90189154 a Cartomante Analise Do Conto de Machado de Assis

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Clara Állyegra Lyra Petter Classicos da Literatura Brasileira A Buscando a “Tese sobre o Conto” de Piglia em “A Cartomante” Ao analisarmos o conto “A Cartomante” de Machado de Assis, encontramos caracteristicas já conhe- cidas do referido autor, como a arte de enganar o leitor e quase, ou de fato, “rir da cara” dele que se deixa ser enganado. Diferentemente de outras obras suas em que faz mão desse recurso, como em M. P. de Brás Cubas e Quincas Borba, no presente conto o narrador induz o leitor ao erro de forma extremamente sutil. Desse forma consegue criar ao fim do conto o que Piglia chama de “efeito surpresa”, quando a história oculta que estava sendo tramada chega finalmente à superficie. Piglia teoriza que todo conto é composto de duas histórias, uma narrada em primeiro plano e outra sendo construida secretamente num plano de fundo. No caso especifico desse conto podemos dizer que se trata de duas visões de realidade, as quais o narrador nos leva a acreditar, puxando o leitor de um extremo a outro. Todo esse conto se baseia na oposição de duas idéias: a de um mundo cético e racional versus um mundo com crenças e fé em forças ocultas. Assim, acompanhamos o progresso do personagem Camilo, que primeiramente nos é mostrado como um homem cético, que ri das besteiras da amante Rita quando essa vai consultar uma cartomante. O desenvolvimento do personagem na narrativa vai ocorrendo de forma que Camilo aos poucos volta a acreditar nas antigas crenças que sua mãe havia lhe ensinado quando menino, e agora foram trazidas de volta por Rita. Nesse sentido podemos perceber uma lineariedade entre a mãe de Camilo e Rita, visto que Camilo percorre o seguinte percurso: Mãe Crenças Rita Cartomante Homem Maduro ignora qualquer indicio de sobrenaturalidade amadurecimento desvinculação materna medos e neuroses apego à mulher amada Assim em determinado momento da trama o protagonista, e nós leitores, nos colocamos em posição de dúvida. Acreditamos na cartomante, esse ser que supostamente sabe a verdade misteriosa da vida, ou não? Naturalmente, uma situação de tensão e contradição, de conflito, não se sustenta por muito tempo, precisan- do ser resolvida. Além da oposição já descrita, a tensão da obra se sustenta no triângulo amoroso entre Vilela, Rita e Camilo e no medo que este último tem que seu amigo Vilela descubra sua traição. Essa situação, que já seria mal vista nos tempos de hoje, num parâmetro sociedade brasileira do século XIX, é uma tensão por si só, duplamente culpada pelo casamento e pela amizade, e que precisa ser resolvida para a sociedade voltar a ter harmonia, nem que seja com a punição do protagonista. amantes Rita Vilela Camilo casados amigos

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Clara Állyegra Lyra PetterClassicos da Literatura Brasileira A

Buscando a “Tese sobre o Conto” de Piglia em “A Cartomante”

Ao analisarmos o conto “A Cartomante” de Machado de Assis, encontramos caracteristicas já conhe-cidas do referido autor, como a arte de enganar o leitor e quase, ou de fato, “rir da cara” dele que se deixa ser enganado. Diferentemente de outras obras suas em que faz mão desse recurso, como em M. P. de Brás Cubas e Quincas Borba, no presente conto o narrador induz o leitor ao erro de forma extremamente sutil. Desse forma consegue criar ao fim do conto o que Piglia chama de “efeito surpresa”, quando a história oculta que estava sendo tramada chega finalmente à superficie. Piglia teoriza que todo conto é composto de duas histórias, uma narrada em primeiro plano e outra sendo construida secretamente num plano de fundo. No caso especifico desse conto podemos dizer que se trata de duas visões de realidade, as quais o narrador nos leva a acreditar, puxando o leitor de um extremo a outro. Todo esse conto se baseia na oposição de duas idéias: a de um mundo cético e racional versus um mundo com crenças e fé em forças ocultas. Assim, acompanhamos o progresso do personagem Camilo, que primeiramente nos é mostrado como um homem cético, que ri das besteiras da amante Rita quando essa vai consultar uma cartomante. O desenvolvimento do personagem na narrativa vai ocorrendo de forma que Camilo aos poucos volta a acreditar nas antigas crenças que sua mãe havia lhe ensinado quando menino, e agora foram trazidas de volta por Rita. Nesse sentido podemos perceber uma lineariedade entre a mãe de Camilo e Rita, visto que Camilo percorre o seguinte percurso:

MãeCrenças

RitaCartomante

Homem Maduroignora qualquer indicio de

sobrenaturalidade

amadurecimentodesvinculação materna

medos e neurosesapego à mulher amada

Assim em determinado momento da trama o protagonista, e nós leitores, nos colocamos em posição de dúvida. Acreditamos na cartomante, esse ser que supostamente sabe a verdade misteriosa da vida, ou não? Naturalmente, uma situação de tensão e contradição, de conflito, não se sustenta por muito tempo, precisan-do ser resolvida. Além da oposição já descrita, a tensão da obra se sustenta no triângulo amoroso entre Vilela, Rita e Camilo e no medo que este último tem que seu amigo Vilela descubra sua traição. Essa situação, que já seria mal vista nos tempos de hoje, num parâmetro sociedade brasileira do século XIX, é uma tensão por si só, duplamente culpada pelo casamento e pela amizade, e que precisa ser resolvida para a sociedade voltar a ter harmonia, nem que seja com a punição do protagonista.

aman

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Rita

VilelaCamilo

casadosamigos

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Em sua tese Piglia também afirma que no conto muitas vezes o mais importante nunca se diz, con-struindo-se a história com o subentendido, recurso usado por Machado para brincar com a percepção que o leitor tem do caminho da narrativa a seguir. O autor deixa subentendido que algo vai acontecer, nunca o di-zendo explicitamente. Vemos isso ao citar Hamlet e dizer que há coisas que não sabemos, com a preocupação de Rita em procurar a cartomante, a crescente preocupação de Camilo com a suposta descoberta do caso por Vilela, com as cartas, e o chamado final de Vilela a ir vê-lo urgentemente Esses elementos vão criando tensão na narrativa e no leitor, até que enfim relaxamos junto com Camilo, ao acreditarmos na cartomante e nos iludindo que haverá um final feliz para o casal de enamorados. Tudo na narrativa nos induz a essa reação, a acreditar na cartomante e no destino - o próprio acidente com a carroça faz Camilo parar logo em frente à casa dela, não seria obra de algo maior? “Dir-se ia a morada do indiferente Destino”. Temos também a citação inicial de Hamlet que é um grande recurso “pega trouxas” do narrador, pois nos leva a ilusão de que sua história vai falar de “assuntos maiores”, talvez misticos, ocultos, e que esse é o tom que rege sua história. A própria presença da cartomante é um artificio para te fazer acreditar nela. Ela não é de fato essen-cial pra base crua dessa história, a qual poderia ser simplesmente: “Camilo e Rita tinham um caso - Camilo tinha medo que seu amigo Vilela descobrisse tudo - Camilo recebe um convite urgente para visitar Vilela - Camilo vai (ou não) e é morto (ou sobrevive)”. O título “A Cartomante” nos leva a crer na sua importância, que ela seria o ponto central da narrativa, a reviravolta. E de fato é, pois nos surpreende ao nos enganar e fazer-nos acreditar que tudo vai ficar bem, visto que já sabiamos que havia uma tensão a ser revolvida. E por isso somos surpreendidos com a quebra daquela ilusão que criamos ao nos depararmos com o desfecho do conto. Se seguimos nos aproximando muito do personagem, como o narrador no induz a fazer, acreditamos em tudo aquilo assim como ele, o que cria o efeito surpresa no fim, mostrando uma realidade muito mais cética do que nos é levado a acreditar. Apesar de não deixar isso explicito, quase podemos ver o narrador “além-narrativa” rindo com cinismo e dizendo “Jura que você acreditou em tudo aquilo leitor?”. E você pensa “Machado me enganou de novo!”. Ao adotarmos uma postura mais afastada ao ler o conto poderemos ver a sutileza com que a cartomante na verdade percebe a situação de Camilo e ele, em sua afobação, complementa e confirma todas suas suposições. O próprio Camilo, quando ainda cético, meio que já nos dá essa dica quando afirma a Rita que “a melhor cartomante era ele mesmo”, pois ela nada mais é do que um reflexo do que seus consulentes desejam ouvir. Desde o inicio, porém, o texto nos dá dicas de que Camilo pode ser en-ganado, quando ele nos é apresentado como um “ingênuo da vida moral e prática (...) Nem experiência, nem intuição”, com dificuldade em perceber a malicia e o peso da realidade ao seu redor, como vemos em relação às investidas de Rita e a preocupação e insegurança dela por eles, as quais ele só vai saber quando ela chega da cartomante. Enfim, é desse choque entre esses dois mundos - realista e mistico - que resulta a tragédia. Numa interpretação mais simbólica, poderiamos analisar que o autor faz uso da uma relação arquitipica antiga opondo Mulher (Mistico) x Homem (Racional). Se Camilo não fosse tão ingênuo e sonso, se Camilo tivesse continuado acreditado em si e numa visão mais “realista” da vida, poderia ter sobrevivido. Acreditou no mis-ticismo das mulheres, porém no fim chegou o homem com o revolver, lançando-lhe à realidade e concretude da vida. Por fim, poderiamos dizer também que é a história dos dois erros que Camilo cometeu: o primeiro ao trair o amigo e o segundo ao decidir acreditar na cartomante, ambos levando ao trágico final do protagonista.