A Abolição do Trabalho e outros ensaios

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Bob Black

A Mentira no Estado...e em outros lugares

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Bob BlackPrecisamos de uma fenomenologia da mentira. Como essncia imanente e onipresente da nossa sociedade, a mentira no merece menos; e j hora de ela ter o que merece. Vamos ser honestos, sobre a desonestidade. Como eles nos enganam? Deixe-me contar as formas. Algumas formas de fraude , especialmente aquelas exercidas cara a cara, so altamente refinadas. Uma nvoa fina desce sobre pessoas usando qualquer uma de vrias expresses idiomticas compartilhadas, que supem estar dizendo algo quando esto apenas emitindo sinais , barulhos, que provocam reaes similares. Na verdade, no passam de rudo. A publicidade, o lenga-lenga New Age, a conversinha mole pra pegar mulher em barzinho e os jarges do marxismo so exemplos familiares. Muito mais expresso do que comunicao, na melhor das hipteses eles dizem menos do que parecem dizer, e a melhor das hipteses rara, nesses casos. A maioria das "lacunas" nas fitas de Nixon no esta faltando. A eptome da enganao consensual a autocontradio transformada em jargo especializado, por exemplo: Casamento aberto Governo revolucionrio Lei e ordem Direito ao trabalho Teologia da libertao Escolas livres ...e assim por diante No1

outro

extremo

(general

Jaruzelski1,

por

Primeiro-ministro da plonia de 1981 a 1985, chefe do Conselho de Estado de 1985 a 1989 e presidente de 1989 a 1990.

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Bob Blackexemplo) da engambelao sofisticada est a prevaricao pura e simples. Como cigarros, mas sem mensagens de advertncia, essas mentiras costumam vir em pacotes. Polticos e padres permitem os exemplos mais claros - exemplos aos quais no podemos nos igualar. O mundo dos negcios (existe outro?) tambm contm ocupaes inteiras de profissionais da falsidade, como vendedores e advogados. H ramos, como da energia nuclear e o da "defesa", que pressupem mais do que confundir de leve o consumidor comum: eles sapecam mentiras gigantescas sobre uma populao ludibriada por questo de necessidade profissional. Ainda sim, polticos so os mentirosos ideais. para mentir ( alm de dar ordens) que ns lhes pagamos, ou melhor, que eles se pagam com nossos impostos. A diplomacia, por exemplo, apenas, o engdo em traje de gala. Quando dizemos que algum esta sendo "diplomtico", queremos dizer que ele est contando mentiras para aquietar algum conflito. Mas na diplomacia os governos esto lidando com monoplios da violncia iguais a eles, portanto, mentem com mais cuidado do que em geral tm com as populaes que controlam. Polticos frequentemente so ambguos, mas raramente so sutis. Por que no deixar as sutilezas de lado, quando voc tem a maioria dos homens armados de um pas sob seu comando? Uma Grande Mentira original e exemplar, por exemplo, est embutida em quase toda referncia pblica ao "terrorismo". A verdadeira acepo da palavra o uso de violncia contra no-combatentes para fins polticos. Os esquadres da morte na Amrica Central ou a distribuio de "brinquedos" explosivos feitos por soviticos a crianas afegs, para que elas se mutilem, so exemplos. A idia impor a prpria vontade, no pela coero direta daqueles a serem controlados, mas infundindo neles o medo, isto , "terror". No h mal nenhum em ter uma palavra para denominar uma atividade que, sejam quais forem seus prs e contras,

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Bob Blackdifere em alguns aspectos da guerra, do crime, da desordem civil etc. So precisamente essas distines que os polticos e seus seguidores acadmicos e jornalsticos ocultam usando a palavra. Para eles, toda violncia poltica, vandalismo ou at um mero tumulto " terrorismo, a menos que os terroristas estejam usando uniforme. Governos , portanto, no praticam o terrorismo, haja o que houver, enquanto a violncia contra o Estado e sempre terrorismo, mesmo se consistir em ataques de uma fora militar contra outra. Os massacres conduzidos pelos salvadorenhos auxiliares dos EUA; os bombardeios israelenses de campos de refugiados palestinos ou o sequestro de refns libaneses; at o holocausto em Camboja e no Afeganisto, lamentados de maneira to hipcrita, ou os assassinatos em prises sul-africanas, por serem todos chacinas santificadas pelo Estado, no constituem atos terroristas. O terrorismo no tanto uma questo de destruio e morte quanto de correo indumentria. Soldados so terroristas que tiveram o cuidado de se vestir para o sucesso. Isso basta que os gerentes da opinio pblica durmam tranquilamente, embora no necessariamente tanto quanto o presidente Reagan, quando, apesar do bombardeio de pacientes psiquitricos em Granada e do fuzilamento de operrios cubanos da construo civil, ele relatou que, como de costume, dormira bem. notvel como esse esquema eficaz. Os outrora perseguidos sandinistas eram terroristas at o momento mgico em que suplantaram Somoza. O presidente Robert Mugabe era um "terrorista" negro at se transubstanciar em estadista Zimbabwiano. Quando xiitas tomam refns americanos, eles so terroristas. Quando israelenses tomam refns xiitas, trata-se de uma violao da lei internacional, talvez, motivo para uma crtica contida mas de modo algum terrorismo. Apesar de sua crueza hipcrita, a farsa do terrorismo tem sido bem aceita. O bonequinho dos comandos em ao ,

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Bob Blackaposentado por alguns anos depois da Guerra Que No Ousa Dizer Seu Nome, est de volta. Agora ele combate terroristas. Que as autoridades, como os autoritrios que as invejam, mentem sistematicamente no nenhuma novidade. Karl Kraus e George Orwell o disseram. Mas elas refinaram, ou ao menos aumentaram, seus embustes. Nossa complexa sociedade, baseada no consentimento por coero, criou modos de manipulao to avanados que a falsidade pode ser minimizada, at eliminada sem, que a verdade venha tona. O sistema simplesmente nos inunda com informaes to triviais que chega a merecer o nome desgastado de "dados", at que os poucos assuntos de importncia real sejam expulsos da mente. A escala e a estrutura da sociedade evitam que as pessoas experimentem imediatamente a ela ou umas s outras. O conhecimento fragmentado em ilhas artificiais e confiado a especialistas endgamos. No mundo acadmico, essas exclusividades merecem as conotaes sadomasoquistas da denominao que recebem, "disciplinas". A diviso social da mo-de-obra - estilhaando uma vida que deveria ser experimentada integralmente em "papis" padronizados a fora -, estendida a conscincia, se reproduz ao mesmo tempo que oculta sua passagem. Regras e papis nos tornam to intercambiveis quanto os bens cuja produo a nossa destruio. No admira que, como Karl Marx observou uma vez antes de se tornar um poltico, a nica linguagem compreensvel que temos a linguagem das nossas posses conversando entre si. Precisamos de outra. E precisamos de ocasies sem pressa e sem presses para um repouso sem palavras. A revoluo requer uma expresso idiomtica anti idiotia que expresse o at agora indizvel. O amor que no ousa dizer seu nome tem vantagens sobre o outro, caluniado por rtulos, cujo nome tomado em vo

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Bob Blacke nunca devolvido aos seus donos legtimos. A corrupo da linguagem promove a corrupo da vida. na verdade o seu pr-requisito. Um primeiro passo rumo paz e a liberdade impossvel agora, sob a sociedade de classes e sua arma, o Estado - chamar as coisas por seus verdadeiros nomes. Assim, a diferena entre os agentes do complexo militar-industrial-poltico-jornalistico e a arraia-mida que a mdia difama como "terroristas" apenas a diferena entre o atacado e o varejo. Guerra assassinato. Imposto furto. Conscrio escravido. Laisse-faire totalitarismo. E (diz Debord), "num mundo realmente de ponta-cabea, o verdadeiro um momento falso".

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Bob Black

Ser a Guerra contra a droga a Sade do Estado?

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Bob BlackNeste momento, nos Estados Unidos da Amrica, 2.700.000 pessoas esto presas (o maior ndice per capita do mundo). Todas as semanas so mais 1.600 as pessoas que entram na priso para alm das que saem. Mais de 40% dos presos esto l por crimes no-violentos relacionados com drogas. Nas polticas da maioria dos governos do mundo o combate droga assume crescente protagonismo. O seguinte artigo, escrito por Bob Black anarquista e advogado de profisso , lana uma viso diferente sobre este fenmeno. Ainda que baseada no contexto norte-americano, com ajustes de pormenor e de escala, a argumentao poder ser extrapolvel a outros pases. Ningum alguma vez fez observao mais importante em sete palavras do que Randolph Bourne: A guerra a sade do estado (Resek, 1964 :71). A guerra tem sido o motor principal da extenso do poder estatal na Europa ao longo de 1000 anos, e no s na Europa. A guerra alarga o estado e aumenta a sua riqueza e os seus poderes. Promove obedincia e justifica a represso sobre dissidentes, redefinida como deslealdade. Serena tenses sociais dirigindo-as para fora, para um estado inimigo que simultaneamente faz, claro, exatamente o mesmo com semelhantes consequncias. Da perspectiva do estado h s uma coisa errada nas guerras: elas terminam. Que as guerras terminam , em ltima anlise, mais importante do que o facto de elas terminarem em vitria ou derrota. Ocasionalmente a derrota tem como consequncia a destruio do estado, como aconteceu com os imprios Otomano e Austro-hngaro aps a Primeira Guerra Mundial, mas no frequentemente, e mesmo quando isso sucede, esses estados do origem a outros estados. O sistema estatal no s dura, como prevalece. Normalmente a guerra vale bem o risco no para os combatentes ou para os civis sofredores, claro, mas para o estado. A paz , mais uma vez, um outro assunto. A

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Bob Blackconsequncia imediata poder ser a recesso ou a depresso, como aps a Revoluo Americana ou a Primeira Guerra Mundial, cujas dificuldades so to mais humilhantes quando recaem sobre a populao que ganhou a guerra e que ingenuamente supe ir partilhar os frutos de uma vitria que pertence ao estado, no ao povo. O regime pode prolongar artificialmente o clima de represso e sacrifcio, como fizeram os Estado Unidos fabricando o Red Scare (Pnico Vermelho) aps a Primeira Grande Guerra, mas cedo o povo suplicaria por aquilo que Warren Harding lhe prometera, o regresso normalidade. Os vencidos, certo, raramente se saem to bem como o Japo ou a Alemanha ocupadas se saram aps a Segunda Guerra Mundial, mas mesmos os alemes inicialmente conheceram a fome. Houve pocas em que alguns estados estavam quase sempre em guerra, como acontecia na Roma republicana, cujas oligarquias, tal como Livy (1960) repetidamente demonstrou, estavam bem conscientes de como a guerra consistia numa vlvula de escape para dissipar conflitos de classe. As guerras coloniais servem bem este fim j que so travadas longe de casa e normalmente empreendidas contra antagonistas que, apesar de corajosos, so largamente inferiores em termos militares. O imprio britnico nos sculos dezoito e dezanove um bom exemplo. Congestionados com a riqueza do capitalismo comercial (em breve inimaginavelmente engrandecida pela revoluo industrial), seguros pela sua insularidade, escudados pela maior armada do mundo, com uma robusta e desumana classe dirigente, sbia da arte de governar, o estado britnico poderia suportar uma guerra quando dela precisasse. Existiam, no mercado, completos mercenrios, tais como os Hessianos. E os inimigos de ontem eram as tropas de hoje. Os irlandeses, repetidamente esmagados no sculo dezassete, eram uma fonte. Comeando em 1746, os ingleses

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Bob Blackaniquilariam a sociedade e a cultura dos escoceses, recrutando depois regimentos de entre os que sobreviveram. Viriam a repetir estes mtodos econmicos na ndia, em frica, em todo o lado. E depois existiam as fontes ingleses de dispensveis: os camponeses expulsos das terras pelo emparcelamento, e os pobres da cidade. No deixariam saudades, e havia sempre mais de onde estes vieram. Mas os tempos mudaram. Alguns estados possivelmente podem continuar, por algum tempo, agindo moda antiga talvez a Srvia, Coreia do Norte, Iraque mas os Estados Unidos no, no mnimo por duas razes: somos demasiado escrupulosos, e somos demasiado pobres. Demasiado escrupulosos no sentido em que, enquanto Saddam Hussein se vangloriou antes da segunda Guerra do Golfo*, a Amrica uma sociedade que no consegue tolerar 10.000 mortos. Ele tinha razo, embora isso no lhe tenha valido de nada j que foi incapaz de infligir 10000 ou mesmo 1000 mortos. Granada e Panam foram um divertimento, mas mesmo guerras de dois tostes como o Lbano e Somlia j no o foram, e ningum tem mais estmago para uma guerra no Haiti ou na Bsnia. Os americanos esto a perder rapidamente o seu gosto por guerras mediticas, para j no falar das verdadeiras guerras. E demasiado depauperados para qualquer guerra suficientemente longa para produzir um efeito durvel no ndice de popularidade de um qualquer presidente. O ataque ao Iraque foi o ponto de viragem. Como habilidosamente a manipulao das massas ocorreu, os americanos somente foram para a frente com a guerra na condio de que os aliados pagassem. Mesmo mentes pouco capacitadas esto conscientes que a parte de leo dos seus impostos federais vai para pagar dvidas de guerra e gastos militares dos quais eles nunca colhero quaisquer benefcios. A contrapartida para as vidas numa fotognica guerra de alta tecnologia dinheiro. Custa mais, imensamente mais, do que alguma

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Bob Blackvez a guerra custou. Mas os Estados Unidos no tm mais, imensamente mais riqueza do que alguma vez tiveram. Tm progressivamente menos e menos e menos. Mesmo com as foras macias da ABC, NBC, CBS, CNN e todo o resto dos grandes media por detrs (Black, 1992), e apesar de uma esmagadora vitria que deveu tanto sorte como ao engenho, George Bush tornou-se o primeiro presidente americano a ganhar uma guerra e a perder uma eleio para um fumador de erva e mulherengo que no cumpriu o servio militar. Deste modo o regime apanhado no que os marxistas costumavam chamar de contradio. Precisa de guerra, j que a guerra a sade do estado, mas (com efmeras excepes ocasionais) no consegue suportar tanto ganhar como perder guerras. Mas que tipo de guerra possvel travar, com um custo tolervel, que evite esta dupla armadilha uma guerra que no possa ser ganha ou perdida? A Guerra Contra a Droga. Que no uma verdadeira guerra, claro, mas apenas aquilo que os alemes chamariam um sitzkrieg, uma falsa guerra. Antes venderam-nos a guerra para acabar com todas as guerras. Agora vendem-nos uma guerra interminvel. Tal a utilidade, para o estado, da Guerra Contra a Droga. No pode ser perdida, j que no existe um inimigo a derrotar. E por incontveis razes no pode ser ganha. O governo no consegue interditar mais do que uma fraco da cocana, herona, marijuana e outras drogas que, ao ilegaliz-las, o governo fez subir o seu preo at ao ponto de valer a pena trafic-las. E alguma droga, tal como a marijuana e o pio, facilmente produzida dentro dos Estados Unidos. Dezenas de milhes de americanos j se entregaram ao consumo de drogas ilegais, incluindo o Presidente. Os filhos no veem qualquer razo para no experimentar aquilo que os pais j consumiram, independentemente daquilo que os pais agora preguem. As crianas tendem a no prestar

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Bob Blackateno aos pais quando sabem que estes esto a mentir. Para alm disso, h sempre o lcool. E nos subrbios, tal como nos guetos, ilegalizar as drogas fez disparar o seu preo at nveis to altos que prendendo vendedores no tem qualquer efeito no lado da oferta. Tirar um vendedor de droga das ruas apenas abre uma vaga para outro empresrio. Na verdade, prtica corrente dos vendedores fazer com que os seus competidores sejam presos, com o fim de ganharem uma parcela adicional de competitividade. Mas no faz mais diferena quem trafica a droga ou quem dirige o estado. De facto, at podem ser as mesmas pessoas! A Guerra Contra a Droga a sade do estado. Porque apenas uma falsa guerra, a Guerra Contra a Droga fiscalmente comportvel. O governo pode gastar tanto mais ou tanto menos quanto desejar, j que o resultado ser sempre o mesmo. Mesmo os custos para o contribuinte so disfarados, divididos como so por governos federais, regionais e locais, e confundidos com financiamento ao sistema de justia. A maior despesa individual, as prises, aquela que a maior parte das pessoas erradamente interpretam como a melhor coisa que o governo faz por elas. Suportar este erro um equvoco acerca sobre qual o produto do sistema de justia criminal. No o controlo do crime, se que tal pudesse ser medido com alguma exatido, no h qualquer prova de que a imposio da lei em geral reduza o crime (Jacob, 1984). O produto so ndices de criminalidade (Black, 1970), que so uma funo, no do nvel de criminalidade, mas do nvel de imposio da lei. Da que as autoridades possam fabricar uma onda de criminalidade se quiserem mais dinheiro, ou abrandar o controlo se quiserem obter algum crdito por fazerem exatamente o oposto. Tirando eles prprios e os seus superiores hierrquicos, os nicos beneficirios daqueles 100 000 polcias adicionais que o Presidente Clinton quer colocar nas ruas sero os vendedores de donuts.

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Bob BlackPara alm disto, at um certo ponto a Guerra Contra a Droga paga-se a si mesma. Tal como os exrcitos que costumavam subsistir largamente atravs do terreno, pilhando as zonas que atravessavam, tambm os guerreiros da droga amontoam os seus cofres com o saque de bens confiscados. E isto s a nvel formal e legal. margem da lei, claro que a polcia sempre confiscou muito mais droga do que aquela que chega sala de provas. improvvel que os vendedores ou os drogados protestem (o cenrio clssico: um polcia faz uma busca ilegal na rua. Ele encontra algo. Pergunta, com cortesia, Isto seu? e a resposta sempre No). Alguma droga a polcia vende por sua conta. Alguma consomem-na eles prprios. E alguma utilizam para tramar (colocar drogas na posse de suspeitos vendedores ou adicionar mais droga quela que foi encontrada para converter um delito menor num crime grave) (Knapp Commission, 1973). Ainda de uma outra maneira, a Guerra Contra a Droga oferece um dos benefcios de uma verdadeira guerra sem os seus custos e riscos. Toda a verdadeira guerra um holocausto de liberdades cvicas (Murphy, 73). Mesmo ao nvel formal e legal, a segurana nacional um chamado interesse obrigatrio do estado tende a impor-se aos direitos fundamentais, pelo menos at que o tiroteio pare. Entretanto vigilantes patriticos levam a cabo as castraes, os linchamentos, e os incndios o trabalho demasiado sujo para o estado fazer mesmo numa suposta emergncia de guerra, mas no demasiado sujo para o estado no fazer vista grossa depois. Os Estados Unidos durante a Primeira Guerra Mundial e durante o Red Scare um exemplo; a Itlia que os liberais deixaram que os fascistas tomassem, depois de os deixarem, margem da lei, esmagar socialistas, comunistas e anarquistas, outro. Mas a paz regressa e o terreno legal perdido , na sua grande parte, recuperado ou mais terreno ainda retirado. Uma vez que o estado tenha demolido irreparavelmente a oposio radical,

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Bob Blackpode muito bem repor direitos constitucionais para os impotentes sobreviventes e gozar o calor da sua prpria glria anunciada, desfilando a sua tolerncia quando esta j no fizer qualquer diferena. A falsa guerra muito mais eficaz. No pode ser conduzida sem massivas invases de propriedade e limitaes da liberdade. O mais importante direito individual implicado, e ameaado pela Guerra Contra Droga a Quarta Emenda [da Constituio], que probe buscas e apreenses injustificadas. Este corpo legal efetivamente comeou durante a Proibio e hoje , como afirma Fred Cohen, conduzido pelas drogas. Os direitos de qualquer pessoa so definidos pelos direitos que a Justia de m vontade concede aos delinquentes de casos de droga. Outros direitos so, tambm, reduzidos. Sob a legislao de confisco, propriedade individual retirada sem um processo ou justa compensao. Aplicada a nativos americanos e outros, a legislao sobre droga interfere com a liberdade de religio; como a prtica comum de forar condutores embriagados a participar em reabilitaes para os doutrinar com dogmas religiosos dos Alcolicos Annimos. At a campanha contra a posse de armas uma consequncia indireta da Guerra Contra a Droga. A proibio tornou a droga uma comodidade muito valiosa: no interior das cidades, de longe uma das mais valiosas comodidades. Entretanto, os toxicodependentes roubam para suportar o seu vcio. O resultado uma corrida ao armamento e um clamor pelo controlo das armas. Uma proibio conduz a outra. Para o criminoso, o ltimo desafio o crime perfeito. Para o estado a legislao perfeita. Ser a proibio? Talvez no. A proibio da droga atualmente muito mais popular do que a proibio do lcool alguma vez o foi, mas dentro da memria viva, a descriminalizao foi um sria possibilidade. Poder tornar-se assim novamente se

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Bob Blacka histeria anti-droga continuar a crescer at chegar a um ponto impossvel de suportar. E provavelmente crescer, porque a Guerra Contra a Droga foi institucionalizada. Vrias agncias e organizaes tm direitos adquiridos sobre a sua ilimitada expanso, embora isso seja, no s impossvel, como destituiria o estado da grande vantagem da Guerra Contra a Droga sobre a verdadeira guerra: a sua previsibilidade e exequibilidade. medida que alguns rgos governamentais crescem e crescem, sobra menos e menos para os outros. J que a vitria, tal como a derrota impossvel, no existiro nunca dividendos de paz para repartir. O estado est, provavelmente, j a gastar mais fundos da sociedade civil do que seria consentneo com os seus interesses a longo prazo. Se mais e mais for tirado, o parasita matar o hospedeiro ou o hospedeiro matar o parasita. Eventualmente o estado poder sucumbir ao seu prprio sucesso. O estado gigantesco. E burocrtico. Isto significa que est intrinsecamente subdividido por funes (ou por aquilo que era inicialmente considerada uma diviso do operariado por funes: de facto, jurisdio sobreposta e conflituosa comum e tende a crescer com o tempo). Mesmo quando a mo esquerda sabe o que a mo direita faz, pode no ser capaz de fazer nada acerca disso. A cooperao entre agncias torna-se mais difcil quando que se torna mais frequente e mais necessria. A complexidade da aco em conjunto frusta a ao ou o seu objectivo (Pressman & Wildausky, 1984). muito difcil administrativamente reduzir o oramento de um gabinete, mas fcil aument-lo. Os gabinetes resistem ferozmente aos oramentos zerobased isto , partindo do zero, tem que haver uma rejustificao anual de cada linha do oramento apresentado como se tratasse do reinvento da roda. E difcil as altas autoridades identificarem reas para reduo de custos, se quiserem apenas, j que a prpria raison dtre da organizao burocrtica a deferncia

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Bob Blackpara com os peritos institucionais. A maneira fcil tomar o anterior oramento como o presumvel prximo; so apenas desvios do status quo, no o status quo em si, que necessitam de justificao. O gabinete, preenchido com supostos peritos, ele prprio a fonte usual de justificao para desvios, e os desvios so sempre na direco de mais dinheiro e mais poder para o gabinete. O que vai para cada gabinete vai para todos. Da o governo cresce. Referindo a forma como a competio entre trabalhadores faz descer os salrios para todos eles, Fredy Perlman (1969) observou: A prtica diria de todos anula os objetivos de cada um. Tal como acontece com a competio entre agncias pelo dinheiro dos impostos. As implicaes a longo termo da Guerra Contra a Droga so, para o estado, ameaadoras. Quanto mais o estado estende o seu controlo sobre a sociedade, menos controlo ele tem sobre si mesmo, quanto mais o estado absorve a sociedade, mais fraco como entidade responsvel por uma colectividade ele se torna. Ele desintegrase num pluralismo autoritrio remanescente do feudalismo, ainda que carecendo do seu charme romntico. Algumas agncias engordam custa da Guerra Contra a Droga, mas muitas no. As que engordam so as primeiras a seguirem os seus prprios caminhos. A procuradora-geral Janet Reno no teve controlo sobre o Bureau of Alcohol, Tobacco and Firearms quando este exterminou os Branch Davidians para ganhar o que equivalia a nada mais do que um guerra de gangs: mas ela tomou a responsabilidade. A Drug Enforcement Administration igualmente to independente como o FBI de Hoover e a CIA de qualquer um. Para o estado, outra consequncia adversa inevitvel da Guerra Contra a Droga a corrupo (Sisk, 1982). No que a corrupo seja necessariamente uma coisa m para o estado. At certo ponto, as extorses policiais a vendedores de droga, chulos e outros

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Bob Blackempresrios extralegais beneficiam o estado de diversas formas. Quanto mais os polcias recolherem em privilgios e confiscos, menos tm que ser pagos em salrio. Os polcias cujos superiores sabem que eles esto envolvidos em extorso (como decerto sabem j que eles prprios a isso se dedicam tambm) (Chambliss, 1988) fazem vista grossa a no ser que, por alguma razo, tenham necessidade de se livrar de um polcia em particular. A corrupo , pois, uma ferramenta de gesto. Mas alguns polcias tornam-se demasiado gananciosos e vo longe de mais. A maioria so comedores de erva (subornados) que aceitam aquilo que lhes aparecer, mas alguns so comedores de carne (extorsionrios) corrupo ativa que ativamente buscam ou montam oportunidades de corrupo, como os detectives da Special Investigative Unit retratados no filme Serpico (Daley, 1978; Knapp Commission, 1973). Os comedores de erva do cobertura aos comedores de carne (o cdigo de silncio) j que todos tm algo a esconder. At recentemente, os administradores de polcia e os seus aliados acadmicos julgaram poder manter a corrupo sob controlo atravs de vrias reformas institucionais, a maioria das quais foram inicialmente propostas pela Comisso Knapp (Sherman, 1978). Talvez as reformas resultassem, excepto numa coisa: na Guerra Contra a Droga. A corrupo est de regresso, mesmo na NYPD* reformada por Knapp (Dombrink, 1988). J que as penalizaes so mais severas e os lucros do trfico de droga so mais altos, a proteo que a polcia vende dita um preo maior (Sisk, 1982). A corrupo motivada pela droga o sector em maior crescimento nos abusos de conduta da polcia (Carter, 1990). Para o estado, o problema da corrupo descontrolada que ela no pode ser confinada ao espao onde os benefcios excedem os custos. O estado necessita da polcia para um bocadinho de imposio seletiva da lei e, mais importante que isso, para controlo

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Bob Blacksocial logo que a situao exija furar uma greve, evacuar squatters, suprimir tumultos, reprimir dissidentes e manter o trfego a circular. Mesmo nestes tempos sofisticados, em que a manipulao a estratgia de controlo mais em voga, frequentemente no h substituto para a arma e o cassetete. Mas os polcias que impem leis contra a droga ficam indisponveis para impor outras leis. Tem havido um expanso tremenda no trabalho de polcias paisana nos anos recentes (Marx, 1988), inevitavelmente acompanhada de mais corrupo (Girodo, 1991). Os polcias, como trabalhadores, so particularmente difceis de gerir pois esto normalmente ss, no controlados. Os detectives, especialmente, esto numa posio de poderem ser reservados acerca das suas atividades (Skolnick, 1975; Daley, 1978), e mais controlo do trfico de droga significa mais trabalho paisana e de detective. Estes polcias estabelecem a sua prpria agenda. Os escndalos de corrupo desmoralizam a polcia a ilegitimam o estado. A maioria das pessoas obedece lei na maior parte do tempo, no porque receiem ser punidas se no o fizerem, mas porque acreditam no sistema. Assim que deixem de acreditar, deixaro de obedecer no s s leis que no importam (como no consuma drogas) como tambm quelas que importam (como pague os seus impostos). E, ironicamente, operaes anticorrupo comprometem a eficcia policial em outras reas (Kornblum, 1976). O estado adquiriu um peso to grande que esse peso comea a quebrar as suas fundaes. No o tipo de elefantismo que pode ser aliviado atravs da privatizao. No importa quem recolhe o lixo. O que importa quem tem as armas. A essncia da soberania os meios para impor a ordem est deteriorada. O cancro inopervel. Os estado pode bem morrer de uma overdose.

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Bob Black

Tecnofilia, uma Doena Infantil

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Bob BlackSe o patriotismo , como disse Samuel Johnson, o ultimo refugio de um canalha, o cientificismo desde j o primeiro. a nica ideologia que, agora em verso ciberidiota, projeta a aparncia e a sensao de futuridade em quanto conserva atitudes e valores essenciais para manter as coisas exatamente como esto. Continue zapeando! A afirmao abstrata de "mudana" conservadora, no progressista. Ela privilegia toda mudana , aparente ou real, de estilo ou substancia, reacionrio ou revolucionrio. Quanto mais as coisas mudam - em especial as que mudam - , mas elas continuam iguais. Mais rpido, mais rpido, Speed Racer! ( mas continue andando em crculos). Pela mesma razo , privilegiar o progresso tambm algo conservador. O progresso a noo de que a mudana tende ao aprimoramento, e de que o aprimoramento tende a ser irreversvel. Contratempos locais acontece quando a mudana interrompida ou desviada ( "o ter", "flogisto" ), mas a tendncia secular avante ( e secular). Nada das muito errado por muito tempo , ento nunca ha um motivo importante para no continuar fazendo o que se esta fazendo. Vai dar tudo certo. Como um jurista j disse em outro (porm assombrosamente similar) contexto, as rodas da justia giram devagar, mas moem direitinho. Como o seu pseudnimo sugere Walter Alter um alto sacerdote consagrado do progresso ( mas ser que ele sabe que , na Alemanha, "alter " significa "mais velho"?). Ele desdenha o passado para melhor perpetulo. Seu jeito de escrever s em minsculas - que modernista! - era inovador quando e. e. cummings o lanou h oitenta anos. Talvez o prximo avano de Alter seja abandonar a pontuao, apenas algumas dcadas depois que James Joyce o fez. E 3 mil anos depois que os romanos fizeram ambas as coisas, o ritmo do progresso pode ser estonteante. Para Alter , o futuro um programa que Karl Marx

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Bob Blacke Jlio Verne mapearam num sculo anterior. A evoluo unilinear, impelida pela tecnologia e, por alguma razo estranha, moralmente imperativa. essas ideias j eram velhas quando Herbert Spencer e Karl Marx as formularam. O positivismo de Alter no implica nenhum melhoramento em relao ao de Conte, que se desmascarou ao fundar um igreja positivista. e se o materialismo mecnico , na verdade, uma regresso do marxismo para o estalinismo. como fico cientfica ruim, s que menos divertido, o alterismo uma ideologia do sculo XIX declamada no jargo do sculo XXI. (Um dos poucos fatos sobre o futuro a um s tempo certo e reconfortante que ele no falar como Walter Alter, no mais do que o presente fala como Hugo Gernsback. ) Alter no escreveu uma s palavra da qual Newt Gingrish ou Walt Disney, descongelado, discordaria. Os "engenheiros sociais de gabinete" esto do seu lado; ou melhor, ele esta do lado deles. Eles no pensam como ele - algo que mal pode ser chamado de pensamento mas querem que pensemos como ele. O nico motivo pelo qual no incluem na sua folha de pagamento : por que lhe pagar se ele est disposto a fazer isso de graa? "A sobrecarga de informaes relativa a capacidade de cada um " entoa Alter. certamente relativa dele. Ele salta da tecnologia antropologia historia e vice-versa, como os tomos do modelo do universo " mesa de bilhar" newtoniano, no qual os cientistas , diferentemente de Alter , no acreditam mais. A vastido de sua ignorncia assombra , e o mundo perplexo, pode apenas perguntar, com Groucho Marx : "H mais alguma coisa sobre a qual voc no saiba absolutamente nada?" Se o sindicalismo (como um tirador de sarro definiu) fascismo sem entusiasmo, o alterismo empirismo sem provas. Ele exibe a toga da razo sem citar nenhum motivo para faz-lo. Espera que aceitamos sua rejeio da f por pura f. Afirma ferozmente que fatos so fatos , e no menciona nenhum. Alter esta nervoso demais para ser articulado,

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Bob Blackmas pelo menos ofereceu uma lista de inimigos - embora como o senador McCarthy, prefira lanar denuncias vagamente categricas de dar nomes aos bois. No topo da lista esto os "antropo-romnticos" "primitivonostlgicos", que tambm so, ou esto ajudando e consolando, os "antiautoritrios" da "anarco-esquerda". Para o leitor leigo, essas palavras compostas misteriosas so tentativas calculadas de inspirar um vago receio, sem comunicar nenhuma informao a respeito de quem esteja denominando exceto que so lacaios dos engenheiros sociais do gabinete e inimigo da civilizao. Mas porque os engenheiros sociais de gabinete iriam querer destruir a civilizao na qual prosperam custa da maioria de ns, o resto? Se religio significa reverencia por algo no entendido, Alter fervorosamente religioso. Ele confunde cincia com conhecimento codificado (isso era a historia natural, to decrpita quanto a frenologia h muito tempo). A cincia uma pratica social com mtodos distintos, no uma acumulao de "fatos" oficialmente verificados. No existem fatos puros, fora de contexto. Os fatos so sempre relativos a um contexto. Os fatos cientficos so relativos a uma teoria ou um paradigma ( isto , a um contexto formalizado). Os eltrons so partculas ou so ondas? Nem uma coisa nem outra, e ambas, de acordo com Niels Bohr - depende de para onde voc estiver olhando e por qu. Os postulados e teoremas da geometria euclidiana so "verdadeiros"? Eles correspondem muito bem a boa parte do universo fsico, mas Einstein achava que a geometria noeuclidiana de Riemann descrevia melhor fenmenos cruciais como a gravitao e a deflexo dos raios luminosos. Cada geometria internamente coerente; cada uma incoerente com a outra. Nenhum fato ou fatos concebveis poderiam resolver essa discrepncia. Por mais que desejassem transcender a incoerncia, os fsicos aprenderam a conviver com as incomensurveis teorias da relatividade e da fsica quntica porque ambas

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Bob Black(quase) funcionam. A fsica newtoniana ainda bastante eficaz dentro do sistema solar, onde h alguns "fatos" (como a precesso de Mercrio) no conformes com a relatividade einsteiniana, mas esta ltima , certamente, a teoria preferida para aplicao ao resto do universo. Dizer que uma verdadeira e outra falsa como dizer que um Toyota verdadeiro e um modelo T falso. Teorias criam fatos - e os destroem. A cincia simultaneamente, e necessariamente, progressista e regressista. Diferentemente de Walter Alter, a cincia no privilegia uma ou outra direo. No existe um universo passivo, preexistente, "organizado, padronizado , previsto e palpvel" esperando por nosso toque de Prometeu. At o ponto onde o universo ordenado - um ponto que, at onde sabemos, talvez nem fique muito longe - ns que o tornamos ordenado. No apenas no sentido bvio de que formamos famlias e construmos cidades , ordenando nossos prprios meios de vida, mas meramente pelo poder padronizador da percepo, pelo qual resolvemos um amontoado de dados sensoriais numa "tabela" na qual, "na verdade", h apenas uma multido de partculas nfimas e principalmente espao vazio. Alter esbraveja contra a obnose, seu malformado neologismo que significaria ignorar o bvio. Mas ignorar o bvio , "obviamente", o pr-requisito da cincia. Como diz S.F.C. Milson, " as coisas bvias no podem estar levemente erradas: como o movimento do Sol, elas s podem estar fundamentalmente erradas". bvio que o Sol gira ao redor da Terra. bvio que a terra plana. bvio que a mesa diante de mim slida, e no como os msticos da fsica atmica alegam , quase que apenas um espao vazio. bvio que partculas no podem tambm ser ondas. bvio que os caadores-coletores trabalham mais do que os assalariados contemporneos. bvio que a pena de morte diminui a criminalidade. Mas nada mais bvio, se algo ainda o , do que o fato de que todas essas afirmaes so falsas. OU seja, elas no podem ser

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Bob Blackqualificadas como "fatos" dentro de nenhuma estrutura que at seus prprios defensores reconheam como sua. Der fato, todos os defensores (j que tais opinies ainda tm alguns) defendem de forma estridente, como Alter, uma estrutura positivista-emprica na qual sua falsidade patente. Portanto, para entrar em detalhes, avancemos para o passado. Alter espuma contra o que chama "apego romntico a uma existncia 'mais simples' ,' mais pura' no passado, ou em sociedades primitivas ou 'orientais' contemporneas". Espera a. Ningum, que eu saiba, est misturando sociedades primitivas passadas ou presentes com sociedades "orientais" (presumivelmente as civilizaes da China e da ndia e suas ramificaes no Japo, Coreia, Birmnia, Sudeste da sia, Indonsia, e por ai vai). Tais sociedades"orientais" se parecem muito com a sociedade que os "anarcoesquerdistas" querem derrubar - a nossa - , do que com qualquer sociedade primitiva. Ambas tm Estado, mercado, estratificao social e religio controlada por sacerdotes, coisas ausentes em todas as sociedades grupais extrativistas e em muitas sociedades tribais. Se sociedades primitivas e orientais tm caractersticas comuns de qualquer importncia para sua argumentao ( se ele tivesse se dado ao trabalho de argumentar), Alter no as identifica. Para Alter, uma "realidade implacvel que a direo inata de qualquer cultura senciente, no sentido de ampliar o seu bem-estar, ser sempre aumentar a aplicao de extenses s ferramentas disponveis". Culturas no so "sencientes"; isso reificla e mistificar sua natureza. Tampouco elas tm necessariamente qualquer "direo inata". Como ex(ou cripto)marxista - ele um ex-(?) seguidor de Lydon LaRouche em sua fase stalinista, da Congregao Nacional de Comits trabalhistas - Alter no tem desculpas para desconhecer isso. Embora Marx estivesse interessado principalmente em um modo de produo - o capitalismo - o qual, argumentava, tinha uma direo inata, ele tambm identificou um "modo der produo

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Bob Blackasitico" que no a tinha; Karl Wittfogel elaborou essa percepo em seu Oriental Despotismo. Nosso visionrio profetiza que "se esse aumento cessar, a cultura morrer". Isso ns sabemos que falso. Se Alter esta correto, o regresso de uma sociedade a uma tecnologia amais simples um ato inevitavelmente suicida. Antroplogos discordam. Para Alter, uma questo de f que a agricultura seja tecnologicamente superior ao extrativismo. Mas os ancestrais dos ndios das plancies eram agricultores sedentrios ou semi-sedentrios que abandonaram aquele estilo de vida porque a chegada do cavalo tornou possvel (no necessria) a opo de uma vida mais simples de caa que eles devem ter considerado qualitativamente superior. Os Kpelle, da Libria, se recusam a mudar do cultivo seco para o cultivo inundado de arroz, seu principal alimento, como os "especialistas" em desenvolvimento econmico recomendam. Os Kpelle tm plena conscincia de que o cultivo inundado (irrigado) de arroz muito mais produtivo do que o seco. Mas o cultivo seco conduzido comunalmente, com cantoria, festa e bebidas, de uma forma impossvel no cultivo inundado - e um trabalho muito mais fcil, numa "estao de trabalho" muito mais sadia e confortvel. Se a cultura deles "morrer" em decorrncia dessa escolha eminentemente ponderada, ser um assassinato, no um suicdio. Se progresso, para Alter, significa exterminar pessoas porque ns podemos e porque elas so diferentes, ele pode pegar seu progresso e enfiar naquele lugar. Defendendo da cincia ele a difama. At a histria da civilizao ocidental (a nica que nosso futurista etnocntrico leva a srio) contradiz a teoria de Alter da vontade de potncia tecnolgica. Por bem mais de mil Anos, a civilizao clssica floresceu sem nenhuma "aplicao de extenses s ferramentas existentes" significativa. At mesmo quando a cincia helnica ou romana avanava, isso no se estendia, normalmente , sua tecnologia. Ela criou o motor a

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Bob Blackvapor e em seguida esqueceu o brinquedinho, como a China (outro exemplo contrrio ao alterismo) inventou a plvora e a usava para espantar os demnios provavelmente seu melhor uso. Claro que as sociedades antigas chegaram ai fim , mas todas chegam: como disse Keynes, a longo prazo estaremos todos mortos. E eu tenho minhas suspeitas quanto expresso "extenso a ferramenta". No tem algo a ver com o produto anunciado nas contracapas de revistas porns? Alter deve estar mentindo, no apenas enganando, quando reitera o mito hobbesiano de que "a vida primitiva curta e brutal". Ele no poderia nem mesmo saber da existncia daqueles que rotula como antroporomnticos sem saber tambm que eles demonstraram o contrrio disso, convencendo seus colegas cientistas. A palavra " primitivo" , para muitos fins - inclusive este-, vaga e generalizante demais para ser til. Pode denominar desde as poucas sociedades sobreviventes baseadas na caa e no extrativismo, at os camponeses de minorias tnicas em vias de modernizao nos Estados do Terceiro Mundo (como os ndios do Mxico e do Peru). A expectativa de vida um exemplo. Alter quer que seus leitores suponham que a longevidade uma funo da complexidade tecnolgica e social. No , e tampouco o oposto disso. Como Richard Borshay Lee verificou, os Kung San ("homens da floresta"), de Botsuana, tm uma estrutura populacional mais prxima daquela dos Estados Unidos que daquela de um pas tpico do Terceiro Mundo, com sua maioria camponesa. A vida dos extrativistas no to curta assim. S recentemente a expectativa de vida mdia das naes metropolitanas privilegiadas ultrapassou os ndices prhistricos. Quanto a vida dos primitivos ser "brutal", trata-se obviamente de um juzo moral, no cientfico, se comparada dos habitantes de Detroit, por exemplo. Se a brutalidade se refere a qualidade de vida , os extrativistas, como Marshall Sahlins demonstrou em "As

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Bob Blackprimeiras sociedades da afluncia", trabalham muito menos e tm muito mais vida social e festas do que ns modernos. Nenhum deles recebe ordens de uma chefe babaca, nem levanta antes do meio-dia, nem trabalha cinco dias por semana, nem... - bem, j deu pra entender. Alter observa, com perversidade, que "bem poucas sociedades aborgines vm sendo criadas e adotadas por aqueles que a elogiam" No diga. E dai? Tais sociedades nunca foram criadas, elas evoluram. As mesmas foras industriais e capitalistas que esto extinguindo as sociedades aborgines existentes contrapem obstculos poderosos formao de outras. O que ns deploramos justamente termos perdido a capacidade de recri-las. Alter s est animando a torcida dos porcos. Como eu disse, eles at lhe pagariam (mas no muito bem, provavelmente), se ele j no estivesse fazendo isso de graa. Admita-se que antroplogos e "anarcoesquerdistas" ocasionais romantizam, sob certos aspectos, a vida primitiva de vez em quando, mas nada que se compare escala em que Alter falsifica dados etnogrficos. Richard Borshay Lee e Marshall Sahlins representam hoje a sabedoria convencional em relao a sociedades baseadas na caa e no extrativismo. Eles no romantizam nada. No precisam. Um romntico ou uma romntica alegaria que a sociedade primitiva que ele ou ela estuda virtualmente livre de conflitos e violncia, como Elizabeth Marshall Thomas fez em seu livro sobre os San/Homens da Floresta, The Harmless People. As observaes posteriores e mais minuciosas de Lee estabeleceram ndices de homicdio per capita entre os San no muito abaixo daqueles dos Estados Unidos contemporneos. Sahlins deixou claro que o preo de uma vida folgada e com abundncia de alimentos, para os caadores-coletores, era a impossibilidade de acumular qualquer propriedade que no deixe de ser um grande sacrifcio, um juzo de valor, no uma descoberta cientifica - e Alter to cego para essa

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Bob Blackdistino quanto qualquer monge medieval. Alter praticamente s faz referncia especfica a Margaret Mead, "uma sectria semi-analfabeta especializada em 'alterar amostras' quando elas no s encaixam na sua doutrina preexistente" (jamais especificada). Mead tinha pouca prtica antes de sua primeira incurso no trabalho de campo em Samoa, mas chamar a autora de vrios livros bem escritos e de sucesso de "semi-analfabeta" fica aqum at do semianalfabetismo, burrice e pronto. Eu quase diria que Alter um sectrio semi-analfabeto que altera os fatos, mas na verdade ele um sectrio semi-analfabeto que ignora os fatos. As principais concluses de Mead foram que os samoanos eram sexualmente liberais e, em relao aos americanos do Entre-guerras, mais cooperativos do que competitivos. Mead - pupila bissexual da antroploga lsbica Ruth Benedict - pode ter projetado seu prprio liberalismo sexual nos nativos. Mas etnografias modernas (como a de Mangaia, de Robert Suggs), bem como fontes histricas da poca do capito Cook em diante, confirmam que a maioria das sociedades insulares do Pacfico estava realmente mais prxima do idlio hedonista relaxado que Mead pensou ter visto em Samoa do que de algum show de horrores hobbesiano. Alter vocifera contra o romantismo, a subjetividade, o misticismo - os suspeitos de sempre - , mas no quer encarar os fatos reproduzidos regularmente sobre a sociedade primitiva. Ele est de contradizendo. Se as descobertas de Mead relativas sexualidade e ao amadurecimento foram revisadas por trabalhos de campo posteriores, sua caracterizao da competio e da cooperao nas sociedades que ela estudou no o foram. Por qualquer padro, nossa sociedade moderna capitalista e de Estado o que estatsticos chama de desvio - uma mutao, uma aberrao, um monstro - a uma distncia extraordinria da maioria das observaes, do tipo que joga a varincia longe da variao. No

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Bob Blackexistem "padres duplos fazendo crticas extremas contra todos os fatores burgueses [sic], capitalistas, espetaculares, de mercado" - o distanciamento apenas to extremo quanto o distanciamento da comunidade, como foi experimentado pela maioria das sociedades de homindeos nos ltimos milhes de anos. como se Alter quisesse dizer que uma rgua tem preconceitos por que ela estabelece que objetos de um metro ou mais so mais longos do que aqueles que tm menos de um metro. Se isso cincia, prefiro o misticismo ou a morte. Alter insinua , sem demonstrar, que Mead falsificou provas. Mesmo que ela tenha falsificado, sabendo que muitos cientistas ilustres, entre eles Gallileu e Gregor Mendel, falsificaram ou embelezaram relatos de suas experincias para substanciar concluses que agora so universalmente aceitas. Mendel, para piorar a situao, era um monge catlico, um "mstico", de acordo com a demonologia de Alter, e no entanto fundou a cincia da gentica. Alter, longe de fundar uma cincia, nem mesmo d a indicao de comear a entender qualquer uma delas. Os mritos e demritos da etnografia de Margaret Mead so menos do que perifricos polmica de Alter. No foi Mead quem descobriu e relatou que caadorescoletores trabalham muito menos do que ns. H algo muito fora de controle num manaco por controle que insiste em taxar de fascistas ideias que no aceita ou entende. Nada que eu diga para denunciar esse tipo de oportunismo masturbatrio ser forte demais. "Fascista" no , como Alter supe, um nome de uso geral, sinnimo de "mim no gosta". Uma vez escrevi um ensaio, "Feminism as Fascism", que ocasionou grande indignao, embora continue bastante vlido. Mas eu no me incomodei, porque tinha sido bastante cuidadoso e especfico ao identificar os paralelos precisos entre fascismo e o chamado feminismo(radical) - cerca de meia dzia. So meia dzia de analogias a mais do que aquelas que Alter identifica entre o Fascismo e o anarco-

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Bob Blackesquerdismo ou a primato-nostalgia. Os nicos anarcoesquerdistas com quaisquer afinidade demonstrveis ao fascismo ( ao qual, na Itlia, forneceram muitos recrutas) so os sindicalistas, uma seita moribunda, os ltimos anarquistas a compartilhar o cientificismo retrgrado de Alter. Alter, e no seus inimigos, quem pede "um corpo orientador e coeso de conhecimentos e de experincias como estrutura de referncia" - apenas uma estrutura de referncia repare bem - para "diagramas e manuais", ou seja, para ritmos de marcha. Acontece que existem fascistas de verdade neste nosso mundo imperfeito. Vulgarizando o termo e se dizendo contra os fascistas, Alter (que est longe de ser o nico a fazer isso) na verdade os equipa com um sistema de camuflagem. Os artistas , uiva Walter, "no acreditam que a tecnologia seja uma coisa intrinsecamente boa". Eu no ligo muito para aquilo em que os artistas acredita, especialmente se Alter for um exemplo, mas essa suposta opinio deles lhes d crdito. Eu imaginaria que bvio, ignorar o bvio, acreditar na tecnologia "intrinsecamente ", no v-la como o meio para um fim, ou fins, para os quais ela vendida, e sim como uma espcie de fim em si mesmo sem utilidade alguma para ningum. "Arte pela arte" um credo discutvel, mas pelo menos fornece arte, que agrada alguns por sua beleza. A tecnologia como fim em si mesma no faz sentido algum, como o monstro do dr. Frankenstein. Se "tecnologia pela tecnologia" no a anttese da razo, ento no sei o que razo, e prefiro no saber. Os caadores-coletores anarco-comunistas (porque isso, para ser exato, o que eles so) do passado e do presente so importantes. No (necessariamente) por suas bem sucedidas adaptaes especficas ao habitat, j que por definio elas no so generalizveis, mas por demonstrarem que a vida j foi, e pode ser, radicalmente diferente. A questo no recriar aquele estilo de vida (embora possa haver algumas ocasies de faz-lo), mas reconhecer que, se uma vida totalmente contraditria

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Bob Blacknossa vivel a ponto de ter um histrico de milhes de anos, ento talvez outros meios de vida contraditrios ao nosso sejam viveis. Para um esquizofrnico do sculo XXI, rico e de bom gosto, Alter tem um vocabulrio assombrosamente limitado. Ele acredita que palavras infantis como "bem" e "mal" significa algo mais do que "mim gosta" e "mim no gosta", mas se ele v algum outro sentido nelas no compartilhou essa abundncia com o resto de ns. Ele acusa seus inimigos escolhidos de "infantilismo e vingana contras os pais", ecoando o autoritarismo de Lnin (Esquerdismo, Doena Infantil do Comunismo) e Freud, respectivamente. Futurista tpico - e os futuristas originais aderiram ao fascismo -, est cerca de um sculo atrs de Heisenberg, Nietzsche e do resto de ns. O moralismo retrgrado. Voc quer algo? No me diga que voc esta "certo" e eu estou "errado. Pouco me importa do que Deus ou Papai Noel gostam, muito menos se fui bom ou mau menino. Diga-me apenas o que eu tenho que voc quer, e por que eu deveria d-lo a voc. No posso garantir que concordaremos, mas a articulao seguida de negociao a nica maneira possvel de resolver uma disputa sem coero. Como Proudhon disse, "eu no quero nenhuma lei , mas estou disposto a negociar". Alter se apega "realidade fsica" objetiva - matria em movimento - com a mesma f de uma criana que se agarra mo de sua me. E a f, para Alter e para crianas de todas as idades, sempre seguida pelo medo. Alter (para citar Clifford Geertz) "teme que a realidade suma, a menos que acreditemos bastante nela". Ele nunca experimentar uma crise edipiana porque jamais crescer a este ponto. Um mundo mecnico o nico que ele consegue entender. Ele acha que o sistema solar, na verdade, um planetrio. No tem tolerncia alguma para a ambiguidade, a relatividade, indeterminao - tolerncia alguma, de fato, para a tolerncia.

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Bob BlackAlter parece no ter aprendido nada da cincia alm de um pouco de jargo bastante mal empregado. Ao denunciar o "mau mtodo cientfico" e a "intuio" quase na mesma exalao de mau hlito , ele explicita o quanto ignora o pluralismo do mtodo cientfico. At um positivista to resoluto quanto Karl Popper distinguia o "contexto de justificao", que ele supunha implicar a aderncia a uma ortodoxia demonstrativa um tanto rgida, do "contexto da descoberta", no qual , como Paul Feyerabend alegremente observou, "vale tudo". Alter revela o quo completamente por fora est ao fazer referncia casual aos "verdadeiros mtodos de descoberta". No existem verdadeiros mtodos de descoberta, apenas mtodos teis. Em princpio, ler a Bblia ou tomar LSD so prticas to legtimas, no contexto da descoberta, quanto fuar publicaes tcnicas regularmente. No importa se Arquimedes realmente obteve inspirao pulando na banheira, ou se Newton a conseguiu vendo uma ma cair. O que importa que nesses - quaisquer - gatilhos da criatividade so possveis e, se forem eficazes, so desejveis. A intuio importante no como uma faculdade oculta confivel, mas como uma fonte de hipteses em todos os campos. E tambm de vislumbres ainda no prontos para serem formalizados, se que algum dia o sero, mas que so ainda assim significativos e heursticos no contextos das disciplinas hermenuticas, as quais com todo o direito se recusam a aceitar que algo no passvel de quantificao seja mstico. Muitas disciplinas j aceitas no panteo das cincias ( como a biologia, a geologia e a economia) teriam sido abortadas por esse dogma anacrnico. " Considerar a fonte" o que Alter chama de "mtodo cientfico ruim ". Ouvimos falar muito (demais)do conflito entre evolucionismo e criacionismo. Basta um conhecimento superficial da histria intelectual ocidental para reconhecer que a teoria da evoluo uma secularizao da escatologia que distingue o cristianismo de outras tradies religiosas. Mas o fato de que o cristianismo foi o contexto

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Bob Blackda sua descoberta um motivo bem pouco cientfico para rejeitar a evoluo. Ou, por que no dizer, para aceit-la. Alter no o que finge ser, um paladino da razo atacando as hordas irracionalistas. A nica coisa que os nomes na sua lista de inimigos tm em comum o fato de estarem nela. Ayn Rand, cuja defesa histrica da "razo" era o alterismo sem o jargo de cincia popular, tinha um rol de irracionalidades que inclua homossexuais, liberais, cristos, anti-semitas, marxistas, expressionistas abstratos, hippies, tecnfobos, racistas e fumantes de maconha (mas no de tabaco). A lista de Alter (certamente incompleta) inclui sadomasoquistas, New Agers, antroplogos, esquizofrnicos, antiautoritrios, fundamentalistas cristos, engenheiros sociais de gabinete, fascistas, protocubistas... Intimem suspeitos inesperados. Alter s faz esse jogo de acusao porque no tem extenses s ferramentas em nmero suficiente. "Quantas vezes por dia voc realmente avana em questes importantes, de forma intuitiva?" Palavras sbias - e tambm um bom argumento para mandar esse cara plantar batatas. Aqui esta outra charada, sr. Leitor ou sra. Leitora: quantas vezes por dia voc realmente avana em questes importantes, NO IMPORTA DE QUE FORMA? Quantas vezes por dia voc "avana em questes importantes" - intuitiva, irnica, intelectual, impulsiva, impassivelmente ou seja l de que forma for? Ou voc sente, um dia aps o outro, que um dia vem aps o outro, e s? Que as nicas "questes importantes" que afetam voc se que existem, so decididas,se que so, pelos outros? J notou sua falta de capacidade de mapear o seu prprio destino? J notou que seu acesso realidade "virtual" aumenta na mesma proporo em que voc se distancia (um gesto prudente) da realidade factual? Que fora trabalhar e pagar voc no tem absolutamente nenhuma utilidade para esta sociedade, e no pode esperar que ela conserve voc, se

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Bob Blackum dia no conseguir fazer uma dessas duas coisas? E , finalmente, por acaso a gritaria tecnoflica e tecnocapitalista de Walter Alter pode ajudar voc, de alguma forma, a interpretar o futuro, e muito menos mais importante tambm - a mud-lo?

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Bob Black

Ritos da Esquerda

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Bob BlackNa astronomia, "Revoluo" se refere a uma volta ao mesmo lugar. Para a esquerda, parece significar mais ou menos a mesma coisa. O esquerdismo literalmente reacionrio. Assim como os generais esto uma guerra atrasados, os esquerdistas esto sempre em busca de uma revoluo. Eles veem como bem-vindas porque sabem que j nasceu fracassada. So vanguardistas porque sempre esto atrs de seu tempo. Como todos os lderes, os esquerdistas so menos intragveis quando seguem seus seguidores, mas, em certas crises, eles tomam a frente para fazer o sistema funcionar. Se a metfora esquerda/direita tem algum significado, ele s pode ser que a esquerda fica esquerda da mesma coisa da qual a direita fica direita. Mas e se "revoluo" significar sair da linha? Se no houvesse direita, a esquerda teria que invent-la - e muitas vezes o fez. (Exemplos: A histeria calculada com os nazistas e a KKK, que concede a esses covardes retardados a notoriedade de que precisam; ou qualquer denunciazinha comum da Maioria Moral que torna inteis ataques grosseiros s verdadeiras fontes de tirania moralista - A famlia, a religio em geral e a tica do trabalho adotada tanto pelos esquerdistas como pelo cristos.) A direita, da mesma forma, precisa da esquerda: sua definio operacional sempre "anticomunismo" ou seus vrios sinnimos baratos. Assim, a esquerda e a direita pressupem e recriam uma outra. Um efeito negativo dos tempos difceis que eles tornam a oposio fcil demais, como (por exemplo) a atual crise econmica, que encaixada em categorias marxistas arcaicas, populistas ou sindicalistas. A esquerda, portanto, se posiciona para cumprir seu papel histrico de reformista desses males incidentais (embora agonizantes), os quais, devidamente abordados, escondem as injustias essenciais do sistema: a hierarquia, o moralismo, a burocracia, a mo-de-obra assalariada, a monogamia, o governo, o dinheiro. (O marxismo poder ser um dia algo mais do que a maneira

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Bob Blacksofisticada de o capital pensar sobre si mesmo?) Considere o epicentro reconhecido da crise atual: o trabalho. O desemprego ruim. Mas a isso no se segue, fora do dogma direito-esquerdista, que o emprego seja bom. No . O "direito ao trabalho", talvez um slogan adequado em 1848, est obsoleto em 1982. As pessoas no precisam de trabalho. Ns precisamos da satisfao das necessidades de subsistncia, por um lado, e, por outro, de oportunidade de atividade criativa, de convivncia, educativa, diversificada e apaixonante. Vinte anos atrs, os irmos Goodman estimaram que 5% do trabalho existente na poca atenderia s necessidades mnimas de sobrevivncia, um indicie que deve ser mais baixo hoje; obviamente, ramos inteiros de atividade no servem para nada mais do que atender s finalidades predatrias do comrcio e da coero. Essa uma infra-estrutura ampla a ser modificada para criar um mundo de liberdade, comunidade e prazer no qual a "produo" de usos-valores seja o "consumo" de atividades gratificantes livres. Transformar o trabalho em brincadeira um projeto para um proletariado que rejeita essa condio, no para esquerdistas que no tm mais o que conduzir. O pragmatismo, como rpido olhar no seu fundamento torna bvio, uma armadilha ilusria. A utopia no passa de senso comum. A escolha entre o "pleno emprego" e o desemprego - escolha qual a esquerda e a direita colaboram entre si para nos confinar - a escolha entre Gulag e a sarjeta. No admira que, depois desses anos todos, uma populao sufocada e sofredora esteja cansada da mentira democrtica. H cada vez menos pessoas que querem trabalhar - at entre aquelas que tm motivos para temer o desemprego - e cada vez mais pessoas que querem fazer maravilhas. Por favor, vamos fazer barulho para obter concesses, reduo de impostos, amostras grtis, po e circo - por que no morder a mo que nos alimenta, se seu sabor excelente? - mas sem iluses.

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Bob BlackA prola (sur)racional da verdade dentro da mstica ostra marxista esta: a "classe trabalhadora" o lendrio "agente revolucionrio", mas somente se, parando de trabalhar, abolir as classes. "Organizadores" perenes, os esquerdistas no entendem que os trabalhadores j foram definitivamente "organizados" por - e s podem ser organizados para - seus chefes. "Ativismo" idiotice quando enriquece nossos inimigos e lhes d poder. O esquerdismo, esse parasita de smbolos doloridos, teme a deflagrao do incndio do Wilhelm Reichstag2, que vai consumir seus partidos e sindicatos junto com as corporaes, exrcitos e igrejas atualmente controladas por seu ostensivo oponente. Hoje em dia, voc precisa ser estranho para ser efetivo. O esquerdismo cinzento, com suas listas de antagonismo obrigatrios (contra ismos, aquilismos, e aquiloutrismos: contra tudo, menos o esquerdismo) no tem nenhum humor, nenhuma imaginao; portanto, no pode preparar revolues, s golpes, que mudam as mentiras, mas no a vida. Mas o mpeto de criar tambm um mpeto destrutivo. Mais um esforo, esquerdistas, se quiserem ser revolucionrios! Se vocs no se revoltarem contra o trabalho, estaro trabalhando contra a revolta.

2 Brincadeira com o incndio que destruiu o prdio do parlamento alemo (Reichstag) em 1933 e Wilhelm Reich, psicanalista marxista freudiano.

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Bob Black

Meu Problema com o Anarquismo

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Bob BlackO anarquismo sempre foi problemtico, para mim. Ele me ajudou a atingir uma perspectiva antiestatista e anticapitalista incondicional em meados da dcada de 70, e no entanto minha primeira declarao pblica sob aquela perspectiva explicava por que eu no me identificava com o anarquismo. Pela definio do dicionrio sou um anarquista, mas o dicionrio s o inicio do saber. Ele no pode levar coerncia para onde contradies abundam ou reduzir diferenas a uma unidade, chamando-as pelo mesmo nome. Quando uma idia lanada na histria, parte cada vez maior de seu significado vem de sua experincia. Apelos saudosistas para retornar aos princpios originais provam isso, porque tambm fazem parte da historia. E, da mesma forma que nenhuma seita protestante conseguiu realmente recriar a Igreja primitiva, nenhum fundamentalismo anarquista subsequente jamais restabeleceu, ou pde restabelecer, o anarquismo puro no modelo bakunista, kropotikista ou outros. qualquer coisa que tenha entrado de maneira relevante na pratica dos anarquistas tem lugar no fenmeno processual anarquista, sendo ou no logicamente deduzvel dessa histria , ou at mesmo contradizendo-a. Sabotagem, vegetarianismo, assassinato, pacifismo, amor livre, cooperativas e greves so todos aspectos do anarquismo que os detratores anarquistas tentam menosprezar como atividades antianarquicas. Chamar a si mesmo de anarquistas significa se predispor identificao com uma gama imprevisvel de associaes, um conjunto que raramente significara a mesma coisa para duas pessoas, inclusive para dois anarquistas. (A mais previsvel delas a menos exata: um cara que explode bombas. Mas anarquistas j lanaram bombas, e alguns ainda lanam). O problema dos anarquistas que eles acham que concordaram sobre aquilo a que todos eles se opem - o Estado - quando na verdade s esto de acordo sobre o

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Bob Blacknome que lhe do. Seria possvel provar que os maiores anarquistas no eram, em absoluto, anarquistas. Godwin queria que o estado murchasse, mas gradualmente, e no antes que o progresso do esclarecimento preparasse as pessoas pra se virarem sem ele. Isso na verdade, parece legitimar o estatismo existente e culminar na idia banal de que, se as coisas fossem diferentes, no seriam as mesmas. Proudhon, que serviu na legislatura nacional francesa, acabou chegando a uma teoria do federalismo que nada mais era a devoluo da maior parte do poder de estado aos governos locais. As comunas livres de Kropotkin podem no ser naesestados, mas certamente parecem cidades-estado. Naturalmente, nenhum historiador deixa de achar ridcula a afirmao de Kropotkin de que as cidades medievais eram anarquistas. Se alguns dos maiores anarquistas, vistos de perto, parecem um tanto aqum de alguma consistncia a respeito do prprio princpio definidor do anarquismo a abolio do Estado - muito surpreendente que alguns dos luminares menos importantes sejam, por sua vez, pouco brilhantes. Para quem o ver de fora, O Grande Sindicato nico - que tambm defende o dever do trabalho - um enorme Estado, e totalitrio ainda por cima. Algumas "anarcofeministas" so queimadoras de livros. Dean Murray Bookchin abraou a politica de terceiro partido3 e o estatismo municipal, assustadoramente ao movimento/milcia protofascistas Posse Commitatus4, que quer abolir todo governo acima do nvel de condado. E o "governo invisvel" dos militantes anarquistas de Bakunin , na melhor das hipteses , uma escolha infeliz de palavras, especialmente saindo da boca de um maom.3 "third party" , no original, a forma como so conhecidos nos EUA quaisquer partido polticos que no sejam republicanos ou democratas. 4 Movimento de extrema direita que se ope ao governo dos EUA e defende um localismo radical. No h uma organizao nacional, e as unidades locais so autnomas.

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Bob BlackOs anarquistas no se entendem sobre trabalho, industrialismo, sindicalismo, urbanismo, cincia, liberdade sexual, religio, e um sem numero de coisas mais importantes, especialmente quando tomadas em conjunto. H mais pontos discordante do que qualquer coisa que os una. Cada um dos "encontros" anuais do anarquismo norte americano que aconteceram entre de 1986 a 1989 - a primeira vez que a maioria desses anarquistas viu um ao outro frente a frente - , resultou numa hemorragia dos desiludidos. Ningum quer saber de organizar o prximo, embora alguns encontros regionais tenham dado bons resultados. Mas apesar dos demagogos, doutrinrios e dbeis mentais, parte da imprensa anarquista, conseguiu ventilar um pouco o movimento, para alegria no s dos cabeas-de-vento, e o oxignio antisptico. Os anarquistas, ou melhor, os anarquistas marginais, muitas vezes sabem o que carregar e o que deixar para trs . Uma familia de heteroxias que denominei anarquismo "Tipo 3" ou "watsoniano" abriu muito espao entre os tradicionalistas nos ltimos anos. Os Tipo 3, a categoria dos inclassificveis, enriquecem seu anarquismo (ou seja la o que for) com emprstimos do neoprimitivismo ( ou ento do neofuturismo!), do surrealismo, do situacionismo, das religies piadistas (discordiana, cincia mooreana, Sub-Genius), da cultura punk, da cultura da maconha e da cerveja e da cultura beat. Alguns anos atrs , os proletaristas, em minoria, lanaram uma campanha de dio aos Tipo 3, entre outros - pendurando neles ( ou devo dizer lumpendurando?) a pecha imbecil de "neo-individualistas". ns somos parasitas sociais, msticos, masturbadores e de maneira geral, selvagens sem moral. Sim, mas eles so universitrios com capacetes de construo de grife. Os anarquistas... ruim com eles, pior sem eles. Como informei uma vez a Demolition Derby, os anarquistas podem ser pssimos camaradas, mas so timos clientes. Em 1985 fiquei to enojado de todos eles

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Bob Blackque rompi meus laos de vez. Com o passar dos anos, isso perdeu o sentido, porque ficou difcil de dizer exatamente o que era " anarquista" o suficiente para merecer ser boicotado. Agora eu fao uma analise caso a caso. Este texto uma galeria de viles. A alguns dos anarquistas que eu respeito, como Ed Lawrence e Hakim Bey , mostrei minha estima em outros artigos. enquanto isso , eu retomo a luta contra a terminologia. Sou anarquista ou no sou? Como Feral Faun e outros, eu me viro contrapondo " anarquia " a "anarquismo". Mesmo se essa distino " pegar", como chamar os respectivos partidos? Eu sugiro o seguinte: que os "anarquia-istas" se autodenominem anarcos5, uma palavra cuja primeira ocorrncia conhecida - em Paraso Perdido - de Milton! antecede anarquista em nove anos. melhor porque, como a distino corresponde monarca e monarquista, ela designa no aquilo em que ns acreditamos, mas o que somos , at onde nosso poder permite: poderosos em ns mesmos. Por vezes demais os anarquistas me passaram sermo pedindo que eu evitasse as "rivalidades" e "conflitos internos" para combater melhor "o verdadeiro inimigo", expresso com que se referem a alguma abstrao convenientemente remota como o capitalismo ou o Estado. Que arrogante, para pessoas que me acusam de ser arrogante, me dizer que elas enxergam meus verdadeiros inimigos melhor do que eu. J refutei o argumento quando me foi apresentado na sua forma mais sedutora - a lisonjeira sugesto de que meus inimigos no so dignos de mim. Posso dispensar a verso padro , mais tosca dele, como uma trama cnica e egosta para escapar das minhas criticas, redirecionando-as. Embora possa ter sido proposto de boa f, bobagem. Zorro e Tonto esto cercados pelos ndios. Zorro5 "anarchs" no original.

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Bob Blackdiz : " Parece que desta ns no escaparemos, velho amigo". E Tonto diz: " Ns quem, cara plida? " O verdadeiro inimigo a totalidade dos limites fsicos e mentais com os quais o capital, a sociedade de classes, o estatismo ou a sociedade do espetculo desapropriam o dia-a-dia, do nosso tempo de vida. O inimigo verdadeiro no um objeto separado da vida. a organizao da vida por poderes distanciados dela e voltados contra ela. O aparato , no o seu quadro de funcionrios, o inimigo verdadeiro. Mas pelos apparatchiks, e mediante eles, e todos os outros que participam do sistema, que a dominao e a falsidade se tornam manifestas. A totalidade a organizao de todos contra cada um e de cada um contra todos. Ela inclui todos os policiais, todos os assistentes sociais, todos os funcionrios de escritrios, todas as freiras, todos os colunistas de segunda pagina, todos os chefes do trafico de drogas , de Medellin a UpJohn6, todos os sindicalistas e situacionistas. Isso no retrica, para mim , algo que inspira as minhas escolhas. Implica que posso esperar encontrar aes e, opinies e personalidades autoritrias entre os anarquistas como em qualquer outro lugar. "Camaradas" no so meus camaradas - nem eu sou, nos meus piores momentos, meu prprio camarada - quando eles, ou eu, nos comportamos como " o inimigo verdadeiro". No existe inimigo verdadeiro fora das aoes humanas. E que lugar melhor para os autoritrios se aninharem do que entre os anarquistas, to facilmente absorvidos por rtulos, to facilmente deslumbrados por valores chamativos de produo, e to facilmente confundveis perante os fatos? Embora ela seja s um tipo ideal, a personalidade autoritria esta quase que completamente realizada em anarquistas como Jon bekken, Michael Kolhoff, Chaz Bufe, Fred Woodworth e6 Gigante farmacutica criada em 1886, cujos ativos foram adquiridos recentemente pela Pfizer.

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Bob BlackChris Gunderson, e em antiautoritrios como Caitilin Manning, Chris Carlsson, Adam cornford e Bill Brown. ( Antiautoriatario, que historia essa palavra poderia contar. Como disse Bill Knot, "Se antissptico bucal falasse...") Se os anarquistas so capazes de atitudes autoritrias e de incoerncia ideolgica, eu no devo cham-los cegamente de camaradas, mas do que chamaria de camarada um guarda rodovirio ou um vendedor de carros usados. O rotulo no uma garantia. Um motivo importante para minha dissociao do anarquismo em 1985 foi impedir qualquer reivindicao da minha lealdade ou iseno de critica , baseada no farto de que "ns" estamos do mesmo lado. Para um verdadeiro camarada as criticas seriam bem-vindas. Falar das minhas rivalidades, em geral, bobagem. Embora no exista separao definitiva entre o pessoal e o poltico, especialmente, quando se uma pessoa to poltica quanto eu, rixas predominantemente pessoais no tem lugar neste livro. Um argumento no se torna rivalidade s porque eu o levo alm do costumeiro estagio do monlogo ou porque outro cara comea a me xingar. Idelogos que no tm capacidade ou maturidade para defender com profundidade suas opinies deveriam guard-las para si prprios, especialmente quando publicam revistas. Fui acusado de abuso de fora pelos atentado contra os editores anarquistas Fred Woodworth e "Spider Rainbow". difcil dizer. Spider Rainbow de fato secou e morreu, mas a cada minuto nasce outro dele. Woodworth continua agonizando, porque nada que no tenha realmente vivido pode morrer: eu escavei a mmia e suas momices. A medida adequada do valor de minhas palavras no a envergadura de meus assuntos. Eles no precisam ser importantes para serem teis, para variar.

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Bob Black

Sobre o Anarquismo e outros Impedimentos para a Anarquia

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Bob BlackAtualmente no h a necessidade de produzir novas definies do que o anarquismo - seria difcil superar aquelas concebidas h muito tempo por vrios eminentes estrangeiros j falecidos. Nem precisamos nos demorar nos bem conhecidos anarco-comunismo e anarco-individualismo, nem nos demais, os livros cobrem tudo isso. Mas o problema que no estamos hoje mais perto da anarquia do que estavam em seu tempo Godwin, Proudhon, Kropotkin e Goldman. H muitas razes, mas aquelas que merecem maior reflexo so as que os anarquistas mesmo geram, j que estes obstculos - se h algum podem ser removidos. possvel, mas no provvel. O que considero, segundo meu julgamento, depois de anos de comprometimento, e em contextos de espantosa atividade no meio anarquista, que os anarquistas so a principal razo - suspeito, uma razo suficiente - pela qual a anarquia permanece como um epteto sem uma oportunidade de ser realizada. Muitos anarquistas so, francamente, incapazes de viver de uma maneira autnoma e cooperativa. Uma boa parte deles no so muito brilhantes. Tendem a ler seus prprios clssicos e a literatura produzida pelo prprio grupo, excluindo um conhecimento mais amplo do mundo em que vivem. Essencialmente tmidos, se associam com outros iguais a eles com o conhecimento tcito de que nada medir as opinies dos demais nem atuar contra praticamente nenhum estandarte de inteligncia crtica; que nada de seu, ou seus, ganhos individuais estar ir muito alm do nvel prevalecente; e, sobretudo, que nada desafia as regras da ideologia anarquista. O anarquismo no em grande medida um desafio ordem existente, anteriormente uma forma sobre especializada de acomodar-se nela. um modo de vida, ou um anexo de uma, com sua mistura particular de recompensas e sacrifcios. A pobreza obrigatria, e pela mesma razo se exclui a pergunta sobre se este anarquista pode ser algum na vida ou um fracassado,

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Bob Blackapesar da ideologia. A histria do anarquismo uma histria incomparvel de derrota e martrio, os anarquistas ainda veneram seus antepassados feitos de vtimas, com uma devoo mrbida que levanta a suspeita de que os anarquistas, como todos os demais, pensam que o nico anarquista bom um morto. A revoluo a revoluo vencida gloriosa, mas pertence aos livros e panfletos. Neste sculo a Espanha em 1936 e a Frana em 1968 so casos sumariamente claros o arrebatamento revolucionrio surpreendeu ao oficial, os anarquistas organizados chegaram tarde e inicialmente no apoiaram as propostas, ou ainda pior. A razo disso no se encontra longe; no que esses idelogos foram hipcritas (alguns o eram), mas eles trabalhavam em uma rotina diria de militncia anarquista, alguns deles esperavam inconscientemente suportar indefinidamente, j que a revoluo no era imaginvel realmente no aqui e agora, por isso eles reagiram com medo e em atitude defensiva quando os eventos se distanciaram de sua retrica. Em outras palavras, se lhes permite escolher entre anarquismo e anarquia a maioria dos anarquistas iro optar pela ideologia do anarquismo e sua subcultura ao ter que dar um perigoso salto ao desconhecido, dentro de um mundo de liberdade estatal. Mas desde que os anarquistas so as nicas crticas confessas do estado como tal, estes populares temerosos da liberdade deveriam assumir, inevitavelmente e de maneira proeminente, ou ao menos publicitria, seus lugares em qualquer insurgncia que fosse genuinamente antiestatal. Eles so seguidores, encontraram os lderes de uma revoluo que ameaar seus status estabelecidos no menos do que podem fazer os polticos e os proprietrios. Os anarquistas podem sabotar a revoluo, conscientemente ou de outra maneira, que sem eles poderiam ter abolido o estado, repetindo sem pausa aos antigos debates entre Marx e Bakunin. De fato, os anarquistas que assumiram esse nome

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Bob Blackno tem feito nada para mudar o estado, no com escritos cheios de verborreia ilegvel, e sim com o exemplo contagioso de outra maneira de se relacionar com as demais pessoas. Quando os anarquistas conduzem as questes do anarquismo so a melhor refutao das pretenses anarquistas. Na realidade, as duas federaes de trabalhadores mais organizadas da atualidade na Amrica do Norte tm entrado em colapso por tdio e amargura, e uma coisa boa tambm, porque a estrutura social informal do anarquismo, que o atravessa, ainda hierrquica. Os anarquistas se submetem placidamente ao que Bakunin chamou de governo invisvel, que no caso consiste nos editores (de fato se no no nome) de um mao das maiores e mais duradouras publicaes anarquistas. Estas publicaes, apesar das diferenas ideolgicas aparentemente profundas, de antemo seus leitores tm posies similares de papai sabe o que bom assim como um acordo de cavaleiros para no permitir ataques entre eles que exporiam as inconsistncias e por outra parte minaria o interesse da classe comum na hegemonia da gente comum anarquista. Por incrvel que parea, voc pode criticar facilmente ao Fifth Estate e o Kick It Over em suas prprias pginas nas quais criticam, digamos, a Processed Wolrd7. Cada organizao tem mais em comum com qualquer outra do que tm com qualquer desorganizado. A crtica anarquista do estado, se s os anarquistas as entendem, sem dvida um caso especial de crtica contra a organizao. E inclusive a certo nvel as organizaes anarquistas se do conta disso. Os anti-anarquistas podem concluir que se no h hierarquia e coero, a deixem sair em pblico, mostrando claramente como . Ao contrrio dessas autoridades (os direitistas libertrios, os minarquistas,7 Nome de diferentes revistas anarquistas dos Estados Unidos, as primeiras de tendncia primitivista, no entanto a segunda tem um carter mais anarco-sindicalista.

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Bob Blackpor exemplo) eu persisto obstinadamente em minha oposio ao estado. Mas no porque, como os anarquistas reflexivamente declaram, o estado no seja necessrio; as pessoas comuns desacreditam essa verdade anarquista e a consideram absurda, como devem faz-lo. Obviamente, em uma sociedade industrializada como a nossa, o Estado necessrio. O ponto que o Estado criou as condies nas quais de fato necessrio, desapossando os indivduos de seu poder, de se associarem voluntariamente no dia a dia. De maneira mais fundamental, as bases do Estado (trabalho, moralismo, tecnologia industrial, organizaes hierrquicas) no so necessrias seno como antteses para a satisfao de nosso desejo e necessidades reais. Desafortunadamente, a maioria das tendncias do anarquismo apoia essas premissas, mas opondo-se a sua concluso lgica: o Estado. Se no houvesse anarquistas o Estado teria que invent-los. Sabemos que em muitas ocasies ocorreu exatamente isso. Necessitamos de anarquistas sem as travas do anarquismo. Ento, e s ento, podemos comear a obter um fomento srio da anarquia.

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Bob Black

Teses sobre o GrouxoMarxismo

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Bob Black1 Groucho-marxismo, a teoria da revoluo cmica, muito mais que um projeto para a luta de classes: como uma luz vermelha numa janela, ele ilumina o destino inevitvel da humanidade, a sociedade desclassificada8. G-Marxismo a teoria da folia permanente. (A, garoto! At que enfim, eis um timo dogma). 2 O exemplo dos prprios Irmos Marx mostra a unidade da teoria e prtica marxista (por exemplo, quando Groucho insulta algum enquanto Harpo depena sua carteira ). Alm disso, o marxismo dialtico (Chico no o clssico comediante dialtico?). Comediantes que fracassam em sintetizar teoria e prtica (para no mencionar aqueles que fracassam totalmente em pecar) so no-marxistas. Comediantes posteriores, fracassando em entender que a separao o discreto charme da burguesia, decaram para meras gafes, por um lado, e mera tagarelice, por outro. 3 Como o G-Marxismo prtico, seus feitos no podem nunca ser reduzidos ao mero humor, entretenimento ou arte. (Os estetas, afinal de contas, esto menos interessados na interpretao da arte do que na arte que interpreta.) Depois que um genuno marxista assiste a um filme dos Irmos Marx, ele diz para si mesmo: Se voc achou isso engraado, preste ateno sua vida!. 4 G-marxistas contemporneos devem decididamente denunciar o Marxismo vulgar, de imitao, dos Trs Patetas, Monty Python, e Pernalonga. Em vez do marxismo vulgar, devemos retornar 8 No original, dclass.

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Bob Blackautntica vulgaridade marxista. Retoficao9. serve igualmente para aqueles camaradas desiludidos que pensam que a linha correta o que o tira faz quando manda eles pararem no acostamento. 5 Marxistas com conscincia de classe (isto , marxistas conscientes de que no possuem nenhuma classe) devem rejeitar a comdia anmica, da moda, narcisista, de revisionistas cmicos como Woody Allen e Jules Feiffer. A revoluo cmica j ultrapassou a mera neurose ela risonha mas no risvel, discriminante mas no discriminatria, militante mas no militar, e aventurosa mas no aventureira. Os marxistas percebem que hoje voc deve olhar no espelho de uma casa assombrada de parque de diverses para se ver da forma que voc realmente . 6 Embora no totalmente desprovido de vislumbres de insight marxista, o (sur)realismo socialista deve ser distinguido do G-Marxismo. verdade que Salvador Dali deu uma vez a Harpo uma harpa feita com arame farpado; no entanto, no h nenhuma evidncia de que Harpo alguma vez a tenha tocado. 7 Acima de tudo, essencial renunciar e execrar todo sectarismo cmico como o dos trotskos eqinos. Como bem sabido, Groucho repetidamente propunha o sexo mas se opunha s seitas. Para Groucho, havia uma diferena entre ser um trotsko e estar louco para trotar10. Alm disso, o slogan trotsko Salrios para o Trabalho Eqino cheira a reforma, no a folia. Os esforos trotskos para reivindicar Um dia nas Corridas e9 Rectumfication, neologismo bricalho que Black inventou a partir de retificao e reto (rectum, canal do nus). 10 Trocadilho aqui intraduzvel entre Trots (trotskistas) e hot to trot (excitado para trepar), sem esquecer a brincadeira com os eqinos pois to trot significa trotar.

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Bob BlackOs Gnios da Pelota como de sua tendncia devem ser indignadamente rejeitados; na verdade, A Mocidade Assim Mesmo est mais na velocidade deles11. 8 O assunto mais urgente que os G-Marxistas confrontam hoje a questo do partido12, que - ao invs do que pensam marxistas ingnuos, reducionistas mais que apenas Por que no fui convidado? Isso nunca foi impedimento para Groucho! Os marxistas precisam de seu prprio partido disciplinado de vanguarda, pois eles so raramente bem-vindos aos de qualquer outro. 9 Guiadas pelos dogmas fundamentais do desbehaviorismo e do materialismo histrico, as massas inevitavelmente abraaro, no apenas o G-Marxismo, mas tambm mutuamente uns aos outros. 10 O Groucho Marxismo, ento, o tour de farce da comdia. Como seguramente se diz que Harpo falou: Em outras palavras, a comdia ser revoltosa ou no ser! Tanto por fazer, tantos para faz-lo! Sobre seus Marx, est dada a largada!13

11 Um dia nas Corridas (A Day in the Races) e Os Gnios da Pelota (Horse Feathers) so filmes dos Irmos Marx, enquanto A Mocidade Assim Mesmo (National Velvet) um velho drama onde Liz Taylor atuou ainda garota. 12 Mais um trocadilho neste texto pleno deles: party tanto partido quanto festa em ingls. Para entender a piada melhor, leia o pargrafo com os dois significados, substituindo onde houver partido por festa. 13 Outro trocadilho praticamente intraduzvel, desta vez com a exclamao que d incio a competies de corrida : On your marks, get set go! aqui trocada por On your Marx, get set go!.

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Teses sobre o Anarquismo depois do Ps-modernismo

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Bob Black1 Anarquismo, n.1. A doutrina que diz que a sociedade estatal possvel e desejvel. Obsoleto. 2. Regra feita pelos anarquistas. 2 Anarquismo, compreendido corretamente, no tem o que fazer com padres e valores em um sentido moral. Moralidade implica na ideia de que o Estado foi feito para a sociedade: uma limitao alienante na liberdade, e uma inverso de fins e meios. Para anarquistas, os padres e os valores so melhores compreendidos - isto , so os mais teis - como aproximaes, atalhos, convenincias. Podem sumariar alguma sabedoria prtica ganhada pela experincia social. Ento novamente, podem ser os servidores das ordens da autoridade, ou formulao til que, em outras circunstncias, j no servem a finalidade do anarquista, ou alguma finalidade boa. 3 Falar de padres e de valores do anarquista, ento, no necessariamente sem sentido - mas envolve riscos, riscos frequentemente deixados de lado. Em uma sociedade saturada pela cristandade e suas tradies seculares, o risco que o tradicional uso absolutista destas palavras moralistas impregnar a maneira de como os anarquistas as usam. Voc tem padres e valores ou eles tm voc? geralmente melhor (mas, naturalmente, no necessariamente ou absolutamente melhor) para os anarquistas que evitem o vocabulrio traioeiro do moralismo e apenas digam diretamente o que querem, porque o querem, e porque querem que todos queiram. Ou seja, pr as cartas sobre a mesa. 4 Como padres e valores, os "ismos" anarquistas, velhos e novos, so considerados melhor como recursos, no requisitos. Eles existem para ns, no ns para eles.

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Bob BlackNo importa se eu, por exemplo, possa ter encontrado mais coisas no situacionismo do que no sindicalismo, visto que um outro anarquista encontrou mais coisas no feminismo ou no marxismo ou no Isl. Onde ns j visitamos e mesmo de onde viemos menos importante do que onde ns estamos e onde, se em qualquer lugar, ns estamos indo - ou se ns estivermos indo ao mesmo lugar. 5 O tipo 1 se refere ao anarco-esquerdismo. O tipo 2 se refere ao anarco-capitalismo. O tipo 3 se refere ao meta-tpica. O anarquista tipo 3 rejeita categoricamente a categorizao. Sua existncia precede sua essncia (Sartre). Para ele, nada necessariamente necessrio, e tudo possivelmente possvel. Pensa que o imediatismo demasiado longo. Ela voa nas asas estranhas (Shocking Blue). A esposa de Winston Churchill queixou-se uma vez sobre sua bebedeira. Churchill respondeu que tinha dado mais foras no lcool do que o lcool tinha dado nele. O anarquista tipo 3 d mais foras no anarquismo do que o anarquismo nele. E tenta abandonar mais a vida do que a vida abandonar ele. Uma amvel, pensativa e autoafirmativa orientao predatria tem mais aplicaes prticas que a ingenuidade e a imaginao do tipo 3 lhe sugerem. 6 Primeiramente, a rejeio dos princpios da aplicao universal tem aplicaes universais. Na prtica, todo indivduo tem suas limitaes, e a fora das circunstncias varia. No h nenhuma frmula para o sucesso, nem mesmo o reconhecimento de que no h nenhuma frmula para o sucesso. Mas a razo e a experincia identificam determinadas reas de previsvel futilidade. fcil e aconselhvel, por exemplo, os anarquistas se absterem da poltica eleitoral. prefervel, mas frequentemente no possvel, se abster do

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Bob Blacktrabalho, embora seja geralmente possvel se engajar em alguma resistncia anti-trabalho sem correr riscos. Crime, mercado negro, e sonegao de impostos so alternativas muitas vezes mais reais, ou ento se junte participao no sistema do estado-sancionado. Todos tm que avaliar suas prprias circunstncias com a cabea aberta. Faa o melhor que puder e tente no ser pego. Os anarquistas j tm mrtires demais. 7 O anarquismo est em transio, e muitos anarquistas esto experimentando a ansiedade. muito fcil advogar a mudana do mundo. A conversa fiada. No fcil voc mudar a pequena parcela que tem contato. As diferenas entre as tendncias anarquistas tradicionais so irrelevantes porque as tendncias anarquistas tradicionais so elas mesmas irrelevantes. (Para as finalidades atuais vamos negligenciar o tipo 2, anarquistas do livre mercado que parecem no ter nenhuma presena visvel, exceto nos Estados Unidos, e mesmo l tm pouco dilogo, e menos influncia que o resto de ns.) A rede mundial, irreversvel, e o longo declnio da esquerda precipitou a crise atual entre os anarquistas. 8 Os anarquistas esto tendo uma crise da identidade. So ainda, ou somente, a asa esquerda da asa esquerda? Ou so algo mais, ou mesmo alguma coisa? Os anarquistas sempre fizeram muito mais para o repouso da esquerda do que o repouso da esquerda fez para eles. Todo a dvida do anarquista esquerda foi h muito paga completamente. Agora, finalmente, os anarquistas esto livres para serem eles mesmos. Mas a liberdade uma briga, prospecto incerto, visto que as velhas manias, os clichs e os rituais esquerdistas, so to confortveis quanto um par de sapatos velhos

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Bob Black(sapatos de madeira inclusive). O melhor que, desde que a esquerda j no representa qualquer tipo da ameaa, os anarco-esquerdistas no esto em perigo quanto a represso do estado quando recordam e reativam seus antepassados, glrias mticas. Isso aproximadamente to revolucionrio quanto um fumante acabado, e o estado tolera ambos pela mesma razo. 9 Quo anrquico o mundo, ento? Por um lado, muito anrquico; por outro, de modo algum. muito anrquico no sentido que, como Kropotkin argumentou, a sociedade humana, a prpria vida humana, sempre depende muito mais da ao cooperativa voluntria do que de qualquer coisa s ordens do estado. Sob um severo regime estadista - a antiga Unio Sovitica ou a cidade de Nova Iorque nos dias atuais - reger a si prprio depende de violaes difusas de suas leis para permanecer no poder e manter a vida. Por outro lado, o mundo no em todo anarquista, porque no existe populao humana, qualquer que seja o lugar, que no sujeita a algum grau de controle pelo estado. A guerra demasiado importante para ser perdida pelos generais, e a anarquia demasiado importante para ser perdida pelos anarquistas. Cada ttica vlida, por qualquer um que tenha inclinao a faz-la, embora err