[a] 40 Anos Do Relatório Coleman

download [a] 40 Anos Do Relatório Coleman

of 14

Transcript of [a] 40 Anos Do Relatório Coleman

  • 7/24/2019 [a] 40 Anos Do Relatrio Coleman

    1/14

    Educao Unisinos9(2):116-129, maio/ago 2005 2005 by Unisinos

    Resumo:O presente artigo visa a elucidar duas questes cruciais para a pesquisa educativa:(1) Sob quais pressupostos tericos e normativos est ancorada a concluso do relatrioColeman (1966) em matria de eficincia escolar? (2) Qual o contraponto latente que oconceito de capital social introduz no campo da sociologia educativa? feita uma reconstruoanaltica das perspectivas contrastantes dos mais importantes mentores do capital social nocampo sociolgico: James S. Coleman e Pierre Bourdieu. Um breve percurso pelos principaistrabalhos de Coleman pe a descoberto o influxo de seu pensamento nas polticas liberaisde investimento escolar. Porm, uma recente pesquisa (Gaviria et al.,2004), em matria deeficincia escolar, com dados do Ministrio da Educao (MEC, 1997) do Brasil, permitequestionar a importao de critrios utilitaristas com os quais avaliado o investimentoescolar em pases industrializados.

    Palavras-chave: capital social, eficincia escolar, polticas redistributivas.

    Abstract:This article seeks to clarify two crucial questions in educational research: (1) Inwhat theoretical and normative assumptions is the Coleman Report (1966) on educationaleffectiveness anchored? (2) What is the latent counterpoint that the concept of socialcapital introduces in the field of educational sociology? This paper makes an analyticalreconstruction of the contrasting perspectives of the most important exponents of socialcapital in the field of sociology: James S. Coleman and Pierre Bourdieu. A brief analysis ofColemans works reveals his intellectual influence on the liberal policies of educationalinvestment. However, a recent research (Gaviria et al., 2004) on educational effectivenessthat includes data of the Brazilian Ministry of Education (MEC, 1997) makes it possible tochallenge the import of the utilitarian criteria with which educational investment in developedcountries is assessed.

    Key words: social capital, educational effectiveness, redistribution policies.

    Quarenta anos do Relatrio Coleman:capital social e educao

    Forty years of the Coleman Report: socialcapital and education

    Silvio Salej [email protected]

    05_Art04_Silvio.pmd 31/08/2005, 18:39116

  • 7/24/2019 [a] 40 Anos Do Relatrio Coleman

    2/14

    117

    volume 9, nmero 2, maio agosto 2005

    Quarenta anos do Relatrio Coleman: capital social e educao

    O conceito de capital social , naspalavras de Alejandro Portes (1998),um dos mais caros produtos de ex-portao sociolgica no ltimo de-cnio de pesquisas sociais. Consta-ta-se que a sociologia educativa umdos ncleos temticos onde mais foitestado o poder heurstico deste con-ceito. Porm, esta moda intelectualexige uma reconstruo analtica dosfundamentos tericos onde est fin-cado este locus de pesquisa. Aquinos defrontamos com a tarefafenomenolgica que exige passar dotemtico ao operatrio em sentidoreflexivo. Isto , do objeto perspec-tiva. Desta forma, pensamos que pertinente, para a prtica e a reflexoeducativa, salientar os princpiosconstitutivos dos trabalhos de JamesS. Coleman e de Pierre Bourdieu. Tra-ta-se de figuras emblemticas da so-ciologia educativa em campos cultu-rais diversos: o primeiro no mundoliberal utilitrio dos EE. UU. e o se-gundo na tradio humanista do eixofranco-alemo que deu origem edu-cao pblica garantida pelo Estado.A partir do clebre relatrio Coleman(1966), o investimento pblico-educativo ficou sob suspeita de ine-ficincia. Assim, a perspectiva docapital social sob a tica dos laosprimordiais, da vida privada na fam-lia e da vida comunitria, aportaria asmelhores evidncias do xito esco-lar. Porm, h dados que obrigam arevisar esta perspectiva liberal do in-vestimento educativo. Novas evidn-cias estatsticas, a partir de uma mi-nerao feita com dados do Sistemade Avaliao da Educao Bsica,SAEB/95 (Brasil), colocam em ques-to a importao acrtica do discur-so do capital social.

    O capital social no camposociolgico

    Uma atenta reviso do indexadorSociological Abstracts (1988-2001)permitiu fazer o seguinte desenho do

    campo de pesquisa sociolgica onde foiutilizado o conceito de capital social.

    (a) Existe um verdadeiro cresci-mento exponencial das pesquisassobre o capital social no perodo quevai de 1988 at o 2001. Vale destacarque a infinita maioria das publicaesaparece na lngua franca da cincia con-tempornea, o ingls, e nenhuma emlngua portuguesa. (Ver Figura 1).

    (b) O conceito de capital socialaparece, na maior parte dos 326 re-gistros aportados pela base de da-dos, como varivel explicativa dediversos fatos sociais. A menor partedas referncias bibliogrficas assu-me o capital social como uma vari-vel que precisa de esclarecimentostericos ou que deva ser submetidaa explicaes empricas, estes doissentidos ficaram registrados na cate-goria de varivel dependente. (VerFigura 2).

    De acordo com os campostemticos, merece ser destacada suaaplicao em (Figura 3): sociologiaeconmica, polticas pblicas, cin-

    cia poltica e sociologia da educa-

    o. De longe, o artigo Social Capi-tal in the Creation of Human Capi-

    tal,de James Samuel Coleman (1988), a obra seminal que inspira grandeparte das pesquisas indexadas nocampo da sociologia educativa. Tam-bm, constata-se que a quase totali-dade das pesquisas empricas, emmatria de educao, est referida aosEE. UU.

    Analtica para um debatesobre capital social

    Visando recuperar o que h de

    pertinente para a pesquisa educativa,salientamos que a construo teri-ca do capital social uma espciede elipse com dois focos. Em primei-ro lugar, algumas formulaes des-vendam que existem assimetrias naobteno de recursos atravs dasredes de relao social; este pode serchamado de foco estruturalista. Em

    segundo lugar, outras formulaespartem do pressuposto de que rela-es de troca simtricas permitem aobteno de recursos presentes nasestruturas de relao social, o quepode ser chamado de foco utilitaristaou econmico.

    Alm dessas diferenas, as duasperspectivas so convergentes naidia de que as relaes sociais cons-tituem um patrimnio no visvel,mas altamente eficaz, ao servio dossujeitos sociais, sejam estes indivi-duais ou coletivos. Neste sentido, seas relaes esto baseadas na reci-procidade e na expectativa de cum-primento mtuo caso contrrio ha-veria sano social os motores daao coletiva sero a confiana e acooperao.

    Foco estruturalista:Pierre Bourdieu

    Na literatura sociolgica, quemprimeiro falou de capital social foiPierre Bourdieu, em dois artigos bre-ves: Le capita l social : notesprovisoires (1980)eLes trois tats ducapital culturel (1979). Nestes traba-

    lhos so identificadas trs formas dis-tintas de capital: econmico, culturale social, dando destaque a seus me-canismos de acumulao e converso.

    A anlise de Bourdieu questionao olhar demasiado estreito da teoriaeconmica, pois esta fixa sua aten-o s no capital econmico materia-lizado em dinheiro e institu-cionalizado em forma de direitos depropriedade. Desta perspectiva, ouniverso dos intercmbios reduzi-do troca mercantil, onde os agen-

    tes econmicos procuram amaximizao de seu interesse; as ou-tras formas de troca, por no seremeconmicas, ficam fora do campo deanlise. Como alternativa a esta re-duo, Bourdieu prope o desenvol-vimento de uma cincia geral da eco-nomia prtica capaz de estudar o ca-pital, entendido como poder, em to-

    05_Art04_Silvio.pmd 31/08/2005, 18:39117

  • 7/24/2019 [a] 40 Anos Do Relatrio Coleman

    3/14

    118

    Educao Unisinos

    Silvio Salej H.

    das suas formas. por isso que tam-bm so identificados o capital cul-tural e o social.

    A noo de capital social se impecomo o nico meio de designar o prin-cpio de efeitos sociais que, emborapossam ser captados de forma clarano nvel dos agentes singulares ondese situa inevitavelmente a pesquisaestatstica , no se deixam reduzir aoconjunto de propriedades individuaisque possui um agente determinado:estes efeitos [...] so particularmentevisveis em todos os casos onde dife-rentes indivduos obtm um rendimen-to demasiado desigual de capital (eco-nmico ou cultural) quase equivalentesegundo o grau em que eles podem

    mobilizar por procurao o capital deum grupo (famlia, antigos alunos deescolas de elite, clube seleto, nobre-za, etc.) mais ou menos constitudocomo tal e mais ou menos munido decapital (Bourdieu, 1980, p. 2, tradu-o nossa).

    Bourdieu entende por capital so-cial o agregado dos recursos atuaisou potenciais, vinculados posse deuma rede duradoura de relaes defamiliaridade ou reconhecimentomais ou menos institucionalizadas

    (Bourdieu, 1980, p. 2).Nesta defini-o devem distinguir-se, por umaparte, as relaes sociais que permi-tem ao indivduo obter recursos, poroutra, a qualidade e quantidade des-ses recursos1.

    Este ativo pessoal oferece vanta-gens aos indivduos, famlias ou gru-pos que esto melhor relacionados.Tal compreenso difere daquelas sus-tentadas por intelectuais norte-ameri-canos como Robert Putnam (1996) eFrancis Fukuyama (2000), os quais

    nutrem o horizonte ideolgico das ins-tituies multilaterais (FMI, BancoFigura 3.Capital social como varivel explicativa: campos temticos.

    Figura 2.Capital social como varivel dependente e explicativa.

    Figura 1.Capital Social Publicaes por ano.

    1Em seu denso artigo de duas pginas, Bourdieu (1980) expe os tpicos gerais contidos na noo de capital social: a) o tipo de relaes instauradaspelo reconhecimento e pela troca de bens materiais e simblicos, b) o efeito multiplicador sobre outras formas de capital, c) os signos de reconhecimentoque constituem os limites de grupo, d) as instituies que favorecem sua reproduo e) a regulamentao interna para impor limites ao controle,concentrao, concorrncia e delegao dos indivduos dentro do grupo. Bourdieu (1980) cita os seguintes exemplos de grupos dotados com capitalsocial: famlia, antigos alunos de escolas de elite, clubes seletos, partidos, igrejas, associaes e naes. Destaca-se sua insistncia nos problemas deconcorrncia entre os indivduos pelo controle e reproduo do capital grupal em sentido amplo (simblico, cultural, financeiro), o mesmo que o espritode corpo que atribui aos grupos dotados de capital social.

    05_Art04_Silvio.pmd 31/08/2005, 18:39118

  • 7/24/2019 [a] 40 Anos Do Relatrio Coleman

    4/14

    119

    volume 9, nmero 2, maio agosto 2005

    Quarenta anos do Relatrio Coleman: capital social e educao

    Mundial). Para estes, o capital socialconsiste em um bem comunitrio oqual supe a existncia de grupos ho-mogneos com valores e interessescomuns. Porm, esta idia no levaem conta a inequitativa distribuio ereproduo do poder nem a reprodu-o das desigualdades sociais.

    Por sua parte, o capital cultural composto por trs nveis: encarna-do no indivduo na forma dehabitus, objetivado em bens cultu-rais ou institucionalizado em formade credenciais ou diplomas.Bourdieu (1979) considera que asescolas no so lugares onde sejadistribudo o capital cultural, pelocontrrio, so lugares de valoriza-o e legitimao do capital culturalda classe mdia e alta, ficando as-sim coisificado e recompensado.Aprofundando o conceito de capi-tal cultural, preciso reconhecerque se afasta da teoria econmicado capital humano em razo de queesta no reconhece a funo quecumpre o sistema educativo na re-produo da estrutura social.

    A perspectiva de Bourdieu temsido objeto de diversas crticas. Suaanlise do poder e da dominao considerada mecanicista, sobre-determinista e inflexvel, no sentidode que no leva em conta a iniciativahumana, as complexas dinmicas decriao, resistncia e acomodaosocial. Segundo Portes e Mooney(2000), o tratamento por ele dado aoconceito de capital social se mantmnuma perspectiva instrumental, poisestaria baseada no proveito que osindivduos obtm ao participar emestruturas sociais.

    Cabe ressaltar que Bourdieu noaprofundou suas notas preliminaressobre capital social, ficando suaproposta em estado embrionrio semque se conheam desenvolvimentosem sua produo intelectual poste-rior. Sua maior contribuio foi ten-tar superar a teoria do capital presa dicotomia econmico/no-econmi-

    co, bem como seus aportes para es-clarecer as relaes entre cultura, re-des sociais e poder.

    Foco utilitarista: JamesColeman

    Este socilogo norte-americano uns dos autores que mais contribuiupara o desenvolvimento e difuso doconceito de capital social. Sua opusprimum, Foundations of SocialTheory (1994), deve ser consideradaum ponto de referncia obrigatriopara a compreenso de conjunto doprojeto epistemolgico do qual fazparte o conceito em questo. Aqui

    nos limitamos a analisar o argumen-to central do artigo TheSocial Ca-pital inthe Creation of Human Ca-

    pital (Coleman, 1988).Para Coleman, o ponto de partida

    consiste em comparar as perspecti-vas a partir das quais a sociologia ea economia entendem a ao social eo ator social. A primeira v o atorcomo sujeito socializado e sua aogovernada por normas sociais, re-gras e obrigaes. Em sentido estri-to, entendeque a direo da ao

    formada, constrangida e dirigidapelocontexto social; em sentido amplo, oator social no pode ser entendidocomo uma mquina de ao, vistoque no existem propsitos ou sen-tidos internalizados. A segunda v oator como um ser que procura metas,independentemente de que sejamatingidas, como algum que atua comindependncia e com interesses. Emsentido estrito, esta forma de atua-o constitui-se em remdio s pai-xes prprias da religio e da identi-

    dade tnica; em sentidoamplo, con-sidera que as aes so moldadas,dirigidas econtroladaspelo contex-to social. Deste modo, uma tentativade fazer sntese da dupla perspecti-va da sociologia e da economia de-ver entender o indivduo como umagente com metas e interesses que

    atua dentro dos limites de seu entor-no social.

    A partir dessa perspectiva,Coleman v o capital social, de formasemelhante a outras formas de capi-tal, como produtivo no sentido de quetorna possvel atingir certos fins quede outra maneira no seriam atingi-dos. Ao contrrio do capital fsico ouhumano, o capital social derivadode estruturas de relaes por meiodos atores e entre os atores. O capi-tal social no tangvel como se fos-se um edifcio ou uma estrada, no uma caracterstica da pessoa, comoo nvel educativo ou as destrezas. altamente intangvel, s existe noespao relacional por meio e entre aspessoas, est mais associado commudanas nas crenas e opinies daspessoas. Na Tabela 1 se estabeleceuma comparao entre os trs tiposde capital fsico, humano e social.

    Para Coleman, o capital social entendido em termos funcionais, isto, consiste em todos aqueles elemen-tos de uma estrutura social que cum-prem a funo de servir como recur-

    sos para que atores individuais atin-

    jam suas metas e satisfaam seus in-

    teresses. Dentro das estruturas soci-ais h, pelo menos, trs grupos deelementos com essa funcionalidade:em primeiro lugar, as obrigaes, ex-pectativas e lealdades, em segundo,os canais de informaes e, em ter-ceiro, as normas e as sanesestabelecidas. As obrigaes podemcontar com diferentes graus de reci-procidade, levando em conta o tem-po e o motivo: por exemplo, quandouma pessoa A faz algo para outra B econfia que B d um retorno do favorno futuro, ou, quando entre amigos,A empresta o carro para B e B o de-volve com o tanque de gasolinacheio, ou, quando num senso decolegialidade, A l os escritos de B evice-versa. Baseado nesse tipo derelao, infere-se que a reciprocida-de possui duas dimenses: a lealda-de do entorno social, o que significa

    05_Art04_Silvio.pmd 31/08/2005, 18:39119

  • 7/24/2019 [a] 40 Anos Do Relatrio Coleman

    5/14

    120

    Educao Unisinos

    Silvio Salej H.

    que as obrigaes sero retornadas,e o estado atual das obrigaes. Nes-te sentido as estruturas sociais dife-rem em ambas as dimenses, en-quanto que os atores, dentro da mes-ma estrutura, se diferenciam na se-gunda dimenso. Por sua parte, oscanais de informao reduzem cus-tos atravs de pessoas que tm in-formao pertinente e a compartemcom a rede social. Por sua vez, asnormas tm por funo especficainibir os comportamentos negativosque debilitam o capital social.

    Como um exemplo claro do valorque tem a lealdade do entorno soci-al, Coleman menciona as associa-es de crdito rotativo do sudesteasitico. Nelas, todos os membroscontribuem ao fundo comum, porm,alguns membros tm prioridade nouso do fundo. Tal prioridade exigeque os outros membros acreditemque esse crdito ser devolvido.Sem um alto nvel de confiana en-tre os membros, a instituio noexistiria.

    Por ltimo, preciso notar queColeman reconhece a existncia dediferenas entre estruturas sociaisque obedecem a distintos motivos:as necessidades concretas que le-vam as pessoas a interagir com ou-tras, a existncia de fontes alternati-vas de recursos, o grau de aflunciados recursos, a capacidade de ges-to para obter ajuda, a coeso dasredes sociais e a logstica para con-tatos sociais. Mas em nenhum mo-mento Coleman explcito em afir-

    mar que existem estruturas sociaisabertamente excludentes que impe-dem o acesso de indivduos ou gru-pos aos recursos de que precisam.

    O que est em jogo:redistribuio oureciprocidade?

    As perspectivas anteriores so aspontas de um grande icebergteri-co que exige ser analisado na suatotalidade. Considerado o significa-do das palavras, chama a atenoque o conceito capital social apon-ta na direo de uma fronteira amb-gua entre o econmico e o social,buscando construir uma ponte en-tre as cincias sociais e as cinciaseconmicas. Mas em que termospode ser formulada a relao entreeconomia e cincias sociais?

    Para esclarecer essa relao, aeconomia neo-institucional e a soci-ologia econmica vm reabilitandoos trabalhos do historiador econ-mico Karl Polanyi (1886-1964) comouma fonte de intuies lcidas quepermitem compreender o lugar dasprticas econmicas no conjuntodas prticas sociais. Para efeito deexplicitar melhor o ponto de fuga dasperspectivas tericas de Bourdieu eColeman, trazemos a nosso racioc-nio as pontes conceituais, cons-trudas por Polanyi (1957), possibili-tando dar conta das relaes entreeconomia e sociedade.

    Polanyi comea por distinguirossentidos substantivo e formal da

    economia o que, a seu juzo, passouindiferenciado para muitos socilo-gos e economistas como Marshall,Pareto, Durkheim, Weber e Parsons.O primeiro sentido deriva da condi-o dependente do ser humano, deseu intercmbio com o ambiente so-cial e natural onde possa encontraros meios materiais que satisfaamsuas necessidades. O segundo sen-tido deriva da relao lgica meios fim. Refere-se situao de escolhainduzida pela escassez de meios. algica que governa a escolha de mei-os, este o sentido do econmicoquando falamos de economizar.Mas o sentido formal e substantivoda economia no tem nada em co-mum e suas relaes so contingen-tes. A coerncia que est em jogonum caso e no outro difere em comoo poder do silogismo difere da forade gravitao. As leis de um so as damente, as leis do outro so as da na-tureza (Polanyi, 1957). Cada um em-purra a ao em direes opostas.

    Nesse contexto, faz dois sculosque o sistema predominante da vidahumana o mercado guiado por pre-os. Nele, a nica ao racional aescolha de meios em relao aos fins.Dessa forma no se considera qual ofim mais racional, se viver ou morrer,noimporta. Nessa linha de racioc-nio, at um suicida estaria submetido lgica de ferro de escolher os meiosmais eficientes para atingir seu obje-tivo, isto , aqueles que reduzem oscustos. Trata-se de obter mais commenos. No sistema econmico de

    Tabela 1 Comparativo dos tipos de capital (Coleman, 1988).

    Fonte: elaborao prpria a partir de Coleman (1988).

    05_Art04_Silvio.pmd 31/08/2005, 18:39120

  • 7/24/2019 [a] 40 Anos Do Relatrio Coleman

    6/14

    121

    volume 9, nmero 2, maio agosto 2005

    Quarenta anos do Relatrio Coleman: capital social e educao

    mercado guiado por preos, o proble-ma que desafia a racionalidade formaldos atores o de destinar um recursoescasso: o dinheiro. Assim, quandose concentra nos preos, como fatoeconmico por excelncia, o mtodoformal de aproximao oferece umadescrio total da economia.

    O que merece maior destaque noargumento de Polanyi a idia deque a economia, em sentido substan-tivo, um processo institudo deinterao entre o ser humano e seuentorno natural e social. ainstitucionalidade que lhe confereunidade e estabilidade atravs deuma estrutura com funes defini-das na sociedade. O que deve serlevado em conta o fato de que aeconomia est submersa em institui-es econmicas e no econmicas.

    Estudar o lugar que ocupa a econo-mia numa sociedade em mudanaconstante no diferente de estudara forma como o processo econmico institudo em diferentes tempos elugares. O primeiro passo, para en-tender como as economias empricasso institudas, consiste em reco-nhecer os diferentes modos paraobter unidade e interdependnciaentre seus diferentes elementos.Polanyi distingue trs padres deintegrao, os quais esquematizamosna Tabela 2.

    Levando em conta os conceitosde Polanyi, vejamos agora os pro-blemas que levantam as diferentes pers-pectivas sobre capital social. No casode Coleman, trata-se de uma leitura ins-trumental das estruturas sociais deinterao, isto , colocam-se em cor-

    respondncia biunvoca o padro dointercmbio e o padro da reciprocida-de. Quando fala de obrigaes rec-procas, de troca de informaes e de

    normas que inibem os comportamen-tos que afetam a confiana e a recipro-cidade, assume as seguintes premis-sas bastante discutveis:

    S existem no mundo social asregras do jogo (instituies) queimplantam a reciprocidade e o in-tercmbio;

    A simetria dos grupos humanos,onde esto institudas normas de re-ciprocidade, se faz extensiva s rela-es de intercmbio na forma de ummarco normativo.

    O que est embaixo da ponta dobloco de gelo a idia de que a soci-abilidade pode melhorar o desempe-nho das atividades econmicas lu-

    Tabela 2 Padres de integrao econmica.

    Fonte: elaborao prpria a partir de Polanyi (1975).

    05_Art04_Silvio.pmd 31/08/2005, 18:39121

  • 7/24/2019 [a] 40 Anos Do Relatrio Coleman

    7/14

    122

    Educao Unisinos

    Silvio Salej H.

    crativas em populaes carentes evulnerveis. Trata-se de uma linhareta entre simetria e intercmbio sempassar pela redistribuio ou, o que mais problemtico ainda, acreditarque o intercmbio feito sobre nor-mas de reciprocidade elimina os pro-blemas de redistribuio em grandeescala social. Podemos suspeitar quese trata de uma nova verso do libe-ralismo econmico para aclimatarsuas velhas idias de que (a) as rela-es do mercado acontecem em mun-dos sociais onde os indivduos sosimtricos, (b) o mercado a formamais eficiente de localizar os recur-sos produtivos, e (c) o mercado emsi mesmo redistribuidor ao conse-guir o the social optimum (idia damo invisvel). Parodiando o evan-gelho, seria um vinho velho emodres novos.

    Bourdieu, por sua parte, nos per-mite levar em conta que o capital so-cial, em sentido utilitrio, um ati-vo repartido em forma desigual. Asredes sociais, s quais esto vincula-dos diversos indivduos, no ofere-cem as mesmas potencialidades paraobter recursos da mesma quantidadee qualidade. Esta perspectiva abre apossibilidade para incorporar, na dis-cusso sobre capital social, o padroinstitucional da redistribuio. Assim,entram em jogo as relaes entre po-der social e autoridade poltica comofatores decisrios do modo, da quan-tia, do momento e do lugar onde de-vem ser alocados os excedentes pro-duzidos pela sociedade.

    Quarenta anos dorelatrio Coleman

    Cientes da polaridade entre re-ciprocidade e redistribuio, cabe-

    nos agora entender de que formaas pesquisas sociolgicas deJames S. Coleman introduzem estadisjuntiva no campo da educao.Sem dvida nenhuma, Colemanpode ser considerado, no contex-to dos Estados Unidos, como a fi-gura estelar do projeto epis-temolgico que visa a refundar ateoria social no patamar do indivi-dualismo metodolgico, ao estiloda chamada revoluo marginalistada cincia econmica. fundamen-tal lembrar isto porque permiteentender que sua anlise, sobre oimpacto do capital social no de-sempenho escolar, coerente comsua viso do papel da sociologiano que ele chama de reconstru-o racional da sociedade(Coleman, 1993), ou seja, com aidia de que a sociologia deve es-tar a servio de uma engenhariasocial nos moldes do individualis-mo metodolgico, engenharia quetambm teria por misso o dese-nho organizacional de instituieseducativas eficientes.

    No ano de 1966, no contexto daslutas pelos direitos civis, o Con-gresso dos Estados Unidos publi-ca o relatrio final da chamada Co-misso Coleman: Equa li ty ofEducat ional Opportunity (Cole-man et al.,1966). O informe se tor-nou obra de referncia em matriade sociologia educativa. O mtodoestatstico, inovador para a poca,e os resultados da equipe de pes-quisa, chefiada pelo socilogo deChicago, no poderiam ser menosparadoxais. Enquanto os movimen-tos raciais lutavam pela justia emmatria de oportunidadeseducativas, o relatrio afirmava:

    Schools bring little influence to bearon a childs achievement that isindependent of his background andgeneral social context, and that this

    very lack of an independent effectmeans that the inequalities imposedon children by their home,neighborhood, and peer environmentare carried along to become theinequalities with which they confrontadult life and the end of school(Coleman et al., 1966).

    A Tabela 3 uma anlise de comoa vida familiar com os recursos neladisponveis e a percepo docentesobre a qualidade dos estudantesso as nicas variveis que apresen-

    tam valores significativos no mode-lo de regresso realizado porColeman. Note-se, tambm, que osrecursos escolares no apresentamsignificnciaestatstica. Tais resul-tados geram dvidas em relao formulao de que um maior investi-mento em educao pblica tenhaimpacto significativo na reduo dasdesigualdades sociais.

    Igualmente, as evidncias do re-latrio, examinadas estatisticamente,dariam lugar para a cida recepo

    que fez Coleman, poucos anos de-pois, deA Theory of Justice do fil-sofo John Rawls ([1971] 2000). Umaanlise retrospectiva do ReviewEssay, Inequality, Sociology, and

    Moral Philosophy (Coleman, 1974)nos permitir entender melhor asconvices polticas que modelam asociologia educativa de Coleman eseu conceito de capital social2.

    A crtica de Coleman aRawls

    Mais que o contedo de sua dis-

    2Digamos de passagem que o postulado regulativo weberiano, da separao entre juzos de fato e juzos de realidade, continua a ser confundido comum princpio constitutivo de conhecimento objetivo. Em decorrncia desta iluso, alguns pesquisadores afirmam que o conceito de capital social umaferramenta analtica desprovida de qualquer julgamento ou aspecto moral (Reis, 2003). Esta continua a ser uma polmica hermenutica em aberto; slembramos, com Durkheim, que a sociologia, e o socilogo, portanto, jogam tudo no ideal normativo. Isto , o objeto da sociologia o fato moral doqual o prprio socilogo faz parte.

    05_Art04_Silvio.pmd 31/08/2005, 18:39122

  • 7/24/2019 [a] 40 Anos Do Relatrio Coleman

    8/14

    123

    volume 9, nmero 2, maio agosto 2005

    Quarenta anos do Relatrio Coleman: capital social e educao

    cusso com a idia de justia deRawls, da qual somente nos ocupa-remos de forma tangencial, o que in-teressa reconstruir aqui o argumen-to pelo qual Coleman valida suasconcluses normativas a partir dosdados do relatrio e de sua teoriasocial. Apesar das diferenas emsuas aspiraes e modus operandi,a filosofia moral e a sociologia tmcompartilhado um problema espec-fico, o funcionamento da sociedade,e a relao do indivduo com a soci-edade (Coleman, 1974, p. 739). Estadeclarao insinua o caminho atonde se pretende conduzir a refle-xo: a natureza irredutvel do indi-vduo.

    A questo que norteia o trabalhode Rawls, de acordo com Coleman, a de saber como pode se caracteri-zar, em princpio, uma sociedade jus-

    ta, isto , aquela onde sejam preser-vados de forma simultnea os direi-tos e a autonomia individual, por umaparte, e os benefcios que emanamda ordem social, por outra o quecorresponde tenso entre oindividuo e a sociedade. MasColeman lamenta que os socilogostenham estado afastados dessasquestes normativas; segundo ele,os socilogos tm visto tais ques-tes normativas como se fosse umassunto fora de sua provncia, comose procurassem uma cincia isentade valores (Coleman, 1974, p. 742).Por isso, uma teoria sobre a justiano pode ser algo diferente de umateoria normativa sobre a ordem social.

    Para ele, a obra de Rawls([1971]2000) pode ser consideradacomo o esforo mais brilhante, dosculo XX, por atualizar as teorias

    clssicas do contrato social. Por talmotivo, o ponto de partida no po-dia ser diferente do indivduo, aque-le que determina entrar num pactode mtuo benefcio com outros indi-vduos. Alm das inovaes em ma-tria de filosofia moral e os proble-mas de coerncia que podem seridentificados no raciocnio de Rawls,o que mais interessa ao socilogo o perfil de sociedade que se dese-nha na teoria da justia3. Assim, aprimeira observao de Coleman quea justia de Rawls no significaigualitarismo homogneo, pelo con-trrio, sua teoria pretende demons-trar sob que condies determinadasdesigualdades podem ser considera-das como justas. Na hiptese de queos bens primrios de uma sociedade(direitos, liberdades, poderes e opor-tunidades, renda e riqueza) estejam

    Tabela 3 Seleo de dados do Relatrio Coleman (1966).

    Sixth-Grade Northern Whites

    Verbal Achievement Mean = 36.148, S. D = 11.409

    Means, standard deviations, and standardized regression coefficients for selected independent variables in a number of regression

    equations with Verbal Achievement as the dependent variable.

    Significant at the .05 level.Significant at the .01 level.

    Fonte: Coleman et al. (1966).

    05_Art04_Silvio.pmd 31/08/2005, 18:39123

  • 7/24/2019 [a] 40 Anos Do Relatrio Coleman

    9/14

    124

    Educao Unisinos

    Silvio Salej H.

    repartidos de forma semelhante, sse podem aceitar como justas as desi-gualdades que elevem a posio dosmais fracos por cima da mdia de dis-tribuio ideal. Mas como a desigual-dade pode melhorar a situao dosque tm menos vantagens? Na visode Coleman, uma ordem social comuma distribuio desigual dos recur-sos e do poder pode ser mais produti-va que outra com iguais nveis de dis-tribuio de recursos e sem hierarqui-as pronunciadas. Porm, o critrio deRawls, de s aceitar desigualdadesque no deixem a ningum abaixo dosnveis de uma igualitria distribuiodos recursos e do poder, vai na con-tramo do critrio da eficinciautilitarista, segundo o qual as desi-gualdades esto justificadas somen-te se conduzem a melhores nveis deprodutividade.

    Qual o tipo de sociedade queest por trs da teoria da justia deRawls? Munido de um mapacategorial parsoniano, Coleman si-tua a sociedade justa de Rawls (Fi-gura 4) da seguinte forma (o eixo ver-tical caracteriza as instituies; o eixohorizontal, o acesso a recursos eposies sociais).

    Para Coleman, se se quer manter oprojeto de uma sociologia normativa,os princpios de Rawls devem sercontrastados com as pesquisasempricas sobre a desigualdade soci-al. O campo da sociologia educativa,sobre o qual Coleman tem amplo re-conhecimento em razo do relatrioantes citado, permite uma melhor com-preenso da direo na qual aponta-ria a justia entendida como imparcia-lidade e igualdade de oportunidades.Em termos educativos, a igualdade de

    oportunidades pode ser entendidasob dois aspectos: (a) os inputs derecursos com que contam as escolas,sem levar em conta os efeitos dos re-cursos nos resultados educativos, e(b) os resultados educativos(outputs), onde os inputs so avalia-dos em relao com o critrio de igual-dade. Quando se comparam resulta-dos de pesquisas empricas nos EE.UU., na dcada de 1970, encontra-seque, sob o critrio dos inputseducativos, a desigualdade de opor-tunidades entre raas pequena, masquando levado em conta o critriodos resultados, obtidos a partir dosmesmos inputs,as desigualdades sobem marcantes. Isto permite as se-guintes concluses: (a) a escolha docritrio no uma simples ginsticamental, pois condiciona o resultadoobtido, e (b) na explicao das dife-renas, avaliadas pelos resultados, o

    Figura 4 Coordenadas distributivas da sociedade.Fonte: elaborao prpria a partir de Coleman (1974).

    fator explicativo est nos recursos dis-ponveis nas famlias dos estudantes4.

    Levando em conta as conclusesanteriores, a idia da justia, no senti-do de igualdade de oportunidades noacesso s instituies educativas, pouco apropriada para avaliarnormativamente os fatos. Colemanpondera que na hora de reduzir a de-sigualdade se levanta um paradoxo:as transferncias de recursos pbli-cos (inputs) para as escolas (sejampblicas ou privadas) promovem aigualdade de acesso educao, masno alteram os desequilbrios na dis-tribuio dos recursos privados dis-ponveis para as famlias. Nesse sen-tido, uma questo se impe: como criarigualdade pblica em meio desigual-dade privada? Respond-la, sob a ins-pirao do critrio de justia de Rawls,provoca uma soluo com caracters-ticas que entram em coliso com a

    3Para Rawls, a j ustia um atributo que se predica basicamente das instituies nascidas do pacto social, atributo que tem uma acepo especfica:justia como imparcialidade (fairness). Mas como atingir esse ponto de equilbrio onde ningum tem vantagens? Rawls renova a fico do contrato socialcom um novo elemento que ele denomina o vu de ignorncia; todos os participantes do contrato devem atuar detrs de um vu que no lhes permiteenxergar qual ser sua posio na nova ordem institucional. Uma vez que todos compartilham o mesmo nvel de ignorncia, os participantes escolhemos seguintes princpios que constituiro a base de uma ordem social justa: Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistemade liberdades bsicas iguais que seja compatvel com um sistema semelhante de liberdades para as outras. Segundo: as desigualdades sociais eeconmicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites dorazovel, e (b) vinculadas a posies e cargos acessveis a todos (Rawls, [1971] 2000, p. 64).4Devemos destacar que o artigo seminal de Coleman (1988), sobre capital social, desenvolve a idia de que o fator diferenciador do rendimento escolar a rede de relaes na qual est submersa a famlia da criana ou do adolescente.

    05_Art04_Silvio.pmd 31/08/2005, 18:39124

  • 7/24/2019 [a] 40 Anos Do Relatrio Coleman

    10/14

    125

    volume 9, nmero 2, maio agosto 2005

    Quarenta anos do Relatrio Coleman: capital social e educao

    perspectiva normativa de Coleman.Vejamos:(a) Rawls pressupe uma ins-

    tncia central, na sociedade, com opoder de igualar o mundo privadodas famlias;

    (b) Ainda que assuma a pro-priedade privada como direito e acei-te a existncia dos mercados, Rawlspensa que os governos devem terum brao de transferncias com acapacidade de realocar uma poroda renda privada para garantir umarenda mnima para todos, e um bra-o de distribuioque regule a pro-priedade privada.

    Aos olhos de Coleman, as sadasanteriores resultam inaceitveis pe-las seguintes razes: (a) supe umcentralismo asfixiante com todos osriscos da privatizao do poder bu-rocrtico; (b) o universalismo buro-crtico que procura a igualdade deoportunidades uma ameaa parauma instituio particularista como afamlia e para a liberdade de escolha;(c) mesmo que se consiga equacionara distribuio dos recursos e do po-der, as diferenas brotaro como fru-to da atividade individual.

    Nesse contexto pode-se vizualizarcom maior clareza qual a declara-o de princpios tico-polticos qued flego sociologia de Coleman,na qual o capital social uma cate-goria qual se atribuem poderesheursticos. Seu ponto de partidaconsiste em corrigir o que ele consi-dera como mal-entendidos presen-tes na viso do contrato social qued origem justia como igualdadede oportunidades.

    Rawls cai no erro de colocar no lugarerrado o concreto: ele v o ator coleti-vo como o concreto, desenvolvido ede fato em pleno controle dos recur-sos, visando a estabelecer um critriode justia para esse ator. A questoprincipal saber quais recursos tminvestido os indivduos nesse atorcoletivo (Coleman, 1974, p. 756).

    De acordo com essa citao, apostura de Rawls aparece inscritanuma vertente do contrato social quese remonta a Hobbes e a Rousseau,segundo a qual os indivduos entramno contrato social em razo das van-tagens de longo prazo que este pro-mete. Por isso abraaram a soluoextrema de considerar que os direi-tos e recursos se sustentam de for-ma coletiva. Em oposio a esta idia,Coleman se declara herdeiro da ver-tente utilitarista do contrato social,que remonta a Locke e Mill, segun-do a qual os direitos so inerentess pessoas enquanto indivduos.Portanto, a assinatura do pacto so-cial no significa limitao alguma nogozo da liberdade natural, que, se-gundo Locke, abrange a vida e a pro-priedade privada.

    Desnudadas as convices pol-ticas de Coleman, no deve estranhara ningum que profira maldies so-bre o liberalismo de Rousseau, quese repetem com freqncia nos gran-des mestres do neoliberalismo.Hayek (inColeman, 1974), por exem-plo, chama o pensamento deRousseau de liberalismo mau.Rousseau muniu um fundamentofilosfico para o socialismo e em al-guns aspectos para as formas mo-dernas de totalitarismo, todas asquais tm atuado em nome do povo,ou dito em outros termos, da vonta-de geral (Coleman, 1974, p. 756).

    O ponto no negocivel deColeman a idia de que os direi-tos residem nos indivduos e deque o Estado s um atorcorporativo que cobra vida a partirdos investimentos individuais.Nesse sentido, a alternativa teri-ca que prope Coleman a de con-ceber uma ordem social onde umnico pacto permanente exista semuma pluralidade de pactos que doorigem a diferentes atorescorporativos (no sentido de coleti-vos), dentro dos quais participamos indivduos de forma simultnea

    (na famlia, na empresa, no clube,na corporao profissional e comocidado nos assuntos pblicos).Assim, o Estado s o atorcorporativo maior, dotado de po-der para fazer respeitar as leis e oscontratos que do origem aos in-meros pactos cotidianos. Sob essatica, existe uma escala gradativade atores corporativos que come-a nos atores de dois membros (ca-sais, amigos), passa por mltiplasformas de atores intermedirios atchegar ao Estado.

    Decorre dessa argumentao que,na perspectiva utilitarista deColeman, a redistribuio da riquezano um direito coletivo que autori-za a desapropriar a riqueza privada.No tem o Estado, nem instituionenhuma, direito de confiscar o queproduzem e trocam os atores soci-ais, sejam estes individuais oucorporativos. Deste modo, podemosentender melhor o lugar que ocupa oconceito de capital social no projetoterico de Coleman. Trata-se de umconceito que visa a explorar o po-tencial corretivo das estruturas so-ciais sobre as relaes de troca eco-nmica. Porm, o carter corretivo pensado em termos de controle so-cial. Assim, devemos lembrar que anfase de Coleman, em sua idia decapital social, est nas microrrelaessociais (clonagem da economianeoclssica), onde o importante odireito que outorgam as normas so-ciais para premiar os efeitos positi-vos, e castigar os negativos, dasaes individuais ou corporativas.Neste sentido, o que importa no ocontrole social sobre a acumulaoagregada da riqueza social, o que in-teressa a forma como se controlamos comportamentos oportunistas emmercados especficos, caso da co-munidade judia de Nova Iorque quevende diamantes, ou como se apro-veitam as vantagens do controle dosadultos sobre todas as crianas deum bairro, caso da cidade de Jerusa-

    05_Art04_Silvio.pmd 31/08/2005, 18:39125

  • 7/24/2019 [a] 40 Anos Do Relatrio Coleman

    11/14

    126

    Educao Unisinos

    Silvio Salej H.

    lm (Coleman, 1988).

    A oferta educativaestatal: um investimento

    intil?Os resultados do relatrio

    Coleman constituram uma dmarchesociolgica em matria educativa.Criou-se um movimento de pesquisasobre a eficcia escolar cujo foco aanlise dos fatores que fazem a dife-rena em matria de aproveitamentoescolar. Apareceram diversos mode-los analticos e tcnicas para o le-vantamento de informaes5. O pr-prio Coleman avanou em suas an-lises sobre os resultados do relat-rio, inclusive fez novas anlises deregresso para ajustar seus dadosiniciais. Porm, o mais importante resenhar aqui como Coleman (1988)utiliza seu conceito de capital socialpara desagregar os componentes dofamily background que tm inci-dncia nos resultados do desempe-nho escolar. Distingue assim: a) ocapital financeiro da famlia,mensurado em termos de renda, eque proporciona os meios fsicos quefavorecem o aprendizado das crian-as (lugar fsico apropriado, materi-ais e outras ajudas no aprendizado);b) o capital humano, mensurado naescolaridade dos pais; c) o capitalsocial que se expressa na intensida-de das relaes intrafamiliares.

    Para Coleman (1988), o diferenci-al do influxo da famlia no aproveita-mento escolar dos filhos dado pelotempo que os pais, ou outros paren-tes, gastam nos assuntos da forma-o intelectual e afetiva das crian-as. Destarte, pode haver lares comalto capital humano (alta escolarida-de dos pais), mas que no o tradu-zem em bom rendimento escolar dosfilhos, dado que o capital social, arelao pais e filhos, muito fraca.Sem entrar nos detalhes de sua pes-

    quisa por amostragem aleatria com4000 estudantes de escolas pblicasnos EE. UU. (Coleman and Hoffer,1987, citado em Coleman, 1988), jul-gamos til destacar que o capitalsocial, com impacto na criao decapital humano intergeneracional,est presente dentro e fora da fam-lia. O capital social intrafamiliar foioperacionalizado na forma de trssubvariveis explicativas presen-a de um ou dois pais no lar, nmerode filhos e expectativa materna emrelao educao dos filhos comincidncia na varivel resposta dadesero escolar. O capital socialextrafamiliar, constitudo pelas den-sidade das relaes entre pais de umaescola e destes com as instituiesda comunidade, foi operacionalizadaatravs do comparativo da deseroescolar entre escolas pblicas e pri-vadas de cunho religioso.

    No est em discusso aqui acompetncia metodolgica e a reco-nhecida trajetria da pesquisaeducativa de Coleman. O que resultaproblemtico que, depois de 40anos de pesquisa sobre eficcia es-colar, os resultados do relatrioColeman parecem inamovveis: noh evidncias de uma relao causalentre recursos da escola e o rendi-mento acadmico.

    Por tanto, con los estudios que sehan realizado hasta el momento esprcticamente inexistente la eviden-cia que apoya la idea de que el incre-mento de los recursos escolares faci-lita directamente la mejora de los re-sultados obtenidos por los alumnosde una escuela(Gaviria, et al., 2004).

    Tudo pareceria indicar que o in-vestimento pblico em busca de umamelhora da qualidade educativa es-taria fadado ao fracasso. Com isso, aperspectiva e as evidncias deColeman sobre o impacto do capitalsocial na criao de capital humano

    seriam o melhor argumento paraimplementar polticas pblicas decunho liberal em matria educativa.Se o diferencial educativo est nombito dos laos primordiais da fa-mlia e da comunidade, que por se-rem primordiais no deixam de serprivados, ento no fica difcil en-tender por que se pretende desbancara educao como um direito univer-sal garantido pelo Estado, e simconvert-la num servio social quepode ser prestado pela iniciativa pri-vada. Parte-se do axioma de que oEstado no deve subsidiar a ofertaeducativa e sim sua demanda. Emtermos prticos, a melhora da quali-dade e a universalizao do servioeducativo seriam atingidas via cres-cimento econmico, pois este permi-tiria melhoras na renda da popula-o, e ao Estado s caberia regular omercado educativo e alocar bolsasde estudo para a populao que notem renda suficiente.

    Porm, comea a ser reavaliadaa pertinncia das teorias da efic-cia escolar para pases no indus-trializados (Harber e Davies, 1997;Morley e Rassol, 1999; Scheerens,2001, citados por Gaviria et al.,2004). O motivo fundamental queo efeito patim do investimentopblico (cada dlar adicional inves-tido no traria uma melhora margi-nal do rendimento escolar), cons-tatado em escolas de sociedadesabastadas, falseado por pesqui-sas feitas em pases emergentescomo o Brasil.

    Em pesquisa recente, Gaviria et al.(2004) fizeram uma explorao secun-dria dos dados da avaliao do en-

    sino bsico brasileiro corresponden-te ao ano 1995 (SAEB/95), avaliaofeita pelo Ministrio da Educao(MEC) em 1997. Para os propsitosda presente reflexo, s queremossalientar duas inovaes dessa pes-quisa estatstica: seu modelo esta-

    5Gaviria et al.(2004) fazem uma sucinta compilao das principais pesquisas internacionais em matria de eficcia escolar.

    05_Art04_Silvio.pmd 31/08/2005, 18:39126

  • 7/24/2019 [a] 40 Anos Do Relatrio Coleman

    12/14

    127

    volume 9, nmero 2, maio agosto 2005

    Quarenta anos do Relatrio Coleman: capital social e educao

    tstico e seus resultados. Os pesqui-sadores partiram de duas hipteses:

    La hiptesis de trabajo que se quierevalidar es que cuando se alcanzan unos

    mnimos, las diferencias en los recur-sos materiales asignados a las escuelasno parecen tener gran importancia enla explicacin de las diferencias derendimiento. Si, por el contrario, nose alcanzan, los recursos tienen unaincidencia importante, lo que ocurreen los pases en vas de desarrollo(Gaviria et al., 2004).

    Em termos metodolgicos, as va-riveis clssicas sobre eficcia es-colar (caractersticas dos indivduos

    quando de sua entrada no sistema,variveis do sistema escolar,mensurao dos resultados dos in-divduos) foram modeladas de formahierrquica, em ateno a que os da-dos individuais, ou unidade da an-lise na varivel resposta, apresentama caracterstica irredutvel de estar

    incorporados em unidades maiores.Isto , os modelos de regresso hie-rrquicos tm desenvolvido a possi-bilidade de captar a varincia queresulta da insero dos indivduosna turma de classe, desta na escola,e da escola no contexto mais amplo.Sem esta ferramenta estatstica notemos como controlar o impactohomogeneizador dos nveis superi-ores nos indivduos da amostra, como qual se estaria violando um critriobsico da validade estatstica: o noenviesamento. As variveis do mo-delo, ajustado segundo procedimen-tos habituais de correlao, estoexpostas na Tabela 4.

    A pesquisa chegou a uma con-cluso clara: os recursos escolaresimportam muito. Entre os principaisachados se destacam: (a) De formadiferente aos estudos em pases de-senvolvidos (Hanushek, 1997, cita-do em Gaviria et al., 2004), os recur-sos das escolas brasileiras (existn-

    Tabela 4 Variveis do modelo (ajustado segundo procedimento de correlao).

    Fonte: elaborao prpria a partir de Gaviria et al.(2004)

    cia e qualidade da biblioteca, labo-ratrios, informtica, vdeos, etc.)incidem de forma significativa nodesempenho dos indivduos; (b)quanto maior a percentagem docontedo desenvolvido pelo pro-fessor melhor o aproveitamento;(c) o livro de texto, como materialestruturado, melhora o rendimento;(d) o fato de uma escola estar situ-ada num determinado Estadofederado no um fator aleatrioem matria de rendimento escolar.A diferena fundamental no queas escolas de um Estado contemcom mais recursos que as de ou-tro; o que dizem os coeficientes deregresso que as escolas em de-terminados Estados so mais efici-entes que outras. Os pesquisado-res esclarecem que para explicaressas diferencias no contam comdados relevantes do contextosociocultural e socioeconmicodos Estados.

    05_Art04_Silvio.pmd 31/08/2005, 18:39127

  • 7/24/2019 [a] 40 Anos Do Relatrio Coleman

    13/14

    128

    Educao Unisinos

    Silvio Salej H.

    Concluses

    A maior parte das pesquisas, emmatria de sociologia da educao,

    operacionaliza o conceito de capitalsocial na linha utilitarista de JamesSamuel Coleman (1966, 1988). Porm,deve-se esclarecer que esta uma,inter alia, das perspectivas de an-lise que cabe a este conceito. Umareconstruo atenta, de seu uso do-minante na sociologia econmica,permite entender que o utilitarismo,do qual Coleman se declara um se-guidor matizado, parte da premissado agente individual pr-corporativoque tece relaes sociais primordi-

    ais com poder de controle social. Taisrelaes do lugar a estruturasnormativas baseadas no princpio dareciprocidade e dependentes, paraefeitos de sua eficcia, do nvel deconfiana que h no entorno sociale da fora da sano comunitria.Mas se Coleman sensvel para de-nunciar a persona ficta do atorcorporativo que afoga o indivduo(1993), sua denncia introduz a fic-o da igualdade contratual para agirem reciprocidade.

    Em contraste, a formulao dePierre Bourdieu (1980) problematizaa distribuio desigual do capital, emtodas suas formas, dentro do camposocial. Ainda que Coleman eBourdieu sejam coincidentes aoapontar a funo multiplicadora docapital social em relao com outrasformas de capital, vimos como naspesquisas de Coleman as diferenasdo capital social intrafamilar eextrafamiliar incidem nos diversosnveis do rendimento escolar (capi-

    tal humano), a perspectiva estrutu-ral de Bourdieu sobre o campo soci-al abre espao para entender o lugarque ocupa o padro institucional daredistribuio na luta social (Polanyi,1957). Bourdieu no um rationalchoicer que postula indivduosiguais agindo por contratos. Levan-ta-se, ento, a questo de se s po-

    demos entender o capital social soba ptica do controle social e a reci-procidade ou se cabe pensar o capi-tal social sob a tica da redis-tribuio.

    Para o campo da pesquisaeducativa a questo de importn-cia crucial. Pois as evidnciasempricas, administradas estatistica-mente em seu relatrio ao Senadodos Estados Unidos em 1966, leva-ram Coleman a questionar a eficciado investimento pblico na criaode igualdade de oportunidades. Porquesto de espao, aqui no apre-sentamos as linhas gerais da pesqui-sa de Bourdieu em matria educativa.Porm, sua crtica da escola, comoreprodutora das desigualdades es-truturais, no comparte os mesmospressupostos da crtica que dirigeColeman justia redistributiva deRawls. Lanamos o desafio para queseja revisada a trajetria cientfica deBourdieu, em matria educativa, vi-sando conferir se h rejeio da tra-dio franco-alem de ensino univer-sal e gratuito garantido pelo Estado.

    Pesquisas recentes sobre a efic-cia escolar em pases no industriali-zados, de forma especfica o traba-lho de Gaviria et al. (2004) para o casodo Brasil, permitem concluir que opoder heurstico do capital socialexige ser contextualizado. Nos pa-ses do Terceiro Mundo, o investi-mento pblico faz a diferena noaproveitamento escolar. A pesquisasobre capital social exige incorporara idia da socializao do capital comfinalidade educativa. Isto no umchamado dogmtico a rejeitar a crti-ca, bem fundada, contra a ineficin-cia das burocracias estatais, mastambm no devemos ceder aos can-tos de sereia dos que pregam oburocratismo privado.

    Referncias

    BOURDIEU, P. 1979. Les trois tats ducapital culturel. Actes de la Recherche

    en Sciences Sociales, 31:3-6.BOURDIEU, P. 1980. Le capital social:

    notes provisoires. Actes de la Rechercheen Sciences Sociales,31: 2-3.

    COLEMAN, J.S.; CAMPBELL, E.Q.;

    HOBSON, C.J.; MCPARTLAND, J.;MOOD, A.M.; WEINFELD, F.D. andYORK, R.L. 1966. Eq uali ty of

    Educational Opportuni ty. Washington,US Government Printing Office.

    COLEMAN, J.S. 1974. Inequality,Sociology, and Moral Philosophy.

    Am er ic an Journa l of Sociology ,

    80 (3):739-764.COLEMAN, J.S. 1988. Social Capital in

    the Creation of Human Capital.Am er ic an Journa l of So ciolog y,94(Suplement):S95-S120.

    COLEMAN, J.S. 1993. The RationalReconstruction of Society. 1992

    Presidential Address. Amer ic anSociological Review, 58(1):1-15.

    COLEMAN, J.S. 1994. Foundations ofSocial Theory. Cambridge; London,Belknap Harvard.

    FUKUYAMA, F. 2000. What is SocialCapital. Disponvel em: www.ifm.org

    GAVIRIA, J.L.; MARTNEZ, R. e CAS-TRO, M. 2004. Un estudio multinivelsobre los factores de eficacia escolaren pases en desarrollo: el caso de losrecursos en Brasil. Educ ation Pol icy

    Analys is Archives , 12(20). Disponvelem: http://epaa.asu.edu/epaa/v12n20/,acesso em: 05/2005.

    MINISTRIO DE EDUCAO. 1995.Sistema de avaliao em educao

    bsica. Braslia, MEC/INEP.POLANYI, K. 1957. The Economy as

    Instituted Process. In : M.GRANOVETTER e R. SWEDBERG(eds.), The Sociology of Economic Life.Boulder; Oxford, Westview Press, p.29-51.

    PORTES, A. 1998. Social Capital: itsOrigins and Applications inContemporary Sociology. Annual

    Review of Sociology, 24:1-24.PORTES, A. e MOONEY, M. 2000. Social

    Capital and Community Development.Working Paper #00-08, PrincetonUniversity, The Center for Migrationand Development. Disponvel em:www.princetonuniveristy.org.

    PUTNAM, R. 1996. Comunidade e de-mocracia. Rio de Janeiro, FundaoGetulio Vargas Editora.

    RAWLS, J. 2000. Uma teoria da justia.So Paulo, Martin Fontes.

    05_Art04_Silvio.pmd 31/08/2005, 18:39128

  • 7/24/2019 [a] 40 Anos Do Relatrio Coleman

    14/14

    129

    volume 9, nmero 2, maio agosto 2005

    Quarenta anos do Relatrio Coleman: capital social e educao

    REIS, B.P.W. 2003. Capital social e confi-ana: questes de teoria e mtodo. Re-vista de Sociologia e Poltica, 21:35-49 .

    SALEJ, S. 2005. Os fundamentos tericos

    do capital social. Chapec, EditoraArgos (No prelo).

    SOCIOLOGICAL ABSTRACTS. 1986-2001/12. Social Capital (in title), 326records. Disponvel em: www.bu.ufsc.br/basesdedadosreferenciais.

    Silvio Salej H.Doutorando em Sociologia pela UFSCe pela Universit Paris Dauphine,mestre em Sociologia Poltica da UFSC(Brasil), licenciado em Filosofia pelaPontifcia Universidad Javeriana(Colmbia).