99312_O Engenheiro Que Veio de Longe

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O ENGENHEIRO QUE VEIO DE LONGE

Um dia, por razões que cada leitor imaginará, uma firma de projetos em que etrabalhava teve de contratar um engenheiro consultor estrangeiro.

Eu chefiava a equipe brasileira que acompanharia e daria suporte aos trabalhodesse engenheiro. A perspectiva de um trabalho comum foi encarada um pouco comcuriosidade e um pouco com preocupação. O dito cujo foi recebido sem festas, matambém sem hostilidades. Havia uma expectativa no ar.

As coisas ficaram feias quando se decidiu o que ia o homem fazer: chefiar aequipes de levantamento de campo, quaisquer que eles fossem, levantamentourbanos, hidrológicos, cadastrais, sedimentológicos, etc, etc. Trazer alguém de for

 para conduzir levantamento de campo? E nós não sabíamos fazer levantamentos dcampo? Mas ordens são ordens e iniciou-se o trabalho em comum.

Foi marcada uma reunião do grupo do qual eu fazia parte, para planejar

inspeção do dia seguinte, referente ao levantamento urbano e populacional de un  bairros periféricos de São Paulo e que daria origem a um estudo demográficosanitário.

 Na reunião, lá veio o personagem em pauta com uma conversa esquisita. Quero dito cujo saber que roupas usaríamos na inspeção de campo (!), e queria conhecermala (?) de apetrechos que costumávamos usar nesses levantamentos. Não entendi

 pergunta. Sempre fiz anotações de campo em folhas usando, como é lógica, umcaneta esferográfica que eu nem precisava levar, pois o motorista do carro semprtinha uma em seu poder.

Quanto a roupa de inspeção (?) que podia ser além de uma velha calça jeansuma eventual bota, que aliás era meio incômoda, face a um eterno prego que um deu ainda mandarei o sapateiro tirar. Mas até aí as perguntas do dito cujo eram ssurpreendentes ou curiosas, mas não absurdas! Absurdo foi quando ele me perguntose o roteiro do meu relatório já estava pronto, pois o dele já estava.

Descobri tudo. Além de receber em dólares por uma inspeção de campo, danado já trouxera o relatório pronto (?). Como pode? Mas ordens são ordens como jdisse, e como tenho dois guris para alimentar não botei a boca no trombone e m

 preparei para iniciar no dia seguinte o mais inusitado de todos os levantamentos dcampo de minha vida. Uma inspeção de campo que tinha relatório pronto.

As surpresas continuaram no dia seguinte. O “homem” surgiu no local dencontro como uma figura ridícula. Chapéu de abas largas, calça com elástico ncintura, bombachas na perna, além de previsível bota (possivelmente sem pregos) carregando uma misteriosa mala preta.

Como em geral esses homens não gostam de abrir as caixas pretas, digo amalas pretas, não perguntem o que tinha lá dentro. Saímos para a histórica inspeção

Andamos em ruas esburacadas e enlameadas e pulamos por cima de córrego poluídos, paisagens típicas de nossa pobre periferia. Tenho que reconhecer que calça

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com elástico na cintura dão maior mobilidade que calças com cintas de couro (questãde módulos de elasticidade diferentes dos dois materiais, teria comentado o meu velh

 professor de Resistência dos Materiais). Não pude, pelo exposto acompanhar etodas as andanças o personagem em foco, pois eu não queria sujar demais a minhcalça nova de gabardine já que a minha calça rancheira estava lavando exatamente n

dia da inspeção. Tive de reconhecer intimamente que nessa questão de indumentáriaengenheiro estrangeiro estava melhor equipado. E não é que o ridículo chapéu de abalargas realmente protege a cabeça quando o sol está a pino?

Tão logo deslanchou a inspeção, começou a se abrir a enigmática mala preta. não é que o homem tinha levado caderno, prancheta de mão, lápis de várias core

 borracha, escala, trena, cartões de visita, binóculo, termômetro, nível de mão, fio d prumo, bússola, canivete de mil e uma utilidades e mapa da região?

 Nesse ponto eu não falhara. Eu tinha levado minhas folhas soltas e, com previa, não faltou caneta esferográfica, emprestada do motorista que nas horas dcarro parado, preenchia mil volantes em branco da loteria esportiva na tentativa d

cercar a zebra.Como último coelho que os mágico tiram da cartola, o colega tirou da ma

 preta uma máquina Polaroid e foi tirando fotos instantâneas dos locais visitadosescrevia no verso o que significava cada uma.

A inspeção ia bem. Eu procurava olhar e gravar tudo o que via; sou ótimobservador. O consultor em oposto devia ter péssima capacidade de julgamento, poanotava tudo, media tudo e escrevia tudo no seu caderno cobre a prática prancheta dmão. Até alguns desenhos ele podia fazer face ao enxoval que trouxera. Aindvoltamos cedo para o escritório e decidimos começar a escrever o relatório d

inspeção ao campo. Aliás que ia escrever o relatório era só eu, pois o colega já o tinhtrazido pronto lá do hemisfério norte? Fui olhar de soslaio a sua famosa minuta drelatório. A minuta era um tipo de relatório padrão em que o relator devia tão somen

 preencher os claros e os dados faltantes como que seguindo um roteiro básico. relatório padrão sugeria pois, que fossem preenchidas informações tais como: datnúmero de contrato, pessoas que participaram da inspeção, quilometragem de início fim do uso do carro, ocorrência de chuvas, temperatura local, as plantas e mapas quorientaram os levantamentos etc. etc. É, dificilmente alguma coisa escaparia.

John terminou rápido seu relatório, anexando suas fotos e colocando tudo o qumedira, registrara e anotara. O relatório dele até que ficou, bom.

Quanto ao meu, bem ... decidi escreve-lo em casa depois que as criançadormissem.

 Não escrevi o meu relatório, escrevi esta crônica.

Eng. Civil Manoel Henrique Campos BotelhoPublicada no Jornal AVALIAÇÃO ano VII nº 13 / IMAPE

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