9.1. especificidade e ontologia.res
-
Upload
luiz-salvador-miranda-sa -
Category
Education
-
view
204 -
download
9
description
Transcript of 9.1. especificidade e ontologia.res
Fundamentos Epistemológicos da Medicina
5.3 Especificidade Científica Luiz Salvador de Miranda Sá Jr.
Não há conhecimento ou procedimento científico sem especificidade.
Como exigência de cientificidade a especificidades se apresenta com duas
dimensões e devem ser ambas consideradas neste estudo. As duas dimensões
conceituais da especificidade são: uma ontológica e outra, gnosiológica.
Do ponto de vista ontológico: o objeto deve estar bem especificado, bem definido
e ser objetivo o objetivável.
O ponto de vista gnosiológico da especificidade significa que esse objeto deve
poder ser estudado objetivamente e isto ser comunicável (cognoscibilidade
objetiva e comunicabilidade).
Especificidade é como se denomina a qualidade daquilo que é específico.
Específico é o que se diz de algo que é próprio de uma espécie.
Espécie é a entidade singular e mais elementar de um conjunto; se refere à natureza dos indivíduos de um conjunto homogêneo.
Espécimem é um indivíduo de uma espécie.
A especificidade factual inclui objetividade como característica essencial da
ciência e indicador de cientificidade, se refere às propriedades específicas do
objeto da ciência (o que lhe assegura caráter específico, porque a especificidade
1
de um conhecimento ou atividade científica é assegurada unicamente por seu
objeto).
Quando empregada como indicador de cientificidade, a avaliação da
especificidade inclui em sua conceituação dois aspectos essenciais inter-
complementares e inseparáveis:
a) qualquer atividade científica deve ter seu objeto bem delimitado e claramente
definido (aspecto ontológico) e
b) tal objeto da atividade científica deve poder ser estudado objetivamente
(aspecto gnosiológico).
A expressão objetividade contém dois sentidos distintos mas inter-complementares:
O primeiro, referente ao indivíduo que exerce a prática científica, de quem se deve
esperar isenção e o máximo de neutralidade ou imparcialidade em seu trabalho, o
que deve caracterizar o observador ou experimentador científico.
Em segundo lugar, trata-se da objetividade como atributo da coisa observada, do
objeto que independe do observador, a objetividade como qualidade daquilo que é
objetivo, do que existe objetivamente, e cuja existência independe do desejo ou de
qualquer outra manifestação do observador. Neste segundo sentido, a
objetividade consiste em autonomia da coisa objetiva em relação à consciência de
quem a contempla ou estuda. Em filosofia da ciência, sobretudo em teoria do
conhecimento, denomina-se objeto ao termo do conhecimento, à coisa
intencionalmente conhecida e capaz de ser matéria de um juízo. Do ponto de vista
da teoria do objeto, parte integrante da ontologia, interessam à filosofia da ciência
duas categorias de objetos: os objetos reais, os objetos ideais. Os objetos
ideais (as idéias) são inespaciais e intemporais, pois não existem no espaço ou
no tempo; correspondem aos objetos das ciências formais, como lógica, a
matemática; enquanto os objetos reais (os objetos e fenômenos da realidade,
existem independentes do sujeito) são dotados de realidade e, portanto, dotados
2
de espacialidade e temporalidade, correspondendo aos objetos das ciências
factuais.
A despeito de muitas objeções possíveis, pode-se dizer que algo é objetivo, quando
é determinado por si mesmo, tem existência independente do observador. O
conceito de realidade objetiva significa tudo que tem existência real fora da
mente de quem a contempla ou estuda; o ser concreto; o ente objetivo; tudo o que
existe no espaço e no tempo, independentemente da imaginação ou de outra
manifestação subjetiva.
Existe convergência e identidade entre os conceitos de realidade objetiva, realidade
concreta e realidade material. Em filosofia do conhecimento, a noção de real se opõe à
de ideal (o que só tem existência como dado subjetivo de alguém).
As noções de idéia, abstração e subjetividade apontam para a direção oposta da
realidade objetiva: a realidade subjetiva, que não existe a não ser como
narrativa, senão para quem a experimenta.
Embora as expressões realismo, materialismo e objetivismo (não se inventou concretismo, a não ser na arte) tenham a mesma origem etimológica, significam doutrinas filosóficas bastante diferentes e se enquadram em estruturas ideológicas freqüentemente conflitantes. Disso, pode-se inferir que aqui as expressões realismo (e materialismo) e idealismo têm significados inteiramente diferentes daqueles com que se usam estas palavras ma linguagem comum. O sentido moral com que se empregam, especialmente os conceitos de idealismo e materialismo não existe na filosofia do conhecimento.
Do ponto de vista ontológico, avalia-se a cientificidade do objeto de uma ciência
factual (ou o conhecimento da realidade tido como científico) a partir de dois
dados essenciais:
a) sua objetividade e
b) sua cognoscibilidade.
3
Para isto, não pode existir conhecimento científico, investigação científica ou
procedimento científico sem objeto, com objeto mal definido ou indefinido; como
não pode haver ciência cujo objeto não possa ser estudado objetivamente. O
objeto de uma ciência ou de um procedimento científico deve ser objetivo ou
possível de ser objetivado (como acontece com os fenômenos e processos
psíquicos que se objetivam na conduta e, assim, pode ser estudados
indiretamente).
No primeiro sentido mencionado, a objetividade talvez seja o elemento mais
essencial da isenção do cientista em seu trabalho, daquilo que se denomina
perspectiva crítica da ciência. Perspectiva que, nunca será demais repetir, é
precisamente no objeto que se corporifica e se materializa a atividade científica.
Ademais, é a partir da cognoscibilidade objetiva deste objeto, da possibilidade
deste objeto ser estudado objetivamente, que se estrutura a metodologia científica
(mas não deve ser confundida como neutralidade política e moral da ciência, que é sua
perversão). Uma técnica pode ser e, até, costuma ser definida por seu método;
mas uma ciência se define sempre por seu objeto.
No segundo sentido da objetividade, a objetividade do objeto do conhecimento se
expressa por sua existência objetiva, por sua existência independente do
observador. Por isto, é da maior pertinência avaliar-se aqui algumas das questões
ontológicas acerca do objeto da Medicina e da psiquiatria, especificamente do
objeto das ciências médicas sobre o qual se apóia a Medicina e a psiquiatria.
Quando se considera a exigência ontológica e gnosiológica da especificidade, que
é expressa pela possibilidade de estudo objetivo daquele segmento da realidade,
é preciso que não se confunda realidade e concreção, nem abstração e irrealidade
porque cada um destes conceitos tem significação precisa e se refere a uma coisa
bem definida.
Nunca é ocioso repetir, também, que a realidade material se compõe de coisas
(objetos materiais) e construtos (objetos ideais tais como fenômenos, juízos,
4
fatos e acontecimentos). E não pode haver ciência ou conhecimento científico cujo
objeto seja incognoscível ou que não possa ser estudado e conhecido
objetivamente.
A Medicina tem como objeto as relações recíprocas que se estabelecem entre o
ser humano (uma coisa) e a enfermidade (um construto), o meio físico (outra
coisa) e o meio social (outro construto); levando em conta as inter-relações
mútuas que se estabelecem, de um lado, entre o indivíduo e o meio físico e, de
outro lado, entre a pessoa e o meio social. Este caráter hibrido de seu objeto
talvez seja o fundamento da maior parte dos problema ontológicos com os quais
se depara que pratica ou tem a Medicina como objeto de estudo. Esta concepção
totalizante da Medicina mostra a impossibilidade dela ser avaliada desde qualquer
ponto de vista reducionista; seja biológico-individual, psicológico-individual,
ambiental-social ou ambiental-natural. Porque cada um destes ângulos de
avaliação é uma vertente inseparável das demais na totalidade da Medicina. E não parece ter sentido denominar a isto Medicina Integral porque, se não for integral, não é nem deveria ser considerada como
Medicina. O que se denomina medicina integral ou medicina geral e o estudo ou
prática da medicina como uma atividade total, como uma unidade que transcende
a soma de suas especialidades.
Tanto na Psicologia Social, quanto na Psiquiatria Social nota-se grande dificuldade
para delimitar conceitualmente seus objetos, distinguindo-se das ciências
limítrofes, notadamente da Psicologia Geral, da Sociologia, da Antropologia, e este
talvez seja o principal obstáculo para sua afirmação como disciplinas científicas.
Antes de entrar na consideração de questões ontológicas mais gerais de todas as
ciências ou da mais específicas que interessam à Medicina e aos médicos, vale a
pena levantar, ainda que superficialmente, o sujeito do conhecimento e os
objetivos da Medicina, por causa da relação existente entre estes e seu objeto.
Principalmente, porque as divergências acerca destas relações constituem, senão
5
os mais importantes, ao menos os primeiros com os quais se depara quem se
inicia no estudo da teoria do conhecimento médico.
O Sujeito do Conhecimento
Todo conhecimento presume a existência de um sujeito e de um objeto daquele
processo cognitivo (quem conhece e o quê é conhecido). A noção se objeto do
conhecimento (aquilo que é conhecido) só faz sentido porque se completa na noção
que lhe é simétrica e complementar de sujeito do conhecimento (aquele que elabora e
processa o conhecimento). Isto sucede, seja conhecimento comum, seja no
conhecimento científico ou no conhecimento filosófico.
O sujeito do conhecimento, a pessoa que conhece (que em Filosofia se denomina
ser cognoscente) é a pessoa que conhece, a consciência que elabora o saber, a
subjetividade que se completa na objetividade. A participação ativa de quem está
conhecendo no processo cognitivo, seus interesses, desejos, tendências e
preferências devem ser consideradas influências na participação que, por objetiva
que tente ser, tendem a comprometer a pretendida objetividade.
Assim como a objetividade tem sentido de não-tendenciosidade e liberdade frente
ao processo de conhecer, a subjetividade sempre inclui uma conotação de
compromisso, de envolvimento, de participação do agente. A possibilidade de
conhecer do sujeito depende da possibilidade de se fazer conhecer por ele (que
caracteriza o objeto). Isto é, a possibilidade de conhecer do sujeito cognoscente,
em princípio, está subordinada às características do objeto do conhecimento.
Alguns objetos (os objetos ideais) estão sujeitos unicamente à razão. Outros,
como sucede aos objetos muito pequenos, as dimensões microscópicas do objeto,
deixam-no fora do alcance das possibilidades do sujeito, a menos, que utilize um
recurso óptico para ampliar suas possibilidades senso-perceptivas ou algum
equipamento de detecção para estender qualitativamente sua capacidade
perceptiva. A qualidade e o êxito do processo de conhecer dependem, pois, de
fatores objetivos (ligados ao objeto e independentes do sujeito) e subjetivos
6
(ligados ao sujeito e mais ou menos independentes do objeto do processo
cognitivo.
O conhecimento depende da integridade dos recursos fisiológicos, da experiência
existencial, do presente, passado e aspirações de futuro; preconceitos, interesses
e desejos do sujeito. Este envolvimento é característico do conhecimento vulgar
(que é, por definição muito vulnerável a ele) e, por isto, a metodologia científica,
exige procedimentos e recursos destinados a afastar a tendenciosidade. Tais
procedimentos constituem o núcleo da metodologia científica de investigação do
mundo. Sem perder de vista que os fatores relacionados ao objeto não são mais
ou menos importantes que os subjetivos. No plano subjetivo, os conhecimentos
que estão sendo elaborados não sofrem influência apenas dos fatores cognitivos,
mas dos afetivos e, ambos, tanto conscientes quanto inconscientes.
A influência da dimensão inconsciente, por exemplo, pode ser tida como
verdadeira e presente, ainda que não possa ser operacionalizada o empiricamente
demonstrada com os recursos metodológicos e técnicos de que se dispõe hoje.
Entretanto, a impossibilidade de operacionalizar empiricamente o conceito de
inconsciente não parece ter nada a ver com a realidade ou irrealidade da
inconsciência, mas com uma limitação do processo que usamos para estudá-la. O
simples fato de não se poder comprovar a realidade do conteúdo de um conceito
não significa que ele seja irreal. Só que sua realidade não foi comprovada. A
subjetividade, que pode ser tida como o principal atributo do sujeito, é o conceito
complementar ao de objetividade e diz respeito às manifestações da vida interior
de quem experimenta (ou vivencia) uma experiência existencial consciente ou
inconsciente. Objetividade e subjetividade são extremo apenas aparentemente
oposto de uma mesma totalidade.
Incontáveis condições podem exercer papel diretor e tendencioso na subjetividade
de quem conduz um procedimento de investigação científica; ainda que se
possam mencionar como principais os seguintes: estado das estruturas e funções
7
neuro-psicológicas; interesses materiais (prêmios, salários, contratos, aumentar a
venda de um produto, garantir contratos de investigação); orgulho e vaidade
(prestígio, influência, renome ou apenas a precisão de publicar alguma coisa por
imposição da carreira acadêmica) e, por fim, a paixão (tanto paixão pelo objeto de
estudo ou o interesse afetivo em um resultado predeterminado, quanto paixão por
si mesmo e sua produção).
No entanto, é preciso destacar que a influência da subjetividade do investigador
não se revela apenas como fator negativo para a investigação e a intervenção
científicas. Também se reconhecem entre os fatores subjetivos do processo de
conhecer algumas condições bastante positivas, indispensáveis mesmo.
Tenacidade, persistência, laboriosidade, inteligência, conhecimento prévio e
interesse, entre outras, podem ser condições subjetivas positivas importantes para
o resultado de um trabalho, ainda que não exista por si só, mas como atributos de
uma pessoa determinada.
Inter-subjetividade na Ciência
A subjetividade e a inter-sujetividade são inafastáveis da atividade científica, por
que a ciência é uma abstração, um construto subjetivo que se materializa na
atividade, inclusive ou principalmente mental, dos cientistas e em sua interação.
A troca de informações e a colaboração interpessoal, a discussão, a refutação
sistemática, a crítica (que inclui a auto-crítica) são manifestações intersubjetivas
indispensáveis ao desenvolvimento da atividade científica. As questões
relacionadas com a inter-subjetividade exercem influência na teoria do
conhecimento científico e são núcleo da comunicação do conhecimento e seu
desenvolvimento. Os fenômenos psicossociais e muitas das manifestações de
enfermidade, principalmente das enfermidades psiquiátricas, não podem ser
constatadas diretamente pelo observador (carecem de objetividade) e só podem
ser conhecidas por ele, desde que relatadas pelo paciente (fenômeno inter-
subjetivo).
8
Na atividade científica, importa refletir nas elaborações subjetivas de quem a
realiza, além de pensar no reflexo destas interações nas relações entre o sujeito e
o objeto do conhecimento e das interações entre o sujeito cognoscente e seus
eventuais interações. Nas ciências da natureza, o conhecimento se dá pela
relação entre a subjetividade e a realidade objetiva, precisando ser validadas.
Tem-se como certo que as representações subjetivas só podem ser consideradas
válidas se seu processo de validação tiver sido objetivo, se resultarem de
proposições validadas de maneira aceitável pela ciência naquele momento de seu
desenvolvimento.
Com relação à influência da objetividade e da subjetividade, existem três
tendências extremadas em filosofia da ciência: o objetivismo (que nega ou
subestima toda contribuição da subjetividade); o subjetivismo (que faz o mesmo com
relação ao que for objetivo) e a eclética que é a síntese dialética destas duas (que
trabalha com ambas as vertentes desta dicotomia, sem se deixar levar por
nenhuma delas).
Os aspectos intersubjetivos devem merecer a maior atenção por parte de quem se
preocupa em estudar a ciência filosofia do conhecimento científico. Dentre os
aspectos intersubjetivos, destacam-se os problemas da cooperação e da
comunicação científica.
Regis de Morais<$Fop. cit. p. 90.> aponta para as seguintes situações em que a
subjetividade do pesquisador influi no resultado do trabalho científico:
1. necessidade de pré-estruturas cognitivas para a adquirir novos conhecimentos;
2. necessidade de certa cultura, inclusive de conhecimentos anterior por parte do
sujeito para uma aproximação adequada dos novos fenômenos;
3. capacidade lógica para relacionar inteligentemente os dados;
9
4. necessidade de participação (engajamento, interesse, motivação) no que estiver
sendo investigado,
As relações entre o sujeito e o objeto, a objetividade e a subjetividade e o
desdobramento teórico e práticos destas relações, depende dos objetivos da ação.
É bastante diferente quando alguém pretende fazer um bom trabalho e, depois,
deseja receber por ele, do que alguém que tem o dinheiro como objetivo principal
e trabalha para atingi-lo. No primeiro caso, o trabalho é fim e, no segundo, se
reduz a um meio.
OBJETIVOS DA MEDICINA
Os objetivos ideais da Medicina como instituição social (porque existem os
pessoais de cada um de seus praticantes) dependem essencialmente de sua
identidade. Como a instituição sanitária a Medicina sintetiza diversas identidades e
qualquer uma delas pode ser confundida com ela.
Veja-se.
Na atividade social medica coexistem diversas identidades sócio-institucionais,
das quais se destacam as seguintes:
1. a identidade sócio-econômica ou laboral,
2. a identidade técnico-científica e
3. a identidade sócio-cultural, que inclui a ética.
A dimensão laboral é a que mais se destaca à primeira vista – a medicina
profissão dos médicos. A segunda vertente da identidade da Medicina, sua
dimensão técnica e científica, é a que será considerada prioritariamente no estudo
que se segue, ainda que as demais também sejam levadas em conta, ao menos
de passagem. Até porque, estas duas identidades da Medicina se superpõem, se
misturam sendo bastante comum que não possam ser diferenciadas nas situações
10
concretas senão por um exercício lógico de abstração. Contudo, ao logo de seus
muitos séculos de existência, tem sido a identidade ética que assume a primazia
sobre as demais.
Todas as culturas modernas reconhecem a Medicina como uma ocupação
especial e credora de responsabilidade social relativamente grande, como a
prática social humana reconhecida como valiosa e uma aplicação científica com
significativo compromisso ético, o que a situa como uma atividade profissional
responsável e uma atividade científica acreditada. Grande parte deste crédito
decorre da conduta de seus profissionais considerados individualmente; mas, ao
menos em parte, há de resultar do reconhecimento público de seus objetivos
institucionais.
As pessoas enfermas sempre estiveram na fonte dos propósitos da Medicina.
Desde sua origem mais remota, o principal objetivo da Medicina tem sido o
doente. Restaurar-lhe a saúde e abolir seu sofrimento foram os objetivos básicos.
Desde muito remotamente, o tratamento é considerado como sinônimo da
Medicina.
Nas as sociedades modernas, todas as dimensões da Medicina (destacando-se a
profissional e a técnico-científica) convergem para buscar como objetivo geral e
principal ajudar os enfermos através da consecução das seguintes metas
específicas:
a) conhecer os enfermos e reconhecer as enfermidades, seus condicionantes e
seus mecanismos de interação mútua;
b) prescrever e aplicar procedimentos destinados a evitar que as pessoas
enfermem;
c) desenvolver os recursos capazes de evitar a evolução das enfermidades e
desenvolver meios para cuidar e, se possível, curar os que enfermaram;
d) aliviar o sofrimento dos que padecem uma moléstia e 11
e) exercer esforços para reabilitar as pessoas afetadas por incapacidade e
invalidez determinadas por enfermidades ou traumatismos.
Em resumo: conhecer as enfermidades e os enfermos, prevenir as enfermidades e
promover a saúde, tratar e reabilitar os enfermos. Estes são os objetivos
fundamentais da Medicina em todas as culturas conhecidas.
Destes objetivos, o mais antigo e aquele que está mais profundamente encerrado
na consciência social é o tratar (curar). Desde seu início na magia, a Medicina tem
sido reconhecida como a ciência e arte de curar. Curar com o sentido de tratar.
Este tem sido sempre o objetivo mais importante da Medicina, ao qual, mais
recentemente se acrescentou o propósito de prevenir. Mas, deve-se ressaltar que,
enquanto curar é uma tarefa médica específica (ainda que não exclusiva), prevenir
tem alcance muitíssimo mais amplo e abrange muitas atividades.
Estes objetivos médicos essenciais que foram listados acima se integram em duas
práticas sanitárias distintas (geralmente realizadas por organismos sociais
diferentes): a Medicina Curativa Individual e a Medicina Preventiva Social
(conjunto indissociável de procedimentos sanitários englobados na Higiene e
Saúde Pública, na Medicina Preventiva e Social e na Saúde Coletiva). Mas,
também podem compor uma perspectiva mais abrangente e monista, sendo tidas
como um processo sanitário único que integre os procedimento de assistência
individual e os procedimentos de intervenção na coletividade; um conjunto de
intervenções que se dê como uma unidade integrada, ativa, positiva e preventiva.
Na primeira opção, imagina-se uma diferença essencial entre estas duas práticas
e suas teorias de suporte; na segunda, ambas são reconhecidas como dimensões
de uma mesma totalidade, a unidade dos aspectos preventivos e curativos na
inteireza da Medicina.
O que configura a essência da Medicina Preventiva: prevenção primária (promover a
saúde e evitar enfermidades), prevenção secundária (diagnosticar as patologias
12
com precisão e tratar o enfermo com eficácia o mais brevemente possível) e
prevenção terciária (reabilitar os prejudicados pela enfermidade).
QUESTÕES ONTOLÓGICAS GERAIS DO CONHECIMENTO MÉDICO
A ontologia ou teoria do objeto pode ser definida como o capítulo da filosofia que
formula e desenvolve a o conhecimento sistemático do objeto material que estiver
sendo estudado em uma dada atividade cognitiva. Caracterizar bem um objeto
material de cogitação filosófica ou científica. A ontologia não estuda construtos, só
objetos concretos, materiais. Com resquício de sua origem na Metafísica, a
ontologia também pode ser definida, em sentido mais estrito, como o estudo do
ser; ou, ainda, o estudo dos entes ou a investigação sistemática do ser que estiver
sendo considerado em uma determinada investigação.
Caso se aprofunde o estudo desta disciplina filosófica, pode-se constatar que a
ontologia tanto pode ser dirigida para o estudo do serem geral (muito a gosto dos
filósofos idealistas), quanto para o estudo dos seres particulares ou, mesmo, os entes
específicos que constituem os objetos específicos de cada atividade cognitiva, os
entes específicos de cada estudo científico. De um ponto de vista estritamente
científico-natural do estudo filosófico da ciência, o momento ontológico consiste
teoria que permite caracterizar e definir o objeto de um estudo e circunscrever
seus limites o mais exatamente que for possível, distinguindo-o o mais
precisamente de tudo o mais que existe. A investigação ontológica de uma ciência
consiste na caracterização de seu objeto de investigação. Qual fração do mundo é
estudada por aquela ciência? Quais as coisas (seres ou entes) estão abrangidas
por ela?
Em filosofia, denomina-se ente, àquilo que é, em qualquer dos significados do
termo ser.Ou pode ser entendido como uma coisa existente, real. A partir de um
ponto de vista científico-natural, pode-se entender ente como uma unidade
existencial dotada de entidade definível por si mesma, dotado de status existencial
13
próprio, e de uma identidade social reconhecível por suas próprias características.
O termo apareceu da Filosofia de Heidegger, que usava o termo ente para
significar o ser que existe objetivamente, o ser concreto, uma coisa real, uma parte da
realidade. Donde se depreende a que o conceito de ente, embora tenha surgido
de um ponto de vista realista, com significado voltado para a realidade, também
pode ser empregado como conceito idealista (embora isto não seja correto, ao
contrário).
Como os filósofos idealistas religiosos necessita muito levar em conta a presença
suprema de uma divindade em suas cogitações e o conceito de ser se presta muito
para isto, servem-se dos conceitos de ser e de ente (devidamente idealizado) para
representá-la. Entretanto, em uma perspectiva ontológica e materialista do
conhecimento e por fidelidade a seu significado original, a noção de ente
corresponde a de entidade, coisa existente, parte da realidade. Desde que esse
mesmo enfoque científico-natural seja aplicado às cogitações da filosofia da
ciência, pode-se considerar a ontologia como o ramo da filosofia que estuda o ser, o
ente, o objeto que focaliza o estudo de uma ciência ou atividade científica; o ente
natural social ou humano que é objeto de estudo científico e este estudo
ontológico pode ser aplicado a qualquer tipo de investigação.
No caso presente, a perspectiva ontológica está dirigida para o objeto das ciências
médicas, em geral, e para a Medicina, em particular. Em Medicina, a noção de
ente (objeto de estudo) pode ser aplicada a dois elementos de seu objeto: o
enfermo, ente humano afetado pela enfermidade, e a enfermidade, a entidade
clínica que, afetando a pessoa, lhe confere a condição de enfermo. Pois,
enfermidade e enfermo são categorias patológicas inseparáveis. Não se pode
cogitar de uma sem considerar a outra. A enfermidade e o enfermo configuram a
dupla face do objeto da Medicina.
Para facilitar o entendimento da noção de ontologia e os conceitos derivados dela,
pode-se afirmar que a avaliação ontológica do conhecimento científico sobre
14
alguma coisa se refere ao o quê é o objeto daquela atividade cognitiva. Em filosofia
da ciência, ontologia é o estudo do ente estudado em uma atividade científica. As
questões ontológicas específicas de cada área do conhecimento científico dizem
respeito ao objeto de cada ciência em particular. A ontologia de uma ciência
encerra o estudo do objeto daquela ciência, enquanto objeto do conhecimento
científico.
Ao lado destas questões ontológicas específicas de cada ciência considerada
individualmente, existem algumas questões ontológicas que interessam a todas as
manifestações do conhecimento, embora sejam mais importantes para o
conhecimento científico. As questões ontológicas relacionadas com a
epistemologia ou teoria do conhecimento, dizem respeito ao objeto do saber: o
conhecimento-resultado. O que é o conhecimento? Como se define? Como se
estrutura?
A ontologia é o capítulo da filosofia que estuda o objeto (originalmente, do ser ou
do ente). A avaliação ontológica de um processo cognitivo é o estudo de seu
objeto que deve ser iniciado com sua delimitação. O objeto de uma ciência
qualquer deve circunscrever uma área específica e especificada de
conhecimentos definidos acerca daquela fração particular e bem delimitada do
mundo. As ciências factuais têm seus objetos na natureza, no homem ou na
sociedade.
A investigação ontológica, no sentido de caracterização científica do objeto
daquela atividade cognitiva, é sempre um momento fundamental de cada ciência,
ainda que isto nem sempre seja sabido por quem a cultiva ou nela represente um
papel. As ciências se definem sempre pelo seu objeto e cada ciência deve ter
objeto definido ao mesmo tempo que se define por este objeto. Todas. Ainda que
algumas áreas especializadas no interior de uma ciência possam, eventualmente,
serem definidas por um método, uma técnica ou, mesmo, uma filigrana técnico-
científico (como um procedimento técnico particular). Já as profissões, a despeito
15
de sua base científica, eventualmente, podem ser definidas pelo método ou pela
técnica que utilize ou mesmo por um determinado procedimento técnico.
As ciências podem ser classificadas do ponto de vista da natureza de seus
objetos. Por isto, na dependência de seu objeto de estudo, existem ciências
naturais, ciências humanas e ciências naturais. A natureza, com sentido de
universo material, abrangendo seus aspectos concretos e abstratos, objetivos e
subjetivos, se organiza em estratos diferentes de estruturação que apresentam
níveis diversos de complexidade; não sendo possível transpor os achados
referentes aos objetos e fenômenos de um estrato ou de nível para outro diverso,
ainda que se refiram a coisas ou acontecimentos que pareçam semelhantes ou
análogos, embora situados em estratos diversos da natureza.
Conhecer os estratos qualitativamente diferentes da natureza é importante porque
as leis naturais específicas, aquelas que regem determinados conjuntos de
objetos ou fenômenos da natureza, não podem ser transpostas para outros
objetos e outros fenômenos, sobretudo quando se situam em níveis diferentes da
estrutura da organização natural.
Com muito maior razão ainda, muito menos é viável transpor conhecimentos ou
métodos pertinentes às ciências da sociedade para as ciência humanas ou para
as ciências da natureza. Cada nível de organização do mundo está sujeito às suas
próprias leis que não são válidas em outro estrato que não aquele. As leis que
regem um determinado nível da natureza não são aplicáveis a outro nível da
organização natural, quanto mais a outro nível da estrutura do mundo, como a
sociedade e o pensamento.
Não são somente as ciências definidas e reconhecidas universalmente como
atividades científicas particulares que precisam ter definido seu objeto. Cada
investigação científica, por mais desprentenciosa e limitada que for, necessita ter
bem definido seu objeto de trabalho, antes de serem cogitados dos métodos. O
mesmo acontece com cada procedimento ou cada instrumento para o qual se
16
pretenda status de cientificidade. A definição do objeto de uma atividade,
instrumento ou procedimento (que deve ser a mais completa possível no momento
em que se dê) consiste no primeiro momento de declaração de sua cientificidade.
Antes de avaliar os aspectos ontológicos específicos das ciências médicas e, em
especial, da psicopatologia, por causa de sua influência na psiquiatria, deve-se
repassar, ainda que rapidamente, algumas questões ontológicas mais gerais,
porque alcançam todo conhecimento, tais como:
a) Se o mundo objetivo é real ou irreal;
b) e, sendo real, se o mundo objetivo mantém uma relação de primariedade ou de
secundariedade em relação à atividade mental, a subjetividade.
Não se deve supor que estas são apenas perguntas retóricas, elaboradas apenas
para consagrar respostas previamente conhecidas no curso de uma
argumentação ou explanação planejada. Trata-se de questões muito importantes,
fundamentais mesmo, cujas respostas irão influir em todo desenvolvimento que se
suceder a elas.
Esta questão essencial da filosofia e da ciência se consubstancia nas seguintes
perguntas: o mundo objetivo existe, é real ? A primeira e mais abrangente questão
teórica com que os seres humanos se defrontam quando pretendem conhecer o
mundo, reside em saber se este mundo é real (como crêem os realistas e
materialistas), ou uma ilusão dos sentidos (como querem os idealistas e os
fenomenistas mais extremados). Existe um mundo real? Uma realidade além de
nossas subjetividades?
E, existindo uma realidade, será uma realidade objetiva ou consistirá apenas em
uma ilusão da subjetividade? Uma realidade subjetiva. Existirá uma dimensão
objetiva e outra subjetiva da realidade? Ou existirão ambas? Estas indagações
podem parecer inúteis para os mais desavisados ou despreocupados com isto,
mas existe quem negue realidade ao mundo objetivo, de uma realidade externa a
17
nós. Os solipsistas, por exemplo, numa posição subjetivista radicalmente
extremada, negam realidade a todo o mundo objetivo; para eles, existe apenas a
subjetividade e os sentidos de quem pensa no mundo real e se convence de sua
realidade.
A doutrina solipsista (sustentada por BERKELEY e, mais radicalmente, de forma
absolutamente exagerada, por FICHTE) confundia as coisas e as percepções.
BERKELEYdizia: “ser é ser percebido”. Por isto, esta opinião torna a idéia do
conhecimento uma fatuidade e a ciência, uma completa impossibilidade. Pois
unicamente a divindade poderia conhecer. Se alguém é solipsista, há de negar
realidade ao doente e à doença, como parte de sua negação de todo o universo,
considerado, no todo ou em parte, como resultante de experiências sensoriais
ilusórias. Para os solipsistas, toda preocupação ontológica é denominada
ontologicismo, como se fora um reducionismo, uma preocupação desmedida com o
objeto; o que é bastante natural neles, vez que não aceitam a objetividade, a
existência objetiva de qualquer coisa. Devendo-se afirmar que o solipsismo
metodológico não é sempre tão radical, nem alcança a todos os objetos. Sabe-se,
por exemplo, que na natureza, as coisas em geral constituem uma realidade difícil
de ser negada porque sua objetividade é quase agressiva. Como negar um monte,
um rio, um cachorro, um estômago ou a função renal?
Já as ciências sociais e as ciências humanas lidam com realidades que são, ao
menos em grande parte, criações humanas, exigem ao menos um sujeito e
possuem alto grau de abstração. Ora, nestas condições, para os objetivistas
extremados, estas realidades são negadas. A psicologia, a psicopatologia e
grande parte da psiquiatria são alcançadas nesta situação.
Este fenômeno cognitivo mostra-se particularmente interessante quando aplicado
ao terreno da identificação das enfermidades ou entidades clínicas em psiquiatria;
principalmente pelos que negam a existência objetiva da enfermidade psiquiátrica
18
ou uma delimitação definida entre a normalidade e a patologia como facetas da
existência humana.
O solipsismo, em sua forma pura, pode estar fora de moda e, hoje, talvez não
exista senão como expressão de excentricidade para conversas eruditas para
chamar atenção no barzinho da moda. Contudo, tem muitos sucessores, nos quais
se atenuou a negação delirante do mundo, como os já mencionados
nominalismos, medieval e moderno, por exemplo, que negam realidade às
coisas e às possibilidades de conhecê-las diretamente. Mas, isto será encarado
logo adiante neste trabalho, quando se promover ao levantamento das questões
gnoseológicas. A modalidade contemporânea do solipisismo se denomina
conceitualismo, verbalismo ou positivismo lógico.
A partir dos pressupostos que dirigem este trabalho, em última análise e a
despeito de sua diversidade, o mundo material, com tudo que ele contém, deve
ser considerado como o objeto do conhecimento científico. A ciências existem
para estudar o mundo. O mundo todo através de cada aspecto particular dele.
Cada ciência se incumbe da investigação de um aspecto particular do universo da
realidade. O que vem sendo chamado realidade objetiva, mundo real ou.dos objetos
materiais.
Isto posto, tenta-se esquematizar o que se supõe saber ou o que se sabe sobre a
natureza e realidade do mundo objetivo. Desde que se considere todo o mundo
real (objetivo) como o objeto do conhecimento científico, torna-se muito importante
ao menos esboçar sua conceituação ou sua definição. Porque existem diversas
opiniões sobre o que seria a natureza essencial do aqui denominado muitas vezes
como mundo objetivo, porque está fora do sujeito cognoscente.
As diferentes opiniões sobre o mundo objetivo, se revelam nas respostas dadas às
seguintes perguntas que podem ser formuladas sobre ele:
19
1) sendo real o mundo, ele seria um universo composto só por objetos reais e
objetivos ( fossem naturais ou sociais)?
2) Ou seria um mundo povoado apenas por idéias ou outros conteúdos
subjetivos?
3) ou seria um mundo só de palavras? ou, quem sabe,
4) ou seria um mundo onde coexistissem as realidades naturais e sociais, as
idéias e as palavras? Por exemplo, onde as realidades naturais
determinassem as palavras e as idéias e que todas elas coexistissem na
realidade natural e cultural?
A partir destas questões e das possíveis respostas que provocarem, podem ser
situadas duas posições distintas acerca do conceito filosófico de realidade e de
sua relação com a subjetividade.
Tais posições são:
1. os que têm uma visão parcial e fragmentária da questão do conhecimento do
mundo e
2. os que têm uma perspectiva abrangente e globalizante (dialética, pode-se dizer)
da realidade objetiva.
Estas conclusões são possíveis porque as respostas afirmativas a qualquer uma
das três primeiras indagações configuram uma posição parcial, uma visão do
mundo reducionista. A quarta questão, quando respondida afirmativamente, indica
uma posição global, uma visão dialética do mundo e do conhecimento.
No primeiro grupo, dentre muitos outros, destacam-se os solipsistas, os
condutistas e os nominalistas pelo significado que estas posições doutrinárias
parciais sobre o conhecimento têm na filosofia da ciência atual. Pois. esta
tendências filosóficas têm exercido notável influência nas teorias da psicologia e
da Medicina.20
Para os solipsistas, extremistas do subjetivismo, o mundo seria composto
apenas de idéias que se reduzem a existir na subjetividade do observador, sendo
incomunicável para os demais.
Para os condutistas, o extremo contrário ao sliopsismo, correspondente ao
objetivismo positivista clássico, o mundo (ao menos o mundo reconhecível pela
ciência) se limita às realidades naturais (um mundo de coisas), servindo as
palavras apenas como um exercício sempre insuficiente de revelá-las.
Já para os nominalistas, cujas posições se confundem, ora com os solipsistas,
ora com os condutistas (em sua visão parcial e mecânica do mundo), ora com os
neopositivistas, o mundo (ou, ao menos, o mundo do conhecimento) seria um
mundo unicamente habitado por palavras com significações meramente
convencionais, destinadas a simular, ao invés de reproduzir, refletir, representar
ou simbolizar a realidade objetiva. Estas visões contraditórias do mundo,
conduzem a concepções de naturezas muito diferentes e conflituosas sobre o
conhecimento.
O condutismo por causa de seu enfoque reducionista e objetivista, (com um lado
positivo, que foi ter permitido a primeira abordagem científica da psicologia,
segundo as exigências da gnosiologia moderna). O nominalismo não é apenas um
nome que evoca a lembraça de uma tendência da filosofia medieval., rebatizado
de neopositivismo e empirismo, está vivo e influi muito na teoria da psicopatologia
norte-americana, principalmente nos trabalhos de nosografia que costumam
confundir com nosologia.
Numa terceira vertente deste problema ontológico, situada no vértice das
doutrinas parciais, está a posição dialética ou integral, abraçada aqui neste
trabalho. Esta posição, aqui chamada dialética, considera o mundo em que
vivemos um mundo de coisas objetivas, porque existem independentes do homem
ou de sua consciência; apesar de que podem ser refletidas de modo regularmente
eficiente e eficaz na subjetividade de quem o estuda e isto permite que possam
21
ser comunicados a outrem pelas palavras. Existe um mundo objetivo e cada um
de nós constitui uma parte dele. Existe um mundo real objetivo, um mundo de
objetos do conhecimento em relação ao ser cognoscente (subjetivo) que o
conhece. O mundo real objetivo inclui tudo o que existe ao alcance dos sentidos
ou do intelecto, inclusive os outros sujeitos que estiverem sendo conhecidos como
objetos; e um mundo interior, o mundo das idéias do sujeito daquele
conhecimento.
A comunicação intersubjetiva intermediando as relações cognitivas, afetivas e
práticas dos homens com as coisas do mundo. Por isto, se sustenta aqui que
ambos estes fenômenos, as coisas objetivas e as idéias que as refletem, são
representadas ou simbolizadas pelas palavras que se referem a elas. As palavras
(como muitas outras ações) são os recursos pelos quais os conteúdos mentais
são objetivados e materializados. E, embora as coisas precedam as idéias e
estas, as palavras, todas habitam e convivem no mundo sendo inseparáveis na
unidade do conceito.
Neste modo particular de ver o mundo e o conhecimento, a coisa objetiva, que é o
objeto do conhecimento objetivo, deve ser considerada primária em relação à idéia
que suscita na mente e à palavra que a simboliza. A coisa que está sendo
conhecida é primária e a idéia e a palavra são secundárias. Conseqüentemente, a
idéia que reflete o objeto cognoscente, deve ser definida como um acontecimento
ou sinal secundário à coisa objetiva que é o objeto primário; e a palavra que
simboliza a ambos é o dado ou sinal terciário, o seu símbolo verbal. Mesmo
quando a coisa a conhecer é um fenômenos ou processo abstrato ou mítico, ele
se só se torna conhecido depois de objetivado verbalmente. Neste caso, a coisa a
conhecer é a idéia objetivada. E o conhecimento do mito se confunde com o
conhecimento da sua narrativa.
O nominalismo, ou conceitualismo, foi uma corrente filosófica medieval que
afirmava a existência real unicamente das coisas isoladas e suas qualidades
22
individuais e isto apenas, porque nós as convencionamos como tais. O aspecto
positivo do nominalismo (no que ele divergia dos que se denominavam realistas)
era sua negação dos universais. Os realistas afirmavam que os conceitos gerais
(brancura, bondade) existiam em algum lugar do mundo.
Os nominalistas, ao contrario, afirmavam que os conceitos gerais (então,
chamados universais) destas coisas, eram criados por nosso pensamento, eram
apenas palavras, nomes; não existiriam independentemente e não refletiriam as
propriedades e qualidades daqueles objetos ou fenômenos aos quais se referem,
tendo significado unicamente arbitrário e convencionado.
Os nominalistas e os realistas escolásticos conflitavam (e, provavelmente, cada
um deles haveria de ter alguma razão) muito radicalmente. Contudo não se deve
imaginar que os chamados realistas medievais fossem adeptos da tendência
filosófica atualmente denominada realismo (ou materialismo, o oposto de
idealismo). Não. Os filósofos católicos que se denominavam realistas na Idade
Média eram idealistas. A não ser no nome, não tinham nada de realismo. Apenas,
por influência platônica e escolástica, acreditavam na realidade, na existência real
dos universais (propriedades das coisas, com brancura, grandeza, inteligência).
Julgavam que a brancura de todas as coisas brancas existiam realmente como
essência delas
O lado negativo do nominalismo foi o fomento da identificação entre abstração (ou
subjetividade) e irrealidade. O que deu lugar ao aparecimento de diversas
doutrinas.
Entre outras, as doutrinas do rótulo e do veredito para o diagnóstico
psiquiátrico são variantes do nominalismo que, na Idade Média, era combatido
pelo realismo por sustentar exatamente o contrário. Muitas concepções
modernas sobre a psicopatologia, sobretudo as de identidade neopositivista e
empirista, como o operacionalismo, que orientaram a organização do DSM-III e da
CID/10 são sobrevivências atuais do nominalismo medieval. Diferentemente dos
23
nominalistas medievais, os neopositivistas e os empiristas não negam a existência
do mundo real; apenas afirmam ser impossível conhecê-lo além daquilo que
convencionamos saber sobre ele.
Muitas doutrinas idealistas deveriam ser denominadas verbalistas. Porque
superestimam o significado das palavras. A doutrina do rótulo, por exemplo,
nega caráter objetivo às enfermidades, especialmente, às enfermidades
psiquiátricas; sustenta não existirem os chamados doentes senão porque alguns
indivíduos foram assim rotulados; não tivessem sido e seriam sadios. Não
entendem que a noção de enfermidade é um juízo de valor relativo.
Os adeptos da doutrina do veredito também negam as doenças psiquiátricas,
tendo todos os enfermos por mentalmente sadios; a sociedade (o Estado ou a
cultura), a família ou outra instituição condena um de seus membros a bode expiatório
de suas dificuldades de adaptação e o condenado por este veredito passa a ser tido
e tratado como doente. A condição de doente, neste caso, não seria expressão de
uma situação real, mas produto de uma condenação imposta ao paciente. Ambas
as doutrinas, a do rótulo e a do veredito, expressam o ponto de vista nominalista
com relação à realidade ou à cognoscibilidade da patologia. Aida que seja
impossível diferenciar os são adeptos da teoria do rótulo porque negam as
enfermidades mentais dos que são negam as enfermidades mentais porque são
adeptos da teoria do rótulo.
O subjetivismo, como contido nas idéias de BERKELEY, de FICHT e o de
HUME, em seus aspectos originais e mais radicais, que negava a existência da
realidade objetiva, praticamente já não existe e não se reflete diretamente na
filosofia de hoje. Já algumas tendências neopositivistas, como o empirismo e o
pragmatismo, estão exercendo grande influência na psicopatologia do século
vinte, principalmente, na nosologia e na nosografia. A tendência subjetivista
moderna que mais se aproxima de suas matrizes originais (por via da supremacia
do inconsciente, é o freudismo ou psicoanálise
24
Os empirismos (inclusive o empirismo lógico) e o pragmatismo são tendências
filosóficas idealistas modernas que revivem na atualidade diversos pontos de vista
do nominalismo medieval e o conciliam com o positivismo, ao menos nos aspectos
que foram mencionados acima, porque tais aspectos refletem particularmente os
mesmos interesses ideológicos e se enquadram nos mesmos interesses sociais.
O pragmatismo e o empirismo abandonam o antigo conceito de verdade que
considera verdadeiro o que for consoante com a realidade (a concordância do
pensamento com o ser) e valoriza a atividade e a pragmaticidade, a utilidade do
conhecimento. Para eles, a verdade deixa de ser considerado como um valor
teórico e passa a ser tida uma expressão que possa ser tida como útil.
Quando alguém diz, por exemplo: "tal quadro clínico é compatível com o diagnóstico de
demência vascular”, está colocando uma diferença entre o fenômeno real (o quadro
clínico observado no doente) e a expressão que o denomina (o diagnóstico) e
estabelecendo um abismo inexistente entre a coisa e sua denominação, o material
e o ideal.
Transportado para outra situação, este estilo de ver e nominar as coisas no
mundo, principalmente as patologias, produziria frases assim: "este ser vivente, coerente com a designação de pessoa, tem características compatíveis com o significado atribuído à
palavra mulher” ou “aquela coisa em tudo igual a um vegetal, com características análogas às
contidas no significado do termo repolho”; ou, alguém se apresentando: sou alguém que
atende a todas as características da identidade de Fulano de Tal... e quantos outros
disparates análogos que serviriam para produzir apenas divertimento, na
dependência do tempo, da paciência e da imaginação disponíveis.
O realismo metafísico, adotado pelos escolásticos medievais em seu conflito
com os nominalistas, é a corrente da filosofia que defende que as coisas existiriam
fora e independentemente da consciência do sujeito, enquanto o realismo
gnosiológico pretende que o conhecimento possa reproduzir ou refletir a realidade
e, neste caso contradita simultaneamente o nominalismo e o solipsismo.
25
Estas questões gnosiológicas gerais foram melhor vistas na primeira parte deste
capítulo, quando se tratou da construção do conhecimento e, em especial, do
conhecimento científico. Adiante, cuidar-se-á de circunscrever os elementos
conceituais mais essenciais do objeto da Psicologia, os fenômenos psíquicos.
Princípios Básicos da Ontologia Científica
Quando se estuda a ontologia geral das ciências (a ciência do objeto científico) de
um ponto de vista materialista, é necessário definir que seu objeto (o objeto da
ciência ou de todas as ciências reunidas) é o mundo material, o mundo da
realidade. O mundo da natureza (objeto das ciências biológicas), o mundo da
sociedade (objeto das ciências sociais), o mundo dos seres humanos (objeto das
ciências antropológicas) e o mundo das idéias (objetos das ciências formais), o
que configura as três grandes áreas das ciências factuais e a área das ciências
formais em que se distribuem as ciências.
Mario BUNGE, <$FBunge, M., Ciência e Desenvolvimento, Belo Horizonte, Ed.
Itatiaia/EDUSP, 1980, pp. 96 e 97.> um filósofo argentino que estudou com muito
brilho as implicações filosóficas da ciência e a dimensão filosóficas das ciências,
propõe que devam ser empregados alguns princípios fundamentais para que se
possa entender o que há de essencial na ontologia (ou metafísica) da investigação
científica em todos os momentos da história da ciência, em todas as áreas do
conhecimento científico e em todos os lugares do mundo.
Tais princípios, com algumas poucas modificações introduzidas aqui, são os
seguintes:
1. Existe um mundo exterior ao sujeito que conhece e este mundo existe, ao
menos em grande parte, independente deste sujeito.
2. O mundo é composto de coisas reais (concretas) que constituem o mundo dos
objetos de investigação científica na natureza, na sociedade e no homem (ser
natural e social).
26
3. As formas são propriedades das coisas (não existem independentes delas).
4. Os componentes do mundo se agrupam em sistemas ou em grupos de coisas
que interagem entre si e obedecem às mesmas leis.
5. Todo sistema (natural, social, lógico ou psicológico), exceto o universo, interage
em alguns aspectos com outros sistemas e está isolado de outros em outros
aspectos.
6. Todas as coisas mudam com o passar do tempo (e estas mudanças podem ser
quantitativas ou qualitativas).
7. Nada provém de nada e coisa alguma se reduz a nada.
8. Todas as coisas obedecem a leis (expressões de relações invariáveis entre
suas propriedades) que são apropriadas para cada nível de organização da
natureza ou da sociedade.
9. Há diversos tipos de lei que dependem da natureza dos objetos ou dos
fenômenos e de seu nível de organização.
10. Há diversos níveis de organização das coisas no mundo (e cada um destes
níveis de organização obedece às suas próprias leis).
ONTOLOGIA MÉDICA
A ontologia médica é o ramo da ontologia filosófica que se refere especificamente
ao estudo sistemático objeto do conhecimento médico, sua definição como objeto
do conhecimento científico. A ontologia médica promove o estudo sistemático do
objeto da Medicina e de seu conhecimento.
A Medicina pode ser definida como atividade profissional que objetiva o bem-estar
humano e a busca do conhecimento sobre a saúde e a enfermidade, atuando
através da aplicação de um conjunto de procedimentos, habilidades e
conhecimentos que devem ser fundamentalmente científicos (mas não
27
necessariamente), que são resultantes do estudo sistemático de seu objeto. Nesta
definição se situam alguns aspectos particulares da ontologia médica que devem
ser clarificados.
A Medicina é uma profissão, isto é, trata-se de uma atividade social (humana,
técno-científico e econômica) que existe para atender necessidades de indivíduos
e coletividades.
A Medicina é uma encontro humano, uma ciência e uma atividade econômica
voltada prioritária ou exclusivamente para a enfermidade ou a saúde? Para o
doente ou para a doença? Para os indivíduos ou para as coletividades? Para o
tratamento ou para a profilaxia? Destinada a quem precisa assistência médica ou
a quem pode pagar por ela? A Medicina é tudo isto simultaneamente.
Cada uma destas questões bipolarizadas, quando respondidas defendendo-se
uma das assertivas como excludente da outra, redunda em um reducionismo e
resulta na impossibilidade de conhecer a verdadeira natureza da Medicina. Pois
elas são postas de maneira maniqueísta e não correspondem à realidade dos
fatos, tais como postos na prática concreta da investigação ou da clínica médicas.
Em todas essas questões é possível e desejável que se responda afirmativamente
a ambas as alternativas porque elas não são auto excludentes. A Medicina é uma
atividade voltada para a enfermidade e para o enfermo, para a saúde e para a
doença, para os indivíduos e para as coletividades, para o tratamento e para a
profilaxia, para quem necessita dela e para quem pode pagar por seus serviços.
Nenhuma destas respostas é incompatível com a verdade e nenhuma delas obriga
à exclusão de outra.
O objeto da Medicina é uma entidade dual (homem e enfermidade), cada uma
delas bastante complexa que se concretiza em quatro planos distintos e
complexos de relações recíprocas:
primeiro, nas relações entre o enfermo e sua enfermidade;
28
segundo, nas relações recíprocas que se estabelecem entre a pessoa enferma ou
ameaçada de enfermar e a pessoa que pode ajudá-lo (o médico);
em terceiro lugar, nas relações entre a patologia que afeta ou ameaça o enfermo e
as possibilidades dos recursos técnicos de intervenção disponíveis para prevenir e
diagnosticar a condição patológica, tratar e reabilitar o enfermo;
em quarto lugar, nas relações entre o enfermo (ou pessoa ameaçada de enfermar)
e o seu ambiente físico e social. Por tudo isto, a ontologia médica é, antes de tudo,
uma antropologia (porque implica em uma concepção do homem. Uma
antropologia metafísica (voltada para o objeto) e uma antropologia dialética
(voltada para suas relações).
Duas questões ontológicas essenciais da Medicina são: a primeira é a possível
relação existente entre o enfermo e a enfermidade (duplo objeto da Medicina), e a
segunda se refere à possível natureza específica da enfermidade considerada por
si mesma e de sua história natural.
Como se há de verificar adiante, quando se estudar a comprobabilidade como
característica fundamental de cientificidade, existem dois procedimentos
metodológicos básicos para o processo de conhecer o mundo. Estudar as coisas
(sua características e atributos, sua origem suas finalidades) e estudar as relações
das coisas (a maneira pela qual estas coisas se inserem no mundo e interagem
com as demais). Estas duas atitudes metodológicas básicas de modo algum são
antagônicas ou auto excludentes. É perfeitamente possível incluir as duas no
desenvolvimento do mesmo processo cognitivo. Esta perspectiva integradora e
totalizante, aliás, parece muito mais compatível com a designação de dialética.
Antes de tudo, por sua primazia ontológica, há de se caracterizar o que é vida, por
causa de antiga ralação deste assunto com a Medicina e com os médicos.
29
A Vida
A vida é um mistério que pode ser definido, ainda que imperfeitamente, mas de
um ponto de vista materialista e prático, como uma forma especial de movimento
da matéria, qualitativamente superior aos fenômenos físicos e químicos da matéria
orgânica. Cada organismo vivo pode ser caracterizado como um sistema aberto
(dotado de unidade, totalidade e interatividade), auto-organizador (capaz de
modular seu funcionamento, inclusive seu metabolismo, em função de suas
necessidades de adaptação), auto-reparador (capaz de regeneração automática
de suas estruturas), capaz de autopoiese (direção e limites de seu crescimento) e
de reprodutibilidade (geração de organismos iguais). E, igualmente caracterizado
pela degeneração de suas estruturas e de morrer.
Existem duas concepções básicas sobre a origem da vida e de sua diversidade: o
criacionismo e o naturalismo evolucionista. A variante vitalista do
criacionismo supõe a existência de um princípio vital eterno capaz de assumir
cada uma das formas de vida existentes e ser sua característica essencial.
Quando se estuda a vida, é possível diferenciar a vida individual da atividade vital
que a anima e lhe é anterior, existindo em seus ascendentes e que prossegue em
seus descendentes. Enquanto vitalidade, a existência de cada ser vivo é extensão
da vida ou das vidas que lhe deram origem. Por isso, é impossível determinar
quando começou a vida de um ser vivo (inclusive uma pessoa), embora seja
relativamente fácil determinar onde ela termina. Isto porque é impossível precisar
o momento do início da vida de um ser vivo (animal ou vegetal) por que ela já
existia nos gametas que o originaram, na vida dos produtores destes gametas e
em todos seus antepassados.
A rigor, a vida de cada um dos seres vivos se iniciou com a vida de seu primeiro
antepassado mais remoto, muito provavelmente uma estrutura extremamente
simples, um ser vivo unicelular, originado em uma a grande matriz primitiva ou de
30
muitas outras que teriam surgido. Cada ser vivo é, de certa maneira, uma
extensão da vida de todos e de cada um dos seus incontáveis antepassados.
Também não se pode entender a vida dissociada do conceito de organismo e
este, separado do meio ambiente. Os seres vivos, inclusive o seres humanos,
mantêm constante interação com o ambiente do qual dependem e as
perturbações desta interação sempre significam um fator de risco para a saúde e
para a sobrevivência.
A vida humana, entendida como vida pessoal, resulta de uma interação
permanentemente e dinâmica entre as estruturas biológicas, o ambiente físico e o
meio social que se mantêm em permanente interação através do organismo; pois,
cada organismo humano corporifica uma vida individual, a vida de um ser humano
específico, na vida de uma pessoa. Neste plano se situa antiga responsabilidade
médica não com vida genérica, mas com a vida de cada pessoa.
O ser humano deve ser entendido como vivente de dois mundos: o mundo da
natureza e o mundo da cultura. O entendimento do organismo humano como um
sistema integrado no ambiente e de sua existência pessoal como uma
organização integrada no meio social é cientificamente correto, mas insuficiente,
suscitando grande número de indagações sobretudo éticas.
Com este sentido biológico, não se diferencia a vida de um humano da vida de
qualquer outro ser animado e isto é completamente insatisfatório para a Medicina
Os humanos parecem qualitativamente diversificados em relação aos demais
viventes e tal diferença se assenta, principalmente em sua eticidade.
Nem se pode identificar o início de uma vida humana com a fecundação,
pretextando sua relativa autonomia biológica individual. Exatamente porque isto
equivaleria e reduzir o ser humano ao seu arcabouço biológico, a sua estrutura
organísmica. (O que não tem sentido hoje, nem mesmo frente ao conceito de
morte cerebral, quanto mais diante da complexa realidade bio-psicos-social).
31
Interação e Adaptação
Como é típico dos sistemas vivos, os organismos biológicos são dotados da
possibilidade de promover a interação entre seus componentes e de mobilizar
recursos adaptativos internos e externos para assegurar sua integridade e seu
funcionamento. A adaptabilidade (interna e externa) é uma das características
mais importantes e essenciais de todos os seres vivos.
Reprodução, Regeneração e Degeneração
A reprodução (ou auto-reprodução), entendida como capacidade de um organismo
produzir outros seres da mesma espécie, também constitui atributo essencial dos
organismos viventes. Variam os mecanismos reprodutivos, a partir de dois que
são fundamentais: a reprodução sexuada e a assexuada.
Entende-se por regeneração a capacidade que têm os seres vivos de reconstituir
estruturas e funções lesadas, prejudicadas ou suprimidas. Esta função também
não é idêntica em todas as estruturas, todas as espécies ou todos os espécimes.
Degeneração
Entropia e Autopoiese
Viver e Conviver
Viver e Sobreviver
Quando se enfoca a questão da necessidade da vida, de como o viver ou seguir
vivendo; a vida como um estado particular da matéria altamente organizada e
diferenciada, a matéria viva. Devendo-se destacar que estes dois aspectos da
questão (a vitalidade e a sobrevivência|) mobilizam grande interesse,
especialmente do ponto de vista médico. Prolongar a própria vida é uma
necessidade impressa no patrimônio instintivo de todos os seres vivos conhecidos.
32
A necessidade de sobreviver, de se manter vivo, de se evadir ou de vencer as
ameaças à vida é uma característica comum a todos os seres vivos. Tanto, que é
descrita como uma propriedade da matéria viva. A necessidade de sobreviver se
evidencia em dois planos distintos: o plano individual (ontológico) e o plano da
espécie (filológico). Para um ser vivo, a necessidade de sobreviver impõe
sobreviver como ser individual, prolongando a própria vida; e sobreviver como
espécie e como estirpe, através dos descendentes por meios da reprodução.
A origem, a manutenção e o prolongamento da vida humana dependem de
incontáveis fatores individuais e sociais.
Expectativa de vida é um índice epidemiológico que expressa o período de
tempo que se espera que uma pessoa, com certa idade, viva caso se mantenham
os índices de mortalidade vigentes.
As pessoas estão morrendo cada vez mais velhas. E, dento de limites razoáveis,
quanto mais velhas, maior é sua expectativa de viver mais. O progresso da
civilização se expressa, inclusive, por aumento significativo da média de vida das
pessoas e, conseqüentemente, o aumento relativo do número de pessoas idosas
na população, fenômenos conhecido como envelhecimento populacional que
produz implicações em muitas áreas da vida social, destacando-se as implicações
médicas.
Entre as implicações médicas, destacam-se a necessidade de pessoal habilitado e
serviços capacitados para atender a este tipo de clientela que, por sua própria
condição, mobiliza mais recursos que os jovens. Além do que, aumenta o número
de aposentados e estes vivem muito mais. Como os sucessivos governos
dissiparam os recursos da previdência social, os aposentados de hoje pagam a
conta desta conduta.
Além disto, o crescimento indisciplinado das metrópoles cria imensas áreas de
moradia em condições extremamente precárias (e não apenas nas favelas e nos
conjuntos habitacionais mais pobres). A proletarização da assim chamada classe 33
média também faz crescer a montanha de pobreza (trabalhadores e funcionários
públicos que até há vinte anos se inscreviam na classe média, hoje são favelados
e muitas vezes se situam abaixo do nível de miséria).
Desde a origem da Medicina, os médicos são identificados pela população como
curadores naturais dos interesses humanos dos enfermos e guardiões da vida.
Estes compromissos se incorporaram de tal maneira à sua identidade e ao seu
papel profissional que provocam muita frustração quando são desobedecidos ou
desrespeitados.
Vida e Qualidade de Vida
A qualidade de vida se refere à vida como é vivida. A vida como mais do que
sobrevida, como possibilidade mínima de atingir seus objetivos e ter atendidas
suas necessidades mínimas; de existir com decoro (no antigo sentido hipocrático
desta expressão). A noção de vida como vitalidade se completa no conceito de vida
como qualidade de vida<D>, como vida decorosa ou bem estar. Como atributo da
existência pessoal, o que deu um sentido bastante diferente à noção de existir, de
sobreviver, de seguir vivendo. As noção de vida humana inclui hoje uma série de
condições que estão relacionadas à satisfação ou à frustração das necessidades
individuais e sociais do vivente humano, encarado (também neste aspecto) como
qualitativamente diferente dos demais seres vivos. O compromisso essencial que
os médicos mantêm tradicionalmente com a vida humana foi ampliado para conter
de novo a velha concepção hipocrática de vida digna de ser vivida, de vida
decorosa.
A noção de qualidade de vida está interligada com a noção de personalidade e com a
idéia de síntese das necessidades individuais (primárias e superiores) e sociais.
É bem verdadeiro que as noções mencionadas acima de vida média e expectativa de
vida ao nascer são cada vez mais significativas em nossa civilização, porque indicam
a qualidade de vida da população. Entretanto mais que tudo, é necessário levar
34
em conta a possibilidade de uma vida digna e decorosa (como queriam os
hipocráticos). A vida dos animais praticamente se resume à sobrevivência. Não é
(ou não deve ser) assim com os seres humanos, a despeito da realidade de
miséria e abandono em que sobrevive um contingente extremamente significativo
de nossa população.
Também mudou o procedimento para identificação da vida, quando a constatação
da morte cerebral substituiu o antigo critério de parada cárdio-respiratória como
marco clínico do fim da vida e do diagnóstico de morte. Neste caso, a troca de
critérios não corresponde apenas a uma necessidade pragmática (facilitar e
viabilizar transplantes) mas a aplicação do compromisso ético que exige valorizar
mais o vivo que o morto.
Não obstante esta situação social real, hoje, existe entre os praticantes e
pensadores da Medicina uma preocupação cada vez mais ampla e mais
significativa, que se estende para muito além do conceito simples de vida ou de
sobrevivência das funções vitais de uma pessoa; trata-se de institucionalizar o
conceito de qualidade de vida como instrumento operacional de avaliação
clínica.
Não basta que o paciente sobreviva a uma enfermidade durante um certo tempo,
cada vez mais se considera que seja necessário que disponha de possibilidades
mínimas de exercer sua vida com dignidade; não apenas de sobreviver, mas de
desfrutar a vida. Neste sentido, viver é mais que unicamente sobreviver.
Entretanto, não se pode condicionar a vida à exigência de plenitude da vida ou a
completo bem-estar.
A qualidade de vida se expressa pelo nível de bem-estar e o nível de bem-estar se
difine pela satisfação das necessidades individuais e sociais; a partir das
necessidades chamadas necessidades sociais básicas (alimentação, moradia,
vestuário, trabalho, lazer, transporte e acesso a serviços de saúde e de educação,
35
além de necessidades civis (autonomia e liberdade de expressão, participação
social, propriedade, dignidade, auto-realização e acesso aos recursos de busca da
felicidade pessoal).
A definição da qualidade de vida mínima entre os direitos sociais inalienáveis da
cidadania é um importante conceito para estabelecer os deveres estatais e um
passo importante para o desenvolvimento da civilização.
Entretanto, não basta que se escreva isto como direito nos diplomas legais, é
preciso que isto fique impresso na consciência social (afinal, a constituição já diz
que a saúde é direito de todos). A lei é letra morta se não corresponder ao desejo
da maioria da população ou dos interesses hegemônicos.
Mas a vida também tem uma dimensão ética e a vida humana uma dimensão ética
especialíssima. Desde sua origem, os médicos somos zeladores da vida. Todo
médico é um guardião da vida e do bem estar de seus pacientes e, por extensão,
das comunidades confiadas ao seu cuidado quando desempenha uma atividade
social.
Sob qualquer ponto de vista, do religioso ao materialista, toda ética da Medicina se
fundamenta em um princípio fundamental: o princípio da beneficência, que
significa não fazer mal. Principalmente aos seus pacientes. A menos que se trate
da escolha ineludível entre dois males, quando deve-se escolher o menor. Ou
quando o mal menor (como um remédio, por exemplo) for indispensável para se
contrapor ao mal maior (a enfermidade). Entretanto, deve-se advertir que esta
escolha nem sempre é fácil, principalmente na vertigem dos acontecimentos
dramáticos. os médicos experientes bem sabem o quanto a experiência dos erros
anteriores os ajudam a evitar outros no futuro. E o quanto a consciência de
princípios diretores da conduta podem auxiliar a evitar os primeiros.
Pois, os remmédios têm esta curiosa contradição, são males que podem trazer o
bem. Pois, afinal, a diferença entre um remédio e um veneno é, freqüentemente,
simplesmente uma questão de dose ou de oportunidade.36
Uma característica universal da atividade médica, em todos os momentos
históricos, em todas as culturas é a identificação do médico como guardião da
vida<D>, como defensor dos interesses dos doentes, como promotor de bem-estar
do povo e, portanto, um agente de permanente compromisso com a melhoria da
qualidade da vida das pessoas e das comunidades. E isto não pode ser
interpretado mais ou menos ingenuamente como uma sobrevivência de seu status
sacerdotal original que os médicos possuíram por muitos séculos.
Proteger a vida não é privilégio sacerdotal, é dever de todas as pessoas e
compromisso ético com valor de princípio para todo médico que se preza; é uma
herança da melhor tradição médica de todos os tempos.
Morte. No mesmo plano se coloca a questão das relações entre a vida e a morte.
A morte é inevitável para quem vive. Todo ser que vive tem na morte seu destino.
A Medicina existe para adiar a morte, enquanto for possível garantir vida digna aos
seres humanos. Às pessoas.
Os conceitos de aborto, eutanásia e distanásia exigem a atenção do médico e
cobram dele uma decisão em muitos casos de sua clínica.
Aborto é a expulsão prematura do conteúdo do útero grávido de concepto ainda
inviável, isto é, antes da vigésima oitava semana da gestação. Quando a
interrupção da gestação se dá depois deste momento, quando o concepto pode
ser considerado viável, denomina-se parto prematuro.
Eutanásia (do grego, eu=bom + tanos=morte); morte boa, morte fácil; morte sem
dor ou sofrimento; consiste em abreviar a vida de alguém já sem esperanças de
sobreviver com o mínimo de qualidade de vida. O elemento conceitual mais
importante do conceito de eutanásia é que a autoria da decisão deve ser do
agente da eutanásia (que pode não ser médico) e assume a responsabilidade de
decidir quando alguém deve morrer ou, noutros termos, deixar de viver; a outra
qualidade essencial deste conceito é a incapacidade do enfermo decidir. Sá há
37
eutanásia se o paciente estiver incapaz; estando capaz, ou se trata de suicídio
assistido ou de homicídio.
Suicídio assistido. quando o paciente, desfrutando da integridade de sua
capacidade de decidir, decide morrer
Distanásia (do grego, dis=perturbação, dificuldade + tanos=morte); morte
perturbada, morte dificultada, quando se aplicam recursos da tecnologia médica
para ampliar a sobrevivência de alguém que não pode desfrutar a ménima
qualidade de vida e nem tem a possibilidade de vir a tê-lo. A distanásia se
configura quando são empregados recursos técnicos artificiais para manter a vida,
sem que haja ou possa haver qualquer esperança de sobrevivência digna.
No caso da eutanásia e do suicídio assistidas trata-se de duas situações,
qualitativamente diferentes, e configuram dois problemas éticos que exigem
soluções diferentes, apesar dos opositores radicais da eutanásia considerá-las
como idênticas, exigindo, ambas, as mesmas soluções.
Indivíduo, Pessoa e Sujeito
O conceito de ser humano é amplo e abrange duas noções específicas, muito
usadas por todos para referir componentes da sociedade humana e,
freqüentemente, são confundidas como se fossem uma única noção, apesar de
corresponder a coisas perfeitamente diferenciáveis: a noção de indivíduo e a idéia
de pessoa. Os conceitos de indivíduo e pessoa podem parecer idênticos, porque na
linguagem comum têm significados iguais e costumam ser usados como
sinônimos; mas são termos científicos diferentes e correspondem a dois sentidos
sócio-antropológicos e a duas realidades psicossociais distintas e definidas. O
conceito de pessoa é bastante mais amplo e contém o de indivíduo. A vida do
indivíduo começa bem antes da vida da pessoa, do início da edificação da
identidade pessoal e pode terminar bem depois (como no caso da justamente
denominada sobrevida dos descerebrados).
38
Esta distinção entre vida individual e vida pessoal parece ser um dos pontos mais
candentes da ética contemporânea. Os direitos civís, os direitos políticos e os
direitos humanos (antes chamados direitos individuais) se caracterizam como
direitos pessoais, direitos das pessoas, das personalidades.
Na linguagem científica, costuma-se denominar indivíduo a um ser diferenciado dos
demais por ter vida separada ou algumas características que o assinalem como
um ser singular; uma unidade funcional específica em relação às demais de sua
espécie. A unidade e a totalidade são as características essenciais da
individualidade. Qualquer coisa ou qualquer ser, de qualquer modalidade,
qualidade ou espécie pode ser encarado como um indivíduo. No indivíduo
coexistem e se confundem os atributos de singularidade e individualidade.
A individualidade de um ser se consubstancia em características que o
diferenciam dos outros da mesma espécie, fazendo-o, de certa forma, um ser
único em sua singularidade. Por isto, pode-se usar o termo individualidade com
sentido amplo para objetos indivisíveis (um planeta no sistema solar, uma galáxia
no universo, uma estrela na galáxia, uma laranja na laranjeira, uma formiga no
formigueiro).
Em ciência, a expressão indivíduo não tem conotação moral positiva ou negativa.
Na linguagem comum, sobretudo na imprensa de má-qualidade, a palavra indivíduo
tem conotação pejorativa, indicando depreciação. Mas, este sentido pejorativo
está inteiramente ausente do sentido com que esta palavra é usada como termo
científico nas ciências naturais e psicossociais. Já pessoa é uma noção que
transcende o conceito de indivíduo e existe para designar a entidade individual
humana completa, inclusive sua personalidade (o que inclui todos seus atributos
biológicos anatômicos e fisiológicos, psicológicos e sociais). Os traços
característicos da noção de pessoa são a personalidade e a dignidade.
A concepção de pessoa ultrapassa em todos os planos o conceito de indivíduo. Mas
esta diferença constitui, principalmente, uma diferença ética. Muito mais que uma 39
diferença antropológica ou, mais precisamente, uma diferença psicológica ou
psicossocial.
Não sendo possível que seja um diferença apenas verbal, convencionada, ideal e
sem qualquer implicação na realidade.
O termo indivíduo permite apontar qualquer ser singular em uma coletividade,
apenas um componente específico de uma coletividade, um elemento singular que
faz parte de um todo, seja a sociedade, a tribo, a manada, o cardume, a floresta, a
colônia ou qualquer outro conjunto. O indivíduo é o elemento mais simples de uma
coletividade, ainda que seja um conjunto inanimado; enquanto a pessoa é o
componente mais elementar da humanidade.
Pode se denominar pessoa ao indivíduo humano (o que se faz muito). Ainda que o
emprego da expressão indivíduo humano permita designar apenas suas
propriedades biológico-individuais, excluindo qualquer característica psicológica
ou sócio-cultural. Já a expressão pessoa humana, porque é absolutamente
pleonástica, deve ser evitada; pois, denuncia desconhecimento do significado dos
termos empregados; posto que, por mais tolerante que seja sua apreciação, não
há possibilidade de existir pessoa que não seja humana ou ser humano vivo que
não seja pessoa.<$FA maior amplitude que o termo pessoa possui é a de um
coletivo humano bem determinado e legalmente individualizado, a pessoa jurídica ou
personalidade jurídica, conceito metafórico que complementa o de pessoa física e
estes termos, sim, devem ser adjetivados.>
A Pessoa e o Sujeito
Se a pessoa pode ser definida como um indivíduo com personalidade e dignidade,
o conceito de sujeito pode ser definido como pessoa no exercício de sua vontade,
na direção de sua vida social e na construção de sua biografia. A voluntariedade
(não importando se é denominada vontade, volição, conação ou intencionalidade)
40
é a marca característica ou essencial de algo que poderia ser denominado de
sujeiticidade.
Um neologismo necessário que cabe muito bem nesta situação e em muitas
outras que devem ser cogitadas no estudo desta matéria.
Personalidade e Sujeiticidade
A noção de pessoa inclui uma referência à sua condição de ser social, um indivíduo
socializado, uma personalidade detentora de qualidade que, como se viu
anteriormente, a identificam, personalizam e dignificam. A dignidade da pessoa
tem sido um atributo sempre reconhecido nos homens de todos os tempos
civilizados e é um dado essencial não só da civilização, mas do humanismo. A
rigor, a personalidade constitui-se das características que configuram uma pessoa;
das qualidades que caracterizam uma pessoa e se diferencia da individualidade.
A noção de personalidade ultrapassa em muito o conceito de individualidade da
mesma maneira que o conceito de pessoa é muito mais amplo que o de indivíduo.
Analogamente, pode-se estabelecer a mesma relação com os conceitos de
personalidade e sujeiticidade (como se está denominando aqui a qualidade a
característica ou essencial do sujeito).
Conceito de Personalidade
A despeito de tudo, a noção de personalidade não tem conceituação pacífica e
universalmente que seja aceita por todos os estudiosos desta matéria.
Principalmente porque esta noção é muito mais antropológica e política do que
psicológica. E por isto, muito sujeita a contaminação ideológica e às influências da
visão do mundo que quem a emprega. O que não deve causar admiração a
ninguém. Poucos conceitos são tão submetidos as pressões ideológicas como
este. Nem tão influenciados pela visão de mundo.
41
Para uns, a personalidade encerra tudo o que existe na pessoa (ainda que não
sejam atributos caracteristicamente pessoais). Por isto, há quem lhe atribua a
soma de todos os traços morfológicos, fisiológicos e psicossociais d de um ser
humano. Empregam o conceito de personalidade como equivalente ao de
individualidade humana.
Outros, que confundem personalidade com sujeiticidade, pretendem-na como a
soma de todas as características psicológicas humanas e as condutas estáveis de
interação social.
Para alguns, a personalidade constitui-se da soma dos atributos psicológicos
estáveis.
Para muitos, a personalidade constitui-se das características psicológicas
notadamente humanas: a afetividade superior e a vontade.
E, por fim, há quem conceitue a personalidade como síntese dos traços
psicológicos caracteristicamente humanos e das características estáveis da forma
de uma pessoa se relacionar com as demais, com a sociedade e consigo mesma.
Englobando tudo o que é tipicamente humano (ainda que desenvolvida a partir de
características animais herdadas ao longo da trajetória evolutiva). Nesta última
perspectiva, mais consentânea com a opinião do autor deste trabalho, a
personalidade não se reduz mera soma de características, mas uma síntese de
atributos psicossociais situados na fronteira entre o psiquismo e a cultura. O
intelecto, a imaginação criadora, a atenção voluntária, a memória racional e
intencional, a afetividade superior representada pelos sentimentos, a vontade e a
capacidade de trabalho, além da possibilidade de comunicação e sociabilidade
seriam os elementos mais significativos da personalidade. Não havendo a menor
importância se ela é estudada de maneira analítica (pelos seus traços) ou sintética
(pelos tipos).
42
A noção de sujeito(caracterizada pela vontade e pela atividade voluntária) está
encerrada no conceito de pessoa, a concepção de pessoa está contida na noção de
indivíduo. Toda pessoa é um indivíduo, ainda que nem todo indivíduo seja uma
pessoa.
Além disto, a concepção de pessoa está indissoluvelmente associada à de
Homem, à concepção de ser humano (antropologia).
Todas as concepções de pessoa que podem ser identificadas em nossa cultura, e
mais as noções de de personalidade e de sujeito constituem o momento de
convergência das ciências humanas (psicológicas e antropológicas), das ciências
naturais (biologia e fisiologia) e das ciências da sociedade (sociologia, história).
Não é possível situar restritamente o eixo principal destas noções (ou de qualquer
uma delas) em quaisquer uma destas áreas particulares do conhecimento
científico. Não é possível, por exemplo, afirmar que a personalidade é uma
instância individual socialmente condicionada, ou se é uma instância social
individualmente limitada.
Dignidade Humana
A noção de dignidade humana, atributo moral associado a todo ser humano, é
importantíssima conquista ético-moral da civilização e elemento fundamental do
conceito de pessoa e sua diferenciação de indivíduo. Ao contrário da
honorabilidade, atributo pessoal que depende da conduta de quem a ostenta, a
dignidade é um valor atribuído pelos demais. Naquilo que é essencialmente ético,
considera-se a noção de pessoa como carregada pela idéia de dignidade humana
individual, mesmo quando em confronto com os interesses coletivos, o que
fundamenta a necessidade social que leva à codificação dos direitos civís e dos
direitos humanos. Enquanto o indivíduo é um componente eticamente neutro da
coletividade, a pessoa é o elemento da humanidade, premissa e resultado da
perspectiva ética.
43
Nestes termos, considera-se que a dignidade humana é apanágio das pessoas,
independente de sua origem, de sua conduta ou de seu destino. Todo ser humano
é merecedor de tratamento digno. Não importa se é rico ou pobre, não importa se
é um criminoso ou um santo, um cidadão prestante ou um criminoso. Ao menos
como princípio, todos os seres humanos são detentores de dignidade. Por isto,
existem as noções de direitos humanos e de garantias sociais.
No plano filosófico, o compromisso com a dignidade do outro é uma dimensão do
humanismo, qualquer que for o alcance que se atribua a esta expressão; no
âmbito da psicologia, deve resultar do auto-respeito, porque aqui, como em
situações análogas, a agressão a um, ameaça a todos, e os sentimentos que se
cultiva por si mesmo são dados importantes daqueles que se dedica aos demais.
Este compromisso faz da Medicina uma profissão especial por causa de seu
objeto.
O ser humano atual é o resultado de um longo processo evolutivo cujo início está
perdido no tempo, e cujas etapas intermediárias e mecanismos internos ainda não
estão muito bem estabelecidos. Nesse processo do desenvolvimento, tudo indica
que o surgimento da condição humana foi resultante da evolução das dimensões
biológica e psicossocial que, aliás, podem ser consideradas como processos
integrados de uma única totalidade que é completamente inviável sem qualquer
um deles. A dimensão biológico-individual e a dimensão psicossociocultural são
inseparáveis em cada ser humano concreto e tal divisão da totalidade humana só
pode resultar de um exercício artificial de análise.
O reconhecimento da dignidade humana é o ponto mais alto da evolução ética da
humanidade e foi sempre um pilar ético da Medicina. O processo de humanização,
ao conduzir o homem à consciência de si, da humanidade e da natureza,
possibilita-lhe entender suas relações com os demais, e indica que o ser humano
deve ser considerado muito mais, que um mecanismo natural de elevada
complexidade e excepcional rendimento, garante aos seres humanos a condição
44
de absoluta originalidade e dignidade face aos demais seres vivos. No início este
respeito foi obtido configurando-se a vida humana como atributo especial das
divindades.
Nos estudos científicos de qualquer ciência, ao menos em tese, os seres humanos
podem ser considerados como indivíduos ou como pessoas na dependência da
situação específica dessa escolha. No entanto, os fatores individuais e pessoais
hão de ser considerados, sempre, como estratos que traduzem níveis diferentes
de organização existencial e evolutiva, nem sempre distinguíveis na unidade do
humano No entanto, pode-se notar entre estes dois conceitos um elemento
diferencial claramente qualitativo.
A dignidade de seu objeto e a particularidade de sua situação de enfermidade (o
homem enfermo e com sua sobrevivência ameaçada, o ser humano sofredor)
emprestam ao exercício da Medicina e das atividades sanitárias correlatas ou
análogas, um caráter absolutamente único em sua singularidade. Muito mais ética
que técnica (ainda que, por causa disto, não deva ser menos técnica do que a
realidade lhe possibilita). Por isto, enquanto procedimento social e relação inter-
pessoal, a Medicina é uma atividade social que se distingue muito mais por sua
ética do que por sua técnica (embora esta não possa nem deva ser subestimada).
Considerando-se as três dimensões da Medicina: a ética, a técnica e a mercantil,
esta deve ser sua seqüência de prioridades.
O significado social de uma profissão sofre muita influência do valor que se atribui
ao seu objeto. A dignidade de seu objeto e sua posição singularíssima na relação
com seus clientes fazem com que as profissões incumbidas da saúde devam ser
consideradas como sendo completamente diferentes das outras atividades
profissionais. Mais que os agentes de quaisquer outras profissões, os profissionais
de saúde (e, em geral, os médicos, muito mais que os outros) lidam com três
elementos essenciais para as pessoas: sua vida, sua saúde e sua dignidade.
45
A dignidade humana não existe no éter, ela se materializa na identidade e na
personalidade de alguém real, em uma pessoa concreta. Qualquer pessoa e todas
as pessoas. A dignidade humana não deve ser considerada como apenas um
atributo genérico de todos os seres humanos, mas deve ser concretizada,
realmente, em cada ser humano individualmente como caracteriza e atributo
essencial seu.
Por isto, considera-se o altruísmo como um atributo essencial de todas as
profissões (ver o capítulo sobre os fundamentos sócio-antropológicos), mas é
particularmente importante na Medicina. Quem não gosta de gente, não deve ser
médico. Porque, a filantropia (gostar de gente, no sentido original da expressão) é
a primeira qualidade que se exige dele.
E o egoísmo (preocupação primária e particular com os próprios interesses) na
atividade do profissional de saúde, mais do que em qualquer outro, talvez seja o
fator que mais o desqualifique. O descaso com os pacientes, a falta de interesse
humano e o desinteresse tem sido impropriamente confundido com neutralidade
profissional, com não envolvimento, quando não é. O envolvimento pessoal do
profissional com o cliente (com sentido reprovável) se dá quando ele perde a
objetividade em seu desempenho técnico ou coloca outros interesses (ainda que
seja o seu próprio) acima dos interesses do paciente.
Enfermidade e Enfermo
O conhecimento das enfermidades e as relações recíprocas que as patologias
mantêm com as pessoas afetadas por elas, é objetivo cognitivo basilar da
Medicina e das ciências médicas. A Medicina existe como atividade social porque
existem pessoas que sofrem com as enfermidades, existe como atividade
científica porque estas enfermidades podem ser estudadas, conhecidas e
reconhecidas; a Medicina existe como atividade humana porque os enfermos
podem ser curados, cuidados e consolados.
46
Não se deve tentar separar os conceitos de doença e de doente, senão como um
exercício intelectual, porque são conceitos que se referem a duas coisas
completamente inseparáveis na realidade.
A despeito disto, é bastante comum que se encontre quem, pretendendo estudar
ou exercer Medicina, preocupe-se exclusivamente (ou quase exclusivamente) com
um destes aspectos inter-complementares: a doença (os doencistas) ou o doente
(os doentistas). Sendo que cada uma destas vertentes reducionistas incorre em
erro, dificulta o desenvolvimento teórico e prático da Medicina, enquanto prejudica
os enfermos.
Enfermidade e enfermo são as duas dimensões essenciais do objeto da Medicina
e constituem duas categorias completamente inter-complementares (chamadas
dialéticas, por que não pode existir uma, sem a outra).
Recorde-se que não existe enfermo sem enfermidade nem enfermidade sem
enfermo. Toda tentativa de pretender separar estes dois fenômenos reais resulta
em uma distorção de seu entendimento e uma perturbação de seu conhecimento.
Enfermidade é um conceito bastante amplo com o qual se designa
genericamente qualquer moléstia, patologia, doença ou condição de incapacidade
mórbida, invalidez ou sofrimento; neste sentido assim amplo. A enfermidade pode
atingir indivíduos vivos.
O termo enfermidade pode muito bem ser substituído pela expressão patologiaem
todas sua situações de emprego, porque enfermidade e patologia se referem a
uma condição individual caracterizada por um dano. O conceito de enfermidade
contém, pois, um juízo negativo de valor que se aplica a um acontecimento vital ou
existencial danoso. As enfermidades podem se apresentar como uma entidade
específica, algo novo na vida da pessoa, uma estrutura patológica definida (uma
manifestação qualitativamente nova), ou como uma variação danosa da
funcionalidade orgânica os psicológica (transtorno quantitativo).
47
O dano constitui o elemento basilar de todos os conceitos que se referem ao
objeto da medicina em todas as partes do mundo.
Na linguagem vulgar, ao menos no idioma português tal como é falado no Brasil,
se empregam também as expressões moléstia e doença com este sentido genérico e
inespecífico. Mas, isto que não é incorreto na linguagem comum, não deve ser
praticado na terminologia científica.
Doença é uma enfermidade ou uma condição patológica identificável e
reconhecível por suas manifestações clínicas, por sua etiopatogenia e por seu
prognóstico que é conhecida ou sentida pelo doente. A consciência da doença é
sua característica mais importante e que lhe possibilita assumir o papel de doente.
Moléstia é mal-estar, o incômodo, a perturbação subjetiva, o sofrimento
determinados por uma condição patológica. Também podem ser identificadas
patologias por dano negativo, caracterizadas por faltar uma estrutura ou parte
dela, ou haver prejuízo funcional identificável em relação ao modelo humano;
estas condições patológicas podem ser congênitas (deficiências) ou adquiridas
(mutilações, desfigurações).
Enfermo é a designação que se atribui ao ser que padece uma enfermidade,
uma moléstia qualquer; quem está afetado por alguma condição clínica
correspondente a uma patologia diagnosticável, correspondente a uma das três
classes de patologia (prejuízo funcional ou estrutural, doença ou sofrimento
inadequado). Enfermo é o indivíduo no qual se manifesta uma perturbação
perceptível de seu sistema vital, a pessoa que padece uma enfermidade de
qualquer natureza.
Noções como doença, enfermidade, moléstia, condição patológica, invalidez,
transtorno, distúrbio, desordem não se definem por si, são construtos, conceitos
valorativos caracterizados pelo dano que ocasionam às pessoas (ou outros
48
organismos individuais) afetadas. Dano este que pode ser estrutural ou funcional,
com ou sem sofrimento, com maior ou menor prejuízo pessoal ou social.
A pessoa enferma, no entanto, não pode nem deve ser concebida como um ser
reduzido a portador de enfermidade; ou um indivíduo afetado por um agente
patogênico e sujeito à sua ação prejudicial; mas, o enfermo deve ser entendido
sempre como um ser humano que sofre uma doença, uma pessoa prejudicada por
uma patologia, alguém que padece uma moléstia que, por isto, merece ajuda e
tem direito a ser cuidado com competência e desvelo pelos demais membros da
sociedade, principalmente pelo pessoal da saúde e pelos agentes Estado.
Durante muito tempo, discutiu-se se o objeto da Medicina seria a doença ou o
doente. Esta discussão é inútil, pois, doente e doença são fenômenos
absolutamente interdependentes e inter-complementares, inexistindo um sem o
outro; a enfermidade é um estado, uma qualidade do enfermo. Não pode haver
doente sem doença, nem doença sem doente. Estes dois fenômenos e suas
relações constituem o cerne do objeto da Medicina. Não obstante, existe quem
defenda (e pratique) os reducionismos extremados: os doencistas que se
preocupam e se ocupam apenas com as doenças e os doentistas, preocupados e
ocupados só com os doentes.
Da definição do objeto da Medicina, ressaltam quatro aspectos ontológicos que
são complementares e importantes:
= a) a vastidão e complexidade do objeto da Medicina abrange as pessoas
enfermas, os seres humanos e suas enfermidades (o que envolve um conjunto de
ciências e um sistema de técnicas de intervenção na realidade); e
= b) que o estudo da ontologia médica envolve, preliminarmente, a circunscrição
de diversos conceitos, referentes a diversos fenômenos que se entrelaçam em seu
objeto (tais como organismo, ser humano, pessoa, patologia, saúde, enfermidade
e enfermo, ambiente e sociedade, prevenção, diagnóstico, tratamento e
reabilitação);49
= c) que o objeto da Medicina integra simultaneamente a pessoa e a sociedade, o
organismo e o meio, a patologia e a saúde, o doente e a doença que constituem o
núcleo do objeto da Medicina;
= d) toda doença humana é uma doença pessoal e um fenômeno ecológico, além
de patológico (e a principal característica da patologia é o dano que ocasiona).
Em um plano mais amplo, com relação estes dois aspectos da identidade do
objeto da Medicina, o doente e a doença, existem mais duas tendências extremas:
a tecnicista, voltada para a doença, e a humanista, dirigida para doente.
Ser Humano e Humanismo
O principal objeto da Medicina é o ser humano enfermo, o ser humano que sofre
uma enfermidade ou padece suas conseqüências objetivas e subjetivas. A pessoa
enferma constitui o objeto essencial da Medicina que, absolutamente, não existiria
sem ele. Embora, como já se mencionou anteriormente, os conceitos de
enfermidade e enfermo se integrem numa totalidade apenas separável por um
processo analítico, a Medicina se originou da necessidade de minorar ou curar a
dor e as demais vissicitudes experimentadas pelo ser humano vitimado por uma
condição de enfermidade que lhe causa algum dano ou se constitui em uma
ameaça para sua integridade, sua felicidade ou sua dignidade. A pessoa enferma
ou ameaçada de morte foi sempre o motivo e o objetivo da ação social e técnica
dos médicos em todas os lugares, em todos os momentos da história de todas as
culturas.
A dor do enfermo parece ter sido a condição mais importante, dentre as que
determinaram o aparecimento do médico e só depois, da medicina e do interesse
pela enfermidade.
O ser humano, concebido como pessoa, não pode ser reduzido ao organismo ou
a uma interação mecânica entre o organismo (entendido como indivíduo passivo e
passivamente plasmado por estímulos do meio físico ou do meio social.
50
A pessoa, entendida como personalidade e credor de dignidade, sujeito de seu
próprio destino e agente copartícipe do processo histórico-social, além de um
agente do desenvolvimento da cultura material e espiritual, é um ser
biopsicossocial qualitativamente diferenciado das outras espécies vivas, sobretudo
por causa das relações especiais que mantém com a meio físico e com a
sociedade (o meio social).
O ser humano enfermo ou ameaçado de enfermidade é dado essencial do objeto
da Medicina e só esquematicamente pode ser tido como um organismo humano
ao qual se acrescentam elementos de sua existência social e características
psicológicas. Neste esquema, o conceito de organismo deve estar absolutamente
vinculado ao de ambiente, assim como o conceito de pessoa é interdependente do
conceito de sociedade. A pessoa é moldada pela interação entre seus aspectos
biológico-individuais e sociais.
No entanto, o conceito de organismo está muito identificado com a noção de
sistema vivo e, por isto, com a dimensão biológica da existência humana, estando
muito longe de representar o conceito bastante amplo de ser humano, enquanto
ser de natureza bio-psico-social, construtor de cultura, sujeito do processo
histórico-social e de seu destino pessoal; um ser considerado único em dignidade
e em personalidade e essencialmente caracterizado, exatamente, por esta
singularidade que lhe dá sua personalidade e sua dignidade humana. Estas são
as características da pessoa.
O conceito de organismo tem sido considerado pelos positivistas mais ou menos
estritamente como mecanismo biológico, máquina animada, abrange apenas a
dimensão biológica do homem, seus aspectos biológico-individuais, no máximo,
integrados no meio físico, sem qualquer referência à sua integração no meio social
ou aos seus mecanismos psíquicos.
O conceito ampliado de organismo, descomprometido dos preconceitos
positivistas, pode (e talvez deva) conter o de psiquismo. E muitos o utilizam assim,
51
entendendo o psiquismo como parte integrante do organismo, principalmente
porque recusam separar o corpo do psiquismo como fazem os dualistas, que
primeiro separam o corpo da alma e, depois, apartam a mente do corpo, como se
fossem duas realidades essencialmente diferentes.
Por isto, ao menos em sentido bastante amplo e sob influência da doutrina
filosófica monista, a referência ao organismo humano pode (e talvez deva) incluir a
noção de psiquismo e, portanto, abranger as noções de ambiente físico e meio
social como contextos obrigatórios dos seres humanos.
O objeto da Medicina deve ser entendido como uma díade com duas faces
completamente inter-complementares: a pessoa afetada (ou em risco de ser
afetada) por uma patologia e a patologia que afeta (ou é potencialmente capaz de
afetar) às pessoas, comprometendo seu bem-estar, seu desempenho e sua
realização pessoal e social.
A condição vital especial dos seres humanos é muito difícil de ser
precisada,<$FDificuldade que se torna insuperável caso se adote um modelo
animal para referir o ser humano, como fazem os positivistas naturalistas que
infestam a psiquiatria contemporânea.> mas pode-se dizer que se caracteriza por
sua consciência, seu intelecto, sua capacidade verbal, sua aptidão para amar e
sua possibilidade de transformar deliberadamente o mundo; condições estas que
são, simultaneamente premissa e resultado de sua história e de suas relações
sociais. Aparentemente o corpo humano não se diferencia por algum elemento
qualitativo, ao contrário de sua condição psicológica e social.
Estas características de ser social e histórico, de pessoa e de sujeito, além de um
organismo vivo, fazem do homem um ser especial, simultaneamente agente,
produto e habitante de três mundos: o mundo da sociedade, o mundo biológico e o
mundo psicológico (nascido da confluência e da contradição dos dois anteriores).
Síntese desta tríplice identidade, o ser humano se caracteriza por sua inteligência,
por sua capacidade de comunicação, por sua capacidade de transformar o mundo
52
deliberadamente e por sua capacidade de se relacionar através de sentimentos;
mas, se caracteriza, sobretudo por sua dignidade e senso do futuro.
O conceito de dignidade humana, pelo alcance de seu significado que
assumiu em nossa civilização, tornou-se de em uma categoria ética em um
princípio civilizatório e em uma diretriz para as condutas de relação entre os seres
humanos nas sociedades (quaisquer que sejam).
A dignidade humana é uma categoria ética que pode ser edificada a partir de dois
fundamentos diferentes. Um, primeiro, o fundamento mágico-religioso, pretende
que a dignidade humana seja derivada de uma dotação divina, um presente ou
uma ordem de uma divindade. Um segundo, o fundamento científico-natural,
pretende que a ética seja uma construção histórico-social e política, e sua
evolução, um fator de desenvolvimento pessoal e uma necessidade da vida em
sociedade. Neste segundo sentido, a dignidade humana deve ser entendida como
uma decorrência natural da liberdade e da igualdade que diferenciam
essencialmente os seres humanos dos outros animais e caracteriza a essência do
ideal humano que se consubstancia no humanismo.
A atitude e as condutas humanistas são um dever essencial dos médicos, mais do
que todos os outros agentes sociais.
Humanismo é a doutrina política e filosófica que se revela por um conjunto de
valores e comportamentos que revelam o respeito devido aos seres humanos em
face de sua dignidade e dos direitos que sua condição humana o faz detentor.
Para os humanistas, os seres humanos são o que há de mais importante no
universo; para eles, o ser humano é a referência obrigatória mais importante para
tudo o que existe. Os direitos humanos, inerentes à condição humana que são
construídos a partir da convicção de que os seres humanos são iguais em direitos
e dignidade. Só. No mais, costumam ser desiguais. Ainda que se possa prever (ou
sonhar) que esta construção cultural continue a se desenvolver dirigida pelo
humanismo e pelo humanitarismo.
53
O humanismo é uma atitude essencialmente ética e, por isto, antagônico a todo
fanatismo, intolerância, exploração, alienação e reificação (de res, rei=coisa,
objeto). Embora as religiões tenham uma propensão natural para o humanismo,
ao menos como parte de seus objetivos sociais, o humanismo não é
obrigatoriamente uma prática religiosa, mas necessariamente ética. A despeito do
que preguem, muitas crenças e práticas religiosas só podem ser reconhecidas
como desumanas e desumanizadoras.
Nas biociências contemporâneas, assiste-se ao aparecimento de uma nova
tendência anti-humanista que considera a conduta animal como modelo conceitual
para referir os seres humanos. De tal maneira que, qualquer conceito que não seja
atribuível aos ratos de laboratório não pode ser usado nos seres humanos. Por
esta ideologia, ignoram-se fenômenos essencialmente humanos como
sentimentos, psicomotricidade (motricidade voluntária) e se confunde cognição e
intelecto, cinesia e atividade (com o sentido de praxia, conjunto de atos
voluntários), afetividade e sentimentos.
Tudo que é humano me diz respeito, dizia Terêncio, filósofo romano tido como iniciador
da tendência humanista na Filosofia.
O humanismo é uma característica essencial de qualquer processo que mereça a
designação de civilizador. Porque se deve entender a civilização como um tipo de
sistema social na qual cada pessoa seja potencialmente amiga natural dos demais
e não ameaça potencial, um inimigo predador. A civilização, neste sentido, de
sistema social construído para se opor à selvageria, na qual o homem é o lobo do
homem. O homem urbanizado e, por isto, civilizado se opõe ao estado de
selvageria tribal. O conteúdo de humanismo parece ser o indicador mais
importante do grau de civilização de um povo.
54
Organismo
O organismo vivente pode ser definido estritamente como um sistema biológico,
aberto, auto-organizador e mais ou menos organizado; auto reprodutivo e auto
reparador; que pode ser integrado em uma única célula ou em um sistema celular
de variada complexidade; mas, em qualquer caso, capaz de manter sua existência
individual como um sistema, unitário e individualizado que necessita estar
completamente integrado em seu meio do qual retira o que necessita para atender
às suas necessidades.
Em geral, os organismos vivos (objetos de estudo da biologia) podem ser divididos
em duas grandes categorias:
organismos vegetais (objeto de estudo da botânica) e
organismos animais (objetos de estudo da zoologia).
embora o termo possa ser usado para qualquer tipo de organização, mesmo
inanimada (quando trai a influência chamada naturalista nas ciências sociais).
Neste texto, a noção de organismo se refere ao organismo humano e engloba as
atividades comportamentais subjetivas (o psiquismo).
Embora a noção de organismo seja restrito à dimensão biológica, o ser humano
não pode ser reduzido a um organismo, a uma máquina viva. Por isto, é a relação
entre o ser humano (e não só seu organismo) com a patologia que constitui o
objeto da Medicina, embora o termo organismo humano possa ter sua significação
ampliada para conter o psiquismo e, com isto, pretender equivaler a ser humano.
O Todo e as Partes
As questões doutrinárias que dão ênfase à totalidade e à integração no estudo dos
sistemas estão em oposição às que situam a ênfase nas partes e na
desarticulação da totalidade sistêmica (inclusive pessoal) têm desempenhado a
55
maior importância na discussão da ontologia médica naquilo que respeita a noção
de organismo.
Os médicos da Antigüidade, como Hipócrates que parece ter sido sua maior
expressão, faziam ênfase na totalidade. Defendiam que a saúde consistia na
integração orgânica e na interação harmônica do organismo com o meio (físico e
social). Consideravam o corpo um microcosmo integrado em um macrocosmo. A
enfermidade seria a ruptura desta unidade, a perturbação desta integração.
Consideravam o mundo (e tudo que existia nele) composto por diferentes
combinações de quatro elementos básicos, a saber: terra, fogo, ar e água; e
explicavam o organismo como sendo formado por quatro humores (daí, a
designação de teoria humoral ou humorista) correspondentes a este elementos,
que seriam os seguintes: bile negra, bile amarela, sangue e fleuma. Esta teoria
persistiu até o fim da Idade Média.
Estava completamente errada, mas o princípio da ênfase na totalidade e da
integração dor organismo no universo, só foi contestado pelo surgimento do
dualismo cartesiano, em pleno Renascimento.
A separação do homem e a comunidade, do corpo e da mente, e de cada
estrutura corporal ou psicológica marcou a teoria médica das Idades Moderna e
Contemporânea, conduzindo a uma concepção mecanicista do organismo como
uma máquina. O que é falso.
Ordem e Desordem no Organismo
A noção de funções orgânicas que fundamenta em grande parte a existência da
fisiologia, impõe os conceitos de ordem funcional e desordem ou perturbação
deste estado fisiológico. Neste caso, a patologia seria reconhecida como uma
desorganização estrutural ou funcional do organismo. Esta concepção leva a um
entendimento da doença como expressão da desordem e da saúde como ordem.
56
Existe uma posição sectária que identifica esta doutrina médica com a sociologia
da ordem ou do conflito, conduzindo a um raciocínio bastante curioso, além de
risível.
Organismo e Ambiente
O organismo tem sido concebido como uma estrutura viva complexa em, interação
com o ambiente, com funções diferenciadas e capaz de reproduzir; ou, como um
quimiossistema semi-aberto e auto-controlado que tira do meio-ambiente a
matéria e a energia que necessita para suas reações, sintetizam os demais
elementos que precisam (especialmente as proteínas, reproduzem-se, mutam e
evoluem é um conceito muito difundido. <$FBrito Cunha, A.A., O Conceito de
Organismo, in Bunge, M., Epistemologia, Ed. TAQueiroz/EDUSP, S.Paulo, 1987,
p. 94.> É impossível pensar a Medicina sem ter uma clara noção de organismo e
de organismo humano, em particular.
Pode-se afirmar que é impossível pensar em organismo sem considerar sua
completa dependência do meio de onde retira matéria (e, freqüentemente,
energia) para assegurar a satisfação de suas necessidades.
Em praticamente todas as enfermidades bem conhecidas, as condições do
organismo e as condições ambientais, desempenham papel crucial em seu
aparecimento e em sua evolução. Não obstante o conhecimento que se tem disto,
nem sempre é possível identificar a importância relativa que cada um destes pólos
do processo patológico desempenha no seu resultado final: a emergência das
manifestações clínicas e a evolução da entidade mórbida.
As questões relacionadas com a importância relativa de cada um destes pólos na
etiopatogenia, na clínica e na evolução das enfermidades exigem discussão atenta
e exercem influência muito além de seus limites óbvios que se expressam, por
exemplo, nas questões sobre o significado da agressão e a vulnerabilidade do
terreno onde ela se assestasse.
57
Grande parte da explicação de uma patologia consiste na verificação de que seria
a participação relativa nela dos fatores individuais, do organismo enfermo, e qual a
influência dos fatores ambientais extra-organismo. Esta relação entre os seres
vivos e seu ambiente natural situa o núcleo da perspectiva ecológica do
conhecimento.
Em patologia geral, o organismo se denomina terreno, como em o terreno da
enfermidade (e não apenas os elementos constitucionais do organismo).
Quanto a esta tendência existem três grandes tendências da patologia (inclusive
na psicopatologia). Duas radicais, os internistas (que sustentam a exclusividade
ou predominância de fatores internos); e os externistas (que pretendem a
exclusividade ou predominância dos fatores externos). A terceira, uma posição
dialética ou eclética., sustenta a síntese dos fatores internos e externos no
funcionamento do organismo).
Adaptação
A não ser de um ponto de vista mecanicista, os organismos vivos não podem, nem
devem ser confundidos com as máquina ou outros artefatos mecânicos. Além de
sua característica dinâmica, os organismos vivos possuem as qualidades de
procriação e de adaptação (um instrumento de auto-regulação).
A adaptação consiste na modificação auto-regulada da estrutura física, dos
padrões funcionais e comportamentais de um organismo individual ou social para
se ajustar às exigências do meio. A adaptação é um processo natural que decorre
da adaptabilidade orgânica. deve ser diferenciada da sensibilização, mudança
das condições estruturais ou funcionais provocada por estímulos danosos.
A adaptabilidade manifesta o processo de integração dinâmica do organismo para
atender às exigência de seu meio interno ou externo.
58
Terreno e Agressão
Terreno e agressão são duas categorias essenciais para o entendimento do
conceito de enfermidade. A influência relativa do terreno (o organismo) ou da
agressão (os agentes patogênicos do meio) no desenvolvimento das
enfermidades e no destino dos enfermos, é um dos aspectos mais importantes no
estudo ontológico da Medicina. A avaliação ponderada destes dois aspectos na
estrutura da enfermidade aponta para duas possibilidades de enfermar
conseqüentes a estes dois elementos que podem ser considerados como
essenciais de toda enfermidade.
Aqui se denomina terreno à estrutura viva (dimensão biológica ou psicológica do
organismo) sobre a qual se desenvolve uma enfermidade (como resultado de uma
agressão, uma degeneração ou resulte de uma desregulação).
Com relação à influência relativa destes dois elementos na gênese e na evolução
das enfermidades, pode haver três posições clássicas básicas: á primeira
assentada na crença da participação dominante do terreno, a organísmica
(vitalista, constitucionalista, hereditária); e a segunda, que presume o predomínio
dos fatores agressivos do meio (ecológica, ambientalista).
Quando se formula uma teoria sobre a enfermidade, pode-se situar a ênfase no
terreno (no organismo, na predisposição ou em seus elementos particulares de
vulnerabilidade geral ou específica), ou se pode atribuir maior responsabilidade à
agressão. Além de, naturalmente, haver a possibilidade de se considerar os dois
pontos-de-vista opostos como complementares (e não auto-excludentes), o que
parece bem mais razoável.
Terreno é a base organísmica e constitucional sobre a qual se desenvolvem as
enfermidades;
agressão é a ação dos fatores externos ou internos potencialmente danosos
para o organismo.
59
A influência relativa de cada um destes componentes do processo de saúde
doença é muito variável em cada caso e em cada momento de cada um deles.
Existem enfermidades que são devidas quase que exclusivamente a um destes
dois componentes. Não obstante, ambos devem ter seu papel quando se promove
uma avaliação cuidadosa de um acontecimento patológico.
Esta discussão motiva muitos e antigos conflitos teóricos e, na história da
Medicina, parece sempre haver quem se disponha a defender um dos extremos
desta antinomia. No entanto, esta querela parece ser uma das muitas que, a
despeito do muito barulho que provoca, na verdade, é completamente ociosa.
Estes pontos de vista são complementares e, na maior parte dos casos concretos,
coexistem desempenhando cada um a sua parte no processo patológico. Terreno
e agressão são conceitos explicativos das enfermidades e cada um deles, em
cada caso desempenha papel relativamente diferente. Contudo, os organicistas
tendem a supervalorizar (ou exclusivizar) o terreno. Enquanto os psicologicistas e
sociologicistas fazem o contrário.
Prevenção
A rigor, até há época bastante recente da história da Medicina, a expressão
prevenção se referia apenas à profilaxia do aparecimento de uma enfermidade,
quando alguma providência técnica conseguiu impedir a incidência de uma
enfermidade. Mais tarde, já neste século, o termo evoluiu para o significado de
Medicina Preventiva, com sentido bem mais amplo que o inicial, referindo-se à
prevenção de qualquer etapa do processo mórbido: a ocorrência, a evolução, e os
impedimento ocasionados ao enfermo. A noção de Medicina Preventiva se
fundamenta na confiança na previsão científica e põe ênfase na ação
antecipadora das medidas técnicas frente à ameaça de agressão, do
desenvolvimento da agressão consumada ou suas conseqüências danosas para
as pessoas afetadas por alguma enfermidade.
60
Hoje, prevenção deixou de ser apenas profilaxia e passou a significar atitude
permanente de evitar o aparecimento, a evolução ou a incapacidade. E, com isto,
deixou de ter sentido a antiga antinomia prevenção x tratamento, higiene ou clínica
que tanto prejudicou a Medicina.
A Medicina Preventiva, que se iniciou simplesmente na profilaxia do aparecimento
das enfermidades (chamada, hoje, prevenção primária), finda por ser uma prática
integral que se concretiza em toda um complexo de ações sanitárias que objetiva:
= prevenir o surgimento (prevenção primária, prevenção da ocorrência ou
profilaxia das patologias),
= prevenção da evolução (prevenção secundária, diagnóstico e tratamento)
de uma patologia ou
= prevenção da invalidez (prevenção terciária ou reabilitação da invalidez)
decorrente de uma condição patológica.
O que se denomina atitude preventiva constitui o núcleo de toda atividade
sanitária moderna e deve ser uma marca essencial de todas as agências de saúde
a serviço da população. Isto significa que o eixo principal da atividade médica está
se deslocando do tratamento para a prevenção, da ação individual para as
medidas coletivas.
Recentemente, inclui-se no conceito de prevenção primária a noção de promoção
da saúde, de incremento das condições de vida e da satisfação das necessidades
biológicas e sociais, de melhoria do bem-estar. Nesta perspectiva, promover a
saúde seria resultante de qualquer procedimento ou intervenção individual ou
social que ampliasse os níveis de satisfação das necessidades, os níevis de bem-
estar.
A Medicina Preventiva é a sucessora legítima da Higiene e Saúde Pública.
61
O primeiro conceito de Medicina Preventiva, se define como prática de intervenção
individual e social que se destina a aplicar técnicas destinadas a concretizar
profilaxia, prevenção primária a prevenção da ocorrência; a prevenção secundária
ou prevenção da evolução das enfermidades; e a prevenção terciária ou
prevenção da incapacidade e a invalidez. Mais recentemente, a noção e as
práticas de promoção da saúde ou incremento do bem-estar individual e social
foram incluídos na prevenção primária.
O capítulo da Medicina que se destina especificamente a prevenir a evolução de
uma enfermidade é a terapêutica (ou procedimentos de tratamento) que depende
basicamente do diagnóstico; pois um, erro diagnóstico induz um erro terapêutico.
Sem diagnósticos bem feitos não existe ou pode existir terapêutica eficaz.
Tratamento ou Terapêutica
A terapêutica é o objetivo mais importante da Medicina; nenhum dos seus outros
propósitos lhe é superior; nenhum aspecto da ontologia médica existe senão como
função da terapêutica. A terapêutica é o fecho da teoria e da prática da Medicina
que, desde tempos imemoriais, é denominada arte de curar ou atividade que cura
doentes por meios especiais. É o procedimento médico que objetiva curar uma pessoa
que apresente um sintoma ou uma síndrome, ou que esteja afetada por uma
entidade patológica mais ou menos complexa que lhe ocasione desconforto,
sofrimento, perturbe seu desempenho pessoal ou ameace sua integridade pessoal
ou sua vida.
Qualquer que for o paciente, qualquer que for a condição patológica a ser tratada
e qualquer que for o tipo de técnica terapêutica a ser empregada, tal tratamento
deve representar um ou uma combinação qualquer do seguintes elementos: a)
supressão do agente patogênico ou bloqueio de sua ação; b) b restauração
funcional; c) reconstrução ou transformação estrutural; d) reposição, substituição
ou mimetização; e) estimulação ou f) inibição funcional.
62
Não foi atôa que a atividade dos médicos foi chamada durante muitos séculos de
arte de curar.
Desde muito antes de <MS>HIPOCRÁTES<D>, provavelmente desde suas raízes
xamânicas na Pré-História, a terapêutica era considerada objetivo essencial e
inseparável da Medicina e a principal razão para a existência dos médicos. Desde
sua origem como atividade social reconhecida, a Medicina se apresentava e se
justificava como Arte de Curar. Considerada como prática curativa individual, tuda
na medicina deve convergir para o objetivo final e mais importante: curar. A cura é
o principal fundamento e a principal justificativa para a existência dos médicos e
da Medicina.
Atualmente, ainda que o significado relativo da terapêutica tenha mudado bastante
e não seja mais considerada como a única prática médica, seus fundamentos
permanecem. E, desde a Antigüidade Clássica, com a Medicina hipocrática,
pretende-se que a terapêutica praticada pelos médicos seja regida pelos seguintes
princípios diretores:
a) princípio do oposto e do semelhante (o tratamento mais comum é pelos
contrários (alopatiaou antipatia<D>), mas também se justificava o tratamento pelos
semelhantes (homeopatia<D>);<$FA homeopatia hipocrática não devce ser
confundida com a homeopatia hannemaniana que é completamente diversa, como
se há de ver a seguir.>
b) princípio da prudência ou da previdência (ter dobrada cautela com a novidade,
com a medida terapêutica pouco conhecida);
c) princípio do fazer bem feito (todo procedimento deve ser o mais útil e belo
possível e, por isto, menos incômodo, dispendioso, inestético ou doloroso para o
paciente);
63
d) princípio de atacar antes as causas que (e tratar o mais precocemente possível)
as conseqüências das enfermidades (originalmente situado entre os princípios
éticos e não entre os técnicos);
e) princípio da ação educativa do médico (necessidade de instruir o paciente para
que ele possa cuidar de si, o que, para Platão, diferenciava a Medicina da
Veterinária e se dava em três planos, a ilustração médica do doente - instruir o
doente sobre a doença - a persuasão verbal e a adequação biográfica);
f) individuação do tratamento (o remédio, a dose e a oportunidade);
g) princípio holístico (considerar o organismo uma totalidade e uma parte da
natureza, devendo a terapêutica vir sempre em auxílio da tendência natural de
compensação ou auto-reparação).
A ilustração (no sentido de instrução, educação) do paciente pelo médico era a
explicação do diagnóstico, das circunstâncias em que aparecia a doença, como
poderia ser tratada e evitada, quando fosse o caso. Hoje, se denominaria educação
para saúde. Pela persuasão verbal, o médico argumenta contra as objeções do
doente e lhe explica o que parece obscuro, enquanto busca convencê-lo do acerto
do diagnóstico e da correção da terapêutica proposta, porque os médicos gregos
sabiam que qualquer tratamento vale muito pouco ou nada, enquanto o paciente
não estiver convencido de sua eficácia.
Por adequação biográfica, se entendia o papel pedagógico do médico;
acompanhar a experiência pessoal do paciente, ensinando-o a mudar seus
hábitos a evitar tal conduta ou a praticar outra, em benefício de sua saúde.
À época de HIPÓCRATES, diferentemente de hoje, denominava-se alopática à
terapêutica que empregava como remédios tudo o que for oposto às
manifestações do agente morbígeno (fosse calor, frio, seco, úmido de acordo com
a concepção hipocrática de etiologia) ao qual se atribui a enfermidade que se
64
pretendia combater. Por exemplo, se uma enfermidade fosse atribuída ao frio,
devia ser tratada com remédios quentes.
A homeopatia, ao contrário, se praticava com o emprego de um agente
terapêutico de natureza idêntica àquele que se supunha causador da enfermidade.
Por exemplo, se uma enfermidade era atribuída à umidade, era tratada com
agentes terapêuticos úmidos ou molhados.
A homeopatia, tal como foi concebida por Hanemann e é entendida hoje, como
emprego de fármacos que, nas pessoas sadias, induzem sintomas idênticos aos
que buscava combater, foi concebida muitos séculos após, no Iluminismo e foi
reação ao excesso de sangrias, purgativos e terapêuticas tóxicas (arsênico e
mercúrio) muito comuns na época, principalmente, depois do aparecimento da
sífilis.
A homeopatia hanemaniana se resumia a uma escola de terapêutica. Se hoje se
apresenta como um tipo diferente de Medicina é porque conserva as mesmas
concepções patogênicas e as mesmas teorias de enfermidade que existiam na
época de seu surgimento e que são consideradas obsoletas atualmente.
Os procedimentos terapêuticos costumam ser genericamente classificados em
três categorias, os procedimentos terapêuticos clínicos, os procedimentos
terapêuticos cirúrgicos e os procedimentos psicoterapêuticos psicoterápicos. Esta
divisão, apesar de superada em teoria e pela prática científica mais refinada, ainda
parece útil e, por isto, não foi abandonada. Contudo, deve-se vincar a necessidade
das medidas terapêuticas (quaisquer que forem) estarem o mais próximas que for
possível da natureza.
Aspecto curioso das terapêuticas, é que desde a origem da Medicina, trata-se um
mal com outro mal. Os procedimentos terapêuticos, em geral, resultam de se
provocar intencionalmente uma lesão corporal (como na cirurgia, na radioterapia),
uma doença (vacinas, antibióticos ou outros agentes biológicos, a malarioterapia,
65
as convulsões induzidas), uma intoxicação (agentes quimioterápicos) ou uma
neurose (transferência, dependência) para combater a enfermidade original. Por
isto, pode-se afirmar que não existem terapêuticas inócuas ou sem risco. Desde
muito remotamente, para os médicos, a escolha de um processo terapêutico
consiste, sempre, em escolher o mal menor; o procedimento com melhor relação
custo/benefício.
Tratamento e Cura
O emprego da terapêutica se radica na opinião de que as enfermidades são
condicionadas por fatores naturais e podem ser curadas ou terem seus efeitos
desagradáveis minorados pela ação de outros fatores naturais.
A noção de cura tem sido usada com dois sentidos distintos:
a) o primeiro significado era o de sinônimo de tratamento, qualquer tratamento
definido, ou seja, o emprego de medidas sistemáticas para tratar um enfermo
(cura antibiótica, cura hidroterápica, curativo) e
b) só mais recentemente incorporou o sentido de sanação, de restauração da
saúdede desaparecimento de uma enfermidade ou de algum de seus elementos, o
desaparecimento do mal-estar, do sofrimento, do padecimento.
Discussão interessante é a que se produz no estudo das seguintes alternativas: se
a enfermidade cura por si mesma? se é curada pelos médicos? se é curada pela
natureza e os médicos, no máximo ajudam? ou se os doentes curam a despeito
dos médicos?
Terapêutica Defensiva e de Ataque
Todo procedimento terapêutico da Medicina se vale do emprego de forças naturais
ou seus substitutos para reforçar as defesas do organismos contra o agente
patogênico ou os agentes patógenos de uma enfermidade e ou combater direta ou
indiretamente o fator de agressão. Isto caracteriza cada uma delas como de
66
defesa, de ataque ou mista (quando se serve de ambas). Na prática a seqüência
de prioridade terapêutica terapêutica é a seguinte: causa, mecanismos produtores
de danos, intensidade de síndromes e sintomas, queixas.
A falsa dicotomia que pretende levar a uma opção artificial pela defesa ou pelo
ataque na terapêutica é mais uma destas propostas sem sentido (mas, na qual,
muitos embarcam como se fosse coisa séria. Não há o que escolher. As duas são
necessárias e úteis. Devendo cada uma delas ser empregada sempre que as
circunstâncias assim o exigirem.
Reabilitação
Reabilitação é o esforço de restauração da capacidade prejudicada de alguém
afetado por um impedimento decorrente de uma patologia. Quando a enfermidade
(ou o traumatismo) causa danos mais ou menos incapacitantes; e estes danos não
desaparecem ou são compensados pelo tratamento do doente, exige-se a
mobilização de procedimentos reabilitadores. Os procedimentos de rehabilitação
implicam no emprego coordenado de esforços multi-profissionais para restaurar a
saúde e a capacidade (principal, mas não exclusivamente) laboral de uma pessoa
que tenha sido incapacitado ou prejudicado por uma enfermidade física ou mental
ou por um traumatismo corporal ou psicológico.
Quando se trata de estudar reabilitação, é preciso diferenciar entre os conceitos
de impedimento, deficiência e incapacidade.<$FUNICEF, A Deficiência Infantil:
sua prevenção e sua reabilitação (1980), p. 19.>
Impedimento é um dano psicológico, fisiológico ou anatômico, permanente ou
transitório, ou uma anormalidade de estrutura ou função que prejudique o
desempenho da pessoa afetada.
Deficiência é qualquer defeito estrutural ou restrição ou prejuízo na execução
de uma atividade que seja resultante de um impedimento (considerando-se como
padrão o modelo humano).
67
Incapacidade é uma deficiência que imponha uma desvantagem que impede
ou prejudica seu desempenho.
O processo de reabilitação envolve todos os procedimentos capazes de promover
a recuperação estrutural ou funcional que haja sido prejudicada ou danificada pela
patologia, mas se destina também a minimizar seus efeitos incapacitantes. O
resultado da reabilitação, o conhecimento de o quanto o paciente foi reabilitado, se
resume na identificação das funções ou habilidades recuperadas total ou
parcialmente.
Na prática, como se pretende na conceituação de Medina Preventiva e Social,
todos estes aspectos (profilaxia, cura e reabilitação) se integram completamente
não podendo ser diferenciados senão conceitualmente. Afinal, quando se promove
a reabilitação social de um alcoolista, se está simultaneamente fazendo o
tratamento dos transtornos de adaptação de seus familiares, enquanto se
promove a profilaxia de transtornos que poderiam ser causados em seus filhos. A
impossibilidade de se contabilizar estes resultados é uma antiga constatação. Ha
muito tempo se sabe que é possível contabilizar todos os prejuízos causados por
um buraco no calçamento de uma rua pouco iluminada. Dispondo de meios para
isto, pode-se registrar minuciosamente todos os danos materiais e pessoais
ocasionados por ele; todos os acidentes que aquele buraco causou e quais as
suas conseqüências. Entretanto, se aquele buraco no calçamento for considerado,
jamais se poderá saber com certeza quais os prejuízos e danos que evitou. Isto só
poderá ser estimado, comparando com os danos registrados quando ele estava
aberto. Esta é uma característica das atividades preventivas em todas as áreas de
política social. E talvez por isto, não sejam estimadas pelos políticos demagogos.
TEORIAS SOBRE A ENFERMIDADE
A enfermidade é um fenômeno danoso fundamentalmente relacionado à
existência dos seres vivos, à integridade de sua estrutura ou a eficácia de sua
funcionalidade. Todo ser vivo está sujeito a enfermar. Desde que existe a vida na
68
terra, os seres vivos estão sujeitos à influências que lhes determinam sofrimento,
prejuízos estruturais, perturbações funcionais e perturbações de seu desempenho.
A enfermabilidade se caracteriza pela possibilidade de aparecerem fenômenos
que se manifestam por transtornos que afetam a integridade das estruturas vivas
ou comprometem sua funcionalidade de modo a lhes ocasionar algum dano
objetivo ou subjetivo. Tais perturbações, não raro, determinam sofrimento e
alterações no desempenho pessoal e social; todas, contudo, se caracterizam por
causar algum tipo de dano às estruturas afetadas por elas ou ao seu
funcionamento. Do que se pode depreeender que as enfermidades, mesmo as
chamadas estruturais, são juízos de valor sobre acontecimento naturais ou
psicossociais danoso ou resultante de um dano.
O conceito genérico de enfermidade (que compreende todas as formas
possíveis de patologia) se caracteriza exatamente pela existência destes danos
que chegam a se confundir com a própria noção de enfermidade. Neste sentido
genérico do termo enfermidade, ele equivale ao de patologia.
Principalmente no Brasil, há quem prefira empregar a palavra doença para esta
acepção genérica de patologia e isto não está errado no senso comum, nem
parece condenável na literatura médica. Contudo, neste texto, preferiu-se o uso de
enfermidade, com este sentido ampliado, como será justificado adiante.
A necessidade de conhecer para ter a impressão de controlar, é uma
característica humana. Sempre que se defrontam com alguma coisa
desconhecida, os seres humanos tratam de construir uma teoria explicativa sobre
ela, pois o perigo desconhecido parece mais assustador que o risco que se
conhece. De certa maneira, o conhecimento que o ser humano desenvolve sobre
as coisas se elabora e se aperfeiçoa neste processo de testar e retestar tais
teorias, comprovando ou desmentindo cada um de seus elementos teóricos. O ser
humano tem a necessidade de explicar o que se passa com ele (por isto, a
explicação é um componente indispensável do processo de conhecer). Quando
69
ele não conhece a explicação, trata de inventar uma. O mesmo processo se dá
quando se trata de estudar e conhecer as enfermidades e o tratamento dos
enfermos afetados por elas.
O conhecimento sobre as enfermidades foi elaborado a partir da verificação que
buscasse comprovar a correção ou a falsidade de cada uma das proposições que
compõem uma dada teoria sobre a enfermidade. Pois, este procedimento lógico é
o que se emprega para conhecer sua explicação.
Teoria ou sistema teórico é um sistema lógico estruturado para tentar explicar um
certo tipo de fenômenos ou uma determinada porção do mundo. As teorias podem
ter todos os níveis possíveis de abrangência (desde explicar um único tipo de
fen6omeno ou objeto ou abranger tudo o que existe na natureza). Em uma teoria
muito ampla, pode estar incluído tudo o que se conhece, ainda que não se possa
comprovar ou demonstrar; contudo, o que for desconhecido ou inexplicado deve
ser coberto por hipóteses ou outras conjecturas tidas como comprováveis ou
demonstráveis.
Uma linha de pesquisa é exatamente tudo o que ainda não foi comprovado em
uma teoria. Portanto, uma linha de pesquisa deve ser retirada de uma teoria na
qual restam hipóteses e outras proposições ainda não confirmadas pela
verificação científica. Por esta razão, não convém denominar de linha de pesquisa a
uma orientação ou campo de investigação.
Existem três elementos explicativos essenciais para explicar as enfermidades:
suas causas, seu mecanismos patogênicos e seus prognósticos. E, também, os
tratamentos mais viáveis para enfrentá-las com êxito favorável. Como acontece na
maiorias dos objetos de investigação científica, a explicação parece ser a chave (e
o objetivo) das teorias sobre as enfermidades. Pois, a explicação é uma
concepção teórica que permite estabelecer uma possível vinculação lógica entre
um objeto ou acontecimento e suas causas, conseqüências e mecanismos
internos.
70
No início da prática da Medicina científica, se imaginava que devia haver uma
única modalidade de explicação para todas as enfermidades. Depois, descobriu-
se que isto não era verdadeiro; que cada tipo de enfermidade pode ter uma
explicação diferente. E que a explicação das enfermidades pode abranger um
número muito grande de fatores patogênicos mais ou menos integrados ou
concomitantes. Ainda que possa haver patologia monocausal.
Teorias Sobrenaturais
O pensamento humano parece ter apresentado três estágios sucessivos em sua
evolução histórica. Primeiro, coincidindo com a hominização, teria havido uma
fase de pensamento associativo simples (semelhante ao que existe nos
animais superiores); depois, teria aparecido a fase do pensamento mágico
(quando ele imagina soluções para coisas que desconhece e passa acreditar em
sua imaginação como fonte de verdade) e, finalmente, teria emergido a fase do
pensamento lógico (quando o ser humano adquire a capacidade de estabelecer
conexões lógicas entre as informações para poder concluir inteligentemente,
descobrindo novas informações a partir das preexistentes).
Sob o império do pensamento mágico, em épocas muito primitivas de seu
desenvolvimento, as primeira teorias criadas pelos homens para explicar tudo o
que existia, inclusive as enfermidades foram propostas em tempos muito antigos,
em plena pré-história, quando o pensamento mágico fez nascer muitas
explicações sobrenaturais para tudo o que existia; principalmente para o
sofrimento, sobretudo o sofrimento imposto pelas enfermidades. As explicações
sobrenaturais derivaram de fenômenos individuais como o medo e o sofrimento e
cada povo construiu seus sistemas supersticiosos de explicação na medida de
suas possibilidades e de sua realidade.
Entre os povos primitivos, todas as explicações inventadas sobre todas as coisas
têm estrutura sobrenatural e decorrem diretamente do pensamento mágico. Nas
comunidades primitivas, coisas como magia, encantamento, mito, lenda e
71
conhecimento da realidade se confundem de tal maneira que se torna impossível
traçar qualquer limite entre estes conceitos. Para o homem primitivo não havia
qualquer diferença essencial entre o real e o irreal, o natural e o sobrenatural, o
possível e o impossível, o verdadeiro e o mítico. Mesmo a diferença entre a coisa
real e seu nome, sempre foi muito difícil de ser constatada pela mentalidades
primitivas. Tais diferenciações só vieram a surgir muito mais tarde, quando mudou
a realidade social e, só então, apareceram os conceitos para designar esta
diferenciação. Para as mentalidades primitivas, tudo é explicado mais ou menos
magicamente por meio do pensamento mágico que impede a identificação da
irracionalidade como obstáculo ao saber.
Há quem acredite que também na evolução do pensamento a ontogênese imita a
filogênese e o desenvolvimento individual, de certa maneira, repete a evolução da
espécie.
As primeiras teorias explicativas sobrenaturais sobre todas a coisas (e não apenas
sobre as enfermidades) surgiram muito tempo antes de terem aparecido as
religiões, mesmo as mais primitivas. A temerosidade e a credulidade nos
indivíduos foram, aparentemente, muito anteriores aos artefatos culturais que
fazem aparecer os medos e, com eles, as crenças mágico-sobrenaturais.
Nos primeiros momento da cultura, sob a égide das explicações sobrenaturais
construídas para explicar as enfermidades, pretendia-se que as patologias
humanas fossem ocasionadas pelas seguintes causas possíveis:
perda da alma;
intrusão de outro espírito que competia pelo corpo com a alma da pessoa podendo
expulsá-la, destruí-la ou controlá-la (como os fenômenos denominados possessão
espiritual, encosto);
ação sobrenatural de um objeto danoso preparado magicamente para fazer algum mal a
alguém ou alguma coisa (geralmente um feitiço);
72
poder maléfico do desejo ou do olhar de alguém (mau-olhado, praga, mau desejo);
transgressão de um tabu (tabus são proibições rituais que obrigam certas pessoas,
membros de um dos gêneros ou grupo de idade, componentes de certas
ocupações ou outras atividades sociais, famílias, clãs, tribos) a fazer ou não fazer
alguma coisa.
Cada uma destas explicações sobrevive até hoje na consciência ingênua.
Os tratamentos eram conseqüentes e compatíveis com estas crenças etiológicas e
consistiam em contra-medidas capazes de combater ou compensar o efeito
maléfico (como os contra-feitiços). Com o aparecimento sucessivo do animismo e
do politeísmo (como instrumentos ideológicos encadeados) surgiu a crença das
patologias causadas por castigos de infrações religiosas, provações impostas
pelos deuses para provar os mortais ou resultados de caprichos de alguma
divindade.
Mais tarde, com o surgimento das divindades e das religiões, <$FComo se pode
ver no último capítulo deste trabalho.> surgiram as seguintes explicações
sobrenaturais mágico-religiosas:
desejo de uma divindade (por capricho ou encomenda),
provação divina (prova de fé e dedicação que uma divindade submetia a devoção
de um crente) e
castigo infligido ou mandado inflingir por uma divindade, por causa da desobediência a
uma norma religiosa, por ação ou omissão (o castigo do pecado, preço da
desobediência).
Todas estas teorias sobrenaturais sobre a enfermidade, independentemente do
momento de seu surgimento e de sua origem cultural, persistem a despeito de sua
obsolescência, como matéria de fé para muita gente até os dias atuais. A elas se
somam todas as teorias, de origem científico natural, mas tornadas obsoletas
73
pelos mais variados motivos, principalmente por ineficácia e ineficiência (por não
terem sido comprovadas como verdadeiras ou por terem sido comprovadas como
falsas).
Teorias Científico-Naturais Clássicas e Medievais
Sabe-se que as primeiras teorias naturais sobre a enfermidade surgiram como
uma reação do espírito racionalista contra as explicações sobrenaturais das
doenças e outras mazelas das quais as pessoas padeciam. As teorias naturais
sobre as enfermidades nasceram nos templos egípcios de Imhotep (sua divindade
especializada no tratamento dos enfermos). Provavelmente, terá sido a teoria do
uchedu a primeira hipótese de explicação natural das enfermidades.
Teoria do Uchedu
Os médicos gregos estavam familiarizados com a teoria egípcia do uchedu
(introdução no corpo do agente patogênico responsável pela putrefação) que já
era uma teoria natural. Antes de Hipócrates, já HERÁCLITO de Éfeso (cerca de
544 a cerca de 483, antes de nossa era) e PARMÊNIDES de Eléia (segunda
metade do século VI ao início do século V, antes da nossa era) já sustentavam o
caráter natural das enfermidades e propunham diferentes modelos etiológicos ara
explicar a origem das enfermidades.
A primeira teoria genérica específica e natural sobre a enfermidade se referia à
introdução no corpo de um agente patogênico e foi formulada pelos médicos
sacerdotes egípcios. Os adeptos desta teoria consideravam o uchedu (ou whdw)
como o princípio etiológico básico de todas as enfermidades que consistia no
seguinte: o uchedu existia na natureza e era consumido junto com os alimentos e
aderia ao bolo fecal no intestino; absorvido, passa ao sangue e determina todas as
formas de corrupção do organismo. O conceito se continuou modernamente com a
noção de Patologia Exotóxica, que guarda analogia com ele.
74
Seguiu-se a teoria humoral da enfermidade que coincidiu com o aparecimento da
Medicina científica na Grécia da Idade Clássica.
Quando o Império Romano ruiu, floresciam nele principalmente três grupos de
doutrinas médicas racionais em três Escolas Médicas, todas de nítida influência
grega. Denomina-se uma Escola Médica a um conjunto de médicos que seguem
as idéias de um mestre, que deve ser sua figura de maior expressão, e mantêm
um vínculo com o fundador, ainda que suas opiniões sejam modificadas com o
tempo. assim, cada Escola tem uma única doutrina que pode ser unitária ou
pluralista, mas em qualquer caso, constituindo um todo harmônico, como sistema
téorico de explicação das doenças e intervenção sobre as pessoas afetadas por
elas.
Com a Idade Média, ressurgiu o predomínio da explicações mágico-sobrenaturais
sobre as enfermidades. Não que ela jamais tivessem desaparecido ou que a
concepção natural tivesse conseguido convencer a maior parte das pessoas. Não.
No fim da Idade Clássica, a concepção científico-natural era dominante entre os
mais cultos, nos grupos intelectualmente diferenciados da sociedade, na elite
intelectual. Na Idade Média européia, a elite intelectual se resumiu à elite do
padroado católico que dominou os instrumentos de conhecimento e monopolizou o
saber por quase dez séculos, impondo suas superstições a todas as pessoas;
perseguindo, prendendo, torturando e matando a todos os que se dispunham a
resistir e a defender a liberdade de pensamento.
A história das concepções médicas se confunde com a história das ciências. Cada
momento do desenvolvimento científico e técnico foi assinalado por uma dimensão
do desenvolvimento da Medicina e das concepções acerca da saúde e da
enfermidade.
Unicismo e Pluralismo Patologico
O unicismo e o pluralismo doutrinários são estes dois grandes tipos diferentes de
teorias construídas para explicar as enfermidades e que fundamentavam toda 75
intervenção terapêutica sobre elas. Estes dois tipos de doutrinas diferenciam-se
em tantos níveis quantos são os que se atribuem às enfermidades, Desta maneira,
pode-se identificar as modalidades nosológica, etiológica, patogênica e terapêutica
do unicismo e do pluralismo.
O unicismo nosológico consiste basicamente na convicção de que todas as
enfermidades têm uma mesma natureza ou são uma única entidade patológica.
Existiria uma enfermidade única que apenas se manifestaria com formas
diferentes nas pessoas, o que resume o ponto mais radical do unicismo
nosológico.
No outro extremo, situa-se o pluralismo nosológico que presupõe a existência de
muitas enfermidades diferentes (entidades nosológicas específicas) e grupos de
entidades (tipos particulares de patologias).
O unicismo etiológico é um tipo de teoria sobre a enfermidade que sustenta a
existência de uma única causa para todas as enfermidades. As diferenças clínicas
seriam determinadas pelas condições individuais ou por variações quantitativas do
agente (quantidade, tempo de exposição, virulência).
No outro extremo, o pluralismo etiológico sustenta a possibilidade das diferentes
enfermidades serem causadas por causas diferentes ou, mesmo, um única
enfermidade poder ser condicionada por numerosos agentes causais
(multicausalidade e fatores de enfermidade).
A disputa entre Parmênides e Heráclito representa um bom exemplo do conflito
teórico entre o unicismo e o pluralismo etiológico na Grécia clássica. Parmênides,
defendia o unicismo porque acreditava que cada doença teria uma única causa; no
ponto de vista oposto, situava-se Heráclito, adepto do pluralismo, sustentava que
as doenças poderiam ter várias causas porque muitas coisas e condições
poderiam resultar en enfermidades. Mais tarde, esta teoria evoluiu para a noção
de multicausalidade integrada (ou multi-fatorialidade), pela qual cada enfermidade
76
seria condicionada pela interação de fatores causais mais ou menos numerosos e
que a enfermidade, como tudo o que havia, era um processo em permanente
transformação.
O unicismo patogênico defende um único mecanismo para todas as enfermidades
(seja humoral, hereditário, psicógeno ou outro qualquer). Já para os defensores do
pluralismo patogênico pode haver muitos mecanismos possíveis de enfermar e que,
um mesmo caso de enfermidade, poderia apresentar diversos deles atuando
simultaneamente.
O unicismo terapêutico consiste no emprego de um único remédio para cada doença
ou doente. O unicismo terapêutico frente às doenças é uma conseqüência natural
naqueles que admitem o unicismo nosológogico defendam a unicidade
terapêutica: pois, se todos os doentes padecem a mesma enfermidade, por qual
razão deveriam se submeter a tratamentos diferentes. Para outros, como os
homeopatas hanemmanianos ortodoxos, cada doente teria uma única doença;
para eles, o unicismo significa usar um único remédio em cada doente.
Dogmatismo, Empirismo e Ecletismo
Do ponto de vista teórico-metodológico, que se traduzia em atitudes opostas frente
ao conhecimento científico e diante das tarefas específicamente médicas (como
diagnosticar enfermidades e tratar enfermos), os médicos gregos se dividiam em
duas escolas médicas principais:
a primeira, a dos dogmáticos que incluía estudiosos das teorias que empregavam
para explicar os diagnósticos e justificar as terapêuticas (ainda que suas
explicações residissem longe da verdade, como se veio a saber depois); e,
em segundo ligar, os empíricos (ou práticos) que se interessavam apenas pelos
resultados do tratamento, sem qualquer preocupação com suas possíveis
explicações ou teorias explicativas.
77
Em geral, os dogmáticos eram unicistas (como acontece até hoje) e conservavam
teorias etio-patogênicas muito estritas, tendendo a acreditar em um único fator
patogênico, o que, geralmente, encerrava uma visão reducionista e super-
simplificada da natureza, do organismo e da enfermidade; também
freqüentemente sustentavam a exist6encia de um único mecanismo para todas as
enfermidades. O que, naturalmente, havia de se refletir em seus procedimentos
diagnósticos e nas medidas terapêuticas que adotavam para tratar os doentes.
Mais tarde, o termo dogmáticos passou a se referir a um tipo de médico que
aceitava unicamente as explicações teóricas de sua escola e passaram a ser
denominados ecléticos, os médicos que combinavam teorias explicativas sobre as
enfermidades de diferentes procedências doutrinárias.
Ecletismo é uma doutrina sobre a obtenção de conhecimento que valoriza as
informações por elas mesmas, independentemente de sua procedência. O
ecletismo consiste na postura intelectual oposta ao dogmatismo e ao sectarismo.
Se é verdade que havia médicos dogmáticos nos dois campos, havia muitos que
combinavam as duas hipóteses em sua prática profissional e técnica.
A maior parte do médicos não se filiavam a uma das escolas existentes. Ao
contrário, em sua prática, buscavam conciliar e harmonizá-las, aproveitando de
cada uma o que parecia melhor para ser aplicado em cada caso clínico concreto.
A maioria destas escolas medicas foram sendo adaptadas ao longo do tempo, na
medida em que avançava o conhecimento médico; e, muitas delas, têm
sucessoras na Medicina contemporânea, ainda que não conservem as mesmas
designações ou mantenham os mesmos procedimentos exteriores característicos,
conservam o mesmo tipo de padrão de pensamento, de atitude cognitiva.
Humorismo e Ambientalismo
Na Grécia, como decorrência da concepção científico-natural da saúde e da
doença, surgiu a primeira doutrina da patologia geral já marcada pela contradição 78
entre os fatores corporais e ambientais na gênese das enfermidades. Já naquela
época foram propostas duas teorias nas quais se opunham duas ordens
contraditórias de fatores etio-patogênicos.
Uma, biológica, o humoralismo ou humorismo, que tinha a doença como resultado de
desequilíbrio dos humores corporais (sangue, linfa ou fleuma, bile amarela e bile
negra).
Outra, ambientalista, hoje se diria ecológica que situava a responsabilidade sobre a
enfermidade fora do enfermo; a doença seria resultante do desequilíbrio dos
elementos naturais mais importantes – água, ar, terra e fogo (e seus
correspondentes fatores patológicos e terapêuticos - calor e frio, secura e
umidade). O conceito de resfriado se originou aí, também bilioso, fleumático, sangüíneo.
Teoria dos Humores
A teoria humoral sobre a enfermidade se assenta sobre dois postulados básicos:
a) o corpo humano está formado por uma combinação de humores (líquidos)
diferentes e limitados: sangue, flegma (secreção, exudato), bile amarela e bile
negra; e b) o estado de saúde resultaria da combinação harmoniosa destes
elementos, a enfermidade, ao contrário, qualquer que for sua causa, se expressa
sempre como um estado de desequilíbrio destes humores.
A teoria humoral assenta nitidamente a natureza da enfermidade em um
mecanismo interno do organismo. É, portanto, uma teoria endogênica e
identificada com quem pretende a hegemonia do terreno na origem das
enfermidades.
A teoria humoral da enfermidade era compatível com a teoria sobre a natureza da
qual ela se originou.
Os antigos sábios gregos imaginavam que tudo o que havia na natureza fosse
resultado de diferentes combinações de quatro elementos naturais básicos: terra,
ar, água e fogo. A vida natural era resultado da integração harmônica destes dois 79
pares de fenômenos. Portanto, era bastante natural que aplicasse esta mesma
suposição explicativa para o funcionamento do organismo humano e para explicar
as enfermidades que se davam nele.
No ponto de vista oposto aos adeptos da teoria humoral (ou humorista), estavam
os ambientalistas, que explicavam as enfermidades a partir do meio.
A Teoria Ambientalista
Os ambientalistas davam importância aos fatores patogênicos externos provindos
do ambiente. A rigor, a teoria ambientalista não negava ou se contrapunha a teoria
humoral; não discutiam que as enfermidades pudessem ser originadas do
desequilíbrio dos humores (sangue, linfa, bile negra e bile amarela), apenas punha
a tônica nas relações do organismo com o ambiente natural representado pelos
considerados quatro princípios fundamentais (terra, ar, água e fogo). Uma
concepção exógena, portanto da enfermidade.
O ambientalismo se contrapunha ao humorismo clássico, endógeno, que
privilegiava ou exclusivizava as relações dos humores como manifestações
internas do organismo e dava ênfase aos fatores exteriores ao organismo.
Outras Teorias Greco-Romanas
Muitos médicos greco-romanos (sobretudo em Roma) ainda que acreditassem em
uma matriz individual da patologia, recusavam a doutrina da patologia humoral e
propunham outras doutrinas patológicas, como, por exemplo, a solidista, (ou
metodista) entendia que as enfermidades seriam resultantes do estreitamento ou
lassidão dos tubos do organismo (poros, veias, artérias); a atomista, que cria a
doença provocada por corpúsculos tão pequenos que invisíveis penetravam no
corpo pelos poros; a escola pneumática (modalidade do vitalismo) sustentava que a
enfermidade era produto de um desequilíbrio da pneum (princípio vital ou essência
da vida era o ar que se revelava no pulso que era confundida com a alma).
Escola Metodista
80
Antiga Escola Médica de origem grega que teria sido fundada por TÉMISON DE
LAODICÉIAque, segundo a doutrina solidista e atomista explicava todas as
patologias por estados de desequilíbrio entre a rigidez (tensão) e o relaxamento
dos poros e dos tubos do organismo. Esta escola se situa como precursora de
todas as teorias patogênicas que se basearam na ação nefasta da tensão, da
irritação e do estresse.
Na prática, despeito de qualquer possível contribuição teórica, a maior
contribuição metodista para a Patologia resultou de seus estudos para diferenciar
as patologias agudas das crônicas, desenvolvendo procedimentos muito valiosos
para orientar a terapêutica dos doentes que sofriam enfermidades prolongadas.
A terapêutica metodista era baseada na ação dos contrários: sangrias,
sanguessugas, ventosas e escarificações eram empregadas para relaxar;
aplicações frias e substâncias adstringentes eram receitadas para enrijecer.
Desenvolveram procedimentos terapêuticos cíclicos, à base de aplicações
sucessivas de agentes terapêuticos com ações opostas como calor e frio,
excitantes e calmantes, que são empregadas até hoje quando se necessita
estimular processos defensivos ou moduladores orgânicos inibidos. Sua super-
simplificação da patologia e o desprezo por considerações anatômicas ou
fisiológicas, embora muitos de seus cultores tenham merecido justa fama de bons
e eficientes terapeutas, tendo exercido grande influência na Medicina de todos os
tempos, mais intensamente na Idade Média e no Renascimento.
Escola Pneumatista
Escola de Medicina fundada por ATENAU que foi obscurecido por seu seguidor e
sucessor GALENO se denomina pneumatista. Mantinha uma atitude crítica em
relação à super-simplificação teórica do metodistas qie reduziam toda a fisiologia à
tensão e relaxação dos corpos sólidos (poros e, mais tarde, fibras). Os
pneumatistas, ao contrário, atribuíam grande importância ao ar (pneuma) que
denominavam princípio vital (sopro vital) e que tinham por responsável pela
81
vitalidade e pela saúde. Julgavam que a saúde era resultado da tensão adequada
do pneuma; e que esta se manifestava no pulso. Por isto atribuíam grande valor
semiológico ao seu exame.
Os médicos pneumatistas atribuíam grande importâncias às construções teóricas
sobre a natureza e a causa (etiopatogenia) das doenças e diagnosticavam as
enfermidades a partir da avaliação dos seguintes fatores: aitia (causa
extrínseca), diatesis (estado atual do curso da moléstia), nosos (discrasia),
patos (perturbação funcional), symptoma (resultado da perturbação).
Na terapêutica, os médicos antigos empregavam, de preferência meios naturais e
sempre muito moderadamente, usando a técnica dos contrários (alopatia) ou dos
iguais (homeopatia), conforme o remédio fosse da mesma natureza ou de
natureza diferente da causa que era atribuída à enfermidade (calor e frio, secura e
umidade, para os ambientalistas e sangue, linfa, bile amarela e bile negra, para os
humoristas). Para muitos historiadores, o pneumatismo foi substituída pelo
galenismo. Mas, na verdade, Galeno foi seu seguidor, porque era muito
influenciado pela religião pagã de quem era fervoroso crente, ainda que tenha feito
importante modificação em suas doutrinas.
As doutrinas humoral e ambientalista persistiram ao longo de toda Idade Média e,
a despeito de muitos contestadores, foram empregadas por quase todos os
médicos para explicar as enfermidades até o Renascimento (se bem que a maioria
deles adotava uma postura eclética).
O último grande médico medieval foi PARACELSO (1493-1541) que misturava
elementos naturais e sobrenaturais em suas teorias sobre a enfermidade e influiu
nas demais teorias que surgiram depois dele. Mas foi o predecessor dos grandes
médicos do renascimento que começaram a romper com o círculo de ferro da
opressão clerical e abriram caminho para retomado do desenvolvimento científico.
Teoria de Enfermidade em Paracelso
82
Nos fundamentos de sua teoria sobre a enfermidade, reconhecia as seguintes
causas de doenças: as estrelas, o meio-ambiente físico, a natureza do organismo,
o espírito e a vontade divina. A despeito deste misticismo, quando descrevia a
origem dos casos mórbidos, em geral os atribuía à formação de depósitos nos
tubos orgânicos (os tártaros) que se manifestava como cálculo ou coágulos
calcificados ou endurecidos. De sua obra, se pode inferir seis princípios
patogênicos: a enfermidade é uma entidade concreta, a enfermidade é exógena,
as entidades patológicas podem ser definidas em termos químicos, a entidade
patológica é sempre um processo específico, localizado e caracterizado por
alterações anatomopatológicas. Paracelso conseguia sintetizar as concepções
sobrenaturais mais primitivas (feitiços, horóscopos e diversas formas de magia),
com as teorias de raíz religiosa católica, com a medicina clássica e abriu caminho
para a observação sistemática dos doentes e a experimentação clínica que se
impôs a partir de sua época.
Teorias Modernas
Ao longo dos séculos XVII, XVII e XVIII surgiram na Europa e no Novo Mundo
muitas teorias sobre a enfermidades, destinadas a se opor à teoria humoral,
dentre as quais se destacam a iatroquímica, a iatrofísica e o animismo (ou
vitalismo). Isto, sem mencionar as incontáveis teorias sobre as enfermidades
baseadas nas concepções orientais sobre o mundo, a natureza e o homem.
Iatroquímica
Originada das proposições de Paracelso. Explica todas as enfermidades como
resultados de reações químicas no interior do organismo. Emanações gasosas de
cloro, enxofre e mercurio (como queria Paracelso); ação de gases patogênicos, o
archeus, produzidos pelos alimentos ou introduzidos no corpo pela respiração ou
outros meios (tal como proposto por Helmont, 1578-1644); acidez ou alcalinidade
do meio interno (como pretendia Silvius, 1614-1672); água, terra, sal, enxofre e
spiritus(com o sentido de fluido etéreo, gasoso, como propunha Willis, 1622-1675).
83
Atualmente, a iatroquímica se refere às aplicações dos conhecimentos da química
à Medicina para explicar os fenômenos de saúde e doença.
Iatromecânica ou Iatrofísica
Doutrina que considera o organismo como uma máquina e pretende explicar seu
funcionamento e disfunções por meios físicos. A mecânica forneceria as leis das
partes sólidas e a hidráulica as explicações para o que acontecia no meio líquido.
Atualmente, se considera a iatrofísica como as aplicações dos conhecimentos da
física à Medicina.
Animismo ou Vitalismo
Consideravam, como os antigos animatistas, a enfermidade como produto da
modificação de um princípio vital, anima (alma), que daria vida ao organismo. Nas
enfermidades produzidas por agentes externos, a doença resultaria do confronto
da alma do doente, com a alma do agente etiológico. Esta teoria sempre foi a
preferida pelos religiosos e místicos que tendiam a ser dualistas e metafísicos.
Os adeptos destas três escolas disputavam muito entre si. No entanto, é bastante
provável que cada uma delas tenha uma parte da razão.
Em meados do século XVIII surgiram algumas teorias em oposição à teoria
humoral, para explicar a enfermidade; delas, destacam-se a teoria da irritabilidade,
a patologia neural, a patologia tensional.
Teoria da Irritação
Foi uma versão atualizada do solidismo que considera a enfermidade como
produto da irritação produzida pela energia ativa da substância viva. Pode-se
sustentar que a teoria do estresse é uma versão moderna da teoria da irritação.
Estresse, como se há de verificar adiante, é a resposta do organismo ou do
psiquismo a um estímulo agressivo ou irritante capaz de comprometer a
integridade orgânica ou psicológica; estruturas diferentes reagem diferentemente
aos mesmos agentes estressógenos.
84
Novo Solidismo, a Patologia Neural
De inspiração animista, buscando nexos entre a atividade cerebral e a alma, a
patologia neural que explicava a enfermidade por espasmo da matéria nervosa. A
palavra neurose foi criada por Cullen para denominar as patologias deste ponto de
vista. (No início, o termo neurose era aplicável a qualquer condição patológica,
fossem os sintomas corporais ou comportamentais, mas sempre atribuíveis a um
mecanismo nervoso.
Brownismo
Baseado na excitabilidade orgânica (estenia), atribui todas as enfermidades a
estados de debilitação e falta de estimulação (astenia) do organismo que deviam
ser tratados com estimulantes como o ópio. Seus adeptos recusavam o conceito
de enfermidades específicas. Imaginavam uma única enfermidade com diferentes
maneiras de exteriorização em função dos locais de menor resistência do corpo.
Homeopatia Hahnemanniana
Criada por Samuel Hahnemann (1755-1843), de certa maneira, como uma reação
aos abusos da terapêutica das sangrias e dos agentes tóxicos (como arsênico e
bismuto). Não é uma nova teoria sobre a doença, pois não se opunha à teoria
humoral, ao contrário. Opunha-se à terapêutica alopáticae se propõe a tratar
homeopaticamente.
Com o sentido que tinham na literatura hipocrática, homeopatia e alopatia
significam tratar um doente com o agente igual ou contrário àquele que teria
causado a enfermidade. Por exemplo, dar água a alguém cuja enfermidade fosse
causado por ela; ou tratar com calor, uma doença atribuída ao fogo.
A homeopatia hahnemanniana se fundamenta nos seguintes princípios essenciais:
a) Similia similibus curantur (o semelhante cura o semelhante).
85
Deve-se tratar um sintoma, síndrome ou enfermidade com uma agente
farmacológico que reproduzisse quando aplicado a uma pessoa sadia.
b) Potencialização ou dinamização em diluições sucessivas e a memóri das
moléculas de água.
Baseia-se na crença em que as moléculas da água guardam a lembrança das
propriedades farmacológicas de um fármaco que se choque contra elas. Até que
praticamente não reste no preparado qualquer vestígio da substância original.
Pretende que as moléculas da água fervida adquiram e conservem as
propriedades terapêuticas das noxas (agentes patogênicos) e não as patogenas.
c) Usar um remédio único para cada caso
O unicismo terapêutico em oposição à polifarmácia muito empregada pelos
alopatas (mas que, recentemente, tem sido adotada por muitos homeopatas
contemporâneos.
Todas estas teorias têm sido submetidas ao crivo da experiência. Nenhuma delas
foi comprovada verdadeira, embora algumas de suas partes tenham resistido às
sucessivas tentativas de prová-las falsas (método experimental hipotético-dedutivo
das ciências factuais), permanecendo com crédito.
TEORIAS CONTEMPORÂNEAS
Levantam-se aqui, somente de passagem, as teorias sobre as enfermidades
surgidas no último século e que colocam questões com as quais os médicos e
estudantes de Medicina estão mais familiarizados. Quem necessitar estudar mais
profundamente este tema vai ter que buscar outras fontes especializadas,
<$FDestacando-se O Concepto de Enfermedad de Ruy Perez Tamayo.> nas
quais deve encontrar, não apenas mais pormenores, mas informações mais
importantes e mais completas acerca das teorias contemporâneas de
enfermidade.
86
Conceitos Ontológico e Fisiológico de Enfermidade
Importante contradição na estrutura das terias sobre as enfermidades, é a
caracterização da enfermidade como um fenômeno ontológico (ou categorial que
se refere a um ser reconhecível, exatamente o objeto de estudo da Medicina) o
uma dimensão de um estado fisiológico.
Conceito Ontológico de Enfermidade
A enfermidade como uma coisa, como algo reconhecível por si mesmo e cada
uma delas sujeitas às suas próprias leis do desenvolvimento. O conceito
ontológico de enfermidade se presta muito bem para categorizar aquelas
enfermidades que apresentam com danos estruturais e características factuais
bem definidas, reconhecíveis e definíveis; as entidades nosológicas. Também
pode ser denominado categorial.
Conceito Fisiológico da Enfermidade
A concepção fisiológica nega o conceito de enfermidades específica e tem cada
enfermidade como um estado mais ou menos indiferenciado do organismo ante
uma agressão. Este conceito, embora apresentado como oposto ao conceito
ontológico, na verdade, lhe é complementar. Se adapta muito bem àquelas
patologias funcionais e aos resultados das patologias do desenvolvimento.
Os conceitos ontológicos se referem a categorias conceituais patológicas que
encerram os seguintes significados: a) ser um conceito definido por um elemento
essencial que seja quantitativa ou qualitativamente diferenciável dos demais; b)
ser um objeto ou fenômeno definido por suas próprias características (sejam estas
essenciais ou não e que possa ser reconhecido através delas); c) ser um objeto ou
fenômeno, ou um conjunto de objetos ou de fenômenos, cujos limites sejam
87
definidos por eles mesmos, pela presença ou ausência daquelas suas próprias
características.
Os conceitos fisiológicos de enfermidade se materializam em variações
dimensionais de condições orgânicas ou psíquicas: a enfermidade como variação
funcional para aquém ou para além da normalidade.
Dimensão é a denominação que se empresta a todo plano, grau ou direção em que
se possa efetuar uma investigação ou executar uma ação; sentido em que se
mede uma extensão para avaliá-la; número mínimo de variáveis necessárias à
descrição analítica de um conjunto; entre outros sentidos.
A conceituação chamada funcional ou fisiológica de enfermidade se presta para
mencionar condições patológicas que se situem em pontos diferentes de um
continuum funcional, sem que se possa reconhecer qualquer distinção qualitativa
entre elas.
História Natural de uma Enfermidade
Surgida no início do século dezenove se baseava nas relação entre o parasito e o
organismo parasitado para explicar as enfermidades. Neste caso, os sintomas
produzidos neste processo não seriam mais que manifestações da reação do
organismo à agressão do agente patogênico. As noções básicas desta teoria são
a de agente, hospedeiro e a relação especial que se estabelece entre os dois e o
conhecimento da enfermidade como um processo com causalidade,
manifestações clínicas e uma evolução previsível empregando-se os recursos da
previsão científica.
Teoria do Estresse
A teoria do estresse é, em última análise, a versão atualizada da teoria da irritação
elaborada por Broussais há quase dois séculos. No início, importando da
metalurgia por Selye, o conceito de estresse se referia apenas ao dano causado
pela tensão decorrente da ação prolongada de estímulos que venciam a 88
capacidade de resistência do material ou de adaptação do organismo, as
agressões agudas (os traumatismos físicos, químicos, biológicos e psicológicos)
escapavam a esta noção. Atualmente, consoante as doutrinas vigentes na
psiquiatria norte-americana, o conceito de estresse se refere à ação danosa de
estímulos cuja intensidade ou duração sejam suficientes para produzir uma reação
psíquica ou somática que possa ser tida como patológica. Inclui fenômenos
agudos sub-agudos e crônicos (o que não parece muito correto).
Na psicopatologia atual, uma reação ao estresse é a resposta do indivíduo a um
estímulo nocivo que pode assumir a forma de uma reação psicológica (inclusive as
comportamentais), anatômica ou fisiológica ou uma combinação delas.
O estresse pode agir como agente causal, desencadeador ou agravador de
manifestações psiquiátricas ou doenças somáticas. Mas não é propriamente um
fator etiológico, mas patogênico; um mecanismo pelo qual o agente etiológico atua
para produzir o quadro clínico.
Hereditariedade e Degeneração
Nos termos da terminologia médica francesa dos séculos dezoito e dezenove, as
doenças podiam ser herdadas ou degenerações. Uma degeneração, aqui, quer
dizer unicamente uma condição patológica constatada em um indivíduo e que não
aparecera antes em qualquer de seus ascendentes. Hoje, se diria, adquirida. Só
isto, nada mais. Quando foi proposta, a expressão técnica não detinha qualquer
conotação de valor (que só veio a ser atribuída bem depois, já neste século. Não
deve horrorizar ninguém que conheça sua história. Nem deve ser interpretada nos
textos antigos com seu sentido atual.
O conceito de degeneração ainda é empregado com um mecanismo patogênico
caracterizado pelo aparecimento de substâncias estranhas ou pelo acúmulo
excessivo de substâncias normais nos tecidos, o que induz um prejuízo funcional.
Pode significar, ainda, a perda dos caracteres distintivos de uma espécie, raça ou
89
linhagem; ou pode se referir a condutas notavelmente desviadas das normas
estabelecidas ou das características pessoais.
De qualquer maneira, está perfeitamente adequada pensar hoje em dois modelos
de enfermidade, o hereditário (genético e cromossômico) e o adquirido.
Outras Teorias de Enfermidade
Atualmente, também se admitem muitos outros modelos teóricos para explicar as
enfermidades específicas. Como, para exemplificar, podem ser citadas as
seguintes teorias:
infecciosa (mecanismo causado pela ação de agentes vivos, bacterianos ou virais
que determinam lesões estruturais ou causam danos funcionais nos organismos
afetados);
imunológica não bacteriana (imunossupressão, imunodeficiência, perturbações por
auto-imunidade);
metabólica, endotóxica e exotóxica;
degenerativa;
sócio-psicógena (ação danosa de psicotraumatismos agudos ou rônicos capazes
de se comportarem como agentes estressores).
Teoria Multi-Fatorial e Bio-Psicossocial
No presente, existem muitas razões que levam a crer que a etiologia das
enfermidades devem ser consideradas como multi-fatoriais e biopsíquico-sociais.
Isto significa que são muitos os fatores potencialmente causadores de
enfermidades. Ainda que, em certos casos específicos pode haver somente um ou
um fator ou um conjunto mais ou menos restrito de fatores exercer papel
predominante. E que tais fatores podem ser de natureza física, química, biológica
ou psico-social.
90
Cada um destes níveis da organização do mundo possui sua próprias leis que
refletem suas regras de funcionamento, devendo-se repetir incansavelmente que o
que se descobre acerca de um destes níveis não deve ser transposto para outro.
Considerando-se o nível de enfermabilidade, os mecanismos patogênicos podem
ser: funcionais (inclusive as psicógenos) ou estruturais. Com os seguintes sub-
classes do estrato biológico: o nível tissular, o nível celular, o nível molecular, o
nível atômico e o nível sub-atômico.
Ciclos Vitais
A noção de ciclos vitais também está profundamente arraigada no conceito de
organismo, com o sentido de períodos cíclicos (diários ou circadianos, lunares,
mensais, sazonais) que correspondem a determinados estados do organismo
relacionados com certos períodos de ciclos da natureza. Os ciclos biológicos
parecem revelar um importante modo dos seres vivos se relacionarem com a
natureza. Prova disto parece ser a estreita relação que existe entre os ciclos vitais
e os ciclos naturais (geológicos, astronômicos).
OUTROS ASPECTOS IMPORTANTES DA ONTOLOGIA MÉDICA
@FIRSTPAR = Além dos aspectos ontológicos já vistos até aqui, neste capítulo do
conhecimento propedêutico em Medicina, existem outros, como as teorias acerca
da enfermidade, que devem ser ao menos conhecidas porque se dedica a estudar
o assunto. Pois, nenhum diagnóstico médico pode ser construído com alguma
fundamentação científica, a não ser que o processo diagnosticador seja uma
tentativa de comprovar a veracidade ou a falsidade de uma determinada teoria
sobre aquele caso clínico.
Saúde e Enfermidade
Durante muitos séculos, considerou-se a saúde como ausência de enfermidade
(ainda que entre os séculos dezoito e dezenove, o conceito de enfermidade (ou da 91
patologia) tenha se apoiado para conter não apenas as doenças e as lesões
corporais mais ou menos invalidantes, para alcanças os casos de sofrimento
inadequado, desproporcionado às circunstâncias. Em época relativamente recente
(em meados deste século), o conceito começou a a ser criticado por seu caráter
negativo (ausência de doença, invalidez ou moléstia) e se adotou uma definição positiva,
ainda que empregando um conceito indefinido: saúde é bem-estar.
Considerando as relações recíprocas entre os conceitos (e as situações ou
condições reais) de saúde e de patologia, pode-se dizer que embora a saúde
possa ser definida como algo mais que a mera ausência de doença ou invalidez, a
patologia não pode ser entendida como a ausência de saúde, pois caso se fizesse isto,
implicaria em declarar que saúde e doença são estados antinômicos, pólos
opostos e inconciliáveis e esta tese seria indefensável. Porque, ao menos na
maior parte das enfermidades chamadas funcionais e nas perturbações do
desenvolvimento, existe uma gradação, uma continuidade entre a saúde e a
patologia, impossível de ser deslindada senão por uma convenção. Ainda que as
duas condições sejam claramente distinguíveis, seus limites costumam ser
indefinidos e indefiníveis por si mesmos.
Caso saúde e doença fossem conceitos antinômicos que correspondessem a
realidades antagônicas (que se excluíssem mutuamente), não podendo existir
uma se existisse a outra, alguém estaria totalmente doente ou completamente
saudável. Isto é, alguém estaria completamente enfermo ou inteiramente
saudável. O que, deve-se convir, é ainda muito mais exagerado que a pretensão
de experimentar completo bem-estar contida na definição de saúde da OMS.
Saúde,
A definição cientificamente aceitável de saúde não é uma tarefa fácil, nem
pacífica. Ao contrário, situa muitos obstáculos teóricos e ideológicos. A
Organização Mundial de Saúde, tem uma definição para saúde que é adotada em
92
todo o mundo como oficial. Contudo, mesmo esta não está isenta de críticas, nem
tem a pretensão de ser definitiva ou imutável.
A Saúde é definida pela Organização Mundial da Saúde como estado de perfeito bem-
estar físico, mental e social, e não apenas ausência de doença, deficiência ou invalidez.
Vale a pena grifar esta última parte da definição original, freqüentemente omitida
quando ela é enunciada, com prejuízo claro do seu significado essencial e sua
inteira redução à utopia.
E mais ainda, deve-se destacar a segunda parte da definição de saúde da OMS,
porque se trata da dimensão da saúde de interesse médico. E porque é comum
alguém sofrer grave enfermidade, como uma neoplasia ainda assintomática, sem
qualquer perturbação de seu bem estar, porque não tem qualquer consciência de
seu estado. Não está saudável, não tem saúde porque padece uma patologia.
Apenas desfrutar bem-estar não significa ter saúde, ser saudável; não é garantia
de sanidade.
Do ponto de vista médico saúde é, se bem que não apenas, ausência de doença
ou invalidez.
Noutro plano, é necessário destacar que o conceito de saúde pode ser apreciado
desde uma perspectiva individual ou social, tanto do ponto de vista de seus fatores
determinantes, quanto de suas conseqüências. No entanto, como se há de ver, a
patologia é sempre um fenômeno individual.
Embora criticável, a definição positiva de saúde como bem-estar, e não negativa,
ausência de doença ou invalidez, é socialmente útil, ainda que mais difícil de ser
operacionalizada do que a de patologia. Embora a definição de patologia seja
indispensável à Medicina que não existiria sem ela. Talvez, por isto, se não é fácil
93
ou possível definir saúde a contento geral, o conceito de patologia, estruturado
pelos médicos, é mais ou menos universal há muitos séculos.
Nesta definição de saúde da Organização Mundial de Saúde, parece que estão
implícitas algumas características conceituais que merecem ser explicitadas e, se
não discutidas, ao menos levantadas para discussão:
= a) o estado de saúde deve ser entendido como resultado de uma organização
dinâmica, um processo ou um desenvolvimento e não como uma manifestação
estática e cristalizada da existência do ser vivo;
= b) ao menos, nos organismos mais diferenciados, a caracterização do estado de
saúde exige a ausência de quaisquer condições patológicas como doença,
deficiência ou invalidez;
= c) o estado de saúde humana não pode ser resumido à ausência de doença ou
invalidez, mas decorre essencialmente da satisfação das necessidades que se
manifestam nos planos biológico, psicológico e social da existência dos seres
humanos;
= d) com isto, o conceito de saúde deixa de ser atribuível a perturbações das
condições individuais e suas relações com o meio físico (terreno exclusivo dos
médicos), e passam a interessar como expressão da adaptação ao meio social (o
que interessa a muitas outras atividades sociais).
Enquanto do ponto de vista médico-social, a primeira parte da definição de saúde
(perfeito bem-estar físico, mental e social) constitui o foco principal de atenção, do ponto
de vista médico-clínico, o interesse está dirigido principalmente para a segunda
parte (e não apenas ausência de doença, deficiência ou invalidez), sem que haja qualquer
contradição essencial neta diferença. Porque, na perspectiva clínica, saúde é
ausência de doença ou invalidez, ainda que não o seja exclusivamente.
94
Neste sentido estrito, mas essencial e estritamente médico, o estado de saúde
pode e deve ser entendido como um fenômeno oposto ao patológico, como
ausência de enfermidade ou incapacidade, um acontecimento não-patológico;
embora nem toda condição ou situação não-patológica possa ou deva ser
considerada uma condição ou situação de saúde ou, muito menos, saudável.
Em que pese o caráter evidentemente avançado desta definição de saúde,
quando foi adotada pela OMS, por sua ênfase no atributo positivo bem-estar, ao
invés do negativo - ausência de doença ou invalidez, não falta quem a critique hoje com
numerosos motivos e bastante razão. Por isto, é bastante razoável que tais
críticas seja expostas, ao menos para fomentar discussão.
Contudo, deve-se ressaltar que, com esta nova perspectiva, a instituição da saúde
deixou de ser apenas uma responsabilidade individual para se transformar,
também, em um processo social (os serviços de saúde, os sistemas de saúde).
Não que tenha deixado de ser uma condição individual, porque isto jamais
aconteceu, mas que passou a ser, também, além de individual, uma questão
social.
Críticas à Definição de Saúde da OMS
A definição de saúde, tal como foi proclamada pela Assembléia Geral da
Organização Mundial de Saúde em 1948 e como está sendo empregada como
instrumento delimitador da prática sanitária em todo mundo, tem sido objeto de
algumas críticas mais ou menos pertinentes. Dentre outras críticas, em função de
seu significado e importância, podem ser destacadas as seguintes:
Em primeiro lugar, a definição de saúde, proclamada pela Organização Mundial da
Saúde e ainda vigente, pode ser criticada por três razões significativas: em
primeiro lugar, por seu caráter utópico; em segundo lugar, por sua imprecisão que
compromete sua cientificidade e, em terceiro lugar, por ser inoperacionalizável.
95
De um lado, em uma perspectiva mais restrita, o conceito de bem-estar pode ser
uma noção subjetiva, significando sentir-se bem, não ter queixas, não apresentar
sofrimento ou exteriorizar qualquer prejuízo de desempenho pessoal ou social
(inclusive e talvez principalmente, a nível familiar e laboral).
De um ponto de vista mais amplo, mas rigorosamente correto, a condição
denominada bem-estar pode significar um estado de satisfação das necessidades ou como
quer a definição estudada perfeito bem-estar ou completo bem-estar (dependendo da
tradução). Neste caso, se coloca o caráter utópico desta definição porque para
que houvesse perfeito (ou completo) bem-estar, o que caracterizaria a pessoa
saudável, o estado de saúde, deveria necessariamente haver a satisfação integral
de todas as necessidades da pessoa que estivesse sendo avaliada. No caso de
bem-estar físico, mental e social, todas estas dimensões da existência humana
estariam envolvidas. Isto é, para ser considerado saudável, uma pessoas teria que
estar desfrutar perfeito bem-estar físico, psíquico e social.
No ser humano, desfrutar completo bem-estar é, no mínimo, algo impossível
mesmo de se cogitar como uma utopia distante na qual as pessoas em geral (ou
alguma pessoa em particular) possa ter satisfeitas todas suas necessidades em
todos os plenos de sua existência (o biológico, o psicológico e o social). Porque,
sempre que o homem vê satisfeitas suas necessidades de um momento; no
seguinte, cria outras; existindo indefinidamente em estado de necessidade e não
de bem-estar. E isto não se trata de uma padrão de comportamento restrito aos
indivíduos singulares. Também coletividades humanas se comportam assim,
mantendo-se permanentemente insatisfeitas (o que também induz seu progresso),
com necessidades crescentemente mais amplas e mais sofisticadas.
Do ponto de vista social e político, as condições de bem-estar das coletividades
humanas são determinadas pelo grau de desenvolvimento econômico-social e
podem ser avaliadas por indicadores econômicos (como renda média, distribuição
96
de renda) e, outros, especificamente sanitários (como expectativa de vida,
mortalidade infantil, gastos sociais com a saúde).
Diante disto, portanto, pode-se constatar que a exigência de completo bem-estar se
trata de uma condição claramente inatingível, ao menos no seres humanos; por
isto, parece bem melhor referir relativo bem-estar como caracterização de saúde e,
conseqüentemente, de sanidade. Ter como exigência característica essencial e
definidora da saúde humana que ela dependa do completo bem-estar de uma
pessoa configura uma realidade inviável, impossível de ser concretizada, algo
inatingível, um mito. E, sem dúvida que isto merece alguma correção.
Além de poder ser definido como um animal que pensa (Homo sapiens), um animal
que fala (Homo loquens), um animal que trabalha (Homo faber), o ser humano também
poderia ser definido, sem qualquer ofensa à verdade, como um animal insatisfeito
(Homo insatisfactus) graças a sua tendência de estar sempre insaciado, sempre
precisando de alguma coisa, sempre substituindo uma necessidade atingida por
outro objetivo a alcançar.
Esta característica humana de inquietação e insatisfação essencial que se revela
na denominada ansiedade existencial, pela qual ninguém tem tanto do que quer
para que tenha bastante, é o elemento que faz da completa ou perfeita satisfação
um objetivo inatingível.
Além disto, há quem, como acontece com GILBERTO MACEDO. <$FMacedo, G.,
Aculturação e Doença, Ed. Departamento Estadual de Cultura, Maceó, s/d.>
considere que a expressão estado implica em um caráter estático, razão pela qual
se deveria substituí-la por desenvolvimento ou processo, bio-psico-social que se
manifesta como bem-estar.
Em terceiro lugar, seria talvez o caso de uma definição de saúde, para ser
completa, mencionar ao menos a socialização, a flexibilidade comportamental e as
possibilidades adaptativas como características da saúde; e, por via de
97
conseqüência, sua ausência ou prejuízo ponderável deveriam ser considerados
como indícios importantes ou expressões de patologia, de enfermidade. Porque as
antinomias sociabilidade/insociabilidade e flexibilidade/rigidez,
adaptabilidade/inadaptabilidade retratam a contradição entre saúde e não saúde
em muitas, senão todas, situações. E porque as condições ou situações de saúde
se manifestam sempre por comportamentos adaptativos positivos e saudáveis
nestas três áreas.
Por fim, pode-se criticar nesta definição de saúde a ausência às necessárias
referências ao prejuízo dos rendimentos pessoais e do desempenho social como
resultantes da de qualquer patologia e, por isto, indicadores de saúde.
Conceito de Patológico
Como aconteceu com a maior parte dos conceitos das ciências humanas e
sociais, os conceitos científicos se originaram em conceitos do conhecimento
vulgar e sempre sofreram muito a influência desta gênese. Até meados deste
século, costumava-se definir saúde como ausência de enfermidade (incluindo
doença, sofrimento inadequado e invalidez), que era o senso comum do problema;
bastava que alguém não estivesse padecendo uma enfermidade ou vitimado por
alguma incapacidade patológica para ser considerado saudável. Em contrapartida,
por esta época, se definia enfermidade (inclusive doença e invalidez) como
ausência de saúde. A isto se denominava o entendimento antinômico da
enfermidade e da saúde.
Quando se entendia saúde e patologia como conceitos antinômicos. Podia-se
pensar em saúde como ausência de patologia e patologia como estado de não-
saúde. Atualmente, isto já não é possível. A patologia é um juízo de valor que se
atribui ao transtorno de uma condição vital, trata-se da qualidade de algum
acometimento que afete a um ser vivo e que é considerado danoso para sua
estrutura ou funcionalidade.
98
Aqui, os termos patologia e enfermidade (ambos como designação bastante
genérica) estão sendo empregados como sinônimos.
Condição Patológica é como se designa genericamente, neste trabalho, qualquer
moléstia ou perturbação da estrutural ou funcional que seja capaz de ocasionar a
alguém: a) ameaça à sobrevivência, b) algum sofrimento e ou c) transtorno do
rendimento pessoal (seja físico ou psicológico) ou do desempenho social (familiar,
laboral, cívico-político). Enfim, a característica mais essencial da patologia é o
dano que acarreta.
O termo condição patológica, está sendo empregado aqui com seu sentido genérico
mais amplo de qualquer afecção mórbida, de qualquer transtorno da saúde,
qualquer enfermidade seja qual for sua origem ou extensão, qualquer que for sua
classe, sua dinâmica patogênica ou suas repercussões, qualquer que for sua
evolução, qualquer que for sua resposta à terapêutica ou sua forma de finalizar.
Patologia com o sentido de qualquer alteração patológica que afete danosamente
um sistema natural vivo; uma afecção mórbida; moléstia, perturbação ou alteração
da sanidade.
A noção de condição patológica ou entidade patológica pode substituir, sem qualquer
desvantagem e, até, com bastante vantagem, os conceitos ampliados de doença,
moléstia ou enfermidade que são usados para designar genericamente alguma
condição que não é sadia, hígida. Patologia, como expressão clínica de um
transtorno mórbido, com igual sentido inespecífico de disorder em inglês (aqui
traduzido como transtorno e não como distúrbio ou desordem porque em português
estas duas últimas expressões têm uma clara conotação de perturbação da ordem
pública.
Já em trabalho anterior, O Diagnóstico Psiquiátrico, o autor argumenta em favor das
razões que o induzem a traduzir disorder como transtorno, moléstia ou patologia,
até por fidelidade ao espírito do significado.
99
Patologia, patológico e outros termos análogos são expressões muito utilizadas em
Medicina e significantes que costumam ser empregados com uma certa
diversidade de significados. Os diferentes sentidos médicos atribuíveis à
expressão patologia e seus derivados podem ser sintetizados em dois níveis
principais:
a) como o mecanismo de ação do agente patogênico, a natureza da enfermidade
e a estrutura do conteúdo mórbido ou
b) como a forma de sua expressão, seu quadro clínico.
Em função destes dois significados, é comum que se use a palavra patologiacom os
dois sentidos em um mesmo enunciado:
a) como contração da expressão fisiopatologia, como sinônimo de patogenia,
expressando o mecanismo de ação dos fatores morbígenos e
b) expressando a forma do quadro clínico.
Assim, é possível encontrar uma frase como “a etiopatologia de uma patologia”, quando
a palavra estará sendo utilizada com seus dois sentidos: o primeiro, mais estrito e
o segundo, mais amplo.
Mesmo o conceito de patologia, quando empregado como componente de uma
estrutura mórbida, não é uniforme e não reúne apenas elementos idênticos em
sua forma e conteúdo. Há muito se sabe que o conceito de patologia abrange,
pelo menos, três níveis diversos de significação que correspondem a três grupos
de condições patológicas reais qualitativamente distintos daquilo que chamamos
patologia e que são listados adiante, quando se tratar das classes da patologia.
Desde Letamendi, podem ser identificadas três qualidades distintas de patologia,
três modalidades qualitativamente diferentes de condições patológicas, de
entidades mórbidas.
100
Esta realidade heterogênea, inclusive qualitativamente, das manifestações
patológicas humanas impede que sua conceituação se dê de maneira aceitável
para todas as situações a que se refere. No interior do conceito de patologia
humana<D>, existem três noções bem diferenciadas pelo tipo de dano que
ocasionam e que correspondem a, pelos menos, três grupos de condições clínicas
qualitativamente descontínuas entre si que podem ser denominadas de qualidades
ou classes de patologias e que são inferidas do tipo predominante de dano que
apresentam para a pessoa.
A decomposição do conceito de patologia em suas três significações,
correspondentes a três classes qualitativamente diferentes de fenômenos,
corresponde à diferenciação essencial dos fenômenos patológicos como dados da
realidade.
Um componente significativo desta diferenciação da patologia em três categorias
qualitativamente caracterizadas é o tipo de dano que cada uma dela ocasiona no
enfermo: as patologias que determinam algum dano negativo, as patologias que
ocasionam dano positivo e as patologias nas quais o dano ao enfermo é apenas
sentido como experiência subjetiva e, por isto, somente podem ser constatadas
indiretamente ou por meio da comunicação do enfermo.
Eis porque é possível afirmar que ignorar a diferenciação essencial existente entre
os grupos distintos de fenômenos patológicos, as classes de patologia, redunda
em algumas dificuldades para o avanço da psicopatologia e da psiquiatria que se
refletem, principalmente, na incompreensão dos limites do patológico e em
dificuldades de diagnosticar.
Adiante, quando se especificarem as características de cada uma destas classes
de fenômenos patológicos, á de se verificar que elas se diferencial por
ocasionarem danos negativos, danos positivos ou danos sentidos.
101
Estrutura da Enfermidade
As enfermidades são sempre resultantes da interação de três elementos: a
agressão, a resistência/ vulnerabilidade do organismo e os fatores
desencadeantes, atenuadores ou agravantes. Sabendo-se que este processo
patogênico pode afetar qualquer nível da organização das estruturas biológicas.
Classicamente, o organismo se organiza em cinco graus de complexidade
crescente e perfeitamente caracterizáveis que vão do sub-atômico ao tissular ou
anatômico; podendo-se acrescentar o nível psicológico que se confunde com o
psicossocial.
As patologias podem alcançar e comprometer qualquer nível da organização dos
organismos vivos
o tissular,
o celular,
o molecular,
o atômico,
o sub-atômico e
o psicológico.
Destes, alguns são ligados ao terreno (a estrutura do organismo e suas
características funcionais) e outros aos agentes agressores externos ou internos.
Como já foi mencionado sempre houve que alimentasse uma espécie de
preferência para explicar a origem dos acontecimentos patológicos, situando-a o
organismo ou no ambiente. Estas tendências configuram o divisor de águas entre
as mais importantes escolas de patologia: as que explicam a enfermidade pelos
fatores internos do organismo e os que a explicam como resultado da ação de
fatores exteriores.
102
O conceito de história natural da enfermidade é um elemento essencial para
entender o mecanismo de saúde doença e a estrutura da personalidade. O
modelo empregado é o das doenças infecciosas e empregados os conceitos de
agente, hospedeiro, ambiente e evolução clínica da enfermidade (período
assintomático, período de estado e período de resolução). As enfermidades
podem findar com a morte, a cura ou deixar alguma seqüela física ou psicológica.
Condições Patológicas Benéficas
Ao contrário do que se acredita, nem sempre uma patologia é um fator
completamente maléfico ou pernicioso em todos os aspectos da existência
pessoal; embora, inequivocamente, seja o dano que ocasione a mais importante
característica de uma patologia e todas as patologias devam trazer consigo algum
malefício. Mas, este malefício pode redundar em um benefício mais importante.
Muitas patologias podem ter algum efeito terapêutico e, por isto, são usadas para
tratar doenças piores que elas. A maior parte das terapêuticas biológicas têm esta
característica, da qual a vacina é o exemplo mais típico.
As cirurgias não são mais que lesões tissulares controladas e deliberadamente
infligidas com propósitos terapêuticos ou reabilitadores. A neurose de
transferência é outro exemplo muito referido para esta situação. Os emprego
terapêutico dos agentes farmacológicos, em geral, são intoxicações deliberadas
das quais se pretende tirar alguma vantagem curativa para o paciente.
Malarioterapia é uma maneira de tratar sífilis inoculando no paciente o agente
transmissor da malária. Porque a hipertermia das crises maláricas pode extinguir o
agente da sífilis, o Treponnema palidum, do organismo por causa de sua
sensibilidade à temperatura.
Caráter Individual das Enfermidades
O conceito de enfermidade, como o de saúde, só é atribuível a indivíduos, Não
deve ser usado para designar coletividades, senão como metáfora.
103
É bastante comum que se empreguem conceitos como doença, enfermidade,
moléstia para referir fenômenos coletivos como crime, desemprego, prostituição e
muitos outros. É bem verdade que isto acontece, principalmente, na linguagem
comum, mas já está alcançando a comunicação dos cientistas e contaminando a
terminologia médica.
Isto é um erro que deve ser evitado.
Saúde e doença, higidez e patologia são conceitos que devem ser empregados
exclusivamente para referir indivíduos, ainda que entendidos como unidades bio-
psico-sociais.
A atribuição dos conceitos genéricos de saúde e patologia a categorias plurais,
sejam grupos ou comunidades, Estados ou nações, se faz apenas como metáfora,
como analogia ou como licença poética. Afinal, seria um contra-senso tão grande
quanto afirmar que uma cidade ou um grupo tivesse febre ou diarréia, dizer que
tem neurose, ambivalência afetiva ou esquizofrenia. Mesmo no caso em que uma
coletividade seja inteiramente composta por pessoas doentes, não se pode nem
se lhe deve atribuir a condição de coletividade enferma<D>, de uma patologia social; a
não ser para exercitar uma figura de linguagem. De fato, uma comunidade de doentes
não pode ser entendida como uma comunidade doente<D>, posto que os componentes
individuais da comunidade é que estão enfermos e não o sistema social batizado
com esta designação.
A noção de patologia social ou coletividade patológica é uma ideologia a
serviço da desinformação que pretende justificar a existência de distorções e
injustiças em um sistema social.
Enfermidade Somática e Enfermidade Psiqui’trica
Convém destacar comparativamente as características mais importantes de cada
uma destas modalidades de patologia.
104
O Tratado de Patologia Médica de von BERGMANN divide os fenômenos pelos quais
se manifesta a enfermidade humana em dois grupos, do ponto-de-vista de quem
os experimenta: os objetivos e os subjetivos; e ambos em orgânicos, funcionais e
psicológicos, (do ponto de vista da natureza de suas manifestações clínicas).
As patologias físicas se caracterizam por particularidades que devem ser
destacadas, e conhecidas por todos os que pretendem lidar com elas como
atividades profissional ao longo de toda sua vida.
Características das Enfermidades Somáticas
O estudo ontológico da Medicina e de seus ramos precisa envolver as
características mais essenciais de seu objeto e sua dimensão gnosiológica que
permite que sejam reconhecidas as enfermidades: o diagnóstico médico. O
diagnóstico médico se refere ao reconhecimento de todas as enfermidades
humanas, de todas as fontes de sofrimento, de todas as manifestações de
prejuízo para suas aptidões, para suas capacidades, para sua adaptação.
No entanto, aqui, neste item, se privilegia a caracterização das patologia físicas,
sem que isto signifique qualquer compromisso com qualquer reducionismo, seja
dualista ou organicista.
Também, se deve recusar a tendência a confundir o corpo como o único objeto da
Medicina. Quando se faz, p.ex., menção a uma condição médica, ou o que é muito
mais divertido, uma doença médica, para referir a uma doença somática ou
corporal.<$FPorque a expressão illness (de ill=moléstia, mal, sofrimento é
traduzido como doença com o sentido literal dessa expressão, sofrimento,
padecimento.) O que pode fazer sentido na linguagem comum mas não é correto
em linguagem técnica da Medicina ou mesmo na linguagem educada de quem
sabe o que diz.>
Entretanto, as diferenças entre as patologias psiquiátricas e as corporais devem
ser conhecidas por quem as estude. O diagnóstico das patologias físicas é, em
105
geral, mais fácil que o diagnóstico psiquiátrico por causa das características das
enfermidades somáticas e orgânico-cerebrais.
As características das patologias corporais que tornam mais fácil sua identificação
são listadas a seguir. Podem ser destacadas três características essenciais das
patologias físicas que permitem ter bastante confiança em sua identificação e
tratamento:
= a) os sinais e sintomas das enfermidades somáticas, uma vez identificados e
descritos por um examinador, encontram razoável grau de concordância em sua
identificação em outros examinadores, avaliada em outras circunstâncias; e de
estabilidade quando se considera o grau de concordância de diagnósticos feitos pelo
mesmo examinador no mesmo paciente, examinado em momentos e situações
diferentes;
= b) as descrições fenomenológicas dos acontecimento patológicos de natureza
somática freqüentemente podem ser complementadas ou confirmadas por
indicadores biológicos, como radiografias, exames bioquímicos ou outros;
= c) as manifestações clínicas (sinais e sintomas) da patologia somática, em geral,
correspondem a alterações anatômicas ou fisiológicas mais ou menos definidas, r
localizáveis ou relacionáveis a uma estrutura topográfica ou função corporal;
= d) todas estas características permitem elaborar uma definição real daquela
patologia e é esta definição real que se confunde com seu diagnóstico.
Características das Enfermidades Psiquiátricas
@FIRSTPAR = Nas enfermidades psiquiátricas, por sua vez, o quadro é bastante
diferente em função de suas peculiaridades de suas manifestações clínicas,
podendo-se levantar muitas características que as diferenciam das patologias
corporais. Tais características das enfermidades psiquiátricas são:
106
= a) os sintomas das enfermidades psiquiátricas se manifestam como alterações
psicológicas e da conduta, muitas vezes difíceis de serem diferenciadas das
ocorrências não patológicas, principalmente por causa da grande margem de
variação da normalidade que existe nestas últimas e a extrema peculiaridade dos
comportamentos dos indivíduos humanos e sua grande margem de variação de
uma pessoa para outra e da mesma pessoa em circunstâncias diferentes;
= b) não se conhecem indicadores biológicos viáveis que sejam reconhecidos
como válidos para confirmar a ocorrência da maioria dos casos de enfermidade
psiquiátrica, isto é, as enfermidades psiquiátricas não se objetivam com facilidade;
= c) não há correspondência evidente entre as manifestações psicopatológicas e
alterações estruturais ou funcionais comprováveis, o que obscurece a identificação
da etiologia e o reconhecimento do mecanismo patogênico dos casos
psiquiátricos, ao contrário do que acontece na maioria das enfermidades
corporais;
= d) é raro que se possa passar da descrição à explicação no estudo clínico de
uma psicopatologia, raramente podendo-se construir uma definição real
comprovável da enfermidade psiquiátrica;
= e) as ocorrências psicopatológicas não implicam necessariamente em
sofrimento (no enfermo ou em outrem, nem sempre se manifestam por
comportamentos negativos, socialmente reprovados ou anti-sociais, ao contrário,
podem se manifestar (como acontece muito), como comportamentos altamente
aprovados (como em muitos pacientes com transtornos obsessivos-compulsivos,
por exemplo);
= f) é difícil estabelecer conexão temporal evidente entre o aparecimento das
manifestações clínicas psicopatológicas e um acontecimento ou situação a que se
possa atribuir sua etiologia.
107
Estas características específicas das entidades psicopatológicas originam as
dificuldades inerentes às condições clínicas que marcam muito
caracteristicamente as enfermidades psiquiátricas e, de certa forma, explicam as
dificuldades para sua definição, sobretudo quando são comparadas com as
enfermidades somáticas e as orgânico-cerebrais.
Deve-se ter presente que a referência a uma patologia “orgânica”consiste, na
verdade, em uma síntese da expressão orgãnico-cerebral. Na psiquiatria clássica,
indica uma referência a agressão, enfermidade ou lesão primária do encéfalo. Não
se refere a uma enfermidade orgânica no sentido de corporal. Nesta linguagem, as
estruturas corporais extra-cerebrais são denominadas de somáticas.
A expressão orgânico, pode ser empregada como sinônimo de estrutural, corporal
e como complementar de funcional.
Enfermabilidade
@A enfermabilidade, possibilidade de enfermar, é característica geral essencial de
todos os seres vivos, podendo o conceito ser estendido a todas as formas de
existência dotadas de organização estrutural dinâmica.
Todos os sistemas vivos estão sujeitos a enfermar, a apresentar uma patologia.
As condições de patologia devem ser reconhecidas como acidentes na existência
de quem as padece, ainda que possam ser condições transitórias ou
permanentes.
A vulnerabilidade à patologia, entendida como possibilidade de enfermar (no
sentido amplo e genérico de qualquer patologia) é chamada de enfermabilidade e
pode ser considerada como um atributo genérico da vida, uma característica
essencial dos seres vivos, como a reprodutibilidade da espécie e a auto-defesa da
vida e, por isto uma importante categoria do objeto da Medicina.
Algumas patologias manifestam a possibilidade do organismo responder ao
agente agressor ou perturbador com uma tentativa automática e dinâmica de 108
restabeler a homeostase comprometida, um exercício automático de
autoreparação. Noutras vezes, a patologia é um estado permanente, estável e
definitivo conseqüente à ação da noxa (agente nosogênico). As noções de
enfermidadee enfermabilidade só podem ser entendidas quando se define seu objeto, a
estrutura que passível de enfermar, de sofrer uma patologia.
A possibilidade de tornar-se enfermo, de apresentar alguma patologia
(enfermabilidade, no dizer de PEDRO LAIN-ENTRALGO, em El Estado de Enfermedad)
é, genericamente, uma propriedade <$FUma propriedade, no sentido aristotélico,
de ser característica essencial do ser em questão. > de quem tem saúde e,
especificamente, dos organismos ou sistemas biológicos.
De fato, todo organismo (ou, pode-se afirmar mais extensamente, todo sistema
vivo) está sujeito a enfermar e costuma apresentar enfermidades
(comprometimentos estruturais ou funcionais que perturbem seu desempenho e
lhe ocasionem algum dano). Muito embora, com o sentido de maior abrangência
que se pode atribuir a estes termos, há quem considere possível imaginar a
patologia e a vulnerabilidade à enfermidade como atributos de todas as estruturas
dinâmicas, como faz o próprio ENTRALGO. Na verdade, a enfermabilidade é uma
qualidade de todos os seres vivos, uma propriedade da matéria viva.
Há quem pense na patologia como expressão da perturbação de qualquer
estrutura dinâmica. O que parece resultar em um conceito exageradamente amplo
de enfermidade, moléstia, doença ou patologia; pois, conduziria (como, de fato,
conduz) a afirmar haver enfermidades de estruturas minerais, como as cristalinas
e nas organizações sociais.
O conceito de patologia social com o sentido de uma enfermidade de uma sociedade
ou coletividade, resulta dessa ideologia que pretende fazer crer as dificuldades da
sociedade como doenças e não, como são em realidade, problemas políticos.
109
Uma vez que se atribua enfermabilidade às estruturas cristalinas, poder-se-ia a
findar por atribuir o conceito de patologia à alteração de qualquer sistema físico
(como uma máquina), a qualquer sistema social (como uma organização
empresarial), a qualquer sistema lógico (como uma teoria). O que ultrapassa os
limites do absurdo.
A extensão de noções como doença.patologia, enfermidade (ou outros do mesmo
tipo) para mencionar desordens de quaisquer sistemas ou estruturas consiste num
erro. Ainda que não se deva imaginar isto para com as estruturas e sistemas
psicológicos.
Alcance dos Conceitos de Enfermidade e Enfermabilidade
Em verdade, aquilo que aqui está sendo chamado uma patologia, chame-se moléstia,
enfermidade, doença ou qualquer outra designação que possa ter alcance bem geral
de condição patologica, não é, não pode e nem deve ser entendida como um
transtorno da estabilidade estática ou dinâmica de qualquer organização ou
qualquer sistema não biológico, porque mesmo o senso comum tende a manter a
aplicação do conceito de patologia, moléstia ou enfermidade restrita às estruturas
vivas, aos sistemas biológicos.
De fato, desde do ponto de vista adotado aqui, os conceitos de patologia, patológico e
outros derivados ou análogos, como moléstia, enfermidade, mórbido, morbidez,
morbosidade, enfermabilidade, doença, devem ser aplicados restritamente às
perturbações da estrutura ou da dinâmica funcional dos sistemas vivos como
organismos individuais. Caso se procedesse de maneira diferente, e se
promovesse sua extensão a todos os sistemas e organizações, isto findaria por
comprometer sua comunicabilidade e obrigaria a criar um conceito novo para
expressar a perturbação de um sistema vivo, visto que ele seria indispensável
para a comunicação comum e, principalmente para a Medicina, a patologia geral
110
ou seus capítulos específicos. Porque não se pode imaginar incluir o diagnóstico e
tratamento médicos dos sistemas físicos, lógicos e sociais.
Considerando-se a patologia como ocorrência natural nos sistema vivos e restrita
a eles, podem-se identificar quatro níveis distintos de organização natural dos
sistemas vivos capazes de enfermar, e em cada um destes níveis, caracteriza-se
um tipo de enfermidade.
Os quatro tipos de estrutura que correspondem a quatro modalidades de sistemas
vivos capazes de enfermar:
a) perturbações patológicas funcionais ou estruturais das estruturas bióides, como
os vírus;
b) enfermidades dos vegetais (fitopatologia);
c) enfermidades dos animais (zoopatologia) e
d) enfermidades dos seres humanos (antropopatologia).
As patologias dos seres bióides e a fitopatologia parecem ser evidentes por si
mesmas como tipos essencialmente diferenciados de patologia. Contudo, talvez
fosse adequado empregar algum tempo para encarar as diferenças entre as
zoopatologias e as antropopatologias. Principalmente porque a concepção
reducionista biologicista supõe que ambas sejam idênticas.
Os fenômenos psicopatológicos, como tudo aquilo que é especificamente humano,
são acontecimentos simultaneamente naturais, sociais e, por isto, psicológicos.
Enfermidades que acometem os seres humanos, matam-nos, invalidam-nos ou
fazem-nos sofrer, e que podem ser referidas e explicadas como uma resposta
individual dos seus organismos individuais à ação danosa dos fatores
patogênicos, fizeram nascer a Medicina que se configura, desde sua origem mais
remota, como uma resposta social à patologia, que se expressa por sofrimento,
invalidez, ameaça à vida.111
A Medicina já era uma atividade social muitos séculos antes de estruturar uma
teoria social da saúde e da enfermidade. E este seu caráter social se ampliou
muitíssimo com sua transformação em instituição.
Como técnica e como atividade científica, a Medicina exige do médico uma teoria
cientificamente aceitável sobre as enfermidades.
A Medicina é uma profissão, é um exercício técnico (como aplicação científica) e é
uma atividade ética. Contudo, quando o significado do termo é ampliado, como
acontece muito na linguagem comum, ele pode se confundir com saúde, atividade
sanitária. E, com este sentido, também é uma instituição social.
O caráter individual e social da enfermidade, sua origem e conseqüências, faz que
a Medicina, por mais que seja praticada como atividade solitária na prática clínica
privada, seja sempre social; não só por envolver a pessoa enferma e sua rede de
relações, ou porque os fatores morbígenos são impossíveis explicar apenas como
individuais, mas porque corresponde a uma necessidade ao mesmo tempo
individual e coletiva, um procedimento a serviço de indivíduos, com implicação na
coletividade; uma necessidade social.
As perturbações patológicas que comprometem aptidões especificamente
humanas, como os sentimentos, inteligência, sociabilidade e, principalmente, as
aptidões simbólico-verbais, se manifestam como enfermidade essencialmente
humana, a enfermidade sócio-psicógena ou neurose humana, impossível de
acontecer em animais porque são de condições qualitativamente diversas de
qualquer patologia não humana, inclusive a neurose animal experimental.
Pois, as manifestações ansiosas típicas (ansiedade difusa, fobia, compulsão e
somatização) não parecem ter a mesma estrutura das manifestações histriônicas
(sejam exibições, conversões ou dissociações).
Muito menos os processos ansiosos esgotam todos os fenômenos neuróticos a
cujo conceito tradicionalmente estavam associados (insegurança, desconfiança,
112
desvalorização de si mesmo e muitos outros). Esta premissa põe em cheque
todas as tentativas de descrever ou explicar as enfermidades dos humanos (e
ainda mais as patologias psiquiátricas) a partir de um modelo animal. Porque as
experiências em animais podem, no máximo suscitar hipóteses a serem
investigadas; nunca explicações satisfatórias de todas as dimensões da
enfermidade humana.
Não obstante, também podem ocorrer outras formas de adoecer; como acontece
quando uma pessoa é atingida por enfermidades animais que são potencialmente
capazes de acometer também aos seres humanos (como as lesões traumáticas,
as infecções, em geral, as afecções carenciais, as neoplasias e muitas outras). No
entanto, mesmo nestas patologias (que podem, inclusive, ter sido contraída por
meio de vetores animais), a condição humana atribui características
qualitativamente novas à maneira animal de enfermar.
O tipo de enfermidade caracteristicamente humano de enfermar é a enfermidade
psicogênica produzida por acontecimentos ou situações patogênicas
especificamente humanas: as neuroses.
Quando os seres humanos padecem de enfermidades que também podem
acometer animais, estas se apresentam com características clínicas diversas de
sua apresentação original nos não humanos. As enfermidades que afetam
homens e animais ocasionam fenômenos diferentes nestes dois grupos de seres
enfermos porque a condição humana influi na forma de enfermar, principalmente
em sua maneira de evoluir. Fato este que se denomina hominização da patologia
biógena; da mesma maneira, a enfermabilidade, a vulnerabilidade ou a resistência
para a doença, herdada dos antepassados brutos dos homens, apresenta nestes
um conteúdo humano, qualitativamente diverso daquele que apresentava e
apresenta nos animais.
Uma lesão da pele produzida pela ação patogênica de um fungo, uma fratura ou
uma chaga de leishmaniose, são patologias que podem acometer homens e
113
animais, produzindo neles lesões estruturalmente muito semelhantes, se não,
idênticas. Contudo, como as enfermidades humanas são mais, muito mais
importantes que os danos estruturais ou funcionais que ocasionam, as noções
sobre as enfermidades incluem suas repercussões e reverberações psicológicas e
sociais.
Por isto, tais afecções se apresentam-se nos seres humanos, como enfermidades
com características inteiramente novas, em relação às que se manifestam nos
seres brutos; embora as lesões tissulares possam parecer (ou realmente, ser)
completamente idênticas do ponto de vista anatômico-estrutural e compartilhem
alguns sintomas funcionais idênticos. Isto acontece por que estas patologia têm
repercussões psicológicas e sociais que ultrapassam os limites da individualidade
em sua origem e em suas conseqüências.
Sabe-se que os animais não chegam a padecer espontaneamente de certas
patologias que costumam acometer os seres humanos, como arterioesclerose,
asma, hipertensão arterial, doenças reumáticas ou alérgicas e de outras
patologias que afetam os seres humanos. Para os criadores de animais, parece
certo que a obesidade e certos desvios de inclinação da conduta sexual só
acontecem em animais domesticados. Não existem quando eles vivem em seu
estado natural, em seu habitat.
Restando por descobrir se isto se deve a frustrações determinadas pelo estado de
cativeiro ou se seriam ocasionadas pela convivência com os humanos.
No entanto, apenas o homem padece e pode ter agravada sua patologia pelo
medo que as conseqüências de uma enfermidade (como costuma acontecer
quando se cultiva a expectativa tenebrosa de sua evolução) lhe desperta.
O ser humano também é o único ser vivo que pode enfermar a partir da
decodificação de uma mensagem simbólica que pode, inclusive ser criada por ele
próprio, como acontece nas patologia induzidas por auto ou pela hétero-sugestão
114
(como se dá nos casos de transtornos funcionais ou lesões estruturais induzidas
por sugestão hipnótica).
Definição de Enfermidade Humana
LAIN-ENTRALGO (em Antropologia Médica <$Fpp. 224 e 225)> formula três
definições complementares para patologia humana que são reproduzidas a seguir
por causa de sua importância para este estudo. Tais definições, apesar de
elaboradas a partir de diferentes pontos de vista , são inteiramente convergentes e
determinam uma configuração lógica da patologia bastante compatível com a idéia
que se tem dela atualmente.
Estas três definições complementares do que seria o essencial na patologia
humana se desenvolve em diferentes níveis definidores que são:
a) a enfermidade humana é um modo aflitivo e anômalo do viver pessoal,
refletindo uma alteração psicorgânica do corpo; alteração por causa da qual,
padecem as funções e ações vitais do indivíduo afetado e reação em virtude da
qual o enfermo retorna ao estado de saúde (enfermidade curável), morre
(enfermidade letal) ou fica com uma deficiência vital permanente (enfermidade
cicatricial).
b) a enfermidade humana é um modo aflitivo e anômalo de realização para a vida
do homem, que pode ser consciente ou inconscientemente determinada ou
condicionada por uma alteração patológica do corpo e alguma peculiaridade
nosógena do ambiente cósmico e social.
c) a enfermidade humana, mesmo naquilo que tem de estrutural e lesional
anatômico, reflete sempre a natureza biopsicossocial dos seres humanos, não
apenas do ponto de vista da originalidade de suas manifestações clínicas
(sintomas, curso), mas de sua etio-patogenia e, de forma muito importante, de
suas implicações existenciais e conseqüências sociais.
115
Sobretudo esta terceira definição aponta para o caráter qualitativamente distinto
das enfermidades humanas em relação aos fenômenos patológicos que
acometem os animais, ainda que suas histórias naturais sejam idênticas.
Diferença entre o Patológico e o Não-Patológico
Na Medicina, os fenômenos patológicos e não-patológicos apresentam, cada um
por sua vez, características que permitem que sejam diferenciados por
procedimentos práticos e teóricos a partir de características de sua realidade,
ainda que sua denominação e, principalmente, sua valoração, sejam construções
humanas.
A diferença entre o que é patológico e o que não o é quase sempre é obviamente
qualitativa nos comprometimentos patológicos estruturais e, por sua vez, quase
sempre quantitativa nas doenças ou moléstias chamadas sistêmicas ou funcionais
e nas perturbações do desenvolvimento.
No entanto, é importante que se tenha presente que a diferença verificada entre o
acontecimento patológico e o fenômeno não-patológico, decorre de uma
perspectiva rigorosamente médica. Em primeiro lugar, porque apenas se
consideram o patológico e o não patológico como duas qualidades diferentes de
duas categorias diversas, na medida em que estas diferenças se refletem na
saúde de alguém. O que, em última análise, é o interesse essencial da Medicina
A diferenciação entre o patológico e o não patológico haverá de ser ignorada,
pode ser desprezível ou, até, inexistir, quando observada a partir de um ponto de
vista comportamental, psicológico, antropológico, sociológico, geográfico,
matemático ou qualquer outro que não seja médico.
No entanto, sequer haveria Medicina se sua atividade não fosse edificada a partir
desta diferenciação, para ela essencial, do patológico e do que não é. Isto porque
a Medicina surgiu, se desenvolveu e tem sido sempre o domínio da atividade
social a quem a coletividade incumbe de evitar, afastar ou minorar a influência
116
deletéria que a patologia e os fatores patogênicos exercem sobre o seres
humanos e seus sistemas sociais.
A Medicina, desde sua origem na magia, sempre existiu para combater os danos
ocasionados pelas patologias principalmente no seres humanos. <$FEm geral, os
investimentos feitos na Veterinária objetivam minimizar ou afastar os efeitos
nefastos das enfermidades animais nos seres humanos.> Fora do âmbito dos
interesses da Medicina, é perfeitamente possível que nunca ou quase nunca seja
necessário ou importante identificar se uma determinada ocorrência pessoal
corresponde a uma patologia ou não corresponda a uma enfermidade.
Decidir se uma variação estrutural, funcional ou comportamental é patológica ou
não, é atividade não exclusiva, mas essencialmente médica. Pois, as noções de
patologia, enfermidade, enfermo não têm sentido ou mobilizam interesse fora da
atividade médica. No entanto, para o trabalho médico, cuja essência e principal
finalidade é a terapêutica, é absolutamente insuficiente saber que uma pessoa
apresenta uma patologia ou apenas conhecer sua denominação; porque, do ponto
de vista médico não basta reconhecer ou saber que alguém está enfermo, é
necessário saber qual a moléstia que o afeta e saber explicar esta patologia.
Para cumprir as finalidades essenciais da Medicina (prevenir, diagnosticar, tratar e
reabilitar), o médico precisa saber reconhecer a enfermidade que afeta o paciente;
deve conhecer sua explicação mais plausível, ter idéia de seus condicionantes,
mecanismos e evolução provável para utilizar, se puder, algum recurso técnico
para evitá-la, tratá-la ou minorar seus efeitos nefastos.
O reconhecimento da enfermidade, o diagnóstico médico, é o primeiro momento
de seu tratamento. Por isto, diagnosticar deve ser a preocupação fundamental do
médico. O bom diagnóstico é premissa básica de tratamento eficaz. O doentes
também se preocupam com o diagnóstico, mas com motivação diferente. Sabe-se
que as pessoas enfermas costumam se preocupar mais com o seu prognóstico
que com o diagnóstico. E, quando se preocupam com o diagnóstico e indagam por
117
ele, é pelo que ele tem de prognóstico ou de agente determinante de uma
terapêutica. Em geral, mesmo quando bem informados e instruídos, os pacientes
não se interessam pelo diagnóstico como elaboração cognitiva, como construção
lógica do conhecimento, mas com o que o diagnóstico significa como previsão do
futuro e da evolução da enfermidade e quais serão as medidas terapêuticas que
irão determinar, sobretudo seus custos (em dinheiro, em comodidade, em
incapacidade, em sofrimento, em sacrifício estético). O que demonstra que as
noções de prognóstico e terapêutica, implícitas no diagnóstico são diferentes para
o médico e para o paciente.
A diferenciação teórica e prática da patologia e da higidez, interessa a numerosos
ramos do conhecimento e influi em muitos campos da atividade, embora possa
interessar muito pouco ou nada para outros. Separar o patológico e o não-
patológico não interessa apenas a um doente, a quem sofre uma enfermidade,
seus amigos e familiares. Interessa sobretudo à psicologia e à psicopatologia ou à
Medicina; interessa também à sociologia, à fisiologia, à antropologia, à filosofia, ao
direito, à ciência política e a muitas outras dimensões do conhecimento científico e
de sua aplicações práticas, das quais se serve e para as quais contribui.
Os critérios e os procedimentos para distinguir e reconhecer os fenômenos
patológicos compõem o núcleo do interesse profissional dos médicos,
enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, juristas, administradores, professores
e muitos outros. Interessa, igualmente, ao labor diário inúmeras pessoas comuns,
sendo certo que interfere, mais ou menos poderosamente, na vida daqueles que
são objeto de um diagnóstico psiquiátrico. Contudo, para muitas áreas de
interesse, o diagnóstico de uma entidade patológica pode não motivar qualquer
interesse especial.
O processo lógico de reconhecer uma enfermidade em um enfermo a partir de
suas características clínicas (sintomas, resultados dos exames e outros dados), é
exatamente o que se denomina diagnóstico médico, elemento característico do
118
chamado método clínico que vem tipificando a medicina desde o século dezoito.
E, em cada momento do conhecimento sobre uma enfermidade, seu diagnóstico
informa diferentemente sobre ela. Pode ser meramente descritivo ou explicativo.
O significado social da tarefa de diagnosticar, com o sentido específico de
distinguir, na teoria e na prática, o que é patológico daquilo que não o é, na
realidade do paciente que padece, parece ser tão evidente por si mesmo que
estas afirmativas parecem inúteis e redundantes.
Diferentemente do que acontece na Medicina Geral, onde o problema de
diferenciar o patológico do não-patológico é mais uma questão de sensibilidade
dos instrumentos diagnósticos, ainda que procedimentos clínicos; na Psiquiatria,
de uma maneira quase surrealista, a questão se inicia na necessidade de
comprovar a patologicidade dos fenômenos patológicos. E só depois se coloca a
questão da fiabilidade e da validade dos procedimentos diagnósticos, dos recursos
para se elaborar o diagnóstico específico daquele caso concreto no qual foi
aplicado o procedimento diagnosticador.
Contudo, tudo isto é muito dificultado porque existe uma atitude ideológica de
negar importância ao diagnóstico psiquiátrico, fenômeno que se dá mesmo entre
muitos que exercem legalmente a Medicina mas praticam ilegalmente a psicologia,
associada a uma tendência cética de afirmar o patológico em psiquiatria é uma
característica indistinguível por si mesma.
A delimitação entre o que é patológico e o não-patológico, mesmo que restrita
exclusivamente ao aspecto conceitual, não é pacífica. Ao contrário, provoca
numerosas e muito acirradas controvérsias em todos os lugares onde se trave
esta discussão, porque seu alcance se prolonga para muito além do terreno
técnico. Muito provavelmente, uma das razões pela qual a questão da patologia
psiquiátrica mobilize muito mais influências psicológicas, porque o medo da
insanidade mental em muitas culturas humanas (inclusive na nossa é é superado
pelo medo da morte); a segunda se refere às tensões ideológicas que esta
119
questão mobiliza. Estes dois componentes fornecem muito material para este
conflito.
No entanto, só raramente, tais conflitos se radicam exclusivamente na diversidade
de opiniões ou diferenças de convicções restritas a qualquer um destes dois
conceitos ou de suas relações recíprocas.
Freqüentemente, as discussões sobre o diagnóstico psiquiátrico, sequer se
referem ao objeto estudado de um paciente específico. Na prática, é muito mais
comum que as discussões sobre diagnóstico psiquiátrico ou enfermidade psíquica
se resumam a generalizações amplas, resultantes de idéias distantes do problema
específico, quase sempre se limitando a crenças ou opiniões sobre questões
análogas ou semelhantes. Contudo, não se deve desprezar a possibilidade de que
ao menos algumas destas discussões sejam ocasionadas por outros interesses,
alheios aos interesses do paciente e dos discutidores, resultando de preconceitos
e de conflitos teóricos sobre a visão do mundo e do homem. Pois, bem mais
comum, é que se originem em interesses mercantis contraditórios e na
concorrência, na disputa do mercado prestador de serviços terapêuticos.
Simplesmente isto e nada mais. Prosaico e simples, mas verdadeiro.
Qualidades ou Classes de Enfermidade
A noção de patologia não é uma categoria homogênea, apesar de tudo o que está
contido nela ocasionar algum tipo de dano para seu portador. De fato,
anteriormente já se afirmou que sob a designação geral de patologia se abrigam
três grandes tipos de fenômenos diferenciáveis pelo tipo de dano que ocasionam a
quem for afetado por eles. A divisão das ocorrências patológicas em classes, em
função do tipo de dano que acarretem, foi um passo muito valioso no
conhecimento das patologias como fenômenos naturais.
Ainda no século passado, LETAMENDI, <$FLetamendi, apud Lain-Entralgo, P., El
Estado de Enfermedad, Ed. Moneda e Credito, Madrid, 1968, pg. 49.> depois de
120
estudar cuidadosamente o significado da expressão enfermidade em numerososas
línguas, verificou que desde muito remotamente três sentidos complementares
estão abrangidos pelo conceito de patologia, correspondendo a três tipos de
condições patológicas humanas que correspondem ao tipo de dano que
ocasionam, como já se afirmou.
Estes três sentidos configuram três classes diferentes de fenômenos patológicos
que podem ser identificados nos seres humanos:
= a) Impedimentos causados por danos negativos defeito ou seqüela
estrutural, representados por deficiência funcional, seqüela de uma patologia
anterior, agenesia, deficiência, deformação congênita ou adquirida ou, ainda,
mutilação. Emprega-se com o mesmo sentido que têm as palavras asthmnéia, em
grego, infermitas,em latim e enfermity, em inglês. Em Psiquiatria, este tipo de
patologia se manifesta nos estados deficitários globais (deficiência ou retardo
mental) ou parciais (défites específicos e transtornos da personalidade, seqüelas
de lesões cerebrais), transitórios ou permanentes (incluindo os transtornos da
personalidade que possam ser considerados como estados deficitários
particulares da afetividade e da vontade).
= b) Estados patológicos dinâmicos ocasionados por danos positivos, que
podem ser descritos como desenvolvimentos ou processos ativos de desarmonia e
desequilíbrio entre as funções, estruturas ou faculdades do organismo vivo, (do qual se pode
prever a evolução e, ao menos, supor que haja uma etiopatogenia); aqui cabe
exatamente, com todo o rigor, o emprego da expressão doença em seu sentido
estrito; como o resultado da ruptura da homeostase organísmica que pode ser
devida a falência ou insuficiência da capacidade adaptativa, estando sempre
presente algum esforço de auto-reparação; tal estado mórbido pode ser transitório
ou permanente e mais ou menos invalidante. (Traduz o mesmo significado que a
palavra grega nosos, a latina, morbus e a inglesa, disease). Em Psiquiatria, este tipo de
patologia se manifesta nas doenças orgânico-cerebrais, nas doenças sintomáticas
121
e nas doenças exo-tóxicas, nas esquizopatias, nas timopatias e nas doenças
ansiosas de etiologia metabólica.
= c) Estados de dano sentido, de experiência subjetiva ou objetiva de mal-estar, tensão,
dor ou sofrimento desproporcionados às circunstâncias; o que inclui o sentir-se doente. (O
que corresponde exatamente ao significado das palavras pathos, em grego, dolentia,
em latim e illness, em inglês). Em Psiquiatria, este tipo de patologia corresponde
aos transtornos psicogênicos agudos ou crônicos; enfermidades tipicamente
humanas.
Esta contribuição de LETAMENDI, estabelecendo os limites das diferentes classes
de patologia, é importante e atual, principalmente porque esses devem ser
considerados como os grandes marcos definidores dos limites dos fenômenos e
processos patológicos e, simultaneamente, as três grandes classes de possíveis
de patologia, as três maneiras pelas quais uma enfermidade pode afetar uma
pessoa.
Conhecendo estes três tipos qualitativamente diferentes de estruturas patológicas,
torna-se relativamente muito mais fácil elaborar um diagnóstico clínico, facilitando
sobretudo o diagnóstico da patologia psiquiátrica. Posto que, todo diagnóstico
psiquiátrico deve situar o quadro diagnosticado em uma destas grandes categorias
do patológico. Além disto, facilita os procedimentos destinados a acompanhar os
efeitos da terapêutica e permite compreender melhor como se sente a pessoa
afetada pela patologia.
Porque, ao contrário do que parecem pensar os reducionistas do doentismo ou do
doencismo, não há qualquer contradição, incompatibilidade ou antagonismo entre
explicar a doença e compreender o doente que padece com ela. <$FEsta falsa
dicotomia, como muitíssimas outras que infestam nossa cultura, em seu pseudo-
anatagonismo, é mais uma expressão da estupidez humana que de sua
inteligência.>
122
No caso específico das patologias psiquiátricas existe ainda o caso das
perturbações da conduta social que podem ser consideradas como uma patologia
resultante de uma perturbação específica do desenvolvimento do psiquismo
(deficiência da capacidade de amar ou da capacidade de adquirir ou desenvolver
a socialização), mas pode representar uma forma particular de conduta
voluntariamente estruturada e, portanto, sem que se possa caracterizar como
patológica.
Perturbações da Conduta Social
Há quem acredite em uma quarta classe qualitativamente diferenciada de
condição patológica, esta especificamente humana. Os desvios da conduta social.
Desde a introdução da categoria diagnóstica loucura moral por PRITCHAR, foi
acrescentado mais um componente elementar deste conceito de patologia, que se
acrescentou aos três tipos patológicos genéricos identificados por LETAMENDI. O
conceito de desvio da conduta social foi denominado sucessivamente de loucura moral,
personalidade psicopática e sociopatia; hoje, denomina-se transtorno da conduta em crianças
e transtorno da personalidade, nos adultos.
A noção de desvio social ou desvio da conduta social, quando empregada para designar
uma patologia é extremamente controvertida porque, muito provavelmente,
incompatível com o conceito clássico de patologia.
Este conceito está incluído, inclusive, na caracterização como patológicas de
condutas de impor sofrimento a outrem, deliberada e intencionalmente, incluída
nos conceitos de personalidade psicopática, sociopatia e transtorno anti-social da
personalidade. No entanto, ao invés de considerar estes fenômenos como uma
nova grande categoria de patologia, parece muito mais correto e adequado,
considerá-los como deficiências específicas do desenvolvimento de duas funções
comportamentais especificamente humanas: a capacidade de experimentar
sentimentos e a vontade materializada na capacidade de executar atos
voluntários.123
Homem Fragmentado e Homem Integral
Desde os conflitos entre os hipocráticos e o cnídicos na Grécia, entre Celso e
Galeno em Roma e, na Idade Media, entre Paracelso e os escolásticos, trava-se
uma luta ideológica entre os adeptos de uma concepção integral e monista do
homem e os que sustentam uma visão fragmentária, iniciada divisão dualista:
corpo e alma.
Uma das deformações mais importantes da ontologia médica e que mais
repercutem na prática médica como atividade humana, científica e social, é a
concepção do homem fragmentado em seus componentes mais elementares
(aparelhos e sistema, tipos de patologia, situação social). Historicamente, a
Psicologia a Psicopatologia desempenharam importante papel na sintetização da
visão do homem no interior da Medicina.
Atualmente há uma tendência mundial predominante a sustentar a tese monista
da integralidade dop ser humano sadio ou enfermo. Isto, no entanto oferece um
defeito, como se trata de uma posição maciçamente, quase exclusiva, aqueles
que não concordam com ela, fingem aceitá-la e, apenas na prática concreta,
assumem sua divergência.
Uma das manifestações práticas que comprovam esta assertiva, é a ação dos
dualistas modernos que sustentam uma posição nominalmente holística, mas, na
verdade, dualista e espiritualista.
ONTOLOGIA DA PSICOLOGIA E DA PSICOPATOLOGIA
Já se viu como e porquê a definição do objeto é essencial para a ciência. De fato,
a caracterização do o-quê fazer ou a circunscrição dos limites de um campo de
interesse ou de trabalho constitui o passo fundamental que alicerça qualquer
atividade, de qualquer ação voluntária e inteligente, sobretudo de uma atividade
de investigação científica. Nas ciências factuais, a definição do objeto obriga, ao
menos, a uma clara circunscrição daquele segmento do campo da natureza, da
124
sociedade ou do homem que é o objeto das cogitações daquela atividade
científica; assim como se obriga que este objeto seja real.
Muito mais que qualquer outro ramo do conhecimento da natureza ou do homem,
a subjetividade humana sempre foi terreno fértil para o cultivo de todas as
ideologias e superstições. Não apenas hoje, mas ao longo da história, o estudo da
psicologia sempre foi dificultado pelas implicações ideológicas envolvidas no
conhecimento de seu objeto como fato real e cognoscível. O conhecimento da
psicologia, desde a definição de seu objeto, quer como estudo científico da
atividade psíquica, quer como investigação científica do comportamento, tende a
comprometer o domínio ideológico exercido através da superstição e a dificultar os
procedimentos de controle social implícito na ignorância ou na dominação
ideológica.
Até há um século, somente em raros momentos da história da humanidade, foi
possível mencionar, estudar ou discutir publicamente o caráter natural da atividade
psíquica, sem que isso impusesse um risco mais ou menos grave para quem o
ousasse. Porque a vida subjetiva era considerada a expressão ou um atributo da
alma e esta, objeto da teologia. E a teologia era considerada como propriedade da
religião oficial. A mesma religião que decidia o que era a verdade ou o erro, o justo
e o injusto, o pecado e a virtude.
Para entender isto, deve-se atentar a evolução do conceito de psicologia como
termo científico, desde sua origem até aos dias atuais.
Os antigos denominavam psicologia ao estudo das manifestações da subjetividade,
da vida interior. A mais antiga exposição sistemática que se conhece sobre os
fenômenos psíquicos, se deve a ARISTÓTELES (384-322 A.C), no livro “Sobre a
Alma”. A palavra psicologia está impregnada deste significado original que se
assemelha ao do senso-comum.
125
O emprego da expressão psicologia como termo científico, com o sentido de estudo
sistemático do comportamento, incluindo os fenômenos psíquicos e a conduta, foi feito pela
primeira vez por RUDOLF GOECKEL, em 1590. Após, foi usado por CASMANN,
em 1594, e por CHRISTIAN WOLFF, em 1532 e 1534. KANT voltou a utilizar a
expressão psicologia, com o mesmo significado, no final do século XVIII; e, desde
então, seu emprego se generalizou.
Atualmente, o vocábulo psicologia costuma ser usado com quatro significações
diferentes:
1 - no vocabulário quotidiano, como é utilizado pelas pessoas em geral em seu
dia-a-dia, tem o sentido de manifestação subjetiva do comportamento;
2 - pode ser empregado o termo como designação de uma profissão dos psicólogos<D>,
o que-fazer e a corporação dos profissionais psicólogos;
3 - como ciência, a Psicologia-ciência, ramo da atividade científica que estuda do
comportamento<D>, buscando as leis que regem as manifestações subjetivas (os
fenômenos psíquicos) e objetivas (a conduta); e, finalmente,
4 - estudo científico da conduta (restringindo-se às manifestações objetivas).
Cada um destes significados se refere a um sentido inteiramente diverso para a
palavra psicologia,e estes sentidos não devem ser confundidos. Porque, quando
estes significados são confundidos, o que acontece freqüentemente, isso dá
margem a muito desentendimento desnecessário e ocioso. Psicologia, no sentido
em que o vocábulo é utilizado no dia-a-dia, como mundo subjetivo, não suscita
explicação maior; refere-se às diversas expressões, aos diferentes conteúdos e à
dinâmica da vida subjetiva; constituindo-se de manifestações naturais e
aprendidas.
Mesmo aprioristicamente, qualquer pessoa, com alguma instrução, não tem
dificuldade para distinguir fenômenos psicológicos, como as sensações, os
126
sonhos, as recordações, dos demais aspectos da personalidade, do organismo, da
vida ou da natureza. O campo da atuação profissional dos psicólogos está definido
em lei, podendo seu âmbito diferir mais ou menos na legislação de cada país,
embora se saiba que utilizar a mesma palavra para coisas distintas, a profissão e
a ciência, dá margem a muita ambigüidade e confusão desnecessárias. No Brasil,
a legislação faculta aos profissionais da psicologia atuar privilegiadamente, tendo
como objeto as perturbações do desenvolvimento e ou do ajustamento, através da
utilização de meios e técnicas psicológicas. Mas não lhes atribui, nem lhes poderia
atribuir o monopólio da psicologia-ciência, como não atribui aos que se graduam
em matemática o monopólio da aritmética, da álgebra, da geometria.
No que diz respeito à Psicologia-ciência, estabelecer claramente a circunscrição
de seu objeto não é tão simples por diversas razões: a conotação ideológica
implícita, sua pequena tradição como disciplina científica (pouco mais de um
século), a herança do longo passado especulativo-supersticioso e subjetivista.
Como se define a Psicologia como estudo científico do comportamento, adiante
busca-se estudar os limites do objeto da Psicologia-ciência, iniciando-se pela
delimitação dos elementos descritivos contidos no conceito de comportamento.
Independente das denominações que assumam, existe duas abordagens
filosóficas opostas para encarar o estudo da psicologia: uma abordagem idealista-
subjetivista e uma abordagem materialista.
As abordagens idealistas da psicologia resultaram nas psicologias dualistas
chamadas genericamente mentalistas, caracterizadas por considerarem a mente
como algo separado do corpo, da estrutura somática do organismo. A psicologia
mentalista se resume a promover uma descrição dos fenômenos psíquicos e dos
estados anímicos, às vezes, buvcando alguma eventual relação com as condições
somáticas.
Por sua vez, as abordagens filosóficas naturalistas (ou materialistas) da psicologia
apresentou duas tendências principais: uma mecanicista (positivista, condutista ou
127
behavourista e neo-behavourista) e outra dinâmica ou dialética (na qual se situa a
psicobiologia). A psicologia comportamental, behavourista ou condutista já
representou um esfôrço de cientifização; tem como objetivo promover a descrição
e a predição de condutas observáveis. Num segundo momento da evolução da
abordagem materialista, a psicobiologia e a psicologia dialética representaram um
avanço em relação ao condutismo positivista, pois pretendem descrever, explicar
e prever (por meio da descoberta das leis específicas que regem os
comportamentos).
Enquanto as psicologias mentalistas adotam uma metodologia introspectiva e
subjetivista, utilizando conceitos não científicos porque se referem a coisas
inobserváveis (tais como alma, super-ego, inconsciente), as psicologias
naturalistas se atêm a uma gnosiologia realista e lida com os elementos
constatáveis sensorialmente na realidade (coisas reais). O ponto mais elevedo da
gnosiologia realista consiste em explicar os fenômenos estudados, como todod os
outros fenômenos naturais, por meio da descoberta das leis a que estiverem
submetidos.
Adiante, quando se tratar das relações entre a vida subjetiva e os fenômenos
objetivos, este tema deverá ser retomado.
Em resumo: do ponto de vista ontológico, existem três grandes grupos de escolas
de psicologia: as mentalistas (da psicologia clássica e psicoanálise), as
condutistas (e neo-condutistas) e as psicobiologistas que correspondem a três
maneiras basicamente diferentes de encarar o objeto da psicologia.
Uma apreciação muito importante sobre a ontologia da psicologia é feita no livro
de Mário Bunge sobre Epistemologia que deve ser leitura obrigatória por todos
que se interessam por este assunto.
128
Características Gerais dos Comportamentos Humanos
@FIRSTPAR = Os comportamentos humanos podem ser caracterizados por uma
série de atributos essenciais que permitem sua delimitação científica e, com isto, o
cumprimento do requisito de especificidade da ciência.
Algumas características são comuns a todas as manifestações comportamentais
humanas, sejam patológicas ou não; por isto, podem ser empregadas para
circunscrever os elementos tidos como essenciais deste conceito desde que se
lhe reconheçam ser essenciais.
Em dois trabalhos anteriores do autor (Fundamentos de Psicopatologia<D>, páginas 9 a
13 e também O Diagnóstico Psiquiátrico<D>, páginas 97 a 101), estas características
são propostas como passo inicial e fundamental para o estudo da Psicologia e da
Psicopatologia porque lhe parece muito difícil (senão impossível) estudar uma
coisa sem conhecer sua identidade ontológica.
As características mais gerais essenciais do comportamento humano podem ser
resumidas nas seguintes assertivas:
@DEF2 = a) Os fenômenos psíquicos (ou os fenômenos do comportamento) se
manifestam em uma pessoa real.
A psicologia estuda o comportamento real de pessoas reais, vivendo sua
existência no mundo real e em interação com seu ambiente físico e social. O
estudo “psicológico”de personagens de qualquer manifestação artística, de mitos ou
de lendas, é sempre inconclusivo e insuficiente como material de raciocínio
científico porque não atendem a esta exigência mínima para configurar o objeto de
investigação psicológica ou psicopatológica. Os personagens apenas ilustram
129
concepções de seus autores sobre o homem e sua existência no mundo, não tem
vida real ou existência objetiva.
Quando se diz que um personagem de literatura (ou de qualquer outro tipo de
manifestação artística) apresenta uma patologia, isto não significa que se trata de
uma pessoa real com uma patologia real também, mas sua representação.
O valioso acervo cultural e artístico representado pelos mitos, pelas lendas e pelas
obras de arte, tem servido como elemento inspirador de investigações e achados
significativos na Psicologia e em outras ciências mas, estes, não devem ser
confundidos com o conhecimento psicológico cientificamente elaborado, podendo,
no máximo, ilustrá-lo. Seus personagens não podem ser encarados como se
fossem pessoas e, por isto, examinados e diagnosticados.
b) A conduta é a dimensão o objetiva da atividade psicológica (da subjetividade) e
ambas se completam no comportamento.
A atividade psíquica, embora se constitua de manifestações subjetivas, é
condicionada pela existência objetiva e se expressa objetivamente na conduta. A
conduta é um fenômeno objetivo. Porque, tanto os conteúdos interiores, quanto
grande parte das ações independem do conhecimento, da vontade ou de qualquer
outro atributo subjetivo. Os comportamentos integram em uma unidade dialética
os fatores subjetivos (o psiquismo) e objetivos (a conduta).
Em sentido estrito, tal como esta sendo usado aqui, se denomina atividade ao
conjunto das condutas conscientes e voluntárias; e psiquismo a todas as
manifestações subjetivas do comportamento, entendido como unidade das
dimensöes objetivas e subjetivas da existência. Conduta e psiquismo, no entanto,
não são fenômenos isolados ou isoláveis. Embora não sendo idênticos, são
complementares e constituem um todo orgânico, separável apenas pela
abstração.
130
A capacidade de avaliar e redirecionar o comportamento ultrapassa os limites do
fenômeno fisiológico e a individualidade não pode ser reduzida a uma fração do
coletivo. Por isto, a Psicologia não pode ser reduzida à Fisiologia nem à
Sociologia, embora os fatores fisiológicos e sociais sejam os dois fundamentos
essenciais e necessários de toda manifestação psíquica.
O grau de consciência de uma pessoa é variável e depende das relações que se
estabelecem em sua atividade, pois, a consciência é premissa e resultado da
atividade.
Por isto, uma conduta só se torna atividade (conduta deliberada e consciente) ao
determinar e sofrer influência do auto-conhecimento. A conduta humana está
vinculada ao grau de consciência que a determina. Ao exercer sua atividade, o
homem desenvolve sua consciência, o que lhe permite aperfeiçoar sua conduta. O
desenvolvimento do psiquismo e da atividade se influenciam mutua e
constantemente.
O desenvolvimento psíquico determina transformação da conduta que não se
resume apenas a seus aspectos exteriores. Ao se transformarem, psiquismo e
conduta, possibilita-se, ao menos em tese, a transformação da pessoa.
Este processo de desenvolvimento do psiquismo pode ser entendido em termos
filogenéticos (o desenvolvimento da espécie) e ontogenéticos (do indivíduo), como
resultado de um processo biológico-individual ou social.
Considerando estas vertentes e procurando fugir a todas as falsas dicotomias
contidas nestes pontos de vista parciais, a conduta humana deve ser entendida
como radicada em dois pilares inseparáveis: uma matriz biológica em relação com
a atmosfera social. Por isto, o biológico, o social e o psicológico (resultantes deles)
são indispensáveis para entender a realidade humana.
A psicologia científica tem por superada a tese que pretende o psiquismo humano
reduzido a função fisiológica ou unicamente determinado por estímulos internos
131
(somáticos ou psíquicos). Igualmente, também se deve recusar as hipóteses que
pretendem o comportamento humano como resultante unicamente de
condicionamentos sociais. Pois, com esta suposição se erige a doutrina do
homem passivo e plasmável em função de condicionamentos advindos de
estímulos externos. Ao contrário destas posições, a Psicologia científica estuda o
ser humano em sua inteireza e o psiquismo em seu conjunto. Fundamentam-se no
reconhecimento da unidade dos fatores biológicos e sociais, da consciência e da
conduta, do psíquico e do somático, do subjetivo e do objetivo, do indivíduo e do
ambiente, da pessoa e da sociedade.
Objetividade e Objetivismo, Subjetividade e Subjetivismo em Psicologia
e Psicopatologia.
Quando se menciona um fato objetivo a referência diz respeito a algo que se
passa no espaço exterior em relação à consciência dessa pessoa. Quando se
refere uma experiência subjetiva, pretende-se falar sobre o que se processa na
consciência da pessoa: uma emoção, uma fantasia, uma lembrança.
A psicologia clássica era essencialmente subjetivista, subestimando a
objetividade como instrumento e requisito essencial para o conhecimento
científico. No sèculo XIX, com o desenvolvimento das ciências naturais, surgiu
uma corrente do pensamento - o positivismo - que se constituiu na mais vigorosa
antagonista do subjetivismo. O enfoque positivista negava qualquer importância à
introspecção. Ao recusar qualquer valor às manifestações subjetivas, enquanto
instrumentos de conhecimento científico, limitou o alcance de suas possibilidades
de conhecer e caiu em um desvio metodológico que pode ser denominado de
objetivista.
Diversas correntes do conhecimento psicológico e psicopatológico se pretendem
objetivas porque dão primazia à objetividade. E se fundamentam na precedência
tempora do objetivo e no fato do subjetivo se originar no objetivo. No entanto,
quando minimizam ou negam os procedimentos subjetivos, passam a ser
132
objetivistas. A melhor doutrina psicológica é aquela que defende que o psiquismo
não se destina a separar o interior do exterior, o mundo interno do externo, nem se
constitui em realidade independente da realidade interna e externa; mas que se
destina, sobretudo, a estabelecer a ligação da realidade interna com a externa, em
permanente interação.
Entende-se por objetividade, como exigência da ciência que se concretiza no
recurso de estudar o mundo e as coisas que nele existem a partir de sua realidade
concreta, objetiva, em tudo independente do observador. A este processo de
investigação, opõe-se formalmente a subjetividade que consiste em valorizar o
reflexo do fato estudado no interior de quem o estuda.
Denomina-se objetivismo ao emprego do processo objetivo como única e
exclusiva fonte de conhecimento. Em filosofia, Kant é um exemplo de objetivismo,
como oposição ao subjetivismo vigente à sua época. Em psicologia, os exemplos
mais marcados de objetivismo são as doutrinas positivistas e condutistas.
O subjetivismo consiste em valorizar unicamente o conteúdo da consciência do
observador, de seus processamentos internos, de seus fenômenos interiores para
buscar o conhecimento do fato psicológico. Um grande número de autores e
correntes psicológicas atuais e antigas (a psicologia clássica aristotélica, a
psicoanálise freudiana) exemplificam esta tendência.
O subjetivismo é historicamente decorrente do dualismo filosófico e da crença de
que os fenômenos psíquicos seriam a “sobrenaturais”. O objetivismo se originou,
fundamentalmente, de uma reação mecanicista às correntes subjetivistas.
A psicologia atual, livre dos preconceitos dualistas e liberada dos preconceitos
mecanicistas, fundada em uma concepção monista do homem e do universo,
tende a valorizar simultaneamente o objetivo e o subjetivo, enquanto instrumentos
133
de conhecimento, entendendo neles dois dados complementares e apenas
aparentemente opostos de uma mesma unidade dialética.
A tese do homem integral, consubstanciada na convicção da realidade
biopsícossocial do ser humano, que lastreia todas as doutrinas médicas
modernas, se concretiza na compreensão da indissolubilidade dos fatores
biológicos, psicológicos e sociais na unidade do ser humano sadio ou enfermo.
= c) O comportamento, através do psiquismo, promove a ligação entre o objetivo
e o subjetivo do individual e do social.
Na existência humana há traços e elementos individuais, mas a personalidade
guarda uma interação tão íntima com a sociedade que FRANCISCO C.
FONTANELLA insiste na impossibilidade de determinar se ela é uma instância
individual socialmente determinada ou uma instância social, determinada
individualmente. A personalidade se estrutura na relação do indivíduo com o
grupo.
No nível macro-social (onde predominam as relações formais e institucionalizadas)
destaca-se a ação dos fatores históricos, sócio- econômicos, sócio-culturais e
sócio-políticos; no nível micro-social (mudo do relacionamento inter-subjetivo e
afetivo), deve-se ressaltar a influência da tonalidade afetiva das relações infantis,
principalmente com os pais e irmãos. Toda a atividade psíquica está em íntima
vinculação com o organismo, por um lado; e, por outro, com as condições de vida
da pessoa. O psíquico pode ser considerado como resultado da interação do
ambiental-social no biológico-individual. O desenvolvimento e a elaboração da
subjetividade resultam, essencialmente, do funcionamento orgânico e da
experiência das relações da pessoa com o mundo. A interação dialética da
subjetividade e do mundo objetivo é característica essencial do psiquismo e deve
ter valor de princípio.
A compreensão integral do homem implica que ele seja entendido como
totalidade, uma totalidade simultaneamente, integrante da natureza e da 134
sociedade; tanto do ponto-de-vista da unidade inter-complementar dos fatores
subjetivos e objetivos, quanto da inseparabilidade dos fatores biológicos,
psicológicos e sociais na unidade do ser humano sadio ou enfermo.
O entendimento do homem como ser essencialmente bio-psico-social pode se dar
de duas maneira: uma, mecânica, que implica em uma superposição destes três
fatores, e outra, dialética, que supõe sua interação dinâmica em um sistema, o
sistema pessoal, simultaneamente sub-sistema elementar de um sistema natural e
de um sistema social.
= d) Os processos fisiológicos de excitação e inibição, enquanto fenômenos
nervosos mais elementares e ambos entendidos como processos funcionais
ativos, são o fundamento material da atividade psíquica.
= e) O comportamento, sobretudo através do psiquismo, traduz a relação dinâmica
entre a consciência e a inconsciência.
Grande parte dos conteúdos psíquicos não podem ser evocados, inexistindo para
a consciência mas influindo no comportamento. Os conteúdos evocáveis são denominados conscientes; os inevocáveis, inconscientes.
Face à grande confusão, ambigüidade e imprecisão que acontecem muitas vezes
no manejo destas palavras e de seus significados, mas também por causa de
seus significados como categorias psicológicas e psicopatológicas, importa
distinguir nestas significações as semelhanças e diferenças que existem entre os
termos consciente e inconsciente, consciência e inconsciência.
Na literatura da psicologia e da psicopatologia as palavras consciente e inconsciente
são usadas como adjetivos ou como substantivos. Seu sentido como substantivo
(o consciente, o inconsciente) refere um nível funcional capaz ou incapaz de
promover a evocação de certos conteúdos subjetivos, como se mencionou acima.
Contudo, o emprego destas palavras como substantivos induz ao falso
entendimento de um inconsciente “topológico”, um “lugar” na mente, onde 135
estariam “arquivados”, “armazenados” os elementos (idéias, lembranças, desejos,
tendências) inevocáveis. Por isto, talvez seja melhor utilizar a palavra inconsciência
(ou subconsciência) como substantivo que designa os processos e fenômenos
psíquicos inatualizáveis na consciência depois de terem sido conscientes; pois,
estas expressões são mais apropriadas para dar a noção de estágio funcional,
nível operacional.
@DEF2 = f) O comportamento, através dos processos psíquicos, enfeixa a
unidade entre o mediato e o imediato.
O ser humano se permite ter sua conduta tanto dirigida pelo passado, quanto para
o futuro, às vezes bem distante. A atividade psíquica, pela possibilidade de
substituir a experiência, promove a unidade dialética da temporalidade.
= g) Psiquismo e organismo constituem uma unidade que configura a totalidade do
ser humano.
O organismo (no seu sentido mais amplo do todo pessoal) resulta da unidade e
da identidade do psíquico e do somático, do instintivo e do adquirido.
Pode-se definir o instinto como energia interna que propulsiona a conduta
organizada e independente de aprendizado ou reflexão. Quase todos concordam
que o instinto tem uma matriz biológica herdada. Os instintos são formas de
exteriorização das necessidades naturais.
No ser humano, além de suas necessidades primárias (denominadas orgânicas,
biológicas ou naturais), no curso de sua evolução filogenética acrescentaram-se
diversas outras, chamadas superiores ou psicossociais que, juntamente com
outros atributos tidos como tipicamente humanos, caracterizam a condição
humana como uma etapa do processo evolutivo da vida. Pode-se afirmar que os
homens e os animais apresentam necessidades biológicas; apenas os seres
humanos, no entanto, exteriorizam necessidades primárias junto com outras,
decorrentes de sua prática social.
136
Até aqui, não há divergências significativas. A grande controvérsia deste tema
surge da seguinte indagação: “as necessidades primárias humanas seriam
idênticas em tudo (em sua natureza, sua essência e seu conteúdo, além de sua
forma e sua aparência) às necessidades animais ?
É característico que os autores de formação dualista respondam afirmativamente
a esta pergunta.
Os que julgam que algum atributo subjetivo isolado (como inteligência, linguagem,
capacidade de amar, trabalhar) é aquilo que define o ser humano e o distingue do
restante da série animal, tendem a aceitar que as necessidades primárias
humanas são essencialmente idênticas às necessidades animais. Aí se originaram
os conceitos de animal racional, animal que ama, animal que trabalha ou que fala
e outros semelhantes, para designar os seres humanos.
Os cientistas que cultivam a concepção integral do homem, contudo, recusam esta
resposta. Aqqui, a melhor doutrina parece ser aquela que nega tais super-
simplificações conceituais e afirma que não se pode entender o desenvolvimento
humano como crescimento mineral que se desse por justaposição. Menos ainda
se pode sustentar que tal justaposição seja devida a uma única qualidade isolada,
por mais importante que ela seja, como a linguagem, os sentimentos, a
inteligência, o trabalho. No curso da evolução, todo o organismo foi se
transformando e o ser humano não pode ser entendido como um macaco que se
diferencia dos demais apenas pelo aparecimento ou desenvolviemnto de um ou
alguns atributos, mas como um ser qualitativamente diferente, um novo ser.
O antropóide que originou a humanidade deu vida a uma nova espécie, näo
apenas diversa de si mas qualitativamente diferente. O surgimento da consciência
nos seres humanos é a marca desta transformação qualitativa, embora não seja -
ela própria - a transformação.
A convicção de que o psiquismo humano é a expressão mais elevada atividade da
matéria, constitui a base fundamental daquilo que se convencionou chamar de 137
humanismo que constitui uma das mais respeitáveis tendências doutrinárias
para explicar o homem e sua atividade.
Deste enfoque humanista, não se pode considerar que as condutas instintivas dos
seres humanos sejam, em sua essência, completamente idênticas às condutas
animais.
A consciência humana e as necessidades superiores (originadas ambas) na
experiência social, determinam comportamentos instintivos humanos diferenciados
em sua forma e em seu conteúdo das condutas instintivas dos animais (nos quais,
o adestramento ou outra forma de aprendizagem pode mudar apenas a forma).
No entanto, pode acontecer que a consciência ética e social de um indivíduo
qualquer se ache hipodesenvolvida. Tal condição de transtorno do
desenvolvimento psíquico vai caracterizar um estado deficitário que pode ser
global (quando todo o psiquismo for mais ou menos atingido), ou, parcial, quando
estiverem comprometidos unicamente os processos psíquicos superiores (a
afetividade e a vontade), permanecendo idene o restante do psiquismo.
Além das condições patológicas de caráter biológico nas quais o estado deficitário,
global ou parcial, possa se originar como uma perturbação biológena, podem ser
identificadas estados de desenvolvimentos patológicos da personalidade
decorrentes das condições psico-sociais, como aquelas originadas na alienação
social ou de perturbações afetivas.
Porque as deformações do sistema de relações sociais, tanto no nível macro-
social (socio-econômico, sócio-histórico, sócio-político, sócio-cultural), quanto no
nível micro-social (como a família nuclear ou outros pequenos grupos,
geralmente pares, cujas relações são determinadas pela afetividade) ou de orutros
níveis intermediários da organização socia (como a família extensa, as
comunidades, as associações, as instituições) são todas potencialmente capazes
de perturbar ou provocar interrupção ou atraso no desenvolvimento do psiquismo.
138
Tais estados deficitários predominantemente psico-sociais adquiridos, desde que
sejam globais, denominam-se pseudo-oligofrenias, quando parciais,
restringindo-se à afetividade e ou à vontade, podem ser chamados de pseudo-
psicopatias.
= h) O comportamento humano integra e sintetiza os aspectos individuais e
pessoais da existência.
A psicologia atual está fortemente vincada por duas opiniões opostas acerca do
homem: o indivíduo ou a pessoa. Para muitos estes dois conceitos podem parecer
idênticos, mas não são, as noções de indivíduo e de pessoa traduzem dois tipos
de significados essencialmente diferentes apesar de parecerem próximos.
Indivíduo é um ser que se distingue dos demais por ter vida separada por se
diferenciar dos demais por uma ou algumas características que o singularizam; a
individualidade é o que o diferencia um ser dos outros da mesma espécie;
caracteriza a singularidade e a totalidade de um ser. Uma determinada formiga é
um indivíduo no formigueiro, por exemplo. Pode-se até empregar o termo com
sentido amplo para designar objetos que se caracterizem por sua indivisibilidade
(um planeta no sistema solar, uma galáxia no universo, uma laranja na laranjeira.
Pessoa é a entidade sócio-cultural humana. A maior amplitude que o termo possui
é a de um coletivo humano bem determinado e legalmente individualizado, a
pessoa jurídica.
Numerosos enfoques psicológicos e filosóficos tendem a subestimar a
originalidade e a dignidade da condição humana, reduzindo o ser humano a uma
espécie ainda que superior de maquinismo ou massa plasmável, passiva e
moldável sob a influência de estímulos internos ou externos.
Historicamente, esta concepção se originou da oposição profana às doutrinas
religiosas criacionistas, idealistas em sua gênese e em seus desdobramentos.
Fortemente vincada de preconceitos mágicos, a explicação criacionista se
139
fundamenta na convicção em uma natureza superior do homem na crença em um
substrato anímico, sobrenatural, imaterial que o diferenciaria dos demais seres
vivos e que seria superior unicamente por causa de sua vinculação à divindade.
Por outro lado, nos dias atuais, a explicação mecânica e mecanicista do homem,
característica do condutismo positivista, que finda por ser rebaixadora de sua
dignidade, decorre de um certo tipo de organização social que se fundamenta na
exploração e conseqüente reificação (“coisificação”, de res, rei, do latim, coisa) das
pessoas e do desprezo pelos atributos humanos, sobretudo os éticos.
Do ponto de vista monista, é possível superar a contradição existente entre as
concepções idealista e mecanicista, quando se considera que os conceitos de
indivíduo e de pessoa não se excluem, sequer se opõem. A concepção de pessoa
transcende o conceito de indivíduo. Este, considerado apenas como uma parte do
todo, a sociedade, a tribo, a manada, o cardume; aquele, mesmo sem abstrair sua
condição de ser social, detentor de qualidade que, como se viu anteriormente, o
identificam, personalizam e dignificam...
Como já foi anteriormente referido, o surgimento da condição humana, resultante
da evolução biológica e social, ao conduzir o homem a tomar consciência de si
mesmo, da humanidade e da natureza e a entender as relações que se
estabeleciam entre ele e os demais, possibilitou que seja considerado mais, muito
mais que um mecanismo de elevada complexidade, garante aos seres humanos
uma condição de absoluta originalidade e dignidade face aos demais seres vivos.
Os fatores individuais e pessoais hão de ser considerados como estratos que
traduzem níveis diferentes de organização existencial e evolutiva, nem sempre
distinguíveis na unidade do humano, notando-se neles um elemento diferencial
claramente qualitativo.
= i) A adaptabilidade é um recurso auto-regulador geral do organismo, inclusive
do de suas manifestações subjetivas e de sua conduta.
140
A adaptabilidade é uma característica dos sistemas vivos, mais que dos
comportamentos de seres evoluídos e complexos. O organismo humano, incluindo
suas instâncias somática, cerebral e psicológica, pode modificar automaticamente
suas condições de funcionamento para se adaptar às exigências variáveis do meio
interno ou externo. A notável capacidade adaptativa do organismo, em particular a
plasticidade e adaptabilidade da dinâmica psíquica, provavelmente, talvez seja
uma das condições mais importantes para promover o seu desenvolvimento e a
sua evolução.
A adaptabilidade, enquanto atributo universal da matéria viva, objetiva manter o
equilíbrio interno frente às mudanças de seus meios interno e externo; neste
sentido a adaptabilidade é o recurso natural voltado para intermediar as relações
entre o organismo e o meio físico. Mais tarde, com a evolução, este processo se
modificou para atender novas exigências humanas e sociais.
O equilíbrio dinâmico que é o objetivo e o resultado desta capacidade que têm os
sistemas vivos de se modificarem, constante e dinamicamente, denomina-se
homeostase. Homeostase é o equilíbrio dinâmico que a matéria viva mantém em seu
interior e em suas relações com o meio físico. Noutro plano, diversos
comportamentos humanos estão voltados para garantir a homeostase entre a
pessoa e o sistema social do qual é um dos componentes.
A integridade dos processos e mecanismo da adaptabilidade é uma das
características mais importantes dos organismos sadios e sua ausência ou
perturbação, se constituem em preciosos indicadores de patologia. Por isto, não
ser referido no conceito de saúde patrocinado pela OMS, é um dos motivos mais
pertinentes das críticas que lhe são dirigidas.
= i) O comportamento humano integra a unidade do intencional (voluntário) e do
inintencional (involuntário).
141
Os comportamentos humanos podem ser voluntários e involuntários. Os voluntários
são características humanas importantes; pois talvez revelem o ponto mais alto de
seu desenvolvimento. A concretização dos projetos voluntários. No entanto, nem
toda conduta se constitui de atos voluntários ou resulta da intencionalidade
consciente reconhecível. Motivações inconscientes, atos instintivos, condutas
automatizadas ou propulsadas por estímulos inconscientes são ocorrências
comuns.
Embora não haja dúvidas acerca da existência desta dupla dimensão da
existência humana, a voluntária e a involuntária, ainda não está bem estabelecida
qual seria a relação entre os comportamentos conscientes e inconscientes,
voluntários e involuntários.
A existência interativa destes comportamentos deve ser considerada quando se
promove o estudo da psicologia. Por outro lado, sabe-se que os comportamentos
voluntários, em geral, demandam aprendizagem e suas perturbações tanto podem
refletir transtornos do processo de ensino-aprendizagem, quanto podem indicar
alterações estruturais dos componentes orgânicos sobre os quais a aprendizagem
se processa.
Reducionismos, Psicologia e Psiquiatria
Provavelmente, o mecanismo ideológico mais comum para distorcer o significado
do entendimento do objeto da psicologia e da psiquiatria seja o reducionismo que
pode ser definido como um abuso da redução que é um instrumento cognitivo
valioso e muito usado em ciência ou, mesmo, no senso comum. Com base neste
mecanismo ideológico reducionista, muitas reduções são criadas acerca da
subjetividade e sua relação com o mundo objetivo.
A redução é o procedimento lógico de reduzir o todo aos seus elementos mais
simples é muito empregado em matemática, estatística; é um recurso do
pensamento lógico que consiste em dar a alguns dados ou elementos uma forma
142
cômoda para facilitar a solução do problema. O desvio-padrão da média, por
exemplo, é uma forma de redução.
O abuso da redução como procedimento cognitivo, motivado quase sempre por
interesses ideológicos, se denomina reducionismo.
Sempre que se subdivide um todo complexo em suas expressões mais simples
(seus componentes mais elementares), está se praticando uma análise; quando
um dos elementos identificados na análise pode, de alguma maneira, representar
a totalidade analisada, isto se denomina redução. Contudo, não se deve confundir
a fragmentação (ou qualquer divisão da totalidade com análise; nem o emprego de
qualquer parte para representar o todo como redução.
Enquanto a redução é uma operação lógica, o reducionismo é uma contrafacção
que pode se originar na ignorância ou em motivações psicológicas ou ideológicas.
Em inglês, o termo reducionism permite as duas acepções, por isto, na maior parte
das vezes que se emprega o termo reducionism, a tradução deve ser redução.
O reducionismo é a absolutização da redução ou o exagero de seu emprego como
instrumento do conhecimento. Consistindo a redução na simplificação mais ou
menos completa do todo complexo e superiormente organizado, a algum de seus
componentes ou fenômenos elementares. De certa maneira, o reducionismo é
uma perversão da redução, enquanto instrumento adequado de conhecer.
É muito comum que os reducionismos sejam negados na formulação teórica do
problema ou de uma atividade cognitiva e, simultaneamente praticados no mesmo
contexto. É muito raro que um reducionista se diga reducionista. Não porque
sejam todos mentirosos, mas porque o reducionismo ideológico não é reconhecido
como tal por quem o pratica.
Existe um reducionismo que pode ser denominado neurótico, mas este foge às
intenções deste trabalho.
143
O exercício da redução foi um instrumento lógico bastante adequado que permitiu
avanços científicos consideráveis no campo da física, da química e da biologia,
mas os reducionismos talvez sejam os instrumentos ideológicos mais significativos
dentre os que dificultam o desenvolvimento teórico da psicopatologia, da
psicologia e da psiquiatria, na medida em que são enfoques deformadores do
estudo científico através da deformação havida no próprio objeto da psicologia, o
que se reflete, naturalmente, no objeto da psicopatologia.
Pode-se observar que qualquer uma das características do comportamento
humano pode ser ampliada exageradamente com a finalidade de ser empregado
para substituir a totalidade.
Em geral, a característica usada no procedimento reducionista representa algum
interesse prático ou ideológico de quem o elabora.
Os reducionismos são, já há bastante tempo, alguns dos grandes problemas
ontológicos e gnosiológicos que afetam o conhecimento da psicologia e da
psicopatologia porque, em geral, degradam a coisa reduzida a um de seus
atributos que é exclusivizado (ou, no máximo, em alguns deles), fazendo perder a
noção de sua totalidade e unidade, com isto, prejudicando a seu conhecimento.
Alguns dos reducionismos mais importantes na psicologia e na psiquiatria, que
ignoram a grande complexidade do seu objeto e buscam reduzi-lo a apenas uma
ou algumas de suas características, são:
objetivismo - reducionismo metodológico que exclui, a priori, o estudo da
atividade subjetiva na determinação dos comportamentos; dá importância
exclusiva aos fatores objetivos da realidade;
subjetivismo - reducionismo metodológico que minimiza ou nega influência aos
fatores objetivos no psiquismo, bastando-se da produção subjetiva;
144
organicismo - (também chamado bio-logicismo, fisicalismo ou fisiologicismo) -
que explica a atividade psíquica unicamente como resultante do funcionamento
orgânico;
sociologicismo - pretensão teórica de entender o fato psíquico somente a partir
da experiência social, das interações sociais, fazendo caso omisso da fisiologia e
da originalidade da dinâmica psíquica, ou subestimando-as; o reducionismo
culturalista ou o economicista são ainda mais restritos; algumas variedades do
sociologismo são o culturalismo, o economicismo e o historicismo (na
dependência do elemento da interação social que é supervalorado ou
exclusivizado);
psicologicismo - reducionismo resultante da tentativa de absolutizar a vertente
psicológica da existência humana, pretendendo que a atividade psíquica seja
desvinculada do restante do organismo ou da experiência social; existem duas
vertentes principais do psicologicismo, o conscientismo e o inconscientismo;
conscientismo - negação ou minimização do significado dos processos ou
motivações inconscientes;
inconscientismo - que sustenta a preponderância, mais ou menos absoluta, dos
conteúdos e motivos inconscientes;
voluntarismo - superestimação absoluta da atividade voluntária;
involuntarismo - reducionismo que minimiza e subestima o caráter consciente-
voluntário da atividade humana, considerando o homem como objeto passivo,
mais ou menos determinado exclusivamente por estímulos internos ou externos.
@MINOR HEADING = Cérebro e Mente
@FIRSTPAR = A questão referente às relações entre o cérebro e a mente são
essenciais no estudo da ontologia médica e, especialmente, da ontologia
psiquiátrica.
145
O cérebro (ou telencéfalo) é a porção mais volumosa e filogenéticamente mais
diferenciada do encéfalo.
O encéfalo é o órgão que rege o corpo e a mente. Para isto, necessita estar
permanentemente em contacto com o que se passa dentro e fora do corpo, mas
não se limita e refletir estes dados, processa mais ou menos flexível e
criativamente estas informações a serviço de suas funções. Realiza estas funções
através de uma rede integrada composta de milhões de neurônios interligados.
Os neurônios são as células nervosas e consistem de um elemento receptor, um
emissor e um centro processador de estímulos nervosos.
A transmissão de uma mensagem, pelos neurônios, integrados no tecido nervoso,
se dá por meio de um complexo sistema chamado sináptico. As sinapses são
estruturas anatomo-funcionais que pôem os neurônios em contacto com outros
através do intercambio de mensagens neuroquímicas.
A palavra mente está empregada aqui como sentido de espírito<D>, dimensão
subjetiva do comportamento, resultando da atividade cerebral, principalmente da
chamada atividade nervosa superior e das relações do her humano com o meio
social. A relações entre o corpo e a mente suscitam muita discordância entre os
estudiosos, podendo ser encontradas posições materialistas e idealistas, dualista
e monistas, como nas relações psicosomáticas que são vistas a seguir.
Além deste comprometimento idealista original de caráter histórico, palavras como
super-eg, mente, psique e psiquismo são considerados conceitos não científicos por
serem inobserváveis. Contudo, BUNGEparece ter bastante razão quando afirma
que, afastar simplesmente estes conceitos por não estarem amparados no
paradigma empirista das ciências naturais que são cultivados hoje em nossa
atividade científica, revelam mais preguiça e rotineirismo que espírito
científico.<$FBunge, M., Epistemologia, Ed. T.A.Queiroz, S.Paulo, 1987, p. 121.>
146
O mentalismo representa um momento superado na história da evolução do
pensamento científico sobre a psicologia. Contudo, não se pode omitir a
contribuição do estudo da mente na Psicologia..
Mente e Corpo
O problema das relações entre o psíquico e o somático é um dos aspectos mais
interessantes, importantes, controvertidos e ideologizados da psicologia científica.
E, também, uma das matérias controvertidas acerca do objeto da psicologia que
mais se refletem na Medicina e na psicopatologia. Especificamente, em Medicina
e em psiquiatria a maneira pela qual são entendidas as relações entre o corpo e a
mente são preciosos indicadores das concepções científicas e filosóficas mais
amplas que antecedem e presidem este entendimento.
Em diferentes momentos da história da ciência, diferentes correntes da psicologia
têm proposto soluções diversas para este problema. Tal diversidade de opinião
não indica apenas carência de fatos concretos e indiscutíveis; também reflete a
divergência entre concepções filosóficas e interesses ideológico-sociais
divergentes.
Mais tarde, com o desenvolvimento do saber, surgiu uma concepção científico-
natural do mundo e foi neste momento que nasceu aquilo que hoje se chama
ciência<D>. Desde sua origem, as concepções científicas mantém uma insuperável
relação de antagonismo com a visão sobrenatural do mundo.
Com base neste antagonismo, se situam duas concepções filosóficas antagônicas
sobre o homem e a natureza: o dualismo e o monismo. E o monismo possa ser
materialista ou idealista. Dualismo e monismo são tendências cognitivas tidas
como filosóficas porque abrangem tudo o que existe no mundo, todos os domínios
do conhecimento; razão pela qual, como se poderá ver logo adiante, existe um
dualismo e um monismo em psicologia, como existe um dualismo e um monismo
em física ou em outras áreas do saber.
147
Os físicos dualistas sustentam a separação essencial entre a matéria e a energia,
enquanto os monistas sustentam a unidade existente estas duas categorias de
fenômenos físicos. Pretende que matéria e energia constituam uma totalidade.
Entre os adeptos do grupo das correntes de opinião genericamente denominadas
de dualistas, sustenta-se, aberta ou veladamente, uma separação essencial que
existiria entre o objetivo e o subjetivo, entre o cérebro e a mente, entre o psíquico
e o somático, entre o comportamental e o corporal, entre a idéia e a matéria.
Quem defende o dualismo como pressuposto filosófico considera o apenas o
homem e tudo que existe no universo dividido em duas partes: uma, natural e
material e, outra, sobrenatural, imaterial ou ideal. Por causa desta correlação entre
oposição entre matéria e idéia, a corrente dualista que pretende o mundo divididos
em idéia e matéria, sustentando o predomínio das idéias, chama-se idealismo;
pretende que as coisas e objetos materiais se originaram de idéias.
Como não há distinção entre o dualismo filosófico e o dualismo científico, aqui se
identificam ambas as posições doutrinárias. São dualistas as tendências
psicológicas que consideram os fenômenos psíquicos e somáticos como essencial
mente diferentes; defende uma visão dicotomizada do homem, separa corpo e
alma, matéria e espírito, ação e pensamento, desejo e conduta. Afirmam a
diversidade essencial do objetivo e do subjetivo. Imaginam que os fenômenos
psíquicos e somáticos apenas coexistem, de alguma maneira, no ser humano.
Em contraposição há a corrente monista que afirma a unidade do universo, do
homem, do corpo e do psiquismo. Defende que os fenômenos objetivos e
subjetivos têm uma essência comum, embora possam apresentar características
aparentemente diversas.
Na ciência, por exemplo, o monismo sustenta que a energia é uma forma peculiar
da matéria; em psicologia, pretende que a matéria precedeu as idéias e as
originou. As idéias são uma das expressões de uma forma extremamente
organizada da matéria, a matéria viva. O monista não distingue entre o ideal e o 148
material na unidade do humano; embora, quando sustente a precedência da
matéria, chamar-se monismo materialista e ser denominado monismo idealista
quanto sustenta a prioridade do espiritual ou ideal.
O termo materialismo é empregado aqui para designar as doutrinas que defendem
a precedência da matéria sobre o pensamento e o termo idealismo, o contrário,
comunica a convicção da precedência das idéias sobre a matéria. O materialismo
sustenta a realidade do mundo e a precedência da matéria sobre o pensamento,
da objetividade sobre a subjetividade.
Como não há defensores para o monismo idealista no panorama da ciência atual,
monismo e materialismo se confundem como expressões são sinônimas ou se
emprega, como aqui, monismo como equivalente a materialismo monista, embora
os dois termos guardem alguma diferença, como se vê.
Existem duas teorias baseadas no dualismo que pretendem explicar as relações
entre o psíquico e o somático:
a) a teoria do paralelismo psicofísico e
b) a teoria da correlação psicofísica.
E que, com idêntica finalidade, existem outras duas doutrinas que pretendem
explicar as relações entre o psíquico e o somático baseadas no monismo:
a) a teoria fisiológica e
b) a teoria da correlação psicofísica.
É preciso conhecer ao menos o que significa cada uma destas teorias sobre a
interação psicossomática.
Teoria do paralelismo psicofísico. O adeptos da teoria do paralelismo psicofísico
pretendem que os fenômenos psíquicos e somáticos têm características
essencialmente distintas, desenvolvem-se independentemente um do outro e não
149
se influenciam mutuamente, embora, eventual e mais ou menos casualmente,
possa haver alguma variação concomitante nos dois níveis: no corpo e no
psiquismo. Enfim, esta doutrina sustenta que as estruturas somáticas e psíquicas
dos seres humanos coexistiriam lado a lado sem que mantivessem qualquer
relação mais importante, como duas linhas paralelas. A teoria do paralelismo é
característica do idealismo filosófico e sua metodologia dualista (sobrenaturalista
ou não).
Na teoria do paralelismo psicofísico, entende-se que os fenômenos psíquicos e
somáticos contidos na atividade cerebral e na atividade mental ocorreriam como
que lado a lado e atuariam mais ou menos simultaneamente na mesma pessoa,
mas como fenômenos isolados, podendo haver uma certa concomitância de suas
variações funcionais, sem que isto, contudo, indicasse qualquer correlação causal;
como duas linhas paralelas que caminham juntas sem se tocarem.
A possível influência que o corpo exercesse sobre o psiquismo seria sempre
desimportante e secundária, nunca decisiva. Corpo e psiquismo, cérebro e mente
existiriam separada e independentemente; as manifestações psíquicas se
desenvolveriam junto às somáticas, como a sombra acompanha o caminhante,
sem chegar a influir sobre ele. Como se a pessoa vivesse, simultaneamente, duas
vidas, uma orgânica e outra psíquica, uma natural e outra sobrenatural.
Teoria da correlação psicofísica. Presume que os fenômenos psíquicos e
somáticos têm essências diversas; mas ambos poderiam se influenciar
mutuamente, havendo uma interação permanente entre os fatores psíquicos e
somáticos do indivíduo.
A teoria da correlação psicofísica é a face mais requintada do dualismo, quando
ficou impossível sustentar a teoria da correlação, após terem sido comprovadas as
mudanças que fatores psíquicos induziam nos somáticos e vice-versa.
Diferentemente da teoria do paralelismo, sustenta que pode haver mútua
influência e, por isto, haver correlação, entre o princípio somático e o psíquico.
150
Teoria fisiológica. Afirma, na essência, que os fenômenos psíquicos são única ou
principalmente funções do cérebro, podendo ser co-determinadas, de modo
secundário, por outras funções biológicas extra-cerebrais.
A teoria fisiológica foi a primeira doutrina materialista a se difundir. Corresponde à
oposição frontal, mas ingênua, ao pensamento dualista e ao espiritualismo
religioso; presume identidade ou analogia entre o funcionamento cerebral e a
fisiologia do corpo humano. Fundamenta todas as escolas psicopatológica
biologicistas e positivistas.
A teoria fisiológica representou um avanço sobre as teorias dualistas e as crenças
supersticiosas. Predominou na ciência dos séculos XVIII e XIX, declinando muito
no século atual; embora se lhe reconheça ter exercido um papel positivo na
superação do subjetivismo e da Psicologia especulativa, sua importância na
pesquisa em psicologia, para definir uma metodologia de pesquisa essencialmente
psicológica e permitir a inclusäo da Psicologia entre as ciências modernas.
Teoria da Identidade psicofísica. É fundamentalmente monista e dialética.
Sustenta que os fenômenos corporais e psicológicos são manifestações diferentes
de uma mesma totalidade indivisível: o ser humano; afirma que os fenômenos
psíquicos são essencialmente idênticas aos somáticos, embora possam parecer
diferentes.
Fundamenta-se na convicção da unidade do ser humano e representa a
superação definitiva do sobrenaturalismo supersticioso primitivo. Representa o
ponto de vista dialético na Psicologia. Para os monistas a consciência humana
representa uma propriedade muito peculiar da matéria extremamente organizada.
Alguns Aspectos Ontológicos da Psicopatologia
A questão ontológica mais geral da epistemologia reside na identificação e
definição do objeto de uma ciência. Antes de tudo, cada ciência deve
circunscrever, identificar e definir seu objeto de modo inequívoco. Embora as
151
questões ontológicas da psiquiatria se manifestem ou se reflitam em muitos outros
aspectos mais específicos, sua questão ontológica fundamental parece ser, por
analogia com todos os demais conhecimentos existentes, definir seu objeto.
Como acontece em muitas outras ciências humanas, a primeira tarefa da
psicopatologia é determinar se os fenômenos psicopatológicos, têm existência real
e fazem parte da realidade ou são invenções e ideologias. É necessário definir se
o doente e a doença psiquiátrica (dados inseparáveis em sua inter-
complementaridade) existem como realidades objetivas, objetos da realidade que
se refletem como conceitos no mundo subjetivo do conhecimento ou se o doente e
a doença são apenas conceitos construídos mais ou menos arbitrariamente, sem
correspondência com a realidade.
A primeira exigência epistemológica é ontológica, a especificidade se refere à
chamada objetividade científica. O que quer dizer que o objeto de uma ciência
deve ser real, ter parte da realidade, ser bem definido e possível de ser estudado
objetivamente. Aqui, trata-se de determinar a objetividade dos fenômenos
psicopatológicos.
Tendo em vista as exigências de objetividade da ciência, o reconhecimento do
status científico da psicologia só se tornou possível quando a perspectiva
comportamental a definiu como estudo do comportamento objetivado na conduta.
Definida a psicologia científica como estudo científico do comportamento
(compreendendo duas dimensões complementares, a subjetividade ou
consciência e a conduta objetiva), pode-se definir a Psicopatologia tanto como
uma psicologia do patológico quanto como uma patologia do psicológico.
Definir o comportamento como o objeto da psicologia é um exercício de redução,
porque na realidade, o comportamento, não é mais do que uma das dimensões da
existência humana; mas é um procedimento redutor inevitável, enquanto não se
disponha de um conceito sintetizador mais amplo e cientificamente aceitável.
Ainda que a abordagem comportamental seja um exercício de redução, pode não
152
ser reducionismo, ainda que isto possa parecer inevitável, para uns, e
impraticável, para outros.
Tudo isto, porque, quando se considera a amplitude que tem o objeto da
psicologia para os psicólogos autodenominados humanistas (como ROGERS e
FRANKL) ou os autodenominados profundos (como Jung), além de muitos dos
autodenominados dinâmicos (os diversos grupos de ascendência freudiana), a
atividade psicológica não pode deter o status de ciência se mantiver seus limites
assim alargados e imprecisos.
A única forma encontrada até este momento de atribuir status científico às
investigações da psicologia tem sido limitá-la a ser o estudo científico do
comportamento, ainda que se reconheça esta abordagem como provisória porque
insuficiente para explicar a totalidade. O que não significa que a atividade
psicológica possa ser reduzida a esta sua dimensão (os atos e processos
constatáveis e observáveis objetivamente.
Voltando ao tema central deste ponto, que é a ontologia psiquiátrica, pode-se dizer
que nos termos em que foi definida acima, a questão ontológica geral mais
importante do conhecimento se reflete na psicopatologia pela necessidade da
definição do tipo de relação existente entre o ser (aqui, especificamente na
psicopatologia, o fenômeno ou processo psicopatológico, por exemplo, ou
qualquer outro, se o tema fosse diferente) e a consciência (a subjetividade de
quem estuda, reconhece ou diagnostica, por exemplo).
Pode-se dizer que o mundo da realidade tem existência objetiva e que a
consciência, (com o sentido de subjetividade) de certa maneira, o reflete ou o
representa interiormente; devendo-se destacar a influência da capacidade de
enunciado verbal, a palavra ou conjunto de palavras, que são, simultaneamente,
símbolo da idéia e do objeto, como elemento material intermediador dessa
relação.
153
Deste ponto de vista, portanto, a consciência (com sentido ampliado de mundo
subjetivo) é considerada como secundária em relação ao mundo objetivo, o
mundo da realidade. A existência determina a consciência, dir-se-ia
sinteticamente.
A origem da maior parte das divergências sobre o patológico e o não-patológico
deve ser buscada no campo mercadológico, ideológico e psicológico, mais que
nos dados lógicos ou nas dificuldades científicas. Talvez por isto, o conflito real,
subjacente à discussão sobre a normalidade e a patologia, raramente venha à luz
dos argumentos ou da exposição, permanecendo oculto para quem não o saiba
reconhecer. Na medida em que os fenômenos psicopatológicos são
comportamentos anômalos, importa definir os elementos essenciais deste
conceito.
@DEF = Todos os comportamentos têm uma dimensão subjetiva (o psiquismo) e
outra objetiva (a conduta).
Os comportamentos são, ao mesmo tempo, fenômenos simultaneamente
biológicos, psicológicos e sociais (econômicos, políticos, históricos e culturais), por
isto têm caráter ideológico e sua interpretação se faz muito diferentemente dos
fenômenos naturais.
Por isto, sua avaliação, mesmo em termos da saúde e patologia, não pode ser
feita sem a influência (mais ou menos poderosa) da utilidade que lhes empreste a
sociedade e sem que se considere seu valor cultural intrínseco e o significado dos
valores éticos, estéticos e políticos (no sentido mais amplo da expressão, como
valores civis) que mobilizem. Por isto, aqui se emprega o termo comportamento
unicamente para designar atividades de seres humanos, enquanto termo conduta
pode referir os aspectos objetivos da atividade de homens e de animais.
154
GNOSEOLOGIA DA MEDICINA E O DIAGNÓSTICO MÉDICO
@FIRSTPAR = Procedimento médico que consiste no reconhecimento e na
identificação de uma condição patológica, qualquer que for sua classe (dano
negativo, dano positivo ou sofrimento inadequado) ou gênero de complexidade
estrutural (sintoma, síndrome, entidade clínica), através de suas características
mais elementares, principalmente seus antecedentes, sintomas e outros dados
aparentes. Sendo, portanto, o reconhecimento de uma patologia em alguém,
geralmente com o propósito imediato de fundamentar a terapêutica, mas podendo
ser outro (como em uma perícia médica ou em uma pesquisa científica).
Como estrutura cognitiva, o diagnóstico médico pode ser analítico-descritivo ou
sintético-explicativo; do ponto-de-vista da complexidade da patologia
diagnosticada, o diagnóstico médico pode se referir a um sintoma, uma síndrome
ou uma entidade nosológica.
Em psiquiatria, ao contrário do que sempre aconteceu no restante da Medicina,
diversas razões ideológicas induziram ao abandono ou à subestimação do
diagnóstico como instrumento médico (como se pode ver em outros trabalhos do
autor, como Fundamentos de Psicopatologia e O Diagnóstico Psiquiátrico).
Atualmente, com a superação dos modelos paradigmáticos psicológicos e políticos
para explicar as patologias psiquiátricas, poderia retornar a psiquiatria ao modelo
médico e à valorização do diagnóstico, não fosse a reavaliação positivista do
materialismo ingênuo.
Estrutura do Diagnóstico em Psiquiatria
Em psicologia e psiquiatria, sobretudo no procedimento diagnóstico, é
relativamente comum que se confundam fenômenos situados em diferentes
estratos da natureza ou que se estenda indevidamente a um certo plano de
acontecimentos naturais, conclusões que foram estabelecidas em outro; por
155
exemplo, quando se atribuem a grupos ou outros coletivos humanos os achados
de investigação com indivíduos.
O diagnóstico de uma condição patológica concreta em uma paciente real,
qualquer que for seu gênero (sintoma, síndrome, entidade clínica) ou classe
(patologia objetiva com dano negativo ou positivo ou patologia subjetiva com dano
sentido) não passa de uma síntese do conhecimento que se tem sobre aquele
fenômeno, podendo ser um conceito descritivo ou explicativo.
Esta questão apresenta um significado particular na psicopatologia quando há
uma tendência a explicar todos os fenômenos psicopatológicos como se tivessem
a mesma natureza ou como se apresentassem a mesma posição na estrutura da
natureza. Também se incorre freqüentemente no erro de confundir o diagnóstico
psiquiátrico que é um diagnóstico médico com o diagnóstico psicológico.
Como acontece com a confusão entre diagnóstico psiquiátrico e diagnóstico
médico; o diagnóstico psicoanalítico é um tipo particular de diagnóstico psicológico
e não um diagnóstico médico, ainda que possa ser exercido por alguém que
exerça a Medicina e seja formado nela. Mas, o erro mais comum no procedimento
diagnosticador, é o da super-simplificação diagnóstica, o diagnóstico mecânico, no
qual se misturam conceitos descritivos e explicativos, classes e gêneros de
patologias e muitas outras heterogeneidades lógicas. O que não deve ser
confundido com o diagnóstico sintético.
Guardadas estas ressalvas, o diagnóstico psiquiátrico deve atender às seguintes
exigências ontológicas mínimas que configuram os a caracterização dos
fenômenos psicopatológicos como objeto de cogitação científica:
@DEF2 = Diagnóstico do gênero ou grau de complexidade da patologia. Quando
se especifica se o quadro diagnosticado é uma entidade clínica, uma síndrome ou
um sintoma. A identificação do gênero da patologia deve ser o primeiro elemento
do processo diagnosticador em qualquer entidade clínica.
156
@DEF2 = Diagnóstico sindrômico. A seguir, após a identificação do gênero da
patologia que está sendo diagnosticada, o reconhecimento da psicopatologia se
completa na caracterização e intensidade das manifestações clínicas que
expressam aquela patologia; é comum que este momento do processo
diagnosticador inclua a designação da intensidade (leve, moderada ou grave) e do
perfil de evolução da patologia (aguda, sub-aguda ou crônica).
@DEF2 = Diagnóstico da qualidade ou classe da patologia. Determinado em
função do tipo de dano que ocasiona. Num primeiro plano deste momento do
processo diagnosticador, o diagnóstico deve incluir sempre a diferenciação da
classe de patologia que estiver em questão (entre as mesmas identificadas
genialmente por Letamendi no século passado e já mencionadas, como dano
negativo, dano positivo ou sofrimento inadequado) e sua complexidade estrutural
(se é um síntoma, uma síndrome ou uma entidade clínica).
O processo diagnóstico se completa no Diagnóstico Específico da patologia, na
identificação da entidade clínica que consiste em: a) Diagnóstico etiológico e b) a
identificação do mecanismo patogênico. O procedimento diagnóstico impõe a
obrigação de tentar categorizar as psicopatologias (os transtornos
psicopatológicos) em função das seguintes características: causalidade
predominante (biológica ou psicossocial), diagnóstico patogênico, prognóstico e
possibilidades terapêuticas.
a) Causalidade predominante: biológica ou psico-social.
b) Diagnóstico patogênico.
Em seguida, na construção do diagnóstico específico, deve-se tentar definir a
natureza de sua estrutura patológica, essencialmente se os mecanismos
patogênicos se dão a nível estrutural, funcional ou alcançam a ambos.
c) Prognóstico e diagnóstico do risco pessoal e social.
157
O diagnóstico de uma condição mórbida deve incluir uma previsão da evolução e
do risco pessoal ou social implícito nela.
d) O prognóstico implica, também, no reconhecimento das possibilidades de
resposta terapêutica aos procedimentos conhecidos e indicados para aquela
condição clínica.
e) Por fim, situa-se o diagnóstico nosológico
(ou o diagnóstico descritivo) em um sistema nosográfico de referência (como a
CID/10), para fins administrativos.
@MINOR HEADING = Aspectos Gnoseológicos Gerais
@FIRSTPAR = A gnoseologia estuda o conhecimento e a cognoscibilidade
(possibilidade de conhecer). A questão gnosiológica mais importante, do ponto de
vista da filosofia do conhecimento, é definição da possibilidade de conhecer o que
existe no universo, os fenômenos que acontecem na natureza, na sociedade e no
ser humano; a cognoscibilidade do mundo, das coisas que existem nele e daquilo
que acontece a essas coisas. Eis aí, desde a Antigüidade, uma das questões
centrais da filosofia e um dos fundamentos mais importantes da ciência. Fosse
incogniscível o mundo, a ciência seria uma fraude ou, no mínimo, um desperdício.
Existem muitas opiniões acerca da cognoscibilidade do mundo, do que existe e do
que acontece nele. Estas tendências se refletem nos processos de conhecer o
mundo, inclusive nas atitudes e procedimentos técnicos e científicos. É possível
levantar, como exemplos, algumas das atitudes gnosiológicas que podem influir
nas concepções científicas.
No passado medieval, existia o ceticismo absoluto, sustentando a completa
impossibilidade de se conhecer alguma coisa por conta das limitações dos
sentidos e do espírito humano. O que está apenas a um passo do solipsismo, que
afirma a absoluta impossibilidade de se conhecer a verdade sobre qualquer objeto
158
ou fenômeno. O que seria devido, principalmente, à limitação dos sentidos, à
imperfeição da comunicação e aos limites do pensamento.
No lado oposto, existe outra posição extremada, o dogmatismo cientificista que
sustenta (com algumas gradações) ser o conhecimento científico quase que
absoluto, geral e eterno. Entre os cientistas do século dezoito e dezenove,
sobretudo os que compartilhavam o otimismo cienticista, muitos o cultivaram.
Entre estas posições extremas, situam-se numerosos graus de ceticismo relativo,
inclusive o ceticismo organizado, que admitem diferentes graus de relatividade e
provisoriedade do conhecimento científico.
Na maior parte da vezes, as limitações e a provisoriedade do conhecimento real,
são devidas ao artefato metodológico inerente ao procedimento de investigação
aplicado nas ciências factuais, pelo qual se considera como verdadeiro tudo aquilo
que ainda não foi desmentido, a despeito dos esforços realizados para comprovar
sua falsidade.
Esta possibilidade metodológica do conhecimento científico nas ciências factuais
costuma ser denominado princípio da falsificabilidade ou da verificabilidade.
Aproximando-se do dogmatismo cientificista, existe quem creia na plena
cognoscibilidade, como uma utopia a ser perseguida perpetuamente.
O agnosticismo é uma atitude intelectual que pode significar a crença na absoluta
impossibilidade de conhecer, identificando-se com o ceticismo absoluto;
abrandado (como em KANT), nega a possibilidade de se conhecer a essência das
coisas (a coisa em si), admitindo o conhecimento apenas da sua aparência (a
coisa para nós). As numerosas formas de ceticismo relativo (como agnosticismo,
positivismo, fenomenalismo, relativismo, subjetivismo, probabilismo,
convencionalismo, pragmatismo, empirismo), negam a possibilidade de um
conhecimento perfeito e total, evidenciam diversas maneiras moderadas de
ceticismo.
159
Os conceitos de certeza e de verdade científica não são exclusivos dos adeptos
do dogmatismo, porque se pode sustentar a verdade científica como provisória e
incompleta. Ainda que se admita um ponto de vista agnóstico (mesmo moderado)
ou cético (mesmo relativo), os conceitos científicos de certeza e verdade
continuam a existir, ainda que detenham um caráter relativo.
Esta é uma amostra das opiniões e crenças sobre a cognoscibilidade do mundo
que mostram como seria laboriosa a investigação minuciosa do tema. Cada
opinião sobre a cognoscibilidade em geral, como manifestação de um padrão de
pensamento, tem seu equivalente relacionado à cognoscibilidade da doença
mental, do diagnóstico psiquiátrico e dos demais diagnósticos médicos.
Parece importante ter clara a natureza gnosiológica do ato diagnóstico como
processo cognitivo de reconhecimento de uma patologia. Neste ponto, torna-se
preciso optar por uma de duas opiniões: se o diagnóstico psiquiátrico, como
qualquer conceito ou categoria, reflete qualidades essenciais da patologia, e que
tal patologia é objetiva, existe por si mesma e independe do observador; ou se,
por outro lado, considera-se que a patologia é unicamente um conjunto de
atributos convencionados, de certa forma vazios de conteúdo e que não dizem
respeito à essencialidade do objeto ou fenômeno que pretende descrever,
resumindo-se a uma entidade lógica convencionada, criada pela consciência de
quem a produziu.
Entender esta opção gnoseológica exige uma revisão do conhecimento sobre as
relações entre o objeto, a idéia que o reflete e a palavra que simboliza a ambos.
Este ponto, que talvez seja o mais crítico e essencial da psicolingüística se
desenhou no capítulo sobre conceituação e descrição, encerra uma das maiores
polêmicas cognoscitivas; aparece na prática clínica, revela-se na exposição
psicopatológica, mas apenas muito raramente é claramente mencionada.
A questão da conoscibilidade das coisas do mundo está em completa
interdependência com os procedimentos empregados no processo de conhecer, a
160
metodologia e a metódica do conhecimento. Sobre isto DESCARTES escreveu
com muita propriedade: Os mortais são possuídos por uma curiosidade tão cega
que muitas vezes introduzem o espírito em vias desconhecidas, sem nenhuma
esperança racional, unicamente para correr o risco de aí encontrarem o que
procuram; com eles se passa o mesmo que com um homem ardende com um
desejo tão estúpido de encontrar um tesouro que erraria sem cessar pelas praças
públicas para ver se encontraria por acaso algum perdido por um viajante. ... Ora,
vale muito mais nunca pensar em procurar a verdade de qualquer coisa do que
fazê-lo sem método...Quanto ao método, entendo por tal, regras certas e fáceis
cuja observação exata fará que qualquer pessoa nunca tome nada de falso por
verdadeiro, e que, sem dispensar inutilmente o mínimo esforço de inteligência,
chegue, por um aumento natural e contínuo de ciência, ao verdadeiro
conhecimento de todo o que for capaz de conhecer.<$FDescartes, R., Regras
para a Direção do Espírito, Ed. Stampa, Lisboa, 1971, pp. 23 in Oliveira, A.M. et
alii, Primeira Filosofia Tópicos de Filosofia Geral, 8a. edição, Ed. Brasiliense,
S.Paulo, 1990>
@MINOR HEADING = Gnoseologia Psiquiátrica
@FIRSTPAR = Pelo que já se viu quando se tratou das questões ontológicas e
gnoseológicas mais gerais, o primeiro passo do estudo da nosologia, da
nosografia médicas e psiquiátricas deve ser conhecer se o fenômeno patológico, o
objeto genérico da de estudo, é uma realidade natural cogniscível, uma realidade
social cognoscível, uma realidade humana cognoscível, uma condição real na qual
se combinem estes três elementos, ou é uma invenção convencionada, um
artifício psicológico, um artefato do próprio conhecimento ou uma ilusão
ideológica.
Só após superar as questões ontológicas centrais da objetitividade da
Psicopatologia, pode-se passar a tratar das questões mais importantes do
momento gnosiológico, quando se deve equacionar a cognoscibilidade dos
161
fenômenos e processos psicopatológicos. A cognoscibilidade do mundo, em geral,
inclusive a cognoscibilidade do objeto da Psicopatologia, bem como das formas
comuns de conhecer, é tarefa da gnoseologia.
No que diz respeito à necessidade do estudo objetivo da subjetividade que se faz
em psicologia e Psicopatologia, como exigências fundamentais para sua
caracterização como ciências, esta exigência de objetividade é satisfeita, na
medida em que os dados do psiquismo se objetivam na conduta, possibilitando
seu estudo objetivo. Por isto, embora a noção de comportamento seja, por si,
insuficiente para albergar o psiquismo, a definição científica da psicologia só
parece ser possível em termos comportamentais.
A perspectiva comportamental, a despeito das criticas a que faça jus, parece ser a
única que permite um enfoque cientificamente objetivo da psicologia, ainda que
seja reconhecidamente insuficiente para explicar todos os processs psíquicos, a
totalidade da existência psicológica, quanto mais para permitir entender a
integridade da condição humana. Os dados fornecidos pela introspecção e pela
intuição (contida nos procedimentos compreensivos) podem propiciar hipóteses,
reforçar suposições ou convergir com os achados objetivos, mas são
absolutamente insuficientes para permitir conclusões científicas, por si só,
sobretudo conclusões explicativas.
Por isto, excluem-se das cogitações científicas, o subjetivismo, reducionismo que
resume o estudo psicológico à introspecção, comum à psicologia clássica e a
muitas tendências psicoanalíticas, quanto o objetivismo, que é a deformação
ideológica oposta ao subjetivismo que impregna muitas tendências condutistas e
neocondutistas, por seu mecanicismo e sua supersimplificação dos processos
psicológicos. entes fundamentalmente complexos e multicondicionados.
A instrospecção tem fornecido valiosa contribuiçäo às ciências do homem.
Durante séculos, a construção da psicologia se deveu unicamente à especulação
introspectiva. Mas, hoje, no campo específico da psicologia e da psiquiatria, a
162
ausência de instrumentos de observação e experimentais para a estudo da
subjetividade e sua objetivação, tem constituído obstáculo importante ao seu
reconhecimento como ciência. Porque os fenômenos psicológicos mais
essencialmente humanos (como a vontade e os sentimentos, por exemplo) säo de
difícil exploraçäo objetiva e impossíveis de serem quantificados, pelo menos com
os recursos disponíveis no momento. Caso um determinado fenômeno ou
conjunto de fenômenos só possa ser estudado pela introspecção, tal estudo não
deve ser considerado como atividade científica conclusiva, enquanto não for
confirmado por achados obtidos objetivamente.
Além disto, para a avaliação gnoseológica da dos fenômenos psiquiátricos é
necessário definir:
@DEF2 = se os fenômenos psicopatológicos são uma categoria específica da
patologia, correspondente a um fenômeno natural-humano e pessoal que se dê
simultaneamente nos dois mundos a que pertencem: o mundo dos fenômenos
naturais e o mundo dos fenômenos sociais;
@DEF2 = ou, noutra tendência possível, se os fenômenos psicopatológicos
pertencem unicamente a um destes mundo especificamente; isto é, se são
acontecimentos exclusivamente biológicos ou unicamente sociais;
@DEF2 = ou, ainda, se existem alguns fenômenos psicopatológicos que possam
ser considerados naturais e alguns outros, que devam ser tidos como
manifestações sociais (sócio-econômicos, sócio-políticos, sócio-históricos ou
sócio-culturais).
E, completando este processo cognitivo preliminar, como exigência da
gnosiologia,dever-se-á, ainda, verificar se existe uma descontinuidade constatável
entre os acontecimentos psicopatológicos e os que não são patológicos; depois,
também importa saber se tal descontinuidade, caso exista, se refere apenas a
diferenças quantitativas (unicamente variando em quantidade) ou se envolvem
elementos qualitativos (qualidade definida pela presença ou ausência de um 163
atributo de referência; e, por fim, se tal descontinuidade é um acontecimento real
ou convencionado em função dos interesses materiais, psicológicos ou ideológicos
de quem os identifica.
Os fenômenos psicopatológicos não são apenas fenômenos objetivos e reais,
naturais e ou sociais que acontecem em pessoas reais. São fenômenos subjetivos
representados por conceitos que refletem os elementos internos (como a noção da
patologia nos demais e em si mesmo) e constituem, conteúdos de representações
e de valores sócio-culturais e sócio-históricas de natureza coletiva que costumam
ser chamadas de representações sociais da enfermidade, quando se estruturam
mais ou menos espontaneamente como um artefato cultural (que prefiro chamar
representação cultural da patologia) ou teoria da doença, quando intencionalmente
organizada, resulte de procedimento científico e expresse o conhecimento
científico existente no momento.
Doutro ângulo, nãose pode omitir que os fenômenos psicopatológicos, qualquer
que for sua complexidade, duração, intensidade ou influência subjetiva ou objetiva
na vida de quem os experimenta, não podem ser reduzidos a enunciados verbais
sem conteúdo, a não ser sua significação convencional.
O estudo gnoseológico dos fenômenos da psiquiatria impõe que se atente para as
seguintes diretrizes operacionais principalmente na formulação do diagnóstico
psiquiátrico:
a) O acontecimento psicopatológico, mais que qualquer outra enfermidade
humana é um processo natural e sócio-cultural.
Na amplitude de seu significado, a ocorrência psicopatológica é, simultaneamente,
um acontecimento natural e um artefato cultural (entendido, por exemplo, como
castigo do pecado) e, ao mesmo tempo um dado subjetivo e, freqüentemente,
objetivo. Se bem que aos médicos e ao diagnóstico psiquiátrico interesse
essencialmente sua dimensão natural, esta se completa no sócio-antropológico-
político e econômico (a identificação das circunstâncias sociais do enfermo).164
b) Todo processo patológico fica completamente diagnosticado, quando
perfeitamente definido.
Só se pode reconhecer o que se conhece. Exigência fundamental da gnosiologia
psiquiátrica no procedimento diagnosticador, como elemento essencial de sua
definição, deve ser a especificação adequada de cada fenômeno psicopatológico
tanto em termos da complexidade da patologia, quanto em razão da classe de
psicopatologia. Porque, os fenômenos psicopatológicos não são unitários em
termo do grau de complexidade fenomênica e, muito menos, todos os
acontecimentos mórbidos pertencem à mesma qualidade (classe, gênero ou
espécie) de patologia.
c) O primeiro momento da definição de uma patologia consiste em identificar seu
gênero ou o seu grau de complexidade psicopatológica.
Aqui se denomina gênero ao grau de complexidade do fenômeno psicopatológico.
Os acontecimentos psicopatológicos (cujos gêneros possíveis são sintomas,
síndromes e entidades nosológicas, denominações que evidenciam o grau de
complexidade fenomênica da manifestação clínica identificada), bem como, os
acontecimentos estreitamente relacionados a eles como caraterizadores da
aparência das patologias (como curso, terminação, intensidade e resposta à
terapêutica) e sua origem devem ser definidos o mais precisamente possível. O
ideal seria que, em todos os casos, fosse possível uma definição essencial e
genética de cada termo que se referisse a cada fenômeno designado por ele. Ao
menos deve haver a preocupação de, em qualquer procedimento diagnóstico, a
designação de um fenômeno psicopatológico deve sempre se referir ao grau de
complexidade da patologia mencionada.
d) Quando a patologia identificada for uma entidade clínica, deve-se buscar
identificar a qualidade ou classe patológica a que pertence.
Quanto à classe da patologia, esta diz respeito ao tipo de dano que aquela
patologia acarreta à pessoa que a apresenta. O reconhecimento da síndrome e o 165
conhecimento do dano que ela ocasiona ao seu portador deve permitir designar a
qualidade ou classe da patologia a que pertence. Porque este momento de sua
caracterização consiste exatame ne em identificar o tipo de dano que acarreta ao
enfermo. Esta caracterização é importante, não apenas por razões heurísticas,
mas porque influi no tratamente e no prognóstico. Com as informações disponíveis
atualmente, é possível identificar três qualidades diferentes de fenômenos ou
processos patológicos: a) patologia por dano negastivo, que é um impedimento
por deformidade, deficiência ou déficite funcional, global ou específico
(deficiências mentais, demências déficites específicos do desenvolvimento,
inclusive os transtornos do desenvolvimento da personalidade); b) patologias por
dano positivo que são doenças (esquizofrenia, doença afetiva); c) patologias
apenas sentidas, que são as patologias especificamente humanas, caracterizadas
por sofrimento inadequado e perturbações da adaptabilidade aos acontecimentos
ou às situações (as neuroses).
e) O fecho do processo diagnosticador de uma entidade nosológica em Medicina,
inclusive em psiquiatria, consiste na sua identificação como espécie mórbida.
Além da classe e do gênero do fenômeno psicopatológico, uma definição
psicopatológica deve mencionar sobretudo a espécie mórbida que estiver sendo
definida (ou diagnosticada), o que implica em:
a) incluir informações específicas sobre a intensidade, duração e repercussão
existencial e social do fenômeno definido;
b) identificação dos fatores causais (etiológicos), das circunstâncias das quais
depende sua ação patogênica, e dos mecanismo pelos quais atuam estes fatores
etiológicos para produzir as manifestações mórbidas (a distinção dos fatores
patogênicos dos patoplásticos, dos predisponentes e desencadeadores, dos
agravadores e atenuadores);
166
c) incluir, de modo explícito ou implícito, informações sobre o prognóstico, o risco
(pessoal ou social) e de sua resposta aos agentes terapêuticos conhecidos e
potencialmente capazes de erradicar a patologia, minorar ou suprimir seus efeitos.
Por tudo isto, os diagnósticos descritivos, para serem completos, devem incluir
uma informação para cada uma destas necessidades de definição, enquanto os
diagnósticos sintéticos devem sintetizar, senão todas, ao menos as mais
importantes destas exigências de definição (classe, síndrome, etiopatogenia e
responsividade terapêutica) que estão necessariamente incluídas na designação-
diagnóstica.
A cognoscibilidade das enfermidades apresenta mais ou menos as mesmas
dificuldades que apresenta a cognoscibilidades de qualquer fenômeno humano,
sobretudo seus comportamentos, por sua conotação evidentemente sócio-cultural.
No entanto, como todos os outros conhecimentos, o conhecimento sobre os
acontecimentos psicopatológicos se desenvolve de maneira progressiva, seguindo
o itinerário apontado neste trabalho: evidenciação, descrição, conceituação,
explicação, definição; em espirais progressivamente mais ricas e mais completas
de informações essenciais sobre aquele objeto do conhecimento, que vão sendo
aperfeiçoadas ou substituídas, na medida em que se amplia e se aprofunda o
conhecimento sobre ele.
167