A Acrobata de Mármore - Don DeLillo

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61 A acrobata de marfim Quando terminou, ela permaneceu parada na rua cheia, escutando o murmúrio denso de toda aquela gente falando. Ou‑ viu a primeira explosão distante de buzinas na avenida. As pes‑ soas examinavam umas às outras para comparar suas reações. Ela as via buscando rostos, sinais de que fulano ou beltrano es‑ tava bem. Percebeu que as luzes da rua estavam acesas, e ten‑ tou calcular há quanto tempo seu apartamento estava no escuro. Todos estavam falando. Ela ouvia as mesmas expressões sendo repetidas, parada com os braços cruzados sobre o peito, vendo uma mulher levar uma cadeira para um lugar apropriado. O som das buzinas atravessava as ruas. Gente saindo da cidade em fluxos radiais. Ela já estava pensando no próximo. Há sempre mais um, talvez muitos mais. Os jogadores de cartas estavam parados à frente do café, al‑ guns deles examinando um pedaço de alvenaria caído na calça‑ da, outros olhando em direção ao telhado. Aqui e ali um rosto proeminente, um corpo virando‑se devagar, procurando. Ela es‑ tava usando as mesmas roupas desde que a coisa começara, jeans

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Texto presente no livro O anjo Esmeralda - coletânea de contos escritos entre 1979 e 2011 - de Don DeLillo, autor de Submundo; Cosmópolis; Americana.

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    A acrobata de marfim

    Quando terminou, ela permaneceu parada na rua cheia,escutando o murmrio denso de toda aquela gente falando. Ouviu a primeira exploso distante de buzinas na avenida. As pessoas examinavam umas s outras para comparar suas reaes.Ela as via buscando rostos, sinais de que fulano ou beltrano estava bem. Percebeu que as luzes da rua estavam acesas, e tentou calcular h quanto tempo seu apartamento estava no escuro.Todos estavam falando. Ela ouvia as mesmas expresses sendorepetidas, parada com os braos cruzados sobre o peito, vendouma mulher levar uma cadeira para um lugar apropriado. Osom das buzinas atravessava as ruas. Gente saindo da cidade emfluxos radiais. Ela j estava pensando no prximo. H sempremais um, talvez muitos mais.

    Os jogadores de cartas estavam parados frente do caf, alguns deles examinando um pedao de alvenaria cado na calada, outros olhando em direo ao telhado. Aqui e ali um rostoproeminente, um corpo virandose devagar, procurando. Ela estava usando as mesmas roupas desde que a coisa comeara, jeans

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    e blusa e suter leve, era noite e inverno, e um par de mocassinsesquisitos que s usava dentro de casa. As buzinas aumentavam,numa espcie de grito, um pavor animal. O deus pnico, afinal, grego. Ela pensou de novo e verificou que no tinha certezase as luzes estavam mesmo apagadas. Havia mulheres paradasde braos cruzados, no frio. Ela caminhava pelo meio da rua,escutando as vozes, traduzindo as expresses mentalmente. Eraigual para todos. Diziam as mesmas coisas e procuravam rostos.As ruas eram estreitas aqui, e havia gente dentro de carros estacionados, fumando. Aqui e ali uma criana correndo, abrindocaminho no meio da multido, crianas agitadas na rua quandoj era quase meianoite. Ela pensou que talvez houvesse um brilho no cu, e subiu uma ladeira com degraus largos na caladade onde se tinha uma vista do golfo. Tinha a vaga ideia de terlido que s vezes h uma luz no cu logo antes ou logo depoisde a coisa acontecer. Isso era apresentado como algo que notinha explicao.

    Depois de algum tempo, as pessoas comearam a voltar para dentro de casa. Kyle caminhou por trs horas. Ela via os carrosentrando nas grandes avenidas que levavam serra e costa. Ossemforos estavam apagados em certas reas. As longas filas decarros, retorcidas e curvadas, avanavam muito devagar. Paralisia. Ocorreulhe que a cena lembrava alguma paisagem do nossolado onrico, o que a cidade nos ensina a temer. Os carros buzinavam sem parar. O barulho se espalhava pelas ruas e culminavanuma negao final em massa, numa desolao. Diminuiu apsalgum tempo, depois voltou a aumentar. Ela via pessoas dormindo em bancos e famlias reunidas em carros estacionados nascaladas e nas faixas de concreto entre as pistas. Relembrou tudoo que j ouvira dizer sobre terremotos.

    No seu bairro, as ruas agora estavam quase desertas. Kyleentrou no prdio onde morava e subiu a escada at o quinto an

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    dar. As luzes estavam acesas em seu apartamento, e havia cacosde terracota (s agora ela lembrava) espalhados no cho junto estante. Rachaduras extensas ramificavamse na parede oeste.Ela trocou os mocassins por sapatos de caminhar, vestiu um casaco forrado e apagou todas as luzes, menos a luminria junto porta. Ento se instalou no sof entre um lenol e um cobertor,apoiando a cabea num travesseiro de avio. Fechou os olhos eencolheuse, cotovelos junto cintura, mos entrelaadas entreos joelhos. Tentou obrigarse a dormir, mas deuse conta de quena verdade estava escutando atentamente, escutando a sala. Estava meio que flutuando fora do tempo, numa espiral mental,movida por pensamentos incompletos. Afundou num sono falsoe depois voltou a escutar. Abriu os olhos. No relgio eram quatroe quarenta. Ouviu alguma coisa que parecia areia a derramarse,uma poeira grossa escorrendo entre as paredes de prdios adjacentes. A sala comeou a balanar, com um suspiro spero. Maisalto, mais forte. Ela levantouse e seguiu em direo porta,andando um pouco agachada. Abriu a porta e ficou embaixo dolintel at que o tremor cessou. Desceu a escada. Dessa vez noencontrou vizinhos saindo rua, enfiando os braos no casaco.As ruas permaneciam quase desertas, e ela concluiu que as pessoas no queriam se dar ao trabalho de fazer tudo de novo. Ficouvagando pelas ruas at bem depois de o dia raiar. Nos parqueshavia algumas fogueiras. As buzinas agora eram espordicas. Kyle contornou seu prdio algumas vezes, e por fim sentouse numbanco perto da banca de jornal. Ficou vendo as pessoas chegarem rua para comear o dia, procurando alguma coisa emseus rostos que indicasse como haviam passado a noite. Temiaque tudo parecesse estar normal. Era terrvel pensar que as pessoas eram capazes de retomar tranquilamente a rotina caticade uma Atenas com os nervos em frangalhos. No queria ser anica a pensar que alguma coisa havia mudado radicalmente. Omundo se reduzira a um lado de dentro e um lado de fora.

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    * * *

    Foi almoar com Edmund, seu colega na escolinha onde elaensinava msica a crianas das comunidades estrangeiras, do terceiro ao sexto ano. Ela estava ansiosa para saber de que modoele reagira situao, mas primeiro convenceuo a comer ao arlivre, numa mesa encostada na fachada de uma lanchonete commuito movimento.

    A gente ainda pode morrer, disse Edmund, se cair umasacada em cima da gente. Ou ento congelar nestas cadeiras.

    O que foi que voc sentiu?Parecia que o meu corao ia pular pra fora do peito.Que bom. Eu tambm.Sa correndo.Claro.Quando estava descendo a escada, eu tive uma conversa

    estranhssima com o homem que mora em frente ao meu apartamento. Quer dizer, antes a gente quase nunca tinha trocadouma palavra. Tinha umas vinte pessoas descendo a escada emdisparada. De repente ele cismou de conversar. Me perguntouonde eu trabalho. Me apresentou mulher dele, que quelaaltura do campeonato estava se lixando pros detalhes do meutrabalho. Quis saber se eu estava gostando de morar na Grcia.

    O cu estava baixo e cinzento. As pessoas chamavam as outras pela rua, gritavam dos carros que passavam. Eksi komma eksi.Estavam se referindo ao primeiro, o mais forte. Seis vrgula seis.Kyle ouvira esse nmero sendo repetido a manh inteira, pronunciado com reverncia, ansiedade, orgulho amargo, um eco pelas ruas ressabiadas, uma forma de saudao fatalista.

    E depois?, ela perguntou.O segundo. Acordei logo antes.Voc ouviu alguma coisa.

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    Parecia uma criana jogando um punhado de areia na vidraa.

    Muito bom, disse ela.E a comeou.Comeou.Pof. Saltei da cama que nem um maluco.As luzes se apagaram?No.E da primeira vez?Sabe, no tenho certeza.Bom.Eu tambmno. Teve umbrilho no cu algumahora?Se teve, eu no reparei.Isso pode ser um mito.Deu nos jornais que uma central eltrica pode ter pifado,

    da o claro. Quanto a isso, a coisa no est clara.Mas ns tivemos experincias parecidas. o que parece, disse ele.Bom. Ainda bem.Para ela, ele era o rapaz ingls, embora j tivesse trinta e seis

    anos, fosse divorciado, parecesse sofrer de artrite e nem fosse ingls de verdade. Mas ele entrava num xtase ingls diante daluminosidade da Grcia, onde Kyle s via fumaa qumica erodindo as runas. E tinha o rosto srio e antiquado de um garotoposando para um retrato formal, cabelo espetado, ar pensativo.

    Onde foi o epicentro?, ela perguntou.A mais de sessenta quilmetros daqui.Mortos?Treze, at agora.O que que a gente vai fazer?Em relao a qu?, ele perguntou.A tudo. Todos os tremores secundrios.J tivemos duzentos. Deve durar vrias semanas. Leia os jor

    nais. Talvez meses.

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    Olha s, Edmund. No quero ficar sozinha esta noite. Tudo bem?

    Ela vivia numa pausa. Vivia fazendo pausas, sozinha noapartamento, para escutar. Sua audio havia adquirido uma limpidez, um rigor discriminador. Ela estava sentada mesinha onde fazia as refeies, escutando. A sala tinha mais de dez sons,em sua maioria perturbaes de tom, presses que diminuam nasparedes, e ela os acompanhava e esperava. Havia um segundonvel, menos perigoso, que ela reservava para os rudos da rua, oelevador subindo. Todo o perigo estava do lado de dentro.

    Um farfalhar. Um balanar leve. Ele acocoravase no vo daporta, como uma criana da era nuclear.

    Os tremores penetravam seu fluxo sanguneo. Ela escutavae esperava. No conseguia dormir noite e aproveitava momentos esparsos do dia, cochilando numa sala vazia na escola. Tinhapavor de voltar para casa. Olhava para a comida no prato e svezes se levantava, ouvindo com ateno, pronta para partir, irpara o lado de fora. Devia haver algo de engraado nessa cena,uma pessoa parada, em p, diante do prato de comida, ligeiramente inclinada em direo porta, as pontas dos dedos na beira da mesa.

    verdade que antes de um grande terremoto os ces e gatosfogem? Ela julgava ter lido em algum lugar que na Califrnia aspessoas costumam verificar regularmente os classificados pessoaisnos jornais para ver se o nmero de ces desaparecidos aumentou muito. Ou seria aquilo um mito?

    O vento fazia os postigos balanar e bater. Ela escutava oscantos da sala, as interfaces. Ouvia tudo. Deixou uma bolsa grande perto da porta para o caso de ter que sair de repente dinheiro, livros, passaporte, cartas enviadas pela famlia. Ouviu o sinodo afiador de facas.

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    No leu os jornais, mas concluiu que os tremores secundrios j eram mais de oitocentos e os mortos chegavam a vinte,havia entulho de hotis e gente morando em barracas perto doepicentro e outras vivendo em reas ao ar livre em alguns bairrosde Atenas, porque seus prdios estavam ameaados.

    Os jogadores de cartas no tiravam o casaco dentro do caf.Ela passou pelas amoreiras podadas e atravessou a feira e olhoupara a mulher que vendia ovos e pensou em algo a lhe dizer quefizesse com que as duas se sentissem melhor, falando seu gregobem razovel, pechinchando. Um homem segurou a porta doelevador, mas ela agradeceu com um gesto e subiu pela escada.Entrou em seu apartamento, escutando. Os toldos da varandaestavam inflados de vento, estalando ruidosamente. Ela queriaque sua vida voltasse a ser episdica, impensada. Uma estrangeiraannima andando com passos silenciosos, recolhendo informaes, contentandose com observaes aleatrias. Queria terconversas sem importncia com avs e crianas nas ruas do bairro operrio onde morava.

    Ensaiava suas fugas mentalmente. Tantos passos da mesa para a porta. Tantos passos para a rua. Parecialhe que, se imaginasse a cena de antemo, talvez a coisa funcionasse melhor.

    Gritou o homem da loteria: Corre hoje, corre hoje.Ela tentava ler nas noites tensas, os tempos de terror apate

    tado. Segundo os boatos, no eram tremores secundrios, e simprenncios de alguma perturbao profunda da fossa continental, o acmulo de uma fora que haveria de percorrer a cidadede corao de mrmore e reduzila a p. Ela soerguiase e viravaas pginas, tentando disfararse de uma pessoa que costumavaler quinze minutos todas as noites antes de adormecer com facilidade.

    No era to ruim na escola, onde estava disposta a protegeras crianas, cobrirlhes os corpos com o seu.

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    Os tremores viviam em sua pele e faziam parte de sua respirao. Ela fazia pausas enquanto comia. Um farfalhar. O vergarsuave de um junco. Imvel, em p, ela escutava, sozinha com aterra que tremia.

    Edmund disselhe que havia comprado um presente paraela, para substituir o enfeite de telhado de terracota que ficavaapoiado contra a parede em cima da estante, folhas de acantoirradiandose da cabea de um Hermes sonolento, e que foradespedaado no primeiro tremor.

    Voc no vai sentir muita falta do seu Hermes, no. Afinal,ele est em tudo que lugar, no ?

    Era por isso que eu gostava dele.Voc compra outro sem problema. Tem pilhas deles

    venda.Mas vai cair e quebrar, ela argumentou, quando vier o

    prximo.Vamos mudar de assunto.No momento, s tem um assunto. Esse o problema. An

    tes eu tinha uma personalidade. E agora, o que que eu sou?Voc tem que entender que passou.Eu estou reduzida ao instinto puro, irracional, canino.A vida continua. As pessoas esto seguindo em frente.No esto, no. No como antes. S porque elas no an

    dam por a se lamuriando.No tem por que se lamuriar. A coisa acabou.No quer dizer que elas no estejam preocupadas. Foi h

    menos de uma semana. Tem tremores o tempo todo.Cada vez mais fracos, disse ele.Tem uns que no so to fracos assim, no. Chegam mes

    mo a chamar a ateno.

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    Muda de assunto, por favor.Estavam junto porta da escola, e Kyle observava um grupo

    de crianas entrando num nibus para ir visitar um museu forada cidade. Ela sabia que sempre conseguia irritar o rapaz ingls.Sob esse aspecto, ele era confivel. Kyle sempre sabia a posioque ele haveria de adotar e por vezes previa as palavras exatas,praticamente movendo os lbios em sincronia com os dele. Orapaz ingls dava um pouco de estabilidade queles tempos terrveis.

    Antes voc era gil.E olha como eu estou agora, disse ela.Pesadona.Eu uso roupa em camadas. Uso ao mesmo tempo uma rou

    pa e uma muda de roupa. Pra estar sempre pronta.Eu no tenho dinheiro pra ter uma muda de roupa, disse

    ele.Eu no tenho dinheiro pra lavagem a seco.Eu fico me perguntando como foi que isso aconteceu co

    migo.Eu vivo sem geladeira, telefone, rdio, cortina de chuveiro

    e sei l o que mais. Guardo a manteiga e o leite na sacada.Voc muito calada, ele observou ento. o que todo

    mundo diz.Sou mesmo? Quem?Alis, quantos anos voc tem?Agora que a gente passou a noite juntos, isso que voc

    quer dizer?A gente passou a noite. Exatamente. Uma noite inteira

    abraadinhos conversando.Pois me ajudou. Foi importante, mesmo. Foi a noite cru

    cial. Se bem que as outras no foram to aconchegantes.Pode voltar quando quiser, voc sabe. Eu fico pensando.

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    Uma moa gil que vem correndo do outro lado da cidade prosmeus braos.

    As crianas acenavam para eles das janelas, e Edmund fezuma imitao de motorista de nibus de olhos esbugalhadosnum trnsito infernal. Ela viu os rostinhos alegres se afastando.

    Voc tem uma boa cor, ela comentou.O que que isso quer dizer?As suas faces so coradas e saudveis. Meu pai dizia que se

    eu comesse legumes minhas faces iam ficar rosadas.Ela esperou que Edmund perguntasse: e o que dizia a sua

    me? Ento deram uma caminhada, fazendo hora at o inciodas aulas da tarde. Edmund comprou uma rosca de po comgergelim e deu metade a ela. Para pagar a compra, abriu a mocheia de moedas e deixou que o vendedor pegasse a quantia adequada. O gesto provava a todos que ele estava ali s de passagem.

    Voc est sabendo dos boatos, disse ela.Bobagens.O governo est escondendo dados ssmicos.No existe absolutamente nenhum indcio cientfico de

    que vai haver um grande terremoto em breve. Leia os jornais.Ela tirou o casaco volumoso e jogouo sobre o ombro. Deuse

    conta de que queria que ele a achasse um pouco boba, que eralevada pelas emoes coletivas. Havia algo de tranquilizador emacreditar na pior hiptese, desde que fosse a tendncia dominante. Mas no queria se submeter por completo. Caminhava seperguntando se no estaria arrancando de Edmund afirmaescategricas que ela pudesse usar contra si prpria.

    Voc tem vida interior?Eu durmo, ele respondeu.No estou falando nisso.Atravessaram correndo um trecho da avenida onde os car

    ros aceleravam ao mximo. Era uma sensao boa, sacudirse e

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    libertarse de sua pele trmula. Continuou correndo por meioquarteiro e ento virouse para vlo aproximarse agarrando opeito e caminhando com passos trpegos, como se estivesse fazendo graa para as crianas. Ele parecia um pouco livresco mesmo fazendo palhaadas.

    Estavam chegando ao prdio da escola.Eu queria saber como o seu cabelo ia ficar se voc deixasse

    crescer.No tenho dinheiro pra gastar em xampu, disse ela.Eu no tenho dinheiro pra ir ao barbeiro regularmente, fa

    lando srio.Eu vivo sem piano.E isso um grande sacrifcio em comparao com no ter

    geladeira?Voc faz essa pergunta porque no me conhece. Eu vivo

    sem cama.Srio?Eu durmo num sof de segunda mo. Com a textura de

    um casco de navio coberto de cracas.Ento por que voc no vai embora daqui?, ele perguntou.No consigo economizar o bastante pra ir pra outro lugar,

    e pra voltar pra casa no estou preparada, de jeito nenhum. E,alm disso, eu gosto daqui. Estou meio que exilada aqui, mas mais ou menos voluntrio. O problema agora que a gentepodia estar em qualquer lugar. A nica coisa que importa ondea gente est na hora que comear a tremer.

    Ento ele deu o presente, tirandoo do bolso do casaco edesembrulhando o papel spia devagar, fazendo suspense. Eraa reproduo de uma estatueta de marfim de Creta, uma mulher saltando um touro, o corpo retesado com preciso, os psafilados chegando ao ponto mais alto da curva do salto mortal.Edmund explicou que a jovem estava saltando por cima dos chi

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    fres de um touro feroz. Era uma cena comum na arte minoica,encontrada em afrescos, bronzes, sinetes de argila, anis de sinete de ouro, taas cerimoniais. Na maioria das vezes um rapaz,de vez em quando uma moa agarrando os chifres do touro esaltando, tomando impulso com o movimento de cabea do animal. Edmund lhe disse que a estatueta de marfim original forapartida ao meio em 1926, e perguntou se ela queria saber por queisso havia acontecido.

    No me diga. Quero adivinhar.Um terremoto. Mas a restaurao foi tranquila.Kyle pegou a estatueta.Um touro galopando a toda a velocidade? Isso possvel?No sou dado a questionar o que era possvel trs mil e seis

    centos anos atrs.No sei nada sobre os minoicos. Foi h tanto tempo assim?Foi, e muito mais tempo atrs, at.Quem sabe o touro estava bem amarrado numa estaca.Isso nunca mostrado, ele retrucou. O touro sempre

    grande, feroz, est correndo e atacando.A gente tem que acreditar que a coisa acontecia exatamen

    te como os artistas mostravam?No. Mas eu acredito. E embora essa moa em particular

    no esteja acompanhada de um touro, com base na posio delaa gente sabe que isso que ela est fazendo.

    Saltando por cima de um touro.Isso mesmo.E ela vai viver pra contar a histria.Ela viveu. Ela est viva. Foi por isso que eu comprei isso

    pra voc. Pra voc se lembrar da sua agilidade oculta.Mas voc que o acrobata, disse Kyle. Voc que

    todo flexvel, que faz performance na rua.Pra voc lembrar como voc era leve e fluida.

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    Voc que salta e estala os calcanhares.Na verdade, minhas juntas doem pra caramba.Olha s as veias na mo e no brao dela.Comprei baratinho no mercado de pulgas.Saber disso me faz sentir muito melhor. a sua cara, disse ele. Tem que ser voc. Estamos de acor

    do quanto a isso? Olha s, pega. o seu eu verdadeiro e mgico,produzido em massa.

    Kyle riu.Esguia, gil e jovem, ele prosseguiu. Pulsando de vida

    interior.Ela riu. Ento o sinal da escola soou e eles entraram.

    Ela estava em p no meio da sala, vestida, s sem sapatos,desabotoando a blusa lentamente. Fez uma pausa. Passou o boto pela casa. Ento ficou parada, pisando no cho de madeira,escutando.

    Agora estavam dizendo que eram vinte e cinco os mortos,milhares os desabrigados. Algumas pessoas haviam abandonadoprdios intactos, preferindo a segurana desconfortvel da vidaao ar livre. Kyle entendia perfeitamente essa escolha. Naquelanoite ela tinha conseguido pela primeira vez dormir razoavelmente, mas continuava a evitar os elevadores e os cinemas. Ovento derrubava objetos soltos das sacadas dos fundos. Ela escutava e esperava. Imaginavase fugindo da sala.

    Descia enxofre do cu industrial, manchando as caladas,e um professor da escola disse que era areia trazida da Lbia poraqueles belos ventos do deserto.

    Ela estava sentada no sof, de pijama e meias, lendo um livro sobre a flora local. As pernas estavam debaixo de um cobertor.Havia um copo dgua pela metade na mesa lateral. Seus olhos

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    se desviaram da pgina. Faltavam dois minutos para a meianoite.Ela fez uma pausa, olhando para a meia distncia. Ento ouviua coisa comeando, um ronco na terra, uma fora se deslocandono ar. Ficou parada por um longo segundo, imersa em pensamentos, e em seguida jogou o cobertor para o lado. O momentoexplodia a seu redor. Ela correu at a porta e abriua, percebendo de modo impreciso o tremor dos abajures e alguma coisamida. Agarrou as bordas do alizar da porta e olhou para dentroda sala. Os objetos saltitavam. Ela formulou o pensamento categrico: Este o maior at agora. A sala estava mais ou menosborrada. Dava a sensao de estar prestes a estilhaarse. Ela sentia o efeito nas pernas desta vez, uma sensao de esvaziamento,uma entrega suave a alguma doena. Era difcil de acreditar, difcil de acreditar que durava tanto tempo. Apertou o alizar comas mos, procurando uma tranquilidade dentro de si prpria.Quase conseguia ver uma imagem de sua mente, uma vaga ovalcinzenta, flutuando pela sala. O tremor no parava. Havia neleuma raiva, uma exigncia implacvel. O rosto dela traa o esforo deformante de um halterofilista. No era fcil entender o queestava acontecendo a seu redor. Ela no conseguia ver as coisasda maneira normal. Via apenas a si prpria, a pele luminosa,esperando que o quarto se dobrasse sobre ela.

    Ento terminou, e Kyle vestiu umas roupas por cima do pijama e desceu a escada. Andava rpido. Atravessou o saguo pequeno correndo, roando num homem que acendia um cigarro porta. Pessoas saam para a rua. Ela andou meio quarteiro eparou margem de um grupo numeroso. Estava ofegante, osbraos pendendo moles. Seu primeiro pensamento ntido foio de que precisaria voltar para casa mais cedo ou mais tarde.Ouvia as vozes caindo a seu redor. Queria ouvir algum dizerexatamente isso, que a crueldade existia no tempo, que estavamtodos desprotegidos no fluxo do tempo. Ela disse a uma mulher

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    que achava que um cano de gua havia se partido em seu apartamento, e a mulher fechou os olhos e balanou a cabea pesada.Quando terminaria aquela histria toda? Ela disse mulher quehavia se esquecido de pegar sua bolsa antes de sair de casa apesar de tantos dias de planejamento cuidadoso, e tentou contara histria com um tom irnico, tornla engraada, levementeautozombeteira. Tem que haver alguma coisa engraada a que agente possa se apegar. Todos balanavam as cabeas.

    Por toda a rua havia pessoas acendendo cigarros. J se passavam oito dias desde o primeiro tremor, oito dias e uma hora.

    Ela passou a maior parte da noite caminhando. s trs damadrugada parou na praa diante do Estdio Olmpico. Haviacarros estacionados e dezenas de pessoas, e ela ficou a examinaros rostos e escutar. O trfego passava lento. Havia um curiosoestado de esprito ambguo, uma solido pensativa no centro detodo aquele falatrio, a sensao de que as pessoas estavam umpouco distanciadas da nsia de procurar companhia. Ela recomeou a andar.

    Tomando o caf da manh em seu apartamento s nove horas, sentiu o primeiro tremor secundrio mais forte. O cmodoinclinouse, pesado. Ela levantouse da mesa, os olhos midos,e abriu a porta e ficou acocorada ali, segurando um pozinhocom manteiga.

    Errado. O ltimo sismo no era o mais forte na escalaRichter. Era apenas seis vrgula dois.

    E ela se deu conta de que no havia durado mais do que osoutros. Era uma iluso coletiva, segundo diziam na escola.

    E a gua que ela vira ou sentira no viera de um cano quebrado, e sim de um copo dgua que cara da mesa ao lado dosof.

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    E por que sempre acontecia noite?E onde estava o rapaz ingls?O copo dgua estava intacto, mas a brochura sobre a flora

    local estava molhada e enrugada.Ela subia e descia pela escada.Ela mantinha a bolsa perto da porta.Ela estava privada de sentimentos, pretenses, expectativas,

    texturas.A coisa impiedosa era o tempo, a ameaa do avano do tempo.Ela estava privada de presunes, persuases, complicaes,

    mentiras, todos os entrelaamentos de acordos que tornavam avida possvel.

    No entre em cinemas nem salas cheias de gente. Ela estava reduzida a categorias de sons, a advertncias feitas a si prpriae uma infinidade de introspeces.

    Ela fazia pausas, sozinha, para escutar.Ela imaginavase saindo da sala de maneira sensata.Ela procurava nos rostos das pessoas alguma coisa que lhe

    dissesse que a experincia delas era igualzinha sua, chegandoaos detalhes dos pensamentos mais estranhos.

    Tem que haver alguma coisa engraada nisso em algum lugar, alguma coisa que a gente possa usar para aguentar mais umanoite.

    Ela escutava tudo.Ela tirava cochilos rpidos na escola.Ela estava privada da prpria cidade. Podamos estar em

    qualquer lugar, qualquer canto perdido de Ohio.Ela sonhava com uma poa de efemridas, coberta de flo

    res cadas das rvores.Use sempre as escadas. Escolha uma mesa perto da porta

    nos cafs e tabernas.Os jogadores de cartas, imersos numa nuvem de fumaa,

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    faziam apenas os movimentos necessrios, protegendo suas cartas, srios.

    Ela soube que Edmund estava no norte com uns amigos,visitando mosteiros.

    Ela ouvia o ronco das motocicletas subindo a ladeira.Ela examinava as rachaduras na parede oeste e falava com

    o senhorio, que fechava os olhos e balanava a cabea pesada.O vento provocava um farfalhar em algum lugar bem perto

    dela.Ela passou a noite em claro com seu livro de pginas en

    durecidas pela gua, tentando ler, tentando livrarse da sensaode que estava sendo levada inevitavelmente para algummomento oscilante no tempo.

    O acanto um arbusto perene.E tudo no mundo est ou do lado de dentro ou do lado de

    fora.

    Kyle encontrou a estatueta um dia dentro de uma gaveta daescrivaninha da escola, emmeio a pastilhas para a garganta e clipes, num escritrio usado como sala de professores. No se lembrava de tla colocado ali e sentiu o conflito costumeiro entrea sensao de vergonha e a tentativa de justificarse atuando emseu sangue um calor corpreo vindo da acusao feita pelascoisas esquecidas. Pegou a estatueta, achando que havia algo denotvel no salto limpo e aberto da mulher, na tenso detalhadados antebraos e das mos. Uma coisa to antiga no deveria teruma postura formal, uma rigidez? Havia nela um fluir suave.Mas, alm dessa surpresa, no havia muito a saber. Ela no sabianada sobre os minoicos. No tinha certeza nem a respeito domaterial de que era feita a pea, que espcie de imitao leve demarfim. Ocorreulhe que havia deixado a estatueta na escrivani

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    nha por no saber o que fazer com ela, como fixla ou apoila.O corpo estava solto no espao, sem apoios, sem uma posiofixa, e parecia que o melhor lugar para ele era a palma da mo.

    Estava parada no meio da saleta, escutando.Edmund dissera que a estatueta era parecida com ela. Kyle

    examinoua, tentando extrairlhe ummnimo de semelhana. Umamoa com uma tanga e faixas nos punhos, duas voltas de colar,suspensa sobre os chifres de um touro em movimento. O ato,o salto em si, podia ser tanto vaudeville quanto terror sagrado.Havia temas e segredos e histrias antigas naquela estatueta dequinze centmetros que ela no podia sequer imaginar. Ela revirava o objeto na mo. Todas as comparaes fceis se desfaziam.gil, jovem, fluida, moderna; touros a investir e terra a tremer.No havia nada que a associasse mente dentro da obra, um escultor trabalhando com marfim, no ano 1600 a.C., impelido porforas que lhe eram remotas. Ela lembrouse do velho Hermesde terracota, coroado de flores, que a contemplava de um passado cognoscvel, um teatro do ser compartilhado. J os minoicosestavam fora de tudo isso. Esguia, graciosa, alheia a estatuetaestava perdida alm de vales de idioma e magia, de cosmologiasonricas. Era esse o seu pequeno mistrio. Era uma coisa emoposio, que definia o que Kyle no era, estabelecendolhe oslimites do eu. Ela cerrou o punho que continha a pea, e pensouque a sentia pulsando contra sua pele, um pulso suave e peridico, telrico.

    Kyle estava imvel, a cabea inclinada, escutando. Os nibus passavam, soltando fumaa de leo diesel que entrava pelasfrestas em torno da janela. Ela olhou para um canto da sala, emintensa concentrao. Escutava e esperava.

    Sua autoconscincia terminava onde a acrobata comeava.Tendo se dado conta disso, ps o objeto no bolso e passou a levloonde quer que fosse.