A ação civil pública no controle de constitucionalidade ... · 2 O conceito de interesse...

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A ação civil pública no controle de constitucionalidade – aspectos controversos e a

delimitação das possibilidades.

Alexandre Walmott Borges •

Ricardo Vieira Nascimento •

Bernardo Morais Cavalcanti•

Interesses jurídicos difusos, coletivos e individuais homogêneos - do controle de

constitucionalidade - da declaração de inconstitucionaldade em ação civil pública - da

declaração de inconstitucionaldade em ação civil pública.

I - INTERESSES JURÍDICOS DIFUSOS, COLETIVOS E INDIVIDUAIS

HOMOGÊNEOS

1. Classificação dos interesses

As novas categorias de interesses jurídicos de feição transindividual, interesses

difusos, coletivos e individuais homogêneos, que procuram responder aos problemas criados

pela sociedade de massas, na qual o indivíduo pode agir de forma isolada e coletiva bem

como sofrer agressões de pequena relevância se tomado isoladamente, mas de relevância

enorme se tomado coletivamente, precisam ser analisadas de forma a se perceber a sua

importância, em sede de controle difuso de constitucionalidade.

O estudo de aspectos históricos que fizeram eclodir os tais interesses permitirá

desvendar a natureza, as características básicas e suas principais diferenças, além de

possibilitar a compreensão em ações, nas quais se questiona também a matéria constitucional.

Ao longo do estudo, será adotada a expressão “interesse coletivo” para englobar todas as

espécies dos interesses jurídicos transindividuais.

1.1. Noção de interesse • Professor da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Advogado. • Técnico da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Especialista em Direito da Administração Pública pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Advogado. • Professor de Direito Constitucional e Direito Administrativo na União Educacional de Minas Gerais (UNIMINAS). Mestrando em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Advogado.

1

Os atos humanos, quase sempre, são expressão de seu instinto de sobrevivência, que visam

suprir necessidades de ordem física, psicológica e social. No desenrolar de sua ação, o ser

humano deve agir dentro de certos limites, pois outros igualmente querem os mesmos bens

que possam satisfazê-lo. Desta forma, a idéia de interesse significa a motivação natural para o

agir, vinculado a uma finalidade satisfativa.

À medida que os bens signifiquem possibilidade de satisfação de necessidades passam a ser

mais valorizados e disputados pelos seres humanos, constituindo o interesse a relação que se

abstrai destes dois elementos.

Dessa forma, o interesse pode ser conceituado como o vínculo existente entre o indivíduo e qualquer bem que possa satisfazer uma necessidade. 1.2. Definição de interesse jurídico

O interesse como vínculo existente entre o indivíduo e o bem da vida pretendido é

valorado pelo legislador, passando a se constituir como interesse jurídico por uma decisão

política, que reconheça o potencial de conflituosidade que possa advir da disputa dos seres

humanos sobre bens limitados ou ilimitados ou que reconheça a importância destes para a paz

social, demandando proteção pelo ordenamento.

Desta maneira, o caráter de juridicidade do interesse reside na faculdade de buscar

proveito de bens e na exigibilidade perante outrem ou perante todos de seu respeito, sob a

proteção de mecanismos sociais de tutela como o Poder Judiciário na hipótese de violação, a

fim de cada indivíduo ou coletividade possa exercê-lo e atingir suas finalidades.

Segundo Xisto Tiago de Medeiros Neto, a compreensão do interesse jurídico

dependerá do enfoque que for dado a ele, podendo assumir natureza substancial (primária)

quando se revela no campo do direito material e natureza instrumental (secundária),

correspondendo ao interesse de agir como condição para o exercício do direito de ação, tendo

por requisitos a necessidade e utilidade do bem jurídico almejado.1 O caráter secundário do

interesse processual não significa necessariamente que deva ocorrer sempre após o

surgimento do interesse primário, pois é possível a parte se socorrer do Poder Judiciário e este

após análise do caso dê por inexistentes ambos ou apenas um deles. Desta maneira, os

interesses guardam independência entre si, apesar de a nomenclatura adotada poder levar a

esta idéia errônea. Além deste provável equívoco, o interesse secundário é analisado no início

do processo como condição da ação e só, posteriormente, é considerado o interesse primário,

um não implicando na existência do outro.

1 MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano Moral Coletivo. São Paulo: Ltr, 2000.p.104.

2

O conceito de interesse jurídico acima exposto levará à definição do direito subjetivo

como a faculdade do exercício daquele por um titular definido, numa perspectiva

individualista. Desta forma, o interesse jurídico passa a ser o objeto do direito subjetivo de tal

forma que a existência deste pressupõe a daquele e evidentemente a existência do primeiro

não implica necessariamente no segundo, numa perspectiva coletiva, pois nem sempre haverá

um titular definido.

Na mesma linha desta construção teórica, Xisto Tiago de Medeiros Neto entende que

há possibilidade de existência de interesses jurídicos sem a correspondência necessária a um

direito subjetivado, ou seja, titularizado por um ou mais sujeitos determinados, oponível a

terceiros e suscetível de encontrar, individualmente, tutela jurisdicional.2

Realmente a expressão “direito subjetivo” leva o intérprete a associar um direito a um

titular previamente definido, possuindo tal conceituação nítido caráter individualista.

Ocorrem, entretanto, casos em que não se identifica o titular de um direito, apesar da

reconhecida existência deste como os interesses de dimensão difusa e coletiva, de natureza

transindividual.

Uma vez reconhecida a possibilidade da existência de interesse jurídico sem a

necessária correspondência a um direito subjetivo, permite-se que não só este como também o

próprio interesse possam ser tutelados. Este reconhecimento ocorre em virtude da

interpretação sistemática da dogmática do Direito Constitucional, que possui amplo

direcionamento na tutela de direitos coletivos, atribuindo tanto ao indivíduo como à

coletividade o poder de provocação do Poder Judiciário, seja na exegese do art.5º, XXXV,

segundo o qual a lei não poderá excluir deste poder lesão ou ameaça a direito, não fazendo

nenhuma restrição a direito subjetivo ou coletivo, seja no exame do inciso V deste mesmo

artigo, seguindo a mesma orientação de abertura ao ideal de coletivização do direito, seja na

leitura do art.129, III, que permite ao Ministério Público proteger direitos difusos e coletivos.

Segundo Xisto Tiago de Medeiros Neto, nenhuma diferença se enxerga entre interesse

e direito coletivo.3 A simples possibilidade de exercício do interesse é o próprio direito, não

havendo necessidade para seu reconhecimento de atribuição a um sujeito determinado. Esta

visão é fruto do desenvolvimento da teoria da responsabilidade civil que não possui como

centro de posicionamento quanto ao fato ocorrido a culpabilidade do ofensor e a qualidade da

vítima, mas sim o ponto de vista que melhor leve ao equilíbrio social, qual seja, o foco na

conduta e no dano, sem se levar em maior consideração os sujeitos ativo e passivo da relação

2 MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano Moral Coletivo. São Paulo: Ltr, 2000.p.105. 3 MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Op. cit., p.106.

3

jurídica, não obstante a responsabilidade do primeiro, caracterizado o nexo de causalidade nas

hipóteses legais em que este é indispensável para a sua configuração. Desta forma, a

existência do direito coletivo é o poder de a coletividade buscar a proteção de seus interesses

no Poder Judiciário ou exercê-los diretamente, não havendo obstáculo para tanto.

2. Enfoque histórico

Sabe-se que o direito positivo é resultado do produto de idéias de uma sociedade num

determinado tempo. Tal perfil histórico do direito determinará suas características, seus

limites, seus contornos e sua abertura.

O direito positivo visto a partir do Estado Liberal permitirá a percepção de que é fruto

da política dominante como síntese do pensamento popular, obtido de forma natural ou

artificial, isto é, com suas verdadeiras características ou com distorções a serviço de seus

produtores.

A concepção de Estado Liberal como antítese do Estado Absolutista procura proteger

a liberdade individual do homem-cidadão e a proclamação da igualdade no plano formal.

Desta forma, as idéias filosóficas de liberdade e igualdade foram incorporadas e introduzidas

ao ordenamento jurídico da maneira que melhor atendesse aos anseios dos promotores deste

Estado: a burguesia. A escolha de um inimigo comum, o Estado Absoluto, tinha por fim

permitir o desenvolvimento desta classe como se fosse o interesse nacional. A idéia de fundo

era a de que todos por serem livres e iguais eram os únicos responsáveis por suas vidas e por

seus destinos. Sendo assim, ao Estado cabia simplesmente dar condições para o exercício da

autonomia da vontade, não podendo interferir na ordem social, sob pena de retirar seus

postulados básicos: liberdade e igualdade formal.

Inevitavelmente, à medida que a burguesia ficava mais rica, o proletariado ficava mais

pobre, pois a economia era o resultado apenas da ação desta classe dominante que definia a

seu bel prazer as condições de trabalho, gerando ilimitadas desigualdades no plano social. A

mentalidade econômica que justificou o crescimento de uma classe a ponto de deixar as outras

em total miséria aos poucos foi perdendo espaço por seu modelo insustentável.

Segundo Xisto Tiago de Medeiros Neto, o homem-trabalhador se tornou mero insumo

da produção nesta época.4 Mas se todos eram livres e iguais, a opressão econômica somente

poderia explicar esta sujeição do homem ao capital justamente porque os mais fracos não

4 MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano Moral Coletivo. São Paulo: Ltr, 2000.p.108.

4

conseguiam se desenvolver em um Estado que permitia a todos a igualdade, pois a todos era

dada a liberdade. No entanto, esta abstração genérica perdeu de vista as especificidades e as

diferenças existentes entre os homens já claramente presentes deste o início do Estado. Levar

às últimas conseqüências a idéia de que nem todas as relações humanas levam em conta o

desenvolvimento de ambas as partes, a divisão equânime dos resultados atingidos.

A própria burguesia pressionada pelo povo percebeu que a exploração do homem pelo

homem pode conduzi-la à própria extinção pela inviabilidade do modelo de economia

adotado. Desta forma, o Estado passou, então, a intervir no mercado, a fim de tentar garantir

um mínimo de equilíbrio e justiça nas relações privadas.

A criação de direitos sociais foi o ponto de equilíbrio encontrado para fazer contrapeso

ao valor liberdade. A concepção de Estado Social reconheceu que não se deve dar apenas

liberdade a todos se antes não assegurar as condições para tanto. Somente a partir do

momento em que agem segundo as mesmas variáveis se poderá depurar o mérito e o direito

de possuir títulos, prerrogativas, isto é, direitos adquiridos por quem preenche requisitos ao

alcance de todos e detém a iniciativa e a perseverança em conquistá-los.

A Constituição Mexicana de 1917 e a da República de Weimar de 1919 são marcos

deste modelo de Estado. Para Xisto Tiago de Medeiros Neto, a partir delas, o movimento

conhecido como constitucionalismo social, em que as Constituições dos Estados passaram a

privilegiar os direitos concebidos socialmente, cresceu5 e permanece até hoje incorporado às

modernas constituições.

A partir do Estado Social, inicia-se o processo de coletivização do direito, pois à

medida que crescem a urbanização, a concentração de pessoas numa mesma área, a

massificação do consumo, a padronização das maneiras de produção, a mentalidade das

pessoas vai percebendo que existe enorme similitude de vida e comportamento, propiciando o

nascimento de um espírito solidário a pôr fim ao individualismo.

Segundo Xisto Tiago de Medeiros Neto, as relações emergentes no seio social

ganharam dimensão amplificada, gerando anseios e questões de massa, respeitantes, entre

tantas áreas, ao trabalho, à saúde, à educação e à assistência aos desamparados, ao transporte,

à moradia e à segurança, apenas concebidos numa latitude coletiva, a ensejar, com mais razão,

uma postura de atuação eficaz e gerencial por parte do Estado.6

3. Características básicas e conceituação

5 MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano Moral Coletivo. São Paulo: Ltr, 2000. p.109. 6 Ibid. p.109.

5

3.1. Considerações preliminares ao interesse coletivo lato sensu

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 não abraça a dicotomia

clássica da divisão do direito entre público e privado, uma vez que traz como cláusulas

pétreas direitos individuais e coletivos lato sensu, a serem exercidos inclusive contra o próprio

Estado.

Tal dicotomia serviu como justificativa da ordem jurídica e foi necessária para o

desenvolvimento da burguesia, classe principal, na influência da criação das normas, que

dependia da atuação do Estado na garantia da liberdade e da igualdade formal. Desta forma,

apenas se concebiam direitos do Estado, direitos públicos e direitos do indivíduo, direitos

privados.

Para Xisto Tiago de Medeiros Neto, apenas a partir do momento em que o homem se

viu como mero insumo da produção e entendeu que através da união das pessoas que possuem

as mesmas condições de vida, vistas nas concentrações urbanas, no sistema de produção e

consumo em massa, é que se pôde perceber a existência de direitos que não são privados nem

públicos, isto é, são coletivos, à medida que a dignidade delas dependia de satisfação de

inúmeras necessidades comuns a todas elas, a serem resolvidas e enxergadas pelo Estado se

possuíssem dimensão que extrapolasse a esfera individual, pois eram indivíduos excluídos do

sistema.7

A transindividualidade reconhecida pela ordem jurídica consiste na transcendência do

direito para além de um titular determinado, traduzindo-se na idéia de coletividade como

titular de um interesse, vista esta como um grupo determinado ou indeterminado, podendo tal

interesse ter caráter patrimonial ou extrapatrimonial.

O reconhecimento de direitos transindividuais possui um papel enorme na

consolidação de um ordenamento jurídico que abarque todas as formas lesivas de conduta a

interesses juridicamente protegidos. Desta maneira, se não houvesse tal proteção,

inevitavelmente seria possível auferir lucros com atividades que não precisassem respeitar

condições de trabalho, o meio ambiente e as lesões ínfimas do ponto de vista individual, não

obstante constituírem lesões de extensão coletiva.

A expressão “direitos transindividuais” é utilizada como gênero, cujas espécies são os

direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. Os primeiros possuem sujeitos

7 MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano Moral Coletivo. São Paulo: Ltr, 2000.p.111.

6

indeterminados e ligados por circunstâncias de fato, constituindo toda a coletividade; os

segundos dizem respeito a grupo, categoria ou classe de pessoas, passíveis de determinação e

relacionadas por uma relação jurídica base entre elas e os últimos se situam neste mesmo

gênero por serem exercitáveis em processo coletivo pelo fato de terem origem comum, apesar

da divisibilidade de seu objeto.

Nota-se pelo grau de abstração e generalidade dos direitos transindividuais sua

aproximação com a idéia de interesse público, tendo como ponto de maior contato os direitos

difusos. Não obstante esta linha tênue que os coloca numa zona cinzenta, o interesse público

tem como característica diferenciadora a unanimidade social.8 Já os interesses transindividuais

não possuem tal unanimidade social, uma vez que haverá sempre de se contrabalancear com o

interesse público caso este venha se confrontar com aquele. Por exemplo, numa situação de

guerra, inevitavelmente os direitos difusos como o ambiental terão que ser afastados para

prevalência do interesse público na defesa da soberania nacional. Em situações normais, a

defesa do meio ambiente em razão do interesse coletivo lato sensu também se justificará em

virtude do interesse público.

Além de fazer fronteira com o interesse público também o faz com o interesse social.

Este pode ser conceituado como valores compartilhados pela sociedade como também pode

ser definido com os interesses de uma entidade social como uma empresa. Na primeira

acepção, é possível considerar a mesma realidade como interesse coletivo ou como interesse

social, o mesmo não acontecendo na segunda, pois embora haja um esforço comum na

conquista de seus fins, estes podem representar apenas os interesses do empregador, que se

unindo a outros, passaria a defender um interesse coletivo.

Dentre estas aproximações conceituais ainda há aquela relacionada ao interesse geral.

Neste caso, há o interesse de toda a coletividade, cujo exercício ocorre indiretamente por

representação do Estado.

Pelo visto, as expressões “interesse público”, “interesse social” e “interesse geral”

podem denotar a mesma realidade ou outra conforme o contexto em que estiverem inseridas,

ora ressaltando-se suas semelhanças, ora enfatizando-se suas sutis diferenças.

3.2. Interesses coletivos stricto sensu

8 BENJAMIN, Antônio Herman V. “A insurreição da aldeia global contra o processo civil clássico.

Apontamentos sobre a opressão e a libertação judiciais do meio ambiente e do consumidor”. In: Ação Civil

Pública: Lei 7.347/85: reminiscências e reflexões após dez anos de aplicação. MILARÉ, Edis (coord.) São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.p.91Apud MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano Moral Coletivo. São Paulo: Ltr, 2000.p.114.

7

Segundo Xisto Tiago de Medeiros Neto, os interesses coletivos stricto sensu possuem

características marcantes como a transindividualidade manifestada pela própria coletividade,

não se conformando ao âmbito individual; a abrangência de um número de indivíduos não

determinado, porém determinável, integrados em torno do interesse indivisível ou ao ente que

congrega o interesse; a existência de um vínculo associativo, uma relação jurídica base, entre

os integrantes do grupo e a indivisibilidade do interesse, não se podendo fracioná-lo entre os

indivíduos integrantes da coletividade, pois afeto a todos indistintamente e a nenhum

pessoalmente.9

A transindividualidade é uma característica desta modalidade de interesse coletivo

bem como está presente nas demais em diferentes graus, possuindo a capacidade de sintetizar

todas as vontades individuais como se fosse apenas uma vontade, fazendo desaparecer

eventuais divergências entre elas. A abrangência de um número de indivíduos determinável

fortalece a unidade do elemento volitivo pela proximidade que há entre eles, tornando a

vontade mais densa, mais visível, em virtude também do próprio vínculo associativo existente

detido pelo grupo e da própria indivisibilidade do interesse.

A definição de interesses e direitos coletivos dada pelo Código de Defesa do

Consumidor, nos termos do artigo 81, acrescenta ao conceito doutrinário acima exposto a

possibilidade de o interesse transindividual de natureza indivisível titularizado por grupo,

categoria ou classe de pessoas decorrer de vínculo existente entre a parte contrária e o próprio

grupo, aproximando-se muito do conceito de direitos individuais homogêneos que também

não possuem uma relação jurídica base entre as pessoas integrantes, diferenciando-se da outra

espécie pelo critério de divisibilidade do interesse. O grande mérito da conceituação legal é

reconhecer que interesses coletivos stricto sensu podem ser defendidos tanto por integrantes

de grupo que têm vínculo associativo entre si como por aqueles que não o possuem, mas que

em razão da indivisibilidade do objeto exercem defesa conjuntamente, consagrando o direito

constitucional de liberdade de associação, sem prejuízo do interesse em si. É o caso em que

grevistas associados a sindicatos e grevistas sem associação, defendendo os mesmos

interesses em face de parte contrária.

3.3. Interesses difusos

9 MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano Moral Coletivo. São Paulo: Ltr, 2000. p.117.

8

Para Xisto Tiago de Medeiros Neto, os interesses difusos possuem os seguintes pontos

essenciais:

a) em relação à titularidade, observa-se a indeterminação dos sujeitos, pois o interesse

alcança pessoas indeterminadas ligadas apenas por circunstâncias de fato, como consumir um

dado produto ou viver em uma mesma localidade (...);

b) a indivisibilidade do objeto é manifesta, pois não se concebe, pela sua natureza,

repartir-se o interesse difuso em quinhões ou quotas entre as pessoas ou grupos (...);

c) possuem uma potencial e larga conflituosidade, por força de que, encontrando-se

desagregados, sem vínculo jurídico básico, os interesses difusos enfrentarão, em regra,

resistência em face de outros interesses (...);

d) não há vínculo associativo entre os interessados, nem um liame a uni-los, fixado por

uma relação jurídica padrão, nos moldes do que se observa com os interesses coletivos stricto

sensu. Porém, como já evidenciado, ocorre apenas uma identificação circunstancial, fluida,

efêmera, em razão de uma situação de fato.10

Admitir como titular de direitos uma pluralidade de sujeitos representa um novo

conceito de direito subjetivo, não mais significando apenas a necessidade de existir um titular

certo para exigir respeito ou contraprestação de outra parte. É a criação de um mecanismo que

incentiva o indivíduo a participar da defesa de interesses da coletividade, integrando-o como

parte do todo e não como seu senhor. É uma maneira de sensibilizá-lo como possuidor de

direitos e deveres para com a comunidade. Além disto, a necessidade de defesa de interesses

difusos representa a racionalização crescente da sociedade, em busca de bem-estar de todos,

bem como responsabilização do indivíduo, da coletividade e do Estado, uma vez que este se

mostra cada dia mais dependente da colaboração de seus integrantes e para manter o sistema

democrático necessita outorgar meios de participação direta nos interesses jurídicos de toda a

nação.

3.4. Interesses individuais homogêneos

De acordo com Xisto Tiago de Medeiros Neto, os interesses individuais homogêneos

possuem as seguintes características principais:

a) podem ser objeto de tratamento coletivo, não obstante a natureza individual, em

virtude de se originarem de uma situação comum, com a feição homogênea;

10 MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano Moral Coletivo. São Paulo: Ltr, 2000.p.121.

9

b) englobam uma série de indivíduos, precisamente identificados ou identificáveis;

c) os interesses são divisíveis entre os sujeitos;

d) não ocorre relação jurídica base entre os indivíduos: a sua ligação dá-se unicamente

pela origem comum em razão da qual os interesses decorrem.11

A criação desta espécie de interesse transindividual reforça a tendência de

coletivização dos direitos, seja por possuir inúmeras características de transindividualidade,

seja por possuir apenas a possibilidade de tratamento coletivo. O sistema jurídico como um

todo ganhar maior prestígio social, uma vez que por razão da unidade do processo coletivo,

envolvendo interesses individuais homogêneos, concretiza o princípio constitucional da

isonomia, passando a ocorrer com maior freqüência, objetividade e extensão.

Apesar de não serem essencialmente coletivos, contribuirão indiretamente para o

espírito de solidariedade social, tornando a Justiça mais célere na solução de conflitos e

servindo como incentivo aos titulares de direitos individuais homogêneos para criação de

associações para defesa de direitos coletivos lato sensu.

Por fim, o referido instituto constitui mais uma maneira de coletivizar não só os

direitos materiais como o direito processual, de forma que estejam em harmonia e em

evolução contínua.

11 MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano Moral Coletivo. São Paulo: Ltr, 2000.p.121.

10

II - DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

1. O constitucionalismo

Atualmente, não se concebe como um país sério sem uma Constituição, uma vez que

predomina o entendimento universal de que as relações de comando devem se pautar por

previsibilidade como a face contraposta da confiança do povo em seus líderes, na medida em

que o governo não é um fim em si mesmo, senão um instrumento de desenvolvimento de

todos. Apesar de a previsibilidade não ser um valor absoluto e capaz de solucionar toda a

complexidade das relações de poder, trata-se de um pressuposto de seu controle que pondera a

necessidade de contê-lo, com a dignidade daquele que o exerce.

Assim surgiram no mundo diversas constituições, cada uma a seu modo, procurando

estabelecer mais transparência e previsão dos atos de seus governantes. As Constituições

escritas e rígidas dos Estados Unidos da América de 1787 e da França de 1791 são

consideradas como marcos históricos do constitucionalismo.12

2. Técnicas de controle de constitucionalidade

O controle judicial de constitucionalidade costuma ser dividido em sistema difuso e

em sistema concentrado, podendo haver a combinação destes dois em um modelo misto. O

primeiro consiste na possibilidade de controle de constitucionalidade por meio de todos os

juízes e de todos os tribunais, de tal forma que todos podem se manifestar a respeito da

Constituição, gerando uma jurisprudência sem uniformização de entendimento pretoriano. O

segundo consiste na centralização do controle em um único órgão, em geral, numa Corte

considerada como suprema. Atualmente, há quatro instrumentos destinados ao controle direto:

ação direta de inconstitucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade, ação de

inconstitucionalidade por omissão e argüição de descumprimento de preceito fundamental.

No entanto, cabe esclarecer que esta divisão possui caráter didático, com finalidade de

esclarecimento da realidade por meio de categorias abstratas, que não são apropriadas para

abarcar toda sua extensão. São apenas modelos de compreensão com estes mencionados

limites. Para tanto, cabe lembrar que a partir da Emenda Constitucional de 7 de dezembro de

1929 à Constituição da Áustria, o Supremo Tribunal de Justiça e o Tribunal de Justiça

12 MORAES, ALEXANDRE. Direito Constitucional. 13.ed. São Paulo: Atlas, 2003.p.35.

11

Administrativa passaram a ter a competência de elevar a controvérsia constitucional concreta

à Corte Constitucional. Desta forma, o juiz ou tribunal se tornaram responsáveis por

encaminhar à Corte todo incidente de inconstitucionalidade, funcionando como órgãos com

legitimidade para provocá-la.13

O sistema concentrado de controle de constitucionalidade visto a partir do modelo

americano, exalta o caráter objetivo deste processo, principalmente pelo reconhecimento do

efeito vinculante de suas decisões. Não obstante este posicionamento objetivo, há abertura

para posições subjetivas de terceiros não partes da ação na figura do amicus curiae.14 No

entanto, não se pode entender que a participação deste terceiro constitua nítido caráter

democrático a este processo, pois há uma larga distância entre a possibilidade de qualquer do

povo provocar a Corte Constitucional e a audiência de um representante de classe com

autoridade na matéria. É importante destacar que o adjetivo concentrado que se dá a este

controle se restringe apenas a informar que um único órgão se manifesta sobre a

constitucionalidade da lei, não significando que forma de decidir seja concreta ou abstrata,

isto é, é possível a existência de um controle concentrado de constitucionalidade a partir de

casos concretos ou a partir de casos abstratos. No caso americano, a concentração se dá a

partir de controvérsias entre particulares que buscam uma solução na Suprema Corte. No

brasileiro, a concentração direta se dá a partir de controvérsia virtual, ou seja, aquele

legitimado constante do art.103 da Constituição Federal que entende que uma norma é

inconstitucional pode propor ação direta de inconstitucionalidade, na qual será citado o

Advogado-Geral da União para defender a constitucionalidade, a fim de gerar um

contraditório nesta matéria, como seu fosse um réu. Dentre estas diferenças, cabe ressaltar

também que embora no Brasil a ação declaratória de constitucionalidade seja julgada

diretamente pelo Supremo Tribunal Federal, a ação de natureza declaratória pode ser julgada

na via indireta como no caso americano e em forma de incidente processual no brasileiro.

A opção do direito americano pela análise da constitucionalidade a partir de casos

concretos, com a possibilidade, a partir de 1937, de intervenção do Governo Federal leva a

discussão também para o campo do interesse público.15 Apesar de conferir mais objetividade à

análise da questão controvertida, não significa necessariamente a defesa do interesse público,

13 MARTINS, Ives Gandra da Silva e MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Concentrado de

Constitucionalidade.2.ed.São Paulo: Saraiva, 2007. Pp.1-2. 14 Ibid. Pp.1-2. 15 MARTINS, Ives Gandra da Silva e MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Concentrado de

Constitucionalidade.2.ed.São Paulo: Saraiva, 2007. p.10.

12

uma vez que o governo nem sempre entra no processo o defendo, mas cuidando de interesses

próprios.

3. A Constituição de 1988

A Carta Magna de 1988 possui um rol extenso de legitimados a propor a ação direta de

inconstitucionalidade, conforme redação do art.103 da CF. Tal extensão está diretamente

ligada à importância que se dá ao controle de constitucionalidade, na medida em que pode

ocorrer uma proporção direta entre o número de proponentes e o grau de controle de normas.

Da relação do objeto de controle de constitucionalidade e do rol de legitimados para

propositura da ação direta gerou um instrumento federativo novo, isto é, a possibilidade de

um Governador de Estado questionar a constitucionalidade de uma lei federal e do Presidente

da República aferir a de uma lei estadual.16 Tal sistema contribui para o equilíbrio da

federação, na medida em que se abre a oportunidade de debate das normas tanto por seus

criadores quanto por seus destinatários. Em outras palavras, os governadores estão

autorizados a questionar lei federal sancionada pelo Presidente da República e este está

autorizado a questionar lei estadual, em virtude de seu dever de zelar pela Constituição. Por

fim, seu caráter federativo resulta do poder recíproco de controle por órgãos da União e dos

Estados.

A legitimação dos partidos políticos para propositura da ação direta de

inconstitucionalidade jurisdicionaliza o debate político e consagra o princípio da supremacia

da Constituição, na medida em que permite ao partido vencido na arena do Congresso a

possibilidade de gerar nova discussão do assunto, agora no âmbito do Poder Judiciário, sob o

pretexto de a lei estar ofendendo a Carta Magna.

A segunda mudança significativa consistiu na possibilidade de concessão de efeito

erga omnes às decisões do STF por ele próprio, conforme art.102, § 2°, da CF.

4. A questão da pertinência temática

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entende que a legitimidade ativa ad

causam não resulta apenas da literalidade do art.103, I a IX. É necessária para algumas

entidades como confederações sindicais, Mesas das Assembléias Legislativas estaduais ou da

16 Ibid. p.78.

13

Câmara Legislativa do Distrito Federal e Governadores dos Estados-membros ou do Distrito

Federal a pertinência temática, isto é, a demonstração da existência de um nexo de afinidade

entre os objetivos institucionais do órgão ou entidade autor da ação direta e o conteúdo

material da norma impugnada.17 Desta maneira, pode-se citar a seguinte ementa:

Agravo regimental em ação direta de inconstitucionalidade. Confederação dos Servidores Públicos do Brasil e Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte. Ausência de pertinência temática. Não há pertinência temática entre o objeto social da Confederação Nacional dos Servidores Públicos do Brasil, que se volta à defesa dos interesses dos servidores públicos civis, e os dispositivos impugnados, que versam sobre o regime de arrecadação denominado de ‘Simples Nacional’18.

Este requisito jurisprudencial para propositura de ação direta de inconstitucionalidade

e ação declaratória de constitucionalidade conflita com o fundamento do controle abstrato,

isto é, com o interesse em manter a ordem constitucional. Desta forma, o STF está

implicitamente afirmando que a ordem constitucional não é um valor absoluto, a ser buscado

a todo custo. É preciso conciliar este interesse, com outros valores como no caso o princípio

da autonomia dos Estados, utilizado para impedir que um Estado ajuíze uma ação abstrata,

porque outro Estado está descumprindo a Constituição.

Além disto, é importante ressaltar que a exigência da pertinência temática não afasta

por completo o interesse em manter a ordem constitucional, pois existem alguns legitimados

que são universais, cabendo a eles a impugnação da norma inconstitucional no caso da

impossibilidade daqueles legitimados restritos.

Desta forma, o Supremo Tribunal Federal considera como legitimados universais o

Presidente da República, as Mesas do Senado e da Câmara dos Deputados, o Procurador-

Geral da República, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados e o partido político com

representação no Congresso Nacional, ou seja, são legitimados a propor ações sobre todo e

qualquer assunto constitucional, com ampla liberdade temática.19

Na visão do autor deste trabalho, o requisito da pertinência temática tem mais valor de

filtro, a fim de evitar quantidade excessiva de processos para uma estrutura inadequada,

formada por um poucos magistrados e auxiliares, do que valor propriamente jurídico. Desde a

Constituição de 1934, a legitimidade para propositura de ações com cunho de análise direta de

constitucionalidade era restrita ao Procurador-Geral da República, sendo a ampliação do rol

17 MARTINS, Ives Gandra da Silva e MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Concentrado de

Constitucionalidade. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p.118. 18 STF, ADI 3.906-AgR, Rel. Min. Menezes Direito, julgamento em 7-8-08, DJE de 5-9-08. 19 MARTINS, Ives Gandra da Silva e MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Concentrado de

Constitucionalidade.2.ed.São Paulo: Saraiva, 2007. p.119.

14

de legitimados pela Constituição de 1988 a vontade do Poder Constituinte, com intuito de

concretizar os princípios do Estado Democrático de Direito. Desta maneira, a restrição dos

legitimados pelo requisito jurisprudencial de pertinência temática se traduz em uma

interpretação retrógrada, no sentido oposto do Legislador Constituinte, com nítido interesse

prático.

A solução para este impasse poderia ser certamente o aumento do número de ministros

no STF tal como ocorreu com o TST, após a Emenda 45, com o respectivo respaldo de toda

equipe técnica que o assessora.

Percebe-se que a legitimidade universal para alguns se dá mais por prestígio político

do que propriamente por interesse jurídico. Assim, mesmo com a opinião da doutrina de que a

legitimidade do Presidente da República deveria ser restrita, uma vez que não poderia ajuizar

uma ação direta de inconstitucionalidade de norma estadual, por ferir o pacto federativo, o

STF o vê como legitimado universal. Todavia, a tese esposada pelo Supremo é amplamente

defensável, na medida em que a Carta Magna por sua natureza política comporta igualmente

uma interpretação com o mesmo viés.

A respeito da confederação sindical e das entidades de classe de âmbito nacional, além

da pertinência temática, o STF exige critérios para considerá-las assim como tais. Desta

forma, confederação sindical é apenas aquela que congregue, pelo menos, três federações

representativas da categoria atingida pela norma impugnada e as entidades de classe de

âmbito nacional devem congregar, exclusivamente, pessoas física integrantes de determinada

categoria econômica ou profissional, representar toda a categoria e contar com associados em

pelo menos nove Estados da Federação.20

Seguindo esta tendência de filtragem constitucional, o Supremo Tribunal Federal

também está restringindo o conceito de ato normativo federal ou estadual. Desta forma,

apenas os atos que ofendem diretamente a Constituição podem ser objeto de ações diretas de

inconstitucionalidade. Desta forma, foram criados quatro critérios para que o ato normativo

seja passível de controle: coeficiente de generalidade abstrata, autonomia jurídica,

impessoalidade e eficácia vinculante das prescrições dele constantes.21

5. Ação declaratória de constitucionalidade (ADC)

20 Ibid. p.122. 21 MARTINS, Ives Gandra da Silva e MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Concentrado de

Constitucionalidade.2.ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p.125.

15

Surgiu, no ordenamento jurídico brasileiro, através da Emenda Constitucional n.3, de

17 de março de 1993, o instituto da ação declaratória de constitucionalidade, cujo rol de

interessados era menor em relação aos da ação direta de constitucionalidade. Foi conferida

legitimidade apenas ao Presidente da República, à Mesa do Senado Federal, à Mesa da

Câmara dos Deputados e ao Procurador-Geral da República. Em 2004, o legislador através da

Emenda 45 estendeu a todos os legitimados da ação direta o direito a propor a ação

declaratória. Tal solução é mais coerente com a natureza dúplice ou ambivalente destas ações

de controle abstrato de constitucionalidade, pois o rol restrito da ação declaratória de

constitucionalidade não possuía justificativa plausível para tal discriminação, ferindo o

postulado da isonomia, pois para uns a lei era mais constitucional do que para outros, haja

vista o princípio de presunção de legitimidade das leis.

Foi nesta ação que o legislador, pela primeira vez, previu efeitos erga omnes

vinculantes para a decisão definitiva de mérito. No entanto, dada a natureza dúplice das ações

de controle abstrato de constitucionalidade, em 2004, através da Emenda 45, foi atribuído

também a ação direta este efeito vinculante.

6. Ação direta de inconstitucionalidade (ADI)

O processo da ação direta de inconstitucionalidade é objetivo, isto é, a causa de pedir é

de interesse geral, não apenas do interesse do autor da ação. Desta maneira, a doutrina discute

a possibilidade de influências neste procedimento de elementos encontrados no processo

subjetivo, tais como prevenção e declaração de impedimento ou suspeição.22

Na visão do autor deste trabalho, o instituto da prevenção, apesar de previsto nos

Códigos de Processo Civil e Penal brasileiros não possui natureza subjetiva, pois sua

finalidade consiste em evitar decisões contraditórias e na economia processual, fundamentos

de ordem pública e o instituto da declaração de impedimento e suspeição também visa

garantir a imparcialidade do juízo, igualmente fundamento de ordem pública. Em outras

palavras, tais institutos conferem objetividade na apreciação de interesses subjetivos e são

cabíveis tanto nos processos objetivos como nos subjetivos.

O critério utilizado pelo STF para definir a prevenção é a identidade do objeto

impugnado pela via direta, devendo as ações subseqüentes ser apensadas aos autos da ADI

ajuizada originariamente, para efeito de tramitação conjunta e posterior julgamento. Após o

22 MARTINS, Ives Gandra da Silva e MENDES, Gilmar Ferreira. Op. cit., p.132.

16

apensamento, a autuação dessa primeira ação é modificada, incluindo a referência aos nomes

dos autores que promovam as outras ADI.23

A jurisprudência da Suprema Corte a respeito do impedimento no controle abstrato de

normas tem se posicionado de forma bastante específica, isto é, para cada caso uma solução

particular. Desta forma, não constitui impedimento de Ministro do STF o fato de ter sido ele

quem referendou a lei quando era Ministro de Estado ou o fato de ter prestado informações

em nome do TSE, quando Ministro destas duas Cortes. O fundamento da permissão para

julgar, mesmo no caso de referendo da lei, é a distinção entre mens legis e a mens legislatoris

e no caso da prestação de informações em nome do TSE é a predominância do caráter

objetivo na sede direta. Todavia, encontra-se em impedimento o Procurador-Geral da

República que foi parecerista em medida cautelar e se torna Ministro do STF quando do

julgamento da ação principal, pois não se justifica dar dois pronunciamentos válidos em um

mesmo processo.24Além disto, a participação dele em dois momentos inevitavelmente está

anulando por via oblíqua o quorum especial para julgamento da ADIN, ou seja, como já se

pronunciou em certo sentido, a tendência é mantê-lo, retirando a legítima expectativa

daqueles que advogam sentido contrário, pois sendo outro o julgador a possibilidade de mudar

os rumos da decisão é maior. Evita também o oportunismo de eventual Presidente nomear um

Ministro, já sabendo sua convicção atual a respeito de determinada matéria, a fim de ser

beneficiado em alguma ação e contribui para impedir o tribunal de exceção, ou seja, aquele

que julga, já tendo uma opinião a respeito, mesmo antes da defesa do réu ou da instrução do

processo.

Já o Ministro Celso de Mello defende a idéia de que em nenhum caso se aplicam os

institutos, conforme se deduz da seguinte ementa:

Fiscalização normativa abstrata. Processo de caráter objetivo. Inaplicabilidade dos institutos do impedimento e da suspeição. Conseqüente possibilidade de participação de Ministro do Supremo Tribunal Federal (que atuou no TSE) no julgamento de ação direta ajuizada em face de ato emanado daquela alta corte eleitoral25.

No caso do Advogado-Geral da União, é necessário distinguir os momentos de seu

trabalho para configurar ou não impedimento. Na hipótese em que age como auxiliar do

Presidente da República na prestação de informações ao Supremo Tribunal Federal, sua

atuação se equipara a dos demais Ministros que referendam leis ou atos normativos. Sendo 23 Ibid. p.133. 24 MARTINS, Ives Gandra da Silva e MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Concentrado de

Constitucionalidade.2.ed.São Paulo: Saraiva, 2007. p.134. 25 STF, ADI 2.321-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 25-10-00, DJ de 10-6-05.

17

assim, não há impedimento a ser considerado. Na hipótese em que age como defensor da lei

impugnada de inconstitucionalidade, haveria impedimento, pois sua defesa, em geral, é

obrigatória por força da Constituição. Todavia, o STF não tem feito esta distinção.26

No tocante às hipóteses de suspeição elencadas no Código de Processo Civil, o STF,

em regra, não admite suspeição no processo de controle abstrato de normas, salvo no caso em

que o próprio relator ou qualquer outro ministro alegue a aplicação da regra prevista no

art.134, IV, do CPC, parentesco com o advogado do requerente.27

7. Rol de legitimados para a propositura de ADI

O art.103 da Constituição Federal estabelece o rol de legitimados a propor tanto a ação

direta de inconstitucionalidade como a ação declaratória de constitucionalidade. Tal

legitimidade abarca também a capacidade postulatória, ou seja, as pessoas legitimadas para o

ajuizamento da ADI podem postular quaisquer atos ordinariamente privativos de advogado.28

Na visão deste autor, a extensão da capacidade postulatória aos legitimados para

propositura destas ações não possui fundamento jurídico relevante, uma vez que os órgãos

legitimados possuem corpo técnico, com formação adequada e legitimidade para defendê-los

como no caso do Presidente da República que tem o apoio da Advocacia-Geral da União.

Proceder de forma contrária é esvaziar o conteúdo do art.131 da CF, no qual está consagrado

que cabe à Advocacia-Geral da União assessorar o Poder Executivo. Além disto, sua dispensa

retira não apenas o prestígio desta instituição como também a importância do controle de

constitucionalidade, pois se estaria permitindo a leigos a discussão jurídica profunda que deve

ocorrer nestas ações. Em outras palavras, o poder de propor significa apenas legitimidade e

não capacidade postulatória, pois a todos é dado o direito de provocar o judiciário e aos

advogados o direito de defendê-los, salvo casos dispostos em lei.

8. Natureza do processo de controle de constitucionalidade

Em regra, as ações possuem três condições de procedibilidade: possibilidade jurídica

do pedido, legitimidade e interesse jurídico. Ás vezes, a lei impõe mais um requisito, o do

interesse jurídico específico. No caso do processo de controle de constitucionalidade, a

26 Ibid. p.136. 27 Ibid. p.137. 28 MARTINS, Ives Gandra da Silva e MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Concentrado de

Constitucionalidade.2.ed.São Paulo: Saraiva, 2007. p.139.

18

doutrina tem entendido que não há necessidade de demonstração de interesse jurídico

específico, pois se trata de instrumento político e não jurídico, sendo suficiente a dúvida sobre

a constitucionalidade da lei ou do ato normativo.29

Como a presunção de legitimidade das leis é relativa, a fundamentação da ação direta

de inconstitucionalidade deve ser contundente em negá-la.

9. Direito de propositura

O rol do art.103 da CF para propositura de ações ligadas ao processo de controle

abstrato de constitucionalidade possui legitimados das mais diversas naturezas, como Chefes

do Executivo Federal e Estadual, Chefe do Ministério Público, Mesas do Senado e Câmara,

Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, partidos políticos com representação

no Congresso Nacional, Confederações sindicais e organizações de classe de âmbito nacional.

Dada a natureza objetiva destas ações, não impede também que o legislador outorgue

competência ao Supremo Tribunal Federal para agir de ofício nesta matéria. Esta modalidade

de iniciativa processual permitiria dar maior celeridade à decisão do STF, pois em assuntos

muito importantes não se gastaria tempo, aguardando a provocação de algum legitimado. Não

se pode dizer que isto afetaria o princípio da separação de poderes, pois tanto o Executivo

como o Legislativo são legitimados para estas ações.

Houve um equívoco também do legislador em outorgar competência no âmbito

estadual apenas ao Governador de Estado, pois no âmbito federal tanto o Presidente da

República como as Mesas do Senado e Câmara são legitimados, o que leva uma assimetria de

poder nos âmbitos federal e estadual.

O caráter de amplitude do rol de legitimados na Constituição Federal deve ser seguido

pelas Constituições Estaduais, conforme se deduz do art.125, § 2°. No entanto, são livres para

escolher as pessoas e os órgãos para compor o grupo restrito de legitimados.

As Mesas do Senado e da Câmara dos Deputados, evidentemente, não vão propor

ações que questionem leis criadas por elas mesmas.30 Para tanto, podem recorrer a revogação,

não possuindo interesse jurídico. Assim, sua legitimidade será exercida em outras hipóteses

como no caso de questionamento de lei estadual e para a ação declaratória de

constitucionalidade, haverá interesse jurídico, pois intentarão manter a lei, sem controvérsias.

29 MARTINS, Ives Gandra da Silva e MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Concentrado de

Constitucionalidade. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 140. 30 MARTINS, Ives Gandra da Silva e MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Concentrado de

Constitucionalidade.2.ed.São Paulo: Saraiva, 2007. p.144.

19

Cabe destacar que o Supremo Tribunal Federal tem entendido que o rol de legitimados a

propor ação direta de inconstitucionalidade é taxativo, como se vê nas seguintes ementas:

O rol do artigo 103 da Constituição Federal é exaustivo quanto à legitimação para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade.31

Ação direta de inconstitucionalidade – Legitimidade ativa ad causam – CF/88, art. 103 – Rol taxativo – Entidade de classe – Representação institucional de mera fração de determinada categoria funcional – Descaracterização da autora como entidade de classe – Ação direta não conhecida. (...) A Constituição da República, ao disciplinar o tema concernente a quem pode ativar, mediante ação direta, a jurisdição constitucional concentrada do Supremo Tribunal Federal, ampliou, significativamente, o rol – sempre taxativo – dos que dispõem da titularidade de agir em sede de controle normativo abstrato. Não se qualificam como entidades de classe, para fins de ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade, aquelas que são constituídas por mera fração de determinada categoria funcional. Precedentes.32

9.1. Legitimidade do Presidente da República

A Constituição Federal simplesmente outorga a atribuição de o Presidente da

República de propor ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de

constitucionalidade. Todavia, surgem questões decorrentes de sua legitimidade, que são

discutidas e resolvidas pela doutrina. Entre uma delas, há o problema da legitimidade de o

Presidente propor ação direta de inconstitucionalidade de lei sobre a qual tenha sancionado.

A argumentação que nega a possibilidade da propositura de ação direta de

inconstitucionalidade pelo Presidente da República de lei que tenha sancionado reside na

suposta necessidade de manter a coerência de pensamento, pois no ato da sanção exerceu o

direito de vetar a lei, em caso de interesse público ou de inconstitucionalidade. Já a defesa da

possibilidade desta propositura consiste na constatação de que pode ocorrer sanção sem que o

Presidente perceba a inconstitucionalidade, apenas a conhecendo posteriormente. Assim, seria

natural a propositura da ação em face de novo entendimento da matéria, contribuindo desta

forma para cumprir seu dever de defender a Constituição.

9.2. A legitimidade das mesas do Senado Federal e da Câmara dos Deputados

Embora na esfera executiva, a Constituição Federal tenha outorgado legitimidade ao

Presidente da República para propor ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória

de constitucionalidade, na legislativa, agiu com maior rigor democrático, pois a conferiu às

31 STF, ADI 641, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 11-12-91, DJ de 12-3-93. 32 STF, ADI 1.875-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 20-6-01, DJE de 12-12-08.

20

Mesas do Senado e da Câmara e não a seus presidentes, de forma a respeitar o pluralismo de

idéias e a solução de conflitos por meio do consenso.

No entanto, esta forma não abarca as minorias políticas que tiveram que ser

contempladas, com a legitimidade dos partidos políticos com representação no Congresso

Nacional.

As Mesas do Senado e da Câmara não podem questionar os seus próprios atos,

cabendo aos partidos políticos contrários a suas decisões propor ações diretas de

inconstitucionalidade.33 No entanto, vislumbra-se a possibilidade destas ações,

principalmente, no caso de questionamento de leis e atos normativos editados em outras

legislaturas, pois as Mesas não possuem poder de revogá-los diretamente, necessitando da

manifestação de Comissões ou do Plenário. Também no caso de leis e atos normativos da

mesma legislatura, são cabíveis tais ações, pois se deve admitir a mudança de entendimento

do Congresso Nacional, da mesma forma que no caso das leis não vetadas pelo Presidente da

República.

9.3. Legitimidade do Governador de Estado e da Assembléia Legislativa Estadual

As razões para o direito de propositura de ações diretas de inconstitucionalidade e de

ações declaratórias de constitucionalidade do Governador de Estado são eminentemente

políticas. No entanto, é necessário entender este direito também como um dever de

colaboração dos Estados na manutenção da ordem constitucional, pois foram eles que se

uniram para a celebração da Carta Magna. Além disto, decorre de sua autonomia, pois se

assim não pudesse agir, seria como se tivesse o dever de obedecer a tudo que a União fizesse,

inclusive a leis e atos normativos inconstitucionais.

A orientação do Supremo Tribunal Federal a respeito da capacidade postulatória do

Governador de Estado é no sentido de poder sozinho postular quaisquer atos ordinariamente

privativos de advogado.34 Assim, pode-se citar a seguinte ementa:

Governador de estado. Capacidade postulatória reconhecida. O Governador do Estado e as demais autoridades e entidades referidas no art. 103, incisos I a VII, da Constituição Federal, além de ativamente legitimados à instauração do controle concentrado de constitucionalidade das leis e atos normativos, federais e estaduais, mediante ajuizamento da ação direta perante o Supremo Tribunal Federal, possuem

33 MARTINS, Ives Gandra da Silva e MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Concentrado de

Constitucionalidade. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 148. 34 MARTINS, Ives Gandra da Silva e MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Concentrado de

Constitucionalidade.2.ed.São Paulo: Saraiva, 2007. p.139.

21

capacidade processual plena e dispõem, ex vi da própria norma constitucional, de capacidade postulatória. Podem, em conseqüência, enquanto ostentarem aquela condição, praticar, no processo de ação direta de inconstitucionalidade, quaisquer atos ordinariamente privativos de advogado.35

A legitimidade do Governador de Estado é considerada também pelo STF como

intuitu personae, como se percebe pela leitura do trecho:

Verifico que a ação, embora aparentemente proposta pelo Chefe do Poder Executivo estadual, está apenas assinada pelo Procurador-Geral do Estado. De plano, resulta claro que o signatário da inicial atuou na estrita condição de representante legal do ente federado (CPC, artigo 12, I), e não do Governador, pessoas que não se confundem. A medida constitucional utilizada revela instituto de natureza excepcional, em que se pede ao Supremo Tribunal Federal que examine a lei ou ato normativo federal ou estadual, em tese, para que se proceda ao controle normativo abstrato do ato impugnado em face da Constituição. Com efeito, cuida ela de processo objetivo sujeito à disciplina processual própria, traçada pela Carta Federal e pela legislação específica — Lei 9.896/99. Inaplicáveis, assim, as regras instrumentais destinadas aos procedimentos de natureza subjetiva. O Governador de Estado é detentor de capacidade postulatória intuitu personae para propor ação direta, segundo a definição prevista no artigo 103 da Constituição Federal. A legitimação é, assim, destinada exclusivamente à pessoa do Chefe do Poder Executivo estadual, e não ao Estado enquanto pessoa jurídica de direito público interno, que sequer pode intervir em feitos da espécie.36

No entanto, em alguns casos, necessitará de postular juntamente com o Procurador-Geral do

Estado.37

9.4. Legitimidade do Governador do Distrito Federal e da Câmara Legislativa

Atualmente, em virtude da redação dada pela Emenda Constitucional n.° 45 de 2004,

não há discussão doutrinária a respeito da constitucionalidade da propositura de ações de

controle de constitucionalidade pelo Governador do Distrito Federal e da Câmara Legislativa.

Tratava-se de um caso de lacuna constitucional, em que o legislador por descuido não se

referiu expressamente a esta possibilidade, embora implícita em seu texto.

Evidentemente, por ser o DF, o local onde a União desenvolve seus trabalhos de forma

centralizada, o direito do Governador do Distrito Federal e da Câmara Legislativa de propor

ações diretas de inconstitucionalidade para se proteger de eventuais intromissões por parte do

legislador federal se torna ainda mais necessário que nos Estados em geral.

35 STF, ADI 127-MC-QO, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 20-11-89, DJ de 4-12-92. 36 STF, ADI (AgRg)1.797-PE, DJ de 23-2-01; ADI (AgRg) 2.130-SC, DJ de 3-10-01; 37 Ibid. p.150.

22

9.5. Legitimidade do Procurador-Geral da República

Legitimado exclusivo em todas as constituições que antecederam a de 1988, o

Procurador-Geral da República passou a ser um dentre eles e sua posição mudou de defensor

da União para defensor do interesse público.

O Ministério Público nos processos em geral ou atua como parte ou como fiscal da lei,

nos casos em que há determinação legal de que sua ausência no litígio gera nulidade

processual. Desta maneira, cabe ao Procurador-Geral da República propor ação direta de

inconstitucionalidade como órgão fiscalizador direto da constitucionalidade e não como órgão

fiscalizador da lei em processos subjetivos, nos quais apenas secundariamente se dá o controle

de legalidade e constitucionalidade.

A legitimidade do Procurador-Geral da República é uma das melhores para o efetivo

controle de constitucionalidade, pois sua atuação é em geral, destituída de interesses

subjetivos que possam desvirtuar a finalidade da ação direta de inconstitucionalidade.

9.6. Legitimidade do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil

O art.100 do Regulamento Geral do Estatuto da Advocacia e da OAB dispõe que cabe

ao Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil a representação deste

em juízo ou fora dele. Desta forma, a propositura da ação direta de inconstitucionalidade deve

ser proposta por ele, sempre que houver interesse.

Percebe-se também que a menção no texto constitucional de sua legitimidade procura

dar prestígio a referida associação, pois sua legitimidade também está dentro das entidades de

classe de âmbito nacional. Sendo assim, o texto constitucional, neste caso, foi utilizado

politicamente como meio de consagração de atores sociais e não como Carta a assegurar o

bem comum de todos. Esta ação política, no entanto, não retira o brilho e a importância da

Ordem dos Advogados do Brasil, apenas explicita a forma diferenciada de tratamento de

classes neste País.

Como órgão atuante em todo o Poder Judiciário, não faz sentido algum restringir sua

atuação a alguns temas.

9.7. Legitimidade dos partidos políticos

23

A legitimidade dos partidos políticos permite a extensão do direito de propositura de

ações de controle abstrato de constitucionalidade a minorias parlamentares.

Dado que a atividade legislativa decorre da Constituição Federal e sua atividade

implica em construir seu significado, concretizando seus princípios, a legitimidade significa o

poder de o partido político reacender a discussão do assunto já realizada nas Casas

Legislativas. No entanto, esta releitura muda o critério de análise, passando do eminentemente

político para o jurídico. Nesta passagem, ocorre a jurisdicionalização da política, de forma a

retirar excessos e abusos ocorridos na fase parlamentar. Esta possibilidade de controle da

Constituição reforça a idéia de vontade de Estado e não de vontade de governo. Esta revisão é

muito importante, pois permite que a Constituição seja controlada pelo Poder Judiciário.

Além disto, a possibilidade de propositura da ação pelo partido político contribui para a lisura

do processo legislativo, pois todos sabem que embora possam constituir maiorias para

votação de leis, estas podem ser derrubadas através de simples pedido de algum partido

político.

9.8. Legitimidade de propositura das confederações sindicais e das entidades de classe de

âmbito nacional

A questão da legitimidade de propositura das confederações sindicais resulta do

disposto na Consolidação das Leis Trabalhistas. Já a das entidades de classe de âmbito

nacional não possui critério constitucional para sua definição. Desta forma, o Supremo

Tribunal Federal, aplicando por analogia a Lei Orgânica dos Partidos Políticos, o âmbito

nacional da entidade de classe é definido pela presença de membros em pelo menos nove

Estados da Federação.

No entanto, na visão do autor deste trabalho, como a natureza da entidade de classe se

aproxima mais da natureza da confederação sindical do que da do partido político, bastaria a

presença de membros de pelo menos três Estados da Federação, pois para a configuração da

confederação sindical basta a associação de três federações, que em geral, são formadas por

associações presentes em três Estados, conforme aplicação analógica do art.535 da CLT.

Além disto, o princípio da força normativa da Constituição seria melhor utilizado, aplicando-

se a CLT e não a Lei Orgânica dos Partidos Políticos, em virtude de possuir critério mais

simplificado. Tal linha de pensamento é coerente com a exclusão da legitimidade de

federações e de sindicatos proporem ações de controle abstrato de constitucionalidade.

24

Todavia, seguindo o raciocínio do STF uma federação que tenha membros em nove Estados,

estaria legitimada a propô-las.

A adoção deste critério pelo STF sofre uma exceção, posta pelo próprio Ministro

Moreira Alves que o propôs, segundo o qual haverá seu afastamento no caso em que haja

comprovação de que a categoria dos associados só existe em menos de nove estados.38

As interpretações sobre este item são restritivas como se pode perceber na ementa:

O Supremo Tribunal Federal, em inúmeros julgamentos, tem entendido que apenas as confederações sindicais têm legitimidade ativa para requerer ação direta de inconstitucionalidade (CF, art. 103, IX), excluídas as federações sindicais e os sindicatos nacionais.39

Superada a questão do conceito de entidade de classe de âmbito nacional, o STF passa

a exigir o requisito da pertinência temática.

10. Objeto do controle de constitucionalidade

A matéria suscetível de controle de constitucionalidade é dada pelo art.102 da

Constituição Federal e pela sua interpretação doutrinária. A princípio, constitui objeto do

controle de constitucionalidade apenas as leis ou atos normativos federais ou estaduais.

A partir deste dispositivo, inicia-se uma longa discussão doutrinária a respeito de seu

alcance. Em determinado momento, entendeu-se que o direito municipal também poderia ser

objeto do controle de constitucionalidade, pois haveria na Carta Magna uma lacuna de

elaboração.40

Na visão deste autor, a interpretação de que o direito municipal não pode ser objeto de

controle de constitucionalidade pelo STF serve apenas como um filtro, a limitar as ações que

tramitam neste tribunal, pois juridicamente todas as leis, sejam, municipais, estaduais ou

federais buscam seu fundamento de validade na Constituição Federal e na Constituição

Estadual. Tratar assim esta matéria equivale a dizer que toda Constituição Estadual goza de

presunção absoluta de legitimidade, pois o direito municipal é julgado apenas à luz da

Constituição Estadual, mesmo que seus julgadores não percebam que esta ofende a

Constituição Federal. Por conseguinte, poderia ocorrer o caso de que fosse proposta ação de

inconstitucionalidade de lei municipal em face da Constituição Estadual e posteriormente os 38 MARTINS, Ives Gandra da Silva e MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Concentrado de

Constitucionalidade.2.ed.São Paulo: Saraiva, 2007. p.170. 39 STF, ADI 1.599-MC, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 26-2-98, DJ de 18-5-01. 40 MARTINS, Ives Gandra da Silva e MENDES, Gilmar Ferreira. Op. cit., p.171.

25

julgadores percebessem que esta ofende a Constituição Federal, terem que julgar extinto o

processo sem julgamento de mérito, pois nem a própria Constituição Estadual serve de

parâmetro para a decisão. Assim, o caso ficaria sem decisão, até que algum legitimado

propusesse ação direta de inconstitucionalidade perante o STF. Todavia, como os casos

submetidos ao Poder Judiciário não podem ficar sem solução, o Tribunal do Estado julga o

caso, aplicando a Constituição Federal, violando o princípio do juiz natural, ou seja, a

competência do STF.

10.1. Direito da União

A própria Constituição em si não é objeto de análise de constitucionalidade. No

entanto, as emendas à Constituição podem ser questionadas perante o Supremo Tribunal

Federal, inclusive antes mesmo de sua promulgação41. Desta forma, seria possível a análise

de constitucionalidade de uma emenda antes de sua promulgação, tendo em vista que já se

poderia aferir se foi observado o procedimento estabelecido na Constituição neste processo

legislativo, sob o ponto de vista formal, uma vez que tal processo não retiraria a prerrogativa

de nenhum poder.

Todas as leis federais podem ser analisadas neste aspecto, inclusive as leis meramente

formais, isto é, aquelas que não possuem caráter de generalidade e abstração, como as leis

orçamentárias, que tratam da receita e da despesa do Estado, em face dos princípios

constitucionais da ordem financeira. Além das leis propriamente ditas, há outros instrumentos

jurídicos com natureza de lei que também são analisadas como medidas provisórias, alguns

decretos legislativos entre outros.

Como as medidas provisórias possuem natureza de lei também podem ser avaliadas. 42

Os pressupostos de relevância e urgência podem ser analisados pelo STF, pois podem ser

vistos sob o prisma da razoabilidade, impedindo que haja exageros pela análise discricionária

do Poder Executivo.

Já os decretos legislativos que tragam em seu bojo o caráter da generalidade e da

inovação na ordem jurídica podem ser analisados, como o caso dos que contêm a aprovação

do Congresso aos tratados, celebrados pelo Presidente da República ou no caso de sustação de

41 MARTINS, Ives Gandra da Silva e MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Concentrado de

Constitucionalidade. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p.173. 42 Ibid. p.174.

26

atos normativos editados pelo Poder Executivo que exorbitem o poder regulamentar ou os

limites da delegação legislativa. Assim, pode ser citada a seguinte ementa:

Norma concreta. O ato do Conselho Superior da Magistratura de São Paulo, que reorganiza os cartórios de notas e de registro do interior, reveste-se dos coeficientes mínimos de abstração, generalidade e impessoalidade, de modo que pode ser impugnado por meio de ADIn.43

Dentre outros atos, os regimentos internos dos Tribunais Superiores podem ser objeto

de controle abstrato de normas, se configurado seu caráter autônomo. Também os regimentos

dos Tribunais Regionais como atos normativos federais podem ser controlados, pois também

possuem força de lei no âmbito destas Casas.

10.2. Direito dos Estados-membros

Podem ser objeto do controle abstrato de normas, as disposições das Constituições

Estaduais, pois se trata de normas oriundas do Poder Constituinte Derivado, que deve

obedecer aos comandos estabelecidos na Constituição Federal, pois esta delimita os limites

daquela.

As leis estaduais e outros atos normativos como decretos editados com força de lei,

regimentos internos de Tribunais Estaduais e da Assembléia Legislativa também podem ser

analisadas em face da Constituição Federal, pois o objetivo do legislador constitucional é que

elas busquem fundamento de validade em ambas as Constituições.

10.3. Direito do Distrito Federal

Tal como se faz o controle de leis e atos normativos estaduais é feito o de leis e atos

normativos do Distrito Federal, apenas com a ressalva de que as leis editadas por ele no

exercício de competência legislativa municipal não podem ser objeto de controle abstrato de

normas, por meio de ação direta de inconstitucionalidade ou ação declaratória de

constitucionalidade.

10.4. Ato de efeito concreto

43 STF, Pleno, ADInMC2415-9-SP, rel.Min.Ilmar Galvão, v.u., j.13.12.2001.

27

Em virtude de a Constituição estabelecer que leis e atos normativos podem ser objeto de

controle de constitucionalidade por meio de ação declaratória de constitucionalidade ou de

ação direta de inconstitucionalidade, atos que possuem efeito concreto não se prestam a tal

exame, pois sua natureza é oposta, isto é, não possui o caráter de generalidade e abstração das

leis e atos normativos.

Esta distinção de atos normativos e atos com efeito concreto não pode ser levada em

termos absolutos. A importância desta diferenciação permite estabelecer critérios seguros para

divisão da jurisdição em constitucional e ordinária. Todavia, é preciso cuidado,

principalmente, na análise de leis formais, se realmente são estritamente formais ou se apenas

possuem caráter formal acentuado. Quando a lei formal não admite o exercício de ações

comuns denota que seus efeitos não são apenas concretos. Além disto, é necessário admitir

que seja objeto de controle abstrato de normas, pois caso contrário, poderiam possuir força

maior que a própria constituição, uma vez que seriam inquestionáveis. No caso da lei

orçamentária, por mais que ela possua acentuado caráter de lei formal, pois não possui caráter

de generalidade e abstração, deve ser objeto deste mencionado controle. Além disto, por mais

especificações que sejam realizadas nestas leis, há princípios e normais gerais a serem

observados, como o percentual da receita que deve ser destinada a cada atividade estatal.

Já nos casos de atos com efeitos concretos como nas sentenças judiciais, não é

admissível controle abstrato de normas, pois pela própria razão de existir delas, é necessário

antes uma ação ordinária, fazendo com que seja cabível apenas recurso extraordinário.

Também quantos aos atos administrativos não cabe referido controle, pois apenas concretizam

mandamentos legais, sendo mais útil o sistema de controle de constitucionalidade da lei que

os fundamenta do que de todos estes atos, que decorrem dela.

Cabe ressaltar que o adjetivo abstrato neste instituto jurídico está relacionado tanto ao

ato legislativo como ao processo utilizado para controle de leis e atos normativos, em razão de

expressa disposição constitucional e pela finalidade do instituto, que é retirar do ordenamento

leis e atos que dão fundamentação a comportamentos, que analisados à luz da Constituição,

não poderiam ter sido autorizados.

Por fim, cabe acentuar que para estar perante um ato de efeito concreto o nome

jurídico dado ao instrumento normativo é irrelevante.

10.5. Tratados

28

A Constituição permite ao Presidente da República celebrar tratados internacionais,

exigindo que o Congresso Nacional os aprove mediante decreto legislativo. Posteriormente,

para que entrem no ordenamento jurídico é necessário ratificação pelo Chefe do Executivo.

No entanto, a propositura de uma ação direta de inconstitucionalidade neste momento poderia

gerar repercussões gravosas ao País. Desta maneira, é cabível tal ação contra o próprio

decreto legislativo, isto é, antes de sua entrada em vigor.

Diante da possibilidade de dano irreparável e irreversível e da plausibilidade do pedido

da ação direta de inconstitucionalidade, é cabível medida liminar para retardar ou suspender a

ratificação de tratados, até a decisão do mérito do julgamento.

10.6. Normas revogadas

A propositura de ação direta de inconstitucionalidade sobre normas revogadas parece,

a princípio, um contra-senso, pois não haveria uma lei em vigor que pudesse gerar efeitos. No

entanto, esta mesma lei já os produziu, de tal forma que impedir seu controle abstrato pode

beneficiar seus destinatários, mesmo tendo nascido com o vício da inconstitucionalidade.

Desta maneira, este procedimento retira a possibilidade de concessão de efeito ex tunc às

decisões, gerando benefícios indevidos a seus destinatários.

A saída para aqueles que entendem não ser possível o controle abstrato de

constitucionalidade de direito revogado é o controle concreto. Todavia, nem sempre este seria

possível, pois tal sistema exige que o legitimado tenha interesse jurídico na questão, não

bastando interesse de outra natureza como o econômico. Como exemplo desta fraude contra a

jurisdição constitucional, pode-se citar o caso da ADI 1.244-SP, na qual se questionava a

concessão de aumento salarial para magistrados e servidores do TRT da 8ª Região –

Campinas, por meio de resolução administrativa, em que sempre que o STF ia julgar o mérito

da ação, o mencionado ato normativo era revogado, a fim de evitar a eficácia ex tunc da

decisão.44 Neste caso, caberiam também a ação popular de iniciativa do cidadão, pois tem por

fim permitir a fiscalização dos atos administrativos e a ação de improbidade administrativa de

iniciativa do Ministério Público ou da pessoa jurídica interessada.

Esta posição de impugnar a inconstitucionalidade em caso de direito revogado através

do controle concreto parece ser a melhor idéia, pois envolve análise de boa-fé, tanto subjetiva

como objetiva. Como a prova da boa-fé pode gerar necessidade de análise de fatos, este

44 MARTINS, Ives Gandra da Silva e MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Concentrado de

Constitucionalidade.2.ed.São Paulo: Saraiva, 2007. p. 200.

29

procedimento se torna incompatível com a natureza do processo abstrato de controle de

constitucionalidade, que se baseia apenas em matéria de direito. No caso de criação de lei que

beneficie algum grupo de trabalhadores, por exemplo, não há como conceder eficácia ex tunc

à decisão de inconstitucionalidade, pois geraria mais problemas do que solução. Já no caso da

resolução mencionada acima, a eficácia ex tunc, ocorre justamente porque o comportamento

do Tribunal Regional do Trabalho violou seu dever de boa-fé objetiva, ao revogar a resolução

sempre que ia para o julgamento de mérito. Mesmo que a boa-fé objetiva seja um princípio de

interpretação jurídica, é necessário levar o caso para as vias ordinárias, porque a matéria de

direito pode gerar dúvidas sérias, impedindo um juízo abstrato de má-fé.

10.7. Medidas Provisórias

Admite-se o controle de constitucionalidade das medidas provisórias, tendo em vista

que desde a sua edição já possui todos os requisitos de validade, existência e vigência. A sua

conversão em lei por ato do Congresso Nacional não se constitui como um elemento a

completar-lhe valor jurídico. Gozam, de pleno direito, de todos os atributos legais, apenas

com a condição resolutiva de apenas continuarem a produzir efeitos, se forem convertidas em

lei. Reforçando este entendimento, está o art.62, § 11, segundo o qual as relações jurídicas

constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência vão conservar-se pelos

termos da Medida Provisória, salvo declaração de inconstitucionalidade proferida pelo

Supremo Tribunal Federal, com eficácia ex tunc.

Caso contrário, a necessidade de pronunciamento anterior de confirmação da medida

provisória pelo Congresso Nacional poderia lhe conceder uma presunção de legitimidade

maior que se dá às leis propriamente ditas. Além disto, tal espera poderia gerar maiores danos

a ordem jurídica, impedindo ações urgentes, em caso de manifesta inconstitucionalidade.

A questão de aguardar a confirmação do Congresso Nacional a respeito da medida

provisória realmente não se justifica, mesmo diante da possibilidade de mudanças no processo

de conversão, pois apenas poderá gerar a extinção do processo sem julgamento de mérito, em

caso de sua queda ou por sua revogação automática em caso de não aprovação dentro do

prazo estabelecido na Carta Magna. Dentro desta perspectiva, a simples alteração de algum

dispositivo da medida provisória pelo Congresso Nacional antes do julgamento da ação direta

de inconstitucionalidade não prejudica seu andamento, pois tal alteração não necessariamente

terá pertinência com a causa de pedir da ADI.

30

10.7.1. Cautelar em Medida Provisória

Como o prazo de aprovação da medida provisória pelo Congresso Nacional é de

apenas 60 dias, a medida cautelar se constitui como o único instrumento jurídico a prestar

com eficiência a tarefa de afastá-la de sua aplicação. No entanto, o Poder Executivo tem

promovido reedição de medidas provisórias que já tiveram o seu conteúdo parcial ou

totalmente suspenso por decisão do Supremo Tribunal Federal, em virtude da orientação de

que a medida cautelar apenas retira a força normativa do ato normativo em referência.45 Além

disto, a redação precária do art.62, § 10 que apenas veda a reedição de medida provisória que

tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo, contribui para

este entendimento.

O ideal seria compreender no verbo rejeitar constante do mencionado artigo que

também abrange a rejeição da medida provisória, mediante liminar proferida pelo Supremo

Tribunal Federal, de tal forma que a reedição estivesse proibida neste caso.

10.7.2. Aditamento da inicial

Geralmente, a conversão da medida provisória em lei causa a necessidade de

aditamento da peça vestibular por exigência do Supremo Tribunal Federal.

O Código de Processo Civil admite o aditamento da petição inicial antes da citação do

réu. Caso esta já tenha ocorrido, o autor para modificar o pedido ou a causa de pedir

dependerá do consentimento daquele. Considerando este dispositivo, com a necessária

adaptação para o processo de controle abstrato de normas e tendo em vista que a finalidade

deste impedimento é evitar que sejam trazidos ao processo a qualquer momento fatos já

conhecidos desde o início da ação, gerando caos processual, tornando-o interminável, a

conversão da medida provisória em lei não traz a necessidade de aditamento da inicial, pois se

trata de direito superveniente, não causando nenhum prejuízo à ordem processual. Ao

contrário, permite que haja economia e rapidez na solução da demanda. Além disto, esta

solução encontra guarida no art.462 do CPC, segundo o qual cabe ao juiz considerar, de ofício

ou a requerimento da parte, o fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.

Alterações significativas de forma e de fundo também não demandam novo

aditamento da petição inicial, pois a causa de pedir é formada por fundamento de

45 MARTINS, Ives Gandra da Silva e MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Concentrado de

Constitucionalidade.2.ed.São Paulo: Saraiva, 2007. p.206.

31

inconstitucionalidade e a disposição do ato normativo contrário à constituição em tese. Desta

forma, o fundamento se manterá o mesmo ou poderá surgir outros em virtude da nova redação

e como se trata de matéria de direito, nenhuma mudança gera para o processo. Já a alteração

do dispositivo de lei pode retirar o fato justificador da demanda. No entanto, como tal

mudança não gera implicações para ninguém, pois não há réu neste processo, há mais

utilidade em terminar o julgamento da matéria, do que aguardar eventual aditamento da ação.

10.7.3. ADI contra Medida Provisória convertida em lei e vício formal da Medida Provisória

A conversão da medida provisória em lei pode gerar a dúvida a respeito do

prosseguimento da ação direta de inconstitucionalidade, pois se poderia entender que a lei

convalidaria eventuais vícios da medida provisória.

No direito administrativo, como paradigma deste problema, é permitida a

convalidação do ato administrativo, desde que não tenha ocorrido lesão a interesse público

nem a direito de terceiro. No caso do direito constitucional, a desobediência a dispositivos

constitucionais, em tese, gera lesão ao interesse público, isto é, ao interesse de todos de que a

Constituição cumpra seu papel de supremacia no ordenamento jurídico. Porém, tal lesão pode

se configurar apenas no campo abstrato, não atingindo diretamente o interesse dos cidadãos,

como pode também atacá-lo diretamente. Desta maneira, deve prosseguir a ação direta de

inconstitucionalidade na qual se perceba que houve lesão concreta ao interesse público. Pode-

se exemplificar este entendimento através do seguinte exemplo: o Presidente da República

edita uma medida provisória, regulamentando o direito dos portadores de deficiência à

aposentadoria especial. Neste caso, caberia ao STF avaliar os impactos deste ato normativo,

de forma a perceber se existe equilíbrio entre o direito à aposentadoria especial e as contas da

previdência. Caso isto se confirme, a conversão da medida provisória em lei complementar

tornaria prejudicada a ação direta de inconstitucionalidade, pois houve o saneamento do vício

formal, destituído de qualquer efeito maléfico ao sistema jurídico. Na hipótese de lesão aos

cofres públicos, em virtude da concessão de direitos aos portadores de deficiência através de

medida provisória, a ação direta de inconstitucionalidade deveria prosseguir para evitar lesão

ao interesse público.

Poder-se-ia argumentar que o regramento do direito por meio de medida provisória

quando se deve utilizar a lei complementar diminuiria a força normativa da Constituição, o

que não acontece, pois sua finalidade é atingida, frente a inércia do Poder Legislativo em

concretizar a vontade expressa na Carta Magna.

32

Este critério, proposto pelo autor desta monografia, pode contribuir muito para a

economia processual, sem deixar de observar o princípio da inafastabilidade da jurisdição,

segundo o qual nenhuma lesão ou ameaça a direito pode ser afastada da apreciação do Poder

Judiciário.

10.8. Regulamentos no controle abstrato de normas

A questão central da discussão a respeito do controle de constitucionalidade dos

regulamentos reside na referência normativa adotada. Se o regulamento possuir natureza de

lei, por se destacar pela generalidade e abstração, poderá ser objeto de aferição de

constitucionalidade. Se o regulamento apenas estiver detalhando, interpretando aspectos de

uma lei, seu controle será apenas de legalidade.

No Brasil, a doutrina se divide a respeito da existência de regulamentos autônomos,

isto é, que não possuem o dever de especificar pontos autorizados pela lei. A partir da

Emenda 32, parte da doutrina passou a considerar que existe regulamento autônomo, em

virtude do art.84, VI permitir ao Presidente da República dispor mediante decreto sobre

organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de

despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos e extinção de funções e cargos públicos,

quando vagos. Já a parte da doutrina que continua a entender que o ordenamento jurídico não

adota tal instituto, percebe que nestes dispositivos não há características de lei a se conferir a

tais decretos.

11. O debate hermenêutico e a sociedade aberta de intérpretes da Constituição

Como um dos maiores constitucionalistas, Peter Häberle percebe que a interpretação

constitucional tem sido, até agora, característica de uma sociedade fechada, restrita aos

intérpretes jurídicos vinculados às corporações e às partes formais do processo. 46

No Brasil, o caráter elitista da interpretação constitucional é ainda mais acentuado,

tendo em vista o baixo percentual da população com acesso ao ensino superior e ao fato de

que apenas nesta modalidade de ensino há alguma orientação a respeito de direito

constitucional, principalmente a respeito de direitos fundamentais. Inclusive, nas próprias

faculdades de direito não há um estudo abrangente da Carta Magna.

46 MARTINS, Ives Gandra da Silva e MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Concentrado de

Constitucionalidade.2.ed.São Paulo: Saraiva, 2007. p.262.

33

12. Ação declaratória de constitucionalidade no direito brasileiro

A ação declaratória de constitucionalidade surge na Constituição a partir de uma

reforma que tinha como finalidade principal modificar parte do subsistema constitucional-

tributário, patrocinada pelo Governo Federal.47 Talvez pelo fato de sido este o maior

interessado na inserção deste instituto na ordem jurídica que seu objeto ficou restrito ao

direito federal, apesar de ser considerada uma ação direta de inconstitucionalidade com sinal

trocado.

Apesar de ser um instituto recente no ordenamento jurídico, a representação

interventiva e até a representação de inconstitucionalidade foram utilizadas com a finalidade

de afastar qualquer dúvida sobre a legitimidade de uma norma.48

Como já enfatizado nesta monografia, o Procurador-Geral da República tinha o dever

legal de instaurar a representação interventiva, além de sua atuação como defensor da União e

como custos legis. Curiosamente, o ajuizamento da representação interventiva ocorria mesmo

com o parecer contrário do Chefe do Ministério Público da União. Desta maneira, a questão

era submetida ao Supremo Tribunal Federal não como um conflito federativo, mas como

problema constitucional in abstracto.49

A semelhança da ação direta de inconstitucionalidade com a representação

interventiva consiste no fato de que o Procurador-Geral da República poderia apresentá-la,

mesmo que tivesse argumentos para defender a constitucionalidade da lei ou do ato

normativo. A conclusão inevitável é que o pedido de argüição de inconstitucionalidade com

manifestação em sentido contrário significa querer a declaração de constitucionalidade da

norma questionada.50

12.1. Legitimidade constitucional da ação declaratória de constitucionalidade

A ação declaratória de constitucionalidade por ter eficácia erga omnes e efeito

vinculante gera inúmeros reflexos nas ações ajuizadas na primeira instância, pois sua decisão

deve ser observada, sob pena de invalidade do processo. Em razão desta força colossal, as

47 Ibid.p.323. 48 Ibid. p.331. 49 Ibid. p.333. 50 Ibid. p.335.

34

associações de magistrados manifestaram veemente protesto, endossado pela Ordem dos

Advogados do Brasil.51

No entanto, a Emenda 3/93 foi aprovada pelo Congresso Nacional, prevalecendo o

entendimento de que a ação declaratória de constitucionalidade possui natureza objetiva, isto

é, sua finalidade é declarar a constitucionalidade de lei ou ato normativo e não resolver um

conflito de interesses subjetivos. Desta forma, a vinculação das ações existentes na primeira

instância se justificaria justamente por se entender que a declaração de constitucionalidade

pelo Supremo Tribunal Federal confere maior segurança jurídica ao ordenamento, pois

contribui para uniformização da jurisprudência.

Também nesta linha de pensamento, a alegação de ofensa ao princípio do contraditório

e da ampla defesa pelo uso da ação declaratória de constitucionalidade deduzida pelas

associações de magistrados e pela Ordem dos Advogados do Brasil, não deve proceder, pois

se trata de um processo sem partes. Tampouco se pode alegar ofensa ao sistema difuso de

controle de constitucionalidade, em virtude de a própria Constituição ter ampliado o rol de

legitimados para propositura da ação direta de inconstitucionalidade, diminuindo, por

conseqüência, a relevância do controle difuso.

A partir da Emenda Constitucional 45/2004, todos os órgãos legitimados a propor a

ação direta de inconstitucionalidade passaram a ser legitimados também para a ação direta de

constitucionalidade.

13. As decisões do Supremo Tribunal Federal no controle abstrato de normas

Em obediência ao comando estabelecido no art.97 da CF, a lei determinou que o

quorum de presença de oito ministros para que a decisão de constitucionalidade ou de

inconstitucionalidade seja dada pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos

membros do respectivo órgão especial e a votação de pelo menos seis ministros no mesmo

sentido para sua validade.

No momento em que a ação é julgada, a autoridade ou o órgão responsável pela

expedição da norma são comunicados da decisão tomada pelo STF, por exigência do art.25 da

mencionada lei. A finalidade deste comunicado é vinculá-los à decisão, embora a eficácia

erga omnes apenas ocorrerá quando for publicado o acórdão.

51 Ibid. p.353.

35

Esta decisão é irrecorrível para todos os participantes do processo, salvo a

possibilidade de apresentação de embargos declaratórios. Desta forma, a aplicação do

princípio do duplo grau de jurisdição não ocorre, em virtude da inexistência de previsão de

recurso das decisões proferidas pelo STF nas ações de sua competência originária e de outro

órgão acima da Suprema Corte. Mesmo que houvesse um recurso a ser julgado pelo próprio

Tribunal, dificilmente haveria mudança na decisão.

Para a apresentação de embargos de declaração, o prazo é de 5 dias, conforme decorre

do art.337, § 1° do Regimento Interno do STF. Este prazo não pode ser contado em dobro,

través de aplicação analógica do art.188 do Código de Processo Civil, segundo a

jurisprudência.52

No caso de embargos declaratórios com efeitos modificativos, o Tribunal tem

entendido sua inadmissibilidade.53 No entanto, como o efeito modificativo dos embargos

declaratórios decorre da procedência destes em caso de omissão ou contradição, cuja correção

implica em alteração do dispositivo do acórdão, inevitavelmente poderá ocorrer no controle

concentrado de constitucionalidade. Por exemplo, no caso em que toda a fundamentação do

acórdão é pela constitucionalidade da norma e o dispositivo do acórdão diz ser

inconstitucional. Evidentemente, a procedência dos embargos declaratórios modificará o

conteúdo da decisão.

No caso de decisão de mérito em sede de controle abstrato de normas, o Tribunal

declara a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade, devendo publicar a parte dispositiva

do acórdão proferido dentro de 10 dias, após o trânsito em julgado.

A extensão da declaração de inconstitucionalidade de uma lei dependerá do objeto da

ação. No caso de defeitos formais decorrentes de inobservância de disposições atinentes ao

devido processo legislativo, a declaração de nulidade é total, pois toda a lei está viciada

formalmente. Também por defeitos materiais decorrentes de desobediência a princípios e

regras estabelecidos na Constituição Federal, a declaração de nulidade pode ser total se

houver uma relação de dependência ou de independência entre as partes constitucionais e

inconstitucionais do dispositivo.54

14. Controle difuso ou concreto de constitucionalidade

52 MARTINS, Ives Gandra da Silva e MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Concentrado de

Constitucionalidade.2.ed.São Paulo: Saraiva, 2007. p.402. 53 Ibid. p.402. 54 Ibid. p.405.

36

A análise da compatibilidade das leis e atos normativos com a Constituição Federal

pode ser feita a partir de casos concretos. A este tipo de controle, a doutrina o classifica como

difuso ou aberto ou ainda como controle por via de exceção ou defesa.

A adoção deste modelo de controle de constitucionalidade no Brasil ocorreu por obra

de Rui Barbosa, que buscou no Direito Americano, os fundamentos teóricos para sua inserção

no ordenamento jurídico brasileiro. Entre estes, destaca-se a idéia do Presidente da Suprema

Corte Americana, Juiz Marshal, de que é próprio da atividade jurisdicional interpretar e

aplicar a lei. E ao fazê-lo, em caso de contradição entre legislação e a constituição, o tribunal

deve aplicar esta última por ser superior a qualquer lei ordinária do Poder Legislativo.55

O controle difuso pressupõe a análise da compatibilidade das leis e atos normativos

nos casos em que se defendem posições subjetivas em relação a determinado objeto. Ocorre,

em virtude da necessidade de o juiz ao julgar determinada causa, considerar o direito das

partes de ter a prestação jurisdicional fundamento na própria Constituição, pois esta prevê

seus direitos fundamentais. Atualmente, poderia ser justificado pelo art.5, II, da CF, pois para

que alguém seja obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa é necessário lei e como as

leis devem obedecer à Constituição, nenhum comando judicial seria válido se esta não fosse

observada.

Embora o caso líder que resultou no controle difuso de constitucionalidade date de

1803, somente com a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil datada de

1891, o País passou a reservar ao Poder Judiciário a competência para julgar a

constitucionalidade das leis e atos normativos.56 Pode-se atribuir a esta relativa demora em

adoção deste modelo pelo Brasil, dentre outros fatores, o fato de que mesmo no berço do

controle difuso houve um lento desenvolvimento, em virtude dos poucos casos em que foi

aplicado.

Cabe ressaltar que a instalação efetiva do controle de constitucionalidade difuso no

Brasil ocorreu com a Lei Federal n.221, de 1894, que concedeu competência aos juízes e

tribunais para apreciarem a validade das leis e regulamentos e deixarem de aplicá-los aos

casos concretos, se fossem manifestamente inconstitucionais.57

55 US COURT – 137. Apud MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 13 ed.São Paulo: Atlas, 2003. P.587. 56 COUTO E SILVA, Clóvis. As idéias fundamentais da Constituição de 1891. Revista de Direito Público, São Paulo, n.55/56, p-54-60,jul.dez.1980, p-54. Apud PAGANELLA, Carlos Roberto Lima. As bases teóricas do

Controle Difuso de Constitucionalidade e suas Competências Para Exame e Rejeição no Brasil. Dissertação de Mestrado. UFRS.P.17. 57 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 13 ed.São Paulo: Atlas, 2003. P.589.

37

Outra questão marcante a respeito do controle difuso de constitucionalidade no Brasil

consiste no fato de que embora tenha sido adotado nove décadas após sua origem nos Estados

Unidos, o controle concentrado de constitucionalidade só surgiu no ordenamento pátrio na

Emenda Constitucional n.16 de 6 de dezembro de 1965, que atribuiu ao Supremo Tribunal

Federal competência para processar e julgar originariamente a representação de

inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual, apresentada pelo

procurador-geral da República, apesar da existência da representação interventiva desde a

Constituição de 1934.

A diferença do controle difuso para o controle concentrado de constitucionalidade

reside em uma questão processual. No primeiro tipo de controle, a discussão sobre a

constitucionalidade da lei ou do ato normativo tem natureza jurídica de questão prévia, já no

segundo, tem caráter de mérito, isto é, consiste no próprio pedido da ação.

A forma de decidir no controle difuso de constitucionalidade está vinculada ao

resultado de seu processo, pois em caso de considerar-se a lei ou ato normativo

inconstitucional, os órgãos fracionários devem submeter à decisão ao Plenário, em virtude do

comando inscrito no art.97 da Constituição Federal de 1988. Em caso contrário, não há

necessidade de convocá-lo, inclusive em razão do princípio da presunção de legitimidade das

leis.

Esta cláusula de reserva do plenário para declaração de inconstitucionalidade pode gerar a

dúvida a respeito de um juiz monocrático poder fazê-lo. No entanto, o entendimento

predominante é no sentido de que ele pode realizá-lo.

14.1. Papel do Senado Federal no controle difuso

A participação do Senado Federal no controle difuso de constitucionalidade está

diretamente relacionada ao fato de que o Brasil não adotou o princípio do “stare decisis”, isto

é, da força do precedente na tomada de decisões judiciais, embora tenha adotado recentemente

o instituto da súmula vinculante, elaborada pelo Supremo Tribunal Federal.

A doutrina tem definido a expressão stare decisis como um comando mediante o qual

as Cortes devem dar o devido peso e valor ao precedente, de forma que uma questão de

direito já estabelecida deveria ser seguida sem reconsideração, desde que a decisão anterior

fosse impositiva. Em outras palavras, para que a decisão não siga o precedente, o juiz deve

apontar os fatos novos que justificam a mudança de direção.

38

A função do Senado Federal no controle difuso de constitucionalidade consiste

exatamente em conferir à decisão do STF o caráter de obrigatoriedade de cumprimento por

todos os jurisdicionados e demais órgãos componentes dos Três Poderes.

Embora o sistema difuso de controle de constitucionalidade tenha surgido na

Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891, deve-se à Constituição de

1934 o mecanismo de suspensão da execução de leis pelo Senado Federal a partir da

comunicação de decisões do STF.

O texto da mencionada constituição dispunha no art.96 que quando a Corte Suprema

declarasse a inconstitucionalidade de qualquer dispositivo de lei ou ato governamental, o

Procurador Geral da República comunicaria a decisão ao Senado para suspender a execução,

no todo ou em parte, de qualquer lei ou ato, deliberação ou regulamento, quando hajam sido

declarados inconstitucionais pelo Poder Judiciário. O significado da palavra suspensão neste

contexto é bem explicado por Accioly Filho, in verbis:

A declaração é do Supremo, mas a suspensão é do Senado. Sem a declaração, o Senado não se movimenta, pois não lhe é dado suspender a execução da lei ou do decreto não declarado inconstitucional. Esta suspensão é mais que revogação da lei ou decreto, tanto por suas conseqüências quanto por desnecessitar da concordância da outra Casa do Congresso e sanção do Poder Executivo. Em suas conseqüências, a suspensão vai muito além da revogação. Esta opera ex nunc, alcança a lei ou o ato revogado só a partir da vigência do ato revogador, não tem olhos para trás e, assim, não desconstitui as situações constituídas enquanto vigorou o ato derrogado. Já quando de suspensão se trate, o efeito é ex tunc, pois aquilo que é inconstitucional é natimorto, não teve vida (cf. Alfredo Buzaid e Francisco Campos) e, por isso, não produz efeitos e aqueles que porventura ocorreram ficaram desconstituídos desde suas raízes, como se não estivessem existido.58

Desta maneira, a suspensão da execução pelo Senado Federal da lei ou ato normativo

declarados inconstitucionais pelo STF consiste em um instrumento de economia processual,

por meio de que a extensão da decisão dada entre as partes do processo depende de um ato

político que pondera sobre a conveniência e oportunidade de generalização dos efeitos.

Segundo Alexandre Moraes, a extensão da decisão a quem não participou do processo

é diminuída no aspecto temporal da declaração de inconstitucionalidade, pois o efeito ex tunc

é reduzido em ex nunc.59 No entanto, deve-se discordar deste ilustre constitucionalista neste

ponto, pois a extensão do julgado sem concessão de efeito ex tunc tornaria a suspensão da

execução um ato inútil, violando a finalidade da extensão como economia processual. 58 Brasil. Congresso. Senado Federal. Parecer 154, de 1971. Relator Senador Accioly Filho, Revista de Informação Legislativa, Brasília. Ano 12, n.48, p.266-268, out/dez 1975. APUD MENDES, Gilmar Ferreira. O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade: um clássico de mutação constitucional. Disponível em: http://www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/Pdf/pdf_162/R162-12.pdf. Acessado em 02 de março de 2008. 59 MORAES, ALEXANDRE. Direito Constitucional. 13.ed.São Paulo: Atlas, 2003.p.593.

39

III - DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA

1. Conceito de ação civil pública

A ação civil pública é um instrumento jurídico polivalente, destinado a tutelar

interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, que se materializam em inúmeros

objetos como o meio ambiente, neste compreendidos os recursos hídricos; o erário, o

patrimônio cultural, a infância e juventude, os idosos, as torcidas, os consumidores, as

comunidades indígenas, o mercado de capitais, a ordem econômica e economia popular, a

ordem urbanística ou qualquer outro interesse difuso ou coletivo, nos termos do art.129 da

Constituição Federal.

Este trinônimo de palavras não exprime exatamente seu significado, pois o adjetivo

“público” não está posto de forma a separar a idéia de fundo da ação civil pública de outras

ações que possuem pressupostos diversos. Na verdade, adotando-se a posição de que toda

ação é pública, este termo não se traduz em elemento diferenciador do mencionado

instrumento jurídico, pois como se trata de uma forma de acesso ao Poder Judiciário, a

publicidade é uma característica inerente a todas as ações.

Já o termo civil desta expressão não oferece dificuldades conceituais, pois

simplesmente denota que seu pedido tem por finalidade o alcance de algum bem jurídico de

natureza civil como condenação em pecúnia ou condenação em obrigação de fazer ou não

fazer, não se admitindo qualquer pretensão punitiva fundada em lei penal.

A expressão ação civil pública parece se contrapor à ação penal pública. No entanto,

este aparente antagonismo é meramente lingüístico, pois a palavra pública na primeira está

relacionada ao objeto da tutela, ao interesse perseguido, enquanto na segunda se refere ao

titular da ação, o Ministério Público. Isto se demonstra facilmente pelo rol de legitimados

existentes naquela ação como as associações, que são sociedades civis organizadas.

A nomenclatura dada a esta ação parece possuir inúmeros equívocos. No entanto, é

preciso esclarecer que a expressão atualmente utilizada já não possuía sentido lógico, antes

mesmo da edição da Lei 7.347, de 24 de julho de 1985, pois este trinômio fazia menção a

quarenta e uma hipóteses, espraiadas pelos mais diversos textos legais, em que o Ministério

Público tinha legitimidade concorrente, subsidiária ou exclusiva.60 Portanto, apenas neste

60 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores: Lei 7.347/85 e legislação complementar. 10ª.ed.rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.P.19.

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último caso, a expressão era utilizada de forma adequada, se fosse adotado como critério

classificador a natureza do titular da ação.

Assim, para classificar as ações, é melhor tomar por base o tipo de provimento

jurisdicional a ser alcançado do que a sua titularidade. Nesse sentido, as ações são de

conhecimento, de execução e cautelares.61

2. Da legitimidade em ação civil pública

Partes, objeto e causa de pedir são os três elementos presentes nas ações conforme a

doutrina clássica. Sendo assim, necessário se faz o estudo destes elementos na ação civil

pública, de forma a se conhecer suas particularidades.

Embora a legitimidade signifique apenas quem são as partes que podem propor a ação,

esta escolha do legislador possui conseqüências sérias no ordenamento jurídico como um

todo, pois confere ao processo um caráter ideológico, vinculado a algum tipo de pensamento

econômico. Assim, o Código de Processo Civil Brasileiro é marcado pela ideologia liberal-

burguesa, segundo a qual ninguém pode pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo

quando autorizado por lei.

Evidentemente, este posicionamento adotado pelo CPC não atende a finalidade de um

processo coletivo, no qual se busca a realização de direitos que transcendem o indivíduo de

alguma forma.

A Lei da Ação Civil Pública, modificada pela redação da Lei 11.448, de 15 de janeiro

de 2007, em seu art.5° traz como legitimados a propor a ação principal e a ação cautelar

órgãos da estrutura do Estado brasileiro como o Ministério Público, a Defensoria Pública, a

própria União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, além das autarquias, empresas

públicas, fundações e sociedades de economia mista. Para não dizer que apenas estes órgãos

de natureza estatal estão legitimados, a lei não se esqueceu de conceder legitimidade às

associações civis, desde que estejam constituídas há pelo menos um ano nos termos da lei

civil e que inclua entre suas finalidades institucionais à proteção a algum bem jurídico de

natureza difusa como proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre

concorrência ou ao patrimônio estético, histórico, turístico ou paisagístico.

2.1. Legitimidade do Ministério Público

61 Ibid.P.22-23.

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O Ministério Público ocupa uma posição de destaque na propositura da ação civil

pública, pois é o único órgão estatal, cuja legitimidade decorre expressamente do texto

constitucional. Sendo assim, apenas uma emenda constitucional poderia retirar-lhe o poder de

propor mencionada ação.

Administrativamente, o Ministério Público é dividido em Ministério Público da União

e dos Estados. Naquele, estão compreendidos o Ministério Público Federal, o Ministério

Público do Trabalho, o Ministério Público Militar e o Ministério Público do Distrito Federal e

Territórios. Evidentemente, todas estas repartições estão legitimadas a propor a ação civil

pública, pois não há nenhum óbice que possa interferir nesta legitimidade outorgada pela lei.

No ordenamento jurídico brasileiro, a legitimidade do Ministério Público para propor

ação civil pública decorre diretamente do texto constitucional, conforme redação do art.129,

III. Também não há nenhum fator que possa diminuir a extensão deste poder, pois o Parquet é

uma instituição independente, sem nenhum vínculo com quaisquer dos poderes.

Há absoluta razoabilidade na concessão de legitimidade ao Ministério Público. Pode-

se afirmar, inclusive, que este poder decorre de sua natureza de órgão defensor do interesse

público, dos interesses sociais, individuais indisponíveis e da ordem jurídica como um todo.

Esta capacidade de o Ministério Público ser parte na ação civil pública possui uma

importância social extraordinária, pois como órgão estatal é dotado de uma estrutura capaz de

proporcionar a defesa do interesse público, além de contar nos seus quadros com talentos

humanos, absolutamente qualificados e com condições de dedicação integral a esta causa.

Como a Constituição reservou ao Ministério Público apenas a defesa dos interesses

individuais indisponíveis e o objeto da ação civil pública engloba interesses difusos, sociais e

interesses individuais homogêneos, cabe responder se sua legitimação estaria restrita apenas

aos dois primeiros casos.

A se pensar apenas pela oposição das características indisponibilidade e

homogeneidade, a conclusão poderia ser no sentido de que o Ministério Público não teria

legitimidade para a defesa de interesses individuais homogêneos. No entanto, esta última

característica está inegavelmente associada ao interesse social, um dos objetos da atuação do

Ministério Público.

Como dito anteriormente, todo o Ministério Público está legitimado a propor a ação

civil pública, podendo ocorrer, inclusive, atuação conjunta do Ministério Público da União e

dos Estados. No entanto, não há que se falar em litisconsórcio, em virtude do princípio da

unidade. Em outras palavras, litisconsórcio pressupõe a união de partes independentes, seja

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por força de vontade ou por força de lei. Desta forma, não se aplica à atuação conjunta do

Ministério Público da União e Estados, o disposto no art.191 do CPC, segundo o qual os

prazos para contestar, recorrer e para falar nos autos são contados em dobro quando os

litisconsortes tiverem diferentes procuradores. A inteligência deste artigo também é reforçada

pela análise do art.188 do CPC, segundo o qual o Ministério Público já tem o prazo em

quádruplo para contestar e em dobro para recorrer.

Outra questão importante se refere à legitimidade do Ministério Público em propor

ação civil pública na defesa de interesses difusos. Segundo a Carta Magna, a propositura desta

ação, neste caso, é uma de suas funções institucionais e não há qualquer vinculação de sua

atividade à previa descrição infraconstitucional de como deverá agir e em quais casos. Em

outras palavras, esta norma constitucional é dotada de eficácia jurídica para permitir a atuação

plena do parquet.

Em sentido contrário a este posicionamento, há doutrinadores que afirmam a

necessidade de uma lei específica sobre o interesse difuso para legitimar o Ministério Público,

em virtude de a ação civil pública não ser um instrumento de eqüidade, de direito alternativo

ou de proteção de interesses não consagrados na lei.62

Supõe-se que se o saudoso Meirelles estivesse vivo faria uma correção neste

pensamento, pois a legitimidade do Ministério Público para propor ação civil pública para

defesa de qualquer interesse difuso decorre diretamente da Constituição, não simplesmente de

lei.

Além disto, a eqüidade é um instrumento de fundamental importância para

concretização dos interesses metaindividuais, pois se faz necessário neste caso, ponderar os

resultados práticos que a aplicação da norma produz em determinadas situações fáticas,

conforme o conceito jurídico de eqüidade criado pela doutrina.63

O Ministério Público atua nesta ação ou como parte ou como fiscal da lei, sob pena de

nulidade do processo. Quando atua como parte não significa, obviamente, que é o titular do

interesse ou que esteja defendendo em nome próprio interesse alheio, pois pela natureza dos

interesses metaindividuais não é coerente esta clássica dicotomia de legitimação ordinária e

extraordinária.

62 MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança, ação popular, ação civil pública, mandado de injunção,

“habeas data”, ação direta de inconstitucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade e argüição de

descumprimento de preceito fundamental. Atual. Arnoldo Wald e Gilmar Ferreira Mendes. 23. Ed. São Paulo: Malheiros, 2001. P-215-217. Apud MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública: em defesa do meio

ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores: Lei 7.347/85 e legislação complementar. 10ª.ed.rev. e

atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.P.117-118. 63 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 8ª.ed.São Paulo: Saraiva, 1995, p.398.

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Também estará legitimado a assumir a titularidade ativa da ação, em caso de

desistência infundada ou abandono da ação por alguma associação que tenha iniciado o

processo. Considera-se que o Ministério Público possui discricionariedade para avaliar a

necessidade de prosseguimento da ação, pois podem ocorrer inúmeras hipóteses de

propositura desta ação por motivos de perseguição política, por espírito emulativo.64

2.2. Legitimidade da Defensoria Pública

Embora recente a possibilidade de propositura de ação civil pública pela Defensoria

Pública da União ou dos Estados, há uma ação direta de inconstitucionalidade, na qual se

questiona a sua legitimidade, ao argumento de que a inclusão deste órgão estatal no rol de

legitimados impede o exercício pleno das atividades do Ministério Público. Trata-se da ADI

3.943, proposta pela Associação Nacional de Membros do Ministério Público.

Na mencionada ação, os procuradores fazem dois pedidos. No primeiro, solicitam a

exclusão de legitimidade da Defensoria Pública para todos os casos em que é cabível ação

civil pública. No segundo, solicitam que se não for possível a exclusão total de legitimidade

deste órgão, que atuação da Defensoria Pública fique restrita aos casos de interesse social e

individual homogêneo, pois nestas hipóteses, é possível individualizar o endereçamento da

prestação jurisdicional, alegando que a sua função se restringe a dar assistência àqueles que

comprovem insuficiência de recursos, o que seria impossível em sede de interesses difusos.

Em matéria de interesses difusos, tal posicionamento não merece ser acolhido, pois

embora a Constituição Federal exija que o necessitado prove sua insuficiência de recursos

para obter a assistência jurídica, entende-se que tal requisito pode ser afastado por dois

motivos: primeiro que a prova de carência se justifica para evitar que pessoas privilegiadas

possam fazer uso de um serviço público, obtendo enriquecimento ilícito e impedindo que

pessoas verdadeiramente necessitadas tenham acesso; segundo que a importância dos

interesses difusos transcende classes sociais, de forma a interessar a todos. Ora, se a maioria

da população brasileira é formada por classes menos favorecidas, a tutela do interesse difuso

pela Defensoria Pública sempre estará atendendo a estas pessoas.

Além destas idéias que se contrapõem aos argumentos esposados pela CONAMP, a

doutrina advoga que a legitimidade da Defensoria Pública contribui para a pluralidade

64 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores: Lei 7.347/85 e legislação complementar. 10ª.ed.rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.P.22-23.

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subjetiva da legitimação em sede de ação civil pública, para a celeridade processual, para a

segurança jurídica e para o acesso à Justiça.65

2.3. Legitimidade da União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios

Embora não esteja prevista textualmente no art.23 da Constituição Federal a

competência da União para propositura da ação civil pública, esta legitimidade é plenamente

constitucional, pois decorre da competência comum da União, dos Estados, do Distrito

Federal e dos Municípios de zelar por bens difusos tais como meio ambiente, saúde, bens de

valor histórico, artístico e cultural, dentre outros.

A legitimidade da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios concretiza

o princípio da isonomia dos entes da Administração Direta. A ausência de qualquer um destes

acarretaria, inevitavelmente, inconstitucionalidade manifesta. Do ponto de vista jurídico, esta

ampla legitimação visa proporcionar aos interesses difusos, coletivos e individuais

homogêneos uma proteção do tamanho da importância destes bens jurídicos.

A doutrina está bastante preocupada com a omissão deste grupo de legitimados ativos,

que deveriam ser os maiores interessados, pois são os gestores da coisa pública e do bem

comum. Com isto, o Ministério Público está defendendo estes bens jurídicos de importância

extraordinária de forma sobrecarregada, o que diminui a qualidade e a celeridade da prestação

de seus serviços.66

O ente Federal propõe a ação civil pública através da Advocacia-Geral da União, que o

representa judicial e extrajudicialmente. Em virtude da magnitude dos bens jurídicos

mencionados nesta ação, seria importante que fosse criada uma procuradoria especializada em

sua defesa, tal como existe a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, de forma que a atuação

da União se adequasse ao seu dever de proteção destes bens jurídicos.

Embora a legislação brasileira sobre o assunto seja uma das melhores do mundo, o

país está atrasado neste ponto, pois outros países já possuem órgãos e agências

governamentais especializadas. A exceção quanto a esta falta de atenção especial exigida pela

natureza do objeto tutelado fica por conta da existência de Procuradorias do Consumidor e de

outros órgãos executivos que as auxiliam nesta questão como o INMETRO.

65 COSTA, Salmon Marcelino. Controle de Constitucionalidade em Ação Civil Pública. Monografia. UFU: 2007. 66 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores: Lei 7.347/85 e legislação complementar. 10ª.ed.rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.P.152-153.

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É preciso também que a União antes mesmo de se fortalecer na criação de

procuradorias especializadas de tutela de interesses metaindividuais estabeleça órgãos

executivos, com funções preventivas e repressivas nesta área.

Questão importante a ser resolvida em matéria de propositura de ação civil pública por

entes da administração direta se referente ao interesse de agir, uma vez que são dotados do

poder de polícia.

Segundo o clássico conceito de interesse de agir, a parte somente pode provocar o

Poder Judiciário se não tiver outro meio para se valer, de forma a configurar que houve

resistência da outra parte em dar sua prestação, o poder de polícia da administração pública

sempre seria um obstáculo ao seu interesse em procurá-lo. No entanto, em matéria de direitos

metaindividuais, o interesse de agir decorre diretamente da lei, pois se preciso fosse atuação

da administração pública através do poder de polícia, nunca faria uso da ação civil pública, o

que equivaleria a revogar a legitimidade dos entes da administração direta por meio de mera

interpretação jurídica, o que é impossível, em face do princípio do paralelismo de formas e da

presunção de legitimidade das leis.

Caso este apelo ao interesse de agir ficasse consolidado na jurisprudência nacional, a

tendência seria sobrecarregar ainda mais o Ministério Público. Desta maneira, o objeto da

ação poderá ficar ainda maior, pois seus membros buscarão não só promover a defesa de bens

jurídicos metaindividuais como responsabilizar a administração pública pela inércia

injustificada.

Por outro lado, o indeferimento da petição de ação civil pública proposta pela

administração direta, sem julgamento do mérito, não traz benefício algum ao interesse da

coletividade, pois não se pune diretamente a inércia, nem se dá continuidade à tutela do bem

jurídico.

Cabe lembrar que o Ministério Público sempre atua em ação civil pública ou como

parte ou como fiscal da lei. Desta maneira, a tendência de sobrecarga do Ministério Público se

confirma, devido a seu dever de processar a administração pública inerte.

Estar-se-ia também diante de uma situação constrangedora para o poder público, pois

este daria um tiro em seu próprio pé, ao propor uma ação, cujo resultado poderia lhe ser

desfavorável. Ora, esta possibilidade não pode existir, uma vez que gera total desestímulo na

defesa de interesses metaindividuais por meio de ação civil pública. Em outras palavras, a

intenção do legislador estaria sido frustrada em outorgar legitimidade aos entes da

administração direta.

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Não se pode falar em usurpação ou ingerência do Judiciário em searas próprias do

Executivo ou do Legislativo, pois é a própria administração pública que o provoca. Em outras

palavras, a administração exercita seu poder discricionário de agir por meio do poder de

polícia ou por meio da ação civil pública, pois está autorizada pela lei para exercer esta

escolha.

Outra questão importante a ser resolvida se refere ao interesse de agir de um dos

estados federados em relação a problemas de outros. A solução a este problema deve levar em

conta a natureza do processo da ação civil pública. Como se trata de um processo subjetivo de

índole difusa ou coletiva, um Estado pode perfeitamente questionar atos que acontecem em

outro, mesma que não sofra nenhum prejuízo, pois a tutela de interesses metaindividuais está

acima de qualquer interesse estatal. Não se trata também de ofender a autonomia do outro

Estado, pois a finalidade da ação é defender interesses ligados diretamente ao povo. Sendo o

Estado, o gestor do interesse público, não pode se sentir ofendido pela mera acusação de outro

de que não o está buscando, cabe, sim, a ele, provar a improcedência da alegação ou abrir-se

para ouvir a opinião alheia.

O perigo que existe na ação civil pública proposta por um Estado em relação a dano

ocorrido em outro é o acirramento de ânimos partidários, pois estados podem possuir

governadores de partidos diferentes. No entanto, não se pode impedir a propositura desta ação

simplesmente em virtude de medo de que isto ocorra, pois, para tanto o juiz é dotado do poder

de impor penalidades àquele que litiga de má-fé.

No mesmo sentido, parte da doutrina entende que os Estados podem ajuizar ação civil

pública na defesa de bem jurídico difuso, coletivo ou individual homogêneo presente em

outros.67

2.4. Legitimidade de autarquia, fundação pública e empresas estatais

Mais uma vez está caracterizada a sobrecarga de ações civis públicas a cargo do

Ministério Público, pois também as autarquias, as empresas públicas, as fundações e as

sociedades de economia mista da mesma forma que os entes da administração direta pouco

têm feito uso destas ações.

Crescente está o uso de ações civis públicas propostas pelo Ministério Público contra

as autarquias, fundações, empresas públicas, sociedades de economia mista, responsáveis pela

67 NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria De Andrade Nery. Constituição Federal Comentada: e legislação constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. P.487.

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tutela extrajudicial de interesses metaindividuais ou que tenham participado da lesão a estes,

visando a obrigá-las a exercer o poder de polícia, de forma correta, cumuladas com pedido de

improbidade administrativa.

Um problema que se poderia colocar sobre a legitimidade das autarquias, empresas

públicas, fundação e sociedade de economia mista se refere à necessidade ou não de

demonstração de pertinência temática para propositura da ação. A melhor resposta a este caso

parece ser por sua dispensa, pois a lei expressamente apenas a exigiu para as associações. Em

outras palavras, como a finalidade da lei é tutela de bens jurídicos metaindividuais, não cabe

ao intérprete criar uma restrição, cuja vontade do legislador foi silente. Assim, o interesse de

agir decorre diretamente da lei, sem que seja preciso fazer contorcionismo jurídico para

admissão do processamento de ACP por estas entidades.

Também a necessidade de prova de pertinência temática não se coaduna com o

princípio da inafastabilidade da jurisdição e com o princípio da isonomia. A finalidade da lei é

permitir a mais ampla defesa do interesse metaindividual, em razão de sua importância. Além

disto, se nem o legislador se utilizou de algum critério para condicionar o exercício da ação

civil pública por parte destes órgãos da administração indireta, significa que embora possuam

natureza jurídica distinta de outros legitimados, possuem igual legitimidade para movimentar

o Poder Judiciário. Em outras palavras, não há justificativa para a prática desta discriminação.

Mais uma vez também se estaria contribuindo para sobrecarga de ações civis públicas a serem

propostas pelo Ministério Público, em virtude de se exigir requisitos especiais a alguns

legitimados, sem fundamentação jurídica convincente, cabendo a estes entes, na prática,

figurar apenas no pólo passivo da demanda.

A preocupação maior em termos de direito metaindividual deve ser com os fatos

narrados e com a causa de pedir. Em outras palavras, o direito não pode ficar sem efetividade,

perquirindo questões formais, em detrimento do interesse público, da substância do processo.

Em sentido oposto à tese defendida, parte da doutrina entende que a legitimação dos entes da

administração indireta depende de demonstração de que seus objetivos institucionais

abrangem o objeto que se tutela por meio de ACP.68

Permitir que autarquias, empresas públicas, fundações e sociedades de economia mista

ajuízem ações, sem necessidade de demonstração de pertinência temática, realiza, de fato, os

objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil como promoção do bem de todos e

a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Além disto, em muitas cidades

68 COSTA, Salmon Marcelino. Controle de Constitucionalidade em Ação Civil Pública. Monografia. UFU, 2007.P.66.

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pequenas, é mais fácil constatar a presença de empresas públicas como a Caixa Econômica

Federal, que órgãos do Ministério Público. Desta maneira, se estaria efetivando também o

princípio da função social da empresa, que além de auferir lucros, pode contribuir para a

defesa de interesse público em juízo.

Esta ampla legitimação, inclusive, de pessoas jurídicas de direito privado, contribui

para o desenvolvimento de uma cultura de participação da sociedade na defesa de bens

jurídicos de natureza pública, difusa, coletiva e individual homogênea.

2.5. Legitimidade das associações

Com a Constituição de 1988, as associações passaram a ocupar uma importante

posição na sociedade brasileira. O Legislador Constituinte chegou, inclusive, a tratar o direito

de associação como direito fundamental, livre da intervenção do Estado e lhe outorgou

diversos instrumentos jurídicos para fazer valer sua vontade como o mandado de segurança

coletivo. Ao classificar o direito de associação como direito fundamental, nenhuma restrição

lhe poderia fazer em razão de alguma característica de ordem humana como ser servidor

público.

Não seria possível no Estado Democrático de Direito a exclusão do rol de legitimados

a propor a ação civil pública de associações, pois são entidades de defesa da sociedade,

inclusive, perante o Estado. Em virtude da importância do interesse metaindividual, o

legislador conferiu legitimidade às associações para a propositura da ação civil pública.

No entanto, para sua atuação, o legislador exigiu que a associação fosse constituída há pelo

menos um ano, nos termos da lei civil e que fizesse inclusão da proteção ao meio ambiente, ao

consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio estético, histórico,

turístico e paisagístico, entre suas finalidades institucionais.

O requisito da pré-constituição pode ser dispensado, em nome da dimensão ou da

característica do dano ou da relevância do bem jurídico a ser protegido. Tal dispensa

demonstra a razoabilidade que deve existir no tratamento da legitimidade das associações, que

em um Estado Democrático de Direito, devem tomar a dianteira da defesa dos interesses

metaindividuais.

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Adotando uma posição de caráter material, parte da doutrina entende que não é

necessária a previsão estatutária estrita para concessão de legitimidade, sendo suficiente a

defesa de valores nos quais se incluam aqueles mencionados na lei.69

3. Do objeto da ação civil pública

O objeto de qualquer ação são os pedidos expostos na petição inicial. Na ação civil

pública, há o pedido imediato de emissão de sentença sobre o caso em juízo e o pedido

mediato, relativo à pretensão do autor sobre o bem jurídico que pleiteia ou sobre uma nova

situação de direito.

Segundo dispõe o art.3° da Lei da ACP, seu objeto consiste na condenação em

dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer. Evidentemente, o legislador

fez menção apenas ao pedido mediato. No entanto, decorre desta redação que o pedido

imediato terá natureza condenatória, lato sensu.70

Não obstante a literalidade deste artigo, a doutrina entende que as ações civis públicas podem

ter pedidos condenatórios, cautelares, executivos ou meramente declaratórios ou

constitutivos.71

O cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer prefere à condenação em dinheiro,

pois a questão mais importante na defesa de interesses metaindividuais é repor o bem ao seu

estado anterior à lesão sofrida. No entanto, o restabelecimento do estado anterior nem sempre

é possível em bens jurídicos dessubstantivados, isto é, bens lesionados sem possibilidade de

retorno ao estado anterior.72

4. Do interesse de agir na ação civil pública

As ações possuem três condições, a saber: possibilidade jurídica do pedido,

legitimidade e interesse de agir. Esta terceira condição guarda muita semelhança com o

69 NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria De Andrade Nery. Constituição Federal Comentada: e

legislação constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. P.488. Apud COSTA, Salmon Marcelino. Controle de Constitucionalidade em Ação Civil Pública. Monografia. UFU, 2007. P.67. 70 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores: Lei 7.347/85 e legislação complementar. 10ª ed.rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. P.31. 71 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo.9 ed.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.P.67. 72 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores: Lei 7.347/85 e legislação complementar. 10ª ed.rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. P.32.

50

princípio da razoabilidade. Em outras palavras, gera a idéia de que embora a ação seja um

direito fundamental, não é absoluto, está condicionado a regras lógicas para seu efetivo

exercício. A técnica processual, portanto, já atua mesmo antes da propositura da ação.

A pergunta que o autor deve fazer antes de propor uma ação judicial consiste

exatamente em saber se tal propositura é razoável, isto é, se passa pelo crivo da necessidade,

utilidade e adequação.

Assim, a escolha da via processual para solução do conflito deve partir da necessidade

de intercessão do Estado-juiz, dentre outros fatores como mencionado. Esta necessidade

apenas é absoluta do ponto de vista jurídico quando a lei exige como única forma de solução o

procedimento judicial como no caso de ação de divórcio ou quando a lei proíbe a autodefesa.

Desta maneira, é preciso conferir a este termo um significado jurídico, construído a partir da

análise sistemática do ordenamento. Partindo do princípio da inafastabilidade da jurisdição,

segundo o qual nenhuma ameaça ou lesão a direito pode ser afastada da apreciação do Poder

Judiciário através de uma simples lei e do princípio segundo o qual ninguém será privado de

seus bens ou de sua liberdade, senão por meio do devido processo legal, o conceito de

necessidade está relacionado à idéia de meio mais adequado para a solução do conflito. Em

regra, a necessidade de solução judicial decorre de entendimentos frustrados entre os sujeitos

da relação jurídica, a respeito de questões relativas ao objeto em disputa.

Em conjunto a este pressuposto, está o requisito da utilidade. O entendimento deste

termo para a seara jurídica está relacionado com a finalidade do Poder Judiciário que consiste

na pacificação social de conflitos, através de prevenção ou reparação de danos ou ainda

constituição de algum direito para o autor. Desta maneira, não se pode fazer uso da jurisdição

se outra for a finalidade como mera consulta acadêmica, perseguição política ou qualquer

outro interesse maculado de má-fé.

Além destes dois pressupostos, a adequação completa o interesse processual. Consiste

este requisito numa relação de compatibilidade entre os meios adotados e os fins perseguidos.

Esta idéia de adequação acaba por abarcar em seu sentido as condições da ação de

possibilidade jurídica do pedido e de legitimidade das partes. No entanto, como estas questões

já foram vencidas pelo julgador, este pressuposto do interesse processual será verificado em

função da finalidade do autor e a espécie de tutela jurisdicional escolhida.

Sendo assim, o interesse de agir na ação civil pública ficará configurado através da

presença da necessidade, da utilidade e da adequação do processo para tutela dos interesses

metaindividuais.

51

Não existe nenhuma hipótese em que a ação civil pública é o único meio de se tutelar

o bem jurídico metaindividual nem há outra condição específica para sua propositura.

Além deste recurso, a Lei 7.347/1985 prevê o termo de ajuste de conduta como uma

ferramenta extrajudicial, a ser utilizada segundo critérios de conveniência e oportunidade,

adotados pelo Ministério Público. Nele, podem ser convencionadas obrigações e prazos a

serem cumpridos pela parte que está lesando o bem jurídico, por meio de transações que

preservem o núcleo essencial do interesse judicializado.73

5. Da coisa julgada em ação civil pública

A noção de coisa julgada está diretamente ligada a de processo como marcha adiante.

Neste sentido, faz-se necessário estabelecer um ponto final neste curso, que seja possível de

alteração em alguns casos, de forma a não torná-lo absoluto.

Não obstante os termos do art.467 do CPC, a sentença não é a causa da coisa julgada,

pois dela não decorre necessariamente a imutabilidade de seu comando, de forma a dar uma

conclusão final à determinada relação jurídica. Caso fosse assim, não existiria o princípio do

duplo grau de jurisdição, que permite a revisão de sentenças através de órgãos colegiados. A

coisa julgada só ocorrerá, então, após o transcurso do prazo recursal sem que tenha ocorrido a

manifestação da parte prejudicada ou após certa decisão, da qual não caiba mais nenhum

recurso.

Desta maneira, a coisa julgada se divide em formal e material. No primeiro caso, há

propriamente uma preclusão impeditiva de impugnação e reexame da sentença no mesmo

processo, na mesma relação jurídica processual. Ocorre em todas as sentenças, julguem ou

não o mérito da demanda. Naquelas em que o mérito não é analisado, é possível a propositura

de novo processo, exceto nas hipóteses em que o processo anterior tenha sido extinto sem o

julgamento de mérito em virtude de sentença que pronunciara a coisa julgada, a litispendência

ou a perempção.74

Nestas hipóteses em que a sentença anterior pronunciou a coisa julgada, a

litispendência ou a perempção, a propositura de um novo processo configurará manifesta

litigância de má-fé, em virtude de desrespeito a pressupostos processuais negativos de

validade do processo.

73 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores: Lei 7.347/85 e legislação complementar. 10ª ed.rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. P.238. 74 LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito Processual do Trabalho. 4ª ed.São Paulo: LTr, 2006. P.570.

52

Já a coisa julgada material é a qualidade da sentença que a torna imutável, de forma a dar uma

solução definitiva à determinada relação jurídica, sem que se possa discuti-la novamente em

outro processo.

Como visto, já no início deste tópico, a coisa julgada é um instituto jurídico cercado de

limites. Primeiramente, cabe destacar que a sentença como ato jurídico composto de relatório,

fundamentação e dispositivo não é totalmente coberta por este fenômeno.

Esta limitação da coisa julgada é classificada pela doutrina como objetiva, tendo em

vista que recai sobre uma coisa, sobre um dado da realidade, exatamente sobre o dispositivo

da sentença, parte em que o magistrado decide a respeito da relação jurídica controvertida.

Não incide sobre o relatório e a fundamentação, porque estas duas partes servem apenas para

formar a convicção do juiz sobre o caso. Desta maneira, o fenômeno da coisa julgada deve ser

entendido em função da finalidade do processo: a pacificação social.75

Outra classificação da coisa julgada a qualifica como subjetiva, tendo em vista os

sujeitos sobre os quais atinge. Em geral, a sentença criará uma situação jurídica a ser

observada por aqueles que participaram do processo como partes.

O entendimento do termo partes deve levar em consideração o contexto jurídico em

que aparece. No caso da substituição processual, em que quem participa da relação jurídica

processual é um legitimado a defender em juízo direito alheio, o significado de parte deve

abranger tanto o substituído quanto o substituto. No entanto, a coisa julgada material atingirá

apenas o substituído, pois a este caberá cumprir a decisão. Também no caso da assistência

simples, o assistente é considerado parte para fins de recurso, conforme dicção do art.500 do

CPC. No entanto, para fins de coisa julgada, o assistente simples, embora não possa em outro

processo discutir a justiça da decisão, não é considerado parte, porque não está obrigado a

cumprir a decisão proferida na causa, ou seja, seu comando não se dirige a ele.

Em síntese, a coisa julgada material produz dois efeitos para as partes às quais é dada:

determinação de cumprimento definitivo da sentença e impossibilidade de nova ação para

discutir o mesmo objeto do conflito.

Em relação à ação civil pública, a coisa julgada possui outro contorno referente aos

seus limites subjetivos, em virtude de seu processo discutir a respeito de interesses

metaindividuais.

A princípio, o efeito da coisa julgada nesta ação era tratado pelo art.16 da Lei

7.347/85, em sua redação original, segundo o que a sentença civil faria coisa julgada erga

75 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil III. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004.P.313-314.

53

omnes, com a exceção de que se a ação fosse julgada improcedente por deficiência de provas,

qualquer legitimado poderia intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova

prova. Quanto a esta segunda parte do artigo, a lei atribuía ao deslinde dos interesses

metaindividuais o mesmo tipo de conseqüência já concedida na ação popular, consagrada

como coisa julgada secundum eventum litis.76

Esta nova técnica de solução de conflitos, baseada na carga probatória trazida pelo

autor aos autos, corresponde à diretriz da instrumentalidade-efetividade do processo, com

promoção maior da coincidência entre direito material e a resposta judicial.77

Como espécie da coisa julgada secundum eventum litis foi criada a coisa julgada in

utilibus, isto é, ela apenas significará a imutabilidade do comando da sentença se esta for

favorável para os interessados que tenham proposto ações individuais de indenização por

danos sofridos.

Nos anos noventa, com a instituição do Código de Defesa do Consumidor, o

regramento dos efeitos da coisa julgada passou a ser realizado por meio de seu art.103. Nesta

nova lei, a preocupação do legislador consistiu em dar melhor tratamento ao assunto,

considerando que o efeito erga omnes não compreende todas as espécies de interesses

metaindividuais, pois no caso de direito coletivo, o termo ultra partes se enquadra melhor à

situação.

Apesar de todos estes avanços realizados nos institutos jurídicos processuais clássicos,

surpreendentemente, o governo federal, através da medida provisória 1.570 de 21 de agosto

de 1997, convertida na Lei 9.494, de 10 de setembro de 1997, promoveu um retrocesso

jurídico em matéria de interesses metaindividuais, em nome de interesses econômicos, ligados

ao programa de privatizações. Assim, foi colocado ao efeito erga omnes do comando da

sentença proferida em sede de ação civil pública o limite da competência territorial do órgão

prolator.

Não satisfeito com este retrocesso, o governo federal editou a medida provisória

2.180-35, de 24 de agosto de 2001, com a finalidade de condicionar também o efeito erga

omnes das sentenças coletivas à circunscrição de competência do magistrado prolator da

decisão e com o intuito de criar obstáculos à propositura de ações coletivas contra o Estado

como a exigência de toda petição vir instruída com a ata da assembléia da entidade

associativa, autorizando a provocação do Poder Judiciário.

76 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores: Lei 7.347/85 e legislação complementar. 10ª ed.rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. P.291. 77 Ibid. P.295.

54

Primeiramente, a Medida Provisória 1.570/97, no ponto que alterou a sistemática da

coisa julgada em ação civil pública, foi acusada de inconstitucional, sob o argumento de que o

limite territorial do órgão prolator da decisão de coisa julgada erga omnes poderia

obstaculizar a propositura de recursos em todo o país. O relator da ADI, Min.Marco Aurélio,

considerou que a mudança feita pelo Chefe do Poder Executivo teve um caráter pedagógico,

ao esclarecer os contornos do efeito erga omnes.78

Parte da doutrina considera que realmente a questão jurídica esposada na medida

provisória não possui caráter constitucional, visto não estar em discussão o instituto da coisa

julgada em si, que a Constituição refere dentre os direitos e garantias individuais e sim o

problema de seus limites objetivos e subjetivos, temas concernentes ao direito processual.79

Um argumento que se poderia colocar sobre a inconstitucionalidade da mencionada

medida provisória seria o art.62, § 1°, I, a, pois este instrumento formal de normas não pode

tratar de matéria relativa a direito de cidadania, no qual estão inseridos os interesses

metaindividuais. Desta forma, a partir da Emenda Constitucional n.32/2001 a medida

provisória poderia ser descartada do ordenamento jurídico, por vício de inconstitucionalidade.

No entanto, como já houve sua conversão em lei, não há o que se reparar, sob o ponto de vista

da hermenêutica constitucional.

A solução do problema deve ser buscada na teoria geral do processo civil, sob o ponto

de vista da instrumentalidade das formas processuais. Como o legislador condicionou a

eficácia do efeito erga omnes aos limites da competência territorial do órgão prolator, o

melhor entendimento a ser construído dependerá da aplicação dos escopos sociais, políticos e

econômicos do processo.

Desta maneira, a classificação da competência em absoluta e relativa depende dos

valores escolhidos pelo ordenamento jurídico. A primeira é estabelecida em razão da matéria,

da qualidade das partes ou pelo critério funcional. Não havendo a adoção de nenhum destes

critérios, diz-se que a competência é relativa. Assim, o condicionamento do efeito erga omnes

aos limites da competência territorial do órgão prolator não possui respaldo na teoria geral do

processo civil, pois após o ajuizamento e o julgamento de uma ação perante um juízo singular,

a sentença é passível de revisão por tribunais que possuem jurisdição nacional.

78 ADI-MC 1576/UF - União Federal. Relator: Min. Marco Aurélio. Julgamento em: 16/04/1997, publicado no DJ de 06-06-2003 p. 00123. Acessado em 28-12-2008. Disponível em http://redir.stf.jus.br/estfvisualizador/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf. 79 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores: Lei 7.347/85 e legislação complementar. 10ª ed.rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. P.296.

55

Dentro dos escopos sociais, políticos e econômicos do processo, a concessão de efeito

erga omnes sem o limite territorial do órgão prolator da decisão se harmoniza com a natureza

dos interesses metaindividuais.

56

IV - DA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALDADE EM AÇÃO CIVIL

PÚBLICA

1. Relações entre ação civil pública e controle de constitucionalidade

O objetivo deste item é investigar as relações existentes entre a ação civil pública e o

controle de constitucionalidade. A princípio, como em toda ação será possível o controle

difuso de constitucionalidade, cuja sentença terá eficácia inter partes. No entanto, será

investigada a possibilidade desta sentença ter eficácia erga omnes em matéria de

constitucionalidade, pois as sentenças proferidas na ação civil pública, em regra, carregam em

si este efeito para os pedidos arrolados na petição inicial.

Em razão do art.97 da Constituição Federal exigir a reserva de plenário para

declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, o que se poderá

fazer, na verdade, é constatar se os Tribunais poderão julgar a causa de pedir da ação civil

pública como um de seus pedidos.

Embora esta hipótese esteja em desconformidade com o sistema jurídico atual, é

preciso abrir espaço a uma reflexão sobre a oportunidade de se criarem novos entendimentos

e novos institutos jurídicos, com maior alcance e efetividade. O próprio objeto da ação civil

pública está em constante crescimento como se nota a inserção da tutela do meio ambiente

pela Lei n.° 6.938 de 31 de agosto de 1981, da tutela dos deficientes físicos pela Lei n.° 7.853

de 24 de outubro de 1989, da tutela da infância e juventude pela Lei n.° 8.069 de 13 de julho

de 1990, da tutela da ordem econômica e economia popular pela Lei n.° 8.884 de 11 de junho

de 1994, entre outras. Além disto, o texto da Constituição Federal de 1988 já promoveu a

maior abertura do objeto desta ação, ao permitir ao Ministério Público a defesa de quaisquer

interesses difusos e coletivos. Sendo assim, a inclusão de pedido de declaração de

inconstitucionalidade nesta ação apenas significa estender seu objeto mais uma vez a uma

questão de valor igualmente difuso.

Acredita-se que a união das características da ação direta de inconstitucionalidade com

as da ação civil pública possa gerar maior participação dos cidadãos nos rumos do Estado,

pois ao se permitir a eles propor ações em que se discuta a constitucionalidade das leis a partir

de casos práticos, de relevância difusa e coletiva, poderá a criar o sentimento de defesa da

vontade do Poder Constituinte, contribuindo para a força normativa da Constituição.

Destarte, já se pode visualizar ao menos a possibilidade de ação civil pública proposta

pelo Procurador-Geral da República, com declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato

57

normativo federal ou estadual, sem se romper com o atual paradigma de legitimidade, com

apenas uma adaptação legislativa que leve a questão ao Supremo Tribunal Federal.

Pelo prisma do direito positivo brasileiro, a ação direta de inconstitucionalidade é vista

como a única via possível de concessão de eficácia erga omnes à decisão de

inconstitucionalidade. O problema levantado neste trabalho consiste em saber se é possível ter

argumentos que permitam uma nova leitura da ação civil pública, de modo a torná-la um

instrumento mais eficiente, em prestígio aos princípios do acesso à Justiça e da celeridade

jurisdicional, em harmonia com o princípio do duplo grau de jurisdição e com a guarda da

Constituição pelo Supremo Tribunal Federal.

Embora todo juiz possa emitir juízo sobre a constitucionalidade das leis, sua decisão se

limita às partes às quais é direcionada. No entanto, o problema de todo o julgado da ação civil

pública consiste na coletivização da atual causa de pedir como forma de dar um efeito,

adequado à natureza da constitucionalidade como bem jurídico difuso. Percebe-se que nesta

ação mencionada, a declaração de inconstitucionalidade deve ser entendida sobre o prisma da

finalidade, isto é, se a ação civil pública serve para a defesa de bens jurídicos difusos,

coletivos e individuais homogêneos, basta uma adaptação no sistema para a inserção deste

objeto.

O desafio a ser enfrentado nesta monografia consiste em dar à questão da

constitucionalidade um novo lugar na ação civil pública, pois a constitucionalidade das leis

não deve continuar a ser tratada como mera questão prejudicial necessária ao julgamento dos

pedidos desta ação, em virtude de possuir a mesma natureza jurídica das questões

consideradas principais em seu bojo.

Não obstante existam ações utilizadas apenas com o objetivo de discutir a

constitucionalidade das leis em tese como a ação direta de inconstitucionalidade e a ação

declaratória de constitucionalidade, a união do pedido de declaração de inconstitucionalidade

com eficácia erga omnes com os pedidos típicos da ação civil pública tende a produzir efeitos

políticos benéficos como a participação do cidadão nas decisões relativas à Constituição

Federal, inseridas dentro de questões práticas, de questões que dizem respeito diretamente a

seu cotidiano, à sua vida.

Em decorrência deste sincretismo processual, serão necessárias algumas reformas

legislativas para adaptar o procedimento utilizado nestas ações. O que não traz dificuldades

para a busca de um mecanismo jurídico capaz de tornar as decisões de constitucionalidade

com eficácia erga omnes, resposta mais adequada à natureza deste bem jurídico. Parte destas

mudanças será apenas interpretativa, pois, inclusive, já existe em incidente de

58

inconstitucionalidade procedimento parecido com o da ação direta de inconstitucionalidade.

Trata-se da chance de as pessoas jurídicas de direito público responsáveis pela edição do ato

questionado de se manifestarem perante o plenário ou órgão especial da Corte, conforme

art.482, § 1°, do Código de Processo Civil.

Por fim, a solução deste problema poderá trazer benefícios ao Estado Democrático de

Direito, pois se entende que a discussão da constitucionalidade das leis através de casos

práticos de interesse difuso pode melhorar a qualidade das decisões a respeito das mais altas

questões constitucionais, pois como o direito é uma ciência social aplicada, as conseqüências

fáticas das teses jurídicas podem ser melhor visualizadas se inseridas em determinado

contexto.

O preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de

Outubro de 2008, retrata a vontade maior do Poder Constituinte ao afirmar que procurou

instituir um Estado Democrático de Direito, destinado a assegurar o exercício dos direitos

sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e

a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

Ora, a ação civil pública, com possibilidade de decretação de sentença com eficácia erga

omnes no tocante à declaração de inconstitucionalidade, significaria o alcance da igualdade no

plano processual, relativo à legitimidade para propositura de ação com pedido de declaração

de inconstitucionalidade. Desta forma, seria dada maior atenção ao problema da Justiça do

que a problemas de legitimidade, facilmente superados, pela principiologia constitucional.

Reduzir a legitimidade dos possíveis interessados em ajuizar uma ação com eficácia erga

omnes quanto à declaração de inconstitucionalidade seria consagrar o preconceito, prática

inadmissível pelo preâmbulo da Constituição. Assim, exigem-se uma interpretação extensiva

do rol constante do art.103 da CF e o entendimento da possibilidade de lidar com esta questão

em ação civil pública. Resta indagar se a intenção do legislador foi restringir o pedido de

inconstitucionalidade de lei a apenas alguns interessados e através de uma única via ou sua

intenção é promover a Justiça como finalidade maior do Estado.

Desta maneira, a Cidadania como fundamento do Estado Democrático de Direito

poderia ser um parâmetro para conferir legitimidade a mais interessados em promover a ação

direta de inconstitucionalidade e ação civil pública, com pedido de inconstitucionalidade

assim como a Justiça do Trabalho costuma interpretar o ordenamento jurídico a partir de outro

fundamento republicano, o valor social do trabalho.

Além da superação do ponto relativo à legitimidade, a questão da competência

também pode ser resolvida. Como a Constituição Federal exige a reserva de plenário para

59

discussão da constitucionalidade das leis, a questão constitucional na ação civil pública como

pedido não seria analisada pelo juiz singular.

Muitos doutrinadores têm se preocupado com a questão da declaração de

inconstitucionalidade em sede de ação civil pública como o atual Presidente do STF,

Min.Gilmar Ferreira Mendes. Entre as questões levantadas pelo Ministro estão as referentes à

possibilidade jurídica do pedido e ao tipo de controle possível.80

O debate tem se centralizado mais na questão dos casos em que é legítimo o controle

difuso de constitucionalidade em ação civil pública, pois, no estado atual do direito positivo, a

concessão de efeitos erga omnes a eventual declaração de inconstitucionalidade é considerada

como usurpação das competências constitucionais, pois a Constituição reservou apenas ao

Supremo Tribunal Federal a possibilidade de emissão de acórdão com tais conseqüências, em

matéria de direito federal.

2. Do efeito erga omnes em ação civil pública

Parte da doutrina tem considerado que a expressão latina erga omnes não foi inserida

no Código de Defesa do Consumidor, de forma técnica, em seu sentido próprio.81

Como tradução desta expressão latina, os juristas consagraram a idéia de efeito que

pode ser oposto contra todos. No entanto, no CDC, nem sempre há um efeito a ser oposto

contra todos. Ocorre, em algumas situações, na verdade, um efeito a ser posto a favor de

todos. No caso de direitos individuais homogêneos, tal efeito apenas é erga omnes, se o

pedido da ação for procedente. Desta forma, a rigor, não existe um efeito erga omnes, há, na

verdade, uma extensão da coisa julgada, em caso de julgamento favorável aos interessados,

que tenham ajuizado ações individuais de reparação de danos.

Se há alguma variação de sentido no termo erga não faltou também para o termo

omnes, pois o CDC o utilizou inclusive para designar a coletividade titular dos interesses

individuais homogêneos, ou seja, a expressão é empregada tanto no caso de titulares

indeterminados como determinados.

Embora o problema central desta monografia se refira à questão da possibilidade de

concessão de efeito erga omnes à declaração de inconstitucionalidade em ação civil pública,

80 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. 3ª ed.rev.ampl. São Paulo: Saraiva.2004.P.286. Apud SALMON, Marcelino da Costa. Controle de Constitucionalidade em Ação

Civil Pública. Monografia. UFU, 2007. 81 SALMON, Marcelino da Costa. Controle de Constitucionalidade em Ação Civil Pública. Monografia. UFU. 2007.P.77.

60

até mesmo o controle difuso de constitucionalidade nesta ação ordinária é tido como

usurpação da competência exclusiva dos tribunais por parte da doutrina, não obstante os

tribunais superiores têm adotado a tese da possibilidade de controle difuso em matéria de

interesses metaindividuais.82

3. Das questões prejudiciais no controle difuso

Segundo a doutrina, no processo existem pontos e questões a serem resolvidas.

Quando uma das partes faz alguma alegação fica criado um ponto e quando a outra se opõe a

este ponto fica estabelecida uma questão. No entanto, as questões não decorrem apenas da

alegação delas, também existem por força de lei. Estas questões se espalham por todo o

processo. Podem se localizam tanto na causa de pedir como no pedido. Quando estão nos

fundamentos de fato e de direito recebem o nome de questões prévias e quando estão no

pedido, o de questões de mérito.83

Todas as questões anteriores a de mérito são chamadas de prévias. Dentro deste

gênero, existem as espécies preliminares e prejudiciais. As primeiras condicionam a

possibilidade de apreciação da questão posterior, mas não influenciam o seu teor, isto é, não

geram conseqüências relativas ao pedido, à sua procedência ou improcedência. Já as segundas

influenciam o conteúdo da questão posterior, sem condicionar a possibilidade de apreciação

da daquela.84

Em síntese, as questões preliminares têm como função condicionar a possibilidade de

apreciação da questão posterior e as questões prejudiciais têm como finalidade condicionar o

seu teor.

Estas questões são apreciadas na fundamentação da sentença e não transitam em

julgado, de acordo com o art.469, III, do CPC. No entanto, apenas as questões prejudiciais

podem transitar em julgado, caso seja promovida uma ação declaratória incidental.

O problema da constitucionalidade em sede de ação civil pública é uma questão

prejudicial, pois condiciona apenas a procedência ou improcedência da decisão de mérito,

sem condicionar a possibilidade de sua apreciação.

82 SALMON, Marcelino da Costa. Controle de Constitucionalidade em Ação Civil Pública. Monografia. UFU. 2007.P.77. 83 FREIRE, Rodrigo da Cunha Lima. Preliminares, Prejudiciais e Mérito da Causa. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4145. Data de acesso 30 de dezembro de 2008. 84 FREIRE, Rodrigo da Cunha Lima. Preliminares, Prejudiciais e Mérito da Causa. Op. cit.

61

Pode ocorrer efeito erga omnes da declaração de inconstitucionalidade dada em sede

de ação civil pública, sem que isto signifique usurpação da competência do Supremo Tribunal

Federal. Para tanto, basta que o réu nesta ação seja uma pessoa política de âmbito estadual ou

distrital com poderes de legislar, que crie uma lei e que esta gere resultados práticos, pois

embora a decisão tenha sido dada inter partes, uma delas terá que cumpri-la perante terceiros

e não só perante o autor da ação. Além disto, esta hipótese cria a desvinculação do efeito erga

omnes da coisa julgada, pois este efeito resulta de uma decisão dada na causa de pedir,

quebrando o mito de que o dispositivo da sentença é a única parte de onde provêm comandos

obrigatórios, caso não seja promovida uma ação declaratória incidental.

Isto já aconteceu no julgamento do recurso extraordinário RE 424.993/DF, no qual o

STF entendeu que é cabível o controle difuso de constitucionalidade em sede de ação civil

pública, in verbis:

Recurso Extraordinário. Ação Civil Pública. Controle de Constitucionalidade. Ocupação de logradouros públicos no distrito federal. Pedido de inconstitucionalidade incidenter tantum da Lei 754/1994 do Distrito Federal. [...] A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reconhecido que se pode pleitear a inconstitucionalidade de determinado ato normativo na ação civil pública, desde que incidenter tantum. Veda-se, no entanto, o uso da ação civil pública para alcançar a declaração de inconstitucionalidade com efeitos erga omnes. No caso, o pedido de declaração de inconstitucionalidade da Lei 754/1994 é meramente incidental, constituindo-se verdadeira causa de pedir.85

Outro argumento que pode reforçar o efeito erga omnes da declaração de

inconstitucionalidade dada em sede de ação civil pública é exatamente a natureza jurídica das

partes, isto é, como o réu nesta ação é o poder público, sua obediência ao comando da

sentença beneficiará não só o autor da ação como toda a coletividade. De outra forma, não se

pode pensar, pois o resultado alcançado pelo Ministério Público nestes processos sempre trará

benefícios para a coletividade e não só apenas para esta instituição, defensora do interesse

público.

Também contribui para esta tese, o fato de que os terceiros beneficiados pela lei

declarada inconstitucional não poderão continuar a fazer uso dos logradouros públicos, sob a

alegação de que a decisão proferida contra o Distrito Federal não os atinge. Caso isto fosse

verdade, a decisão seria inócua. Evidentemente, o Poder Público, a partir da declaração de

inconstitucionalidade, passará a ter o dever de impedir o uso destes bens da forma considerada

85 Trecho da ementa do RE 424.993/DF. Julgado pelo Pleno em 12 de setembro de 2007, publicado no DJ em 19 de outubro de 2007, p.29. Apud SALMON, Marcelino da Costa. Controle de Constitucionalidade em Ação Civil Pública. Monografia. UFU, 2007.P.80.

62

incompatível com o texto constitucional, pois cabe à União, aos Estados, ao Distrito Federal e

aos Municípios zelar pela guarda da Constituição, nos termos do art.23, da CF. Em outras

palavras, a lei distrital não goza mais da presunção de legitimidade para o próprio Distrito

Federal, mesmo que a inconstitucionalidade tenha sido declarada incidenter tantum.

Em outro acórdão, também fica evidenciado o entendimento do Supremo Tribunal

Federal de que em ação civil pública cabe apenas o controle difuso de constitucionalidade,

cujo efeito se restringe às partes, in verbis:

I. - Somente a ofensa direta à Constituição autoriza a admissão do recurso extraordinário. No caso, o acórdão limita-se a interpretar normas infraconstitucionais. II. - Ao Judiciário cabe, no conflito de interesses, fazer valer a vontade concreta da lei, interpretando-a. Se, em tal operação, interpreta razoavelmente ou desarrazoadamente a lei, a questão fica no campo da legalidade, inocorrendo o contencioso constitucional. III. - O Ministério Público tem legitimidade para propor ação civil pública, fundamentada em inconstitucionalidade de lei, na qual opera-se apenas o controle difuso ou incidenter tantum de constitucionalidade.86

Então, estes velhos efeitos devem ser revistos, pois foram pensados na dicotomia

existente nos casos concretos vivenciados por particulares e nos casos abstratos, em que não

há um réu propriamente dito. Já nos casos concretos vivenciados pelo Poder Público, o efeito

da decisão será erga omnes, ao menos em termos práticos, em razão de sua própria natureza,

pois como somente pode atuar conforme o direito, sua atuação deve ser igual para todos.

Portanto, nestes casos, ocorre um verdadeiro efeito erga omnes sui generis, pois

resulta de uma decisão que extrapola o domínio das partes. No entanto, este efeito está

vinculado a apenas ao resultado prático do processo, ou seja, a questão teórica de validade da

lei ainda pode ser objeto de discussão pretoriana. Em outras palavras, caso os demais

legitimados, principalmente os considerados universais como o Presidente da República,

queiram ajuizar ação direta de inconstitucionalidade contra esta lei distrital ou estadual,

poderão ter sucesso.

Pode-se dizer também que o Distrito Federal tenha interesse de agir para pedir a

declaração de constitucionalidade. Em virtude da existência de dúvida judicial relevante,

demonstrada pelo fato de que há discussão da constitucionalidade, enquanto esta não for o

pedido principal de uma ação e não haja coisa julgada material.

Nestes termos, dentro do direito constitucional atual, apenas é possível o controle de

constitucionalidade em sede de ação civil pública, desde que de forma incidental, com

86 Trecho da ementa do RE 295045/SP. Julgado pelo Pleno em 31 de março de 2004, publicado no DJ em 30 de abril de 2004, p.34.

63

produção do clássico efeito inter partes ou excepcionalmente efeito erga omnes, restrito ao

alcance prático da decisão, quando as partes possuírem natureza de pessoa jurídica de direito

público e com capacidade de produção normativa de lei.

Assim, concorda-se com a tese de Salmom Marcelino da Costa que entende ser

impossível algum autor pleitear declaração de inconstitucionalidade em sede de ação civil

pública como sucedânea da ação direta de inconstitucionalidade, de forma a burlar o sistema

brasileiro de controle constitucional.87

No entanto, cabe ressaltar que não haverá efeito erga omnes de forma ilimitada,

quando a decisão tiver conseqüências a respeito de interesses difusos, pois embora a negativa

de aplicação de lei inconstitucional beneficie a todos, não se forma a coisa julgada material.

Desta maneira, a questão jurídica controvertida poderá ser levada novamente aos Tribunais,

de forma abstrata, pelo próprio derrotado em ação civil pública como por outro autor também

legitimado, no termos do art.103 da CF.

No caso do julgamento do recurso extraordinário RE 424.993/DF, esta possibilidade

de o Distrito Federal discutir novamente a questão em sede de ação declaratória de

constitucionalidade não fica prejudicada pelo fato de ter recebido decisão desfavorável pelo

próprio Supremo Tribunal Federal, uma vez que a composição desta Corte pode se modificar

no tempo, possibilitando a mudança de entendimento a respeito deste tema ou os próprios

Ministros podem mudar de posição, caso haja maior aprofundamento do debate. Além disto, o

objeto da ação é outro, pois haverá pedido de efeito erga omnes, o que não existiu na ação

civil pública, consistindo em um novo processo, agora, objetivo.

4. Natureza do processo da ação civil pública

Diz-se que a natureza jurídica do processo da ação direta de inconstitucionalidade é

objetiva, em virtude de causa de pedir ser de interesse geral e não apenas do interesse do autor

da ação.88 Também contribui para isto o fato de que nesta ação há partes apenas em sentido

formal, uma vez que o autor não defende interesse subjetivo nem existe um réu propriamente

dito.

87 SALMON, Marcelino da Costa. Controle de Constitucionalidade em Ação Civil Pública. Monografia. UFU. 2007.P.82. 88 MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Concentrado de Constitucionalidade. 2ª ed.São Paulo: Saraiva, 2007.P.132.

64

A idéia de processo objetivo se origina no seio do direito administrativo, segundo

Eduardo Garcia de Enterría, como decorrência da criação de um processo, no qual se busca a

anulação de um ato, por vício de legalidade, sendo o autor apenas um elemento a dar maior

seriedade para colocar em marcha os poderes de ofício do administrador.89

Outra característica importante para estabelecer os contornos do processo objetivo é a

ausência do contraditório ou de sua presença virtual, como ocorre no direito constitucional

brasileiro em que o Advogado-Geral da União é obrigado a defender o texto de lei impugnado

de vício de inconstitucionalidade, nos termos do art.103, § 3° da CF.

Além destas características mencionadas, Nelson Nery Júnior e Rosa Maria Andrade Nery,

mencionam o seguinte conjunto de princípios aplicados ao processo objetivo, em controle

abstrato de constitucionalidade:90 “tratando-se de processo objetivo, nele vige o princípio

inquisitório, em lugar do princípio do contraditório; o princípio da indesistibilidade da ação,

no lugar da possibilidade da desistência; o princípio oficial, em lugar da inércia da

jurisdição”.

Tanto na ação civil pública como na ação direta de inconstitucionalidade, o juiz não

possui o poder de iniciar o processo. No entanto, pode impulsioná-lo de ofício e colher provas

com maior liberdade, em virtude do interesse público presente nestas ações. Em relação ao

princípio da indesistibilidade, a ação civil pública prevê no art.5°, § 3°, que o Ministério

Público ou outro legitimado assumirá a titularidade ativa da ação, em caso de desistência

infundada ou abandono dela por associação legitimada. Já na ação direta de

inconstitucionalidade, a Lei 9.868, de 10 de novembro de 1999 também proíbe a sua

desistência, sem obrigar outro legitimado a assumir a titularidade da ação. Ou seja, neste

último caso a ação apenas deixará de ter seguimento na hipótese de perda do objeto, o que é

algo distinto da desistência.

A presença deste conjunto de princípios na ação civil pública e o fato de que a

legitimação ativa decorrer de lei e não da titularidade do direito material lhe conferem traços

de processo objetivo. No entanto, apesar de seus legitimados ativos não serem os titulares do

direito material, seus legitimados passivos são partes que possuem o interesse de ver afastada

a acusação de violação a interesses metaindividuais.

89 ENTERRÍA, Eduardo Garcia de. Hacia una Nueva Justicia Administrativa. 2ª ed.Madrid: Civitas, 1992, pg.86. Apud DUTRA, Cláudio Eduardo Machado. O processo objetivo no controle abstrato de

constitucionalidade. Disponível em: http://www.ucpel.tche.br/direito/revista/vol6/17Claudio.pdf. Acesso 31 de dezembro de 2008. 90 NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal Comentada: e legislação

constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2006.P.538. Nota 17. SALMON, Marcelino da Costa. Controle de Constitucionalidade em Ação Civil Pública. Monografia. UFU. 2007.P.83.

65

Desta maneira, o processo da ação civil pública será objetivo pelo prisma dos

legitimados ativos e subjetivo, pelo prisma dos legitimados passivos. Assim, as normas que

regem seu processamento devem se pautar por critérios que levem em conta esta dualidade,

com predominância do aspecto objetivo.

Embora a ação civil pública tenha traços de processo objetivo, não se deve aplicar a

jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a respeito da inexistência de prazo recursal em

dobro no processo de controle concentrado de constitucionalidade, por analogia, em virtude

de o art. 19 da Lei 7.347/85 admitir a aplicação do CPC, naquilo em que não contrarie suas

disposições.91 Além disto, a ação civil pública se caracterizará, de forma definitiva, como um

processo subjetivo, pois pode haver a resistência do réu em aceitar como legítima a pretensão

do autor, mesmo que o réu seja o Poder Público, órgão por excelência defensor do interesse

público.

Evidentemente, nos casos em que o poder público é réu em ação civil pública, seu

poder de resistência deverá ser mitigado pelo administrador, uma vez que não poderá negar o

pedido como os particulares o fazem a todo custo. Assim, caso perceba sua procedência,

deverá reconhecer o pedido.

Além disto, o prazo em quádruplo para contestar e em dobro para recorrer concedidos à

Fazenda Pública e ao Ministério Público, apesar de estarem previstos no CPC, possuem como

fundamento a tutela do interesse público, presente também na defesa dos interesses

metaindividuais.

A tutela do interesse difuso em ação civil pública pode vista por um prisma que ressalte a

objetivação do processo ou por um prisma que visualiza um novo processo subjetivo.

Assim, destaca-se o posicionamento de Gilmar Ferreira Mendes92:

a ação civil pública aproxima-se muito de um típico processo sem partes ou de um processo objetivo, no qual a parte autora atua não na defesa de situações subjetivas, agindo, fundamentalmente, com escopo de garantir a tutela do interesse público. Não foi por outra razão que o legislador, ao disciplinar a eficácia da decisão proferida na ação viu-se compelido a estabelecer que a ‘sentença civil fará coisa julgada erga omnes’. Isso significa que, se utilizada com o propósito de proceder ao

91 “Não há prazo recursal em dobro no processo de controle concentrado de constitucionalidade. Não se aplica, ao processo objetivo de controle abstrato de constitucionalidade, a norma inscrita no art.188 do CPC, cuja incidência restringe-se, unicamente, ao domínio dos processos subjetivos, que se caracterizam pelo fato de admitirem, em seu âmbito, a discussão de situações concretas e individuais. Precedente. Inexiste, desse modo, em sede de controle normativo abstrato, a possibilidade de prazo recursal ser computado em dobro, ainda que a parte recorrente disponha dessa prerrogativa especial nos processos de índole subjetiva.” (ADI 2.130 – AgR, Rel.Min.Celso de Mello, julgamento em 3-10-01, DJ de 14-12-01) Apud COSTA, Salmon Marcelino. Controle de Constitucionalidade em Ação Civil Pública.Monografia.UFU.2007.P.83. 92 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. 3ª ed.rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2004.P.287. Apud Costa, Salmon Marcelino. Monografia. UFU.2007. P.85

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controle de constitucionalidade, a decisão que, em ação civil pública afastar a incidência de dada norma por eventual incompatibilidade com a ordem constitucional, acabará por ter eficácia semelhante à das ações diretas de inconstitucionalidade, isto é, eficácia geral e irrestrita.

Embora a posição deste autor seja plenamente razoável, tendo em vista que a ação

civil pública realmente possui traços de processo objetivo, acredita-se que, na verdade, se

trata de um novo processo subjetivo, pois são considerados em seu âmbito como titulares de

direitos uma pluralidade de pessoas, mesmo que indeterminada como no caso dos interesses

difusos.

Portanto, a ação civil pública é um instrumento jurídico híbrido, que reúne muitas

características de processo objetivo, sem reunir a principal, ou seja, a ausência de um réu

propriamente dito, pois embora a titularidade da ação pertença a entidades públicas ou

privadas, a natureza do autor não influencia a natureza do processo.

5. Abstrativização da coisa julgada em ação civil pública

O controle difuso passa atualmente por uma imensa revisão, na qual se busca ampliar

o efeito inter partes para erga omnes, a partir do próprio Poder Judiciário, algo que resulta do

movimento de coletivização do processo, permitido pela Constituição Federal. A busca por

esta transformação está ocorrendo principalmente pelo fato de que o Supremo Tribunal

Federal tem recebido um número muito grande de recursos extraordinários.

Atualmente, existe efeito erga omnes da decisão de inconstitucionalidade proferida em

casos concretos não como resultado direto do julgamento da ação, mas como transformação

do fundamento jurídico do pedido em suspensão da lei através da discricionariedade política

do Senado Federal.

Embora não haja uma disciplina legal que trate deste assunto, a legislação tem

evoluído para restringir o caráter privado do julgamento de recursos extraordinários, em razão

de seu excesso comprometer a estrutura do Supremo Tribunal Federal para analisar questões

que envolvem diretamente a Constituição. Desta maneira, foi criado o requisito da

repercussão geral como pressuposto objetivo do recurso extraordinário, de modo a restringi-lo

como instrumento apto a resolver questões de cunho coletivo e não meramente privado, no

qual o recorrente deverá demonstrar a relevância das questões constitucionais controvertidas,

conforme consta do art.543-A do Código de Processo Civil.

67

Isto já significa uma mudança muito significativa, pois se passa da mera presunção de

que qualquer dano à Constituição é relevante para a necessidade de provar sua dimensão ou a

de demonstrar que a decisão contraria súmula ou jurisprudência dominante do STF.

Além desta mudança legislativa, a doutrina está crescendo no sentido de dar uma nova

interpretação ao art.52, X, da CF, segundo o qual cabe ao Senado suspender a execução, no

todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo

Tribunal Federal. Para Gilmar Ferreira Mendes, a permanência no texto da Carta Magna do

instituto da suspensão de lei declarada inconstitucional pelo STF encontra justificativa apenas

histórica, em razão de a doutrina brasileira não ter dado aplicabilidade plena à teoria da

nulidade das leis.93

Realmente, a teoria da nulidade de leis não foi aplicada plenamente, pois em matéria

de nulidade, a decisão sempre coube ao Poder Judiciário, sem necessidade de intervenção do

Poder Legislativo. Desta maneira, não houve a fundamentação do efeito erga omnes nem da

eficácia ex tunc da declaração de inconstitucionalidade, proferida pelo Supremo Tribunal

Federal.94

O único doutrinador que seguiu a coerência da teoria da nulidade das leis foi Lúcio

Bittencourt. Como entendia ser a lei inconstitucional nula de pleno direito visualizava como

conseqüência deste fato que a lei era inexistente. Desta maneira, o Senado Federal não

poderia suspender uma lei que sequer existia. Seu papel ficaria restrito a dar publicidade à

decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal.95

Atualmente, Gilmar Ferreira Mendes lista uma série de argumentos que permitem

transformar o efeito inter partes em erga omnes.96 Dentre eles, a ampliação do controle

abstrato de normas realizada pelo Poder Constituinte de 1988 ao estabelecer o rol de

legitimados a propor a ação direta de inconstitucionalidade e posteriormente a Emenda

Constitucional n. 45 de 8 de dezembro de 2004 que ampliou o rol de legitimados a propor a

ação declaratória de constitucionalidade. Além disto, a disciplina processual conferida à

93 MENDES, Gilmar Ferreira. O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade: um caso clássico de mutação constitucional. Disponível em: http://www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/Pdf/pdf_162/R162-12.pdf. Acessado em 02 de janeiro de 2008. 94 BITTENCOURT, C. A. Lúcio. O controle jurisdicional de constitucionalidade das leis. Brasília. Ministério da Justiça, (Arquivos do Ministério da Justiça).1997. P.140-141 Apud MENDES, Gilmar Ferreira. O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade: um caso clássico de mutação constitucional. Disponível em: http://www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/Pdf/pdf_162/R162-12.pdf. Acessado em 02 de janeiro de 2008. 95 Ibid. 96 MENDES, Gilmar Ferreira. O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade: um caso clássico de mutação constitucional. Disponível em: http://www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/Pdf/pdf_162/R162-12.pdf. Acessado em 02 de janeiro de 2008.

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argüição de descumprimento de preceito fundamental por gerar efeito erga omnes, a partir da

decisão de casos concretos também diminui a importância do controle incidental de normas.

Outro argumento relevante consiste no fato de que os relatores tiveram seu poder de

decisão ampliado, a partir da Lei 8.038, de 28 de maio de 1990, segundo a qual os recursos

podem ter seu seguimento negado pela decisão singular do Ministro do Superior Tribunal de

Justiça ou do Ministro do Supremo Tribunal Federal nos casos de serem manifestamente

intempestivos, incabíveis, improcedentes ou prejudicados ou ainda que contrariem Súmula do

STJ ou do STF.

Além destes argumentos pertinentes ao conjunto de normas relativas à coletivização

do processo, a jurisprudência do STF tem conferido efeito vinculante tanto à parte dispositiva

do acórdão, como aos fundamentos determinantes, a partir da interpretação do art.557, caput e

§ 1°, do Código de Processo Civil.

Por fim, declara como inútil a suspensão de execução de lei pelo Senado Federal de lei

declarada inconstitucional pelo STF nas ações coletivas, principalmente na ação civil pública,

tendo em vista que suas decisões já possuem efeito erga omnes, por força da lei e seu objeto

acaba por se confundir com o da ação direta de inconstitucionalidade.

6. Coletivização do fundamento jurídico relevante de origem constitucional

Na verdade, a abstrativização da coisa julgada em ação civil pública melhor seria vista

como coletivização da causa de pedir ou coletivização do fundamento jurídico de origem

constitucional, pois este apesar de possuir natureza abstrata teve seu efeito reduzido ao caso

concreto. Desta maneira, é preciso colocá-lo no seu devido lugar, de onde não poderia ter sido

tirado.

Para melhor entendimento do tema, faz-se necessário relembrar a classificação da

causa de pedir em remota e próxima. A primeira diz respeito ao fato ou ao complexo de fatos

que embasam a pretensão e pode ainda ser subdividida em causa de pedir ativa (fatos

constitutivos do direito do autor) e passiva (fatos lesivos ou violadores do direito invocado).

Já a segunda é o enquadramento destes fatos ao modelo legal do direito material.97 No caso

das ações que têm por base alguma questão constitucional, a causa de pedir próxima é o

enquadramento da norma ao modelo previsto na constituição.

97 TUCCI, José Rogério Cruz e. A causa petendi no processo civil. São Paulo: RT, 2ª Ed.,2000, p.90 e ss. e 109 e ss.P.154-155; GRECO, Leonardo. A teoria da ação no processo civil. Op.cit.,p.55-56. Apud CABRAL, Antônio do Passo. A causa de pedir nas ações coletivas. In: Tutela Jurisdicional Coletiva. Coordenação: Fredie Didier Jr. e José Henrique Mouta. Bahia: Ed.Jus PODIVM. 2009.P.71.

69

Estas duas modalidades de causa de pedir são ponderadas pelo juiz na fundamentação

da sentença com as alegações trazidas aos autos pelo réu. Segundo interpretação dada ao

art.474 do CPC, os fundamentos de fato e de direito invocados ou que deixam de ser

mencionados pelas partes transitam em julgado.98

Embora a coletivização da causa de pedir remota por dizer respeito ao fato ou ao

complexo de fatos que embasam a pretensão possa sofrer a crítica de que traz dificuldades em

certos pontos, tanto no que tange à substituição processual como à vinculação processual de

terceiros ao resultado da demanda coletiva, em virtude do distanciamento existente entre

legitimado extraordinário e os fatos a serem expostos e do estabelecimento de sistemas

automaticamente inclusivos dos membros ausentes da classe aos efeitos do julgamento99, a

causa de pedir próxima não pode sofrê-la, porque o fundamento jurídico é de natureza

abstrata.

Este distanciamento do “legitimado extraordinário” é relativo, pois a coisa julgada

apenas ocorre se for para beneficiar os membros ausentes. Além disto, a causa de pedir

próxima é assunto técnico-jurídico, desconhecido pela população, em geral.

Assim, a coletivização do fundamento jurídico do pedido deve ocorrer em razão de

uma interpretação dos fenômenos processuais a partir da natureza do direito material e não

meramente por análise do Código de Processo Civil. Este é melhor utilizado para resolver

questões relativas ao direito subjetivo das partes, não se revelando apropriado para solucionar

problemas de direito constitucional.

Os esforços a serem feitos nesta matéria de coletivização da causa de pedir próxima

são menores em relação àqueles que foram realizados para a concessão do efeito erga omnes

da causa de pedir remota, pois a natureza da questão constitucional é abstrata, não

dependendo da participação de todos os interessados. Não existe direito subjetivo na

manutenção da inconstitucionalidade, de forma que alguém mesmo entendendo ser a lei

contrária à Carta Magna opte por mantê-la assim. Trata-se de uma questão objetiva.

Como o direito avançou no sentido de conceder efeito erga omnes a sentenças

relativas a fatos concretos ligados a interesses difusos, cuja forma de provar é mais difícil que

o não enquadramento da norma ao modelo constitucional, a manutenção do efeito inter partes

da declaração de inconstitucionalidade em sede de ação civil pública significa um atraso

injustificado.

98 Art.474 Passada em julgado a sentença de mérito, reputar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e defesas, que a parte poderia opor assim ao acolhimento como à rejeição do pedido. 99 CABRAL, Antônio do Passo. A causa de pedir nas ações coletivas. In: Tutela Jurisdicional Coletiva. Coordenação: Fredie Didier Jr. e José Henrique Mouta. Bahia: Ed.Jus PODIVM. 2009.P.64.

70

Assim, como a ação direta de inconstitucionalidade não admite desistência, a alegação

de inconstitucionalidade na ação civil pública que trate de qualquer interesse metaindividual

deve ser tratada como um problema de interesse público, pois também se a lei não se contenta

com mera sentença terminativa em matéria de interesse metaindividual, não deve se contentar

com o efeito inter partes da declaração de inconstitucionalidade. Em outras palavras, o

sistema jurídico que tem como norma fundamental a Constituição não pode dar a ela mesma

um valor relativo, não pode tratar como uma questão disponível, uma vez que ela foi

fundamento de um interesse metaindividual.

A dicotomia existente entre efeito inter partes e erga omnes é insustentável quando se

tem por base uma ação civil pública relativa a interesse difuso, pois esta ficção jurídica,

segundo a qual a norma é inconstitucional apenas para as partes envolvidas no caso concreto e

constitucional para todas as outras, não tem sentido jurídico pleno em virtude de o titular

desta ação ser indeterminado da mesma forma que na ação direta de inconstitucionalidade.

Apenas sob o ponto de vista da competência e da legitimidade se pode defender o estado atual

desta matéria.

Para que ocorra a coletivização da causa de pedir relativa à questão constitucional, o

que está faltando é apenas alguns ajustes na legitimação daqueles que podem propor a ação

direta de inconstitucionalidade e na competência daqueles que podem julgá-la, pois, da forma

como está, pode haver usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal.

Outra saída para coletivização da causa de pedir pode partir do próprio STF como

intérprete constitucional da mesma forma que criou o efeito “pro futuro” à declaração de

incidental de inconstitucionalidade, com fundamento no interesse público como no seguinte

caso:

1. O artigo 29, inciso IV, da Constituição Federal exige que o número de Vereadores seja proporcional à população dos Municípios, observados os limites mínimos e máximos fixados pelas alíneas a, b e c. 2.(...) 3. Situação real e contemporânea em que Municípios menos populosos têm mais Vereadores do que outros com um número de habitantes várias vezes maior. A ausência de um parâmetro matemático rígido que delimite a ação dos legislativos Municipais implica evidente afronta ao postulado da isonomia. 4.(...) 5.(...). 6.(...)7. Efeitos. Princípio da segurança jurídica. Situação excepcional em que a declaração de nulidade, com seus normais efeitos ex tunc, resultaria em grave ameaça a todo o sistema legislativo vigente. Prevalência do interesse público para assegurar, em caráter de exceção, efeitos pro futuro à declaração incidental de inconstitucionalidade. Recurso extraordinário conhecido e, em parte, provido.100

100 Trecho da ementa do RE 266994/SP. Julgado pelo Pleno em 31 de março de 2004, publicado no DJ em 21 de maio de 2004, p.34.

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Assim, embora os legitimados a propor a ação civil pública não sejam necessariamente

os mesmos legitimados a propor a ação direta de inconstitucionalidade, a partir de uma

interpretação do STF seria possível a concessão de efeito erga omnes à decisão de

inconstitucionalidade, com fundamento no interesse público, segundo o qual a forma da ação

direta de inconstitucionalidade pode ceder à importância da decisão efetivada. Além disto,

esta forma de decidir se tornaria compatível com a atual configuração do recurso

extraordinário, que exige para seu conhecimento a repercussão geral.

No entanto, como se pode perceber no acórdão abaixo bem como em todos os outros

mencionados nesta monografia, o STF mantém a posição clássica de que só é cabível efeito

inter partes na decisão de inconstitucionalidade proferida em sede de ação civil pública:

Recurso extraordinário. Ação Civil Pública. Ministério Público. Legitimidade. 2. Acórdão que deu como inadequada a ação civil pública para declarar a inconstitucionalidade de ato normativo municipal. 3. Entendimento desta Corte no sentido de que "nas ações coletivas, não se nega, à evidência, também, a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade, incidenter tantum, de lei ou ato normativo federal ou local." 4. Reconhecida a legitimidade do Ministério Público, em qualquer instância, de acordo com a respectiva jurisdição, a propor ação civil pública(CF, arts. 127 e 129, III). 5. Recurso extraordinário conhecido e provido para que se prossiga na ação civil pública movida pelo Ministério Público.101

Nos recursos extraordinários, com a adoção da tese de mera publicidade da decisão

pelo Senado Federal, em que o STF se manifesta sobre a inconstitucionalidade da lei como

causa de pedir da ação civil pública seria possível a admissão do efeito erga omnes, pois não

haveria usurpação de sua competência como guardião da constituição, não violando o

princípio do juiz natural. Também não haveria problema de legitimidade se fosse adotado o

entendimento de que o cidadão tem direito difuso à constitucionalidade das leis.

Sem a adoção do entendimento de que a constitucionalidade é uma questão de

cidadania, inúmeras reformas haverão de ocorrer tanto na Carta Magna como na legislação

para a concessão de efeito erga omnes da causa de pedir relativa à questão de

constitucionalidade do ato normativo.

Por fim, a concessão de efeito erga omnes da declaração de inconstitucionalidade em

sede de ação civil pública deve ser um objetivo pelo qual devem lutar os cidadãos como

forma de resposta ao Governo que criou a ação declaratória de constitucionalidade como um

ótimo instrumento a barrar as ações civis públicas impetradas contra ele, pois, desta maneira,

101 Trecho da ementa do RE 227159/GO. Julgado pelo Pleno em 12 de março de 2002, publicado no DJ em 17 de maio de 2002, p.73.

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pode “virar o jogo”. Também seria benéfica ao ordenamento jurídico brasileiro em matéria de

ação civil pública, a aplicação de um sistema de controle de constitucionalidade, a partir de

casos concretos, pois o modelo de controle concentrado de constitucionalidade, feito a partir

de controvérsia virtual, não contribui para a criação de uma sociedade aberta de intérpretes da

Constituição, nos termos de Peter Häberle.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CABRAL, Antônio do Passo. A causa de pedir nas ações coletivas. In: Tutela Jurisdicional Coletiva. Coordenação: Fredie Didier Jr. e José Henrique Mouta. Bahia: Ed.Jus PODIVM. 2009. COSTA, Salmon Marcelino. Controle de Constitucionalidade em Ação Civil Pública. Monografia. UFU: 2007. DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 8ª.ed.São Paulo: Saraiva, 1995. Disponível em: http://www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/Pdf/pdf_162/R162-12.pdf. Acessado em 02 de março de 2008. LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito Processual do Trabalho. 4ª ed.São Paulo: LTr, 2006. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores: Lei 7.347/85 e legislação complementar. 10ª.ed.rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. MARTINS, Ives Gandra da Silva e MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Concentrado de Constitucionalidade. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano Moral Coletivo. São Paulo: Ltr, 2000. MENDES, Gilmar Ferreira. O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade: um clássico de mutação constitucional. MORAES, ALEXANDRE. Direito Constitucional. 13.ed.São Paulo: Atlas, 2003. PAGANELLA, Carlos Roberto Lima. As bases teóricas do Controle Difuso de Constitucionalidade e suas Competências Para Exame e Rejeição no Brasil. Dissertação de Mestrado. UFRS.