A Administração e o Direito (José Carlos Vieira de Andrade)

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    PARTE I

    AADMINISTRAOEODIREITO

    Bibliografia em geral: ROGRIO SOARES, Direito Administrativo, I, p. 50-74;Sobre a matria do ponto I/1.: ROGRIO SOARES, Princpio da legalidade e Administrao

    constitutiva, in Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra,LVII(1981),p.169e ss;Sobre a matria do ponto I/2.: FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, II

    vol., 2001, Captulo I;Sobre a matria do ponto II: SRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual nos

    contratos administrativos, Coimbra, 1987, nota 99 (p. 388/390);PAULO OTERO, Coordenadas jurdicas da privatizao da Administrao Pblica,

    in Os caminhos da privatizao da Administrao Pblica, 2001, p. 31 e ss.

    Bibliografia facultativa:

    MARIA FRANCISCA PORTOCARRERO, Discricionaridade e conceitos imprecisos: aindafar sentido a distino?in Cadernos de Justia Administrativa, n. 10, p. 26 e ss;

    PEDRO GONALVES, Entidades privadas com poderes pblicos, 2005, p. 932 e ss.

    I.A VINCULAO DA ADMINISTRAO AO DIREITO PBLICO

    O Direito Administrativo estabelece as condies de legitimidade da

    actividade da Administrao, designadamente dos actos imperativos formais, quevisam a produo de efeitos jurdicos externos (regulamentos, actos e contratos

    administrativos).

    1. Do princpio da legalidade aos princpios da juridicidade

    administrativa

    1.1. A vinculao jurdica da Administrao no sculo XIX

    No perodo liberal, a administrao estava limitada pelo princpio da

    legalidade administrativa, entendido nos seguintes termos, formulados

    sinteticamente numa lgica principialista:

    a) princpio do primado da lei (em sentido negativo), segundo o qual

    toda a actividade administrativa tinha de respeitar estritamente as

    determinaes legais, sob pena de invalidade (primado hierrquico);

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    b) princpio da reserva de lei uma tripla reserva: orgnica (a lei tinha de

    provir do Parlamento), funcional (a emisso de leis correspondia a uma funo

    especfica, a funo legislativa) e material (as leis identificavam-se com as

    normas jurdicas, que eram exclusivamente as normas relativas esfera daliberdade e da propriedade dos cidados) da qual resulta o monoplio parlamentar

    de emisso de normas jurdicas e uma correspondente zona de administrao

    estritamente vinculada lei (investigao criminal, impostos, expropriaes);

    c) princpio da discricionaridade livre (reserva de Administrao), no

    estando esta subordinada a normas jurdicas, nem na organizao, nem na

    actividade desenvolvida, normativa ou concreta, fora da zona reservada lei, isto

    , fora das matrias que tocassem a esfera jurdica dos cidados (enquanto tais,

    j que as relaes especiais de poder no eram jurdicas) reconhecendo-se

    uma clusula geral de polcia, que conferia Administrao poderes

    implcitos (de direito natural) para a defesa do interesse social e a

    manuteno da ordem pblica;

    d) princpio da presuno da legalidade e princpios da autotutela

    declarativa (imperatividade unilateral) e da autotutela executiva

    (executoriedade , se fosse necessrio o uso de meios coercivos) dos actos

    administrativos de autoridade, como privilgios administrativos;

    e) princpio do controlo jurisdicional limitado (se existente) a justia

    administrativa estava a cargo de rgos superiores da Administrao, ainda

    que independentes, e, quando operava atravs de tribunais, estes dispunham

    apenas poderes cassatrios.

    1.2. A subordinao da Administrao ao Direito no Estado

    Democrtico e Social oprincpio da juridicidade

    As mudanas operadas na segunda metade do sculo XX, j antes

    referidas alterao do sentido e do conceito material de lei; alargamento do

    domnio juridicamente relevante; desenvolvimento exponencial das esferas de

    actuao administrativa tm como consequncia a ampliao e a diversificao

    das relaes entre a Administrao e o Direito, gerando um novo paradigma.

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    Em paralelo com as caractersticas evidenciadas para o princpio liberal

    da legalidade, podemos salientar, quanto subordinao da Administrao ao

    princpio da juridicidade:

    a) princpio do primado da lei em sentido negativo: mantm-se aprimazia normativa da lei sobre todos os actos da administrao, embora se

    admita, a ttulo excepcional, a desaplicao pela Administrao de leis

    manifestamente inconstitucionais;

    b) princpio da precedncia da lei (ou do primado da lei em sentido

    positivo), nos termos do qual a lei (agora igual a acto legislativo, incluindo o

    decreto-lei e tambm as normas da Unio Europeia com valor legislativo) se

    torna o pressuposto e o fundamento de toda a actividade administrativa, seja no

    domnio tradicional da administrao de autoridade (agora alargado s

    relaes especiais de poder), seja quanto administrao social ou de

    prestaes, determinando, no mnimo, os interesses pblicos especficos (o fim,

    manifestado na hiptese legal atravs da definio dos pressupostos especficos

    das decises administrativas) e os rgos encarregados (a competncia) da

    prtica de actos administrativos princpio que configura uma reserva de funo

    legislativa;

    c) princpio da determinidade de contedo, como manifestao da reserva

    de Parlamento: nas matrias de reserva legislativa parlamentar ou domnio

    legislativo por naturezaonde, alm dos direitos fundamentais dos cidados,

    se englobam todas as matrias consideradas fundamentais para a vida em

    sociedade, segundo um princpio de essencialidade , exige-se uma

    densidade legal acrescida e, portanto, uma vinculao mais intensa (substancial,formal e procedimental) da actividade administrativa (regulamentar ou

    concreta) lei, com excluso, em princpio, de poderes discricionrios;

    d) princpio da discricionaridade limitada, segundo o qual toda a

    actividade da Administrao, mesmo no uso de poderes discricionrios, que se

    entendem agora comoconcedidos por lei, est sempre subordinada ao Direito

    seja aos preceitos constitucionais relativos aos direitos, liberdades e garantias,

    seja a princpios jurdicos fundamentais (igualdade, imparcialidade,

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    proporcionalidade, justia, boa f, racionalidade), que regulam o modo da sua

    actuao;

    e) princpio da imperatividade atenuada no h presuno de legalidade

    da actividade administrativa (h, pelo contrrio, um dever de fundamentaodas decises, designadamente das desfavorveis) e, embora se mantenha a

    autoridade e a estabilidade dos actos administrativos (autotutela declarativa),

    limita-se a executoriedade (autotutela executiva) dos actos de autoridade aos

    casos previstos na lei e s situaes de urgncia;

    f) princpio da tutela judicial plena e efectiva o poder judicial,

    actualmente dotado de poderes de plena jurisdio (apreciao, anulao e

    condenao), pode e deve controlar, quer a legalidade (em sentido estrito, de

    conformidade s normas escritas de valor legislativo), quer a juridicidade (no

    sentido de conformidade ao Direito, incluindo os princpios jurdicos

    fundamentais) da actividade administrativa.

    1.3. As dificuldades e as compresses ao princpio da legalidade e ao

    correlato princpio da tutela judicial no mbito da concretizao actual das

    polticas pblicas em contexto transnacional

    Acentua-se nos ltimos tempos uma crise da legalidade estrita, que

    decorre de vrios factores:

    a) da relevncia primacial das normas constitucionais, das normas

    internacionais e das normas de direito comunitrio directamente aplicveis, que

    so hierarquicamente superiores ou tm preferncia aplicativa sobre os actos

    legislativos;b) da importncia acrescida e decisiva dos princpios jurdicos, na

    interpretao, aplicao e fiscalizao da legitimidade das opes legislativas,

    designadamente pelo poder judicial;

    c) da proliferao, sobretudo em reas econmicas e sociais, de directivas

    poltico-estratgicas de contedo aberto ainda que sob forma legal (de

    decreto-lei) e regulamentar (resolues do Conselho de Ministros) e de

    standards cientficos e tcnicos, por vezes de origem privada, europeia e

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    internacional, que, a vrios ttulos e em diversos nveis, regulam a actividade

    administrativa ou seja, de normas que constituem programas finais (e no

    condicionais), com prejuzo para a intensidade da vinculao administrativa;

    d) da tendncia, em diversas reas, para a reduo das formas eprocedimentos de controlo prvio das actividades privadas e tambm uma

    desvalorizao de preceitos substanciais de menor relevo, em homenagem a

    uma eficincia de resultados na realizao do interesse pblico embora a par

    da (e em contraposio ) formulao europeia de um direito a uma boa

    administrao;

    e) do desenvolvimento da regulamentao independente por parte das

    autoridades reguladoras, europeias e nacionais;

    f) da proliferao das actuaes informais nos procedimentos

    administrativos, com relevo jurdico atenuado.

    1.4. Os princpios jurdicos fundamentais materiais (substanciais ou

    valorativos), como concretizaes do princpio da juridicidade, passam a reger

    directamente a actividade administrativa seja autonomamente, como padres

    de validade, seja influenciando a interpretao e aplicao, administrativa e

    judicial, das leis (interpretao conforme os princpios).

    So exemplos destes princpios fundamentais (aos quais se somam

    princpios jurdicos instrumentais, funcionais e processuais):

    a) Princpio da imparcialidade (nas suas vertentes subjectiva ou formal e

    objectiva ou material);

    b) Princpio da igualdade (no discriminao, proibio do arbtrio,equaltreatment, treatment as an equal);

    c) Princpio da proporcionalidade (na tripla dimenso de adequao,

    necessidade, equilbrio);

    d) Princpio da justia (uma formulao vaga e potencialmente

    abrangente);

    e) Princpio da boa f (e proibio do abuso de direito);

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    f) Princpio da proteco da confiana legtima (designadamente dos

    particulares);

    g) Princpio da razoabilidade ou da racionalidade (como imperativo de

    actuao administrativa);h) Estado de necessidade administrativo (contra-princpio, que

    dispensa a aplicao de regras em situaes de excepo).

    2. A discricionaridade administrativa

    Nos quadros tradicionais do princpio da legalidade, vinculao e

    discricionaridade eram momentos de complementaridade antagnica de uma

    mesma realidade, que se verificavam nas decises administrativas, encaradas

    na perspectiva da sua relao com a lei em todos os actos havia momentos

    vinculados e, em muitos, momentos discricionrios, contrapostos, de modo que

    onde houvesse vinculaes legais, no havia discricionaridade e vice-versa.

    No entanto, a realidade hoje mais complexa, na medida em que a

    discricionaridade no livre e se exerce sempre para alcanar o fim legalmente

    estabelecido nesse sentido se pode dizer que h uma discricionaridade

    vinculada (pelo menos finalidade legal). Por sua vez, como a definio

    abstracta dos pressupostos legais se faz muitas vezes atravs de conceitos

    imprecisos, o agente administrativo acaba por colaborar na concretizao do

    fim legal nos casos concretos de tal modo que se pode dizer igualmente que

    h uma vinculao discricionria.

    Por outro lado, em virtude do princpio da precedncia da lei, nohaver dvida actualmente de que a discricionaridade no designa uma

    liberdade administrativa: um espao decisrio que resulta de concesso

    legislativa, nos termos do princpio da competncia, que rege a actuao pblica

    (aquilo que no for permitido, proibido) no se podendo confundir com a

    autonomia privada, fundada no princpio da liberdade, que rege a actuao dos

    particulares (aquilo que no proibido, permitido).

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    2.1. Os problemas da discricionaridade

    A discricionaridade suscita vrios problemas diferentes, dos quais

    destacaremos, como problemas fundamentais:

    a) o problema do mbitoda figura, designadamente, da admissibilidadeda concesso de poderes discricionrios atravs de conceitos legais imprecisos;

    b) o problema da natureza do poder discricionrio, e, em especial, o do

    seu carcter jurdico;

    c) o problema da diversidade dos tipos de faculdades discricionrias.

    Estes problemas da discricionaridade tm de colocar-se actualmente no

    quadro das relaes tripolares Lei-Administrao- Juiz e no se podem

    equacionar apenas na relao entre a actividade administrativa e a lei.

    Acresce que os problemas da discricionaridade no podem ser

    resolvidos exclusivamente a partir de um entendimento do princpio do Estado

    de Direito que preconize a mxima determinao legislativa e a mxima

    fiscalizao judicial possveis, no pressuposto (preconceito) de que a

    discricionaridade um mal, ainda que necessrio.

    A relevncia do princpio constitucional e doutrinal da diviso dos poderes

    implica o reconhecimento de uma certa autonomia e responsabilidade prprias da

    Administrao no exerccio da sua funo (que tambm engloba a aplicao, isto

    , a criao-concretizao do Direito), quer perante o legislador (h-de haver

    uma reserva administrativa dos casos concretos), quer em face do juiz

    (mantm-se a proibio da dupla administrao) no contexto de um

    Estado de Direito Misto, moderado e equilibrado (contraposto ao Estado

    Legislador, ao Estado Administrativo e ao Estado dos Juzes).

    2.2. O problema do mbito ou extenso da discricionaridade

    A doutrina nunca teve dvidas quanto existncia de discricionaridade

    naquelas situaes em que a norma habilitante da prtica de um acto

    administrativo, conferia ao rgo competente, na sua estatuio, muitas vezes

    atravs do conceito dentico permissivo (pode), a faculdade de determinar o

    contedo das medidas a tomar (discricionaridade de deciso) ou possibilidade

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    de escolher entre as medidas alternativas determinadas na lei (discricionaridade

    de escolha).

    A questo que se ps foi a de saber se a Administrao tambm

    disporia de poderes discricionrios naquelas situaes em que a lei utilizavaconceitos indeterminados, designadamente na hiptese normativa, ao definir os

    pressupostos da deciso administrativa poderiam considerar-se esses

    conceitos legais indeterminados concessores de discricionaridade?

    Num plano substancial (no meramente nominalista), a questo refere-

    se existncia, ou no, nessas situaes, de espaos de valorao e deciso

    prprios da funo administrativa, que o juiz no possa controlar integralmente

    e a resposta positiva implica um conceito amplo de discricionaridade, que no se

    limite aos casos em que as leis confiram directamente Administrao um

    espao de deciso, mas abranja ainda os casos em que a Administrao

    disponha de um espao de avaliao ou de uma prerrogativa de avaliao,

    que o juiz no possa reexaminar em sede de controlo judicial.

    2.2.1. As primeiras posies tendiam a ser bem estremadas: as teorias do

    controlo total negavam a discricionaridade administrativa na aplicao de

    conceitos legais indeterminados; as teorias da discricionaridade afirmavam que

    toda a indeterminao legal implicava discricionaridade.

    Actualmente, avultam as posies moderadas: as teorias da

    discricionaridade admitem a existncia de alguns conceitos normativos

    indeterminados susceptveis de controlo intrnseco (reexame) pelo juiz; as

    teorias do controlo total, alm de reconhecerem conceitos concessores dediscricionaridade na estatuio da norma, aceitam, relativamente a casos

    contados de aplicao de conceitos jurdicos indeterminados formulados na

    hiptese legal (Tatbestand), a existncia de uma margem de livre apreciao

    administrativa (embora diferente da discricionariedade) que o juiz deve

    respeitar foi isso que sustentaram na doutrina alem, com diversas

    formulaes: a teoria da defensabilidade (Ule), a teoria dos factores

    (Kellner) e, sobretudo, a teoria da folga ou margem de apreciao (Bachof).

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    Neste contexto, podemos encontrar um consenso no sentido de que o

    problema de saber se os conceitos indeterminados utilizados pela lei concedem,

    ou no, um espao discricionrio respeita especificamente aos conceitos

    imprecisos de tipo, com a excluso:a) quer dos conceitos classificatrios, que so conceitos determinados

    (determinveis) por remisso para juzos de experincia comum (urgncia

    imperiosa) ou de uso de certo tempo e lugar, para valores ou institutos

    jurdicos (propriedade, famlia), para conceitos de cincias exactas ou em

    relao aos quais se verifique um consenso cientfico (substncia txica)

    porque a a indeterminao normativa no existe ou ento resolve-se por via

    interpretativa (hermenutica) e haver controlo total pelo juiz;

    b) quer dos conceitos subjectivos (abastecimento adequado dos

    mercados, ordem pblica, convenincia de servio, circunstncias

    excepcionais e urgentes de interesse pblico), que, pela sua extrema abertura

    ou vastido, em regra associada a faculdades de aco concedidas pelo

    legislador, devem presumir-se como delegaes no poder administrativo

    porque a no h apenas indeterminao conceitual e deve reconhecer-se um

    espao de concretizao prprio da Administrao.

    2.2.2. Na prtica, os casos em que a questo tem sido suscitada, perante

    as dificuldades ou a inadequao do controlo judicial das indeterminaes

    legais, tm sido fundamentalmente os seguintes:

    a) utilizao pela lei de conceitos indeterminados de valorno mbito de

    juzos sobre disposies ou aptides pessoais (juristas de reconhecimento mrito)ou de avaliaes tcnicas especializadas (filme de qualidade; terreno com

    aptido agrcola; adequada integrao no respeito pela volumetria e

    morfologia existentes na zona; esttica das povoaes ), incluindo a

    generalidade dos exames e as provas acadmicas;

    b) decises que implicam juzos com elementos determinantes de

    prognose (justo receio de ser perseguido; perigo para o trnsito;

    necessidades do mercado; ameaa de runa);

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    c) decises estratgicas ou tcnicas que obriguem a ponderao de

    interesses complexos (v.g., deciso sobre a construo ou a localizao de um

    aterro sanitrio, de uma co-incineradora, de uma ponte ou de um aeroporto;

    decises da autoridade reguladora das telecomunicaes sobre litgios relativos interligao de operadores);

    d) decises com consequncias polticas (v.g., a autorizao para a

    realizao de uma oferta pblica de aquisio de aces de um banco em fase

    de reprivatizao; a recusa de um visto para a entrada no pas de uma

    personalidade de relevo internacional);

    e) decises estruturais de carcter organizativo, no mbito de relaes

    administrativas especiais, designadamente as relativas a servios de contacto

    directo com os cidados utentes (criao ou extino de unidades orgnicas,

    abertura ou encerramento de servios ao pblico, como esquadras de polcia,

    escolas, centros de sade ou unidades hospitalares).

    Na discusso doutrinal, tm sido utilizados, em favor de um espao de

    escolha administrativa, rectius, de uma avaliao e controlo atenuados por parte do

    juiz, os seguintes argumentos ou tpicos: a orientao finalstica dos preceitos

    legais (programas finais em vez de programas condicionais); a

    responsabilidade administrativa pelas opes; a capacidade tcnica de avaliao; a

    legitimidade democrtica, procedimental ou social do rgo decidente; a

    irrepetibilidade das decises.

    Por sua vez, em favor do reexame judicial, tem-se invocado: a definio

    intensa dos pressupostos legais; a necessidade de proteco plena dos

    particulares e dos seus direitos (especialmente, dos direitos fundamentais) ouda afirmao estrita de determinados interesses comunitrios, bem como a

    relevncia decisiva para a soluo do caso do conhecimento jurdico ( ao juiz que

    cabe dizer o direito) ou do bom senso geral (o juiz encarna institucionalmente

    o senso comum)

    2.2.3. A posio da doutrina e jurisprudncia em Portugal

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    Antigamente, a doutrina e a jurisprudncia portuguesas, na linha de

    Marcello Caetano, optavam por uma contraposio radical entre

    discricionaridade (zona no jurdica) e interpretao (aplicao) de conceitos legais

    imprecisos (zona jurdica) num caso, haveria uma escolha de contedo entrevrias solues possveis, todas elas igualmente legtimas; noutro caso,

    haveria vinculao descoberta de uma nica soluo correcta do ponto de

    vista do legislador (da lei).

    Admitiam, no entanto, que, em certos casos, embora a soluo legal s

    pudesse ser uma, havia dificuldades de controlo judicial, prticas ou tcnicas

    nessas situaes reconheciam a existncia de uma discricionaridade

    imprpria (liberdade probatria, discricionariedade tcnica, justia

    administrativa).

    Mais recentemente, alteraram-se os pressupostos em que se baseava a

    posio tradicional.

    Desde logo, verifica-se que a interpretao no se reduz determinao

    de uma vontade pr-existente, implica nos casos concretos uma concretizao

    criadora (constitutiva), que evidente quando a lei utiliza conceitos vagos ou

    conceitos imprecisos de tipo. No h uma soluo nica na determinao

    concreta da hiptese normativa. No possvel uma separao absoluta entre

    hiptese e estatuio da norma legal, entre cognio e volio, ou entre

    interpretao e subsuno na aplicao do Direito, designadamente na

    aplicao das leis administrativas (que, em regra, feita, em primeira linha, pela

    Administrao).

    Depois, torna-se claro que a discricionaridade no uma escolha livredo Direito, entre uma srie de solues, todas elas igualmente legtimas;

    implica, sim, aprocura da melhorsoluo para a satisfao, no caso concreto, dos

    interesses pblicos legalmente definidos (estabelecidos), numa escolha

    orientada por princpios jurdicos.

    Por fim, chega-se concluso de que um conceito de discricionaridade

    imprpria pode representar um perigo para a proteco, quer da legalidade

    pblica, quer dos direitos dos particulares (alm de constituir, no plano

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    dogmtico, um monstrum irregulare), pois no fornece critrios substanciais para

    ajuizar da densidade adequada do controlo judicial das decises

    administrativas.

    2.2.4. Posio adoptada

    neste quadro que podemos formular sinteticamente a nossa posio.

    partida, prope-se um conceito amplo de discricionaridade como

    espao de avaliao e deciso prprio, da responsabilidade (autoria) da Administrao,

    decorrente de uma indeterminao legal (conceitual ou estrutural) e sujeito a um

    controlo atenuado (fiscalizao) pelo juiz, englobando: a) as faculdades (directas) de

    aco, em regra indicadas pelo elemento dentico permissivo (pode); b) os

    espaos de apreciao na aplicao de conceitos imprecisos de tipo; c) as

    prerrogativas administrativas de avaliao (por vezes designadas, de forma

    hoje inconveniente, como justia administrativa) situaes que a lei

    processual designa agora genericamente como dimenses decisrias que

    impliquem a formulao de valoraes prprias do exerccio da funo

    administrativa (artigos 71., n. 2 e 95., n. 3 do CPTA).

    Entre ns, na esteira W. Schmidt, Srvulo Correia continua a sustentar, por razes deconsistncia metodolgica e de rigor dogmtico (CJA, n. 70, 2008, p. 49 e ss), a distinocategorial entre a margem de livre apreciao (de pressupostos legais expressos em conceitos jurdicos indeterminados) e a discricionaridade, na medida em que aquela no implica umaponderao de interesses, estando sujeita apenas a um imperativo de adequao e no s outrasvertentes do princpio da proporcionalidade (necessidade e proporcionalidade em sentidoestrito). Parece-nos, no entanto, pelo contrrio, que h lugar, sempre que possvel, ao controlojudicial do resultado e, por isso, do equilbrio da soluo adoptada.

    Depois, defende-se que a existncia de uma situao de indeterminao

    concessora de discricionaridade resulta da interpretaodas leis habilitadoras, de

    acordo com as regras gerais e tendo em conta os tpicos enunciados acima,

    entre outros eventualmente relevantes (como, por ex., o tipo de tarefa e de

    funo do poder discricionrio; a ligao ntima entre conceitos imprecisos na

    hiptese e faculdades de aco na estatuio legal), que revelam as capacidades

    tcnicas ou as vantagens funcionais especficas, seja da Administrao, seja dos

    juzes.

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    Nessa linha, sustenta-se que na zona da discricionaridade (de avaliao

    ou de deciso) h uma repartio de competncias entre a Administrao e o

    juiz, entendida como distribuio de tarefas (de funes organizacionais) por

    dois poderes estaduais: a autoria dos actos e a inerente responsabilidade pelaprossecuo do interesse pblico legalmente definido cabem a Administrao; a

    fiscalizaoda conformidade ou compatibilidade, bem como da obrigatoriedade

    e das vinculaes da actuao administrativa com as normas (legais e

    regulamentares, nacionais e europeias,) e os princpios jurdicos a que est

    submetida (mera legalidade entendida como juridicidade) compete aos

    tribunais que no julgam da convenincia e oportunidade (do mrito) dessa

    actuao.

    Entende-se ainda que, na zona da discricionaridade (seja de deciso ou

    de avaliao) a actividade administrativa visa a aplicao da lei ao caso

    concreto, na procura da melhor soluo, orientada pelo fim da norma (interesse

    pblico especfico) e regulada por uma racionalidade jurdica (em obedincia a

    princpios constitucionais de actuao e tendo em conta os direitos, liberdades e

    garantias dos cidados); implica sempre uma complementao concreta da previso

    normativa (preenchimento de uma lacuna intra-legal), mesmo quando

    pondera interesses concorrentes, complementao que se exprime ou projecta

    nos motivos em que se funda a escolha do contedo da deciso.

    Por fim, conclui-se que, nas reas vinculadas, em que no haja concesso

    legal de poderes discricionrios, os rgos administrativos podem e devem

    concretizar a lei, colmatar as eventuais lacunas, resolver as dvidas de aplicao

    ou adequar as normas s circunstncias dos casos concretos authority-madelaw , estando essa actuao administrativa sujeita a um reexame ou controlo

    total por parte do juiz.

    2.3. A natureza do poder discricionrio

    A partir das consideraes feitas, podemos agora responder pergunta

    sobre a natureza do poder discricionrio, acentuando os aspectos relevantes que

    o caracterizam em vrias proposies:

  • 8/3/2019 A Administrao e o Direito (Jos Carlos Vieira de Andrade)

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    A discricionaridade uma concesso legislativa, determinada por

    interpretao da norma, e no um poder originrio da Administrao ou um

    resto, limitados pela lei e pelo juiz.

    A discricionaridade exprime a autonomia do poder administrativo, quetem legitimidade prpria (nacional, regional, local, corporativa, social) no

    contexto dos poderes pblicos constitucionalmente separados.

    A discricionaridade no um mal necessrio que deva ser reduzido

    ao mnimo possvel, desempenha um papel positivo, quer para a realizao do

    interesse pblico, quer para a proteco dos direitos e interesses dos

    particulares as funes tctica, de adaptao (de dispensa), tcnica, de

    planeamento e degesto.

    A discricionaridade um espao funcional e materialmentejurdico, onde

    a administrao tem de, em maior ou menor grau, concretizar a lei (o fim legal),

    actuando segundo princpios jurdicos (igualdade, imparcialidade, justia,

    proporcionalidade, boa f, que implicam ainda a racionalidade e a proibio do

    arbtrio) e estritamente vinculada pelos direitos, liberdades e garantias dos

    cidados.

    O poder discricionrio um poder de escolha resultante de uma

    indeterminao legal, mesmo que seja apenas de avaliao, desde que implique

    uma responsabilidade prpria que se repercuta directamente na fixao dos efeitos

    do acto (deciso).

    2.4. A metodologia do controlo judicial das decises discricionrias

    Os tribunais administrativos, em cumprimento do princpio daseparao e interdependncia dos poderes, julgam do cumprimento pela

    Administrao das normas e princpios jurdicos que a vinculam e no da

    convenincia ou oportunidadeda sua actuao (artigo 3., n. 1 do CPTA).

    O exerccio de poderes discricionrios concedidos Administrao

    susceptvel de fiscalizao, mas (ao contrrio dos momentos vinculados) no de

    reexame pelo juiz: alm do desvio de poder (utilizao da competncia para fim

    diverso do fim legal) e do erro de facto (erro relativo s circunstncias relevantes

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    para a deciso), consideram-se ainda controlveis, a partir da fundamentao

    obrigatoriamente apresentada pelo rgo decisor: o erro manifesto de apreciao

    (erro de avaliao que no deixe quaisquer dvidas ao juiz) e, em geral, a

    compatibilidade da vontade ou do juzo decisrios com os princpiosjurdicos constitucionais que regem a actividade administrativa.

    [Exemplo: na legalizao de obras sem licena, h discricionaridade na deciso, mas

    obrigao de ponderar questes de salubridade suscitadas pela vizinhana por fora do

    princpio da imparcialidade]

    Em caso de impugnao de actos administrativos que envolvam

    valoraes prprias do exerccio da funo administrativa, o juiz no reexamina

    a deciso em si, como se fosse um segundo decisor (autor), faz, como vimos, nouso dos seus poderes de fiscalizao, testes de juridicidade, para verificar se

    houve erros relevantes ou incumprimento ou desrespeito de princpios jurdicos

    fundamentais.

    Por outro lado, designadamente quando esteja em causa uma omisso,

    o juiz pode condenara Administrao na prtica de actos administrativos, bem

    como na adopo ou absteno de comportamentos ou na realizao de

    prestaes, mas s na medida em que tal resulte imperativamente de umaimposio legal ou de um princpio jurdico nas circunstncias especficas da

    situao concreta a vinculao jurdica pode resultar da reduo da

    discricionaridade a zero, quando, apesar de haver partida um espao de

    valorao e deciso prprio da Administrao, a apreciao das circunstncias

    do caso concreto permita identificar uma nica soluo como juridicamente

    possvel ou legtima.

    2.5. As formas tradicionais e as novas feies da discricionaridade

    substantiva

    A discricionaridade, em sentido amplo, pode incluir todos os espaos

    de escolha conferidos por lei aos rgos administrativos, mas, em sentido estrito,

    a discricionaridade diz respeito s escolhas substantivas, que respeitam ao

    contedo das decises ou nele se projectam para alm dos espaos de escolhaorganizativos,procedimentais eformais.

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    Acresce que a discricionaridade foi construda no contexto da teoria do

    acto administrativo, isto , em relao s decises individuais e concretas de

    aplicao de normas legais por isso se entendia que a regulamentao prvia

    de decises discricionrias implicaria, em regra, o vcio de no uso do poderdiscricionrio.

    A tendncia actual vai no sentido de uma concepo unitria de

    discricionaridade, como designao inclusiva de todos os espaos de deciso

    administrativa, mas tendo em considerao as feies especiais de

    discricionaridade substantiva, que implicam diversas adaptaes tericas e

    dogmticas da figura tradicional:

    a) a discricionaridade regulamentar (remisso);

    b) a discricionaridade de planeamento em que existe uma maior

    liberdade conformadora da Administrao, perante normas-fim (e no normas-

    condio, com pressupostos legalmente definidos, ainda que atravs de

    conceitos indeterminados);

    c) a simplificao tipificadora, designadamente na administrao fiscal

    por exemplo, a admissibilidade da concretizao administrativa dos conceitos

    legais indeterminados para quantificao da matria colectvel atravs de

    tipos mdios;

    d) a discricionaridade configuradora ou reguladora, tpica da regulao

    pblica econmica de sectores privados de interesse pblico por autoridades

    (semi)independentes;

    e) a discricionaridade implementadora no contexto da execuo de

    programas ou directivas poltico-estratgicas de governo as especificidadesdas decises tcnicas, derivadas de recomendaes transnacionais ou

    negociadas, no mbito da realizao de polticas pblicas, sem uma estrita

    vinculao legislativa de contedo (lei serve sobretudo como limite e

    orientao), muitas vezes com participao e compromisso dos representantes

    dos interesses sociais envolvidos, em termos que limitam as possibilidades de

    fiscalizao judicial.

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    2.6. As garantias do interesse pblico e dos direitos dos cidados

    O alargamento efectivo do espao dos poderes discricionrios a que

    hoje assistimos exige o reforo ou o aperfeioamento das garantias de

    prossecuo do interesse pblico e de respeito pelos direitos dos particulares.

    Em primeiro lugar, das garantias polticas Provedor de Justia,

    controlo parlamentar da actividade do Governo e da Administrao, controlos

    por organismos internacionais e pelo espao pblico (organizaes sociais e

    cvicas e meios de comunicao social).

    Em segundo lugar, das garantias administrativas concertao,

    participao dos interessados e, de algum modo, a descentralizao de

    atribuies e competncias.

    Em terceiro lugar, e fundamentalmente, das garantias jurdicas

    aplicabilidade directa dos preceitos relativos aos direitos, liberdades e garantias

    (substanciais e procedimentais); manuteno da reserva de lei em matrias

    essenciais; o desenvolvimento do direito organizatrio e procedimental

    (direitos de informao e de audincia prvia); a auto-vinculao regulamentar

    externa ou interna; a intensificao do controlo judicial pelos tribunais

    administrativos e fiscais (incluindo, como vimos, um controlo mais apurado

    dos vcios da discricionaridade baseado na obrigatoriedade de motivao dos

    actos administrativos), bem como, pelo menos indirectamente, da fiscalizao

    financeira do Tribunal de Contas.

  • 8/3/2019 A Administrao e o Direito (Jos Carlos Vieira de Andrade)

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    II.AS RELAES JURDICAS ADMINISTRATIVAS

    A actividade das entidades administrativas e dos particulares

    desenvolve-se num contexto relacional que, na medida em que disciplinadapor normas de direito pblico, d origem a relaes jurdicas de direito

    administrativo, no mbito das quais se exercem posies jurdicas subjectivas.

    1. As relaes jurdicas de direito administrativo

    Uma relao jurdica, enquanto relao social disciplinada pelo direito,

    pressupe um relacionamento entre dois ou mais sujeitos, que seja regulado por

    normasjurdicas, das quais decorrem as posies jurdicas, activas e passivas, que

    constituem o respectivo contedo.

    As relaes jurdicas de direito administrativo so relaes jurdicas

    pblicas (seguindo um critrio estatutrio, que combina sujeitos, fins e meios),

    isto , aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidadepblica ou

    uma entidade particular no exerccio de umpoderpblico ou de um dever pblico,

    conferido ou imposto com vista realizao de um interesse pblico legalmente

    definido.

    So diversos os tipos de relaes jurdicas administrativas, que podem

    ser objecto de vrias classificaes doutrinais.

    As relaes jurdicas que ligavam os particulares Administrao no

    tinham uma especial importncia, nem requeriam um relevo autnomo na

    configurao jurdico-dogmtica da actividade administrativa, na medida em

    que, por um lado, eram entendidas como relaes assimtricas, em que posiopassiva (dever) da Administrao, decorrente de uma norma de direito

    objectivo, correspondia eventualmente um interesse, mas no um "direito" ou

    uma "pretenso" substantiva do particular (tal como o contra-plo do dever do

    particular no era um direito, mas um poder administrativo), e, por outro lado,

    constituam relaes simples ou bipolares, em que havia apenas dois sujeitos ou

    dois plos de interesse (um activo, outro passivo) em princpio a

    Administrao, de um lado, e um particular, do outro lado.

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    A relevncia dogmtico-prtica da relao jurdica cresceu, a partir de

    uma dupla evoluo.

    Por um lado, os particulares passaram a ser vistos como cidados,

    titulares de verdadeiros direitos perante a Administrao, seja por seremtitulares de direitos, liberdades e garantias (designadamente nas reas

    tradicionais de exerccio dos poderes tributrios e de polcia), seja por os seus

    interesses passarem a ser objecto de proteco legal (nas reas de actuao

    privada sujeitas por lei a autorizao administrativa, nas reas de actuao

    administrativa de prestao, atravs de leis que concretizam os direitos

    fundamentais sociais, bem como nas reas de concertao) adquirindo relevo

    as relaes jurdicas simtricas (em que posio passiva de um sujeito

    corresponde exactamente uma posio activa do outro sujeito) e as dissimtricas

    (em que cada um dos sujeitos simultaneamente titular perante o outro de

    posies activas e passivas, conexas entre si, como acontece nas relaes

    contratuais);

    Por outro lado, multiplicam-se as relaes complexas ou multipolares,

    polissimtricas, poligonais ou multilaterais, em que se confrontam mais de dois

    sujeitos e distintos plos de interesse, em conjuntos interligados de posies

    activas e passivas.

    [Sobre o conceito, v. Gomes Canotilho, Relaes jurdicas poligonais, ponderaoecolgica de bens e controlo judicial preventivo, Revista Jurdica do Urbanismo e do Ambiente, n1, Junho/1994, pgs. 57 a 61]

    Na realidade, cada vez mais frequente a existncia, no s de relaes

    administrativas dissimtricas, pelo recurso ao contrato ou a outras formas de

    acordo entre a Administrao e os particulares, como de relaes poligonais, em

    que muitas vezes os particulares, e tambm as entidades administrativas,

    aparecem com posies conflituantes entre si, interessados em actuaes

    diferentes (ou at contrrias) da Administrao.

    Uma das mudanas mais significativas na construo dogmtica do

    direito administrativo consistiu justamente na superao da concepo

    exclusivamente bilateral do acto administrativo, quando existam direitos e

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    interesses conexos, que possam ser lesados no seu mbito vital pela actuao

    pblica isto fora dos procedimentos concursais, no mbito dos quais mais

    cedo se reconheceu a natureza multilateral da relao jurdica administrativa.

    As primeiras situaes em que a doutrina e a jurisprudncia se deramconta de tal necessidade tero acontecido no domnio do direito urbanstico, a

    propsito da autorizao para construo, em que se percebeu que os direitos e

    interesses legalmente protegidos dos vizinhos estavam directamente envolvidos

    e tinham de ser integrados na relao jurdica que a autorizao visava

    constituir ou modificar. Mas muitas outras situaes se seguiram, nas mais

    diversas reas de actuao jurdica administrativa, incluindo a segurana social

    e a cultura, sendo actualmente as mais famosas as que envolvem direitos e

    interesses de concorrentes econmicos, direitos e interesses dos consumidores e

    utentes de servios pblicos e, sobretudo, direitos e interesses ambientais (e o

    carcter poligonal das relaes complexifica-se ainda mais quando se tomem

    em considerao os interesses econmicos e ambientais das prprias geraes

    futuras).

    A partir da, construiu-se um novo paradigma de relao jurdica

    administrativa multilateral, poligonal ou multipolar, na sequncia e perante as

    insuficincias do conceito de acto administrativo com duplo efeito ou com

    eficcia em relao a terceiros no bastava encarar a dupla relao dos

    destinatrios e dos terceiros com a Administrao, na medida em que tambm

    releva no plano administrativo, ainda que com intensidades diversas, a relao

    dos particulares entre si, que pode ser objecto de aces administrativas

    autnomas, como a lei processual agora expressamente reconhece (artigo 37.,n. 3, do CPTA).

    A concepo de relao poligonal ou multilateral comeou por ser

    reconhecida no plano da tutela judicial dos direitos e interesses legalmente

    protegidos de terceiros, conexos com a relao procedimental principal, tutela

    reconhecida a interesses de facto diferenciados, interesses comunitrios e interesses

    difusos, no mbito da aco popular a lei determina um alargamento da

    legitimidade dos interessados (basta um interesse de facto relevante para

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    permitir a impugnao de actos ilegais), estendido ainda s situaes em que

    estejam em causa bens e valores comunitrios (como a sade pblica, o

    ambiente, o urbanismo, o ordenamento do territrio, a qualidade de vida, o

    patrimnio cultural e os bens do domnio pblico - artigo 9., n. 2, do CPTA).Para alm disso, determina-se que as posies jurdicas subjectivas de

    pessoas que possam ser afectadas ou lesadas por uma deciso administrativa

    devem ser tomadas em considerao no prprioprocedimento em que se tomam

    as decises administrativas obrigatoriamente, por deciso legal ou por

    imperativo de conhecimento oficioso, ou, pelo menos, sempre que os

    interessados dem delas conhecimento ao rgo competente para dirigir a

    instruo do procedimento ou para tomar a deciso final.

    Por fim, constri-se um sistema de justia administrativa de base

    subjectivista, em que os particulares, em vez de alegarem a ilegalidade

    objectiva, podem (ou tm mesmo de) invocar a leso das suas posies jurdicas

    subjectivas, visando a interveno judicial, principalmente, assegurar a

    proteco de direitos e interesses legalmente protegidos.

    A partir daqui assiste-se a uma densificao da proteco desses

    interesses de terceiros no plano substantivo, tendo como consequncia, como

    veremos a seguir, o alargamento do conceito de direito subjectivo pblico (construdo

    como direito e interesse legalmente protegido).

    2. Posies jurdicas administrativas dos particulares perante a

    Administrao

    2.1. Posies jurdicas subjectivas de vantagem (ou favorveis)

    So as posies jurdicas dos particulares s quais correspondem

    obrigaes, deveres e sujeies da Administrao e/ou limitaes (negativas)

    ou condicionamentos (positivos) da actividade administrativa.

    2.1.1. O conceito de direitos e interesses legalmente protegidos

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    Tradicionalmente, distinguia-se entre direitos subjectivos (direitos

    plenos) e interesses legtimos entendendo-se que, em regra, o particular

    dispunha apenas de interesses legtimos em face da Administrao,

    designadamente quando e na medida em que esta gozasse de algum espao dediscricionaridade.

    ExcursoA doutrina italiana elaborou trs critrios distintos para distinguir entre direitos

    subjectivos e interesses legtimos.Um primeiro critrio, concebido por Guicciardi, baseia-se na natureza da norma.

    Parte-se do pressuposto de que as normas esto divididas em duas categorias: a) normas derelao, que, atravs de um juzo de relao entre interesses diversos dos sujeitos jurdicos,traam uma linha de demarcao ntida entre a esfera jurdica da Administrao Pblica e aesfera jurdica dos privados haver violao de um direito subjectivo se a Administraoultrapassar essa linha de demarcao e invadir a esfera jurdica de um particular; b) normas deaco, que pelo contrrio, regulam o exerccio de um poder da Administrao, atribudopreviamente por normas de relao h violao de um interesse legtimo se a Administraoviolar este tipo de normas.

    O segundo critrio funda-se na natureza vinculada ou discricionria da actividadeexercida. Perante uma actividade vinculada, o particular gozar de um direito subjectivo. Pelocontrrio, em caso de actividade discricionria, o cidado pode reivindicar somente uminteresse legtimo.

    Um terceiro critriobaseia-se na distino entre falta de podere mau exerccio do poder:sempre que se invoque um mau uso do poder, est a fazer-se valer um interesse legtimo.Quando se conteste a prpria existncia do poder da Administrao, faz-se valer um direitosubjectivo.

    Hoje, a fronteira a estabelecer com nitidez deve ser a que delimita, de

    um lado, as posies jurdicas substantivas ("direitos e interesses legalmente

    protegidos" ou "direitos", num sentido amplo) e, do outro lado, os interesses

    simples ou de facto.

    a) As posies jurdicas substantivas implicam sempre uma inteno

    normativa de proteco efectiva de um bem jurdico prprio de determinado

    particular, seja em primeira linha (estamos, ento, perante direitos subjectivos), sejaem segunda linha, em complemento de um interesse pblico primacial ( o caso

    dos interesses legalmente protegidos).

    A intencionalidade, o contedo objectivo favorvel e o grau de

    efectividade ho-de resultar da interpretao da norma de direitosubstantivo que

    regula a relao jurdica, devendo presumir-se a inteno protectora quando uma

    norma de direito objectivo seja necessria ou adequada ao favorecimento de

    determinados interesses particulares.

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    [Exemplos de fronteira: o direito (?) ou interesse legalmente protegido (?) de um

    trabalhador em funes pblicas de acumular o emprego pblico com uma actividade privada

    que com ele no seja (no tenha sido definido como) legalmente incompatvel cfr. o artigo

    269./5 da CRP; o direito proteco policial, como manifestao do direito individual

    segurana]

    Esta posio exprime-se, depois, numpoder de vontade que visa exigir ou

    pretender determinados comportamentos ou produzir autonomamente

    determinados efeitos jurdicos, para satisfao do interesse reconhecido e

    protegido pela norma jurdica comoprprio do respectivo titular.

    [No direito privado, v. a contraposio e a sntese entre as posies voluntaristas

    (Windscheid) e as posies teleolgicas (v. Jhering), que se manifestam hoje em diferentes

    definies de direito subjectivo de MANUEL DE ANDRADE poder atribudo pela ordemjurdica de exigir ou pretender um determinado comportamento ou de produzir determinados

    efeitos jurdicos , de ORLANDO DE CARVALHO poder da vontade juridicamente

    protegido - e de MENEZES CORDEIRO permisso normativa especfica de aproveitamento

    de um bem.]

    b) Os interesses simples ou de facto representam vantagens genricas

    para os administrados, ou ento especficas de pessoas determinadas, mas que,

    encaradas do ponto de vista da norma reguladora , so vantagens ocasionais ou

    puramente reflexas relativamente ao interesse pblico mesmo que se trate de

    interesses diferenciados cujos titulares gozem, face lei processual, de

    legitimidade impugnatria, por se encontrarem numa situao que lhes confira

    interesse directo e pessoal na anulao de um acto administrativo.

    A distino interessa para efeitos contenciosos, designadamente para a

    propositura de aces de condenao da Administrao, bem como para efeitos

    procedimentais por exemplo, para determinar o direito participao ou ponderao no procedimento, e para efeitos substantivos, como a

    obrigatoriedade de fundamentao ou a legitimidade da revogao ou da

    anulao administrativa de actos administrativos.

    2.1.2. A variedade e a continuidade das posies jurdicas substantivas

    Por outro lado, h que reconhecer, dentro do conjunto das posies

    jurdicas substantivas, uma certa variedade, mas uma variedade tpica e no-

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    categorial, em face da continuidade gradativa das figuras do "direito subjectivo" e

    do "interesse legalmente protegido" no que respeita determinabilidade e

    individualizao do contedo, bem como intencionalidade e intensidade da

    proteco a definir em cada hiptese por interpretao das normasaplicveis.

    a) H a considerar, desde logo, a existncia de diversos tipos de direitos

    subjectivos, alguns dos quais no eram habitualmente configurados como tais

    nas relaes jurdicas administrativas:

    i) Em primeiro lugar, os direitos transitivos ou de natureza obrigacional

    (posies jurdicas pretensivas), que, hoje, no so espcies raras, como eram na

    poca liberal, sobretudo no contexto de uma administrao concertada, que

    utiliza o contrato como forma tpica de actuao, e de uma administrao social,

    que em grande medida uma "administrao de prestaes".

    Pense-se, por exemplo, para alm dos direitos tradicionalmente

    reconhecidos e semelhantes como o direito passagem de diploma ou de

    alvar de actividade licenciada, o direito greve e outros direitos dos

    funcionrios , nos direitos dos co-contratantes privados em contratos

    administrativos e, em especial, nos direitos sociais, como os direitos s prestaes

    de segurana social e de sade ou aos subsdios para o exerccio de certas

    actividades de interesse social ou cultural, mas tambm nos direitos a

    prestaes decorrentes do dever estadual de proteco efectiva dos direitos,

    liberdades e garantias dos particulares.

    ii) Em segundo lugar, os direitos intransitivos ou absolutos (posies

    jurdicas defensivas ou opositivas) a que correspondem, do lado daAdministrao Pblica, deveres gerais de absteno e de respeito: desde logo, as

    liberdades e determinados direitos fundamentais dos cidados (direitos pessoais e

    direitos polticos, como as liberdades de reunio e de manifestao, o direito de

    associao, direito de propriedade, o direito de voto), relativamente aos quais a

    Constituio impe sobretudo o acatamento pblico, que ganham relevncia ao

    nvel administrativo atravs da concepo das normas constitucionais que os

    consagram como direito imediatamente aplicvel; depois, tambm os direitos

  • 8/3/2019 A Administrao e o Direito (Jos Carlos Vieira de Andrade)

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    pblicos reais, como, por exemplo, os direitos de uso normal do domnio pblico

    estabelecidos por lei.

    iii) Por fim, os direitos potestativos que so poderes (unilaterais) de

    provocar inelutavelmente a constituio, modificao ou extino de umarelao jurdica, aos quais corresponde uma sujeio do lado passivo, como, por

    exemplo, o direito de voto (em certa dimenso), o direito de aceitar ou de

    renunciar a mandato pblico, o direito de resciso de contrato administrativo

    (por incumprimento de prestaes pecunirias pelo contraente pblico), o

    direito a renunciar qualidade de membro de organizao pblica.

    b) Depois, h que ter em considerao os diferentes graus de densidade

    normativa, que se repercutem em graus de efectividade, dado que nem todos os

    direitos so verdadeiros direitos subjectivos plenos.

    i) Existem, de facto, direitos limitados, enquanto direitos subjectivos

    pblicos que no gozam de uma tutela plena .

    o que acontece, desde logo, com os direitos condicionados em sentido

    estrito designadamente, os direitos atribudos por actos administrativos, mas

    sujeitos a condio suspensiva ( pendente conditione) ou a uma actuao

    procedimental integrativa da eficcia, que s produzem os seus efeitos principais

    se vier a verificar-se a condio ou a prtica do acto integrativo (que tm ou

    podem ter efeitos ex tunc, retrotrados data da perfeio do acto).

    Mas igualmente o que se passa com os direitos enfraquecidos, que

    podem, por fora da lei ou por fora de acto administrativo com base na lei, ser

    sacrificados atravs do exerccio legtimo de poderes da autoridade

    administrativa por exemplo, o direito de propriedade face ao poder deexpropriao ou ao poder de planeamento, o prprio direito do funcionrio ao

    vencimento face ao poder disciplinar de suspenso, os direitos de utilizao

    excepcional do domnio pblico, perante os poderes de gesto dominial, os

    direitos do co-contratante privado face aos poderes legais de modificao e de

    resoluo do contrato administrativo pelo contraente pblico, o direito do

    destinatrio de acto favorvel sujeito a reserva ou a condio resolutiva.

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    Tambm no gozam de uma tutela plena os direitos comprimidos, que so

    limitados por lei em termos de necessitarem de uma interveno administrativa

    que permita o seu exerccio por exemplo, direitos ou liberdades dos

    particulares que dependam de autorizao administrativa (permissiva), como aliberdade de exerccio da profisso que dependa da inscrio numa ordem

    profissional, ou a liberdade de circulao automvel dependente da obteno

    da carta de conduo ou, para a sada para o estrangeiro, da emisso de

    passaporte.

    H a considerar ainda os direitos incompletos, que, sendo mais que

    expectativas jurdicas, resultam da vinculao material de decises

    interlocutrias em procedimentos complexos por exemplo, os direitos ao

    licenciamento resultantes da aprovao do projecto de arquitectura no

    procedimento de licenciamento de obras particulares.

    ii) Por sua vez, h "direitos prima facie", isto , posies subjectivas

    pblicas em que esto em causa directamente e em primeira linha interesses

    prprios de particulares individualizados (e que, portanto, se devem configurar

    como direitos), mas cujo contedo no est perfeitamente determinado na lei,

    dependendo, para se tornarem "definitivos" (lquidos e certos) e exercitveis, de

    uma concretizao ou densificao por parte da autoridade administrativa por

    exemplo, certos direitos genricos a prestaes e subsdios de tipo ou montante

    varivel, ou o prprio direito proteco policial, em face do poder de escolha

    administrativa dos meios a utilizar.

    c) Por ltimo, h a considerar os novos problemas que se pem na

    delimitao da fronteira entre interesse legtimo, por um lado, e interesse simplesou de facto, por outro, numa evoluo que vem igualmente favorecer a ampliao

    do conjunto das posies jurdicas substantivas, constituindo novos interesses

    legalmente protegidos:

    i) a juridificao do poder discricionrio designadamente a

    necessidade de a Administrao actuar em conformidade com princpios gerais,

    como o da imparcialidade, de igualdade, da justia, da proporcionalidade, da

    racionalidade, da boa f e da proteco da confiana legtima teve como

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    consequncia o alargamento do domnio de proteco jurdica das normas

    reguladoras da actividade administrativa, transformando interesses, antes

    considerados meras expectativas ou interesses de facto, em interesses

    legalmente (isto , juridicamente) protegidos;ii) a lei substantiva determina, para diversos efeitos, o relevo de

    interesses semi-diferenciados, como, por exemplo, os "interesses colectivos"

    enquanto interesses de associaes na defesa de interesses gerais dos associados

    , e os "interesses locais gerais" enquanto interesses da generalidade dos

    residentes numa determinada circunscrio, relativamente aos bens do domnio

    pblico (cf. CPA, artigos 53., n. 1, in fine e n. 2, alnea b), e 160.);

    iii) reconhece-se, a nvel constitucional e legal, a relevncia jurdica

    substantiva de "interesses difusos" (Constituio, artigos 60., 66. e 78.; CPA,

    artigos 53., n. 2 e 160.) devendo distinguir-se os interesses difusos

    propriamente ditos, que so indivisveis, dos direitos individuais homogneos, que

    so divisveis embora aqueles muitas vezes acabem por relevar apenas como

    direitos procedimentais (de informao, de participao ou de aco judicial);

    iiii) admite-se a relevncia jurdica, ainda que limitada, de interesses

    decorrentes de certas formas de regulao administrativa (directivas, standards,

    recomendaes, etc.) de baixa normatividade (soft law), em funo do

    princpio da proteco da confiana legtima; bem como de expectativas jurdicas

    e interesses de facto que sejam afectados de forma especial e anormal pela

    actividade administrativa que podem dar lugar a uma indemnizao pelo

    sacrifcio.

    2.2. Posies de desvantagem (ou desfavorveis)

    Considerando agora as situaes em que os particulares aparecem

    numa posio desfavorvel em face da Administrao, h que distinguir, na

    esteira da doutrina do direito privado, entre sujeies, deveres e obrigaes, e

    nus:

    a) as sujeies ou "estados de sujeio" constituem posies jurdicas

    passivas dos particulares, que surgem nas relaes jurdicas administrativas em

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    correspondncia com direitos potestativos da Administrao (por exemplo, em

    casos de reserva de modo, ou de determinados poderes contratuais), mas que

    so sobretudo caractersticas enquanto posies correspectivas de poderes

    jurdico-pblicos gerais ou especiais, como, por exemplo, o poder de expropriar, opoder policial, o poder tributrio, o poder regulamentar ou o poder de direco

    sobre funcionrios e trabalhadores, utentes ou membros de organizaes

    pblicas.

    So posies tpicas no contexto de um sistema de administrao

    executiva, embora ao falar de "sujeio" se pense hoje menos em "subordinao"

    do que em "eventualidade de suportar determinadas consequncias do

    exerccio legtimo do poder". O exerccio dos poderes administrativos d, em

    regra, origem a relaes jurdicas administrativas concretas, que integram

    outras posies jurdicas subjectivas.

    b) os deveres, em sentido amplo, incluem as obrigaes (concretas) dos

    particulares, decorrentes da lei, de regulamento, de acto (desfavorvel ou

    favorvel com encargos modais) ou de contrato administrativo a que

    correspondem, em regra, direitos da Administrao de exigir a prestao ,

    mas tambm os meros deveres (genricos e, por vezes, inespecficos),

    decorrentes das normas jurdicas administrativas.

    Podem ser obrigaes ou deveres de fazer, de dar, de no fazer(incluindo

    aqui os deveres gerais de absteno) ou de suportar limitaes concretas

    (sacrifcio ou leso, ainda que com converso no equivalente econmico) aos

    seus direitos como, por exemplo, os deveres de pagar impostos, de

    destruio de bens insalubres, de desinfeco de instalaes ou de vacinao deanimais; os deveres concretos de pagamento de impostos e taxas (verificados os

    pressupostos da tributao); os deveres de no construir ou de no obstruir a

    via pblica; os deveres de suportar uma determinada expropriao, uma

    requisio ou uma fiscalizao.

    Estes deveres tm de resultar da lei ou, no caso das obrigaes, de

    contrato.

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    A previso legal de um dever pode ser directa, quando a lei

    expressamente o estabelea, ou indirecta, na medida em que o dever decorra do

    exerccio de poderes administrativos legalmente previstos, mas, por fora do

    princpio da precedncia da lei, h-de existir sempre, mesmo no domnio(externo) das "relaes especiais de poder". Quando a constituio do dever

    implique a concretizao ou a restrio de direitos, liberdades ou garantias

    fundamentais, tem de ser feita atravs de lei parlamentar ou de decreto-lei

    autorizado.

    c) os nus jurdicos, em sentido estrito, existem sempre que o titular de

    um poder ou faculdade tem a necessidade prtica de adoptar um certo

    comportamento, caso pretenda assegurar a produo de um efeito jurdico

    favorvel ou no perder um certo efeito til j produzido.

    So exemplos o nus de apresentao de documentos ou o nus da

    prova em procedimento administrativo (v. artigo 88. do CPA), o nus de

    observncia de termos de caducidade (como o prazo de recurso), o nus de

    prestao de cauo por concorrentes a uma empreitada ou a uma concesso,

    ou o de pagamento de taxa para obteno de alvar de licena concedida, o

    nus de inscrio em registos pblicos de certeza jurdica, o nus de verificao

    de uma condio potestativa.

    Para alguns autores, o nus no uma posio desfavorvel, tratando-

    se, antes, de uma figura "mista" ou "compsita", visto que a obrigao

    instrumental se associa a um poder ou a uma faculdade.

    2.3. Os estados ("status") ou situaes jurdicas estatutriasSo posies jurdicas complexas, no contexto de relaes jurdicas

    dissimtricas ou polissimtricas, que formam um conjunto ordenado de direitos e

    deveres, derivados, directa ou indirectamente, de um nico facto ou acto

    jurdico, como, por exemplo, os "status" de nacional (resultante do nascimento

    ou da naturalizao), de muncipe (decorrente da residncia), de funcionrio ou

    de juiz (provocados pela nomeao), de militar (resultante da incorporao), de

    preso (efeito de sentena), de advogado (decorrente da inscrio na Ordem

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    profissional), de aluno ou de internado (consequncia da admisso

    administrativa num estabelecimento de ensino pblico ou num estabelecimento

    hospitalar).

    So caracterizados precisamente por formarem um conjunto deposies jurdicas ordenado (com carcter "objectivo e regulamentar"), que

    resulta da sua definio genrica pela lei (por uma norma jurdica) e da sua

    aplicao em bloco a todos os que se encontrem em determinadas

    circunstncias ou ingressem em determinado grupo ou categoria. Ao contrrio

    dos direitos e das obrigaes "singulares", as posies subjectivas integradas em

    "status" so susceptveis de ser modificadas por via normativa, sem que possam

    invocar-se regalias antigas, salvo as que constituam direitos subjectivos

    individualmente adquiridos.

    2.4. Capacidade jurdica, faculdades e expectativas

    So figuras que no constituem, em si, posies jurdicas substantivas

    dos particulares, mas que se relacionam com elas:

    a) capacidade jurdica: a idoneidade para ser titular, activo ou passivo,

    de posies jurdicas (cf. artigo 67. do Cdigo Civil), ou, dito de outra maneira,

    na perspectiva que aqui nos interessa, a idoneidade para ser sujeito de uma

    relao jurdica administrativa pblica.

    Os particulares, alm das incapacidades gerais (menoridade, interdio,

    inabilitao), podem sofrer de incapacidades especficas no domnio das

    relaes de direito pblico, designadamente quando esto inseridos em relaes

    especiais de direito administrativo (v., por exemplo, as "incompatibilidades" eos impedimentos dos trabalhadores em funes pblicas).

    b) faculdades jurdicas: representam os vrios modos possveis de

    manifestao ou de actuao de um direito subjectivo (ou de uma posio

    jurdica subjectiva), que constituem o respectivo contedo, correspondendo

    muitas vezes a "segmentos ideais" das normas jurdicas que os prevem (v. as

    diversas faculdades que integram o direito de propriedade, ou a liberdade de

    associao, por exemplo).

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    c) expectativas jurdicas: em sentido estrito, verificam-se nas situaes

    concretas em que algum espera que se completem os elementos susceptveis

    de dar origem a um direito subjectivo seu, um direito "in fieri" (em formao)

    o exemplo clssico o da expectativa da promoo ou da penso, quando otrabalhador ou contribuinte j possua alguns dos requisitos legais necessrios.

    A sua tutela jurdica consiste apenas na proibio Administrao de

    impedir arbitrariamente a produo do facto ou acto que d origem esse direito

    (mas j no a proibio de regulao diversa).

    No constituem, em si, posies jurdicas subjectivas actuais,

    consubstanciando quando muito "interesses simples" diferenciados; no devem

    confundir-se, designadamente, com as posies jurdicas dos particulares que,

    no contexto de procedimentos complexos faseados, foram objecto de decises

    parcelares ou parciais favorveis, pois que essas devem ser consideradas hoje

    como verdadeiros direitos ou interesses legalmente protegidos.

    3. As posies jurdicas substantivas da Administrao

    A capacidade jurdica de direito pblico da Administrao (tal como a

    respectiva capacidade de direito privado) , desde logo, uma capacidade

    delimitada pelo princpio da especialidade, isto , pelas atribuies legais de cada

    um dos entes pblicos que a compem. Contudo, nos termos do princpio da

    legalidade (contraposto ao princpio da liberdade), a capacidade jurdica de

    direito pblico, mesmo no domnio contratual, ao incluir poderes deautoridade, identifica-se e , por isso, tambm delimitada pela competncia que a

    lei atribui aos respectivos rgos.

    3.1. A Administrao Pblica dispe, fundamental e

    caracteristicamente, como se viu j, de poderes pblicos de ndole geral, que so

    poderes-deveres ou poderes funcionais, porque visam sempre a prossecuo de

    interesses objectivos (e/ou) de outrem interesses pblicos ou o "interesse

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    pblico". So, por isso, salvo disposio da lei em contrrio, poderes

    imprescritveis e, no estando na disponibilidade do respectivo titular,

    inalienveis e, em princpio, irrenunciveis .

    3.2. A Administrao ainda titular, perante os administrados, de

    direitos e deveres concretos, muitas vezes decorrentes do exerccio dos seus

    poderes, no contexto de relaes ou situaes determinadas.

    Tratar-se-, na maior parte dos casos, de direitos e de deveres

    obrigacionais ou transitivos (resultantes do exerccio de poderes administrativos

    ou de clusulas contratuais), mas podem ser igualmente direitos absolutos (por

    exemplo, direitos reais sobre o domnio pblico ou direitos de exclusivo de

    certas actividades) e deveres gerais de absteno (em face das liberdades

    individuais), ou ento direitos potestativos e sujeies (designadamente no

    domnio dos contratos administrativos de subordinao).

    3.3. Nas relaes inter-administrativas, os entes pblicos podem surgir

    em posio de dominncia-dependncia mais ou menos intensa (v., por

    exemplo, as relaes de superintendncia do Estado sobre os institutos pblicos

    ou dos municpios sobre a administrao indirecta municipal, bem como as

    relaes entre o Estado e os entes autnomos, ou a Regio Autnoma e as

    autarquias, no mbito da tutela), hipteses em que essas relaes se podem

    aproximar das que ligam a Administrao aos particulares assim, por

    exemplo, a actuao do rgo de um instituto pode depender da autorizao

    ministerial, ou um acto de um rgo municipal pode estar dependente de umparecer vinculativo ou de uma aprovao governamental; tambm as

    disposies do Cdigo dos Contratos Pblicos relativas aos contratos

    administrativos apenas se aplicam aos contratos interadministrativos quando

    um dos contraentes pblicos se submeta ao exerccio de poderes de autoridade

    pelo outro (artigo 338.).

    Mas podem relacionar-se em posio de paridade, sem prejuzo do

    carcter pblico da relao, que h-de ser aferido em face da ambincia de

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    direito pblico seja nas relaes intermunicipais ou interinstitucionais, seja

    nas relaes entre a Administrao central e as administraes locais (por

    exemplo, contratos-programa ou acordos de colaborao).

    III.AADMINISTRAO E O DIREITO PRIVADO

    1. A capacidade civil dos entes pblicos

    Os entes pblicos, enquanto pessoas colectivas, dispem, em geral, de

    capacidade civil, nos termos do Cdigo Civil (artigo 157. e ss).

    De acordo com o princpio da especialidade do fim (artigo 160. do CC),

    a sua capacidade abrange todos os direitos e obrigaes necessrios ou

    convenientes prossecuo dos seus fins, excepto os vedados por lei ou que

    sejam inseparveis da personalidade singular.

    Neste quadro, dispem de liberdade e autonomia negocial, podem

    celebrar a generalidade dos contratos de direito privado, tpicos ou atpicos. E

    neste contexto que o Cdigo Civil regula tambm a responsabilidade civil

    extracontratual, da Administrao Pblica por actos de gesto privada (artigo

    501.).

    A actividade puramente privada da Administrao Pblica est, no

    entanto, sujeita aos princpios gerais de direito administrativo (artigo 2., n. 5,

    do CPA) e estritamente vinculada ao cumprimento dos direitos, liberdades e

    garantias dos cidados.Ao contrrio do entendimento tradicional, no devem considerar-se

    sistematicamente como pblicas as actuaes dos entes pblicos: as aces

    materiais e comportamentos, que no constituem actos jurdicos, devem

    regular-se pelo direito privado sempre que a actuao administrativa em cuja

    rbita se inserem no imponha a respectiva publicizao, designadamente por

    estar associada ao uso de poderes de autoridade - assim, por exemplo, o uso de

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    viaturas pblicas no trnsito regula-se pelo direito comum, salvo se utilizarem a

    luz azul ou a sirene.

    2. Dimenses actuais da privatizao administrativa

    2.1. Assiste-se hoje a um conjunto de transformaes de facto e de

    direito que parecem inscrever-se num movimento generalizado e multiforme de

    privatizao da Administrao Pblica.

    So diversas, porm, e no podem ser confundidas, as dimenses

    desses fenmenos de privatizao, no que respeita s atribuies, organizao

    e actividade administrativa.

    2.1.1. H a considerar, em primeiro lugar, os fenmenos de privatizao

    substancial (material) de actividades, que se verifica quando uma tarefa antes

    atribuda ao sector pblico deixa de ser substancialmente pblica e passa a ser

    substancialmente privada (no todo ou em parte) o caso, por exemplo, das

    telecomunicaes e a produo e comercializao da energia elctrica, que

    constituam monoplios pblicos.

    Significa uma privatizao de tarefas estaduais (distinta, portanto da

    privatizao patrimonial, enquanto mera privatizao de bens pblicos) e, na

    linha definida por polticas europeias, refere-se, em regra, prestao de

    servios econmicos de interesse geral.

    Por isso mesmo, nos momentos ps-privatizao da actividade, o Estadoassume um novo papel, o de regulador, para, muitas vezes atravs de agncias

    independentes, assegurar a concorrncia no mercado e a garantia dos direitos

    dos utentes.

    2.1.2. Outro fenmeno o da privatizao formal, que se refere gesto ou

    organizao administrativa as tarefas continuam a ser substancialmente

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    pblicas, mas so geridas pelos entes pblicos segundo o direito privado ou

    ento por entes pblicos com forma privada.

    Quando se privatiza apenas a gesto, estamos perante um fenmeno de

    empresarializao das pessoas colectivas pblicas o caso das entidades pblicasempresariais (por exemplo, hospitais-empresa).

    Quando se privatiza a prpria organizao, h lugar criao de pessoas

    colectivas privadas de mo pblica ou entidadesadministrativasprivadas (em

    regra, sociedades annimas de capitais exclusiva ou maioritariamente pblicos),

    que, em casos excepcionais, at podem ter vastos poderes pblicos ( o caso das

    administraes porturias).

    2.1.3. Por fim, saliente-se um terceiro fenmeno, o da privatizao

    funcional, que serefere responsabilidade pelo exerccio da actividade, incluindo o

    exerccio privado de funes pblicas as tarefas continuam a ser substancialmente

    pblicas, mas a sua execuo objecto de concesso ou delegao em entidades

    privadas (sob orientao ou fiscalizao pblica).

    A participao de particulares no exerccio de actividades pblicas

    pode ser desenvolvida em diferentes graus vai da mera colaborao

    subordinada responsabilizao efectiva, incluindo o exerccio de poderes

    pblicos de autoridade , e por diversas formas concesses e parcerias

    pblicas-privadas (com transferncia de risco econmico); externalizao da

    realizao de tarefas (contracting out); delegao de funes (privatizao de

    procedimentos, substituio de controlos pblicos por controlos privados,

    certificao privada); auto-administrao ou auto-regulao publicamenteregulada (desporto federado).

    Numa perspectiva organizativa, cruzada com esta, a doutrina distingue,

    nos casos de privatizao funcional, entre privatizao orgnica formal

    (quando o ente privado que vai desempenhar a tarefa pblica uma criatura

    administrativa entidade administrativa privada) e privatizao orgnica

    material (quando a tarefa pblica desempenhada por verdadeiros privados

    entidade privada colaboradora).

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    3. A privatizaoformal e a utilizao, pelos entespblicose pelos entes

    administrativos privados, de meios e formas de direito privado

    3.1. No conjunto da actividade privada da Administrao, esto em

    causa:

    i) as actuaes da Administrao- ou Estado-cliente os negcios

    auxiliares ou instrumentais de arrendamento ou de compra;

    ii) as actuaes da Administrao- ou Estado-proprietrio a

    administrao dos bens privados que integram o patrimnio das entidades

    pblicas;

    iii) as actuaes da Administrao- ou Estado-empresrio ou da

    Administrao- ou Estado-accionista o exerccio, atravs da criao de sociedades

    ou, actualmente, sobretudo, atravs da participao em sociedades , de actividades

    econmicas, comerciais, industriais ou de servios, em concorrncia, no mbito

    do designado sector empresarial do Estado (Regio ou Municpio);

    iv) as actuaes da Administrao- ou Estado-parceiro atravs da

    celebrao de contratos de direito privado para apoiar ou colaborar na realizao

    de actividades econmicas privadas de interesse social;

    v) a utilizao, em geral, da capacidade de direito privado para a

    satisfao directa de necessidades pblicas ( gesto privada ou empresarial),

    correspondendo ao exerccio de tarefas (mesmo no econmicas) que integram a

    funo administrativa.

    3.2. O recurso ao direito privado aparece, em regra, nas reas da

    administrao econmica e social: por exemplo, em matria de subvenes

    (bonificaes de crdito, bolsas de estudo, doaes de terrenos, subsdios,

    ajudas), fornecimento de bens ou servios essenciais (cada vez mais reduzido, mas

    que ainda subsiste em sectores como a gua e gs, transporte e distribuio de

    energia elctrica, transportes ferrovirios e algumas comunicaes postais),

    gesto e utilizao de instalaes (portos comerciais, aeroportos) ou de

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    estabelecimentos pblicos (escolas, museus, teatros pblicos, hospitais), bem como

    em intervenes no mercado (designadamente, por intermdio de agncias de

    promoo do investimento, ou da gesto estratgica, atravs de sociedades

    holding, das participaes empresariais).Mas poder excepcionalmente e com limites e condies estender-se

    a reas mais tradicionais (funes nucleares) da aco estadual (prises,

    segurana tcnica), incluindo actividades que implicam o exerccio de poderes

    de autoridade (a pe-se o problema do exerccio de poderes pblicos pelas

    entidades administrativas privadas).

    A Administrao tambm recorre, nas empresas pblicas de direito

    pblico (EPEs), ao contrato individual de trabalho (contrato privado), que

    diferente do contrato de trabalho em funes pblicas (contrato administrativo).

    [A figura do contrato de trabalho em funes pblicas, em vez da nomeao

    de funcionrios, constitui hoje a regra das relaes laborais pblicas, fora das funes

    nucleares do Estado, no apenas na administrao indirecta (nos institutos pblicos no

    empresariais), mas na prpria Administrao directa, central e local trata-se de um

    contrato administrativo, embora decorra do contrato individual de trabalho

    transformado.]

    3.3. Os motivos que determinam a escolha pela Administrao do

    direito privado (quando este no o nico meio disponvel) so razes de

    eficincia e so vrias: uma capacidade de gesto empresarial que beneficia da

    celeridade, da flexibilidade, da subtraco a controlos burocrticos

    (designadamente financeiros e contabilsticos) ou outros, quer no

    desenvolvimento da actividade, quer no vnculo de emprego embora o

    objectivo seja sempre o cumprimento das finalidades da prestao do servio

    pblico (com a sujeio aos princpios da universalidade, continuidade e

    adaptao) ou, em geral, a realizao eficaz do interesse pblico, e no o lucro

    (eventuais ganhos ou excedentes so reinvestidos e no distribudos, embora

    nas empresas pblicas se tenha instalado a prtica dos prmios de gesto).

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    3.4. No quadro da privatizao formal, vale o princpio da liberdade de

    escolha limitada: no havendo determinao legislativa expressa, a utilizao do

    direito privado por um ente pblico s admissvel, nos termos da lei, quando

    seja necessria ou conveniente prossecuo dos fins pblicos, no contexto daespecialidade das atribuies e com excluso do ncleo das funes de autoridade

    [que, contudo, nos termos do direito comunitrio, no incluem, por exemplo, a

    segurana privada, a inspeco de veculos e a reviso de contas].

    3.5. A utilizao do direito privado neste domnio aparece combinada

    com limitaes e regalias de direito pblico no contexto do que se pode

    designar por direito administrativo privado.

    As limitaes decorrem do carcter pblico da Administrao (que

    no pode saltar sobre a sombra da singularidade do seu poder e da sua

    funo):

    i) oprincpio da deciso administrativa prvia a dimenso actual da teoria

    dos dois degraus ou das duas fases, em que, primeiro, o se decidido num

    plano jurdico-pblico, e, depois, o como estabelecido num plano jurdico-

    privado;

    ii) os limites especiais liberdade negocial, quer procedimentais

    (necessidade de mecanismos concursais para escolha do co-contratante

    privado), quer substanciais (respeito pelos direitos fundamentais, pelos

    princpios gerais da actividade administrativa - prossecuo do interesse

    pblico, boa f, imparcialidade, igualdade e proporcionalidade v. artigo 2.,

    n. 5 do CPA).As prerrogativas e regalias manifestam-se nos poderes de carcter

    autoritrio, que excepcionalmente podem coexistir, bem como na

    impenhorabilidade (absoluta ou relativa) de certos bens patrimoniais afectos a

    tarefas ou utilidades pblicas.

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    4. A privatizao funcional e o exerccio de funes pblicas por

    entidades privadas (incluindo os entes administrativos privados)

    4.1. Admite-se, em geral, a delegao de funes pblicas emmatrias que sejam adequadas gesto privada, isto , que no envolvam

    essencialmente o exerccio de poderes pblicos de autoridade.

    Essa transferncia opera-se, designadamente, para a realizao de

    tarefas pblicas concorrentes (em que o ente pblico actua a par dos

    privados, como na rea dos transportes) ou de garantia obrigatria(em que o

    Estado garante a prestao do servio e predomina sobre os parceiros

    privados, como acontece na educao, sade e segurana social) mas pode

    estender-se a tarefas exclusivas do Estado, se a delegao se fizer em favor de

    entidades administrativas privadas.

    4.2. Os limites e as condies da admissibilidade do exerccio privado

    depoderes pblicos de autoridade

    O desempenho privado de funes pblicas pode envolver diversos

    tipos de poderes, como, por exemplo, poderes normativos, de determinao

    unilateral, de certificao, de criao de ttulos executivos, de coaco directa ou

    de execuo coerciva, mas est sujeito a limitaes e condies.

    Deve, desde logo, considerar-se a indelegabilidade de poderes

    constitucionalmente atribudos a determinados rgos (reserva constitucional),

    bem como, em geral, do uso legtimo da fora militar e civil, que constitui

    monoplio estadual, sem prejuzo da aco directa e da legtima defesa.Para alm disso, a concesso de poderes pblicos a entidades privadas

    est sujeita a limites subjectivos (no admisso da concesso a estrangeiros ou a

    entidades sujeitas a conflitos de interesses), qualitativos (s no mbito de tarefas

    pblicas e quando seja justificada pela situao) e quantitativos (os poderes

    pblicos concedidos ou delegados sero excepcionais e enumerados).

    Quando admissvel, a atribuio de poderes pblicos depende de

    algumas condies: a necessidade de previso legal expressa da concesso e a

  • 8/3/2019 A Administrao e o Direito (Jos Carlos Vieira de Andrade)

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    garantia de um regime pblico adequado prossecuo dos interesses

    comunitrios, incluindo, consoante os casos, o poder de direco ou orientao,

    o dever de fiscalizao e o poder de revogao ou de resciso por interesse

    pblico.

    4.3. Lembre-se, por fim, que, quando esteja em causa o exerccio dos

    poderes pblicos de autoridade, h lugar utilizao, a ttulo principal, do

    Direito Administrativo, na veste de direito pblico, sem prejuzo da sujeio,

    nas restantes tarefas administrativas, ao uso misto do direito privado e do

    direito administrativo.