Ásia Oriental. O comércio de produtos e serviços e o movimento de capital são muito móveis entre a América Latina e os Estados Unidos. Contudo, isso é muito menos verdade para o trabalho. Em um mundo ver-dadeiramente globalizado e orientado para o mercado, o trabalho devia também ser livre para se mover, na medida em que representa o fator-chave da produção – e os modelos econômicos neoliberais estão supostamente baseados no livre fluxo dos fatores de produção entre os países. No entanto, essa mobilidade do trabalho está restrita a viagens dentro das economias centrais ou a viagens de pessoas das economias centrais aos países desen-volvidos. Quanto ao trabalho na América Latina, há pouca oportunidade de migração legal, a menos que o migrante seja um profissional altamente qualificado ou possua considerável capital. A migração ilegal é uma opção para o trabalho não qualificado, como ocorre na migração de mexicanos e centro-americanos para os Estados Unidos, mas isso cria um novo conjun-to de problemas e inseguranças.

A importância do Estado no desenvolvimento Um aspecto central do estruturalismo foi a sua visão do sistema in-

ternacional como sendo constituído por relações assimétricas entre o cen-tro e a periferia. Da mesma maneira, a teoria da dependência toma como

ponto de partida que o sistema mundial enraíza o subdesenvolvimento em relações desiguais no seu interior. O divisor econômico e a diferença de renda entre o centro, ou os países desenvolvidos, e a periferia, ou os países subdesenvolvidos, têm ampliado continuamente, em particular durante a dívida e o ajuste da década de 1990, com o que se justificam as previsões das teorias estruturalistas e da dependência, em oposição às teorias neoclás-sicas e neoliberais que pressupunham a convergência. No entanto, dentre os países periféricos ou dependentes, alguns tiveram sucesso em alcançar admiráveis e consistentes altas taxas de crescimento econômico nas últi-mas três ou quatro décadas, assim como melhoramentos na igualdade. Esse é o caso da primeira geração dos novos países industriais (os chamados NICs: newly-industrializing countries), tais como a Coréia do Sul, Taiwan, Hong Kong e Cingapura. Em particular, os maiores países, a Coréia do Sul e Taiwan, com o espetacular sucesso na industrialização voltada para a ex-portação, adquiriram o status de semiperiféricos e podem ser considerados como economias centrais. Nesse sentido, a visão estruturalista e a visão de “desenvolvimento dependente associado” de Cardoso (1973) se mos-tram mais relevantes quando comparadas com a versão da dependência de Frank (1967), a tese do “desenvolvimento do subdesenvolvimento”, que é incompatível com o desenvolvimento alcançado por esses países.

Deve ser enfatizado que essa dramática transformação no Leste Asiá-tico foi possível devido ao papel central desempenhado pelo Estado nacio-nal desenvolvimentista, com uma política fortemente industrial (imposta depois de ampla reforma agrária), na busca da concorrência internacional e do crescimento (Kay, 2002). Isso confirmou a posição dos estruturalistas e dos dependentistas, que apontaram a importância do Estado na promoção do desenvolvimento. Mas o modelo do Leste Asiático mostrou que essa intervenção do Estado tem de ser seletiva e transitória, assegurando que as firmas adquiram competitividade internacional em um período específico. Ao contrário das reivindicações iniciais dos neoliberais, o sucesso dos NICs da Ásia Oriental foi mais induzido pelo Estado do que pela orientação de mercado, como manifestado tão bem pela expressão “dirigir o mercado”, de Wade (1990). O Banco Mundial (1993) tentou acomodar algumas das

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muitas críticas das suas primeiras interpretações dos NICs, no seu estudo do “milagre do Leste Asiático”, em que reconhecia a influência do Estado. Mas, em compensação, isso gerou críticas posteriores, na medida em que o argumento básico do Banco Mundial não mudou, continuando a afirmar que é melhor menos intervenção do Estado. Na minha visão, o papel do Es-tado nas economias periféricas é crucial para assegurar a competitividade e para se precaver diante da crescente vulnerabilidade de cada país em uma economia mundial globalizada.

Vulnerabilidade financeira e dependênciaA crise da dívida latino-americana dos anos 1980 e suas conseqüências

podem ser vistas como uma ilustração a mais da relevância contemporânea da teoria da dependência. Com um grande aumento na mobilidade de capi-tal e sua disponibilidade na economia mundial desde os anos 1970, as eco-nomias dos países em desenvolvimento se tornaram cada vez mais depen-dentes do capital externo. Esse fato fez crescer grandemente sua exposição e vulnerabilidade às mudanças nos mercados mundiais de capital e reduziu substancialmente o seu espaço de manobra política. Como conseqüência da crise da dívida, as instituições financeiras internacionais ficaram geral-mente em condições de ditar suas políticas econômicas e sociais aos países endividados, especialmente às economias mais fracas e menores, através de programas de ajustes estruturais. Embora o Brasil e o México estivessem em condições de negociar melhores termos com o Banco Mundial e com os credores internacionais, a Bolívia e outros pequenos países não estavam.

A partir dessa crise da dívida, tem havido flutuações significativas nos fluxos de capital para a América Latina. Em suma, esses países experimen-taram festim e também fome. Isso é extraordinário, visto que a maioria dos países seguiu o Consenso de Washington e liberalizou os mercados fi-nanceiros para atrair o capital internacional. Quais são as explicações para essa volatilidade nos fluxos de capital? O impacto das crises financeiras em alguns países-chave da América Latina sobre o comportamento dos inves-tidores internacionais fornece uma razão. A desvalorização brasileira de janeiro de 1999, a primeira crise argentina de outubro de 2000 e a segunda

e prolongada crise argentina que começou no final de 2001 são exemplos disso. Poder-se-ia argumentar que os investidores internacionais mudaram das estratégias de assunção de risco nos anos 1990 para as estratégias de aversão de risco no início do século XXI. Há também o problema do con-tágio. Quando uma crise financeira explode em um país latino-americano, os investidores internacionais não somente retiram os seus fundos do país, mas também dos seus vizinhos (ainda que não haja aparente problema fi-nanceiro nesses países vizinhos). Os banqueiros argumentam que o con-tágio está em parte ligado a dificuldades de liquidez – quando o preço de um utensílio particular cai, eles são obrigados a vender outros tipos de pro-priedade para restaurar a sua própria liquidez. Além disso, os banqueiros não somente usam semelhantes sistemas tributários de risco, mas também avaliam o desempenho dos investimentos em curtos períodos de tempo. Esses fatores exacerbam os efeitos de contágio tanto dentro quanto entre os mercados financeiros latino-americanos.

A crise da dívida e suas conseqüências demonstraram os impactos da volatilidade dos fluxos de capital, particularmente aqueles do crédito de curto prazo. Enquanto isso, nos anos 1990, o crescimento e a queda da car-teira de investimentos acrescentaram um outro componente volátil. Essa volatilidade pode ter graves implicações nas economias nacionais, através dos seus impactos nas taxas de câmbio. Por exemplo, quando a entrada de capital líquido cresce, o valor da moeda nacional latino-americana também cresce, criando uma taxa de câmbio supervalorizada (que, em troca, pro-duz um efeito negativo sobre as exportações). No entanto, quando a entra-da de capital líquido declina (às vezes levando à saída de capital líquido), o valor da moeda nacional latino-americana pode cair vertiginosamente, na medida em que a moeda nacional é vendida pelos investidores internacio-nais. Esse padrão de montanha-russa tende a aprofundar a recessão e exige ajustes econômicos dolorosos. Isso demonstra a crescente vulnerabilidade e dependência dos países latino-americanos em relação às oscilações brus-cas nos fluxos de capital. O fracasso em expandir as poupanças nacionais durante os anos 1990 e no início do século XXI aumentou essa vulnerabi-lidade. Sobretudo, a maior parte da América Latina permanece altamente

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dependente dos mercados financeiros internacionais, que, em troca, im-põem uma série de obrigações aos governos latino-americanos.

Termos comerciais e intercâmbio desigualRecentes estudos confirmaram a deterioração dos termos de inter-

câmbio da periferia em relação às economias centrais (Eclac, 2001, p. 38), um fato primeiramente realçado pelo estruturalismo e incorporado na te-oria do intercâmbio desigual dos dependentistas (Sarkar, 2001). Isso não significa necessariamente que os ganhos do comércio exterior declinaram – freqüentemente o caso tem sido o contrário, devido ao crescimento con-tínuo no volume das exportações de produtos da periferia. Mas isso sig-nifica que uma parte substancial do excedente econômico da periferia é transferida para as economias centrais, além disso, fortalecendo o poder da classe capitalista do centro.

A lição continua a ser que os países latino-americanos deveriam, an-tes, mudar a sua estrutura de exportação para um maior valor agregado de mercadorias e serviços, do que continuar a exportar produtos primários básicos, que podem levar à redução da fonte e a conseqüências ambientais negativas. Não deveria ser esquecido que os teóricos estruturalistas estavam entre os primeiros a afirmar que os governos latino-americanos deviam incentivar as exportações industriais, algo que aqueles viam como sendo a próxima fase do processo de industrialização da região. No entanto, os governos (exceto os do Brasil e do México) não agiram ou o fizeram muito timidamente. Alguns países que tentaram diversificar para exportações de manufaturados foram impedidos nos seus esforços pelas medidas prote-cionistas do governo dos Estados Unidos. Assim, como foi afirmado pelos pensadores estruturalistas e dependentistas, a maior lição continua a ser que, para superar o intercâmbio desigual, é preciso mudar radicalmente o sistema econômico internacional e particularmente as relações Norte-Sul.

Dependência tecnológicaOs escritores dependentistas colocam uma ênfase particular na de-

pendência tecnológica. Os estruturalistas apontaram para a fraqueza do

processo de industrialização por substituição de importações latino-ame-ricano nos anos 1960 e 1970, em razão das dificuldades que estavam ex-perimentando para mudar das indústrias de bens de consumo para as in-dústrias de bens de capital, que são a fonte de algumas novas tecnologias (Gwynne, 1985). Os países maiores, como o Brasil, tentaram desenvolver um substancial setor industrial de bens intermediários, por exemplo, as in-dústrias siderúrgicas e químicas. Apesar da presença crescente das corpo-rações transnacionais na América Latina, houve uma baixa difusão tecno-lógica, o que confirmou a crítica da teoria da dependência às corporações transnacionais. A política governamental não desenvolveu uma capacidade tecnológica endógena na América Latina, e poderia ter atuado mais deci-sivamente para assegurar que as corporações transnacionais dessem uma contribuição para esse processo.

No entanto, o Brasil e até certo ponto o México adquiriram alguma capacidade tecnológica competitiva, em grande parte como conseqüência de uma política industrial deliberada. Com a nova biotecnologia, a revolu-ção eletrônica e de comunicações, as economias mais avançadas ganharam uma vantagem competitiva a mais na geração de novas capacidades tecno-lógicas sobre os países latino-americanos. Além disso, esse fato aumentou a dependência tecnológica destes últimos (Castells & Laserna, 1995). Atra-vés da remessa de royalties, lucros e pagamentos de juros, os países latino-americanos continuam a transferir um significativo excedente econômico líquido para as economias centrais, geralmente e em particular para os Es-tados Unidos. Essas transferências de excedentes vindas dos pagamentos de tecnologia, dos investimentos externos e do intercâmbio desigual no comércio exterior significam uma grande redução de fundos que poderiam ter sido usados no investimento interno nos países da América Latina.

Globalização: limitações e oportunidadesNem o estruturalismo nem a teoria da dependência previram o rápido

crescimento do comércio mundial no período do pós-guerra. Este adquiriu uma nova dimensão na fase atual da globalização, com sua compressão de espaço e tempo e o mais recente ímpeto à liberalização da economia mun-

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dial, com a redução das barreiras à mobilidade de produtos, serviços e capi-tal através das fronteiras, por cujo intermédio foram criadas novas oportu-nidades para o comércio internacional e para o investimento externo.

Essas forças globalizadoras certamente reduziram ainda mais o espaço de manobra das políticas nacionais de desenvolvimento, quando compara-do ao período da industrialização por substituição de importações, assim confirmando um dos princípios-chave da teoria da dependência. Atual-mente, as forças do mercado internacional dominam com uma força ainda maior do que no passado, e os Estados nacionais têm de levar em maior consideração essas forças de mercado globais do que faziam antes; caso contrário, eles podem ter de enfrentar grandes retiradas de capital externo (como no caso do México e da Argentina durante as respectivas crises fi-nanceiras de 1994-1995 e 2001-2002), o castigo das instituições financeiras internacionais e dificuldades com firmas e investidores internacionais.

Por outro lado, os processos de fortalecimento da globalização e da liberalização têm aberto novas oportunidades de exportação para as eco-nomias latino-americanas e têm atraído montantes crescentes de investi-mento externo para a região. Em alguns países latino-americanos, o setor de exportação foi capaz de dar um novo dinamismo à economia nacional. Essa capacidade dinâmica do sistema mundial de comércio foi subestimada pelos estruturalistas e vista como tendo conseqüências negativas por alguns escritores dependentistas. Embora alguns desses receios sejam justificados, isso tem impedido de focalizar mais firmemente as questões-chave das po-líticas internas buscadas pelo Estado e das classes e outras forças sociais que dirigem essas políticas e as forças internas de mercado na periferia.

Globalização na era neoliberal: mudança de paradigma na teoria e na política

A América Latina experimentou uma mudança de paradigma tanto na teoria quanto na política, particularmente desde a crise da dívida dos anos 1980. Duas conclusões imediatas podem ser mencionadas nesse con-texto. Primeira, a comparação entre as fontes teóricas para os dois para-digmas recentes; enquanto importantes elementos do estruturalismo e da

teoria da dependência surgiram dentro da América Latina, o atual paradig-ma neoliberal foi dirigido principalmente por fontes externas. Segunda, o paradigma orientado para dentro foi o paradigma dominante do século XX (estendendo-se dos anos 1930 até os anos 1980); isso pode levar alguém a ver o novo paradigma neoliberal como aquele que seria mais representativo para as primeiras décadas do século XXI.

Esse paradigma abriu um novo capítulo no desenvolvimento da Amé-rica Latina, particularmente no sentido de criar novas relações com a eco-nomia mundial. Tal fato pode ser indicado como uma mudança paradig-mática e ser relacionado historicamente à inserção da América Latina na economia global do século XIX. Embora as economias latino-americanas nessa época pudessem contar com as vantagens comparativas dos seus re-cursos naturais, a questão importante agora é como as vantagens compara-tivas podem ser geradas e criadas – tanto no nível do Estado-nação quanto no da empresa. Isso exige novos conceitos. O estruturalismo subestimou a importância crucial da concorrência no mercado mundial de transformar economias e sociedades. O estruturalismo achava que as economias latino-americanas podiam se defender das forças globais e que podiam continuar a contar com as vantagens comparativas em minérios e produtos primários básicos, embora promovendo uma industrialização voltada para dentro. Da mesma maneira, a teoria da dependência achava que o desenvolvimen-to desligado e autônomo era factível e era o único modo de alcançar o de-senvolvimento auto-sustentado.

Ao contrário, a forma “pura” do modelo neoliberal acredita na abertu-ra total das economias nacionais aos mercados globais sem a mediação do Estado. Parece, portanto, querer sacrificar setores não competitivos (mais notadamente na indústria) à concorrência externa. O corolário disso foi o retorno em contar com as vantagens dos recursos naturais e o que ficou conhecido como exportações não tradicionais. Entretanto, os pensadores não estruturalistas viram a necessidade de o Estado realizar as necessárias mudanças institucionais das economias latino-americanas para produzir vantagens competitivas. A necessidade de fazer parte do mercado mun-dial é agora totalmente aceita, mas é também identificado que há um papel

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fundamental do Estado na promoção do desenvolvimento, por exemplo, de-senvolvendo recursos humanos. Isso pode ser visto como uma interpretação do modelo do Leste Asiático, o sucesso econômico baseado na concorrência industrial, e sua aplicabilidade na América Latina (Fajnzylber, 1990).

O modelo de reestruturação social neoliberal, paradoxalmente orien-tado pelo Estado, respondeu às exigências do mercado global e da dimi-nuição das barreiras econômicas entre a economia nacional e o mercado mundial. De certo modo, ele representou uma abordagem repressiva às demandas dos perdedores sociais do novo modelo econômico. Essa rees-truturação social trouxe impactos variáveis em diferentes grupos sociais e variou mesmo de país para país. Em suma, deu-se menos proteção a alguns setores (tais como a classe operária industrial, os camponeses e os grupos indígenas) do que a outros (tais como a classe média empresarial e os novos grupos financeiros emergentes). A classe capitalista se mostrou mais capaz de se reajustar diante das circunstâncias mutantes e das realidades do mer-cado internacional e, como resultado disso, não somente cresceu em tama-nho e influência, mas também se tornou o principal vencedor nacional da mudança de paradigma. Enfim, foi o capital transnacional que colheu os benefícios e consolidou o seu poder global com a viragem neoliberal.

As teorias latino-americanas como uma alternativa ao neoliberalismo Em vista da crise do socialismo e do fracasso do neoliberalismo para

tratar da questão social, é imperativo desenvolver um paradigma de de-senvolvimento alternativo que seja capaz de resolver os problemas men-cionados. Embora esteja além do escopo deste ensaio desenvolver esse paradigma alternativo, é nossa visão que um ponto de partida útil é cons-truir sobre a contribuição da América Latina à teoria do desenvolvimento, ainda que considerando também outras contribuições. O estruturalismo deveria fornecer idéias mais relevantes que permitissem pensar sobre as estratégias de desenvolvimento alternativas para aqueles que têm uma vi-são mais pragmática, ao passo que, para aqueles que têm uma posição mais radical e uma visão de longo prazo, as idéias dos teóricos da dependência devessem parecer mais atraentes. O estruturalismo e os estruturalistas que

encalharam na dependência procuraram reformar o capitalismo tanto in-ternacional quanto nacionalmente, ao passo que a versão neomarxista da dependência se esforçava para derrotar o capitalismo, na medida em que o socialismo era visto como o único sistema capaz de resolver o problema do subdesenvolvimento.

Em vista do colapso do sistema socialista da Europa Oriental e a tran-sição da China de uma economia planejada para uma economia de merca-do, a alternativa socialista da dependência se mostra incapaz de fornecer muito suporte no mundo subdesenvolvido, ao passo que a visão estrutu-ralista de reforma do sistema capitalista deveria ser vista como uma opção mais factível para aqueles que buscavam uma alternativa para o modelo neoliberal existente. Subscrevo a afirmação de Marini de que

a importância do tema central da economia mundial e sua interdependência se tornou mais forte. O que mudou foi minha crença, em grande medida implícita na idéia de dependência, de que se pode lograr um estado de inde-pendência, ou ao menos de não-dependência, ao desvincular-se da econo-mia mundial através de ações políticas concertadas nos países ou regiões do Terceiro Mundo. No que respeita a esse ponto, suponho que foi o que mais mudou, sobretudo desde o golpe militar no Chile. A experiência tem mos-trado que é sumamente difícil, quando não impossível, que a ação política voluntarista desvincule a países específicos da economia mundial. (Apud Kay, 2006, p. 187)

Dependência, neo-estruturalismo, neoliberalismo e Fernando Henrique Cardoso

É importante enfatizar que o modelo neoliberal evoluiu, da interpre-tação freqüentemente estreita e economicista do assim chamado “Con-senso de Washington” (Williamson, 1990) para uma interpretação mais socialdemocrata no Chile (Ffrench-Davis, 2002) e no Brasil (Bresser Pe-reira, 1996). De fato, alguma forma de convergência entre o neoliberalis-mo e o estruturalismo parece ter ocorrido em algumas partes da América Latina com a emergência de uma posição neo-estruturalista desde o final

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dos anos 1980.5 Podia ser argumentado que o neo-estruturalismo ganhou alguma influência sobre a política governamental na América Latina, tal como nos regimes de Concertación do Chile desde 1990 e, possivelmente, no Brasil, com o governo de Cardoso (1995-2002), e talvez mesmo com o governo de Lula desde 2003.

Já que Fernando Henrique Cardoso é considerado como uma das fi-guras principais da teoria da dependência, é útil avaliar o seu próprio tes-temunho quando no governo. Como um escritor dependentista, Cardoso preferiu falar mais da “análise das situações concretas da dependência” do que de uma teoria da dependência, na medida em que era sensível às dife-renças entre países dependentes, tal como era cético em relação às grandes teorias. Ele também cunhou o termo “desenvolvimento dependente”, assim como a idéia de que os países dependentes podiam se desenvolver e não estavam condenados a um processo de “desenvolvimento do subdesenvol-vimento”, como foi afirmado por Andre Gunder Frank, que era visto por alguns, especialmente no mundo de fala inglesa, como a figura central no movimento dependentista. Enquanto Frank continuou a sua vida como um acadêmico engajado e progressista, Cardoso, como foi observado, moveu-se para a política, tornando-se presidente do Brasil de 1995 a 2002.

Enquanto Frank permaneceu um crítico feroz do capitalismo e da globalização, Cardoso é visto por alguns analistas como tendo abraçado o neoliberalismo e a globalização. Como Birdsall e Lozada vigorosamente colocaram (1996, p. 17):

Longe de querer sair do sistema econômico mundial, a América Latina está dando todos os passos necessários para não ser deixada de fora. Fernando Henrique Cardoso do Brasil, uma vez um propositor de ponta da teoria da dependência e agora um defensor da reforma de mercado, exemplifica essa mudança.

Cammack (1997, p. 242) ironicamente observa que “Cardoso, o soci-ólogo, permanece o mais agudo crítico de Cardoso, o presidente”, e, uma vez no poder, ele despojou a promessa socialdemocrática do seu projeto e a reduziu a uma receita para a consolidação do neoliberalismo na prática. De fato, para Petras e Morley (1992, p. 159), essa metamorfose é sintomática na maioria dos intelectuais de esquerda da América Latina, que, na sua visão, retrocedeu do marxismo para visões liberais socialdemocráticas. “Cardoso mesmo disse, na frente de câmeras de televisão: ‘Esqueçam tudo o que um dia eu escrevi’” (Branford, 2003, p. 75).

No entanto, Cardoso insistiu várias vezes no fato de que ele não era um neoliberal. Na sua visão, a globalização exige que o Estado seja refor-mado para intervir menos, porém mais eficientemente, e a privatização da-quelas empresas estatais que possam ser administradas mais eficazmente pelo capital privado. Na visão de Cardoso (2001, p. 246), isso não entra em choque com os ideais tradicionais da esquerda, ainda que pareça parado-xal. Cardoso (2001, p. 257) se defende contra essas acusações afirmando que “o tempo e a motivação do político são essencialmente diferentes do tempo e da motivação do cientista social. O político não pode esperar pela sedimentação do conhecimento para agir. Se ele fizesse isso, seria ultrapas-sado pelos fatos”. Ele afirma que a globalização não pode ser evitada, que ela oferece oportunidades e, ainda que condicione a ação do governo, há espaço de manobra. A maioria dos críticos da esquerda concorda com a visão de Branford (2003, p. 76) de que, “por volta de 1990, Cardoso tinha se convertido totalmente ao neoliberalismo”. Mas, na visão de outro analista brasileiro:

Fica extremamente claro que os desenvolvimentos da política no Brasil du-rante o governo de Cardoso surgiram de dentro, como produto da situação única e do modus operandi do país, tendo pouca coisa em comum com o neoliberalismo per se ou com sua ideologia. (Cunningham, 1999, p. 82)

Contudo, Cardoso (2001, p. 248) admite que suas visões mudaram:

5 Sobre o surgimento e o declínio do estruturalismo da Cepal, ver Love (2002). Para uma com-paração entre neoliberalismo e neo-estruturalismo, ver Sunkel & Zuleta (1990), Bitar (1998) e Muñoz (2001). Para uma avaliação crítica do neo-estruturalismo, ver, entre outros, Leiva (1998) e Harris (2000).

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Quando eu escrevi meus livros sobre a teoria da dependência, a hipótese subjacente era que o processo internacional do capitalismo afetava adver-samente as condições do desenvolvimento. Ele não impedia o desenvolvi-mento, mas o tornava desequilibrado e injusto. Muitos consideravam que a economia voltada para dentro era a forma possível de defesa contra a al-ternativa de uma integração internacional, vista como arriscada e perigosa. Essa visão mudou. Temos de admitir que a participação na economia global pode ser positiva, que o sistema internacional não é necessariamente hostil. Mas devemos trabalhar cuidadosamente para agarrar as oportunidades. A integração bem-sucedida na economia global depende, por um lado, da ar-ticulação diplomática e de parcerias comerciais adequadas e, por outro lado, do trabalho doméstico individual de cada país em desenvolvimento baseado em uma construção do consenso democrático.

Assim, Cardoso sustenta que é possível fazer o trabalho da globalização para o desenvolvimento nacional. Se ele realizou ou não com sucesso essa tarefa desafiadora durante a sua presidência, isso é duvidoso. Para críticos como Commack (1997), Petras, Rocha (2002) e Theotonio dos Santos (1998, 2002), Cardoso certamente não obteve sucesso. De fato, muitos analistas concluem que o anterior desempenho da economia dirigida pelo Estado era claramente superior ao desempenho conduzido pelo mercado de Cardoso. Renunciando à sua inicial análise da dependência, ele subestimou as rea-lidades políticas globais e também nacionais, o que limitou grandemente e destruiu o seu projeto de desenvolvimento. Paradoxalmente, durantes os seus dois governos presidenciais, tendo sido reeleito em 1998, a dependên-cia do Brasil se aprofundou, ao passo que o crescimento econômico perma-neceu, infelizmente, baixo. De acordo com Branford (2003, p. 76):

Na época em que Cardoso encerrou os seus oito anos de governo, o capital internacional tinha tomado posse de enormes áreas da economia brasileira e o país foi acometido pela armadilha de uma dívida externa de proporções sem pre-cedentes. O desemprego – e o crime – alcançaram níveis recordes.

De fato, o país se tornou mais dependente do que nunca do capital financeiro internacional, ficando à mercê de especuladores, e mais vulne-rável a choques externos, com isso liquidando a capacidade brasileira de tomar decisões soberanas e independentes.

É irônico que o primeiro teórico e crítico do desenvolvimento depen-dente tivesse realizado, como presidente da maior economia da América Latina, uma profunda desnacionalização e aumentado mais a sua depen-dência em relação às corporações transnacionais e às instituições financei-ras internacionais. Como teórico, ele deveria ter previsto as contradições desse projeto, que aniquilariam de um golpe o seu objetivo desejado de aumentar a autonomia do Brasil como o principal poder regional na cena global. “Assim, uma vez Cardoso no poder, a questão da dependência e do desenvolvimento mudou na sua cabeça” (Rocha, 2002, p. 10). Além disso, caracterizar as políticas seguidas pelo governo de Cardoso como neo-estruturalistas seria ir muito longe, ainda que essa pudesse ter sido a sua intenção.

Neo-estruralismo como uma alternativa ao neoliberalismo?Posteriormente, com a eleição do presidente Lagos, em 2000, no Chi-

le, a dimensão do governo de Concertación chileno ganhou mais proemi-nência. Em seguida, com a eleição de Luís Inácio da Silva, o “Lula”, para a presidência do Brasil, em 2002, uma mudança para as políticas neo-estruturalistas devia ocorrer em vista da sua prioridade de lutar contra a pobreza e seu programa de reforma agrária.6 Alguns autores rejeitaram o neo-estruturalismo como sendo simplesmente a face humana do neolibe-ralismo e sua segunda fase ou uma variante do neoliberalismo, que pode ser caracterizado como “populismo neoliberal” (Demmers et al., 2001). Leiva (1998, p. 35) afirma que o neo-estruturalismo pode ser visto como uma continuação lógica do modelo neoliberal, na medida em que

6 Mas vários analistas estão já caracterizando as políticas de “Lula” como neoliberais. Ver Petras & Veltmeyer (2003-2004), entre outros.

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a oportunidade histórica do neo-estruturalismo aparece uma vez que ele é necessário para consolidar e legitimar o novo regime de acumulação origi-nariamente colocado em prática pelas políticas neoliberais. O neoliberalis-mo e o neo-estruturalismo, portanto, não são estratégias antagônicas, mas antes, devido a suas diferenças, desempenham papéis complementares que asseguram a continuidade e a consolidação do processo de reestruturação.

O neo-estruturalismo, apesar de reconhecer as assimetrias no siste-ma mundial, vê a necessidade de continuar fazendo parte desse sistema. É certamente verdadeiro que houve uma mudança do estruturalismo para o neoliberalismo, na medida em que ele assumiu alguns elementos do ne-oliberalismo, mas ao mesmo tempo conservou algumas idéias centrais do estruturalismo – daí o rótulo de neo-estruturalismo. Além disso, há dife-renças que dizem respeito principalmente às suas respectivas visões sobre a relação entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento, assim como entre o Estado, a sociedade civil e o mercado. Até que ponto essas diferenças são significativas o bastante para afirmar que esse neo-estrutu-ralismo constitui uma alternativa muito diferente do neoliberalismo, isso está aberto ao debate.

A visão neoliberal exige uma liberalização maior da economia mun-dial e afirma que isso beneficiaria consideravelmente os países em desen-volvimento. Ao contrário, os neo-estruturalistas, assim como os escritores dependentistas, vêem a economia mundial como um sistema de poder hie-rárquico e assimétrico que favorece os países centrais e, particularmente, as corporações transnacionais. Eles são, portanto, mais céticos a respeito da maior liberalização, acreditando que ela agiria no sentido de aumentar as desigualdades entre e no interior dos países; grupos globais poderosos localizados nos países desenvolvidos asseguram que os benefícios da libe-ralização global seriam canalizados a seu favor.

Quanto à relação entre Estado, sociedade civil e mercado, os neo-es-truturalistas atribuem um papel mais importante ao Estado no processo de transformação social e estão sedentos por envolver os grupos prejudi-cados da sociedade nesse processo, particularmente na medida em que o

processo apresentou a tendência de excluí-los. Entretanto, os neoliberais desejam um Estado minimalista, colocando o mercado no lugar central, na medida em que acreditam nele como sendo a maior força transformadora e afirmam que quantos menos obstáculos sejam postos à livre operação do mercado, melhor será para a economia, a sociedade e a política nacional.

A interpretação dos neo-estruturalistas a respeito da experiência dos novos países industrializados do Leste asiático também difere da interpre-tação dos neoliberais. Enquanto os neoliberais exaltam essa experiência como um modelo de economias de livre-mercado, os neo-estruturalistas enfatizam o papel crucial que o Estado desempenhou no processo de de-senvolvimento deles. A principal lição que os neo-estruturalistas tiram dos novos países industrializados do Leste asiático é a necessidade de se integrar seletivamente na economia mundial e criar vantagens competitivas através de políticas industriais bem-delimitadas e flexíveis (Fajnzylber, 1990). Es-sas políticas industriais e de exportação tentam continuamente explorar nichos no mercado mundial e mudar a contracorrente para produtos que exijam mais destreza, tecnologia avançada e maior valor agregado. As po-líticas para melhorar a base de conhecimento da economia e, sobretudo, a capacidade tecnológica nacional são vistas como cruciais para alcançar um crescimento de longo prazo sustentado. Assim, a importância da educação é enfatizada, assim como o aperfeiçoamento da capacidade estatal e a dis-tribuição de renda, além da reforma do sistema desigual de posse da terra, na medida em que esses fatores são ingredientes essenciais no sucesso dos novos países industrializados do Leste asiático.

Os neo-estruturalistas dão mais importância às forças do mercado, à empresa privada e ao investimento direto estrangeiro quando compara-dos ao estruturalismo, mas eles afirmam que o Estado deveria governar o mercado através de fortes corpos regulatórios. No pensamento dos neo-estruturalistas, o Estado desempenha papéis menos essenciais no desenvol-vimento do que tinha na industrialização por substituição de importações, na medida em que o Estado não mais leva a cabo atividades produtivas diretas através da propriedade pública da indústria ou de outros empre-endimentos. A capacidade do Estado para dirigir a economia é limitada,

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na medida em que o protecionismo e os subsídios são usados somente de uma maneira restrita e esporádica. O imperativo de alcançar e sustentar o equilíbrio macroeconômico é reconhecido, enquanto agora a estabilidade dos preços e o equilíbrio fiscal são vistos como condições do crescimento, o que necessariamente não foi o que ocorreu no passado. Outro elemen-to essencial do neo-estruturalismo é o atingimento de vantagens compe-titivas em algumas áreas produtivas fundamentais no mercado mundial através da liberalização seletiva, da integração na economia mundial e de uma política industrial voltada para a exportação e para o crescimento. Os neo-estruturalistas são defensores entusiasmados do “regionalismo aberto”, que eles esperam que elevaria a posição da América Latina na economia mundial, ao mesmo tempo em que reduziria sua vulnerabilidade e depen-dência (ver Eclac, 1994). As tentativas anteriores de integração regional na América Latina, como a Associação Latino-Americana de Livre-Comércio (Alalc) e o Pacto Andino, olhavam mais para dentro, na medida em que eram uma ampliação da estratégia da industrialização por substituição de importações domésticas em um nível regional. Ao contrário, a integração econômica através do “regionalismo aberto” é vista como complementan-do a orientação para fora, através do aumento da competitividade interna-cional e das exportações.

Os escritos neo-estruturalistas nesses anos recentes do Eclac perma-nente tentaram lidar com os fenômenos da globalização (Eclac, 2002). Afirma-se que a globalização, na atual fase neoliberal, longe de levar à convergência, como afirmada pelos neoliberais, reproduz e, freqüente-mente, exacerba quatro grandes assimetrias:

1a) No progresso técnico, com a extrema concentração da inovação e da capacidade tecnológica no centro, ou seja, nas economias centrais e grandemente sob o controle das corporações transnacionais.

2a) Na vulnerabilidade financeira, na medida em que os países perifé-ricos ou em desenvolvimento estão agora muito mais expostos aos choques externos do que no passado, devido à sua maior dependência financeira, ao lado de sua associada volatilidade.

3a) A vulnerabilidade comercial foi intensificada como resultado de flutuações dos níveis de demanda e dos termos de intercâmbio, em parte devido à contínua deterioração nos preços das mercadorias.

4a) Na mobilidade econômica dos fatores de produção. Embora as reformas neoliberais tivessem aumentado enormemente a mobilidade de capital, a mobilidade do trabalho continua a ser restrita. Essa assimetria distorce a distribuição de renda em favor do capital e coloca o trabalho em desvantagem, especialmente na periferia ou nos países em desenvolvimen-to, devido a seu excedente de trabalho.

Para superar essas assimetrias, os neo-estruturalistas (Eclac, 2002) propõem uma agenda global que inclua medidas para: 1o) aumentar a transferência do progresso tecnológico dos países centrais para os países da periferia; 2o) promover o desenvolvimento do capital institucional, social, humano e de conhecimento para fortalecer o crescimento endógeno nos países da periferia; 3o) assegurar a participação adequada nos processos de decisão no nível internacional; 4o) baixar gradualmente as barreiras da migração do trabalho, particularmente dos países da periferia para aqueles do centro; 5o) reduzir a volatilidade financeira; 6o) reduzir o montante dos subsídios à produção e à exportação dos produtos agrícolas no centro, isto é, nas economias centrais.

Os neo-estruturalistas renovaram o seu compromisso com a eqüidade e acrescentaram um novo foco às suas análises com sua ênfase na cidadania (Eclac, 2001). Nesse estudo, os neo-estruturalistas lamentam que a globali-zação e o neoliberalismo tenham dissipado a coesão social e a solidarieda-de, assim como a ação coletiva para o bem comum. A ênfase dos neolibe-rais nas relações de mercado fragmentou e individualizou a sociedade. Os neo-estruturalistas propõem, assim, religar o indivíduo com a sociedade, desenvolvendo a cidadania, que implica um compromisso recíproco entre as instituições públicas e o indivíduo. Para esse propósito, o Estado deveria promover a educação, o emprego, a saúde e a seguridade social entre os cidadãos. A elevação da coesão social implica a participação dos indiví-duos na vida pública e nos processos de decisão que afetam as suas vidas e o futuro do país. A crescente alienação das pessoas em relação à política

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precisa ser revertida. Isso também exige a abolição da discriminação de sexo e de raça e a redução do fosso entre os indivíduos ou grupos incluídos e excluídos. Somente com o fortalecimento da cidadania é que será possível ganhar uma coesão suficiente e uma legitimidade política para levar a cabo as grandes transformações requeridas para alcançar um desenvolvimento equânime e sustentado.

Em suma, o neo-estruturalismo não deveria ser interpretado como a rendição dos estruturalistas ao neoliberalismo, mas antes como uma tenta-tiva de chegar a um acordo com a nova realidade da globalização e apren-der com a experiência de desenvolvimento bem-sucedida, como aquela dos novos países industrializados do Leste asiático. Nesse sentido, o estrutura-lismo está mostrando mais uma capacidade de se adaptar às circunstâncias históricas mutantes do que permanecer congelado no passado. Apesar das deficiências do neo-estruturalismo, muitos analistas o vêem como sendo a única alternativa factível e digna de crédito ao neoliberalismo nas atuais circunstâncias históricas. Até que ponto o neo-estruturalismo pode se tor-nar uma alternativa à globalização neoliberal que seja capaz de superar os problemas do subdesenvolvimento e da dependência, essa é uma questão aberta, mas até agora a evidência é muito pequena.

ConclusõesOs problemas pendentes da América Latina clamam com urgência

crescente por uma economia política alternativa ao processo contempo-râneo da globalização neoliberal. Os cientistas sociais latino-americanos podem valer-se de uma rica herança do pensamento crítico e progressista que precisa ser renovado para enfrentar os desafios de hoje. É da responsa-bilidade dos intelectuais orgânicos, que estão ligados aos vários movimen-tos sociais que desafiam a globalização neoliberal, desenvolver primeiro a teoria social crítica para oferecer propostas alternativas para a eventual emancipação dos grupos sociais mais vulneráveis e que possam alcançar uma ampla aceitação no meio do povo. Permanece obscuro se um possível “Consenso do Sul” progressista, inspirado por uma renovação da teoria so-cial crítica latino-americana que desafia o “Consenso de Washington”, pode

emergir e começar a resolver os grandes problemas essenciais da pobreza, da exclusão social e da eqüidade.

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