A Alquimia Do Amor - Nicolas Sparks

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NICHOLAS SPARKS A ALQUIMIA DO AMOR Tradução de Saul Barata EDITORIAL PRESENÇA

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livro Nicolas Sparks Alquimia

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NICHOLAS SPARKS

A ALQUIMIA DO AMOR

Traduo de Saul Barata

EDITORIAL

PRESENA

FICHA TCNICA

Ttulo original: The Wedding

Autor: Nicholas Sparks

Copyright 2003 by Nicholas Sparks

Traduo Editorial Presena, Lisboa, 2003

Traduo: Saul Barata

Capa: Ana Espadinha

Fotocomposio, impresso e acabamento: Multitipo - Artes Grficas, Lda.

l.a edio, Lisboa, Outubro, 2003

2.a edio, Lisboa, Outubro, 2003

3.a edio, Lisboa, Outubro, 2003

4. edio, Lisboa, Novembro, 2003

5.a edio, Lisboa, Dezembro, 2003 .

6.a edio, Lisboa, Dezembro, 2003

7.a edio, Lisboa, Dezembro, 2003

Depsito legal n. 204 542/03

Reservados todos os direitos para Portugal EDITORIAL PRESENA Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo

2745-578 BARCARENA Email: [email protected] Internet: http://www.presenca.pt

Dedicado a Cathy,

que fez de mim o mais feliz dos homens quando aceitou ser minha mulher.

AGRADECIMENTOS

Mostrar-me agradecido sempre interessante, E uma coisa que me agrada fazer. Como comeo por admitir no ser poeta, Vo perdoar-me a ausncia de rimas.

Primeiro, gostaria de agradecer aos meus filhos, Pois amo-os, a todos e a cada um deles em particular: Miles, Ryan, Landon, Lexie e Savannah so fantsticos E fazem da minha vida uma sucesso de dias felizes.

Theresa est sempre a ajudar-me, Jamie nunca se escusa. Tenho a sorte de trabalhar com eles E espero que o possa fazer sempre.

E agradeo Denise, que fez filmes sobre os meus livros, E a Richard e a Howie, que negociaram as condies Para Scotty fazer os contratos. So todos meus amigos, e serei sempre amigo deles.

Estou grato ao Larry, que o chefe e um homem fantstico,

E Maureen, que espertssima,

E a Emi, Jennifer e Edna - as profissionais.

Que jeito eles tm para vender livros!

E tambm h outros, que fazem dos meus dias Uma grande e maravilhosa aventura. Por isso, obrigado aos meus amigos e minha famlia, Por me darem esta vida to rica.

Jti

F

PRLOGO

Por vezes, ponho-me a pensar: ser possvel que um homem venha a sofrer uma transformao radical? Ou ser que o carcter e os hbitos encerram as nossas vidas dentro de fronteiras inamovveis?

Estamos em meados de Outubro de 2003 e eu a ponderar estas questes, enquanto observo uma borboleta a arremeter com fora contra a lmpada que ilumina o alpendre. Estou c fora, sozinho, pois Jane, a minha mulher, est a dormir no quarto do primeiro andar e nem notou que eu me esgueirei para fora da cama. tarde, j passa da meia-noite, e o tempo est fresco, como a anunciar a chegada prematura do Inverno. Visto um roupo de algodo grosso e, embora pensasse que ele seria suficiente para me manter aquecido, noto que as mos me tremem de frio e tenho de as meter nos bolsos.

Por cima de mim, as estrelas so pontos de prata colocados numa tela negra. Distingo Orion e as Pleiades, a Ursa Maior e a Coroa Boreal, e ponho-me a pensar que me deveria sentir inspirado pela ideia de que, ao olhar as estrelas, estou tambm a olhar o passado. As constelaes brilham graas luz que foi emitida h milhares de milhes de anos e fico espera de que algo venha ter comigo, as palavras que os poetas usam para iluminar os mistrios da vida. Mas nada acontece.

O que nem me surpreende. Nunca me considerei um sentimental e, se perguntarem minha mulher, tenho a certeza de que ela concordar. No me deixo apanhar por enredos de filmes ou de peas teatrais, nunca fui um sonhador e, se aspirasse mestria num qualquer domnio, escolheria a que fosse definida pelas normas dos

11Servios e Contribuies e Impostos e constante da lei. Na sua maior parte, os meus dias, e anos, como advogado especializado em propriedades, foram passados em companhia de pessoas que se preparam para a sua prpria morte, o que, suponho, levar muita gente a pensar que a minha vida teve, por isso, menos significado. Porm, mesmo que isso fosse verdade, que poderia eu fazer? No procuro arranjar desculpas, nunca o fiz, e l para o fim da minha histria espero que o leitor veja com uma certa indulgncia esta deficincia do meu carcter.

No me interpretem mal, por favor. Posso no ser um sentimental, mas no sou completamente destitudo de emoes e h momentos em que sou assaltado por um profundo sentimento de curiosidade. Quase sempre por coisas simples que considero estranhamente comoventes: estar entre as sequoias gigantes da Serra Nevada, ou ver as ondas do oceano a entrechocarem-se defronte do Cabo Hatteras, lanando espuma salgada para o cu. Na semana passada, senti um aperto na garganta ao ver um rapazinho pegar na mo do pai, quando ambos caminhavam pelo passeio. Mas h tambm outras coisas. Por vezes, ao olhar um cu de nuvens arrastadas pelo vento, perco a noo do tempo, o que tambm acontece quando ouo o ribombar do trovo, que me leva sempre para junto da janela para observar os relmpagos. Quando o claro seguinte ilumina o cu, sinto muitas vezes que me falta qualquer coisa, embora no consiga explicar aquilo de que na verdade sinto falta.

Chamo-me Wilson Lewis e esta a histria de um casamento. tambm a histria da minha vida de casado, mas, apesar dos trinta anos que eu e Jane j passmos juntos, acho que tenho de comear por admitir que h quem saiba mais acerca do casamento do que eu. Se algum homem precisar de um conselho, no sou eu a pessoa indicada para o dar. Nos anos que j levo de casado, tenho sido egosta, teimoso e ignorante como um peixinho dourado, por mais difcil que me seja admiti-lo. No entanto, olhando para trs, creio que fiz uma coisa acertada: amei a minha mulher durante todos os anos que passmos juntos. Embora possa haver quem no veja nada de especial nesta situao, devo dizer-vos que houve um tempo em que tive a certeza de que a minha mulher no sentia o mesmo em relao a mim.

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Como sabido, todos os casamentos tm altos e baixos, o que considero consequncias normais da deciso que os casais tomam de ficarem juntos para sempre. Na nossa vida em comum, eu e a minha mulher tivemos de suportar a perda dos meus pais e da me dela alm da doena do meu sogro. Mudmo-nos quatro vezes e, embora profissionalmente bem-sucedido, tive de fazer muitos sacrifcios para manter a minha posio. Temos trs filhos e conquanto nenhum de ns trocasse a experincia de ter filhos por todas as riquezas de Tutankhamen, as noites sem dormir e as idas frequentes ao hospital quando eles eram pequenos deixaram-nos, a ambos, exaustos e por vezes devastados. No ser necessrio dizer que os anos da adolescncia deles constituram uma experincia que prefiro no repetir.

Tudo acontecimentos que provocam um certo nvel de cansao e, para duas pessoas que vivem juntas, o cansao flui nos dois sentidos. Isso, acabei por concluir, simultaneamente a bno e a maldio do casamento. E uma bno por proporcionar um escape para as tenses da vida diria, uma maldio porque quem serve de escape algum com quem nos preocupamos profundamente.

O que que me leva a falar disto? E a necessidade de sublinhar que passmos por todas as vicissitudes sem que alguma vez duvidasse dos meus sentimentos em relao minha mulher. certo que houve dias em que evitmos os olhos do outro enquanto tomvamos o pequeno-almoo, mas, mesmo assim, nunca duvidei da nossa relao. No estaria a ser honesto se dissesse que nunca me interroguei sobre o que teria acontecido se tivesse casado com outra pessoa; porm, em todos os anos que levmos de vida em comum, nunca lamentei a deciso de a ter escolhido e de ela se ter decidido por mim. Pensei que tnhamos uma relao estvel para, afinal, perceber que estava enganado. Apercebi-me disso h pouco mais de um ano - h catorze meses, para ser mais preciso - e, mais do que tudo, foi essa descoberta que veio a desencadear todos os problemas subsequentes.

Querem saber o que aconteceu?

J da a minha idade, poder-se-ia pensar num incidente inspirado por uma crise da meia-idade. Talvez um desejo sbito de mudana ou uma partida provocada pelo corao. Contudo, no se

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tratou de nada disso. No, na grande ordem das coisas, o meu foi um pequeno pecado, um incidente que em circunstncias diferentes poderia dar assunto para uma boa anedota quando mais tarde fosse recordado. Mas magoei-a, ambos fomos magoados, e nesse ponto que devo comear a minha histria.

Estvamos a 23 de Agosto de 2002 e fiz o seguinte: levantei-me, tomei o pequeno-almoo e, como era habitual, passei o dia no escritrio. Os eventos do meu dia de trabalho no influram minimamente no que veio a seguir; para ser franco, no consigo recordar que se tivesse passado algo de extraordinrio. Cheguei a casa hora do costume e fiquei agradavelmente surpreendido por encontrar Jane na cozinha, a preparar o meu prato preferido. Quando se voltou para me dar as boas-vindas, pareceu-me que o olhar dela me percorreu de alto a baixo, como se quisesse assegurar-se de que no tinha mais nada nas mos, para alm da pasta. Eu tinha as mos vazias. Uma hora mais tarde, jantmos juntos; acabado o jantar, enquanto Jane estava a levantar a mesa, abri a pasta para tirar uns documentos que pretendia rever. Sentado secretria, estava a analisar a primeira pgina, quando reparei que Jane estava porta da sala, a limpar as mos com um pano da loua, com um ar de desapontamento que, ao longo dos anos, eu aprendera a reconhecer, mesmo que no conseguisse compreend-lo totalmente.

- No tens nada para me dizer? - perguntou, instantes depois.

Hesitei, ao perceber que a pergunta no era to inocente quanto parecia. Pensei que estivesse a referir-se a um novo penteado, mas depois de olhar com cuidado no notei qualquer diferena. Ao longo dos anos, habituara-me a reparar nesse tipo de coisas. No entanto, ao olharmos um para o outro, continuava a no perceber, embora soubesse que tinha de dizer qualquer coisa.

- Como que te correu o dia? - acabei por perguntar.

Fez um ligeiro sorriso contrafeito e virou-me as costas.

claro que agora sei o que ela pretendia, mas, na altura, limitei-me a encolher os ombros e retomei o que estava a fazer, pensando estar perante um exemplo mais da misteriosa maneira de ser feminina.

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Mais tarde, deslizei para dentro da cama e estava a ajeitar-me confortavelmente quando reparei que Jane fez uma inspirao rpida e profunda. Estava deitada de lado e, quando notei que os ombros lhe tremiam, senti um choque sbito, percebi que ela estava a chorar. Confuso, fiquei espera de que me explicasse o motivo do choro; porm, em vez disso, fez mais umas inspiraes profundas, como se tentasse respirar por entre os soluos. Cada vez mais assustado, senti o aperto instintivo da garganta, tentei no pensar que tivesse acontecido alguma coisa ao pai dela ou aos midos, ou que o mdico lhe tivesse dado uma notcia terrvel. Tentei no pensar que poderia estar perante um problema que eu no tivesse capacidade para resolver e, julgando que pudesse confort-la, fiz-lhe uma festa nas costas.

- O que que se passa? - perguntei.

Levou algum tempo a responder. Ouvia-a suspirar ao puxar a roupa at cobrir os ombros.

- Feliz aniversrio - murmurou.

Vinte e nove anos, recordava-me agora, demasiado tarde, ao olhar para o canto do quarto, onde estavam as prendas que ela tinha comprado para mim, devidamente embrulhadas e encostadas cmoda.

Timha-me esquecido, pura e simplesmente.no me desculpei, nem conseguiria, mesmo que quisesse. Que mais poderia invocar? Pedi perdo, e voltei a pedir na manh seguinte, mais tarde, ao sero quando abriu o perfume que eu seleccionara com todo o cuidado e a ajuda de uma jovem na loja. Jane sorriu, agradeceu e presenteou-me com uma palmadinha numa perna. Sentado ao lado dela no sof, senti que a amava tanto como no dia em que nos casmos. No entanto, ao olhar para ela notei, talvez pela primeira vez, a maneira distrada como olhava para o lado e aquela inclinao inequvoca de tristeza da cabea. De repente, senti-me assaltado pela dvida de que ela ainda me amasse.

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CAPTULO UM

Pensar que no se amado pela prpria esposa uma ideia terrvel e, naquela noite, depois de Jane ter levado o perfume para o quarto, deixei-me ficar no sof durante horas, a magicar como que uma situao daquelas podia ter acontecido. A princpio, quis crer que Jane estava apenas a reagir emocionalmente e que eu estava a dar ao incidente uma importncia que ele no merecia. Contudo, quanto mais pensava no caso, mais sentia no s o desgosto com que ela julgava a distraco do marido, mas tambm os sinais de uma melancolia que j vinha de trs, como se o meu lapso mais no fosse do que o golpe final numa longa srie de erros e descuidos.

Estaria Jane desapontada com o casamento? Embora quisesse recusar-me a admitir a ideia, a expresso dela parecia dizer isso mesmo, pelo que dei comigo a tentar imaginar quais seriam as consequncias para o nosso futuro a dois. Estaria Jane a ponderar se devia continuar ou no a viver comigo? Para comear, estaria contente com a deciso que tomara ao casar comigo? Perguntas assustadoras, devo diz-lo, ainda mais difceis de considerar por quem sempre partira do princpio de que Jane estava to contente por ser minha mulher quanto eu estava satisfeito por ser seu marido.

O que seria, pensava eu, que nos tinha levado a alimentar sentimentos to diferentes em relao ao outro?

Parece que tenho de comear por dizer que muitas pessoas atestariam que levvamos uma vida bastante normal. Como mui-

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tos homens, eu tinha a obrigao de sustentar a famlia, e a minha vida girava muito volta da carreira. Passara os ltimos trinta anos a trabalhar para uma sociedade de advogados, a firma Ambry, Saxon & Tundle, de New Bern, Carolina do Norte, e o meu rendimento, sem ser extravagante, era suficiente para nos situar na classe mdia alta. Nos fins-de-semana gosto de jogar golfe e de jardinar, prefiro msica clssica e leio o jornal todas as manhs. Embora Jane tivesse sido professora do primeiro ciclo acabou por passar a maior parte da nossa vida de casados a criar os trs filhos. Dirigia a casa e a nossa vida social, e os bens de que mais se orgulha so os lbuns de fotografias, cuidadosamente conservados, que contam a histria visual das nossas vidas. A nossa casa, construda em tijolo, dispe de uma cerca feita com estacas e de sistema automtico de rega, temos dois carros e somos scios do Clube de Rotrios e da Cmara de Comrcio. No decurso da nossa vida de casados juntmos poupanas para quando chegar a reforma, construmos um conjunto de balouos no quintal, que agora no utilizado, assistimos a dezenas de conferncias entre professores e encarregados de educao, votmos com regularidade e demos o nosso contributo financeiro para a Igreja Episcopal, todos os domingos, sem falta. Com 56 anos de idade, sou trs anos mais velho que a minha mulher.

Apesar do que sinto por Jane, por vezes dou comigo a pensar que no somos um par talhado para a vida em comum. Somos diferentes em quase tudo e, por muito que os opostos se atraiam, sempre me convenci de que, no dia do casamento, fora eu quem fizera a melhor escolha. Jane , ao cabo e ao resto, o tipo de pessoa que eu sempre desejei ser. Enquanto eu me oriento pelo estoicismo e pela lgica, Jane extrovertida e amvel, to simptica que se torna benquista por toda a gente. Ri com facilidade e tem um grupo enorme de amigos. Com o passar dos anos, acabei por perceber que, na sua maioria, os meus amigos so os maridos das amigas da minha mulher, mas quero crer que isso uma caracterstica comum dos casais dos nossos dias. Sou um homem de sorte, pois, segundo parece, Jane escolhe as amigas a pensar em mim; tenho de estar-lhe agradecido porque em qualquer jantar ou festa h sempre algum com quem eu posso conversar. Muitas vezes penso que

Se ela no tivesse entrado na minha vida, eu acabaria por tornar-me um recluso, como um monge.E h mais: agrada-me a facilidade infantil com que Jane expressa as suas emoes. Chora quando est triste, ri-se quando est alegre; e nada lhe agrada mais do que ser surpreendida por um gesto bonito. Nesses momentos revela-se possuidora de uma inocncia que no tem idade e, a despeito de uma surpresa ser, por definio, algo inesperado, a recordao de uma Surpresa pode, muitos anos depois, despertar-lhe a mesma excitao da primeira vez. s vezes, quando est absorta e lhe pergunto em que que est a pensar, pode comear, de repente, a falar em tom apressado de qualquer evento que h muito esqueci. Uma caracterstica que, devo confessar, nunca deixou de me surpreender.Mesmo tendo sido abenoada com o mais terno dos coraes, em muitas coisas Jane mais forte do que eu. As suas crenas e valores aliceram-se, como sucede com muitas mulheres do Sul, em Deus e na famlia; v o mundo por um prisma que s tem preto e branco, certo e errado. Com ela, as decises difceis so tomadas por instinto - e so quase sempre acertadas -, enquanto eu, pelo contrrio, me embrenho na ponderao de opes sem fim e muitas vezes decido mal. E, ao contrrio do que acontece comigo, raro que a minha mulher se sinta constrangida. Esta ausncia de preocupao com aquilo que os outros pensam dela exige uma confiana que sempre considerei ilusria e, acima de tudo, um dos traos que mais lhe invejo.

Suponho que algumas das diferenas entre ns derivam da maneira como fomos criados. Jane cresceu numa cidade pequena, com os trs irmos e os pais que a adoravam, mas eu cresci numa casa em plena cidade de Washington, como filho nico de dois advogados que trabalhavam para o Governo e os meus pais raramente chegavam a casa antes das sete horas da tarde. Uma situao que me obrigou a passar sozinho a maior parte do meu tempo livre e, ainda hoje, me sinto mais vontade na privacidade confortvel do meu gabinete.

Como j disse, temos trs filhos e, mesmo sentindo por eles um amor profundo, no posso deixar de dizer que eles so, em grande

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parte, produto da educao da me. Ela trouxe-os ao mundo e criou-os, com a me que se sentem mais vontade. Embora por vezes lamente no ter passado com eles tanto tempo quanto devia sinto o conforto de saber que Jane compensou largamente as minhas ausncias. Segundo parece, a despeito das minhas falhas, os nossos filhos esto bem. Esto criados e tm vida prpria, mas julgamo-nos felizes por apenas um deles ter decidido ir viver para outro estado. As nossas duas filhas continuam a visitar-nos com frequncia e a me tem o cuidado de manter as comidas de que elas gostam no frigorfico, para o caso de sentirem fome, o que parece nunca acontecer. Quando se juntam, ficam horas a conversar com Jane.

Anna a mais velha, tem 27 anos. Com cabelo preto e olhos escuros, o aspecto reflecte a personalidade que desenvolveu durante a adolescncia. Era uma rapariga triste que passou os anos da juventude fechada no quarto, a ouvir msica lgubre e a escrever um dirio. Nessa altura portava-se como uma estranha em relao a mim, podia passar dias sem dizer uma nica palavra quando eu estava presente, deixando-me sem perceber o que eu teria feito para provocar aquelas atitudes. Tudo o que eu dizia parecia provocar apenas encolheres de ombros e o abanar da cabea da minha filha e, se lhe perguntasse se havia alguma coisa que a preocupasse, fitava-me como se a pergunta fosse incompreensvel. A minha mulher no parecia ver nada de anormal naquilo que considerava apenas uma fase tpica das adolescentes, mas o facto que Anna ainda falava com a me. Muitas vezes, ao passar junto do quarto da Anna ouvia-a a falar baixinho com a me, mas se me sentisse do outro lado da porta, a conversa sussurrada terminava de imediato. Mais tarde, se perguntasse Jane o que tinham estado a discutir entre elas, a minha mulher encolhia os ombros e fazia um gesto de mo, como a dizer-me que no ligasse, como se o objectivo de ambas fosse manter-me ignorante acerca do que se passava.

No entanto, por ser a primognita, Anna sempre foi a minha preferida. No uma confisso que eu faa a qualquer pessoa, mas acho que ela sabe o que eu sinto e ultimamente tenho estado a chegar concluso de que, mesmo durante os seus anos de silncio,

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gostava mais de mim do que eu julgava. Ainda me recordo de no meu canto, a trabalhar em procuraes e testamentos, e ela se esgueirar pela porta. Andava pela sala,examinava as estantes e mexia em diversos livros, mas, logo que eu lhe dizia qualquer coisa, voltava a sair to silenciosamente como entrara. Com o tempo, habituei-me a no dizer nada e por vezes ela cirandava pelo escritrio durante uma hora a ver-me escrever nos blocos amarelos de modelo oficial. Se olhasse para ela, retribuia-me com um sorriso de cumplicidade de apreciao daquele nosso jogo. No percebo melhor a situao do que percebia na altura em que isto acontecia,mas aquelas so as imagens que tenho mais bem guardadas na memria. .

De momento, Anna trabalha para o Raleigh News and Observer, mas penso que alimenta o sonho de ser romancista. Na universidade formou-se em escrita criativa, escrevendo histrias to tristes como a sua personalidade. Recordo-me de ter lido uma, em que uma jovem se tornava prostituta para poder tratar o pai doente, um homem que chegara a violent-la. Quando pousei o mao de folhas, fiquei a magicar o que se esperaria que eu fizesse com uma coisa daquelas.

Tambm est loucamente apaixonada. Anna sempre foi cuidadosa e determinada nas suas escolhas, era muito difcil de contentar no que respeitava aos namoros e, graas a Deus, Keith sempre me pareceu um homem capaz de a tratar bem. Pretende ser ortopedista e comporta-se com uma confiana s possvel em pessoas que no tiveram de enfrentar muitos revezes na vida. Soube, atravs da Jane, que da primeira vez que saram juntos, Keith levou Anna para uma praia perto de Fort Macon, onde se entretiveram a lanar papagaios. Uns dias mais tarde, quando Anna o trouxe a nossa casa, Keith apresentou-se de casaco desportivo, banhado de fresco e a cheirar ligeiramente a gua-de-colnia. Quando apertamos as mos, olhou-me bem de frente e deixou-me impressionado, dizendo:

- Prazer em conhec-lo, Mr. Lewis.

Joseph, o nosso segundo filho, um ano mais novo do que Ana. Sempre me tratou por Pop, embora ningum mais usasse esse termo na famlia; tambm no temos muitas coisas em co-

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mum. E mais alto e mais magro do que eu, usa calas de ganga na maioria dos compromissos sociais e quando nos visita, no Dia de Aco de Graas ou no Natal, s come vegetais. Quando estava a crescer, achava que era um mido calmo, mas a sua reserva, tal como a da Anna, parecia especialmente dirigida contra mim. Por vezes falava-se do seu sentido de humor, embora, para ser franco eu raramente desse por ele. Sempre que estvamos juntos, dava-me a impresso de que ele tentava avaliar-me.

Em criana, relacionava-se facilmente com as pessoas, como a me. Preocupava-se com os outros, a ponto de roer as unhas por eles, pelo que desde os cinco anos de idade nunca lhe vi as unhas crescidas. Nem vale a pena falar do assunto: mas quando sugeri que estudasse Gesto ou Economia, escolheu Sociologia. Trabalha agora num decadente abrigo para mulheres, em Nova Iorque, embora no nos fornea mais pormenores sobre aquilo que faz. Sei que ele analisa as escolhas que eu fiz na vida, tal como eu analiso as dele e, a despeito das nossas diferenas, com Joseph que tenho as conversas que sempre desejei vir a ter com os meus filhos quando os punha ao colo em crianas. E extremamente inteligente, quase obteve a nota mxima no exame de admisso e interessa-se por um largo leque de assuntos, desde a histria do Mdio Oriente s aplicaes tericas da geometria fractal. Tambm honesto - dolorosamente honesto, por vezes - e nem preciso de dizer que estes aspectos da sua personalidade me deixam em desvantagem quando pretendo defender ideias contrrias s dele. Embora por vezes me sinta frustrado pela sua teimosia, nesses momentos que sinto mais orgulho por ele ser meu filho.

Leslie, a menina da famlia, que pretende ser veterinria, est agora a estudar Biologia e Fisiologia em Wake Forest. Em vez de vir passar o Vero a casa, como faz a maioria dos estudantes, tem aulas suplementares para poder licenciar-se mais depressa e passa as tardes a trabalhar num lugar chamado Animal Farm. De todos os nossos filhos, ela a mais gregria, com um riso que soa exactamente como o da me. Como a Anna, gostava de me visitar no meu covil, embora se mostrasse mais feliz quando eu parava de traba-

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lhar para lhe dar ateno. Em pequena, gostava de se sentar ao meu colo e de me puxar as orelhas; quando cresceu, gostava de entrar e sair, aproveitando para contar anedotas. Tenho as estantes cheias de presentes que me deu quando estava a crescer: moldes de gesso das suas mos, um colar feito de macarres. Era a mais fcil de ser amada. sempre frente para receber abraos e beijos dos pais, e

tambm sentia grande prazer em ficar enroscada no sof a ver filmes romnticos. No fiquei surpreendido quando, faz agora trs anos, foi escolhida rainha na festa de reencontro dos finalistas da escola secundria.

Tambm simptica. Todos os colegas de turma eram convidados para as suas festas de aniversrio, pois receava que algum se sentisse magoado e, quando tinha nove anos, passou uma tarde inteira na praia, a parar junto de todas as toalhas estendidas, para tentar descobrir de quem era um relgio que achara no mar e queria devolver ao dono. Foi, de todos os meus filhos, aquela que me causou menos preocupaes e, sempre que ela est em casa, largo tudo para passar o mximo de tempo com ela. A energia da Leslie contagiosa. Quando estou com ela, maravilha-me pensar que ela uma bno.

Agora que todos os filhos saram, a casa est diferente. Em vez da msica alta, temos apenas silncio, e na despensa, onde costumavam empilhar-se oito tipos diferentes de cereais aucarados, h agora apenas um que promete maior quantidade de fibras. A moblia dos quartos onde os nossos filhos dormiam no mudou mas, por causa dos cartazes e quadros que foram retirados - bem como todos os vestgios da personalidade de cada um - no h nada que diferencie um quarto daquele que vem a seguir. O que agora parece dominar a casa a prpria sensao de vazio; se a nossa era a casa perfeita para uma famlia de cinco pessoas, de sbito, passei a ver nela uma espcie de caverna que me recorda como as coisas tm de ser. Recordo-me de ter pensado que esta transformao do lar tivesse algo a ver com a maneira como Jane se sentia.

No entanto, qualquer que fosse o motivo, no posso negar que estvamos a afastar-nos um do outro e, quanto mais pensava no

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caso, mais me apercebia de como o fosso entre ns se tinha alargado. Tnhamos comeado por ser um casal e tivemos de nos transformar em pais - algo que sempre considerei normal e inevitvel .

Mas, ao fim de vinte e nove anos, foi como se voltssemos a ser estranhos um para o outro. S o hbito parecia manter-nos juntos. As nossas vidas tinham pouco em comum; levantvamo-nos a horas diferentes, passvamos os dias em lugares diversos, tnhamos os nossos hbitos pessoais para passar o sero. Sabia pouco acerca da maneira como ela passava os dias e admito que tambm no falava das minhas actividades. No consigo lembrar-me de quando foi a ltima vez em que a Jane e eu falmos de qualquer assunto fora do habitual.

Porm, duas semanas depois do aniversrio esquecido, Jane e eu tivemos de fazer isso mesmo.

- Wilson - comeou Jane -, temos de conversar.

Olhei para ela. Em cima da mesa, colocada entre ns, estava uma garrafa de vinho, a refeio estava quase no fim.

- Sobre o qu?

- Estive a pensar em ir a Nova Iorque, para passar algum tempo com Joseph.

- Ele no vem c durante as frias?

- Ainda faltam uns dois meses para as frias. E como ele no veio a casa neste Vero, pensei que seria interessante ser eu a visit-lo, at por ser diferente.

No fundo, pensei que at poderia ser bom para ns, como casal, se nos afastssemos de casa durante alguns dias. Talvez a Jane pensasse o mesmo ao fazer a sugesto e, a sorrir, peguei no meu copo de vinho. - Acho uma boa ideia - concordei. - No voltmos a Nova Iorque desde que nos mudmos para aqui.

Jane fez um sorriso fugidio e baixou os olhos para o prato.

- H mais uma coisa.

- O que ?

- Bem, acontece que tens bastante que fazer e sei como difcil afastares-te do escritrio.

- Acho que posso preparar a minha agenda de forma a poder ficar fora uns dias - respondi, j a folhear mentalmente o calendrio que conservo em cima da secretria. No seria fcil, mas havia de conseguir.

- Quando que queres ir?

- Bom, o problema esse... - respondeu Jane.

- Qual problema?

- Wilson, deixa-me acabar, por favor - disse, a soltar um profundo suspiro, sem tentar esconder a tristeza com que falava.

- O que eu estava a tentar dizer-te que gostaria de ir sozinha fazer a visita ao Joseph.

Por momentos, fiquei sem saber o que dizer.

- Ficaste aborrecido, no ficaste?

- No - respondi rapidamente. - o nosso filho. Como podia ficar aborrecido com isso?

A tentar mostrar-me calmo, cortei mais um pedao de carne.

- Ento, quando que pensas seguir para l? - perguntei.

- Na semana que vem - respondeu Jane. - Na quinta-feira.

- Na quinta-feira?

- J comprei o bilhete.

Mesmo sem ter acabado a refeio, levantou-se e dirigiu-se para a cozinha. Pela maneira como evitou o meu olhar, suspeitei de que quereria dizer-me mais qualquer coisa, s no tinha a certeza de qual seria a melhor maneira de o fazer. Passado um momento, fiquei sozinho mesa. Se me voltasse, podia ver o rosto dela de perfil acima do lava-loua.

Falei alto, a tentar mostrar-me descontrado. - Acho que poder ser interessante para ti. E sei que Joseph tambm vai ficar satisfeito. Poders at ver algum espectculo enquanto l estiveres.

Pode ser - ouvia-a dizer. - Acho que tudo depende da agenda dele.

Ao ouvir a torneira a correr, levantei-me da mesa e levei o meu prato para o lava-loua. Jane no disse nada quando me aproximei.

- Vais passar um fm-de-semana maravilhoso. Pegou no meu prato e comeou a lav-lo.

- Ah, sobre isso... - comeou.

- O que ? acrescentei.

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- Estava a pensar em ficar l para alm do fim-de-semana. Ao ouvir aquilo, senti os ombros contrarem-se.

Quanto tempo que pensas ficar l? Ps o meu prato de lado.

- Umas semanas - respondeu.

Decerto no culpei a Jane pelo caminho que o nosso casamento parecia estar a levar. Pode dizer-se que me cabe a maior poro da responsabilidade, mesmo que ainda no tenha conseguido juntar todas as peas, saber quando e como as coisas aconteceram. Para comear, tenho de admitir que nunca fui a pessoa que a minha mulher gostaria que eu fosse, mesmo no princpio do nosso casamento. Sei, por exemplo, que gostaria que eu fosse mais romntico, que tivesse com ela um relacionamento como aquele que o pai dela tinha com a me. O pai dela era o gnero de homem para agarrar na mo da mulher nas horas que passavam juntos depois do jantar, ou para, sem razo aparente, lhe trazer um ramo de flores silvestres, que apanhava no caminho para casa. Mesmo em criana, Jane sentia-se encantada pelo eterno namoro vivido pelos pais. Ao longo dos anos fui ouvindo as conversas telefnicas dela para a irm, Kate, em que se mostrava admirada por eu considerar o romantismo um conceito difcil. No que no tentasse, mas parece que no consigo entender o que necessrio fazer para tocar o corao de outra pessoa. Beijos e abraos no eram gestos comuns na casa onde fui criado, pelo que mostrar as emoes sempre me provocou uma sensao de desconforto, especialmente na presena dos meus filhos. Uma vez conversei com o meu sogro sobre o assunto e ele sugeriu que eu escrevesse uma carta minha mulher. - Diz-lhe que a amas - recomendou - e apresenta razes especficas. Isto passou-se h doze anos. Recordo-me de tentar seguir o conselho, mas, com a mo perdida por cima do papel, no me pareceu que conseguisse encontrar as palavras adequadas. Acabei por pousar a caneta. Ao contrrio do pai da Jane, nunca me sinto vontade quando se trata de falar dos meus sentimentos. Sou uma pessoa estvel e pode-se confiar em mim sem reservas. Sem dvida que sou fiel.

Porm namorar, fazer a corte, para mim uma ideia to estranha como dar a luz. Por vezes ponho-me a pensar quantos homens pensaro exactamente como eu.

Liguei quando Jane estava em Nova Iorque e Joseph atendeu.

- Ol, Pop - saudou.

- Ol. Como que ests?

- ptimo - respondeu. Depois do que me pareceu uma eternidade, perguntou: - E tu?

Mudei o peso do corpo de um p para o outro. - Est tudo muito quieto por aqui, mas estou bem - respondi. Depois de uma pausa, inquiri: - E a visita da mam est a correr bem?

- Excelente. Mantenho-a sempre ocupada.

- A fazer compras e a visitar a cidade?

- Um pouco. O mais importante que temos falado de muitas coisas, tem sido interessante.

Hesitei. Bem gostaria de saber o que ele quereria dizer, mas Joseph no viu motivos para me explicar. - Oh! - foi s o que consegui dizer, fazendo o possvel por manter a voz calma. - Ela est por a?

- Na verdade, no est. Foi a correr mercearia. Deve demorar-se poucos minutos, se quiseres voltar a telefonar.

- No, fica assim. Diz-lhe apenas que eu liguei. Vou estar por aqui toda a noite para o caso de ela querer falar comigo.

Eu digo-lhe - prometeu. Depois, passado um momento: Est, Pop? Quero fazer-te uma pergunta.

- Qual ?;

- mesmo verdade que te esqueceste do aniversrio do casamento?

Respirei fundo, antes de responder: - verdade, esqueci-me.

- Que aconteceu?

- No sei. - respondi. - Lembrei-me de que a data estava marcada, mas, quando chegou o dia, varreu-se-me da memria, no tenho desculpa.

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- Ela ficou magoada - disse Joseph.

- Eu sei.

Houve um silncio do outro lado do fio. - E conheces o motivo? - acabou por perguntar.

Mesmo sem responder directamente pergunta, julgo que sei a resposta.

Muito simplesmente, Jane no desejaria que acabssemos como os casais de idosos que por vezes encontrvamos a jantar fora, casais por quem quase sentamos piedade.

Os membros desses casais costumam ser, que isto fique bem claro, corteses um com o outro. O marido puxa a cadeira para a mulher e ele quem vai buscar os casacos, ao passo que a mulher pode sugerir um dos pratos especiais da casa. E, quando o empregado de mesa chega, provvel que acrescentem encomenda do outro os conhecimentos que foram adquirindo ao longo de toda uma vida: no pr sal nos ovos ou muita manteiga nas tostas, por exemplo.

Mas depois, feita a encomenda, no trocam mais uma palavra entre si.

Em vez disso, vo beberricando as suas bebidas e olham pela janela, esperando em silncio que a comida chegue. Quando os pratos chegam, podero falar com o empregado durante uns segundos - para pedirem mais gua por exemplo - mas logo que ele se vai embora no tardam a regressar ao seu mundo de silncio. Durante a refeio comportam-se como

estranhos que, por acaso, se sentam mesma mesa, como quem est convencido de que o prazer mtuo da companhia exige demasiado esforo para o gozo que proporciona.

Talvez eu esteja a exagerar acerca das vidas destas pessoas, mas muitas vezes dou comigo a pensar no caminho que os casais percorreram at chegarem quela situao.

Contudo, enquanto a Jane estava em Nova Iorque, fui subitamente assaltado pela ideia de que tambm ns estvamos a caminhar na mesma direco.

Lembro-me de me sentir extremamente nervoso quando fui buscar a Jane ao aeroporto. Era uma sensao esquisita e senti-me aliviado ao notar o sorriso fugidio que ela fez, ao caminhar na minha direco. Quando se aproximou, peguei-lhe na mala.

- Como que foi a viagem? - inquiri.

- Foi boa. No percebo as razes que levam o Joseph a gostar de viver l. O movimento e o barulho nunca param. Eu no conseguia.

- Ento, ests satisfeita por regressares a casa?

- Claro que estou - respondeu. - Mas sinto-me cansada.

- Fao ideia. As viagens so sempre cansativas.

Por momentos, nenhum de ns disse mais nada. Passei a mala dela para a outra mo.

- Como que est o Joseph? - perguntei.

- Est bem. Acho que engordou um pouco desde a ltima vez em que estive l.

- Notaste mais alguma coisa interessante, para alm do que me disseste pelo telefone?

- No. Trabalha demasiado, mas no h mais nada a dizer. Notei uma ponta de tristeza na voz dela, uma tristeza que eu no conseguia entender l muito bem. Estava a pensar nisso quando vi um casal jovem com os braos volta um do outro, a abraarem-se como se no se vissem h muitos anos.

- Estou contente por voltares a casa - disse eu.

Virou-se para mim, fitou-me nos olhos e, lentamente, voltou-se para o carrossel das bagagens. Sei que est magoada. H um ano atrs, era este o estado das nossas relaes.

Gostaria de poder dizer-vos que as coisas melhoraram nas semanas que se seguiram viagem de Jane, mas tal no aconteceu. Em vez disso, a nossa vida continuou como at ali, continumos a viver as nossas vidas separadas, com um dia sem histria a seguir-se a outro. No se pode dizer que Jane estivesse zangada comigo, mas tambm em no parecia feliz, e, por mais que eu tentasse, no conseguia entender os sentimentos dela. Era como se, sem que nos tivssemos apercebido, um qualquer muro de indiferena tivesse sido erigido entre ns. No final do Outono, trs meses depois do

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aniversrio esquecido, estava to preocupado com a nossa relao que achei que tinha de ir falar com o pai de Jane.

Chama-se Noah Calhoun e, se o conhecessem, perceberiam o motivo que me levou a ir procur-lo naquele dia. Cerca de onze anos antes, no quadragsimo sexto aniversrio do seu casamento, ele e a mulher, Allie, tinham-se insralado no Creekside Extended Care Facility. Embora costumassem partilhar o leito, actualmente Noah dorme sozinho e no fiquei surpreendido ao verificar que no estava no quarto. Na maioria dos dias em que vou visit-lo, costumo encontr-lo sentado num banco, perto do lago, e lembrei-me de ir janela para ver se ele estava l.

Mesmo de longe, reconheci-o perfeitamente: os tufos brancos de cabelo ligeiramente levantados pela brisa, os ombros um pouco inclinados para a frente, o casaco de malha azul que, havia pouco tempo, Kate tricotara para ele. Tinha 87 anos, estava vivo, tinha os dedos encurvados pela artrite e a sade era precria. Trazia sempre consigo um frasquinho de comprimidos de nitroglicerina e sofria de cancro da prstata, mas os mdicos estavam mais preocupados com a sua sade mental. Uns anos antes, tinham-nos feito sentar, a mim e a Jane, num gabinete e olharam para ns com ar grave. Informaram-nos de que o Noah andava a sofrer de falhas de memria, que poderiam vir a agravar-se. Por mim, no tinha bem a certeza. Pensei que o conhecia melhor do que qualquer outra pessoa e certamente melhor do que os mdicos. Com excepo da Jane, era o mais querido dos meus amigos e, sempre que via a sua figura solitria, nunca deixava de sentir mgoa pelo que ele tinha perdido.

O casamento dos meus sogros acabara cinco anos antes, mas os cnicos diriam que tinha acabado muito antes disso. Nos ltimos anos de vida, Allie sofrera de Alzheimer, doena que acabei por considerar uma verdadeira inveno do demnio. E um lento desfazer de tudo aquilo que a pessoa j foi. Afinal, o que somos ns sem as nossas memrias, sem os nossos sonhos? Observar a progresso da doena foi como ver, em cmara lenta, o filme de uma tragdia inevitvel. As visitas eram difceis, tanto para Jane como para mim; Jane desejava recordar a me como ela fora, nunca a pressionei para ir, pois aquelas visitas eram igualmente penosas para mim. Contudo, quem mais sofria era Noah.

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Mas essa outra histria.

Deixei o quarto do meu sogro e dirigi-me para o quintal. Mesmo para o Outono, a manh estava fresca. As folhas brilhavam ao sol oblquo e o ar trazia at ali o cheiro tnue do fumo da chamin. Esta era, segundo me recordava, a melhor poca do ano para Allie e no pude deixar de pensar na solido de Noah. Como era hbito, estava a dar de comer ao cisne e quando cheguei perto dele, pus um saco de compras no cho. Trazia trs pes da marca Wonder Bread. Comprava as mesmas coisas sempre que o visitava.

- Viva, Noah - cumprimentei. Sabia que podia chamar-lhe pap, como Jane costumava fazer com o meu pai, mas nunca me sentira vontade com essa forma de tratamento e Noah nunca me dera a ideia de se importar.

Voltou a cabea ao ouvir a minha voz.

- Viva, Wilson. Obrigado por teres passado por c. Pus-lhe a mo no ombro. - Como que tem passado?

- Podia ser melhor - respondeu. Depois, com um sorriso malicioso, acrescentou: - Mas tambm podia ser pior.

Era sempre assim que nos cumprimentvamos. Noah deu uma palmada no banco, a indicar onde me devia sentar. Olhei para longe, para alm do lago. As folhas cadas pareciam formar um caleidoscpio flutuante na superfcie da gua. A superfcie brilhante reflectia um cu sem nuvens.

- Vim c para lhe fazer uma pergunta - comecei.

- Ah sim!

Ao falar, Noah cortou um pedacinho de po e lanou-o para a gua. O cisne abriu o bico para o pedao de po e logo endireitou o pescoo para o engolir.

- acerca da Jane - acrescentei.

- A Jane - murmurou -, como que ela est?

- Est bem - respondi, mexendo-me com desconforto.

- Suponho que vir mais tarde - o que era verdade. Nos ltimos anos as nossas visitas eram frequentes, umas vezes juntos, outras sozinhos. Bem gostaria de saber se falavam de mim na minha ausncia.

- E os midos?

- Vo igualmente bem. A Anna est a escrever guies e Joseph l acabou por encontrar um apartamento. em que penso eu, mas muito perto do metropolitano. Nesta semana Leslie foi acampar nas montanhas juntamente com as amigas e disse-nos que os exames semestrais lhe correram bem.

Ele assentiu, de olhos sempre postos no cisne. - s um homem de sorte, Wilson - comentou. - Espero que percebas quanto foste afortunado por eles se terem tornado uns adultos maravilhosos.

- Eu percebo.

Ficmos em silncio. Vistas de perto, as rugas do rosto formavam sulcos e eu conseguia ver as veias que pulsavam por baixo da pele fina das suas mos. Nas nossas costas, o terreno estava vago pois o ar frio mantinha as pessoas recolhidas.

- Esqueci-me do nosso aniversrio - informei.

- Oh!

- Vinte e nove anos - acrescentei.

- Hum.

Por detrs de ns ouviam-se as folhas secas a ser arrastadas pela brisa.

- Estou preocupado connosco - acabei por admitir.

Noah olhou-me de lado. A princpio pensei que iria perguntar-me o motivo, mas, em vez disso, semicerrou os olhos, a tentar ler o que eu tinha em mente. Depois, voltou-se de novo para o lago e lanou outro pedao de po ao cisne. Quando falou, f-lo em voz macia e baixa, uma voz de bartono envelhecido, temperada pelo sotaque do Sul.

- Recordas-te de quando a Allie adoeceu? De quando eu costumava ler para ela?

- Recordo - respondi, sentindo as memrias invadir-me. Costumava ler de um livro de apontamentos que comeara a escrever antes de se mudarem para Creekside. Naquele livro descrevia como ele e a Allie se tinham apaixonado e, por vezes, depois da leitura, e apesar dos estragos provocados pela doena de Alzheimer, ela ficava lcida por momentos. O estado de lucidez nunca era duradouro e com a progresso da doena cessou por completo mas quando acontecia, a melhoria da Allie era suficientemente extraordinria,o que levara os especialistas a deslocarem-se de Chapel Hill clinica na esperana de a conseguirem compreender. No havia dvidas que por vezes, a leitura fazia melhorar o estado da doente. No entanto, os especialistas nunca conseguiram descortinar as razes.

- Conheces o motivo que me levava a ler para ela? - perguntou Noah.

Descansei as mos em cima das coxas. - Acho que sim, para ajudar a Allie. E porque ela o fizera prometer que o faria.

- Pois, isso mesmo. - corroborou, antes de fazer uma pausa, que me permitiu ouvir-lhe a respirao, um som parecido com o do ar escapar-se de um velho acordeo.

- Mas essa no foi a nica razo por que o fiz. Tambm o fiz por mim. H muitos tipos que no conseguem entender uma razo destas.

Embora ficasse em silncio, eu sabia que ele ainda no acabara. Naquele silncio, o cisne deixou de andar s voltas e chegou-se para mais perto. Com excepo de uma pequena mancha preta no peito, do tamanho de um dlar de prata, o cisne era da cor do marfim. Pareceu ficar indeciso no momento em que o Noah recomeou a falar.

- Sabes aquilo que melhor recordo dos nossos tempos felizes? - perguntou.

Sabia que ele estava a referir-se aos raros dias em que Allie conseguia reconhec-lo, mas abanei a cabea.

- No - foi a resposta.

- De me apaixonar - continuou. - daquilo que me recordo. Nos seus dias bons, parecia que podamos, uma vez mais, recomear tudo de novo.

Sorriu.

- isso que quero dizer quando afirmo que fazia aquilo por mim. De cada vez que lia para ela, era como se voltasse a fazer-lhe a corte, porque s vezes, apenas algumas vezes, ela tornava apaixonar-se por mim, como acontecera muitos anos antes. E trata-se do mais maravilhoso sentimento do mundo. Quantas pessoas que alguma vez tiveram uma tal oportunidade? Fazer com que a algum se apaixone por ns, uma e muitas vezes.

No parecia esperar qualquer resposta e eu tambm no.

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Em vez disso, passmos a hora seguinte a falar dos filhos e da sade dele. No voltou a falar de Jane ou de Allie. Contudo,depois de sair, fiquei a pensar naquela visita ao meu sogro. Apesar das cautelas dos mdicos, Noah parecia to penetrante de esprito como sempre fora. No s pensara que eu iria visit-lo, conclu, como tambm antecipara o motivo da minha visita E maneira tpica de um sulista, tinha-me dado a resposta, sem me obrigar a fazer-lhe a pergunta directamente.

E, ento, percebi o que tinha de fazer.

CAPTULO DOIS

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Tinha de voltar a fazer a corte minha mulher.

Parece simples, no parece? Afinal, uma situao como a nossa apresentava diversas vantagens. Para comear, Jane e eu vivamos na mesma casa e, aps trs dcadas de vida em comum, no se v necessidade de comear tudo de novo. Podamos dispensar as histrias das famlias, as anedotas e situaes humorsticas da infncia de cada um, a questo de saber o que cada um fez para ganhar a vida e de descobrir se os nossos objectivos eram ou no compatveis. Alm do mais, os pequenos pormenores que os indivduos tendem a esconder durante as primeiras fases de uma relao j eram conhecidos. Por exemplo, a minha mulher j sabia que eu ressonava, pelo que no faria sentido tentar esconder-lhe uma coisa que estava bem patente. Pela minha parte, lembrava-me de a ter visto quando esteve de cama com gripe e no me fazia impresso o aspecto do cabelo dela quando se levantava pela manh.

Tendo em conta estas realidades prticas, parti do princpio de que seria relativamente fcil voltar a conquistar o amor de Jane. Era apenas uma questo de tentar recriar tudo aquilo que tnhamos apreciado durante os nossos primeiros anos de vida juntos - como Noah fizera com Allie, ao ler para ela. Porm, pensando melhor, cheguei pouco a pouco concluso de que nunca percebera verdadeiramente o que, de incio, ela vira em mim. Embora me considere responsvel, naqueles tempos no era esse o pormenor que as mulheres consideravam mais atraente. Eu era, afinal, um baby, um mero produto da gerao egosta, das facilidades.

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Estvamos em 1971 quando vi Jane pela primeira vez. Eu tinha 24 anos, estava no segundo ano da Faculdade de Direito da Universidade de Duke e muitas pessoas diriam que eu era um estudante a srio, mesmo no curso secundrio. Nunca tive um companheiro de quarto durante mais de um perodo, pois tinha o costume de estudar at tarde, com o candeeiro aceso. Na sua maioria, os meus antigos companheiros pareciam encarar a universidade como uma srie de fins-de-semana separados por conjuntos de aulas aborrecidas, enquanto para mim era a instituio onde me ia preparar para enfrentar o futuro.

Embora esteja disposto a admitir que era srio, Jane foi a primeira pessoa a chamar-me tmido. Conhecemo-nos numa manh de sbado, num caf da baixa. Foi no princpio de Novembro e devido s minhas responsabilidades na Law Review, as aulas estavam a constituir um desafio difcil. Receoso de me atrasar no estudo, tinha procurado um caf, na esperana de encontrar um lugar sossegado de estudo, onde no me conhecessem e no fosse interrompido.

Foi Jane quem se aproximou da mesa para saber o que eu queria e ainda hoje recordo o momento como se estivesse a repetir-se. Usava o cabelo escuro preso num rabo-de-cavalo, os olhos cor de chocolate destacavam-se graas ao brilho dourado da pele. Usava um avental azul-escuro por cima de um vestido azul-celeste e fiquei espantado pelo ar de facilidade com que me sorriu, como se quisesse mostrar-se satisfeita por eu ter escolhido o sector dela para me sentar. Quando me perguntou o que queria, notei o sotaque sulista arrastado, caracterstico da parte leste da Carolina do Norte.

Na altura ainda no sabia que poderamos acabar por jantar juntos, mas recordo-me de ter l voltado no dia seguinte e de me sentar mesma mesa. Sorriu ao ver-me sentar e no posso negar que me agradou o facto de ela parecer lembrar-se de mim. Estas visitas de fim-de-semana continuaram por cerca de um ms, durante o qual nunca inicimos qualquer conversa ou tentmos saber os nomes um do outro, mas depressa notei que a mente me comeava a divagar sempre que a via aproximar-se para me encher a caneca de caf. Por razes que no consigo explicar muito bem, parecia-me que ela cheirava sempre a canela.

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Para ser franco, em rapaz no me sentia completamente vontade com indivduos do sexo oposto. Na escola secundria no fui atleta, nem membro do conselho dos estudantes, os dois grupos mais populares. Em compensao, gostava bastante de xadrez e fundei um clube que chegou a ter onze membros. Infelizmente nenhum dos scios era do sexo feminino. A despeito da minha falta de experincia, consegui sair com meia dzia de mulheres durante os primeiros anos da faculdade e apreciei esses seres. No entanto, como tomei a deciso de no ter uma relao estvel at estar financeiramente apto, no cheguei a conhecer bem nenhuma dessas mulheres e passado pouco tempo deixava de pensar nelas.

Todavia, depois de sair do caf passou a ser frequente dar comigo a pensar na empregada de mesa com rabo-de-cavalo, por vezes quando menos esperava. Mais do que uma vez, deixei que a mente divagasse no decurso das aulas, imaginando-a a caminhar pela sala, com o seu avental azul, a entregar impressos com a ementa. Embora aquelas imagens fossem um embarao para mim, sentia-me incapaz de evitar que regressassem para me dar volta cabea.

No fao ideia de qual seria a evoluo do caso se, finalmente, ela no tivesse decidido tomar a iniciativa. Tinha passado a maior parte da manh a estudar entre nuvens de fumo, produzido pelos cigarros dos outros presentes na sala, quando comeou a chover. Uma chuva fria e violenta, uma tempestade vinda das montanhas. A verdade que, pensando que aquilo podia vir a suceder, tinha-me munido de um chapu-de-chuva.

Quando ela se aproximou da mesa, levantei os olhos, espera de que voltasse a encher-me a caneca de caf mas, em vez disso, reparei que trazia o avental dobrado debaixo do brao. Tirou o elstico do rabo-de-cavalo e o cabelo caiu-lhe em cascata pelos ombros.

- No se importa de me acompanhar at ao carro? pediu - que tem um chapu-de-chuva e no me agrada a ideia deficar encharcada.

Um pedido impossvel de recusar; por isso, recolhi as minhas coisas e abri a porta para a deixar passar e, juntos, caminhmos por poas de gua fundas como latas de conserva. Os ombros dela

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roavam nos meus e, enquanto patinhvamos naquele dilvio, gritou-me o seu nome e mencionou o facto de estar a frequentar Meredith, um colgio feminino. Estava a formar-se em ingls e esperava vir a ser professora. No lhe respondi grande coisa concentrado como ia em mant-la seca. Quando chegmos junto do carro, esperava que ela entrasse de imediato mas, em vez disso voltou-se para mim.

- Voc um bocado tmido, no ?

No soube bem o que responder e penso que ela notou o meu ar atrapalhado, pois riu-se quase de imediato.

- No faz mal, Wilson. Por acaso, at gosto dos tmidos.

O facto de ela se ter dado ao trabalho de indagar o meu nome devia ter-me deixado admirado, mas tal no aconteceu. Em vez disso, ao v-la ali, em plena rua, com a chuva a cair e a esborratar-lhe a maquilhagem, tudo o que consegui pensar foi que nunca tinha visto uma mulher mais bonita.

A minha mulher continua a ser bonita.

Como evidente, a sua beleza agora mais suave, uma beleza que a idade tornou mais profunda. A pele macia e tem uns vincos onde dantes era lisa. Os lbios tornaram-se-lhe mais redondos, o estmago um pouco mais cheio, mas continuo a sentir-me cheio de desejo quando a vejo a despir-se no quarto.

Nos anos mais recentes no temos feito amor com muita frequncia e, quando o fazemos, falta-nos a espontaneidade e a excitao de que desfrutmos no passado. Contudo, no foram as cenas de amor que me fizeram mais falta. O que tenho desejado a expresso de desejo, de h muito ausente dos olhos da Jane, ou um simples gesto que me demonstre que ela me deseja tanto quanto eu a desejo. Uma coisa, qualquer coisa, que assinale que ainda sou especial para ela.

Mas como, reflectia, que vou conseguir que tudo volte a acontecer? Claro, sabia que tinha de cortejar Jane novamente, mas comecei a aperceber-me de que a tarefa no era to fcil como eu a julgara a princpio. A nossa familiaridade total, que parecia poder vir a simplificar as coisas, acabou por tornar tudo mais difcil.

As nossas conversas ao jantar, por exemplo, eram afectadas pela rotina. verdade que, durante as semanas que se seguiram a ter falado com Noah, passei parte das minhas tardes no escritrio a procurar novos temas de conversa mas, sempre que conseguia introduzi-los, logo me pareciam forados e malograva-se a oportunidade. Comecei a compreender que a nossa vida em comum se tinha cristalizado num padro que nunca poderia conduzira um recomeo de qualquer gnero de paixo. Durante anos, para podermos levar as nossas vidas profissionais separadas, tnhamos adoptado horrios diferentes. Nos primeiros anos da nossa vida de casados, eu passava muito tempo na firma - incluindo noitadas e fins-de-semana - para me assegurar de que seria visto como um scio vlido quando chegasse a altura prpria. Nunca utilizei todo o tempo de frias a que tinha direito. Talvez pecasse por excesso de zelo, por desejar tanto impressionar Ambry e Saxon mas, com uma famlia cada vez mais numerosa para sustentar, tinha de agarrar todas as oportunidades. Compreendo agora que a busca do xito profissional, agravada pela minha reserva natural, me afastou do resto da famlia, acabando at por me convencer de que nunca passei de um estranho na minha prpria casa.

Enquanto eu me mantinha atarefado no meu prprio mundo, Jane estava de mos atadas por causa dos filhos. Conforme as actividades e as exigncias deles se foram tornando mais numerosas, por vezes dava a impresso de que ela era apenas uma mancha apressada e sempre em actividade, com quem me cruzava nos corredores. Houve anos, tenho de o admitir, em que foram mais os dias em que jantmos sozinhos do que aqueles em que comemos juntos e, embora uma vez por outra achasse que a situao era estranha, no fiz nada para a corrigir.

provvel que nos tenhamos habituado a esta maneira de viver mas uma vez que os filhos j c no estavam para governar as nossas vidas, no parecemos capazes de preencher os espaos vazios que eles deixaram entre ns. E, a despeito das minhas preocupaes acerca do estado da nossa relao, a sbita tentativa de alterar os nossos hbitos era como tentar abrir um tnel na rocha, tendo uma colher como nica ferramenta.

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No quer isto dizer que no tenha tentado. Em Janeiro, por exemplo, adquiri um livro de culinria e comecei a preparar refeies para ns os dois aos sbados tarde, algumas delas, bom que se diga, bastante originais e deliciosas. Com o intuito de perder um pouco de peso, para alm do jogo regular de golfo, comecei a fazer caminhadas pela vizinhana, trs vezes por semana. At passei tardes inteiras na livraria, a folhear livros, na seco dedicada aos autodidtas, na esperana de descobrir o que mais poderia fazer. Conselhos dos especialistas para melhorar o casamento? Concentre-se nos quatro: ateno, apreciao, afeio e atraco. isso, recordo-me de ter pensado, faz todo o sentido e dirigi todos os meus esforos para esse objectivo. Aos seres passei a estar mais tempo na companhia da Jane em vez de ficar a trabalhar no escritrio, elogiava-a com frequncia e escutava-a atentamente quando falava das suas atividades dirias, assentindo quando me parecia apropriado dar-lhe a entender que estava a ouvi.-la com toda a ateno. No alimentava quaisquer iluses de que algum daqueles remdios restaurasse, como por magia, a paixo de Jane por mim, nem julgava possvel uma soluo a curto prazo para o problema. Se ttnhamos gasto 29 anos a afastarnos um do outro, sabia que umas semanas no podiam ser mais que um longo processo de aproximao. Mesmo que as coisas fossem melhorando um pouco, o progresso estava a ser mais lento do que esperara. Para o final da Primavera, cheguei concluso que, para alm das mudanas de carcter dirio, precisava de fazer mais qualquer coisa, algo de espetacular, algo capaz de convencer a Jane que ela era e continuaria a ser a pessoa mais importante da minha vida. Ento, certa noite, dei comigo a folhear os albns de fotografias da famlia. Surgiu-me ento uma ideia. Na manh seguinte, acordei cheio de energia e de boas intenes. Sabia que o meu plano tinha de ser conduzido em segredo e metdicamente, comeando, por isso por alugar um apartado nos correios. Contudo os meus planos no poderam prosseguir de imediato, porque foi por essa altura que Noah sofreu um acidente vascular. No foi o primeiro, mas foi o mais grave. Esteve no hospital perto de oito semanas, durante as quais a ateno da minha mulher lhe foi inteiramente dedicada. Passava os dias no hospital e, chegada a noite, estava demasiado cansada e apreensiva para reparar nos meus esforos de renovao do nosso relacionamento. Noah acabou por poder voltar a Creekside e no tardou a entregar-se sua tarefa de alimentar o cisne do lago, mas julgo que a doena foi o aviso de que ele no andaria por c durante muito mais tempo. Passei muitas horas calado a enxugar as lgrimas de Jane e a confort-la como podia.

De tudo o que fiz durante aquele ano, foi isso, penso eu, o que a minha mulher mais apreciou. Talvez fosse a estabilidade que lhe proporcionei, ou o resultado concreto dos meus esforos dos meses recentes, mas, fosse o que fosse, comecei a notar manifestaes ocasionais de renovado carinho por parte de Jane. Embora pouco frequentes, saboreava-as com sofreguido, na esperana de que as nossas relaes estivessem de certa forma a regressar normalidade.

Graas a Deus, Noah continuou a melhorar e, no incio de Agosto, estava a aproximar-se de novo o dia do aniversrio esquecido. Tinha perdido quase dez quilos desde que iniciara os meus passeios pelas redondezas e tinha adquirido o hbito de passar todos os dias pela estao dos correios para recolher artigos encomendados. Para que Jane no suspeitasse de nada, trabalhava no meu projecto especial quando estava no escritrio. Alm disso, decidira fazer frias de duas semanas, uma antes e outra depois do nosso trigsimo aniversrio - as frias mais longas que tivera at ento - com a inteno de passar mais tempo junto de Jane. Tendo em ateno a maneira como me portara no ano anterior, queria que este aniversrio fosse o mais memorvel possvel.

Ento, na noite de sexta-feira, 15 de Agosto, o meu primeiro dia de frias e exactamente oito dias antes do nosso aniversrio, aconteceu uma coisa que nem a Jane nem eu jamais esqueceremos.

Estvamos ambos descontrados na sala de estar. Eu, sentado no meu cadeiro preferido, a ler uma biografia de Theodore Roosevelt, enquanto a minha mulher folheava as pginas de um catlogo. De

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sbito, Anna irrompeu pela porta da frente, Na altura, ainda estava a viver em New Bern, mas pouco tempo antes entregara o sinal para compra de um apartamento em Raleigh, com a inteno de se juntar a Keith para o primeiro ano de residncia dele na Faculdade de Medicina de Duke.

Apesar do calor, Anna vinha vestida de preto. Ambas as orelhas apresentavam furos duplos, o batom parecia um pouco mais escuro do que eu diria aceitvel. Por essa altura, j me habituara aos aspectos mais complicados da sua personalidade, mas quando se sentou diante de ns, voltei a verificar quanto era parecida com a me. Estava corada e juntou as mos, como se estivesse a tentar acalmar-se.

- Mam e pap - comeou -, tenho uma notcia a dar-vos. Jane endireitou-se e ps o catlogo de lado. Eu sabia que, pelo tom de voz da Anna, tambm ela descobrira logo que se tratava de coisa sria. Na ltima vez em que Anna se portara daquela maneira fora para nos informar de que decidira ir viver com o Keith. Pois, eu sei, mas ela era adulta, e que podia eu fazer?

- De que se trata, minha querida? - perguntou Jane. Anna olhou para Jane, depois para mim, para voltar a fitar o olhar na me, antes de respirar fundo.

- Vou casar-me - anunciou.

Eu j chegara concluso de que os filhos vivem para o prazer de surpreenderem os pais e o anncio de Anna no era excepo regra.

De facto, tudo o que se associa situao de pai surpreendente. Existe a ideia generalizada de que o primeiro ano do casamento o mais duro, mas, para a Jane e para mim, no foi assim. Nem o stimo, o ano da suposta vontade de mudar, foi o mais difcil.

No, para ns - com a provvel excepo destes anos mais recentes - os dias mais problemticos foram os que se seguiram ao nascimento dos nossos filhos. Parece existir o preconceito, especialmente entre os casais que ainda no tiveram filhos, de que o primeiro ano de vida de uma criana se parece com um anncio da

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Hallmark, a que no faltam bebs a arrulhar e pais de sorrisos tranquilos.

Pelo contrrio, a minha mulher ainda hoje se refere a esse perodo como os anos detestveis. No o diz do corao, mas acredito piamente que ela no tenha mais vontade de os reviver do que eu.

Quando fala em detestvel, Jane quer dizer o seguinte: houve momentos em que ela detestou praticamente tudo. Detestava o seu aspecto e a maneira como se sentia. Detestava as mulheres que no tinham dores nos peitos e mulheres que continuavam a caber dentro dos vestidos. Detestava a gordura que parecia ressumar-lhe da pele e as borbulhas que j no tinha desde a adolescncia. Contudo, as noites sem dormir eram o que mais a punha fora de si e, por consequncia, nada a irritava mais do que ouvir histrias de outras mes cujos filhos dormiam a noite inteira, poucas semanas depois de deixarem a maternidade. Efectivamente, detestava toda a gente que tinha possibilidades de dormir mais de trs horas de cada vez e, muitas vezes, parecia at detestar-me pelo meu papel em toda aquela situao. Afinal, eu no podia amamentar e, por causa das muitas horas que passava na firma de advogados, no tinha outro remdio e dormia uma vez por outra no quarto das visitas, de modo a estar apto a trabalhar no dia seguinte. Mesmo convencido de que ela compreendia tudo isto racionalmente, na prtica, s vezes, no parecia.

- Bom dia - podia ser o meu cumprimento, ao v-la na cozinha, pouco firme em cima das pernas. - Como que o beb dormiu?

Em vez de responder, poderia suspirar com impacincia e ir ver o que se passava com a cafeteira.

- Dormiu bastante? - insistia eu.

- Tu no aguentavas uma semana.

Mesmo a propsito, o beb comeava a chorar. Jane cerrava os dentes, tapava a cafeteira com estrondo e ficava com aquele ar de quem pergunta por que motivo Deus parecia odi-la tanto.

Com o tempo, aprendi que o mais sensato era no fazer perguntas.

Depois, no h dvida de que o facto de ter um filho altera o relacionamento bsico entre o casal. Deixa de haver apenas marido

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e mulher, passa a haver tambm pai e me, desaparecendo de imediato toda a espontaneidade. Jantar fora? Tem de se verificar se os avs esto dispostos a ficar com o beb, ou se h outra pessoa disponvel. Uma estreia no cinema do bairro? H mais de um ano que no vamos ao cinema. Escapadas de fim-de-semana? Nem vale a pena falar disso. No havia tempo nem para aquelas coisas que nos tinham levado ao namoro, como passear, conversar, passar tempo juntos, o que tornava as coisas difceis para mim e para a Jane.

No quero com isto dizer que o primeiro ano foi uma desgraa completa. Quando me perguntam como ser pai, respondo que uma das coisas mais difceis que se pode fazer, mas, em compensao, ensina-nos o que significa o amor incondicional. Qualquer coisa que o beb faz revela-se aos pais como a mais mgica das coisas que at ento lhes foi dado ver. Recordarei sempre a primeira vez que cada um dos meus filhos me sorriu; recordo-me de bater palmas e ver as lgrimas escorrerem pelas faces de Jane quando eles deram os primeiros passos; e no h nada de mais repousante do que segurar um filho a dormir no conforto dos nossos braos e reflectir como possvel am-lo to profundamente. So esses os momentos que agora recordo com pormenores mais vivos. Os problemas - embora consiga falar deles sem paixo - no so mais do que imagens distantes e desfocadas, mais perto do sonho do que da realidade.

No, no existe experincia semelhante de ter filhos e, apesar das dificuldades que tivemos de enfrentar, sinto-me feliz por termos criado uma famlia.

Todavia, como j disse, mal aprendi a estar preparado para as surpresas.

Ao ouvir o anncio de Anna, Jane saltou do sof, soltou uma exclamao de prazer e foi abraar-se filha. Tanto ela como eu gostvamos muito do Keith. Quando lhe dei os parabns, seguidos de um abrao, Anna respondeu-me com um sorriso enigmtico.

- Oh, querida - repetia Jane -, isso simplesmente maravilhoso... Como que ele te pediu?... Quando?... Quero que me contes tudo... Deixa-me ver o anel...

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Depois da catadupa de perguntas, notei o desencanto na cara de Jane quando Anna comeou a abanar a cabea.

- No vai ser esse gnero de casamento, mam. J vivemos juntos e nenhum de ns quer dar uma importncia desmedida a isto. No se trata de precisarmos de mais uma misturadora ou de outra terrina para a salada.

Nada do que ela disse me surpreendeu. Anna, como j vos disse, sempre fez as coisas sua maneira.

Oh... - comeou Jane, todavia, antes que ela conseguisse dizer algo mais, Anna pegou-lhe na mo.

- Mam, h ainda outra coisa. Que tem a sua importncia.

Embaraada, Anna olhava ora para mim ora para a me.

- o seguinte... bem, sabem como o av est de sade, no sabem?

Assentimos. Como todos os meus filhos, Anna sempre gostara do av.

- E com este acidente vascular e tudo... bem, Keith gostou mesmo muito de o conhecer e eu adoro-o mais do que tudo...

Fez uma pausa. Jane fez-lhe presso na mo, como a pedir-lhe que continuasse.

- Bem, quero casar-me enquanto ele ainda tem alguma sade e nenhum de ns sabe at quando ele a ter. Por isso, o Keith e eu comemos a falar de datas possveis, e como ele est de partida para Duke, para fazer o internato, tem de se ir embora dentro de poucas semanas, e dado o facto de eu tambm estar para me mudar, e com a sade do av... bem, pensmos que no se importariam se...

Interrompeu o discurso, at finalmente fixar o olhar na me.

- Ento? - sussurrou Jane.

Anna respirou fundo. - Estamos a pensar em nos casarmos no prximo sbado.

Os lbios de Jane formaram um pequeno o. Anna continuou a falar, claramente interessada em dizer tudo antes que tivssemos ocasio de a interromper.

- Sei que o vosso aniversrio... e, claro, admitimos perfeitamente que digam no, mas ambos pensmos que seria uma maneira maravilhosa de homenagear os dois. Por tudo o que fizeram

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um pelo outro, por tudo o que fizeram por mim e parece-me ser a melhor soluo. Quero dizer, queremos uma cerimnia simples, no registo, e talvez um jantar em famlia. No desejamos prendas nem nada de complicado. Fazem-nos esse favor?

Logo que olhei para a cara de Jane, percebi qual ia ser a sua resposta.

CAPITULO TRS

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Tal como Anna, Jane e eu no namormos durante muito tempo. Logo depois da licenciatura em Direito, comecei a trabalhar como estagirio na firma Ambry and Saxon, pois Joshua Tundle ainda no era scio. Ele era apenas um estagirio como eu, e os nossos gabinetes davam para o vestbulo, um em frente do outro. Natural de Pollocksville, uma aldeola a uns vinte quilmetros a sul de New Bern, frequentara a Universidade da Carolina do Leste e, durante o meu primeiro ano na firma, perguntava-me com frequncia como que estava a adaptar-me vida numa pequena cidade. No era, confessava eu, exactamente aquilo que esperara. Ainda na Faculdade de Direito, julguei que ia trabalhar numa grande cidade, como os meus pais tinham feito, mas acabei por aceitar um emprego na cidade onde Jane fora criada.

Vim para aqui por causa dela, embora no possa afirmar que tivesse alguma vez lamentado a deciso. New Bern pode no ter uma universidade ou um parque de diverses, mas o que tem a menos em tamanho compensado pelo carcter. A cidade est situada a 145 quilmetros a sudeste de Raleigh, numa zona baixa e plana, entre florestas de pinheiros e rios largos, de guas mansas. As guas salobras do rio Neuse banham os arrabaldes da cidade e parecem mudar de cor a cada hora que passa, desde o cinzento metlico da alvorada ao castanho do pr-do-sol, passando pelo azul das tardes soalheiras. noite formam um redemoinho de carvo lquido.

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O meu escritrio fica na baixa, perto da zona histrica e, depois do almoo, fao passeios frequentes por entre as velhas casas. New Bern foi fundada em 1710, por colonos suos e palatinos, o que faz dela a segunda cidade mais antiga do estado da Carolina do Norte. Quando vim viver para c, muitas das casas com histria estavam desocupadas e ameaavam ruir. A situao mudou neste ltimos trinta anos. Com novos proprietrios, uma a uma, as velhas casas comearam a ser restauradas na sua antiga glria, pelo que, nestes dias, um passeio a p deixa-nos o sentimento de que a renovao pode acontecer onde menos se espera. Quem se interessa por arquitectura pode encontrar janelas com vidraas ainda feitas por sopro, portas com puxadores antigos de lato, lambris de madeira que rematam os soalhos de pinho das divises interiores. Prticos graciosos bordejam as ruas estreitas, fazendo-nos regressar a uma poca em que as pessoas se sentavam c fora, no princpio da noite, para gozar da brisa fresca. As ruas so sombreadas por carvalhos e abrunheiros, e milhares de azleas florescem em cada Primavera. E, em palavras simples, um dos mais belos lugares que eu j vi.

Jane foi criada nos arredores da cidade, na casa de uma antiga plantao, construda cerca de duzentos anos antes. Noah restaurou-a nos anos a seguir Segunda Guerra Mundial e fez um trabalho meticuloso, pelo que, como acontece com as outras casas histricas da cidade, tambm esta conserva um ar de grandeza que s tem aumentado com a passagem do tempo.

Por vezes visito a velha casa. Passo por l depois de largar o trabalho ou no caminho para o supermercado; em outras ocasies vou l de propsito. Trata-se de um dos meus segredos, pois Jane no sabe que eu fao isto. Embora tenha a certeza de que no se importaria, sinto um estranho prazer em guardar o segredo das visitas para mim. Vir at aqui faz-me sentir simultaneamente misterioso e fraternal, pois sei que toda a agente tem segredos, incluindo a minha mulher. Ao olhar a propriedade, frequente pensar de quem ela ser.

H uma nica pessoa que sabe das minhas visitas. Chama-se Harvey Wellington, um negro, mais ou menos da minha idade, que vive numa pequena casa de madeira na propriedade adjacente. Um ou mais membros da sua famlia habitaram a casa desde

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antes do incio do sculo XX, sei que pastor na igreja baptista local. Sempre foi amigo de todos os membros da famlia de Jane, especialmente dela, mas desde que Allie e Noah se mudaram para Creekside, a maior parte da comunicao consiste nos cartes de boas-festas que se trocam uma vez por ano. J o vi de p, no alpendre a necessitar de reparao da sua casa, mas, devido distncia, no me possvel saber o que pensar ele das minhas visitas.

Raramente entro em casa de Noah. As janelas foram entaipadas quando ele e Allie se mudaram para Creekside, a moblia est coberta, como os fantasmas tapados com lenis do Dia das Bruxas. Prefiro andar pelo terreno volta. Arrasto os ps pela vereda coberta de gravilha, caminho ao longo da vedao e toco nos postes. Vou at s traseiras da casa, onde o rio passa. Nas traseiras da casa o rio mais estreito do que na parte baixa da cidade e h momentos em que a gua est perfeitamente imvel, um espelho que reflecte o cu. Por vezes deixo-me ficar junto da margem, a olhar o cu reflectido na gua e a ouvir a brisa agitar docemente as folhas das rvores, por cima da minha cabea.

Uma vez por outra, dou comigo debaixo da latada que Noah construiu depois de se casar. Allie sempre gostara de flores e o marido plantou-lhe um roseiral com a forma de coraes concntricos, que era visvel da janela do quarto do casal e rodeava uma fonte de trs bicas. Tambm instalou uma srie de luzes que permitiam ver as flores mesmo quando estava escuro e o efeito era deslumbrante. A latada feita mo conduzia ao jardim, e como Allie era artista, uma e outro aparecem nos seus quadros, em pinturas que, por qualquer razo, contm sempre uma certa amargura, apesar da sua beleza. O roseiral no tem sido tratado e est transformado num matagal, a latada est velha e a desfazer-se, porm, diante dela, continuo a sentir-me comovido. Tal como no trabalho de restaurao da casa, Noah esforou-se por tornar nicos quer o jardim quer a latada; por vezes, toco-lhes para seguir os contornos com os dedos ou limito-me a olhar para as rosas, talvez com a esperana de absorver talentos que sempre me evitaram.

Venho aqui por se tratar de um lugar especial para mim. Afinal, foi aqui que me apercebi, pela primeira vez, de que estava apaixo-

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nado por Jane e, embora saiba que a minha vida melhorou por causa disso, tenho de admitir que, mesmo agora; continuo algo atnito pela forma como aconteceu.

Certamente que no era minha inteno apaixonar-me por Jane, quando a levei at ao carro naquele dia chuvoso de 1971. Mal a conhecia mas, ao ficar ali, debaixo do chapu de chuva, a v-la afastar-se, assaltou-me repentinamente o desejo de voltar a v-la. Horas mais tarde, noite, enquanto estudava, as palavras dela continuavam a ecoar-me na cabea.

No faz mal, Wilson, dissera. Por acaso at gosto dos tmidos.

Incapaz de me concentrar, pus o livro de lado e levantei-me. Dizia a mim mesmo que no tinha tempo nem desejos de me embrenhar numa relao, enquanto caminhava pelo quarto a reflectir no programa apertado que tinha de cumprir, bem como no meu desejo de me tornar financeiramente independente, e decidi no voltar quele restaurante. No era uma deciso fcil, mas era a deciso certa, pensei, resolvido a no tocar mais no assunto.

Na semana seguinte, estudei na biblioteca, mas mentiria se dissesse que no vi Jane. Em cada noite dava comigo a reviver o nosso breve encontro, o cabelo caindo-lhe em cascata sobre os ombros, a cadncia da sua voz, o seu olhar paciente enquanto a chuva caa. Quanto mais me esforava por esquec-la, mais poderosas se tornavam aquelas imagens. Soube, ento, que a minha deciso no resistiria a uma segunda semana e, na manh de sbado, dei comigo a pegar nas chaves.

No fui ao restaurante para lhe pedir que sasse comigo. Em vez disso, fui l para provar a mim mesmo que aquilo no passara de uma paixo momentnea. Dizia para mim que ela era apenas uma rapariga normal e que, quando a encontrasse de novo, veria que no tinha nada de especial. Estava quase convencido no momento em que arrumei o carro.

Como sempre, o restaurante estava cheio, passei por um grupo de homens que estava de sada e segui para o meu canto habitual. A mesa fora limpa pouco tempo antes e, depois de me sentar, usei um guardanapo de papel para a secar antes de pousar o livro.

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De cabea baixa, estava procura do captulo que me interessava quando a vi aproximar-se. Fingi no reparar at que ela se colocou ao lado da mesa; porm, ao levantar os olhos, reparei que no era a Jane. Em vez dela, aparecera uma mulher na casa dos quarenta anos. Trazia o bloco das encomendas no bolso do avental e uma esferogrfica presa numa orelha.

- Esta manh vai querer um caf? - perguntou. Tinha maneiras sacudidas, dando a entender que provavelmente trabalhava ali h muito e custou-me a perceber como que no tinha reparado nela antes.

- Sim, se faz favor.

- s um minuto - chilreou, deixando ficar a ementa. Logo que ela se voltou rodei os olhos pela sala e vi Jane, a sair da cozinha com uma pilha de pratos, que levou para uma mesa na outra ponta do restaurante. Olhei-a por instantes, a pensar se me teria visto entrar, mas ela tinha a ateno concentrada no trabalho e nem olhou para o stio onde eu estava. distncia, no havia nada de mgico na sua maneira de estar e de andar, pelo que dei comigo a soltar um suspiro de alvio, convencido de que conseguira sacudir aquela estranha fascinao que me tinha atormentado ultimamente.

O caf chegou e fiz a minha encomenda. De novo absorvido no manual, tinha lido metade de uma pgina quando ouvi a voz dela a meu lado.

- Bom dia, Wilson.

Estava a sorrir quando olhei para ela. - No o vi no passado fim-de-semana - continuou, a falar com descontraco. - At cheguei a pensar que talvez o tivesse assustado.

Engoli em seco, incapaz de falar, a julg-la ainda mais bonita do que na minha recordao. No sei quanto tempo estive a olhar para ela sem dizer nada, mas foi o tempo suficiente para que a cara dela revelasse preocupao.

- Wilson? - indagou. - Est a sentir-se bem?

- Sim - respondi mas, que situao estranha, no consegui pensar em nada para dizer.

Passado um momento, ela acenou com a cabea, parecendo confusa. - Bem... bom. Desculpe mas no o vi entrar. T-lo-ia

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sentado na minha seco. O senhor o que mais se aproxima da ideia de um meu cliente certo.

- Sim - repeti. Sabia, mesmo ento, que a minha resposta no fazia sentido, mas aquela parecia ser a nica palavra que conseguia articular na presena dela.

Esperou que eu dissesse mais qualquer coisa. Como no disse, no deixei de notar o seu ar de desapontamento. - Vejo que est ocupado - acabou por dizer, apontando para o meu livro. - S quis cumpriment-lo e agradecer-lhe por ter-me levado ao carro. Bom proveito para o seu pequeno-almoo.

Ela estava quase a ir-se embora quando consegui romper o encantamento em que parecia ter cado.

- Jane - balbuciei.

- O que ?

Pigarreei. - Talvez possa lev-la at ao seu carro numa outra altura. Mesmo sem estar a chover.

Estudou-me por momentos, antes de responder: - Seria agradvel, Wilson.

- Pode ser hoje?

Sorriu. - Com certeza.

Quando se voltou, tornei a cham-la.

- E, Jane!

Desta vez olhou-me por cima do ombro. - Estou a ouvir.

Percebendo finalmente o verdadeiro motivo da minha ida quele caf, pus ambas as mos em cima do manual, tentando captar a energia de um mundo que eu percebia. - Gostaria de jantar comigo neste fim-de-semana?

Pareceu divertida por eu ter levado tanto tempo a fazer a proposta.

- Claro que sim, Wilson. Gostaria mesmo muito.

Era difcil de acreditar que estivssemos ali, trs dcadas mais tarde, sentados com a nossa filha, a discutir o seu casamento iminente.

O pedido que Anna fizera, de surpresa, para um casamento a realizar rapidamente, foi recebido com um silncio total. A princ-

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pio, Jane pareceu assombrada, mas depois, recuperando a compostura, comeou a abanar a cabea, murmurando com velocidade crescente: - No, no, no...

Em retrospectiva, aquela resposta no teve nada de inesperado. Suponho que um dos momentos mais agradveis para uma me assistir ao casamento da filha. Toda uma indstria foi montada volta da cerimnia do casamento e natural que as mes alimentem expectativas sobre a maneira como ela vai decorrer. As ideias de Anna representavam um contraste ntido com tudo o que Jane desejara para as filhas e embora se tratasse do casamento de Anna, Jane no podia negar aquilo em que acreditava, nem o seu prprio passado.

O problema de Jane no estava na data escolhida por Anna e Keith para a cerimnia coincidir com o nosso aniversrio de casados, pois, mais do que ningum, ela conhecia o estado de sade do pai, alm de tambm ser verdade que Anna e Keith iam mudar-se dentro de duas semanas, mas no lhe agradava a ideia de um casamento realizado na presena do juiz de paz. Nem lhe agradava dispor apenas de oito dias para todos os arranjos necessrios ou o desejo expresso por Anna de que a festa fosse pequena.

Quando as negociaes se iniciaram a srio, mantive-me em silncio. Se Jane perguntava: - E quanto aos Sloan? Ficaro desolados se no os convidares. Ou John Peterson? Passou anos a ensinar-te piano e sei quanto gostavas dele.

- Mas no se trata de um facto importante - repetia Anna.

- O Keith e eu j estamos a viver juntos. Afinal, a maioria das pessoas acha que j somos casados.

- Pois, e quanto ao fotgrafo? Certamente que vais querer umas fotografias.

- Tenho a certeza de que muitas pessoas vo levar mquinas fotogrficas - contrapunha Anna. - Ou podes encarregar-te disso. Ao longo dos anos tiraste milhares de fotografias.

Chegadas a este ponto, Jane abanava a cabea e lanava-se numa tirada apaixonada acerca do que iria ser o dia mais importante da sua vida, ao que a Anna responderia que, mesmo sem todos aqueles adornos, seria um casamento vlido. No se tratava de uma guerra, mas era evidente que tinham chegado a um impasse.

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Interpus. Tenho o hbito de deixar para Jane a maior parte daquele gnero de questes, especialmente quando envolvem problemas das raparigas, mas apercebi-me de que, desta vez, tinha algo a acrescentar, pelo que me sentei muito direito no sof.

- Talvez possamos chegar a um compromisso - interpus.

A Anna e a Jane voltaram-se para mim.

- Sei que o teu corao aponta para o prximo fim-de-semana - comecei, dirigindo-me a Anna -, mas estarias de acordo se ns convidssemos mais algumas pessoas, para alm da famlia? Se ns ajudssemos em todos os preparativos?

- No sei se dispomos de tempo para entrarmos em algo desse gnero... - comeou Anna.

- Mas no te importas que tentemos?

As conversaes continuaram durante mais uma hora mas, no fim, conseguimos acordar alguns pontos. Segundo parecia, Anna ficara agradavelmente surpreendida por eu me ter metido na conversa. Conhecia um pastor, informou, e tinha a certeza de que ele estaria de acordo em celebrar a cerimnia no fim-de-semana seguinte. A Jane parecia feliz e aliviada por ver os planos iniciais a tomarem forma.

Entretanto, eu no estava a pensar s na cerimnia do casamento da minha filha, estava tambm a tratar do trigsimo aniversrio do meu casamento. Ora, o nosso aniversrio - que eu esperava tornar memorvel - e a cerimnia do casamento iam acontecer no mesmo dia e, de entre os dois, eu sabia qual o evento que, subitamente, se tornara mais importante.

A casa que partilho com a Jane fica beira do rio Trent, que tem uns oitocentos metros de largura por alturas do nosso quintal. noite, costumo sentar-me na sacada e fico a observar ondas minsculas quando o luar incide sobre elas. Conforme o tempo, h momentos em que a gua parece um ser vivo.

Ao contrrio da de Noah, a nossa casa no dispe de um alpendre a toda a volta. Foi construda numa poca em que o ar condicionado e as emisses contnuas de televiso mantm as pessoas dentro de casa. Quando vimos a casa pela primeira vez, Jane deu

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uma vista de olhos pelas traseiras e decidiu que, se no podia ter um alpendre, teria pelo menos uma sacada. Foi o primeiro de diversos pequenos projectos de construo que acabaram por transformar aquela casa num espao a que podamos confortavelmente chamar o nosso lar.

Depois de Anna ter sado, Jane ficou sentada no sof, a olhar as portas de correr, em vidro. No conseguia ver-lhe a expresso mas, antes que pudesse perguntar-lhe em que que estava a pensar, levantou-se e saiu. Reconhecendo que o sero constitura um choque, fui cozinha e abri uma garrafa de vinho. Jane nunca fora uma grande consumidora, mas apreciava um copo de vinho uma vez por outra; pensei que aquela noite seria uma boa ocasio.

De copo na mo, caminhei para a sacada. L fora, o ar zumbia com os sons das rs e dos grilos. A Lua ainda no estava visvel e, do outro lado do rio, podia ver as luzes amareladas de casas espalhadas pelos campos. Levantara-se uma brisa que fazia tilintar o carrilho que Leslie nos oferecera no Natal do ano anterior.

Para alm disso, havia silncio. Na luz fraca do alpendre, o perfil de Jane lembrava-me uma esttua grega, e uma vez mais, fiquei encantado pela semelhana de agora com a mulher que eu vi pela primeira vez h tantos anos. Ao olhar aquelas mas do rosto salientes e os lbios carnudos, senti-me grato por as nossas filhas se parecerem mais com a me do que comigo e agora, quando uma delas ia casar-se, suponho que esperava ver nela uma expresso radiante. No entanto, ao aproximar-me, percebi que Jane estava a chorar.

Hesitei, na entrada da sacada, a pensar se a minha tentativa de me juntar a ela no teria sido um erro. Contudo, antes que me pudesse voltar, Jane pareceu sentir a minha presena e espreitou por cima do ombro.

- Ah, ests a - disse, por entre duas fungadelas.

- Ests bem? - perguntei. -

- Estou.

Fez uma pausa e abanou a cabea. - Quero dizer, no estou. Na verdade, nem sei como me sinto.

Fui at junto dela e pus o copo de vinho em cima do corrimo. Na escurido, o vinho parecia petrleo bruto.

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- Obrigada - agradeceu Jane. Depois de beber um gole, deixou escapar um profundo suspiro e ficou a olhar para l da massa de gua.

- Isto mesmo da Anna - acabou por dizer. - Acho que nem devia estar nada surpreendida, mas, mesmo assim...

No conseguiu continuar e pousou o copo de vinho.

- Pensei que gostavas do Keith.

- E gosto - asseverou Jane. - Mas, uma semana? No sei onde ela foi arranjar tais ideias. Se pretendia fazer uma coisa destas, no percebo por que no fugiu com o namorado e acabava-se a histria.

- Preferias que tivesse agido assim?

- No. Teria ficado furiosa com ela. - Sorri. Jane nunca deixava de ser franca.

- E que h tantas coisas a fazer - continuou -, e no fao ideia de como que poderemos organizar tudo. No estou a exigir que o casamento se faa no salo de baile do Hotel Plaza, mas, mesmo assim, seria de esperar que estivesse l um fotgrafo. Ou alguns dos seus amigos...

- Mas ela no acabou por concordar com tudo isso? - Jane hesitou, a escolher as palavras com todo o cuidado.

- Estou em crer que ela no percebe quantas vezes se vai recordar do dia do casamento. Est a agir como se o dia no tivesse qualquer importncia.

- Lembrar-se- sempre, qualquer que seja o modo como vai acontecer - contrariei, com bons modos.

Jane ficou muito tempo de olhos cerrados. - Tu no percebes - concluiu.

Mesmo sem falar mais no assunto, eu soube exactamente o que ela quis dizer-me.

Muito simplesmente, Jane no queria que Anna incorresse no mesmo erro que ela consentira.

A minha mulher nunca deixou de lamentar a maneira como nos casmos e sei que sou responsvel por isso. Tivemos o gnero de casamento em que eu insisti e, embora eu aceite a responsabilidade, os meus pais tiveram um importante papel na minha deciso.

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Os meus pais, ao contrrio do que acontece com a maioria dos cidados deste pas, eram ateus e eu fui educado segundo esses princpios. Ao crescer, recordo-me de sentir curiosidade acerca da igreja e dos misteriosos rituais de que ia tomando conhecimento atravs de leituras, mas a religio foi um assunto que nunca discutimos. Nunca se falou dela ao jantar e, mesmo em alturas em que me senti diferente das outras crianas da vizinhana, nunca foi assunto a que eu desse muita importncia.

Agora penso de maneira diferente. Considero a minha f crist como a maior graa que alguma vez recebi e no quero discorrer mais sobre o tema a no ser para afirmar que, em retrospectiva, sempre achei que a minha vida no estava totalmente preenchida. Os anos passados na companhia de Jane vieram provar isso mesmo. Jane era uma pessoa devota, tal como os pais, e foi ela que comeou a levar-me igreja. Tambm foi ela quem comprou a Bblia que comemos a ler ao sero e quem comeou por encontrar respostas para as minhas dvidas iniciais.

No entanto, nada disto aconteceu at depois de estarmos casados.

Se houve algum foco de tenso durante os anos em que namormos, foi a minha falta de f, havendo alturas em que, tenho a certeza, Jane perguntou a si mesma se seram