A ALTERNATIVA SPINOZANA_PEDAGOGIA DA RECOMPENSA IMANENTE_Mauricio Rocha

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III Seminrio Nacional de Filosofia e Educao Maurcio Rocha Doutor em Filosofia PUC Rio [1998]. Professor adjunto da Faculdade de Educao da Baixada Fluminense FEBF/UERJ. PPG em Educao, cultura e comunicao em periferias urbanas FEBF/UERJ. Departamento de Filosofia do Colgio Pedro II Rio de Janeiro. Coordenador do Crculo de leitura Spinoza & a filosofia.

A ALTERNATIVA SPINOZANA: UMA PEDAGOGIA DA RECOMPENSA IMANENTE.

2 A filosofia no cultura, no de ordem cultural. Ela suscitada na cultura da poca, que lhe fornece uma necessria ambincia espiritual, mas como elemento que a filosofia dever contra-efetuar, dele destacando a sua parte de possveis, a parte de futuro. Como todas as coisas, a filosofia no pode querer ter razo contra sua poca, antes ser esta a t-la sempre contra ela, como fora mais forte. [...] A cultura um conjunto histrico efetivo de valores comuns estabelecidos, reconhecidos, objeto de partilha e de discusso, o prprio sistema contraditrio das recognies epocais. Mas a filosofia uma fora no-histrica, o que no significa an-histrica ou exterior histria. Entre a filosofia e a cultura, entre o conceito filosfico e o esprito do tempo, nunca h propriamente simbolizao, nunca conversa, mas traio. Criar trair, toda criao um ato de traio. trair sua poca, a cultura, a tradio, a histria (SOUSA DIAS, 1995: 156).

Os modos de circulao das obras filosficas, no circuito acadmico ou fora dele, por vezes esvaziam o ambiente no qual elas se constituram, como se tivessem soado solenes e respeitveis desde sua origem e difcil entender como ela pode chocar seus contemporneos, o quanto ela foi portadora de um sentido liberador. So da mesma famlia o reducionismo que dispe de modo sedentrio as filosofias, fixadas em imagens genricas que as pretendem explicar mas cujas categorias usadas que precisam de explicao (os ismos); a imagem da filosofia como culto de enigmas eternos postos ao homem (a idia insistente da philosophia perennis) ao se pressupor que no h outro pensamento possvel alm das questes que seriam constitutivas das filosofias (Verdade, Ser, Sujeito etc.); a ordenao das filosofias como momentos de uma histria, avanando por desenvolvimento e retificao; e a simplificao que v as obras filosficas como reflexos intelectuais de uma poca passada, como se filosofias pudessem ser superadas (ou, ao inverso, como se a pesquisa de novas solues condenassem todo o seu passado). Compreender a atividade do pensamento filosfico depende de captarmos o vnculo que ele possui com seu prprio tempo, mas tambm sua fora de atravessar seu tempo em favor de um outro tempo, porvir. s vezes, para nosso olhar retrospectivo, certos pensadores parecem saltar sobre sua poca, pela fora de uma vidncia que os lana para alm do pensado e do pensvel em sua cultura e em seu mundo. O que as filosofias voltam contra o seu tempo so as exigncias de um problema, ou de um conjunto de problemas, que as solues inventadas pelo seu tempo no impunham nem previam, embora tais solues constituam o terreno de inveno, o meio no qual a experincia de pensamento conduzida. E se filosofar pensar no presente, este presente no se reduz a uma atualidade factcia, cronolgica, mas um presente no qual a filosofia persevera e o pensador forado a pensar, pois pensar no um ato indiferente. Os problemas e as solues engendradas no se equivalem, no so apenas relativos ao contexto o que equivaleria a dizer que nada se passou, j que a verdade a produzida s teria sentido no interior da linguagem prpria ao momento de sua enunciao e que aquelas questes s teriam interesse histrico. Enfim, no h discurso filosfico que exista abstratamente, numa forma que seria estabelecida de uma vez por todas preciso que ele se transmita, e tal transmisso se efetua em condies que no so neutras, que no dependem apenas da lgica interna das filosofias, mas supem a interseco e a refrao delas por outros discursos e prticas; o tipo de encontro que o pensador estabelece com seu tempo; o meio no qual a elaborao filosfica e sua transmisso efetuada (MACHEREY, 1994: 11-45). Se os pensadores partem de problemas presentes, produzindo respostas filosficas para eles, isto no quer dizer que sejam compreendidos por seus contemporneos, como tambm podem no estar escrevendo para eles. Spinoza um desses casos.Podemos pensar a modernidade, isto , os processos que se instauram na Europa com a dissoluo das formas de governo feudal (com ritmos distintos, e geografia diversa), de dois modos: como crise, como processo revolucionrio radical ou como contra-revoluo. De um lado, a imanncia do novo paradigma do mundo e da vida o conhecimento e a ao como experincia (cientfica), definindo uma tendncia democrtica na poltica, colocando o desejo e humanidade no

3 centro da histria. De outro, a contra-revoluo como iniciativa cultural, filosfica, social e poltica, que procura dominar e expropriar a fora dos movimentos e a dinmica emergente. O segundo modo da modernidade joga um poder constitudo transcendente contra o poder Constituinte imanente ordem contra desejo e o Renascimento termina em guerra religiosa, social, civil. Assim, a modernidade definida pela crise nascida do conflito entre as foras imanentes criadoras e o poder transcendente que visa restaurar a ordem. O Renascimento coincide com a descoberta do lado de fora da Europa de um lado, o humanismo renascentista deu incio a uma noo revolucionria de igualdade humana, singularidade e comunidade, cooperao e abundncia, que se estendeu pelo planeta, com o descobrimento de novas terras e povos. A contra-revoluo, pondo sob controle as foras subversivas e Constituintes na Europa, passa tambm a sujeitar outros povos dominao europia, fazendo da modernidade europia uma guerra em duas frentes. Testemunha disso a filosofia de Spinoza, que renova o humanismo revolucionrio, pondo a natureza e a humanidade no lugar do Deus transcendente, transformando o mundo num territrio de prtica e afirmando a democracia da multido como forma absoluta da poltica. (NEGRI & HARDT, 2000: 91). O fato central dos tempos modernos no que a Terra gire em torno do Sol, mas que o dinheiro corre em torno da Terra (SLOTERDIJK, 2006: 72).

Quando somos interpelados a repensar o processo de escolarizao, a educao e o que nos habituamos a definir como cultura, encontramos o filsofo polidor de lentes pelo caminho e somos compelidos a comear a mudar o nosso passado, o qual como memria ativa, e no como memria aceita reconstrudo sem cessar em funo de nossas necessidades presentes, voltadas para o futuro (FEBVRE, 1947: 29). Spinoza nos fora a reavaliar os critrios historiogrfico-filosficos da noo habitual de Iluminismo e a constelao de marcadores temporais a ele associados (moderno, medieval, antigo etc.). O Iluminismo consistiu em um ataque aos modos de pensar o sagrado, as hierarquias polticas, as formas de subordinao social, os valores morais e o sentido das prticas de cooperao, trabalho e conhecimento (ISRAEL 2005: 21-23), em um processo que imprimiu um sentido e um valor atividade filosfica (libis, justificativas, mas tambm uma necessidade) e que produziu imagens do pensamento, modos de entender a vida humana, de definir as formas de socialidade, de organizao poltica, dos valores e dos direitos. H uma variedade de Iluminismos, segundo as latitudes e longitudes do continente europeu e uma distino entre moderados (protagonistas da verso historiogrfica mais comum) e radicais, solo clandestino marginal ao suposto centro hegemnico. De fato, houve um movimento transnacional, integrado, potente, mas que entrelaa caminhos divergentes, seja pelos temas, seja pelas obras que ocupam pensadores em uma geografia ampla (desde Lisboa Moscou, de Dublin Siclia, de Amsterd Edimburgo). Foi decisiva para a fortssima coeso cultural a constituio de canais de comunicao onde jornais, panfletos, publicaes clandestinas, bibliotecas privadas e outros dispositivos serviram para uma rede ampliada sistematicamente desde meados do sculo XVII. Alm disso, o Iluminismo em sua face radical em nada foi perifrico, e pode at mesmo ser reconhecido como mais coeso internacionalmente que as formas moderadas, tornadas hegemnicas retrospectivamente pela historiografia e pelo esforo dos expoentes da vertente moderada diante do que percebiam como um fenmeno perigoso para os valores estabelecidos. J. Israel afirma que Spinoza e o que se conhece como spinozismo foram a espinha dorsal do Iluminismo radical. Pois trata-se de uma filosofia que afrontou os padres cognitivos do sculo XVII, e atingiu os fundamentos da metafsica, da antropologia, da tica e da poltica: da transcendncia divina (e humana em relao Natureza) idia de Criao e de livre-arbtrio; das imagens antropomrficas de Deus idia de finalidade (a eliminao do finalismo no apenas metodolgica como em Descartes, ou Hobbes); dos universais na metafsica distino entre vontade e entendimento (em Deus e no homem);1 1

Spinozismo um termo que condensa as diversas apropriaes da filosofia de Spinoza. Usado pelos detratores, tem sentido pejorativo e acusatrio. Usado pelos apologistas supe, no sem contra-senso, um carter doutrinal que conduz a reducionismos e simplificaes. Costuma-se opor a ele o termo spinozano sentido determinado por um desejo e por um esforo de fidelidade ao pensamento do filsofo holands.

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das noes de culpa e pecado finitude como negatividade; do contrato na instituio do corpo poltico ao individualismo (o protagonista da vida poltica a multido). O que ele recusou em seu tempo demonstra o quanto as categorias mentais, a sensibilidade, as aspiraes e os compromissos da era clssica resultam de um equilbrio tenso entre as supersties, a ortodoxia religiosa, as filosofias e a cincia nova. O que ele afirmou ser por dois sculos motivo de mal estar: a atribuio de materialidade a Deus; a definio do homem como modo e no como substncia (o homem no um imprio dentro de um imprio); a identificao da liberdade e da necessidade; a coincidncia entre felicidade e autonomia; a identificao do poder e do direito; a aceitao da legitimidade das revolues, desde que bem sucedidas. Spinoza desestabilizou a episteme racionalista ao lev-la s ultimas conseqncias e constituiu uma linhagem alternativa no interior da primeira modernidade (MACHEREY, 1992: 237-244). Positivamente, sua obra atravessada pelos ventos da atualidade histrica e cultural do sculo XVII. O ponto de vista da imanncia expresso em sua ontologia anti-hierrquica da substncia produtiva (ou para usar a frmula de M. Chau: ontologia do necessrio) permite a Spinoza realizar a crtica das mistificaes do direito e do poder na primeira modernidade. isso que ser reconhecido pelos adversrios e resumido sob a acusao de atesmo aplicada aos suspeitos de questionar trs postulados: as leis que Deus d aos homens; os intermedirios pelos quais Deus fala ou salva; o julgamento, a punio ou a recompensa reservada para cada um. E isso ainda que se afirmasse Deus como princpio criador do Mundo, o que os filsofos do XVII fizeram sem cessar (com exceo de Spinoza, justamente). A difuso da obra do filsofo aps sua morte obedeceu a uma dinmica paradoxal ao longo de uma posteridade forada a recusar ou celebrar sua filosofia oscilando entre o antema (na Alemanha do sculo XVIII refutar Spinoza era uma exigncia para a obteno do ttulo de telogo) e o fascnio . Do seu pensamento circulava o que era til aos detratores ou adeptos (com os adversrios sendo levados aos mais temveis exerccios de sinceridade). Essa atenuao da complexidade da filosofia de Spinoza foi uma das condies para a ampla penetrao de suas teses, ainda que distorcidas (MOREAU, 2009: 65). Impulsionada pela circulao clandestina nos sculos seguintes, sua obra proscrita alimentou o libertinismo erudito, inspirou os crculos empiristas e destas britnicos, ajudou indiretamente a forjar o materialismo francs, forneceu enfim argumentos s mais variadas heterodoxias. lcito afirmar que a histria das interpretaes do pensamento de Spinoza agora to longa e contrastada que sobre ela se poderia tecer uma verdadeira histria da filosofia moderna (NEGRI, 1993: 30). Por isso o apresentamos como um pensador alternativo (contrahegemnico) e inscrito na linhagem radical do Iluminismo e na histria da filosofia moderna, apenas Marx e Nietzsche repudiaram, de maneira to aberta e provocativa quanto ele, os sistemas de crena da sociedade que os rodeava (ISRAEL, 2005: 259).Spinoza descobre a autonomia. [...] Trata-se de uma autonomia naturalista, humanista e racionalista: progressivamente destacada da tradio de subordinao a Deus ela no autonomia sem Deus, mas autonomia em Deus, concebido como a Natureza, o ser infinito do qual somos cada uma de suas partes, ou modos. Nesse sentido infinitamente mais rica e rigorosa do que a autonomia que ser exaltada pelo Romantismo e pela Aufklrung. (ROUSSET, 1968: 238).2

Heinrich Heine, em 1834, assinalava em Contribuio histria da religio e filosofia na Alemanha (1991: 69): notvel como os partidos mais diversos lutaram contra Spinoza. Formam um exrcito cuja composio multicor proporciona o mais divertido espetculo. Ao lado de um bando de capuzes brancos e negros, com cruzes e incensrios fumegantes, marcha a falange dos enciclopedistas, que igualmente investe contra esse pensador temerrio. Ao lado do rabino da sinagoga de Amsterd, que toca o sinal de ataque no chifre de bode da f, caminha Arouet de Voltaire, tocando o flautim da zombaria para o bem do desmo. Entre eles, choraminga a velha Jacobi, a vivandeira desse exrcito da f.

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Para o filsofo polidor de lentes, o dilema entre especulao racional e aplicao experimental no s era destitudo de sentido, mas era um obstculo para a sabedoria terica e a eficcia prtica. O conhecimento verdadeiro no a representao artificial da realidade no plano das idias, que por sua vez orientariam a ao poltica e legitimariam verdades normativas o mesmo mtodo que d a conhecer a Natureza tambm d a conhecer as produes da cultura humana. possvel que este naturalismo integral aparea como uma sacralizao das relaes de fora nuas e brutais e como renuncia poltica. As cincias sociais sempre se opuseram a reduzir as leis do mundo histrico s leis da natureza. Embora modeladas pelas cincias da natureza, constituram-se em um domnio separado delas em funo do grande divisor natureza-cultura e do postulado do corte entre animal e humano. A face poltica desse processo se apresenta, portanto, sob a forma da separao entre o possvel humano e a determinao animal por ser preciso afastar o espectro da violncia, a lei do mais forte. Da o cortejo de palavras de ordem (ou pressupostos implcitos e explcitos): no somos animais, no coexistiremos segundo a lei da selva, nosso destino nos pertence (CITTON & LORDON, 2008: 15-44). Mas Spinoza no supe o homem fora da ordem natural para escapar violncia originria e dispor de uma poltica e, a partir de sua filosofia, podemos pensar o que h em comum entre a vida coletiva e a ordem geral da natureza a forma da produo causal. A frmula anci conhecer conhecer pela causa revivida por Spinoza significa duas coisas: as idias verdadeiras precisam expressar suas prprias causas (seu regime de produo) e exprimir o modo como o objeto pensado produzido. Pois a verdade de uma idia dada em primeiro lugar por sua constituio interna, pelo seu contedo expressivo, que remete a outras idias igualmente expressivas. E ela s representa seu objeto, e a conexo desse objeto com outros, quando desdobra no pensamento a ordem autnoma de sua forma (a idia enquanto tal no pensamento) e as concatenaes de sua matria (a coisa pensada e seu nexo produtivo com as outras coisas). Idias tm causas e so causas, assim como as coisas. E antes de serem funo de uma conscincia psicolgica, ou de um sujeito de conhecimento soberano, so elas que explicam as coisas no pensamento. O critrio de validao de uma idia verdadeira no extrnseco a ela pois uma idia verdadeira no requer um signo externo que a confirme: ela imanente ao seu prprio plano de expresso . esse tambm o sentido da ordine geometrico demonstrata da tica: a geometria no um dispositivo formal que assegura de modo infalvel o acesso ao verdadeiro, mas uma forma de expresso que permite desdobrar figuras discursivas nas quais a prpria estrutura do real, em seu processo de constituio, se expressa. A tica um hpax que desconcerta, j que seu contedo no precede as condies formais de sua expresso, e s ganha sentido na medida em que estas condies operam (MACHEREY, 1998). Uma filosofia que verdadeira (nesse sentido spinozano) por incitar o leitor a experimentar por si mesmo a validade dos seus enunciados, em um movimento de gnese de verdades que so necessrias porque s3

A verdade no parousia (termo usado por Plato para designar a presena em geral, ou de modo particular a presena da Forma (ousia) na coisa sensvel cf. Lsias, 217b6 e Fdon, 100d5) nem revelao. No uma reduplicao do real, seu duplo ideal ou discursivo, seu correlato de pensamento. A verdade de uma idia uma determinao puramente intrnseca, mas tambm estritamente objetiva: verdade nada falta, ela no tem mais nem menos ser ou realidade que os corpos extensos. A verdade no objeto de interpretao, mas de conhecimento por causas. A verdade no tem valor, no vale nada, pois s h valor para e pelo desejo, tudo dependendo do temperamento (ingenium) prprio de cada um, da educao recebida, do desejo em sua determinao biolgica e histrica (COMTE-SPONVILLE, 1983: 147-164)..

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encontram sua consistncia na medida em que so encadeadas e demonstradas. E o que todo leitor da tica percebe desde suas primeiras definies que pensar no um ato voluntrio. A tica comea pela causa de si (causa sui), que o modelo de inteligibilidade integral do real, pois Deus afirma absolutamente sua causa ou sua razo na infinidade infinita de seus efeitos e em cada uma de suas expresses como autoproduo necessria do real pelo real (BOVE, 1996: 147-156). A substncia causa eficiente e imanente de si e de todas as coisas, isto , todos os seus efeitos so produzidos por ela e nela necessariamente. Em Spinoza, a causa sui nada mais tem a ver com as representaes da eficincia e da finalidade que a tradio lhe havia associado. Afirmao absoluta de um movimento de gnese sem finalidade e sem fim, e que est presente em cada uma de suas expresses como fora intrnseca, a imanncia da causa (Natura naturante) no efeito (Natura naturada) faz com que todas as coisas sejam animadas de uma potncia que , diretamente, a potncia da substncia infinita. Todas as coisas exprimem essa potncia em graus variados, todas dela dependem para existir e agir por isso nenhuma parte do real vale mais ou menos que qualquer outra, e tudo o que existe igualmente perfeito, pois no h modelo de comparao quando Deus (ou Natureza) toda a realidade. J se disse que a transcendncia uma doena propriamente europia (DELEUZE & GUATTARI, 1980: 28). A Parte I da tica seu antdoto, por promover o desmoronamento do imaginrio teolgico-poltico e a crena, generalizada sob a forma vulgar, ou sistematizada sob a forma culta, que d unidade, ordem e sentido experincia atravs da presuno da transcendncia divina. E no momento em que amadurece o absolutismo monrquico a imagem de uma divindade que teria criado por livre arbtrio um mundo ao qual transcende o espelho a soberania (e vice-versa). Spinoza dissolve a transcendncia divina ao determinar que a potncia de Deus idntica a sua essncia (tica I, 34), isto , que Deus age e produz efeitos por sua essncia (os atributos), no por um entendimento e uma vontade livre. O enlace da essncia e da potncia faz com que os efeitos divinos no derivem mais de modelos concebidos por um entendimento criador (Deus no concebe possveis, nem realiza contingentes), e seu poder no a fora nua de uma vontade criadora seu poder no arbitrrio, mas necessrio (DELEUZE, 1969/2006: 199). Deus no um Rei, nem um demiurgo. Com isso, os conceitos metafsicos herdados do medievo so submetidos a uma revolta lgica: s existe uma nica substncia infinitamente infinita (Deus ou Natureza), constituda de infinitos atributos, cada um deles infinito, e tudo o que existe formado por modificaes (afeces ou modos) desta substncia e de seus atributos. Os atributos constituem a essncia da substncia e fazem da substncia o que ela : o absolutamente infinito como multiplicidade . pelos atributos que a percebemos (o pensamento, a extenso alm de infinitos atributos que no percebemos). Os atributos so formas de expresso infinitas, qualidades comuns substncia e s suas modificaes, e por isso os modos daSpinoza ope imanente e transitivo. Enquanto a causa imanente produz nela mesma o efeito que difere dela, a causa transitiva a produz fora dela, mas em outro ser que recebe seu influxus ttulo de paciente, tendo trs caractersticas: a distino real entre ela e o paciente; a juno exterior com ele, seja por contato direto, seja por um intermedirio; desemelhana entre ela e ele. A imanncia spinozista, que implica a unidade da causa e do efeito, exclui tais caractersticas (salvo talvez o ltima, simplesmente atenuada), pois, nela, no h distino real entre um agente e um paciente; o efeito, no sendo um paciente, exprime sempre a ao prpria da causa, mesmo quando esta constrangida a s produzir tal ou tal modificao determinada; o efeito no agregado de fora sua causa; enfim, se ele dela difere, esta diferena atenuada pelo fato de que ele esta causa mesma, quatenus... (GUEROULT, 1968). Os atributos formam uma multiplicidade irredutvel. Mas preciso evitar o contra-senso que transforma substantivo multiplicidade em dois adjetivos opostos: atributos mltiplos e substncia una. Os atributos so uma multiplicidade formal e qualitativa, uma pluralidade concreta que, implicando a diferena intrnseca e heterogeneidade recproca dos seres que os constituem, nada tem em comum com a do nmero literalmente entendido (GUEROULT, 1968).5 4 5 4

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substncia, que so concretamente modificaes dos atributos (os corpos, as idias), implicam as mesmas formas qualitativas que a constituem. Spinoza tambm reverte uma hierarquia crucial para as concepes de sujeito/indivduo na era clssica: a da mente em relao ao corpo. Mente e corpo no so realidades heterogneas entre as quais subsiste uma relao de exterioridade, mas so uma s e mesma coisa expressa de dois modos (um individuo). Pois o princpio de igualdade entre os atributos (a substncia igual a todos os atributos, e cada atributo igual a todos os outros) assegura que no h eminncia, nem causalidade recproca entre essas formas de expresso divina. Cada modo (afeco ou modificao) da substncia produzido em todos os atributos simultaneamente. O que significa que entre pensamento e extenso no h relao de causalidade recproca (como no cartesianismo), mas de concomitncia ou simultaneidade entre os modos da extenso (os corpos) e do pensamento (as idias). O corpo uma relao de composio entre partes extensas, e a mente a idia desse corpo atualmente existente (tica, II, 13-15). A mente um autmato espiritual, ou uma potncia lgica de encadear idias que, falsas ou no, so sempre verdadeiras idias (MACHEREY, 1997: 257). A mente s conhece os corpos exteriores enquanto eles esto em relao com o corpo do qual ela prpria a idia. E s conhece este corpo do qual idia quando afetada pelos corpos exteriores. Tudo o que os indivduos percebem decorre de seus corpos serem incessantemente afetados pelos encontros com outros corpos, que efetuam modificaes das quais os indivduos no conhecem a natureza e os mecanismos de produo (tica, II, 16). Da a condio natural dos indivduos ser a passividade e a espontaneidade da conscincia na qual as idias se afirmam (como j vimos, a conscincia no soberana, e a mente, como idia de um corpo singular atualmente existente, passiva ou ativa em concomitncia com esse corpo). Resulta da que, espontaneamente, eles no tm nenhum conhecimento adequado nem do prprio corpo, nem dos corpos exteriores, nem mesmo de sua conscincia pois esta opera com representaes ou idias de imagens ligadas do que ocorre ao corpo. A conscincia lida com efeitos, no com causas, e opera imersa em sensaes confusas, percepes falsas, lembranas parciais, sendo regida pela associao e pelo hbito isso o que Spinoza nomeia imaginao (tica, II, 14-36) .[...] chamaremos de imagens as afeces do corpo humano que representam a presena de corpos externos, mesmo que no se refiram a figuras de coisas. E quando a Mente contempla os corpos desta maneira diremos que ela imagina [...] as imaginaes da Mente consideradas em si no contm erro algum [...] se a Mente erra no por que imagina, mas sim na medida em que consideramos que ela carece da idia que exclui a existncia das coisas que ela imagina como presentes. Pois se a Mente quando imagina como presentes coisas que no existem soubesse ao mesmo tempo que estas coisas no existem, certamente a ela atribuiria esta potncia de imaginar a uma virtude de sua natureza e no a um vcio [tica, II, 17, esclio]6

Spinoza no ope a imaginao realidade, e sim a realidade da imaginao realidade dos acontecimentos fsicos. A realidade da imaginao no decorre do objeto imaginado, mas do pensamento que imagina. A imaginao um modo de conhecer, com sua prpria lgica que a do encadeamento automtico pela memria e pelo hbito de imagens (traos, impresses) e idias dessas imagens a partir das afeces do corpo. Uma imagem a concatenao de traos (vestigia), impresses (impressio),Spinoza repete trs vezes (no Tratado Breve, no Tratado da reforma e na tica) o gesto platnico de elencar gneros de conhecimento, ou modos de percepo: imaginao (conhecimento por signos), razo (conhecimento por noes comuns e relaes causais) e cincia intuitiva (intuio de essncias singulares). Lvio Teixeira assinala que na tica os modos de percepo so expostos a partir de uma teoria das idias gerais. Os dois primeiros modos se definem pela espcie de generalidades a que se referem: as da imaginao, inadequadas e confusas, e as da razo, adequadas, mas no essenciais. A cincia intuitiva se encontra acima das generalidades abstratas (TEIXEIRA, 1954/2001: 161). Reiteramos que a imaginao no fonte de conhecimento, mas um modo (de perceber, mas tambm de viver conforme essas percepes).6

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modificaes efetuadas pelos encontros entre corpos, segundo modalidades cinticas. Uma imagem isolada seria como um tomo de sentido que precederia seu encadeamento os traos e impresses em seu encadeamento que se desdobram em significados. As imagens no decalcam seus objetos segundo uma norma mimtica e no reproduzem as figuras das coisas as imagens no so cpias, e as coisas no so modelos delas. No h a priori ligao intrnseca de semelhana entre as imagens e os objetos externos sendo a prpria suposio de um modelo e de uma semelhana um efeito imaginativo. E no h uma s e mesma idia de imagem para um s e mesmo objeto externo. O objeto s representvel por envolver uma atividade imaginativa, e sua presena nem sempre requerida para tal atividade. E preciso distinguir, sem separar, as imagens das idias que as acompanham a idia do crculo, por exemplo, no tem centro, nem circunferncia, e sempre preciso que as imagens s quais esto ligadas as idias sejam traadas, engendradas. No Tratado da reforma Spinoza dizia que a idia no outra coisa seno uma sensao, isto , uma idia de imagem o evento mental que advm quando o corpo afetado por outro corpo. As idias representam as concatenaes de traos e impresses e esse processo de significao que produz, pelo encadeamento, tal ou tal sentido da imagem. O sentido dado ao encadeamento e o regime causal operante dependem, para alm do par imagem-signo/objeto, de um intrprete. Como a juno do som articulado ma viso do fruto, que imprime na memria o signo; a viso de rastros na terra, que para o soldado lembram cavalos e logo a guerra, e ao agricultor que passa do cavalo ao arado (tica, II, 18, esclio). Trata-se de constituio de um mundo de sentido no qual os objetos so determinados por seus usos (VINCIGUERRA, 2001: 249-267 e 2005: 138-172). A imaginao constitui e religa essas representaes que o indivduo forma de seu corpo, de sua mente e dos outros indivduos. No entanto, essa privao de conhecimento que envolve as idias confusas no ausncia absoluta de conhecimento (tica, II, 17). A imaginao s se ope ao conhecimento racional quando substituem o real (o encadeamento das coisas/causas segundo a ordem comum da Natureza) pelo imaginado (o efeito separado da causa, ou os signos). A imaginao exprime uma potncia corporal: um poder de afetar e de ser afetado, pois existir ser afetado de inmeras maneiras e quanto maior a complexidade do corpo, maior a complexidade da mente e maior a aptido desse indivduo a ser afetado, e a afetar, de muitas maneiras. A instabilidade da vida afetiva se explica pelo fato dela ser inteiramente fundada na imaginao no sistema de interpretaes que constituem esse modo de conhecer . E a mente no deixa de perseverar indefinidamente em sua atividade enquanto tem idias confusas. Pode-se dizer que a antropologia spinozana uma crtica radical do humanismo mistificado que concede ao homem um lugar privilegiado e lhe confere um poder especial, uma natureza que segue suas prprias leis. Trata-se de uma antropologia descentrada (ou no antropomrfica) na qual a potncia produtiva da Natureza inteira opera na constituio do individuo humano, que parte desse mundo como produto e produtor simultaneamente (CUZZANI, 2002, p. 7-21). Este o sentido da frmula o homem no um7 8 7

A forma de um corpo a norma dessa relao de composio entre partes extensas, segundo o movimento e o repouso, a velocidade e a lentido. As figuras seriam os estados admitidos por essa forma com a figura sendo uma certa situao ou posio, a forma afetada, ou modificada pelas presses externas. Assim, a forma seria a totalidade das figuras que um corpo pode revestir (VINCIGUERRA, 2005: 129). o caso da linguagem e de seus automatismos. Como notamos cotidianamente, o fato da linguagem produz a iluso de que se educa diretamente atravs de palavras (TEIXEIRA, 1959: 23), como o caso dos sermes (de antigamente), da retrica dos mestres, do beletrismo bacharelesco (j nem to recentes) e do discurso poltico a procurar justificao para as prticas pedaggicas e escolhas tericas (algo bem atual).8

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imprio dentro de um imprio a ordem humana no um enclave subtrado ao determinismo da Natureza. O individuo determinado pela relao interna de seus componentes e pela relao com as outras coisas que compem seu meio exterior, pois emerge em um encadeamento indefinido de causas. Relao de relao a individuao ser sempre pensada em todos os nveis (ao infinito, grande e pequeno) em termos de processos cinticos (movimento e repouso, velocidade e lentido) e dinmicos (sensibilidade ou poder de afetar e de ser afetado). A identidade individual se manifesta como a persistncia dessa relao na rede infinita de interdependncias que nos ligam ao resto da natureza, e que no cessam de afetar as diferentes partes de nosso corpo.A idia do indivduo como integrao interna de partes e de foras que operam como causa nica para produzir um efeito nico leva idia de um indivduo coletivo complexo, a multitudo, e, por outro lado, a idia do indivduo como diferenciao interna dos constituintes pela diferente intensidade da fora dos componentes permite compreender que a multitudo constituda por diferentes intensidades internas de foras assim como pela concordncia ou pelo conflito entre elas (CHAU, 2009).

A filosofia de Spinoza uma tica (no uma moral) por ter desfeito o lao tradicional entre liberdade e vontade livre em favor do nexo intrnseco entre liberdade e necessidade (a verdadeira oposio entre necessidade externa e necessidade interna). Pois a liberdade no depende da vontade e daquilo que a regula (valores, bens, fins), mas da essncia ativa dos indivduos e do que dela deriva necessariamente. Essa essncia que confere um carter singular individualidade. Para Spinoza, a essncia (essentia), definida em reciprocidade com a coisa da qual ela a essncia uma no pode ser, nem ser concebida, sem a outra (tica, II, def. 2). Essa reciprocidade decisiva: a essncia no est aqum, nem alm da realidade da coisa, mas coincide com ela, aquilo que faz a coisa ser, sua atividade e sua positividade. Assim, uma essncia (individual) constitui uma coisa (singular), e esta coisa (singular) exprime uma essncia (individual) e cada essncia distinta de todas as outras (todas as coisas so singulares) . Cada essncia singular corresponde a uma parte da potncia infinita da Natureza um grau de potncia que se exprime no indivduo como um esforo (conatus) indefinido em perseverar na existncia, o qual suscetvel de variaes (os afetos). Por isso, enquanto o indivduo sempre to perfeito quanto ele pode, de um ponto de vista fsico, do ponto de vista tico, ele pode aumentar ou diminuir sua potncia. Seu poder de ser afetado est sempre plenamente preenchido por afeces passivas ou ativas ele sempre tudo o que ele pode ser a cada momento, nada lhe faltando, desse ponto de vista. Assim, h uma constante diferenciao no indivduo, uma flutuao entre limiares de perfeio de sua potncia de agir e de pensar (at o ponto da destruio da relao de composio entre suas partes extensivas).O desejo (cupiditas) prpria essncia do homem, enquanto ela concebida como determinada, por uma afeco qualquer dela mesma, a fazer algo. [...] o desejo o apetite (appetitum) com conscincia dele mesmo e que, por sua vez, o apetite a prpria essncia do homem, enquanto determinada a fazer algo para a sua conservao. [no reconheo] nenhuma diferena entre apetite humano e o desejo. Pois quer o homem seja consciente de seu apetite ou no, o apetite permanece sendo o mesmo [...] pela desejo entendo quaisquer esforos, mpetos, apetites e volies, que variam conforme varia o estado em que se encontra o homem e no raro so de tal modo opostos um ao outro, que o homem puxado para diferentes direes e no sabe para onde se voltar (tica, III, definies dos afetos 1 e esclio).9

A essncia do indivduo desejo ou a conscincia do esforo (conatus) em perseverar no seu ser (tica, III, 7), em manter unidas suas partes extensas, em afirmar sua natureza singular e produzir efeitos. Esforo por encontrar obstculos, pois a potncia de um indivduo necessariamente limitada pela de9

Essa a funo da cincia intuitiva, ou terceiro gnero de conhecimento: conhecer o singular, para alm das abstraes (da imaginao que colhe efeitos, ou signos, separados das causas) e das generalidades (mais ou menos teis) da razo.

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outros, humanos ou no, mais potentes que ele, e essas relaes desiguais com a exterioridade o limitam (o constrangimento sempre um obstculo real, seja fsico ou imaginado, e que produz efeitos que obrigam, ou impedem, uma ao). Esforo que no envolve apenas a conservao vital a autoconservao no causa final, mas tudo o que todo individuo faz para se conservar, quaisquer que sejam as conseqncias e envolve um tempo indefinido (tica, III, 8). Esse esforo ora favorecido, ora entravado, conforme os encontros fortuitos que o indivduo faz com outros indivduos. E como a mente no pode querer ou desejar algo contrrio aos apetites do corpo e ao esforo deste em perseverar, os constrangimentos sofridos pelo corpo nas suas relaes com os outros corpos produzem as variaes que Spinoza nomeia de afetos que so produto e funo da potncia (MIGNINI, 2007: 174).A maior parte dos que escreveram sobre os afetos e sobre a forma de viver dos homens, no parecem tratar de coisas naturais que se seguem das leis comuns da natureza, mas de coisas que esto fora da natureza. Eles parecem conceber o homem na natureza como um imprio dentro de um imprio. Pois eles crem que o homem parece mais perturbar do que seguir a ordem da natureza, ter uma potncia absoluta sobre suas aes e s ser determinado por si mesmo. Eles atribuem a causa da impotncia e da inconstncia do homem no potncia comum da natureza, mas a no sei qual vcio da natureza humana e por isso choram por ela, se riem dela, desdenham-na, ou, mais frequentemente, execram-na. [...] ningum, que eu saiba, determinou a verdadeira natureza e fora dos afetos nem o que a Mente pode fazer para moder-los [SPINOZA, tica, III, Prefcio].

O lxico usado por Spinoza para tratar dos afetos assinala sua distncia da perspectiva moralizante, baseada na falsa idia de um poder da vontade sobre as paixes, em favor de uma compreenso objetiva dos afetos, sejam ou no humanos. A distino entre as afeces (affectio) corporais (os efeitos fsicos causados por outros corpos) e mentais (as idias e as imagens), e que so simultneos no indivduo, remetem a um estado (constitutio) do corpo afetado e implicam a presena de um corpo afetante. J o termo afeto (affectus) d conta, no corpo afetado e no corpo afetante, da transio (transitio) de um estado a outro (a doena, ou um exerccio fsico, modifica a compleio do corpo e produz simultaneamente idias e sentimentos essas mudanas podem ser nocivas, caso diminuam, ou boas, caso aumentem, a potencia de agir do indivduo afetado). As afeces so eventos fsicos, no corpo, e representaes ou idias (verdadeiras ou falsas) na mente. Os afetos so as idias dessas transies de um estado a outro da potncia de existir, agir e pensar e h sempre concomitncia ou simultaneidade entre afetos e afeces. O afeto uma transio, ou ainda o ato de passar a uma perfeio maior ou menor. Estar alegre ou triste implica essa idia de transio (no se experimenta afeto por aquilo que sempre esteve dado, que no se v ameaado de mudar. e que se imagina que no possa ser diferente do que ). Mas essa transio no implica que a mente compare a constituio presente do corpo com a anterior assim, mais do que uma conscincia da transio (de uma perfeio a outra), esta transio exprime a prpria variao da potncia de agir do corpo. Ento, os afetos no so estados mensurveis ou grandezas absolutas, mas diferenciais da potncia existir (CITTON, 2008: 71). As trs formas primitivas de expresso do conatus desejo, alegria e tristeza so os afetos primrios a partir dos quais o filsofo deduz os outros afetos e suas combinaes (tica, III). Pois nem todo afeto uma paixo, embora toda paixo seja um afeto os afetos podem ser ativos (todos os que envolvem alegrias) ou passivos (todos os que envolvem tristezas) e as paixes podem ser alegres (passividade que acrescenta mais realidade ao indivduo) ou tristes (paixes diminutivas). Por isso a diferena tica entre a ao e a paixo, e no entre a razo e a paixo. Sozinha, a razo nada pode diante dos afetos um afeto que cessa de ser uma paixo no perde seu carter de afeto, nem deixa de produzir efeitos. E a passagem da passividade atividade se

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d pela prpria dinmica afetiva, quando um afeto mais forte se sobrepe a um outro. Independente do contedo, um desejo associado a um sentimento de alegria mais forte do que desejo associado a um sentimento de tristeza. Na medida em que os homens so prisioneiros dos afetos que so paixes, eles so expostos a entrar em conflito uns com os outros, e em desacordo com eles mesmos. Vivendo os encontros ao acaso, a potncia dos indivduos preenchida por afeces passivas, que a separam de seu poder efetivo de agir e pensar, e por afetos de tristeza que incessantemente a diminuem. Quando encontramos um corpo com o qual o nosso se compe favoravelmente, procuramos nos unir a ele. E se isso no ocorre, quando o corpo encontrado produz um afeto passivo (medo, temor, dio, indignao), fazemos tudo o que est em nosso poder para descartar a tristeza ou impor s partes desse corpo outra relao, que convenha com a nossa natureza. Pois mesmo a alegria de um triunfo momentneo sobre os corpos contrrios no elimina a tristeza e o dio que a envolve, com a necessidade de destruir os corpos que no convm pois persevera o temor da ocorrncia de outro mau encontro. Nessas condies, o conhecimento espontneo do que bom (til) e ruim (nocivo) est ligado conscincia dos sentimentos de alegria e de tristeza que acompanham a dinmica afetiva: o desencadeamento e o confronto entre os afetos passivos, que variam de intensidade, regulado por sensaes de prazer, bem estar, ou dor e desagrado, por exemplo. Como cada um deseja e age em funo de seu prprio interesse (o qual determinado passionalmente, isto , por aquilo que julga ser bom/til ou mau/nocivo), cada um age sempre em funo do que ele reconhece como sendo til para si prprio, com conhecimento de causa ou no. Da no existir distino entre o comportamento que o individuo deveria seguir e aquele que ele segue realmente, enquanto determinado pelo dinamismo afetivo passional.[...] no por julgarmos uma coisa boa que nos esforamos por ela, que a queremos, que a apetecemos, que a desejamos, mas, ao contrrio, por nos esforarmos por ela, por quer-la, por apetec-la, por desej-la, que a julgamos boa (tica, III, 9, esclio).

A pretenso de normalizar as condutas pouco pode diante dessa dinmica seja por se apoiar em afetos cuja intensidade menor; seja por se associar aos afetos de desprazer, seja por suspender a obteno do prazer. O problema justamente deixar de buscar o til de modo fortuito, e se esforar em encontrar os corpos que convenham, sob relaes convenientes. esse um dos sentidos da razo em Spinoza (formar noes comuns entre parte e todo, conhecer pela causa, selecionar e organizar bons encontros). Desse modo, um mximo de paixes alegres preencher o poder de ser afetado do indivduo, aumentando sua potncia e a dos outros com os quais ele entrar em relao. O vnculo entre a devir da racionalidade e a dinmica afetiva crucial no itinerrio tico e na constituio da vida comum. A instituio do corpo poltico justamente o momento em que a presumida solido dos indivduos d lugar formao de um indivduo superior, ou melhor, o momento em que a multido10 age como um s indivduo (conduzidos pela razo mais do que pelo temperamento e pela passionalidade). O que d um sentido para a frmula vida humana.Da cidade cujos sditos, transidos de medo, no pegam em armas, deve antes dizer-se que est sem guerra do que dizer-se que tem paz. Porque a paz no ausncia de guerra, mas virtude que nasce da fortaleza de nimo, com efeito, a vontade constante de executar aquilo que, pelo decreto comum da cidade, deve ser feito. Alm disso, aquela cidade cuja paz depende da inrcia dos sditos, os quais so conduzidos como ovelhas, para que aprendam s a servir, mais corretamente se10

Multitudo vocbulo corrente no sculo XVII nas obras polticas (Hobbes, Grotius). Spinoza emprega o termo no apenas no sentido quantitativo do grande nmero de cidados, mas no sentido qualitativo do comportamento coletivo dos indivduos em grande nmero.

12 pode dizer uma solido do que uma cidade. Portanto, quando dizemos que o melhor estado aquele em que os homens passam a vida em concrdia, entendo por vida humana a que no se define s pela circulao do sangue e outras coisas que so comuns a todos os animais, mas se define acima de tudo pela razo, verdadeira virtude e vida da mente. [SPINOZA, TP, V, 4-5].

Partindo das trs formas primitivas de manifestao do conatus desejo, alegria e tristeza Spinoza d conta de um tipo de alterao afetiva que no se refere aos objetos em geral (coisas no humanas, outros sentimentos ou mesmo idias), mas que opera por semelhana ou mimetismo afetivo. Os sistemas de valores inspirados e derivados da partilha de afetos podem ser automaticamente transferidos de um indivduo a outro, mesmo no caso em que estes no so pessoalmente ligados de incio por um lao afetivo. H um desenvolvimento automtico dos afetos pela considerao dos afetos de outrem sobre os quais eles so fixados. Esse tipo de variao dos afetos se refere s condutas de coisas semelhantes a ns (tica, III, 27), o que sempre envolve uma flutuao, conforme o afeto. Quando imaginamos que uma coisa semelhante a ns experimenta um determinado afeto, este afeto engendrado em ns, ou reforado se j existia se algum ama ou odeia o que amamos, por exemplo. E o desejo de reciprocidade pode fazer com que se ame porque se quer ser amado mas tambm podemos ser conduzidos a odiar o que se ama, por imaginarmos que o que amamos amado por outrem. Os homens s se tornam livres quando se apoderam de sua potncia de agir, isto , quando seu esforo em perseverar determinado por idias adequadas donde derivam afetos ativos (alegrias), os quais se explicam por sua prpria essncia, isto , por sua prpria atividade e pela afirmao daquilo que constitui sua natureza.Spinoza se inscreve em uma tradio clebre: a tarefa prtica do filsofo consiste em denunciar todos os mitos, todas as mistificaes, todas as supersties, de qualquer origem. [...] A superstio tudo o que nos mantm separados de nossa potncia de agir e no cessa de diminu-la. Tambm fonte da superstio o encadeamento das paixes tristes, o temor, a esperana que se encadeia ao temor, a angstia que nos entrega aos fantasmas. [...] A desvalorizao das paixes tristes, a denncia, daqueles que as cultivam e que delas se servem, formam o objeto prtico da filosofia. Poucos temas na tica aparecem to constantemente como este: tudo o que triste e mau, e nos torna escravo; tudo o que envolve a tristeza exprime um tirano. (DELEUZE, 1968: 249.).

Como nos ensinou Philippe ries (ARIS, 1981 passim), desde o sculo XVII, quando a escolarizao formal substituiu a aprendizagem atravs da convivncia entre crianas e adultos (com a imitao e o exemplo como meio de assimilao de hbitos e valores sociais), os regimes educacionais determinaram a disposio da criana em uma espcie de quarentena: antes de ser solta no mundo, a criana tornou-se um objeto de prticas socializao que competiam s instituies e ambientes definidos para este fim. A conscincia da particularidade da vida infantil, a distino entre criana e adulto, assim como entre jovem e adulto, ser marcada por uma perspectiva moralista que identificava a infncia com uma imperfeio do qual era preciso se curar. Era uma idia nova, poca, a da infncia e juventude como lugar de passagem (NOGUEIRA, 2008: 38). Esboo do homem racional, cuja leviandade e distrao era preciso corrigir e reformar, para os padres, pastores e homens de Estado que pensaram a escolarizao, a criana era definida por tudo o que ela no fazia e tudo o que ela no era, ou ainda no era: um adulto. Neste, por sua vez, se reconhecia o ser humano pleno, a finalidade do ser-criana. Assim, as crianas, e os jovens, vistos como adultos em potncia, como um possvel a realizar: ainda privadas de razo, mas convocadas a conquist-la (ZOURABICHVILI, 2002: 129), cabia escolarizao elevar a criana que condio de plena racionalidade. Da as observaes psicolgicas que pretendiam compreender a mente infantil para obter sucesso nessa empresa de adaptao metdica da educao, para torn-las indivduos honrados e

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probos; a preocupao com a higiene, a sade fsica, com a sexualidade, conduzida sob disciplina e vigilncia constantes e orgnicas (FOUCAULT, 1977: parte III); e as rotinas para a ascese rigorosa do intelecto. A infncia duraria o tempo necessrio de uma vida coincidente com o ciclo escolar antes que o individuo pudesse experimentar, enfim, a suposta liberdade do adulto.A Culpa (Poenitentiae) a Tristeza concomitante a idia de um feito que cremos ser produto de um livre decreto de nossa Mente. Devo assinalar que no estranho que a Tristeza se siga de todos os atos comummente chamados de viciosos e que a Alegria se siga dos atos ditos retos. Pois o que dissemos acima pode ser entendido facilmente a partir da educao. So sem dvida os pais, reprovando os primeiros e repreendendo frequentemente os filhos, e ao contrrio recomendando os segundos e elogiando-os, que fazem com que a Tristeza seja suscitada por aqueles e a Alegria por estes. E isto comprovado pela experincia, pois o costume e a Religio no so o mesmo para todos. Pois o que sagrado para uns profano para outros e que honesto para uns torpe para outros. Portanto, cada um se glorifica ou se culpa de acordo com a sua educao (tica, III, definio dos afetos 27, explicao).

Spinoza foi contemporneo da emergncia da escolarizao forjada pela mquina clerical catlica e protestante, alm da judaica, onde se formou, e que, em breve, laicizada, forneceria um esprito aos Estados nacionais modernos. E sabia bem que a educao de seu tempo era orientada pelo voto quebrar a vontade da criana, julgada pecadora, e o esprito dos jovens, por rebeldes, em vez de fortalec-los sobretudo pelo fato daquelas pedagogias se inspirarem nessa representao genrica do humano e no ideal moral reformador. E na origem dessa representao da natureza humana o relato admico recorrente nas obras dos pensadores do sculo XVII ou como pressuposto das aes de escolarizao. Um Ado dotado de livre-arbtrio e de capacidade de escolha comparece como fundamento para a tese da essncia racional do homem, como justificativa para a ordem moral do mundo em todo caso preciso que o primeiro homem seja racional e dotado da capacidade de escolher livremente, sem o que no h como responsabiliz-lo pelos seus atos quando ele no segue, ou quando ignora, as finalidades e os valores que deveria perseguir (o bem, a verdade, os fins da razo etc.) . Essa figura convm preocupao racionalista de sustentar um direito verdade como condio primeira do exerccio natural da faculdade do pensamento sendo esta, por sua vez, naturalmente voltada para pensar o verdadeiro e agir conforme o bem. Com certo humor, Spinoza propor uma outra verso para essa narrativa: Ado, longe de ser o primeiro homem racional e livre, no passava de mais um exemplar desafortunado da condio existencial na qual esto mergulhados os indivduos, que agem como escravos que obedecem por medo daquele que os dominam, ou para satisfazer o desejo do dominador, mas sem conhecer as razes daquilo que fazem. Ado quase uma criana, ignorante das causas das coisas, que teria interpretado equivocadamente as mensagens divinas e, como uma criana, tomado uma indicao de cuidado (no comer o fruto) como interdio. O filsofo afirma que a revelao feita por Deus a Ado sobre os efeitos mortais que a ingesto do fruto acarretaria, visava que Ado aumentasse seu conhecimento e sua perfeio. E acrescenta que perguntar por que Deus no deu a Ado uma vontade mais perfeita seria to absurdo quanto perguntar por que o crculo no tem as propriedades da esfera (TTP, IV e Epstola 19).[...] ningum sente pena de uma criana por ela no saber falar, andar, raciocinar e por viver, enfim, tantos anos como que inconsciente de si mesma. Se, por outro lado, os homens, em sua maioria, nascessem j adultos e apenas alguns nascessem11 11

Quando a matriz teolgica j no for mais decisiva para a constituio subjetiva, essa convico, na modernidade, refora uma antropologia que situa o homem como um enclave subtrado ao determinismo das coisas naturais. Emerge ento a idia de uma ordem de liberdade moral de um sujeito soberano que, orientado por regras facultativas, seria capaz de realizar os fins racionais universais que, mesmo sem contedo prdefinido, envolvem mximas e o rigor da exemplaridade moral (caso kantiano). No sendo mais o Bem quem dita a Lei, mas o inverso, a pressuposio de extraterritorialidade da liberdade humana permanece em busca do que poderia fund-la.

14 crianas, ento todos sentiriam pena das crianas pois, nesse caso, a infncia seria considerada no como algo natural e necessrio, mas como um defeito ou uma falta da natureza (tica, V, 6, esc.).

A infncia um tema importante na filosofia de Spinoza, recebendo tratamento original e ocupando, na economia geral de seu pensamento, uma funo: responder problemtica da transio de todo indivduo que, como mostra a experincia e nos informa Spinoza, no nasce livre, nem racional, mas pode tornar-se. primeira vista, o filsofo segue a convico de seu tempo de que a criana seria o outro do adulto preciso que ela desaparea para que advenha o adulto suscetvel de viver segundo a razo. No entanto, vrios textos mostram a infncia sob a perspectiva de um desenvolvimento gentico, em lugar de ser tratada como um estado autnomo (MACHEREY, 1995: 257). Da o convite a considerar mais atentamente os primeiros anos da nossa vida no contexto da imitao afetiva.[...] as crianas, cujo corpo est sempre como que em equilbrio, ora riem, ora choram apenas em ver outros rirem ou chorarem. Desejam imitar tudo o que vem os outros fazer e desejam para si o que imaginam ser capaz de deleitar os outros pois, como dissemos, as imagens das coisas so as prprias afeces do Corpo humano, ou modos pelos quais o Corpo humano afetado por outros corpos e disposto a fazer isto ou aquilo (tica, III, 32, esclio). [...] tal como um beb ou uma criana tem um corpo capaz de pouqussimas coisas e extremamente dependente das causas exteriores tem uma mente que, considerada em si mesma, quase no possui conscincia de si, nem de Deus, nem das coisas. Em troca, aquele que tem um corpo capaz de muitas coisas tem uma mente que, considerada em si mesma, possui uma grande conscincia de si, de Deus e das coisas. Assim, esforamo-nos, nesta vida, sobretudo, para que o corpo de nossa infncia se mude, tanto quanto o permite a sua natureza e tanto quanto lhe seja conveniente, em um outro corpo, que seja capaz de muitas coisas e que esteja referido a uma mente que tenha extrema conscincia de si mesma, de Deus e das coisas (tica, V, 39).

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A condio de heteronomia das crianas determinada por seu corpo possui um baixo nmero de aptides, por dependerem das causas externas e por serem governadas por afetos passivos. E a experincia que se efetua na infncia a da observao dos outros. Nelas, os desejos, a imitao e a ambio so acentuadas pela incitao da honra e da inveja quando os adultos apresentam-se como modelos para as crianas, com a funo educadora limitando-se a excitar e orientar uma dinmica do desejo j estruturado pelo dinamismo dessa ambio e submisso passionalidade, por vezes violenta (tica, III, 28 e 39).[...] Todos se aprazem em narrar seus feitos e ostentar a fora de seu corpo ou de sua alma, e assim os homens acabam incomodando uns aos outros. Disso se segue que os homens so por natureza invejosos [...] ou que eles se alegram da fraqueza de seus iguais e se entristecem de suas virtudes. [...] Donde algum se alegrar ao mximo contemplando a si mesmo ao contemplar em si algo que nega aos demais. Mas no se alegrar tanto se aquilo que afirma de si se refere idia universal de homem ou de animal e, ao contrrio, se entristecer se imaginar que suas aes so fracas em comparao com as dos outros, caso em que se esforar em remover tal Tristeza, seja interpretando incorretamente as aes dos demais ou enfeitando o quanto pode as suas prprias. Fica evidente, pois, que os homens so por natureza propensos ao dio e Inveja e a educao se soma a isto, pois os pais tm o costume de incitar a virtude apenas pela Honra e pela Inveja (tica, III, 55)

O filsofo reconhece na criana o modelo epistemolgico do comportamento humano a criana dissimulada que persevera nas paixes do adulto (BOVE, 1996: 105). A relao com a infncia deriva da, mais do que pelo vis de uma memria pessoal.Um homem de idade avanada acredita que a natureza delas to diferente da sua que no poderia ser convencido de que foi uma vez criana, se no chegasse a essa concluso pelos outros (tica, IV, 39)

E quando vem a adolescncia, como suportar o que os outros tm de penoso? Como no imit-los? Tudo isto s deixa a opo entre a obedincia servil e a revolta enraivecida. Da, quase sempre, a confuso entre

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Sobre a criana e a infncia em Spinoza, cf. MACHEREY (1995); BOVE (1996) e ZOURABICHVLI (2002a). Este ltimo apresenta um estudo detalhado a respeito do tema, em um ensaio que demonstra a rigorosa correspondncia entre a sada da infncia e a emancipao do imaginrio monrquico na obra de Spinoza. Sobre a criana como personagem filosfico cf. NOGUEIRA (2009). Sobre Spinoza e a educao MERON (2009).

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vingana e liberdade, que a tragdia da adolescncia, mas tambm da poltica (ZOURABICHVILI, 2002: 161).Os homens so na maior parte das vezes invejosos e mais inclinados a vingana do que a misericrdia. necessrio uma potncia de animo singular para aceitar cada um segundo sua respectiva maneira de ser e para evitar imitar os seus afetos. Aqueles que, contrariamente, aprenderam a criticar os homens e a reprovar-lhes os vcios, em vez de fortalec-los, so danosos para si mesmos como para os outros. Da que muitos, por causa de uma intolerncia e falso zelo religioso, tenham preferido viver entre os animais, em vez de viver entre os homens, tal como ocorre com as crianas e os adolescentes, que no conseguem suportar com equanimidade as reprimendas dos seus pais e se refugiam no servio militar, preferindo os desconfortos da guerra e um comando tirnico aos confortos domsticos e s admoestaes paternas, e aceitando que se lhes imponha qualquer fardo, desde que se vinguem dos pais (tica, IV, apndice, captulo 13).

O que o devir tico solicita romper com a infncia, assim compreendida, bem como com os princpios educativos dos adultos quando geradores de impotncia para desenvolver as potncias da vida de conhecimento e liberdade (BOVE, 1996: 105). Um episdio biogrfico relevante nos d uma pista do que o filsofo pensava sobre as formas institucionais de transmisso de conhecimento. Em 1673, correndo todos os riscos, Spinoza recusou uma ctedra em Heidelberg por conta de exigncias que comprometiam sua liberdade de filosofar.[...] No tendo nunca sido tentado pelo ensinamento pblico, eu no posso me determinar, ainda que eu tenha longamente refletido, a aproveitar essa magnfica ocasio. Penso em primeiro lugar que eu deveria renunciar a prosseguir meus trabalhos filosficos se me dedicasse ao ensinamento da juventude. Por outro lado, eu ignoro em quais limites minha liberdade de filosofar deveria ser contida para que eu no parea querer perturbar a religio oficialmente estabelecida: o cisma com efeito provm menos de um zelo religioso ardente que das paixes diversas ou do amor da contradio que desvia de seu sentido e condena todas as palavras, mesmo quando elas so a expresso de um pensamento reto. Eu j o experimentei na minha vida solitria de simples particular, e isso seria bem mais a temer se eu me elevasse a esse grau de dignidade. [...] o que me detm, no absolutamente a esperana de uma fortuna mais alta, mas o amor de minha tranquilidade que eu acredito poder preservar, de qualquer modo, me abstendo de lies pblicas. (Epstola 48).13

Se a tarefa da filosofia suprimir o temor e a obedincia, nesse caso ela no pode ser ensinada publicamente, e submet-la ao Estado implicaria em admitir os pressupostos e os limites que ele impe ao pensador. Uma filosofia arrisca-se a entrar em contradio consigo mesma, desde que aceite ocupar um lugar no interior dos mecanismos de opresso que subordinam todas as coisas alucinao coletiva que prpria das instituies, com seus jogos de poder e de linguagem. Mesmos os filsofos no deixam de ser conduzidos pelo desejo de modelar os homens, a ver os outros se conformando ao seu prprio temperamento, ou s iluses sob as quais lhes aparece sua prpria maneira de ser e de agir. A diferena entre os filsofos e os telogos derivaria da construo de uma teoria para chegar a isso os filsofos, em seu desejo de moralizar, passariam pela noo de uma natureza humana universal (racional e voluntariosa, mas continuamente desviada pelos interesses egostas e pelas paixes) para chegar a isso (MOREAU, 1992: 53-69). Enfim, essa preocupao com a educao (manifesta desde a primeira obra que o Tratado da reforma, 15) pode ser resumida em algumas teses: jamais esquecer o vnculo razo-afeto; cultivar em partes iguais todas as aptides do corpo e desenvolver a potncia da mente; solicitar a esperana, em vez do temor (as recompensas imanentes); adaptar-se compreenso do aluno, isto , operar pela experimentao, passo a passo, mas sem desqualificar aquilo que precede a experincia de pensar (ZOURABICHVILI, 2002: 65172) .13 14 14

Fabrica de impotncia justamente o ttulo de uma obra recente que trata dos paradoxos da escolarizao (NORDMANN, 2009).

Como lembra Pierre-Franois Moreau, no se pode usar argumentos de um sistema filosfico para tentar demonstrar a algum, que ainda no filsofo, que ele deve se dirigir filosofia, ou entrar em um sistema o que seria admitir o problema como j resolvido. E a transio da vida ordinria a uma vida que experimenta o pensamento, se no for arbitrria, deve encontrar na vida comum os argumentos que sugerem essa transio argumentos que no pressupem escolhas filosficas determinadas. Se tais argumentos se apiam sobre valores, preciso que tais

16 Pode-se afirmar sem paradoxo que porque o spinozismo apela experiencia que ele merece o nome de racionalismo absoluto: ela permite completar o trabalho da razo, para que sejam levados em conta os dominios nos quais se manifesta a racionalidade do real isto , precisamente o real na sua totalidade (MOREAU, 1994 : 555).

Uma frmula recorrente em Spinoza: a experincia ensina. Uma experincia que leva a um pessimismo sereno, a uma resignao desabusada, estranha ao otimismo utpico e stira habituais no pensamento moral e poltico, por voluntaristas e utpicos. Conforme MOREAU (1994: 293-306), do ponto de vista funcional, para Spinoza, a experincia confirmativa verificamos que nossos pressupostos so, ou no, legtimos. Mas tambm substitutiva, nos domnios em que seu ensinamento pode oferecer resultados equivalentes aos da racionalidade. Alm disso, a experincia constitutiva pois se o homem no um imprio em um imprio, se so as mesmas leis da Natureza que se aplicam fsica e histria (relaes materiais), linguagem (relaes simblicas), s paixes (relaes imaginativas), muitas dessas estruturas e relaes so conhecidas pela experincia outras sero deduzidas e confirmadas por ela. Enfim, a experincia indicativa orienta o pensamento, mostra o itinerrio a seguir. Do ponto de vista da modalidade, a experincia seleciona: ela compreende o comum imerso na multiplicidade da percepo, auxilia a distinguir, no diverso, o que constante. Por outro lado, a experincia mostra que assim rejeita a controvrsia dos argumentos, mostra o que impossvel. Ela tambm mostra como se pode liberar uma via para o conhecimento verdadeiro, e bloquear o que o impede, por neutralizar a tendncia prxima do delrio que caracteriza as imaginaes (sensaes, percepes confusas, memria). A experincia instrui: ela no engana, pois sempre real, e falsa a interpretao que lhe dada (como na idia ilusria da dominao da alma sobre o corpo). O que no se d sem paradoxos, pois a experincia opaca: tudo est a, mas no uso. Como Spinoza costumava notar, h coisas que ningum ignora, mas a maior parte ignora a si prprio. O que esse paradoxo indica que a maior parte se baseia na experincia para sustentar interpretaes falsas e, sobretudo, no aplicam a si prprios o que vem nos outros. As condies da experincia fazem com que ela seja opaca s suas prprias lies. Podemos finalmente indagar se a pedagogia afeta os espritos com o desejo do saber ou com o temor de aprender. Se entre os gregos o pedagogo acompanhava as crianas at a porta da escola, mas no entrava. a modernidade entronizou o pedagogo na escola, e resta saber se as crianas no ficaram do lado de fora (SCALA, 2003: 13). Muitos aspectos nocivos da educao formal residem em prticas funestas, em deveres inspidos e contraproducentes, voltados para o adestramento, nos quais aquele que aprende no participa da significao social dos hbitos que adquire (TEIXEIRA, 1959: 20). Dcadas de crtica sugeriram como contrapartida fazer com que a criana se associe experincia do comum como conquista de um modo de agir comum. E que ela amplie essa experimentao por um processo de reconstruo imaginativa, um aprendizado que leve em conta a relao entre a criana o meio no qual essa experincia conduzida o que podemos chamar de individuao cognitiva. Pois como pensar uma experincia isolada das condies nas quais ela se d? Como supor que a natureza, meio no qual procede a experincia, seria exterior prpria experincia? E se compreendermos a experincia como uma fase

valores sejam extrados da vida comum e que deixem espao, na vida comum, para chegar a eles. Alm disso, os valores da vida comum no podem ser julgados luz de outra coisa que eles prprios mas, justamente, devem produzir esta outra coisa (MOREAU, 1994: 21-63).

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como forma de interao no qual os dois elementos que compem a experincia se modificam? Supor de um lado a natureza como conjunto de fenmenos e, de outro lado, aquele que experimenta desconhecer que a condio para que uma experincia ocorra justamente a mistura entre ambos um encontro e a contnua mudana das condies nas quais uma experincia possvel. nesse sentido que a experincia pode ser cognitiva, isto , que podemos aprender com a experincia, refletir, acumular e mudar. Alm disso, em vez de imaginar o jovem estudante como sujeito interino, trata-se de compreender que educao vida, no preparao para vida (TEIXEIRA, 1959: 31). E se, de fato, a pretenso pedaggica a constituio de homens livres, primeiro preciso no transformar a moralidade em polcia interior do esprito (ZOURABICHVILI, 2002: 167), alm de compreender que a recompensa da experincia do aprendizado imanente algo que precisamos aprender e aprender que no se ensina, mas se experimenta.

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Para Gilbert Simondon (1924-1989), o indivduo um devir e no um estado, um processo e no um dado, uma relao e no um termo. A individuao no a individualizao, ela a formao do individuo, sempre inacabada, sempre ligada a outros indivduos, sempre social nesse sentido, a individualizao uma desindividuao. Pois, de um ponto de vista antropolgico ela tripla: psquica (eu), coletiva (ns) e tcnica o meio que religa o eu ao ns, meio concreto e efetivo, sustentado por tcnicas de memria: a mediao mnemotcnica da imprensa que permite herdar um passado no vivido pelo individuo, e que sobredetermina as condies da individuao e reconfigura os vnculos entre ele e os outros. Simondon prope um exame crtico dos dois modos habituais de pensar o problema: o atomismo, no qual os indivduos so constitudos por tomos, por elementos primeiros e simples que se compem; e a hilemorfismo (tecnolgico ou vital), no qual os indivduos so constitudos a partir da unio de uma matria (hyl) e de uma forma (morph). Para os primeiros, os indivduos resultam dos encontros ao acaso dos tomos. Os segundos concedem o privilgio matria ou forma como originrias e anteriores ao indivduo. Em ambos os casos, a operao de individuao permanece obscura, sem determinao concreta da ontognese. Nesses dois modos de pensar h a suposio de um princpio de individuao anterior prpria individuao; e que a compreenso da individuao depende do conhecimento do indivduo constitudo, finalizado que seria o dado inicial e no o termo do processo ( a ontognese invertida). Evidente subrepo, que pressupe o que preciso investigar e enfatiza o indivduo formado em detrimento da realidade do individuado como processo de composio. Simondon considera primeiro a operao da individuao como instncia gentica a partir da qual o indivduo chega a existir, e da qual ele manifesta, em seus caracteres, o desenvolvimento, o regime e as modalidades e que mesmo aps a individuao no existe isoladamente, pois a individuao no esgota os potenciais da realidade pr-individual, alm de envolver a polaridade individuo-meio. Em vez de paradigma, o indivduo constitudo aparecer como uma realidade relativa, uma fase do ser (nos sentidos fsicos de estrutura, organizao interna e perodo, durao), que supe uma realidade pr-individual um sistema nem instvel, nem estvel, mas metaestvel, isto , em equilbrio dinmico, contendo potenciais em devir, diferentemente do equilbrio estvel no qual os potenciais esto esgotados. Com tanto mais razo isso se aplica aos seres vivos, nos quais a individuao no dada de uma s vez (como na ordem inorgnica). No vivo, a individuao se dobra e desdobra em uma operao contnua: o vivo no apenas o resultado de uma individuao, mas teatro de individuao, por manter-se em uma metaestabilidade contnua que condio da prpria vida. O vivo resolve continuamente problemas, no somente se adaptando (isto , modificando e ajustando sua relao com o meio, como uma mquina poderia fazer), mas modificando-se, inventando estruturas internas novas, introduzindo-se em novas problemticas vitais. Assim, o indivduo vivo , simultaneamente, sistema de individuao, sistema individuante, sistema individuando-se (SIMONDON, 1964-1995: Introduo).

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