88040531 Livro Sete Aulas Sobre Linguagem Memoria e Historia Jeanne Gagnebin

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Jeanne Marie Gagnebin SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA I mago

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Jeanne Marie Gagnebin

SETE AULAS

SOBRE LINGUAGEM,

MEMÓRIA E HISTÓRIA

Imago

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6129s

Copyright © Jeanne Marie Gagnebin, 1997

Revisão.-Nina Schipper, Mariflor Rocha e

J M GagnebinCapa:

Barbara Szaniecki

CIP-Brasil Catalogação.na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Jeanne Marie GagnebinSete Aulas Sobre Linguagem, Memória e Histdna -- Rio de Janeira . /mago Ed. 1997192 p. /Biblioteca Pierre Menard/

Inclui apéndice e bibliografia

ISBN 85,3/20544 t

/. Filosofia 2 Literatura – Filosofia. 3. Filosofia grega..L Thula. lL Série.

SUMARIO

Apresentação

I. O Início da História e as Lágrimas de Tucídides

Il. As Flautistas, as Parteiras e as Guerreiras

III. Morte da Memória, Memória da Morte:da Escrita em Platão

TV. Dizer o Tempo

V. Do Conceito de Mimesis no Pensamento deAdorno e Benjamin

VI. Do Conceito de Razão em Adorno

9

15

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81

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cm- 100C00 – i

VII. O Hino, a Brisa e a Tempestade: dos Anjos emWalter Benjamin97-0222 123

Reservados rodos os direitosNenhuma pane desta obra poderá serreproduzida sem permissão expressa

da EditoraI. Baudelaire, Benjamin e o Moderno

Apêndices

139

1997

IMAGO f0/TORA LTDA.

Rua Santos Rodrigues 201-A – fstáno20250430 – Rio de Janeiro – RJ

Tel:/02 I/ 293 /092

Imptesso no BrasilPanted in Brazil

II. O Camponês de Paris: Uma Topografia Espiritual

Ill. Infância e Pensamento

Fontes

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169

185

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APRESENTAÇÃO

Recolher vários textos de épocas diferentes, espalhados em diversasrevistas, para publicá-los urna segunda vez juntos — esse gesto nãodeixa de me assustar. Ele tem um perfume de veneração quasefetichista que não gostaria de reivindicar para mim. Tais coletâneassão organizadas, no mais das vezes, por discípulos saudosos, ouespertos editores que se aproveitam de algumas páginas inéditas domestre para lançar mais um livro. Não se trata disso aqui. Para dizera verdade, as razões que me convenceram da utilidade desse empreen-dimento, afora a charmosa insistência de Arthur Nestrovski, são deordem contingente e material, o que me tranqüiliza. Dizem respeitoà precariedade de nossas instituições, em particular de nossas revistasacadêmicas: quantas vezes um colega escreve um artigo que poderialhe interessar e você nem sabe de sua existência ou, então, nãoconsegue o número desejado do periódico! Reunir textos esparsospode, assim, ter o mérito simultaneamente trivial e essencial de juntarmateriais para a continuação do trabalho: do seu trabalho como autore do trabalho dos leitores, quem sabe de um trabalho comum

Nesse contexto de trabalho e de reflexão conjuntos, publico aquisete aulas, seguidas de três apêndices, que também se inserem numespírito que pode ser chamado de pedagógico —embora esse adjetivose preste a inúmeras confusões. Se, segundo a célebre fórmula kan-tiana, não se pode ensinar a filosofia, só se ensina a filosofar, entãoo tom pedagógico desses textos consistirá menos na transmissão,certamente importante, de saberes, e mais numa tentativa conjuntade elaboração de algumas questões. Elaboração demorada, paciente,

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às vezes hesitante, às vezes precipitada, atravessada por ritmos etempos diferentes como o caminhar e conversar de amigos, segundoas variações metafóricas em torno do método filosófico, de Platão esua "longa estrada " até Benjamin e seu "método" como "desvio".

Mas será que há uma questão central nesse itinerário múltiplo?A releitura desses textos me parece indicar, à revelia das intençõesprimeiras e explicitas da autora — pois as questões verdadeiras nãonos pertencem, nem são o privilégio exclusivo da consciência clara— um núcleo de interrogação em redor do qual gravitam todos osensaios, um núcleo que seria, simultaneamente, objeto do desejo efundamento do pensamento, que o põe em movimento e se lheesquiva; encontro essa interrogação formulada no texto sobre oslivros X e XI das Confissões de Santo Agostinho, "Dizer o Tempo", oensaio mais pedagógico de todos para mim, pois não sou nenhumaespecialista em patrística. É a questão da relação transcendentalmútua entre tempo e linguagem, porque não há linguagem que sediga sem se desdobrar nas várias dobras do tempo, nem tempo quepossa se configurar e adquirir sentido, por mais fugaz que seja, semser recolhido e articulado por linguagem. Co-pertencer recíproco queressalta a sua comum ligação à ausência: a linguagem só remete aoreal, às "coisas", como se diz, porque presentifica sua ausência e,portanto, como o viu bem Maurice Blanchot, anuncia sempre suamorte; e o tempo não se deixa agarrar, mas só nos pertence no seuincessante escapulir, nesse movimento de promessa e de evasão quenos desapossa de qualquer posse, da dos objetos e daqueles queamamos, mas também da posse de nós mesmos.

Essa questão genuinamente filosófica, talvez mesmo metafísica— ousei até usar o adjetivo "transcendental" —, pertence à tradiçãofilosófica clássica; uma outra interrogação a acompanha, que geral-mente s6 intervém na filosofia como seu não-dito, seu recalcado,talvez: a questão da diferença sexual. Hoje, relendo esses textos, mepergunto se as problemáticas não se cruzam e se enredam coin umaintensidade que não suspeitava quando procurava interrogar o usodas metafóras sexuais, ou as tentativas de partilha clara entre femi-nino e masculino, por exemplo, na obra de Platão. Pois a diferençasexual também remete a esse limite de nós mesmos que não podemosultrapassar, que nos limita no duplo sentido de delimitação, portantode definição, e de limitação, portanto de restrição. Também esselimite, tão impensado pelo discurso filosófico, nos constitui e nosescapa corno o fazem temporalidade e linguagem, também ele é o

Apresenlacão : 1 1

signo incontestável de nossa incompletude, de nossa condição demortal, como já dizia Homero. E seu reconhecimento pleno, com asangústias e alegrias que comporta, talvez não seja tão distante daatividade do pensamento e de seus jogos incessantes, sempre outros,entre alteridade e identidade.

Por fim, gostaria de agradecer aos alunos, que, em todos essesanos, pela curiosidade e pelo entusiasmo, mas também pelas hesita-ções e dificuldades, me incitaram a continuar apostando nesse exer-cício simultaneamente sério e leve, essencial e lúdico, que se chamafilosofia.

Campinas, abril de 1996.

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SETE AULAS

SOBRE LINGUAGEM,

MEMÓRIA E HISTÓRIA

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I. O INÍCIO DA HISTÓRIA

E AS LAGRIMAS DE TUCÍDIDES

Em memória de Celso M. Guimarães

Este artigo retoma algumas aulas de um curso de filosofia da história,dado há vários anos. A sua pretensão não é acrescentar um comentáriooriginal aos numerosos já existentes sobre as obras de Heródoto eTucídides, l mas esboçar uma descrição da constituição deste tipo dediscurso que, mais tarde, será chamado de história. Três aspectos serãoressaltados nesta análise das práticas narrativas de Heródoto e deTucídides: a construção da memória do passado, a questão da causa-lidade e a posição do narrador. São estes três aspectos que emetema uma concepção subjacente, explícita ou implícita, das relações entreo tempo da história dita "real" (o conjunto dos acontecimentos,Geschichte, em alemão) e o tempo da história contada (a narração dosacontecimentos, Geschichte, mas também Erzãhlung), isto é, a dinâ-mica temporal que preside à história enquanto saber (disciplina,"ciência", em alemão também Historie).

Já menciu:lamos que os discursos de Heródoto e Tucídides rece-berão, mais tarde, o nome de história. Her6doto ficou, na tradição,como "o pai da história", enquanto se fazia de Tucídides o primeiro

1 Utilizamos em particular a excelente tradução (com introdução de Jacqueline de Romilly)de Heródoto e Tucídides, na Bibliotheque dela Pléiade ( Heródote, L'enquête, trad. et notesde A. Barguet; Thucydide, La Guerre du Peloponese, trad. et notes de D. Roussel). Astraduçóes brasileiras de Mário da Gama Kury deixam muito a desejar e são, freqüente-mente, corrigidas. Sobre Her6doto e Tucídides, citemos: François Châtelet, La naissancede l'histoire (Paris: Minuit, 1962), v. 1, pp. 10-18; Jacqueline de Romilly, na já citadaintrodução do volume da Pléiade; Marcel Détienne, L'invention de la mythologie (Paris:Gallimard, 1981). Sobre Her6doto, o livro fundamental de François Hartog, Le miroird'Hérodote —Essai sur la représentation de l'autre (Paris: Gallimard, 1980). Sobre Tucídides,Jacqueline de Romilly, Histoire et raison chez Thucydide (Paris: Belles Lettres, 1967); etambém Problèmes de la democratie grecque (Paris: Hermann, 1975).

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historiador crítico. Tais denominações repousam sobre atribuiçõesposteriores, características, aliás, de qualquer ciência em busca de seucertificado de origem. Mas, nos textos de nossos primeiros "historia-dores", a palavra "história" não existe (não se encontra, fora engano,nenhuma vez na obra de Tucídides), 2 ou, então, possui um sentidomuito afastado do nosso. Pois quando Heródoto declara, nas primei-ras linhas da sua obra, "Heródoto de Halicarnassos apresenta aqui osresultados da sua investigação (histories apodexis)...", a palavra historienão pode ser simplesmente traduzida por história. O nosso conceitoimplica um gênero científico bem determinado; a palavra gregahistorie tem, nesta época e neste contexto, uma significação muito

.mais ampla: ela remete à palavra hictôr, "aquele que viu, testemu-nhou". O radical comum (v)id está ligado à visão (videre, em Latimver), ao ver e ao saber (oida em grego significa eu vi e também eu sei,pois a visão acarreta o saber). 3 Heródoto quer apresentar, mostrar(apodexis) aquilo que viu e pesquisou. Trata-se, então, de um relatode viagem, de um relatório de pesquisa, de uma narrativa informativae agradável que engloba os aspectos da realidade dignos de mençãoe de memória. Não há nenhuma restrição a um objeto determinado:a historie pode pesquisar a tradição dos povos longínquos, as causasdas enchentes do Nilo ou as razões de uma derrota militar. Estaprofusão de dados que nos parecem heterogéneos e que incomodamos sérios professores atuais, preocupados em distinguir a história dageografia ou a sociologia da antropologia, esta profusão não embara-ça Heródoto, pelo contrário. O que diferencia a sua pesquisa de outrasformas narrativas não é o(s) seu(s) objeto(s), mas o processo deaquisição destes conhecimentos. Heródoto fala daquilo que ele mes-mo viu, ou daquilo de que ouviu falar por outros; ele privilegia apalavra da testemunha, a sua própria ou a de outrem. Inúmeras vezes, Ino decorrer da sua narrativa, o nosso viajante menciona as suas"fontes", se ele mesmo viu o que conta ou se só ouviu falar e, nestecaso, se o " informante" tinha visto, ele mesmo, ou só ouvido falar. 4

Esta preocupação —que podemos relacionar com a crescente práticajudiciária, na Grécia do século V, de audição de testemunhas — traz2 0 que lá invalida o titulo da tradução brasileira: História da Guerra do Peloponeso, poishistória não existe no titulo grego!3 Cf. Emile Benveniste, Vocabulaire des institutions indo-européens, citado por Hartog, op.cit., p. 272.4 A este respeito, cf. François Hartog, op. cit., 2". pane, cap. 2; e Marcel Détienne, op. cit.,

cap. 3.

0 INICIO DA HISTORIA E AS LAGRIMAS OE TUCIOIDES 17

consigo uma primeira diferença essencial entre a narrativa "histórica"de Heródoto e as narrativas míticas, a epopéia homérica por exemplo.Heródoto só quer falar daquilo que viu ou daquilo de que ouviu falar.O período cronológico alcançado se limita, portanto, a duas ou trêsgerações antes da sua visita, pois o resto do tempo se perde nonão-mais-visto, isto é, no não-relatável. Em oposição ao nosso con-ceito de história, esta pesquisa, ligada à oralidade e à visão, nãopretende abarcar um passado distante. Tal restrição também a deli-mita em relação ao discurso mítico, que fala de um tempo longínquo,de um tempo das origens, tempo dos deuses e dos heróis, do qual sóas musas podem nos fazer lembrar, pois, sem elas, não podemos saber(idein) daquilo que não vimos.

Muito mais que a consciência de inaugurar uma nova disciplina,designada posteriormente pelo nome de história, é esta oposiçãocrescente à tradição mítica que determina, de maneira diversa, tantoa obra de Heródoto como a de Tucídides. É interessante notar queHeródoto, quando se refere às várias partes da sua obra, não usa apalavra história mas sim a palavra logos (discurso) para identificá-las;não fala da "história" dos Scitas, do Egito ou de Darius, mas sim delogos scita, de logos egipcio ou de logos a respeito de Darius etc. Opróprio vocabulário insiste na grande oposição entre logos e mythos,na qual vai se enraizar a distinção entre o discurso científico, filosó-fico ou histórico e o discurso poético-mítico. Distinção progressivaque não tem nada de necessário, nem de evidente, nem de eterno,como uma certa historiografia iluminista triunfante gostaria de esta-belecer. Nas primeiras linhas das historiai do nosso primeiro "histo-riador<;, podemos ler, ao mesmo tempo, esta imbricação e estaseparação da palavra mítica e do discurso racional emergente: "He-ródoto de Halicarnassus apresenta aqui os resultados da sua investi-gação, para que a memória dos acontecimentos não se apague entreos homens com o passar do tempo, e para que os feitos admiráveisdos helenos e dos bárbaros não caiam no esquecimento; ele dá,

1 inclusive, as razões pelas quais eles se guerrearam" (I, 1). Heródotoretoma e transforma a tarefa do poeta arcaico: contar os acontecimen-tos passados, conservar a memória, resgatar o passado, lutar contra aesquecimento. Tarefa essencial que a voz do poeta — numa sociedadesem escrita como o era a Grécia arcaica — encarnava, e que continuoutambém no texto poético escrito. Tarefa que religa o presente aopassado, fundando a identidade de uma nação ou de um individuo

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nesta religação constante: tarefa profundamente religiosa, portanto,se lembrarmos que a religião tem a ver, primeiro, com este desejo de"religação" e, só depois, com uma sistemática de crenças. Tarefareligiosa ou mítica de comemoração que unia o poeta arcaico, osacerdote e o adivinho 5 e que se transmite, até os nossos dias, naspalavras do poeta e na preocupação "cientifica" do historiador como passado. Heródoto também quer lutar contra o tempo que destróie aniquila até a lembrança dos atos heróicos dos homens, só que elenão canta mais, ele tenta dar a razão, a causa (aitia) dos acontecimen-tos, anunciando a famosa exigência platônica de logon didonai ("dara razão"). Já dissemos que esta busca privilegia a palavra de testemu-nhas vivas, que passa pelo ver e pelo ouvir. Heródoto não usa — equase não menciona — documentos escritos que poderiam ajudá-lona reconstrução do passado. Esta Primazia da oralidade tambémsublinha a sua proximidade da tradição mítica e poética, transmitidade geração em geração através de um aprendizado de cor, sem a ajudada escrita e da leitura, na imediatez da palavra falada e ouvida.

O ritmo narrativo das historiai também lembra o do poema épico,declamado em voz alta ao público reunido em tomo do aedo: a prosade Heródoto está cheia de digressões maravilhosas, de anedotasamenas ou pedagógicas que mantêm aceso o interesse do ouvinte (edo leitor) . 6 Nada da arquitetura austera e argumentativa do textotucidideano, escrito para ser lido no futuro, mas a fluidez de históriascontadas, sem dúvida, para informar e ensinar, mas também pelosimples prazer de contar. Neste rio de histórias que, como o Nilo quedescrevem, transborda às vezes o seu leito e fertiliza terras nãoprevistas pelo estrito desenho do raciocinio, nestas histórias, porém,reina um principio novo e exigente: a busca das verdadeiras razões(aitiai), das causas que Heródoto pôde, à sua maneira, verificar, emoposição às alegadas pela tradição mítica. Após explicitar sua tarefade resgate do passado, Heródoto enumera algumas pseudocausasgeralmente citadas para explicar a inimizade entre os gregos e osbárbaros; 7 são lendas antigas e confusas que variam segundo o povo

5 A este respeito cf. J. P. Vernant, Mythe et pensée chez Ies Grecs (Paris: Maspéro, 1965); eMarcel Détienne, Les mattres de véritédans la Greta archaïque (Paris: Maspéro, 1967).

6 Cf. Francois Hartog, op. cit., pp. 282 ss.7 Os bárbaros sio os não-gregos, aqueles que falam uma lingua estranha, incompreensivel:

"bar, bar, bar". Nessa primeira definição, não há nenhum sentido pejorativo a priori. Queo outro, o estrangeiro, dedlferente que é se torne selvagem e cruel, já remete a um processohistórico bem determinado.

0 INÍCIO OA HISTÓRIA E AS LAGRIMAS DE TUCÍDIDES : 19

que as conta. Falam de sucessivos raptos de mulheres: os feníciosteriam raptado lo, filha do rei grego de Argos; em represália, algunsgregos (cujos nomes são desconhecidos) fizeram o mesmo com a filhado rei dos fenícios e, mais tarde, com Medéfa, uma outra princesaestrangeira. Vendo que os gregos arrebatam mulheres impunemente,Páris de Tróia foi até Esparta roubar a bela Helena. Em vez de seconformar com este acontecimento desagradável, mas, afinal, nadacatastrófico, os gregos ficaram irados e desencadearam uma expedi-ção punitiva contra Tróia. Segundo esta tradição mítica, portanto, aorigem das Guerras Médicas deveria ser procurada na Guerra de Trbia.Heródoto não esconde sua ironia. Tais narrativas, diz ele, não sãodignas de fé, pois mudam totalmente segundo quem as conta. Elasnão conseguem verdadeiramente explicar, são até ridículas, poisninguém de bom senso acreditará que estas histórias de rapto podemdesencadear guerras: nenhuma mulher vale uma guerra, sobretudo,nenhuma mulher, nos afirma o varão Heródoto, se deixa raptarcontra a sua vontade (I, 4).

A estas lendas contadas de geração a geração sem nenhumagarantia de exatidão, Heródoto opõe a certeza daquilo que ele mesmosabe: "São estas as versões dos persas e dos fenícios. Quanto a mim, nãodirei a respeito dessas coisas que elas aconteceram de uma maneira ou deoutra, mas apontarei a pessoa que, em minha opinião, foi a primeira aofender os helenos, e assim prosseguirei com a minha narração, falandoigualmente das pequenas e grandes cidades dos homens" (I, 5).

Heródoto opera aqui uma partilha entre dois tipos de narrativasque correspondem a duas formas de tempo: há uma narrativa mítica,lendária, sem cronologia possível, que remete ao tempo afastado dosdeuses e dos homens; e há uma narrativa "histórica" (de um tempopesquisável e pesquisado), com referências cronológicas passíveis deserem encontradas, que trata do tempo mais recente dos homens.Como o ressalta Vidal-Naquet,8 esta oposição orienta o discurso deHeródoto muito mais que uma suposta oposição entre tempo cíclicoe tempo linear. Notemos também que Heródoto não duvida daexistência deste tempo anterior, mítico e sagrado. A sua descrição doEgito, pais que para os gregos clássicos sempre representou a autori-dade e a sabedoria de uma civilização muito mais antiga, ressalta queeste tempo realmente existiu, mas está muito mais afastado do nosso

8 Cf. Pierre Vidal-Naquet, "Temps des dieux et temps des hommes", em Le chasseur noir(Paris: Maspéro, 1981), sobretudo pp. 81 ss.

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do que geralmente acreditamos. 9 Não se trata de negar o tempomítico e sagrado; trata-se, para Heródoto, de recusar os procedimen-tos narrativos do mito para descrever o nosso tempo humano, restri-to, finito..., enfim, "histórico"! A busca das verdadeiras razões dosacontecimentos através do testemunho próprio ou alheio inscreve-seneste esforço racional — do logos em oposição ao rnythos — de escritada nossa história.

Coexistem, porém, em Heródoto, ao lado do esforço de estabele-cimento de uma cronologia e de uma causalidade lineares, outrastentativas de explicação muito mais antigas, ligadas ao pensamentoque nossa razão continua designando como mítico. Seguindo Vidal-Naquet e François Chátelet,

10devemos mencionar a crença de Heró-

doto numa lei cosmológica de repetição e de compensação. Esta idéiade repetição orienta a própria estrutura das historiai: assim, o reiCresus anuncia Xerxes e a guerra de Darius contra os scitas anunciaa expedição de Xerxes contra os gregos.'

1Fundamentalmente, a idéia

de repetição retoma a antiga lei de compensação e reviravolta, ligadaà noção mítica de vingança, que se transformará no conceito dejustiça natural e social, na dike de Anaximandro.

12

Depois de recusar as causas lendárias das Guerras Médicas, Heró-doto declara: "Quanto a mim, não direi a respeito dessas coisas queelas aconteceram de uma maneira ou de outra, mas apontarei a pessoaque, em minha opinião, foi a primeira a ofender os helenos, e assimprosseguirei com a minha narração, falando igualmente das pequenase das grandes cidades dos homens, pois muitas cidades outroragrandes agora são pequenas, e as grandes no meu tempo eram outrorapequenas. Sabendo portanto que a prosperidade humana jamais éestável, farei menção a ambas igualmente" (I, 5).

Temos, aqui, a convicção, ao lado da busca das causas políticas,de que existe um processo cíclico de compensação justa: nada dehumano que seja estável, o pequeno cresce até se tomar grande, mastambém o grande desmorona e se torna pequeno de novo. EmHeródoto, como no pensamento grego em geral, não há lugar para

9 Ibid.10Cf. Pierre Vidal-Naquet, op. cit.; e François Chatelet, op. cit. Deste, cf. também, Les

ldéologla (orgs. Chatelet e G. Mairet, Paris: Marabout, 1981), v.1, pp. 171 ss.11 Cf. Pierre Vidal-Naquet, op. cit.; François Chatelet, op. cit.; e, também, François Hartog,

op. cit., p. 376.12 Anaximandro, fragmentos citados por Simplicius, Física, 24, 13; cf. Pré-socráticos (Sao

Paulo: Abril Cultural, 1973 e reed.); Coleçao Os Pensadores, p. 16.

INICIO OA HISTÓRIA E AS LAGRIMAS DE TUCIOIOES : 21

uma idéia de progresso histórico linear. Há sim, muito mais, a certezade que qualquer excesso, mesmo um excesso de felicidade, deve sercastigado, pois coloca em questão o equilíbrio cósmico (lembremosque a palavra ,(Cosmos, em grego, significa "mundo" e "ordem": omundo já está em ordem e deve ser mantido nesta sua ordemessencial). Vários episódios das historiai confirmam esta necessidade(ananke) secular, à qual, segundo o pensamento mítico, mesmo osdeuses obedecem; por exemplo, a famosa história de Polfcrates (III,39.43), tirano que tudo consegue e tenta em vão se livrar dessa sortegrande demais, jogando no mar um anel muito precioso, reencontra-do, alguns dias depois, na barriga do peixe servido à sua mesa.Polfcrates acabará assassinado vergonhosamente (III, 125), tendo umfim cruel, proporcionalmente ao seu excesso de sorte.

Reina então em Heródoto um principio de causalidade profun-damente grego e, para nós modernos, pouco "racional": ".,. o que osdeuses castigam (...) é o orgulho desmedido (a hybris), a pretensão deum homem de ser mais que um homem. A narração histórica reen-contra as lições da tragédia." 13 Mesmo se Heródoto menciona, commuita perspicácia, uma série de causas mais imediatas das guerras (umincêndio criminoso, um juramento transmitido de geração em gera-ção, o caráter especialmente irascível de um rei etc.), 14 a verdadeirarazão da derrota persa deve ser procurada no necessário castigo daambição ilimitada de Darius e de Xerxes. É esta hybris que caracteriza,aliás, os reis bárbaros (e alguns tiranos gregos): 15 o rei dos reis semprequer ir além dos limites impostos pela ordem material ou social. Estavontade de transgressão o faz ultrapassar as fronteiras naturais paradeixar a Asia, seu dominio próprio, e invadir a Europa, que não lhepertence: Ciro, fundador da dinastia, constrói uma ponte sobre o rioAraxe no norte de seu império; Darius atravessa o Bósforo; Xerxes,enfim, ergue, por duas vezes, uma ponte sobre o Helesponte parachegar à Grécia. A primeira ponte é destruída por uma tempestadeque manifesta claramente a recusa do mar divino. Xerxes mandaflagelar o Helesponte, como se fosse o seu escravo, e constrói umasegunda ponte; não é por acaso que será derrotado na batalha navalde Salaminas: o mar ultrajado se vinga através da frota ateniensevitoriosa. O rei persa tampouco respeita as leis estabelecidas pelos

13 François Chatelet, Les ideologies, loc. cit., v. I, pp. 134-135.14 Ibid.15 Cf. François Hartog, "Le pouvoir despotique", op. cit., parte III, cap. 3.

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homens: ultraja o corpo dos seus súditos, os flagela, os corta, osamputa, os tortura ou, então, os deseja demais (a palavra eros só seaplica aos reis e aos tiranos nas historiai). Deseja-os mais ainda quandolhe são proibidos pelas leis humanas: Cambisies deseja suas irmãs, ofaraó Mikerinos sua filha, Xerxes a mulher de seu filho etc. Imperia-lismo e erotismo caracterizam esta vontade sem freio do soberanoque, finalmente, o levará à sua perda.

Com efeito, na análise de Heródoto, os gregos não vencemporque são melhores —sejam eles mais "civilizados" que estes bárba-ros "selvagens", 1fi sejam eles guerreiros mais corajosos. O que fundaa superioridade dos gregos é que eles não obedecem ao chicote deum senhor despótico (o despotes persa), mas a uma regra, a uma lei(nomos) que eles mesmos escolheram e estabeleceram.' Ao privilegiara democracia, em particular a democracia ateniense, contra a monarquiae a tirania, Heródoto não escolhe simplesmente um regime politico.Defende uma concepção da sociedade humana fundada no logos, isto é,no diálogo argumentativo entre iguais que procuram juntos uma regracomum de ação; a este paradigma racional e democrático se opõe umaconcepção do social baseada no poder e na vontade (para não dizerna vontade de poder!) do mais forte, na sua transgressão das regrasdo convívio social e na sua expansão sem limites. Este conflito, queperdura até hoje, preside a oposição-mestra das historiai, a oposiçãoentre gregos e bárbaros. Uma geração mais tarde, com Tucidides, e,depois, com Platão e a sofistica, a contradição entre nomos (lei, regra)ephysis (natureza) corroerá por dentro o belo edificio da polis atenien-se. Conta-se que Heródoto leu, em 445 ou 444 a.C., o seu texto emvoz alta ao povo ateniense reunido; transportados pelo entusiasmo, oscidadãos de Atenas lhe ofereceram um prêmio, como se fazia nosconcursos de poesia trágica. Talvez uma das razões deste sucesso decor-resse de Heródoto ter conseguido construir através da longa descriçãodos povos bárbaros uma imagem convincente de "n6s", dos gregos,em particular dos atenienses. Observe-se: não uma imagem belademais ou demagogicamente lisonjeira, mas a confrontação com o"outro" permite, por um jogo de espelhos,' g pintar um retrato do16 Esta sera a opinião de Tucidides que, por isso, desinteressar-se-a dos bárbaros, estágio

anterior da civilização. Cf. Tucidides, Guerra do Peloponeso, I, 6; e François Hartog, op. cit.,p. 371.17 Cf. François Hartog, op. cit., pp. 340 ss.18 Daf o belo titulo do livro de Hartog, Le miroir d'Hérodote — Essai sur la representation del'autre.

0 INÍCIO DA HISTORIA E AS LAGRIMAS DE TUCÍDIDES 23

"mesmo" muito mais coerente e pleno do que teria feito uma simplesreprodução dos seus traços; somente a mediação pelo outro permiteesta auto-apreensão segura de si mesmo.

De que, pois, falam as historiai senão dos gregos através dosbárbaros? Como o mostra o livro de F. Hartog, uma lei estrutura aobra: a lei da comparação entre bárbaros e gregos, não para decidirquemé melhor (Heródoto foi acusado de barbarophilia, de gostardemais dos bárbaros), mas muito mais para entender como funcionao diferente. Esta estrutura forma a unidade da obra, muitas vezesnegada pela tradição critica. Os primeiros quatro livros são dedicadosà descrição dos "outros" — dos persas, dos egipcios, dos scitas etc. —,os cinco últimos à história propriamente dita das Guerras Médicas.Muitos comentadores quiseram ver um corte epistemológico entreum "Heródoto etnólogo", apaixonado pelo diferente, pelo maravi-lhoso, pelo exótico, e um "Heródoto historiador", relator sereno emaduro da primeira vitória da racionalidade ocidental sobre as forçascaóticas do Oriente. Ora, como o ressalta Hartog, 19 o "Heródotoetnólogo" e o "Heródoto historiador" são um e só pesquisador quetgntá entender aquilo que é condiçãode convivência e também__possibilidade de &tierra: a diferença. Se ele é mais prolixo e estáseduzido pelo exótico nos quatro primeiros livros, é porque o outroé tão diferente que só pode provocar admiração; os cinco últimoslivros, por tratarem de "n6s mesmos, pedem um tom mais sóbrio.

Um pouco à imagem da sua cidade natal — Halicamassos, situadana costa da Ásia, mas pertencendo à civilização grega —, Heródototentaria manter uma posição privilegiada de intermediário, de media-dor aquele que está no meio, entre os bárbaros asiáticos e os gregoseuropeus, aquele que estabelece uma mediação entre dois opostos.Lugar mediano, singular, que o estatuto de exilado de Heródotoreforça.20 As análises de Hartog ressaltam essa vontade explicita doautor de marcar a sua posição de narrador, isto é, de sujeito soberanoda enunciação: "eu vi", "eu ouvi", "eu contarei", "eu mostrarei", "eudirei", mas também "eu não direi", "eu sei, mas manterei a informa-ção secreta" etc. Estas expressões pontuam o texto e nos lembramincessantemente que a nossa informação só provém do seu saber.Hartog também chama a atenção para o fato de Heródoto falar, às

19 Cf. François Hartog, op. cit., pp. 373 ss.20 Heródoto tem que se exilar, pois a sua familia se opios sem sucesso ao tirano da cidade.

Observe-se que também Tucidides sera um exilado.

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24 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA

vezes, nos bárbiros e em "nós (isto é, eu e os outros gregos incluin-do-se nos "nós"), mas também, muitas vezes, nos bárbaros e nosgregos, usando esta terceira pessoa que, segundo as análises deBenveniste,21 rião é realmente uma pessoa, reservando, assim, ao"eu-narrador" um lugar à parte, a igual distáncia dos bárbaros e dosgregos.

Ora, esta posição privilegiada do narrador, que deveria assegurartanto o seu poder como a sua objetividade (tão cara aos historiadoresfuturos), esta posição mediadora e imparcial é sub-repticiamenteminada pelo fluxo da narrativa. Se, como já assinalamos, é a lei dacomparação entre gregos e bárbaros que estrutura o texto herodotia-no, esta comparação se transforma, na maioria dos casos, numainversão simétrica, cujo primeiro termo só pode ser o referencialgrego. Hartog

22observa que Heródoto quer realmente descrever os

outros povos, narrar com generosidade e admiração os seus tãoestranhos costumes; mas ele só consegue falar deles "em grego", istoé, com as categorias e com a lógica de compreensão de um grego doséculo V. Ele, aliás, não sente nenhuma necessidade em aprender aslínguas dos povos que visita. Assim, ao tentar entender o que é odiferente, Heródoto o transforma no "outro do mesmo", no duploinverso e simétrico do modelo primeiro — isto é, grego —, modelosempre presente, também, quando não está explícito (sobretudoquando não está explicito?). O Livro II, consagrado ao fabuloso Egito,está cheio destas descrições invertidas, que deveriam, sem dúvida, nosmostrar o quanto são estranhos os egípcios, mas cujo efeito consistemuito mais em nos remeter aos nossos costumes de gregos. Assim,por exemplo, a deliciosa passagem do Livro II, 35, na qual a inversãoentre gregos e bárbaros é descrita pela inversão dos papéis masculinoe feminino (pois a primeira e incompreensível diferença é a dossexos):

Mas vou alongar-me em minhas observações a respeito do Egito,pois em parte alguma há tantas maravilhas como lá, e em todasas terras restantes não há tantas obras de inexprimível grandezapara serem vistas; por isso falarei mais sobre ele. Da mesma formaque o Egito tem um clima peculiar e seu rio é diferente por suanatureza de todos os outros rios, todos os seus costumes e insti-

21 CE Emile Benveniste, Problèmes de linguistique generate (Paris: Gallimard, 1966), cap. 18.22 Cf. François Hartog, op. cit., pp. 224 ss.

D INICIO DA HISTÓRIA E AS LAGRIMAS DE TUCIOIOES 25

tuições são geralmente diferentes dos costumes e instituições dosoutros homens. Entre os egípcios as mulheres compram e ven-dem, enquanto os homens ficam em casa e tecem. Em toda a partese tece levando a trama de baixo para cima, mas os egípcios alevam de cima para baixo. Os homens carregam os fardos em suascabeças, mas as mulheres os carregam em seus ombros. As mulhe-res urinam em pé, e os homens acocorados. Eles satisfazem as suasnecessidades naturais dentro de casa, mas comem do lado de fora,nas mas, alegando que as necessidades vergonhosas do corpodevem ser satisfeitas secretamente, enquanto as não-vergonhosasdevem ser satisfeitas abertamente. Nenhuma mulher é consagradaao serviço de qualquer divindade, seja esta masculina ou femini-na; os homens são sacerdotes de todas as divindades. Os filhosnão são compelidos contra a sua vontade a sustentar seus pais,mas as filhas devem fazé-Io, mesmo sem querer.

Para ser fiel à intenção das suas historiai, o narrador Heródototenta permanecer firmemente no lugar privilegiado do meio e damediação, significando aos gregos que os bárbaros não são nempiores nem melhores, mas, simplesmente, diferentes. Para descrevere entendé-los, recorre à oposição, à inversão, ao contrário, a todas asfiguras que transformam a diferença múltipla em alteridade (nosentido etimológico do latim alter [outro de dois]). Esta lei de oposiçãobinária é tão forte que, como assinala Hartog,23 quando Heródotodescreve um conflito entre dois povos bárbaros, um deles tende,inexoravelmente, a se helenizar, a assumir, por exemplo, a estratégiados hoplitas gregos: entre o grego e seu contrário, o bárbaro, não hálugar para uma terceira (quarta, quinta) possibilidade. Nesta partilha,o eu do narrador já escolheu, talvez contra a sua vontade consciente,o lado grego, esse lado que não entende a lingua "bár/ba/ra", etampouco precisa aprendê-Ia. Como se a bela lingua grega pudessedizer tudo: desejo — ou hybris? — do primeiro historiador, e de outrosdepois dele, de poder descrever o outro sem que este nos desalojassenecessariamente da nossa gramática e da nossa terminologia, nosforçasse a sair da nossa língua com o risco de ficarmos, talvez pormuito tempo, sem palavras.

23 Ibid., pp. 369 ss.

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26 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA

Existem, também, várias histórias sobre Heródoto. Uma delasconta que leu trechos de sua obra num concurso literário que acom-panhava as provas esportivas dos jogos olímpicos; na assistência, umadolescente ficou emocionado até as lágrimas: era o jovem Tucfdides.História "verdadeira" ou ficção "mentirosa"? Nada nos impede decontinuar essa bela história, nos perguntando sobre as lágrimas deTucfdides. Por que chorou? Por que teve revelada af a sua "vocação"de historiador, como pretendem vários comentadores? Ou, talvez,porque chorava sobre esta bela imagem da Atenas democrática eheróica, salvadora da Grécia inteira, imagem já prestes a desaparecer?Ou, ainda, porque pressentia que, em breve, deveria despedir-se desteestilo amável e sereno que ainda confiava no prazer da palavra e natolerância da razão? Ninguém o sabe.

Agora, quando lemos A Guerra do Peloponeso, o que chama a nossaatenção é o corte radical 24

introduzido por Tucfdides em relação àtradição narrativa da "história", em particular em relação a Heródoto(que, por sua vez, também tinha criticado seu antecessor, o viajanteHecateu). Nada mais da emoção que, talvez, sentiu ao escutar o "paida história" (e de tantas histórias). Tucfdides rejeita Heródoto nodomínio das antigas tradições míticas, no mythodes que recusa por-que, sob seus aspectos agradáveis e sedutores, ele não possui nenhu-ma solidez ese desfaz com a rapidez das palavras lançadas ao vento.Com ormythodes o maravilhoso tão caro a Heródoto, Tucfdidesrejeita, também, a importância da memória, relegando ao passado aantiga deusa Mnemosyne. Heródoto queria salvar o memorável,resgatar o passado do esquecimento, buscando nas palavras dastestemunhas a lembrança das obras humanas. Tucfdides ressalta afragilidade da memória, tanto alheia como sua; as falhas constantesde memória motivam uma profunda mudança no trabalho do "his-toriador", que não pode confiar nem na sua exatidão nem na suaobjetividade. Nos primeiros parágrafos da sua obra consagrados —poderfamos dizer — à sua metodologia de pesquisa, Tucídides despa-cha juntos as suas próprias lembranças e os testemunhos dos outros,ambos condenados A subjetividade das preferências pessoais e àrelatividade da memória:

24 Sobre a distancia de Tucfdides em relação ao mito e à memória, cf. as páginas decisivasde Marcel Détienne, L'invention de la mythologie, pp. 105 ss.

0 INÍCIO OA HISTÓRIA E AS LAGRIMAS DE TUCÍOIOES : 27

Quanto aos discursos pronunciados por diversas personalidadesquando estavam prestes a desencadear a guerra ou quando jáestavam engajados nela, foi difícil recordar com precisão rigorosaos que eu mesmo ouvi ou os que me foram transmitidos por váriasfontes. Tais discursos, portanto, são reproduzidos com as palavrasque, no meu entendimento, os diferentes oradores deveriam terusado, considerando os respectivos assuntos e os sentimentosmais pertinentes à ocasião em que foram pronunciados, emboraao mesmo tempo eu tenha aderido tão estritamente quantopossível ao sentido geral do que havia sido dito. Quanto aosacontecimentos da guerra, considerei meu dever relatá-los, nãocomo apurados através de qualquer informante casual nem comoera a minha impressão pessoal, mas somente após investigar cadadetalhe com o maior rigor possível, seja no caso de eventos dosquais eu mesmo participei, seja naqueles a respeito dos quaisobtive informações de terceiros. O empenho em apurar os fatosconstituiu uma tarefa laboriosa, pois testemunhas oculares devários eventos nem sempre faziam os mesmos relatos a respeitodas mesmas coisas, mas variavam de acordo com suas simpatiaspor um lado ou pelo outro, ou de acordo com sua memória 25

É notável, aqui, a insistência de Tucfdides em afirmar que não vairelatar as palavras realmente pronunciadas. Isto poderia ser até im-plícito se lembrarmos que os discursos proferidos o eram em assem-bléias ad hoc, sem relator nem secretário; mas se Tucfdides insistenesse ponto é que ele quer ressaltar uma impossibilidade mais essen-cial: nãóse góde acreditar na memória para garantir a fidelidade dorelato à realidade. Em oposição à toda tradição anterior, a memóriaem Tucldides riãü assegura nenhuma autenticidade. Esta desconfian-ça motiva a critica severa aos métodos de pesquisa de Heródoto, aquiclaramente citado, mesmo se não nomeado: perguntar às mais diver-sas pessoas sobre um mesmo evento não traz informações, mas sóocasiona confusão, pois cada um responde "... de acordo com suassimpatias (...) ou de acordo com sua memória". É verdade que, váriasvezes, Heródoto não esconde seu ceticismo em relação As versões dosfatos ou As explicações ouvidas. Tucfdides não se contenta com umceticismo benevolente; exige uma reconstituição crítica dos aconte-

25 Tucfdides, La Guerra du PeloponAse, I, 22.

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28 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMORIA E HISTORIA

cimentos, cujos critérios racionais são a verossimilhança da situaçãoe a pertinência das palavras pronunciadas:

Tais discursos, portanto, são reproduzidos com as palavras que,no meu entendimento, os diferentes oradores deveriam ter usado,considerando os respectivos assuntos e os sentimentos mais per-tinentes à ocasião em que foram pronunciados...

26

Significaria esta passagem que Tucfdides, em vez de relatar aspalavras ditas, as inventa sem dar a devida importância aos famososfatos?27 Talvez. No mínimo, significa que Tucfdides escreveu os seusnumerosos e famosos discursos segundo a ordem das razões históri-cas, como o faria um filósofo político ou um observador psicólogo,e não como um cronista, confiando em suas lembranças. Na ordemdos discursos (dos logoi) prevalece, portanto, o critério racional daconveniência e da verossimilhança, amparado por uma análise daconjuntura política e da natureza psicológica do orador. Na ordemdos acontecimentos e das ações (dos erga) reina o critério da verifica-ção, igualmente amparado na verossimilhança racional. Tucfdidesnão conta as várias versões possíveis do mesmo fato, para deixar oleitor livre de escolher a que mais lhe apraz. O seu texto resulta deuma escolha prévia a partir de um material que não é nem sequermencionado, e segundo critérios cujos detalhes desconhecemos. Ainteligência de Tucfdides já decidiu por nós a versão racional a seradotada. A sua narrativa se desenvolve de maneira coerente, com umalógica que nos convence das suas hipóteses e das suas interpretações.Pela primeira vez, a história humana nos é apresentada como com-preensível e explicável racionalmente, com todas as suas implicaçõese possibilidades. A trama escura e dramática da Guerra do Peloponesodesenha-se sobre o fundo luminoso de um discurso (logos) e de umarazão (logos também) que atravessam o caos dos fatos, para delesretirarem conclusões valiosas e ensinamentos eternos. O discernimentode Tucfdides nos permite compreender racionalmente a história; nosimpede, ao mesmo tempo, de conceber uma outra história que aquelaescrita por ele. Nós não conseguimos imaginar uma outra versão daguerra, uma outra Guerra do Peloponeso, uma outra história do26 Ibid.27 Tal suspeita leva, por exemplo, R. G. Collingwood a criticar a falta de "cientificidade" de

Tucídides.Cf.ILG. Collingwood,A IANadeHistdria (São Paulo: Martins Fontes), pp. 42 ss.

O INICIO DA HISTÓRIA E AS LAGRIMAS OE TUC(OIOES 29

imperialismo ateniense, pois Tucfdides não cita as suas fontes nemmenciona documentos (uma exigência "cientifica" profundamentemoderna) e s6 nos oferece o resultado da sua reflexão rigorosa.Enquanto Herbdoto contava inúmeras histórias, também pelo pró-prio gosto de contar, Tucfdides constrói a versão racional e defini-tiva da história sem se deixar Levar pelo prazer da narração; dal,também, a austeridade do seu relato, no qual as emoções raramentetransparecem.

A escrita tucidideana obedece a uma partilha que reencontra-mos em Platão: de um lado, a razão, a austeridade, o rigor e ocontrole; de outro, a emoção, o prazer, o maravilhoso cheio decores que atrai mulheres e crianças: o mythodes. De um lado, unspoucos que conseguem compreender, analisar, ter um discursocompetente e justo, que também sabem dirigir (Péricles); de outro,os muitos, o povo que se deixa levar pelas impressões superficiais epelos encantos das belas palavras, que não sabe dirigir nem a simesmo e precisa da autoridade alheia. Em Tucfdides — diferente-mente de Platão, que resguardará o seu valor sagrado —, a memóriapertence ao mythodes e ao engodo. Ela não reproduz fielmente opassado, mas dispõe dele segundo as conveniências do momentopresente. Assim, por exemplo, a tradição ateniense conta a façanhamemorável do assassinato dos tiranos pelos heróis Harmodios eAristogitão. Esta história pertence ao repertório das lendas queglorificam a democracia em vigor na cidade. Na verdade, diz Tucfdi-des, os "tiranocidas" não obedeceram a elevados motivos politicos,mas, sim, a ciúmes amorosos bem mais comuns; prova disso é ques6 um dos tiranos foi morto, enquanto o outro, mais velho e maispoderoso, continuou reinando até que um complb de cidadãos(ajudados pela inimiga Esparta!) o derrotasse. 28 A desconfiança emrelação à memória inscreve-se num projeto muito mais amplo, quechamaríamos, hoje, de crítica ideológica, pois memória e tradiçãoformam este conglomerado confuso de falsas evidências, do qualó presente tira sua justificativa. A escrita desmistificadora de Tucf-dides não poupa nem a tradição política nem a tradição religiosa.Exemplares, aqui, são as suas observações depois da dramáticadescrição da "peste" em Atenas:

28 Cf. Tucfdides, citado por Marcel Détienne, op. cit., p. 108.

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30 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA

Em seu desespero [os atenienses] lembravam-se, como era natural,do seguinte verso oracular que, segundo os mais velhos entre eles,fora proferido havia muito tempo: 'Virá um dia a guerra daria, e comela a peste.' Houve na época muita discussão entre o povo, pois umaparte da população pretendia que no verso em vez de peste (loimos)se deveria entender fome (limos), e naquela ocasião prevaleceu oponto de vista de que a palavra era peste; isso era muito natural,pois as lembranças dos homens se adaptam a suas vicissitudes. Sehouver outra guerra daria depois desta e com ela vier a fome,imagino que entenderão o verso à luz das novas circunstancias.29

O único remédio para evitar esta manipulação do passado é deixarresolutamente os encantos da oralidade, das palavras que voam deboca para boca, incham-se de desejos e paixões e chegam cheias dehistórias inverificáveis. 30 Tucídides reivindica a escrita como meio defixação dos acontecimentos, fazendo da imutabilidade do escrito umagarantia de fidelidade. 31 Várias vezes, ele se define como sendo umsyggrapheus, aquele que escreve (graphein) junto (sun) aos aconteci-mentos, titulo que também se aplica aos juristas redatores de projetosde lei ou de contratos precisos entre cidadãos. Trata-se, então, de umagrafia que engaja a quem a escreve ou ale, uma escrita que exige umaatitude prática e uma coerência a longo prazo. Não remete à tradiçãopoético-literária do mythodes, como o faziam ainda as historiai deHeródoto, mas às exigências político-jurídicas de um cidadão preocu-pado com o futuro. O "historiador" abandona — por Longo tempo — adimensão ficcional da história para consagrar-se à sua dimensãopolítica, muitas vezes erigida como a única verdadeiramente históri-ca. 32 Tucídides explicita esta escolha com uma clareza exemplar:

Pode acontecer que a ausencia do fabuloso (mythodes) em minhanarrativa pareça menos agradável ao ouvido, mas quem quer quedeseje ter uma idéia clara tanto dos eventos ocorridos quantodaqueles, semelhantes ou similares, que a natureza humana nosreserva no futuro, julgará a minha narrativa útil e isto me bastará.

29 Ibid., p. 109.30 Ibid., pp. 115 ss.31 Neste ponto não concorda com Platão, que no Fedro v2 na fixidez da escrita uma prova

da sua rigidez arbitrária.32 Nos debates historiográficos contemporâneos, assistimos a uma revalorização desta

dimensão ficcional... e a uma redescoberta de Heródoto!

0 INÍCIO OA HISTÓRIA E AS LAGRIMAS OE TUCÍDIDES : 31

Mais do que uma composição a ser ouvida por um público domomento da competição, ela foi feita para ser uma aquisição parasempre 33

Neste parágrafo famoso, Tucídides se despede definitivamente domythos e do mythodes para fundar um discurso racional (logos) dahistória. Ele não quer mais contar o maravilhoso (em oposição aHeródoto, que falava demoradamente do Egito "pois nenhum outropals do mundo contém tantas maravilhas"), 34 nem salvar os atospassados do esquecimento, como Homero e, ainda que de maneiradiferente, também Heródoto o desejavam. A sua vontade de "ter umaidéia clara (...) dos eventos ocorridos" tampouco remete a umapreocupação exclusiva de fidelidade para com o passado (motivaçãomuito mais típica do historicismo moderno). Demonstra muito maisuma exigência de penetração racional e analítica deste magma infor-me que são os fatos do passado, para deles extrair um ktèma eis aei,uma aquisição, um tesouro para sempre—isto é, primeiro para o leitoratento e futuro que IeráA Guerra do Peloponeso para tirar desta históriaantiga ensinamentos atuais. Heródoto escrevia para resgatar umpassado ilustre; Tucídides escreve no presente sobre o presente35 parainstruir o futuro, confiante que da história do passado possa-seaprender para o presente, pois a natureza humana continua inaltera-da, isto é, sempre prestes a obedecer ao desejo de poder, sacrificandoo interesse geral aos interesses particulares e egoístas. Inaugura, assim,a figura da Historia Magistra Vitae, 36 desenhando estes quadros renas-centistas nos quais um historiador sóbrio e sábio, de pé no segundoplano, olha para um jovem príncipe que decifra as regras da vidapolítica nos antigos livros de história.

A oralidade do texto lido em voz alta para "um público nomomento da competição" contrapõe-se a escrita rigorosa, destinadaao leitor a vir, debruçado com paciência e atenção sobre o texto.Todos os comentadores concordam em observar que esta rupturadecisiva em favor da escrita contra a vivacidade da palavra oral nãoremete só à critica da tradição mítica (e herodotiana) mas, também,

33 Tuddides, op. cit., 1, 22.34 Heródoto, Historiai, 11, 35.35 A guerra começa em 431 a.C., Tucídides começa a redação da sua obra neste mesmo ano.

A sua morte o impedirá de contar o fim da guerra (404 a.C.), que ele presencia.36 Cf. R. Koselleck, Vergangene Zukunft. Zur Semantik Geschichaicher Zeiten (Frankfurt am

Main: Suhrkamp, 1979), cap. 2.

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32 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA

e sobretudo,'à critica dos usos da palavra na democracia ateniense37Atrás da necessidade de reformular a escrita da história, encontramosa necessidade de reformular a democracia ateniense. Para Tucfdides,uma das causas essenciais da derrota de Atenas é a cegueira do povo,que se deixa arrebatar pelos seus desejos e pela voz dos demagogos.O único dirigente que não fala para "agradar o povo", mas sim paraeducá-lo, é Péricles

R

(observemos que esta oposição entre agradar eeducar lembra aquela que Tucfdides constrói entre Heródoto e elemesmo). Com sua morte, começa o reino dos demagogos, que nãotem autoridade pessoal e, por isso, tentam agradar ao povo paravencer na assembléia, pois "... equivalentes uns aos outros mas cadaum desejoso de ser o primeiro, procuravam sempre satisfazer aoprazer do povo":

39A palavra hèdonè (prazer) ressalta o caráter afetivo

e emocional das decisões populares; esta falha de razão na condutados negócios da cidade vai, segundo a análise tucidideana, conduzirAtenas à sua perda. Várias vezes, Tucfdides nos conta episódios que,a rigor, não têm uma importância decisiva no desenrolar das opera-ções bélicas, mas que são paradigmáticos desta irracionalidade. Umdos mais característicos é a história de Mitilena, cidade de Lesbos, quese absteve de apoiar Atenas; um contingente ateniense sitia a cidade,esperando a decisão da metrópole; com o inverno e a falta de socorrodo campo oposto, Mitilena se rende. Que fazer com seus habitantes?A assembléia ateniense delibera. Clêon, um demagogo famoso peloseu caráter desmedido, intervém e propõe a morte de todos cidadãosde Mitilena; "sob efeito da cólera" (orgé), diz Tucfdides,40 o povo votaem favor da matança e envia um navio com esta ordem para a ilha.No dia seguinte, nova assembléia: os cidadãos começavam a searrepender de ter votado medidas tão drásticas. Dois oradores entramem cena numa situação modelar de briga oratória: Clêon, de um lado,que continua afirmando a necessidade da repressão sanguinária e, dooutro, um cidadão desconhecido por nós, Diodotés, que recomendamais sabedoria, argumentando que essa crueldade só fortalecerá oódio dos inimigos de Atenas. Desta vez o povo escuta Diodotés; um

37 A esse respeito, cf. Jacqueline de Romilly, Problèmes de la democratie grecque, op. cit.,especialmente pp. 19-47; e também Francois Chatelet, op. cit., cap. If.

38 Tucfdides, op. cit., II, 66; cf. também, Jacqueline de Romilly, Problèmes de la democratiegrecque, op. cit., pp. 30-38.

39 Tucfdides, op. cit.40 Tucfdides, op. cit., II, 36; e Jacqueline de Romilly, Problèmes de la democratic grecque, op.

cit., p. 33.

O INÍCIO DA HISTÓRIA E AS LAGRIMAS DE TUCÍO IDES 33

novo navio é enviado às pressas para alcançar o primeiro e revogar odecreto de morte.

Tais episódios preparam, na argumentação tucidideana, a conclu-são desastrosa da guerra: a expedição de Sicilia e a derrota final. Umoutro demagogo, orador brilhante, interessado e charmoso, o beloAlcibiades, leva os atenienses a este empreendimento fatal. Tucfdidesressalta a oposição entre a falta de conhecimento, a ignorãncia dopovo a respeito da grande ilha e o seu desejo ardoroso (a palavra éecos em VI, 24)41 de novas conquistas. Em vez de informar os seusconcidadãos sobre as dificuldades futuras, Alcibiades encoraja os seusdesejos irracionais, conseguindo, assim, vencer os conselhos de pm-déncia do velho Nicias.

A Guerra do Peloponeso oferece reiteradamente ao leitor estassituações paradigmáticas de escolha: entre aquilo que ditam a reflexãoe a razão e aquilo a que levam o ímpeto da paixão e o prazer. O povoateniense lembra a alma platônica com os seus dois cavalos opostos,que o cocheiro/nous consegue domar a duras penas. Este conflito entrerazão e desejo motiva o uso particular que Tucfdides faz de uma técnicamuito em moda na época: o debate oratório contraditório.

42

Os sofistas tinham mostrado que é possível defender com igualvigor uma tese X e a sua antítese Y, colocando, desta maneira, ahabilidade retórica acima da busca de uma verdade objetiva, inde-pendente da sua apresentação discursiva. O exercício dos dissoi logoi(discursos duplos) foi muito importante, notadamente para o adven-to das práticas judiciárias de defesa e de acusação. Os discursoscontraditórios do retor Antiphon eram modelos do gênero. Tucfdidestransforma esta técnica de agôn log6n (jogo, Luta de discursos opostos)num instrumento de análise política; sem precisar sair da sua objeti-vidade impessoal de narrador, ele pode, graças à construção antilógi-ca, apontar para os aspectos mais problemáticos de uma dada situaçãoe desvelar a trama de poderes que af se esconde. Contra os exercíciosretóricos dos sofistas, Platão propels o diálogo comum em vista deuma verdade única, recusando as antilogias que tornam qualquerconclusão substancial impossível, pois sempre precisam de um árbi-tro exterior, de um juiz que saiba compará-las e julgá-las. Em Tucfdi-des, este árbitro habita a própria construção textual: é o leitor futuro

41 CL, Jacqueline de Romilly, Problèmes de la democratic grecque, op. cit., pp. 35 ss.42 Cf., a este respeito, Jacqueline de Romilly, Histoire et raison chez Thucydide, op. cit., cap.

III.

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34 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM. MEMORIA E HISTORIA

a quem Tucfdides fornece todos os elementos necessários de análisee de decisão através da colocação em cena de discursos contraditórios;ao mesmo tempo, a opinião do autor fica clara, sem que se precise dedeclarações explicitas.

As discussões antagônicas também realçam, como o sabiam mui-to bem os sofistas, que as decisões pessoais ou coletivas, na sua grandemaioria, não se baseiam na força racional da argumentação, mas, sim,no poder de cada interlocutor. Poder de persuasão, sem dúvida, quea famosa deusa Peith6 encarna, mas também poder material e políti-co, potência concreta daquele que fala, pois poder de persuasão epoder político são co-pertencentes. Em Tucfdides, também, a técnicatão fina da exposição antagônica é inseparável de uma análise dospoderes politicos em jogo. O que sustenta a construção retórica é areflexão tucidideana sobre o poder, em particular a sua teoria doimperialismo ateniense. 43 Já no começo da obra é este imperialismo(não no sentido moderno, é claro) que leva Tucfdides a distinguircom uma acuidade notável entre os pretextos da guerra, as razõesalegadas, e a sua causa verdadeira mas não dita:

As razões pelas quais eles [os atenienses e os peloponésios] rom-peram a trégua e os fundamentos de sua disputa eu exporeiprimeiro, para que ninguém jamais tenha de indagar como osHelenos chegaram a envolver-se em uma guerra tão grande. Aexplicação mais verídica, apesar de menos freqüentemente alega-da é, na minha opinião, que os atenienses estavam tornando-semuito poderosos, e isto inquietava os Iacedemõnios, compelin-do-os a recorrerem ã guerra. As razões publicamente alegadaspelos dois lados, todavia, e que os teriam levado a romper a tréguae entrar em guerra foram as seguintes....

"

O poder de Atenas nasceu do seu papel essencial na vitória sobreos persas. Os atenienses venceram os bárbaros graças ã sua frota,deslocando o eixo das Guerras Médicas da terra para o mar. Estaoposição entre terra e mar é constitutiva, na análise de Tucfdides, darivalidade entre Esparta (cidade mais tradicional, ligada ã terra firme)e Atenas (cidade aberta ao novo que trazem os navegantes).45 A ligação

43 Cf., a este respeito, sobretudo, François Châtelet, op. cit.44 Tucfdides, op. cit., 1, 23.45 Ibid., I, 18.

U INÍCIO OA HISTÓRIA E AS LAGRIMAS GE TUCIOIDES : 35

de Atenas ao mar desenha a trajetória da sua grandeza: inicia com avitória de Salamina, aumenta com a constituição da Liga de Delos(originariamente uma confederação de cidades iguais, unidas contraa ameaça persa, a Liga transformar-se-á no império de Atenas sobre osoutros membros) e termina com a expedição de Sicilia. A análisetucidideana ressalta a necessidade desta trajetória, insistindo, emparticular, na estreita conexão entre democracia e imperialismo ate-nienses. Em oposição a Esparta, que encarna a tradição e a conservaçãodo status quo, a jovem democracia representa a vontade de mudançae a dinâmica da evolução. Aberta ás novidades técnicas, econômicas ecientíficas, Atenas tem que progredir sempre no seu desenvolvimento,pois qualquer interrupção significaria um retrocesso. Orgulhosos desua cidade, os cidadãos prezam comemorações, festas e monumentoscada vez mais suntuosos; os metecos (estrangeiros) afluem para a cidadeque conta, sob Péricles, cerca de quatrocentos mil habitantes. A campanhaática não pode fornecer alimentos suficientes para esta multidão: odomínio de Atenas, graças ã Liga de Delos, sobre o Mediterrâneo orientalassegura também aos seus navios a "rota do trigo", buscado até nasplanícies da atual Rússia. Há, portanto, para Tucfdides, um vínculonecessário entre a realização interna da democracia e o estabelecimen-to da dominação, da tirania extrema. A liberdade de Atenas dependeda sua superioridade constantemente renovada e assegurada em rela-ção às outras cidades invejosas. Para não se tornarem escravos, oscidadãos atenienses devem permanecer os senhores a qualquer custo;esta dialética assume na Antigüidade feições muito reais, pois numaguerra os vencidos são geralmente mortos ou vendidos como escravos.A grandeza de Atenas repousa sobre o imperialismo externo e, dentroda cidade, sobre a escravidão. Diz Châtelet:

Esquematicamente, acontece com o império o mesmo que com aclasse servil. Os cidadãos asseguravam o seu bem-estar, a suaindependência e a sua segurança com tanta mais eficácia queexploram uma maior multidão de súditos e de escravos.

46

A dialética tucidideana entre dominação e liberdade lembra aantiga noção de hybris, tão importante para Heródoto: interesse e

46 Cf. François Châtelet, op. cit., p. 261. Poderíamos acrescentar aos súditos e escravos,também as mulheres atenienses. Cf. Nicole Loraux, Les enfants d'Athéna, idées athéniennessur la citoyenneté et la division des sexes (Paris: Maspéro, 1981).

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36 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTORIA

ambição, fontes de grandeza e heroismo, também conduzem as cida-des à sua perda. Atenas venceu heroicamente os persas, livrando osgregos do jugo bárbaro, mas estabeleceu sobre os seus compatriotasum domínio talvez pior que teria sido o estrangeiro. Como observaráum general siciliano, os belos discursos de igualdade e de liberdade setransformaram em justificativas de dominação.47 O mesmo raciocí-nio, alias, aplicar-se-á a Esparta: se, no decorrer da guerra, tomou-seironicamente o arauto da liberdade face a uma Atenas democrática eimperialista, transformar-se-á também, quando estiver vitoriosa,numa potência tiránica, sem respeito aos direitos dos seus súditos.

Entre o realismo pessimista de Tucfdides e o realismo descaradodos sofistas as semelhanças são muitas. Trata-se sempre do conflitoentre justiça e poder, ou ainda entre as leis sociais humanas e o direitonatural do mais forte, a oposição entre nomos e physis. A defesa dodireito do mais forte por vários sofistas encontra o seu correspondentereal e cotidiano na prática imperialista de Atenas, descrita por Tucfdi-des. O famoso episódio de Meios oferece um paradigma desta prática.Meios era uma pequena ilha, povoada por colonos de Esparta, quetentou ficar neutra na primeira metade da guerra. Atenas exige suasubmissão e bloqueia o porto. Segue-se um debate altamente tensoentre os embaixadores atenienses e os notáveis de Meios, que tentamexpor a justeza da sua posição. Com o fracasso das negociações começaum sítio de um ano, no fim do qual Meios deve render-se. Os homenssão massacrados, as mulheres e as crianças vendidas como escravas.Mais tarde, Atenas repovoará a ilha com colonos atenienses.

Tucfdides demora-se no relato das negociações e nos dá aqui umabelíssima peça de reflexão histórica e política. Mais uma vez, elecoloca em cena discursos antagônicos: o dos embaixadores ateniensesque falam a linguagem do realismo e do poder, e o dos representantesda Assembléia de Meios que invocam o direito e a justiça. Mas, comoestes últimos observam, desde o inicio a igualdade dos parceiros dodialogo encontra-se negada pela presença ameaçadora das tropasatenienses no porto. Os atenienses não só justificam esta desigualda-de como também a consagram como uma "lei" divina e humana:

Realmente, em nossas ações não estamos nos afastando da reve-rência humana diante das divindades ou do que ela aconselha no

0 INICIO DA HISTÓRIA E AS LAGRIMAS OE TUCIOIDES 37

trato com as mesmas. Dos deuses nós supomos e dos homens nóssabemos que, por uma lei de sua própria natureza, sempre quepodem eles mandam. Em nosso caso, portanto, não impusemosesta lei nem fomos os primeiros a aplicar os seus preceitos;encontramo-la vigente e ela vigorará para sempre depois de nós;pomo-la em prática, então, convencidos de que vós e os outros,se detentores da mesma força nossa, agiríeis da mesma forma. 48

Na sua argumentação, os representantes de Atenas, a cidadedemocrática "educadora da Grécia", misturam com maestria o rigorda razão e o cinismo do poder; desaconselham os habitantes de Meiosa esperar pela justiça ou pela ajuda dos aliados espartanos, pois aesperança é um sentimento que só ilude e engana. A reivindicação dejustiça e à esperança opõem o frio realismo da dominação, queculminará na matança futura.

O leitor futuro, a quem Tucfdides reserva a sua obra, pergunta-seao ler este episódio sangrento: como distinguir a razão que guia odiscurso tão coerente dos embaixadores atenienses da racionalidadeimposta pela força? Como distinguir a racionalidade da realidadehistórica da razão dos vencedores? A grande questão hegeliana daracionalidade do real já se coloca nas páginas do primeiro historiadorque quis compreender logicamente a história e só o conseguiu atravésde uma teoria do poder e da dominação.

47 Tucfdides, op. cit., VI, 76.48 Ibid., V, 105.

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II. AS FLAUTISTAS, AS PARTEIRAS E AS GUERREIRAS

Em memória de Elisabeth Sousa Lobo

Atena, deusa da filosofia, não nasceu da barriga de uma mulher.Segundo a lenda, ela nasce, já toda em armas, da cabeça de umhomem, ou melhor, da cabeça de um deus, seu pai Zeus. Em seunascimento, a deusa ressalta uma antiga oposição: entre o ventrefeminino e a cabeça masculina. Nascer da cabeça do homem significatambém marcar, desde o início, uma preferência. A deusa da Razãoprivilegia, desde seu primeiro dia, a forma de produção que vem dacabeça —e dos homens — em oposição ã produção que vem do corpo— e das mulheres.

Por outro lado, Atena, deusa da Razão, é também deusa da Guerra.Guerra e Razão são inseparáveis, como se não pudesse haver umconceito de razão fora da idéia de luta e de morte, como se a guerrafosse mais racional que a paz. Atena continua virgem e ajuda osguerreiros gregos frente a Tróia. Ainda segundo a lenda, ela estáfuriosa com o principe troiano Páris (o "efeminado", como dizHomero) que, no concurso entre ela, Hera e Afrodite, não lhe deu amaçã destinada à mais bela. Compreende-se bem a posição de Páris!Afinal, a virgem Razão recusa os jogos sexuais e encoraja os jogosguerreiros; contra Páris, o efeminado, ela ajuda os viris acaios avencer.

Esta visão provocadora da padroeira dos filósofos me conduz,quando penso no discurso filosófico e naquilo que diz ou não diz dasmulheres, a uma primeira hipótese. Não tentemos distinguir entre osfilósofos feministas e os filósofos machistas, entre os esclarecidos eos preconceituosos. Não chama a atenção quão "reacionário" podeser um filósofo "revolucionário" quando fala das mulheres, seja

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40 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA

Rousseau, ditando a educação das meninas (de Sofia, de nome tãorevelador!), seja Nietzsche, denegrindo as feministas de sua época?

Prefiro, contudo, questionara constituição do discurso filosófico,propondo a hipótese de que ele se constitui em torno de um duplocontrole do "feminino" (veremos mais tarde a razão destas aspas): eleo exclui, declarando-o impróprio a filosofar, e, ao mesmo tempo, oadmite quando consegue subordina-lo a um "valor" mais "alto".

Para ilustrar esta hipótese, tratarei aqui de três figuras de mulhe-res que aparecem na filosofia de Platão, figuras que chamarei, segun-do expressões do próprio Platão, de flautistas, parteiras e guerreiras.

As flautistas são cortesãs músicas que enfeitam os jantares mas-culinos da Atenas clássica. Nestes jantares, os convivas comem ebebem e, terminada a refeição, continuam bebendo. Decide-se, então,do programa da noite. Vai-se beber até à embriaguez completa,apreciar música e declamações de poesia, ou vai-se beber com certamoderação e discutir um tema mais filosófico? Ao tomar a decisão dediscutir e de filosofar, uma conclusão prática se impõe: mandar asmulheres tocadoras de flauta para dentro da casa com as outrasmulheres e ficar entre homens.

Uma vez, pois (....) que estamos de acordo em que hoje cada umde nós poderá beber à vontade, sem que se sinta constrangidopelo ridículo, desejo que me concedais uma coisa ainda: despa-chemos a flautista que acaba de entrar; ordene-lhe que toque parasi mesma, ou para as mulheres do interior da casa. Trataremos nósde nos divertirmos a conversar (Platão, Banquete, 176 e, trad.Paleikat).

Mesmo gesto no Protágoras: Sócrates fala da virtude, quer exami-nar, através do diálogo, a natureza da virtude. Um assunto de talimportancia exige uma certa disciplina, rompida por um intermezzodesagradável, a conversa entre Protágoras e Sócrates a propósito dealguns versos do poeta Simônides. É este recurso à poesia que Sócratesrecusa, jogando-o para o lado das flautistas e da futilidade.

Ao meu ver essas conversas sobre a poesia são muito parecidascom os banquetes de gente vulgar e sem instrução; incapazes dese distraírem à mesa, dada a rusticidade que lhes é peculiar, com

AS FLAUTISTAS, AS PARTEIRAS E AS GUERREIRAS : 41

a própria voz ou discursos alternados, fazem subir o preço das

flautistas, alugam caro a voz estranha das flautas e distraem-secom ela. Mas nos banquetes de gente fina e educada não encon-

tramos nem tocadoras de flauta, nem dançarinas, nem harpistas;bastando-se os convivas a si próprios, dispensam essas futilidades

e brincadeiras e se distraem por meio da voz natural, cada umfalando ou ouvindo por seu turno, com muita ordem — aindamesmo que cheguem a beber bastante (Prótagoras, 347 c -347 d,

trad. A Nunes).

As condições da pesquisa filosófica estão, desta maneira, defini-

das. Acima de tudo, não se deve misturar dois tipos de palavra. Deum lado, a palavra "estrangeira" da flauta, palavra da poesia e damúsica, do corpo e da dança, palavra exercida por mulheres livres ecortesãs (que se opõem, na sociedade ateniense, às esposas presas àcasa), uma palavra do riso, do jogo, das bagatelas e das bobagens. Dooutro lado, a palavra autenoma, que s6 precisa de si mesma, a palavrada razão e da cabeça, cabeça essa capaz de controlar até um corpocheio de vinho, palavra exercida pelos homens, entre eles e um decada vez, enfim, uma palavra das coisas sérias, uma palavra filosófica.

A expulsão das flautistas significa também a rejeição da poesia,esta grande inimiga da filosofia platõnica. Mulher e poesia, ambastão falsamente belas e tão perigosamente sedutoras, ambas devendoser rapidamente expurgadas do discurso filosófico, e isso com tantomais energia que a elas se sucumbe com tamanha facilidade, mulhere poesia, a tentação da imagem e do sensível que devem ser excluídosda verdade.

Desta maneira se esboça, atrás da figura da flautista, uma dasgrandes divisões do discurso filosófico: a razão e o sério ficando dolado dos homens e entre eles, na praça pública ou na sala de estar, apoesia e as besteiras charmosas do lado das mulheres, no interior dacasa. l Velha cisão da qual sofremos ainda hoje, mulheres condenadasà tagarelice ou então ao mutismo (e à histeria), homens condenadosao falar-certo e ao falar-demais.

Uma outra figura de mulher freqüenta a filosofia de Platão: a daparteira, mãe de Sócrates. Sócrates mesmo 95 consegue definir a suaatividade como arte do parto, isto é, maiéutica, com a diferença que

1 Cf. Vernant, Mythe et Pensée chez les Grecs (Paris: Maspéro, 1965), tome 1, p. 124 ss.

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42 SETE AULAS SOARE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA

ele não parteja o corpo das mulheres, mas as almas dos homens (cf.Teetéto, 150 b). Com efeito, como já nos dizia Atena, a filosofia nãocuida do corpo das mulheres, mas de valores mais "nobres". Isto nãoimpede que a metáfora continue válida, comandando toda a teoriada produção intelectual do Banquete. Sócrates ajuda os jovens a pariros seus pensamentos, desta gravidez masculina nascerá o conheci-mento do bem. Por isso, a hierarquia amorosa do Banquete é, aomesmo tempo, uma hierarquia da produção. No degrau mais baixo,há os que engendram no corpo, que precisam das mulheres paraproduzir filhos; quanto mais ascendemos no perfeito amor, tantomais se apaga esta dependência em relação ao corpo, ao femininoespecialmente, tanto mais digno de elogios será o filho produzido:

Aqueles cuja fecundidade reside no corpo, dirigem-se de preferên-cia às mulheres, e assim realizam a sua maneira de amar, acredi-tando que pela criação dos filhos atingem a imortalidade, acelebridade e a felicidade eternas.

Os que, porém, desejam procriar pelo espírito — pois hápessoas que mais desejam com a alma do que com o corpo (e elaé mais fecunda ainda que o corpo) —, esses anseiam por criaraquilo que à sua alma compete criar. É a criação desses homens aquem chamamos poetas, e a daqueles outros aos quais denomi-namos inventores. (....)

Não há ninguém que não prefira tais filhos aos humanos: ésuficiente considerar Homero, Hesfodo e outros poetas excelen-tes: que filhos deixaram a perpetuar-lhes a glória eterna e a perenememória! (...) No vosso Estado é muito honrado Solon, emvirtude das leis que criou, e outro tanto acontece com muitosoutros homens, em muitas terras, entre gregos e entre bárbaros.Esses homens realizaram muitas obras belas e criaram virtudes detodo gênero. Muitos templos já lhes foram erguidos que ninguémnunca obteve pelos filhos humanos 2 (Banquete, 208 e — 209 e,trad. Paleikat).

É notável que Platão, quando fala daqueles que são fecundossegundo o corpo e daqueles fecundos segundo o espírito, use a mesmapalavra "ekgymôn" em ambos casos, que significa, em primeiro lugar,

2 'Dia de taus anthropinous oudenospo' —curiosamente, esta última parte falta na traduçàode Paleikat.

AS FLAUTISTAS. AS PARTEIRAS E AS GUERREIRAS 43

"grávida" e, por analogia, fecundo(a). Poucas linhas antes, em 206 e,o intuito do deseo amoroso tinha sido definido como "geração eparto na beleza", a geração designando a atividade masculina, oparto, a feminina. Como se o ideal do conhecimento amoroso fosseconseguir sozinho fazer um filho, o velho sonho da cabeça de Zeus.Mas quem é esse filho nascido de um amor que prescinde do outrocorpo, em particular do corpo da mulher? Leia-se a resposta no fimda descrição da iniciação amorosa:

Ao contrário, volver-se-á agora para o imenso oceano da beleza,contemplando-o, dará à luz incansavelmente belos e esplêndidosdiscursos. E os pensamentos surgirão da inesgotável inspiração dosaber (Banquete, 210 d, trad. Paleikat).

O filho desejado é, portanto, novamente o discurso ("logos").Velha hierarquia da divisão do trabalho: em baixo, as mulheres quefazem filhos, em cima, os homens que fazem discursos. Velha sepa-ração da produção material e da produção intelectual, esta só sereferindo àquela para melhor ressaltar a sua superioridade.

Mas, dirão vocês, não foi Platão o primeiro a proclamar a igual-dade do homem e da mulher no célebre texto da República, no qualdefende a mesma educação para os guerreiros e as guerreiras (Repú-

blica, V, 451 ss.)? Um texto, inclusive, que levou alguns a fazer dePlatão o primeiro feminista. Deixemos de lado o problema de saberse Platão era ou não feminista e consideremos, antes, como seconstrói este discurso igualitário.

Trata-se de saber se as mulheres podem, como fêmeas de bonscães de guarda, cooperar com os machos para a guarda da cidade (id.,451 d). Platão coloca com admirável clareza a questão da diferençaentre os sexos, a questão do Mesmo e do Outro, e chega à conclusãode que a diferença biológica entre homem e mulher não acarretanenhuma diferença de aptidão:

Se, portanto, se evidencia que os dois sexos diferem entre siquanto às suas aptidões para exercer certa arte ou certa função,diremos que é preciso consignar esta arte ou esta função a um oua outro; mas se a diferença consiste somente no fato de a fêmea

3 "Tts gentsebs kal tau tokou em tãi kaldi."

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44 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMORIA E HISTORIA

conceber e o macho engendrar, nem por isso aceitaremos comodemonstrado que a mulher difere do homem sob o aspecto quenos preocupa, e continuaremos pensando que os guardiães e suasmulheres devem desempenhar os mesmos empregos (República,V, 454 d-e, trad. J. Guinsburg).

O que são estes empregos? Ora, justamente aqueles que foramdefinidos anteriormente como próprios dos guardiães da cidade.Trata-se de descobrir se não existe nenhuma tarefa "para qual homeme

mulher não são igualmente dotados, mas diferem de aptidão" (id.454 e), unicamente para decidir se a mulher pode ou não ser tratadacomo um homem. Por conseguinte, a questão da diferença dos sexosse reduz à de saber até que ponto a mulher difere do homem e atéonde ela se assemelha a ele. Talvez seja esse deslizamento na coloca-ção do problema que se manifesta na estranha contradição da con-clusão platônica:

Por conseguinte, meu amigo, não há emprego concernente àadministração da cidade que pertença à mulher enquanto mulher,

ou ao homem enquanto homem; ao contrário, as aptidões natu-rais se distribuem igualmente entre os dois sexos, e é conforme ànatureza que a mulher, tanto quanto o homem, participe de todosos empregos, ainda que seja, em todos, mais fraca do que ohomem (República, V, 455 e, trad. J. Guinsburg).

Mas de onde saiu, afinal, esta súbita fraqueza feminina? OndePlatão foi buscã-Ia? Num simples preconceito machista? Este súbitorestabelecimento da hierarquia dos fortes e dos/as fracos/as talvez sejamuito mais profundamente ligado à dificuldade do pensamentoplatónico — e do pensamento ocidental em geral — em pensar adiferença, sexual ou não. Com efeito, diferença e identidade só sãopensadas em relação a um referente que é também — e isso pervertea comparação — um dos termos da alternativa. Desta maneira, oproblema da igualdade entre os sexos se resume na questão de saberse as mulheres são tão capazes quanto os homens, sem questionar agênese desta capacidade masculina. Deve-se realmente desejar que asmulheres se tornem idênticas aos homens? Devemos continuar adefini-las como o Outro do homem, a sua falta e o seu negativoenquanto ele representaria o pleno e o positivo? 0 problema não

AS FLAUTISTAS, AS PARTEIRAS E AS GUERREIRAS 45

seria, muito mais, de colocar em questão esta plenitude e esta positi-vidade?

Três figuras de mulheres, as flautistas, as parteiras e as guerreiras,três "nós" da tradição filosófica ocidental: pensar o discurso lúdiconão racional, pensar a produção da matéria e pensar a diferença. Trêstemas que evidenciam aquilo que foi chamado de "recalque dofeminino". Significaria isto que os sujeitos masculinos do discursofilosófico não quiseram ou não conseguiram pensar o feminino ou,ao contrário, que só puderam pensá-lo como uma matéria passiva eameaçadora, uma tagarelice agradável, mas desprovida de sentido,uma outra incompleta? Esta matéria tagarela e carente designariarealmente a essência da feminilidade? Sem dúvida, flautistas, partei-ras e guerreiras podem nos ajudar a entender melhor que estafamigerada "feminilidade" nada tem de essencial, exceto uma funçãodeterminada num discurso que procura estabelecer a sua coerência ea sua verdade pela exclusão de outros tipos de palavra.

Gostaria, então, à guisa de conclusão, de colocar uma segundahipótese, que é também uma interrogação: é de fato o feminino,enquanto essência imutável, que foi recalcado no discurso filosóficoocidental? Não seria, antes, que aquilo que foi deixado de lado,rejeitado, excluído, foi, depois, atribuído às mulheres (ou também àscrianças, aos selvagens, aos loucos) e, conseqüentemente, descritocomo tipicamente feminino (ou também como infantil, primitivo,louco)? Nesta distribuição, as mulheres teriam recebido a sensibilida-de e a natureza, o silêncio e o jogo, mas também a tagarelice, a inérciae a insuficiência, enquanto, do outro Lado da divisão, erige-se o sujeitomasculino, pleno, autônomo e detentor do discurso verdadeiro. Umareflexão filosófica — e feminista! — não me parece, portanto, deverreivindicar uma essência da feminilidade, nem tentar uma aproxima-ção cada vez mais eficaz do paradigma masculino, mas deve, sim,questionar a verdade deste discurso.

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Post-Scriptum

Esse pequeno texto panfletário foi escrito há muitos anos para umamesa-redonda em São Paulo. Você me pergunta, com razão, o que eudiria hoje. Achei primeiro, assustada, que não tivesse mais nempensado, nem escrito nada sobre esses assuntos. Depois, procurandonas minhas pastas e nas minhas lembranças, me dei conta que sim,sem dúvida, este "questionamento feminista da filosofia"4 não cessoude me acompanhar. Mas sempre se exprimia em ocasiões poucofilosóficas: um artigo num jornal de grande difusão por ocasião do diadas mães, artigo cujo título "de uma maternidade não domesticada"foi cancelado sem eu saber; um outro sobre "mulheres e escrita" parao congresso das mulheres escritoras na cidade de México em 1981; e,também, comentários de teses de colegas mulheres, em literatura, emantropologia. Um pouco como se a rede feminista continuasse, maspor fora, sim, apesar de minhas atividades de professora de filosofia.Não que o meio seja especialmente masculino: há mais mulheresprofessoras e estudantes de filosofia no Brasil do que na Europa, talvezporque as profissões ligadas ao ensino estão subpagas, e os "chefes defamília" preferem, portanto, ser médicos ou engenheiros. É verdadeque os filósofos que ocupam os postos importantes e que são os maisconhecidos são, fora raras exceções, homens: as mulheres em destaquesão muitas vezes acusadas por seus colegas (de ambos sexos) de histeriaou incompetência. É o medo de tais críticas que, muito provavelmente,me impediu de aprofundar "estudos femininos" 5

em filosofia. Nutro,porém, um fantasma: o de ser, mais tarde, uma velha senhora muitodigna — afastada da sexualidade e próxima da sabedoria! — umaSócrates em suma, que consagraria seus dias a uma releitura feministairónica e serena da metafísica.

Como se eu precisasse, por assim dizer, primeiro provar (aosoutros, mas também a mim mesma) que tenho realmente acesso aoLogos, para ousar explorar outras regiões da palavra, para ousarinventar uma outra aproximação da linguagem, para ingressar, ta-

4 Ver Françoise Collin, "Ces études qui ne sont 'pas tout'. Fécondité et limites des étudesféministes", in Cahiers dn GR/F, número 45, p. 91.5 Ver no mesmo número, Savoir et différence des sexes, a maioria dos artigos a esse respeito.

AS FLAUTISTAS. AS PARTEIRAS E AS GUERREIRAS : 47

teando, em lugares inéditos. Hesitação que não é sem vantagens, poisme leva, por descaminhos, a territórios afastados que o logocentrismodefine muitas vezes como periféricos, para eu medir, prudentemente,minhas forças. Seria interessante estudar a escolha dos assuntos oudos autores que as mulheres-filósofas tratam com mais felicidade:pergunto-me se muitas não praticam essa estratégia do desvio, "ata-cam" as questões "capitais" não "frontalmente", como se diz, maspelo intermédio privilegiado de autores "menores" ou de problemassituados, muitas vezes, na fronteira com outras disciplinas. Táticas deaproximação, mas certamente também, de maneira mais secreta,táticas de solapamento, de corrosão, de "desconstrução" do edifício

coerente demais do Logos. Quando essa guerrilha tranqüila alia com-

petência e impertinência, indignação e alegria, eis que essas mulherespouco ã vontade se encontram, de repente, no coração dos debatesfilosóficos atuais, pois trata-se para nós todos, mulheres e homens,de orientarmo-nos em tradições que desmoronam, de cuidarmos damemória de narrativas portadoras de esperança, sem necessidade decrispação para manter discursos totalizantes ou totalitários. Então, ofato das mulheres se sentirem deslocadas nos palácios do saber podese tornar uma chance: a de desenhar outros espaços, de modelaroutros tempos, nos quais possam surgir o jogo em sua gratuidade, amatéria em sua espessura, a diferença em sua imprevisibilidade. Semque, imediatamente, a angústia os sufoque. Esse deslocamento essen-

cial pode se transformar numa facilidade paradoxal em renunciarãquilo que, durante muito tempo, foi o apanágio da razão: umacontinuidade lisa e sem falhas, que remetia ã identidade plena dosujeito e ao desenrolar inelutável de um tempo homogêneo. Tantasvezes definidas pela falta e pela incoerência, as mulheres poderiam

ter menos dificuldade em se desprender desse ideal de uma subjeti-vidade soberana que tentaram, em vão e não por acaso, realizar: nãosó porque seu sexo encarnaria a ausência, mas também por razões que

toda reflexão filosófica moderna, desde Nietzsche, se esforça por

articular numa linguagem lacunar — porque o sujeito não é somenteum, mas múltiplo e variável, porque o tempo se espalha em redestemporais diversas, porque a história tem solavancos, acelera ou, derepente, desmorona. Histórias, tempos, sujeitos cuja pluralidadeameaça, certamente, a paciente edificação de símbolos e de práticasseculares. Mas esse despedaçamento do Logos não implica somente

uma dispersão infinita do sentido; também pode significar sua aber-

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48 SETE AULAS SORBE LINGUAGEM MEMORIA E HISTORIA

tura essencial, para outras línguas: aquelas das quais as mulheres (ascrianças, os loucos, os selvagens e cada vez mais homens) não aceitamser despojadas e aquelas, tão numerosas, que nos resta inventar.III. MORTE DA MEMÓRIA, MEMÓRIA DA MORTE:

DA ESCRITA EM PLATÃO

A Celso F. Favarettoque continua unindo as artes do pensar e do passear

Um dos mais belos diálogos de Platão, o Fedro, trata juntamente dajusteza dos amores e da justiça dos discursos. Junção necessária poiso amor, em Platão, se diz e se rediz certamente mais que se faz, poisele inspira aos amantes o desejo dos discursos verdadeiros; junçãonecessária sobretudo porque o discurso verdadeiro não pode ser aréplica da verdade na insuficiência de nossa linguagem, mas remetemuito mais a este elã da linguagem em direção ãquilo que a ultrapassae, simultaneamente, a funda. Ela, pois, essencialmente erótico, segun-do a bela definição do Banquete, que faz de Eros esse demônio aomesmo tempo sempre infeliz e cheio de animação, esse ser interme-diário sempre em falta e nunca sem recursos. Assim, em Platão, Erose Logos se encontram estreitamente ligados por um mesmo movimen-to de busca, por um mesmo caminhar inquieto e, no entanto, feliz,como o passeio, fora dos muros de Atenas, de Sócrates e de seu beloe jovem amigo Fedro, descalços, seguindo um riacho, na luz de umamanhã de verão.

Muito sabidamente, Platão faz intervir esse cenário campestre natrama do diálogo: uma curva do Ilfssio lembra as brincadeiras dasninfas, em particular de Farmacéia e de Orithia, e permite a introdu-ção de uma discussão sobre os méritos da mitologia; a suavidade darelva em declive convida ã leitura e ã conversa; as cigarras estridentesdo meio-dia impedem os amigos de ceder ao sono; enfim, como ocalor passou enquanto o diálogo chegava, não sem esforços nem semdesvios, ã sua conclusão, os dois companheiros podem atravessar oriacho e voltar para trás, o que seu demônio tinha, anteriormente,proibido a Sócrates. Assim, a própria natureza, da qual, no entanto,

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50 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM , MEMÓRIA E HISTORIA

Sócrates afirmava que ela não lhe ensinava nada (230 d), a próprianatureza colabora com graça à busca da sabedoria. Mesmo domíniode Platão em mesclar os diversos gêneros literários: ao pastiche deretórica seguem um discurso sofístico inspirado, depois um outro,mitológico, que nos faz penetrar no território da dialética. Quebrandoa monotonia dessas longas narrativas, os apartes jorram, uma anedo-ta, uma piada dão a Fedro uma trégua e lhe permitem retomar fôlegonessa longa estrada cheia de obstáculos e de desvios (274 a), a estradada verdade para qual Sócrates o arrasta embora pretendesse segui-lo,ele Fedro e o discurso escondido sob sua túnica, como um cachorrofaminto persegue o osso que se agita diante de seu focinho na suafrente (230 d/e). Habilidade enfim, intencional ou não, pouco impor-ta, de Platão ao introduzir, desde do inicio do passeio, o tema dopharmakon, l seja na evocação da ninfa Pharmacéia (229 c) ou, justa-mente, nesta súbita assimilação do discurso escrito de Lisias a umadroga toda poderosa que faria atravessar a Sócrates a Ática inteira;intervêm igualmente, desde as primeiras linhas do diálogo, as refe-rências médicas como se os bons conselhos de Akoumenos sobre oandar ao ar livre (227 a) pudessem servir de antídoto As sutilezas daretórica, de pharmakon natural contra a sedução dos pharmaka artifi-ciais, anunciando assim a comparação, tão freqüente em Platão, entreo médico verdadeiro, oposto aos charlatães e cozinheiros que afagamo corpo, e o filósofo na sua luta contra a retórica e a sofística quelisonjeiam a alma (Fedro, 268 a-c. Gorgias, 464 a ss.), 2

Temos, pois, um êxito altamente literário neste diálogo encanta-dor que descreve, juntamente, os encantos entremeados da palavra edo amor. Ora, ele não termina, porém, por nenhuma glorificação daatividade literária como poderia ser nossa expectativa, acostumadosque somos ao culto romántico do gênio e As variações meta-textuaiscontemporãneas. Pelo contrário, a conclusão do Fedro contém umadas versões mais famosas daquilo que foi chamado de condenaçãoplatônica da escrita. Paradoxo gritante entre esse longo diálogo noqual Platão, durante um dia inteiro de verão, nos seduz e nos instruipelo emaranhado sabidamente. construído de imagens, de argumen-tos, de narrativas, de sofismas, em suma de logoi, e esta declaração1 Ver a esse respeito, de Jacques Derrida, A Fanndcia de Platão (São Paulo: Iluminuras,1991), que inspirou em boa parte este artigo.2 Ver Henri Joly,Le renversc

mentplatonicien.Logos, Episteme, Polis (Paris: Vrin, 1974), terceiraparte, cap. Ill.

MORTE DA MEMÓRIA. MEMÓRIA OA MORTE 51

final na qual nos afirma que tudo isso só foi uma brincadeira (paidia,

Fedro 276 d, 277 e, entre outros) pois isso foi escrito. A mesmaoposição entre as brincadeiras da escrita e a seriedade da verdadeirafilosofia rege, como se sabe, uma outra passagem famosa, a conhecida"disgressão filosófica" da Carta Sétima.

3 Essa contradição entre aintensa atividade filosófico-literária de Platão e sua recusa, tambémcategórica, de lhe conceder um peso decisivo, continua sendo, atéhoje, o enigma maior dessa obra, enigma no qual esbarram todas astentativas de interpretação. Como o afirmava recentemente, numexcelente artigo, Mario Vergetti, a primeira e maior ambigüidade docorpus filosófico de Platão consiste no fato dele existir. 4 Essa contra-dição foi lida freqüentemente, do neoplatonismo até a Escola deTübingen (H. J. Kramer e K. Gaiser), como o indício de uma doutrinanão escrita, esotérica, talvez secreta que Platão não quis transmitirpor escrito; a mesma contradição foi interpretada faz pouco tempopor Wolfgang Wieland como a manifestação da parte de Platão e emcontraste com a "posição em comparação ingênua" s de muitosautores filosóficos, a manifestação da consciência aguda dos limites( Grenzen) que o texto, escrito ou falado, oferece ã expressão filosófica.A crítica platõnica da escrita não apontaria, portanto, para a existênciade doutrinas que Platão teria-se recusado a transmitir em sua obra,"mas chamaria mais atenção para o fato que existem limites internosã comunicabilidade" 6 Segundo Wieland, portanto, não há verdadei-ra contradição em chamar "atenção num texto para tudo aquilo que,enquanto tal, um texto não pode produzir". 7

A argumentação neo-kantiana s de Wieland é altamente fiel ãreflexão platônica a respeito dos limites da linguagem — reflexão daqual se deduziu muitas vezes, de maneira apressada sem dúvida, que

3 Platão, Carta VII, 342a-344d.4 Mario Vergetti,'Dans l'ombre de Thot. Dynamiques de l'écriture chez Platon", p. 387, in

Les savoirs de l'écriture en Grèce ancienne, sob a direção de Marcel Détienne, Cahiers de

philologie, n. 14, 1988.5 Wolfgang Wieland, Platon und die Formen des Wissens (Gottingen: Vandenhoeck &

Ruprecht, 1982), p. 11: "Die meisten Autoren zeigen nãmlich zum philosophischen Text ais

solchem Bine vergleichsweise naive Einstellung."6 Idem, p. 27: "/nsofern verweist sie (die Schriftkritik Platons) nicht aufLehren oder Theo rien,

aufderen sch riftlicheMitteilungPlaton ve,zichtet hotte, sondem sie machtdaraufaufinerksam,

doss es innere Grenzen der Mitteilbarkeit gift"7 Idem, p. 38: "Man ve,wickelt sich iedenfalls in keinem Widerspmch, wenn man in einem Text

au¡ das aufinerksam mach(, was alles em Text nicht leisten kann."8 Mario Vergetti, op. cit., p. 408.

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52 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTORIA

Platão postulava a existência de um ser inefável, que somente umacontemplação de tipo místico poderia abarcar. 9 A leitura de Wielandevita essa armadilha e coloca a questão da limitação e, no entanto, dacompetência do logos em Platão, uma questão na qual vários comen-tadores já tinham situado a origem da teoria das Idéias, esses seresextralingüísticos que garantem a possibilidade de uma compreensãolingiifstica. lo Se não há, portanto, contradição, no sentido enfático, dotermo, entre a desconfiança de Platão em relação ao escrito e seusnumerosos diálogos (uma forma literária cuja importância é ressaltadatanto por Wieland como por Vergetti), no entanto o paradoxo conti-nua entre a habilidade, o domínio, sim, a beleza literária da escrita emPlatão e sua denegação da importância do escrito, a afirmação do seucaráter ilusório e enganador, que deveria levar um autor tão prevenido,se não a se abster dessa perigosa atividade, pelo menos a restringi-laconsideravelmente — de maneira muito semelhante à prática dasexualidade tal como prega a moral sexual das Leis. Minha propostaaqui não é de resolver esse paradoxo, mas de deixar, mais uma vez,ressoar esse enigma, de escutar o que ele nos revela da escrita filosófica,da realização dessa escrita, mas também de seus desejos e de seusfantasmas. Duas figuras mitológicas poderão nos ajudar nisso, duasfiguras que atravessam o texto do Fedro para melhor ser expulsas dopalco filosófico autêntico tal como o define Platão: Helena e Adonis.

Devemos primeiro lembrar com Marcel Détienne, Henri Joly eMario Vergetti, 11

que se a escrita já tem direito de cidadania e, emparticular, força de lei na Atenas do século IV, no entanto o verdadeirologos político continua sendo a palavra oral, cultivada com cuidadonas escolas de retórica e acerbadamente disputada na assembléia doscidadãos. Pouco a pouco, porém, cresce a importância do texto escritograças a uma difusão cada vez mais ampla do livro. A esta "verdadeirarevolução cultural", 12 a esta "inflação da escrita"» Platão reage peladesconfiança. Essa desconfiança não diz tanto respeito à escrita

9 0 que constitui, simultaneamente, a fraqueza e a grandeza do livro clássico de A. J.Festugiere, Contemplation et vie contemplative selon Platon, 1935.

10 Ver, entre outros, Paul Ricoeur, Étre, essence et substance chez Platon et Aristote (Sociétéd'édition d'enseignement supérieur, 1982).

11 Marcel Détienne, L'invention de la mythologie (Paris: Gallimard, 1981), em particular ocapitulo II, "Par la bouche et par l'oreille". Do mesmo autor, L'écriture et ses nouveauxobjets intellectuels en Gréce, introdução à obra coletiva citada em nota n. 4. Ver tambémHenri Joly, op. cit., pp. 112 ss. e Mario Vergetti, op. cit., pp. 402 ss.

12 Mario Vergetti, op. cit., p. 402.13 Henri Joly, op. cit., p. 112.

MORTE DA MEMÓRIA. MEMÓRIA DA MORTE 53

enquanto técnica; pelo contrário, ele empresta a esta última nume-

rosas comparações, amparando-se no "paradigma gramatical"14 dascombinações entre letras e palavras para descrever melhor a tarefaanalítica do método dialético. As resistências de Platão são de outraordem: remetem aos deslocamentos socioculturais que a difusão dotexto escrito provoca em relação à tradição e à memória coletivas.

15

Enquanto o poeta, na época arcaica, era o detentor de uma memóriaque permitia, graças a essa palavra sagrada, dádiva das Musas aoserviço de Apolo,16 a um povo inteiro de se construir e de se asseguraruma identidade, a transferência cada vez maior dessa "função detesaurização mnêmica" 17 ao escrito acarreta, simultaneamente, suademocratização e sua dessacralização, 18 isto é, segundo Platão, abanalização até a perversão da atividade do lembrar. Mnemósyneretira-se e deixa lugar à fidelidade exangue do rastro escrito, acessívela todos, mas —ou talvez, segundo Platão, muito mais por isso mesmo

— desprovido do segredo que garantia a plenitude da palavra reme-moradora. Teríamos aqui já um primeiro fenômeno de "desauratiza-çao", 19 para usar essa categoria de Walter Benjamin que descreve astransformações históricas que "a reprodutibilidade técnica das obrasde arte" provoca na arte contemporânea; categoria que pode serretomada de maneira mais ampla para designar este fenômeno recor-rente no qual a democratização, ou melhor — pois se pode discutir darealidade e amplitude dessa democracia —, o fim da exclusividade deum produto cultural, privilégio de uma classe ou de uma elite, pareceacarretar, por uma espécie de necessidade infeliz, o empobrecimento,sim, a vulgarização da significação que se torna insípida: inversãoeficaz e perversa da promessa estética. Nesse contexto, a desconfiançade Platão prefigura o pessimismo de um Adorno, suas criticas aoaviltamento e ao emburrecimento circundantes nos surpreendem por

14 Henri Joly, idem, p. 112. Mario Vergetti, op. cit., pp. 392 ss.15 Henri Joly, idem, pp. 112/113.16 Sobre o papel essencial do poeta, ver jean-Pierre Vernant, Mito e Pensamento entre os Gregos,

em particular o capítulo 2, Difel; e Marcel Détienne, Les maures de Vérité dnas la ate

archaique (Paris: Maspéro, 1967), capítulo 11.17 Segundo as palavras de Joly, op. cit., p. 113.18 Sobre as ligações essenciais entre escrita e democracia na Grécia, ver Vernant, Les origines

dela pensée grecque (Paris: PUF, 1962), pp. 46-49; e Détienne, L'invention de la mythologie,op. cit., capitulo II; do mesmo autor, ver também a introdução citada na nota n. 11.

19 Ver a proximidade ente "aural" e "oral" in Détienne, L'invention de la mythologie, op. cit.,

pp. 51 e 61.

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54 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA

sua amarga lucidez; suas tentativas de restauração esotérica são tantomais dignas de interesse quanto terminam fracassando.Mas voltemos à decadência da memória na escrita segundo o

Fedro. A démarche de Platão/Sócrates é bem conhecida: no fim desselongo diálogo sobre o verdadeiro Eros e, inseparavelmente, sobre overdadeiro Logos, há de determinar o valor real dos discursos escritos,isto é, estabelecer uma vez por todas a diferença entre os produtosbrilhantes e enganadores da sofística e a palavra viva e verdadeira dafilosofia; ou ainda, há de salvar o belo Fedro da sedução da sofisticae convertê-lo à austera disciplina da filosofia. Sócrates conta entãouma história lendária que parece um mito, mas que ele inventou semdúvida para as necessidades do momento, sobre a origem da escrita:há muito tempo, no Egito — portanto no pats que serve aos gregosem particular a Platão, de paradigma de antigüidade e de sabedoria26— o jovem deus Thot, o inventor dos números e dos jogos de dados,apresentou sua nova invenção, a escrita, ao deus soberano e solar,Tamuz, modelo do rei-juiz arcaico cuja palavra tem força de lei. Aescrita deveria resolver os problemas de registro e de acumulação dosaber; Thot a define como uma "droga para a memória e para asabedoria" (mnemes te gar kai sophias pharmakon 274 e). Tamuz, o reisolar que não precisa escrever para garantir a durabilidade de suapalavra, contradiz essa definição: a escrita só fará aumentar o esque-cimento dos homens pois eles colocarão sua confiança "em signosexteriores e estrangeiros" (exothen hypo'allotriôn typôn) ao invés detreinarem a única memória verdadeira, a memória interior à alma(ouk endothen autous hyp'autón anamimneskomenous [275 a]). Vementão o juizo famoso: "Não é para a memória, é para a rememoraçãoque descobriste um remédio."21 Distinção famosa que retoma ascategorias da filosofia platónica do conhecimento, especificamente"a anamnese e a hypomnese, a reminiscência da essência e a lembran-ça de escrita". 22 Distinção que corresponde, igualmente, à oposiçãocortante entre o discurso escrito por Lisias e lido por Fedro no iníciodo diálogo, discurso tão sutil quanto vazio, e o segundo discurso deSócrates, consagrado, justamente, à natureza da alma, à sua vidainterior que lhe permite, quando encamada, de lembrar-se (anamim-

20 Ver Henri Joly, op. cit., primeira parte, capitulo 11, pp. 37-40. Do mesmo autor, "Matonégyptologue", in La question des étrangers (Paris: Vrin, 1992), PP. 97-100.21 Fedro, 275a: "oukoun mnemes, alla hypomnèseõL pharmakon heures." Cito segundo a ediçãode Léon Robin (Paris: Belles Lettres, 1978).

22 Henri Joly, Platon égyptologue, op. cit., p. 100.

MORTE OA MEMÓRIA. MEMÓRIA DA MORTE 55

neskein) das Idéias, discurso pronunciado oralmente no impulso dainspiração divina. Como o observa finamente Joly, Platão usa a

citação de autoridade egipcia para melhor corroborar sua própria

teoria do conhecimento, exposta pela maior parte nas páginas (!)

anteriores. 23 É a exterioridade da escrita, oposta à visão anterior da

alma, que faz dela um pharmakon artificial, tanto mais perigoso

quanto ele é ainda mais sedutor. Assim, seguindo a palavra real, a

escrita — Rousseau dirá os livros — produzirá insuportáveis falsos

sábios, cheios de um saber artificial e artificioso. A oposição interior-

exterior recorta, no texto platônico, aquela entre natureza e artificio;

ela está no coração da ambigüidade essencial do pharmakon, ao

mesmo tempo remédio que cura e veneno que traz a morte, uma

ambigüidade tão bem ressaltada por Derrida. 24 Por isso, como o

realçaram Derrida e Joly, 25 Platão não condena toda escrita, mas elesó julga verdadeiramente digna da filosofia a escrita interior à alma,

aquela que é "semeada" e "plantada" pela "arte dialética" "nas almas

dos discípulos" (276 e/277 a). Essa idéia de uma inscrição interior

será retomada por toda tradição filosófica, de Agostinho a Rousseau,

talvez até Chomsky. Como muitas vezes em Platão, o fenómeno

material e sensível — aqui a escrita, no Banquete por exemplo a

geração — que possibilita a descrição metafórica de um processo

espiritual — inscrição na alma, geração na beleza —, esse fenómeno é

rebaixado, até rejeitado e condenado no fim do raciocinio, como se a

imagem, necessária ao desdobramento do pensamento, devesse, depois, sercuidadosamente afastada desse pensamento mesmo que, no entanto, delatirou sua origem eseu impulso. Não é, aliás, por acaso que Platão critica,

justamente, na escrita, no sentido literal, seu caráter de imagem: ela

está próxima demais da pintura, dessa "zoo-grafia" que pretende

(d)escrever o vivo, mas que só é cópia morta sob a ilusão de vida,

simulacro (274 d-e). A escrita não é, portanto, somente uma droga

que promete a cura e traz a morte; ela completa, por assim dizer, sua

23 Henri Joly, idem, nota que os "grammata" de Thoth se assemelham mais a caracteres doalfabeto grego que a hieróglifos; Mario Vergetti observa, igualmente, que Platão substi-tuiu, em razão da argumentação socrática, Thoth a Palámedo ou a Prometeu, ambosinventores da escrita na tradição lendária grega (op. cit., p. 390).

24 Ver Derrida, op. cit.25 Ver Henri Joly, Le renversement platonicien..., op. cit., p. 118; Derrida, op. cit.; Vergetti, op.

cit., p. 418, que lembra a metáfora da alma como um "livro escrito pelo escriba interiorque sao a memória e as sensações" (Filebt' , 38e-39a).

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MORTE DA MEMÓRIA, MEMORIA DA MORTE 57

suplementaridade da escrita30 e que Deleuze chama o "desviar essen-cial" 31 (détournement essentiel), "o ponto de vista diferencial " , igual-

mente o "devir-louco", "o "devir-ilimitado" do simulacro.

Esse "devir-louco " cescrito que, segundo Platão, uma vez entrpor to

56 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTORIA

natureza de artifício pela sua pertença ao domínio da mimesis artística(e não filosófica) que, sob a aparência de vida, só engendra morte.Estamos aqui, se~rrndo a expressão deleuziana, em plena "seleçãodos pretendentes"2 Seleção que é, realmente, uma das questões

maiores do Fedro; ela caracteriza a divisão dialética que deve separaro amor autêntico de seus similes enganadores, a retórica autêntica(filosófica) das outras que são tidas por retóricas, mas só são rotinas.Ora, essa partilha não é arbitrária mesmo se é, às vezes, irônica ouparodfstica, como o ressalta Deleuze. 27 Ela pretende seguir a dinâmicado vivo, justamente (264 c), ela deve recortar o real como "um bomtrinchador", obedecendo às "articulações naturais" (265 e) — umametáfora singular, aliás, na qual a organização do vivo permiterecortar melhor o animal morto, destinado a ser comido. Enfim, adialética deveria assegurar o triunfo da ordem natural e viva, a dainterioridade psíquica, sobre a ordem ou melhor, segundo Platão,sobre a desordem artística e artificial portadora de morte, a daexterioridade sedutora. O processo da escrita é, portanto, mais que acondenação de um saber livresco, artificial e exterior; não se tratasimplesmente, de defender o espírito contra a letra, 28 a palavra vivacontra a repetição morta. Deve-se lutar, com todas as forças, contrao enredamento sedutor do escrito, da sofistica e da retórica queameaçam, graças à sua estranha proliferação infinita, o ordenamentomesmo do vivo. Sob os jogos aparentemente inocentes da escrita, amorte agarra o vivo — aliás Thot é igualmente o deus da morte nosegipcios. Poder oculto do pharmakon, esterilidade dos jardins deAdonis, filho indigno e bastardo que deixa a casa paternal, todas essascomparações opõem à plenitude resplandecente da palavra viva nãotanto o nada (a morte em sua simplicidade radical), mas algo maisinquietante, justamente, que o nada, algo como a morte operando noser vivo: os encantos do simile enganador, a imagem ilusória quetoma presente o ausente e, ao fazê-lo, mina a plenitude da presença,essa espécie de corrosão eficaz do não -ser29

muito mais perigosa quea pura negatividade: aquilo que Derrida descreve como o efeito de26 Gilles Deleuze, Différence et répétition, (Paris: PUF, 1968), pp. 82-95. Logique du sens (Paris:Minuit, 1969), pp. 347-361, em particular p. 355. " Remarques", in Nos Grecs et leursmodernes, textos reunidos por Barbarin Cassin, (Paris: Seuil, 1992), p. 149.27 Sobretudo em Différence et répétition, op. cit., passagem citada.28 Como o interpnta René schaerer em La question platonicienne (Paris: Vrin, 1969), criticadopor H. Joly, Le renversement platonicien..., op. cit., p. 123, nota 123.29 Ou melhor, segundo Deleuze, Différence et répétion, op. cit., p. 89: "(non) - être".

m o perigo de maus

sen Platãõ de- ve aqui a estranha aut,nomia do e

em relação ao escritor: desti s • s o à leitura uma ativida r -

cinde m . -m da resença do autor, o livro .ode ou não ser

compreendido como esse último o desejava que fosse, pode transmi-

tïróu não o que seu autor queria transmitir. Em termos de filiação,

umã metáfora cuja mi ortancia na obra de Platão foi ressaltada porDerrida, o filho, ele também, quando deixa a casa paternal, nãosignifica tanto a continuidade do pai que muito mais, mesmo se forem secreto, sua possível substituição, pois o pai não é mais impres-cindível à sobrevivência do herdeiro; o filho anuncia e pronuncia amorte, possível e segura, do pai. Contra a idéia talvez simpática masum tanto ingênua, até tola, que os livros possam representar seuautor, contribuir à sua imortalidade narcísica, Platão já afirma pe-remptoriamente que o escrito é desvio, afastamento, que ele não levade volta à origem, mas ajuda, pelo contrário a poder dela prescindir.Ausência afinal bastante suportável, talvez bem-vinda, pois a gentepode se sair muito bem sem voltar à casa paternal, sem pedir ao autora garantia da leitura justa, sem tornar a subir até a fonte ou até oprincípio. E claro que Platão, por sua parte, se esforça em lutar contraos prazeres e contra as tentações dessa perigosa liberdade, dessadispersão arriscada. Seria preciso conseguir abolir essa defasagemessencial ao escrito; contra a infidelidade inerente à escrita, Platãodesenha o ideal de uma palavra primeira, inequívoca, próxima de suaorigem divina na fonte interior da alma. Sem dúvida, ele sabe emdemasia o quanto a linguagem é incapaz de dizer verdadeiramente oser verdadeiro, to on onten; defende, porém, uma espécie de palavraao mesmo tempo luminosa e transparente onde os próprios termoscontribuiriam à sua disparição em proveito da coisa mesma — umaexigência que é a conclusão do Crátilo. Essa linguagem, cuja tarefa

30 Derrida, op. cit., retomado por Vergetti, op. cit., pp. 416 ss. a respeito da escrita como

système vicariant.31 Deleuze, Logique du sens, op. cit., p. 350.32 Idem, p. 553.

. ... I so

I. e II osblicoIon e da de

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58 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM. MEMÓRIA E HISTÓRIA

última seria de se fazer esquecer para que somente a essência consiga"dizer-se", persegue e assombra até hoje o discurso filosófico e o faz,muitas vezes se opor ao "discurso opaco" da literatura 3 3 Sofística eretórica, literatura, acrescentaríamos hoje, são, pelo contrário, as artesda não-transparência, vivem da espessura das palavras e dos signos,da profusão abundante dos ornamentos onde a referência se perdesem volta para a admiração estupefata de Fedro e para a indignação,fingida ou verdadeira (!), de Sócrates.

Este efeito de desrealização que o poder das palavras opõe àevidência dos fatos, ninguém melhor que o grande sofista Gorgias otinha celebrado. Pode-se perguntar com razão se o Fedro, com seuelogio conjunto do amor sincero e do discurso verdadeiro, nãodeveria ser lido e ouvido como uma espécie de resposta a um outroelogio famoso, o Elogio de Helena, no qual Gorgias celebra os poderessimilares de Eros e de Logos. Derrida ressalta a proximidade docontexto e do vocabulário: se a escrita, em Platão, é definida comoum perigoso pharmakon, é ao próprio logos, em razão de sua omnipo-tência sobre a alma, que Gorgias atribui esse nome. 34 Essa proximi-dade só faz ressaltar a oposição das intenções: enquanto Platão rejeitaos encantos da escrita para afirmar com veemência a primazia de umapalavra transparente, que flui da origem divina até a alma apaixonadapela verdade, para Gorgias, ao contrário, o logos subverte as evidên-cias, derruba as hierarquias estabelecidas, mistura e confunde, tal umjogador emérito, as cartas do baralho que pareciam claras. Gorgiasdeclara Helena inocente pois ela foi arrebatada ou pela violênciafísica, ou pela violência do amor, ou, então, por aquela do discursotão forte quanto a violência física, tão irresistivel quanto o amor. Aofazer isso, Gorgias se ri da culpabilidade da adúltera e da indignaçãomoral a respeito da infiel, pois a história se resolve num jogo de forçascujo mestre incontestado é o logos; poder cuja prova viva é seu própriotexto, com sua virtuosidade extraordinária: o Elogio de Helena tambémé, inseparavelmente, o elogio do discurso.

Não me arriscarei aqui mais profundamente nesse debate queopõe Platão a Gorgias e que, até hoje, e com uma semelhançasurpreendente, impera em numerosas discussões filosóficas como se,

33 Ver H. Joly, Le renversement platonicien..., op. cit., em particular nota 101, p. 121, na qualJoly cita Todorov.34 Derrida, op. cit. Ver também Barbara Cassin, 'Du faux ou du mensonge ã la fiction (depseudos â plasma)", in Le plaisir de parler, textos reunidos pela mesma autora, Colóquio

de Cerisy (Paris: Éditions de Minuit, 1986).

MORTE DA MEMORIA, MEMÓRIA DA MORTE 59

no mais tardar a partir de Nietzsche, a tradição filosófica ocidentalfosse obrigada a se confrontar cada vez mais a este recalcado amea-çador que, graças à condenação platônica e, mais tarde aristotélica,recebeu o nome de sofística.

35 Para melhor circunscrever os riscosque a linguagem, em particular a escrita, parece fazer correr à filosofia,gostaria de ater-me aqui à descrição do caminho, quase invisível, quea figura de Helena, ainda ela, inscreve como um sulco no texto do

Fedro.Como o ressaltou muito bem Nicole Loraux, "Helena assombra o

segundo discurso de Sócrates",36 talvez mesmo o Fedro inteiro. Como

atravessa, invisível em sua capa branca, a cidade de Tróia para obedecer aAfrodite e, contra sua própria vontade, encontra-se com o belo Páris,

37

assim também Helena percorre, como que subterraneamente, o textoplatônico. Ela é evocada, primeiro, antes do grande discurso de Sócrates,

para justificar a necessidade da palinódia de Estesícoro (243 a-h); o seurastro ressurge, no fim do diálogo, no mito socrático-egipcio dainvenção da escrita. Com efeito, para os contemporâneos de Platãoessa droga egípcia não podia deixar de lembrar uma outra, aquela queHelena coloca no vinho de Menelau e de seus hóspedes no Canto IV

da Odisséia38 Essa "droga engenhosa" que recebeu da rainha Poli-damna provém, ela também, "do Egito", "país onde a terra, fértil emtrigo, produz também símplices em abundância, com os quais sepreparam misturas, umas benéficas, outras nocivas". Exatamentecomo a escrita, o pharmakon egípcio de Helena faz esquecer; ele é"um calmante da dor e do ressentimento", que faz "esquecer todosos males", a tal ponto, acrescenta Homero, que quem dele prova nãochora mais durante um dia inteiro "nem mesmo que morressem suamãe e seu pai, em sua presença, nem diante dos olhos, seu irmão efilho fossem mortos com o bronze": droga benéfica portanto pois

35 A esse respeito, ver Barbara Cassin, idem, e, da mesma autora, a coletânea de artigos,Ensaios Safisticos, siciliano, 1990, em particular a introdução, a terceira e a quarta parte.

36 Nicole Loraux, fantôme de la sexualité", in Les expériences de Tirésias. Le féminin et

l'homme grec, Gallimard, 1989. Ver nota 3 desse ensaio, p. 360: "Héléne hante le seconddiscours de Socrate: 248cd (allusion 8 Adrasteia, épithète de sa mère Némesis); 251a (lebeau visage du jeune garçon est, comme celui d'Hélène, d'aspect divin et, comme lui, faitfrissonner); 252a (tout quitter pour le bel objet, comme Héléne chez Sappho, fragment16, Campbell); 252d (faire de l'aimé un agalma), etc." O artigo de Nicole Loraux orientou,de maneira decisiva, minha leitura do Fedro.

37 Ilíada, Canto III, Versos 380-450.38 Odisséia, Canto IV, versos 219-233. Cito a tradução de Antônio Pinto de Carvalho (Editora

Abril). Ver a este respeito Barbara Cassin, Ensaios Sofísticos, op. cit., pp. 299 ss.: "Ainda

Helena: uma Sofística do Gozo".

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60 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMORIA E HISTORIA

permite aos hóspedes de Menelau banquetear e dormir em paz; masdroga inquietante igualmente pois pode provocar uma beatitude talque os laços familiares se dissolvem na indiferença. Helena, a esposaque foi reconduzida para casa e que parece ter se ajuizado, continua,porém, em Homero, a ser a senhora desta força da qual a Odisséia nãopára de falar: este poder de consolo e de esquecimento que, no maisíntimo do seu ser, sustenta a palavra poética em sua tarefa derememoração e, em particular, a Odisséia enquanto poema. Essadádiva preciosa que o aedo recebeu de Apolo, deus da luz e da medida,é, no entanto, inseparável de seu revés ameaçador, essa potência deesquecimento, de desintegração, de regressão e de morte contra a qualUlisses deve lutar sem trégua para reencontrar Ítaca.

39

Poder quedescrevem numerosos episódios da Odisséia, os dos Lotófagos, deCirce ou de Calipso e, em particular, o das Sereias cujo canto sublimee mortífero foi várias vezes interpretado como a própria imagem docanto poético. 40 Ora, chama atenção o fato da voz das Sereias exercersobre os navegantes a mesma atração perigosa que a voz de Helenasobre os guerreiros aqueus, encerrados no cavalo de madeira. Mene-lau, o marido, não parece hesitar nenhum segundo em relembrar esseardil, pouco honroso para ele, aliás, de sua mulher traiçoeira andandoem redor do cavalo de Tróia e imitando a voz de cada uma das esposasdeixadas em casa, chamando cada guerreiro grego pelo seu nome paraele sair do esconderijo e ser morto pelo seu terceiro marido, Deifo-bo. 41 Para resistir As vozes de Helena e das Sereias, que, ambas,despertam esse impulso fortíssimo de "pular para fora" e de "respon-der sem demora",

2Ulisses, por duas vezes, usa de violência contra

seus companheiros e contra si mesmo para que todos se mantenhamimóveis e como surdos. Certamente, essa narração surpreendente tempor fim primeiro, neste momento preciso do Canto IV, ilustrar o valorde seu pai aos ouvidos de Telémaco atento. Mas ela também ressaltaa extraordinária ambigüidade de Helena que, algumas linhas antes,tinha contado como protegeu Ulisses contra os troianos, enquanto o

39 Ver a famosa interpretação de Adorno e Horkheimer da Odisséia como sendo a descriçãoda constituição do indivíduo burgu@s, simultaneamente racional e mutilado, que renun-cia As tentações e às delícias do mito ( Dialektik der Antklami ng, 1947, reedição FischerVerlag, 1969).

40 Maurice Blanchot, Le livre A venir (Paris: Gallimard, 1959), Primeira Parte: Le chant dessirènes. Ver igualmente Tzvetan Todorov, Poétique de la prose (Paris: Seuil, 1971), pp.70/71.

41 Ver Barbara Cassin, "Ainda Helena...", op. cit.42 Odisseia, Canto IV, verso 283.

MORTE DA MEMORIA. MEMORIA DA MORTE 61

tinha perfeitamente reconhecido sob seus farrapos de mendigo, comoo "banhou" e o "ungia de óleo" 43 assim Helena reúne, em algunsversos de distância, a terna delicadeza de Euricléia e a mortal perfídiadas Sereias.

Essa ambigüidade essencial que, como o sublinha a Ilíada, tam-bém faz Helena se insurgir contra si mesma, se xingar e odiar a simesma, Æ4 é a do pharmakon, certamente, e também, conjuntamente,a da imagem. Pois Helena é primeiro e antes de tudo a imagem daimagem, personificação de tudo aquilo que o eidôlon comporta deencantos e de perigos. Primeiro porque ela possui essa beleza resplan-decente que faz com que, desde que aparece, Helena desarma até ocoração dos sábios anciões de Tr6ia. 45 Helena, de véus brancosofuscantes, é o próprio esplendor do aparecer sensível, ela possui agraça e a glória inefáveis da beleza. Ela se assemelha As deusas 46 poisesse esplendor, para os gregos, só pode ser de origem divina; mas essasemelhança mesma é fatal e a destina a ser um flagelo 47 que ameaçaos mortais em sua integridade. O esplendor da beleza se condensoua tal ponto divinamente em Helena que ele acaba, paradoxalmente,por encobrir a mulher real de carne e ossos que era a jovem rainhade Lacedemona. Esse acréscimo de beleza, dádiva de Afrodite, tornao corpo de Helena estranhamente ausente, ausente a si mesmoprimeiro, 48 mas também aos outros para quem ele parece ser muitomais a própria encarnação do desejo que a figura de uma mulher real,mortal, sofrida ou alegre. Como a imagem, que permanecia primeiroligada a seu modelo, acaba, quando a obra estética for bem-sucedida,por ganhar sua independência e prescinde muito bem do modelooriginário, instaurando uma outra realidade que periga ameaçar arealidade do real em sua exclusividade primeira, assim também abeleza resplandecente de Helena acaba por desapossar a mulherconcreta de sua realidade carnal. Não há de se espantar, nessascondições, que puderam florescer, nos gregos, outras versões damesma lenda, segundo as quais a verdadeira Helena nunca teria idoa Tróia, mas teria ficado... no Egito, enquanto os aqueus e os troianosse trucidavam por um fantasma, por uma nuvem tão irradiante

43 Idem, verso 252.44 Nicole Loraux, op. cit., pp. 234-236.45 Ilíada, Canto III, versos 156-160.46 Idem.47 Pema, idem; ver Nicole Loraux, op. cit., pp. 234/235.48 Como o ressaltou cam força Nicole Loraux, op. cit., p. 236.

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62 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA

quando irreal, ou ainda por um nome separado do corpo a que eledevia pertencer. 49 Há de se admirar mais, em compensação, do fatode Platão, por duas vezes segundo Nicole Loraux,50

ter assumidoresolutamente essa última versão da lenda, da autoria, segundo atradição, do poeta Estesícoro: na República 51 e, sobretudo, no nossodiálogo Fedro, onde a palinódia de Estesícoro é citada como exemplopor Sócrates para justificar a necessidade de um segundo discursosobre o amor verdadeiro (243 a-b).

Por que essa decisão sem rodeios embora Platão, em matéria demitologia e em particular no Fedro (229 c — 230 a) seja geralmentemuito prudente? Sob essa questão de detalhe podemos adivinharoutras escolhas primeiras que a filosofia de Platão se deu por tarefadefender, no sentido duplo do termo: fundar pela razão e protegercontra os perigos, talvez contra os inimigos que poderiam ameaçá-la.Primeiro talvez, Platão não resiste, no Fedro sobretudo, à vontade dedar uma alfinetada em Homero, o educador da Grécia que deve ser,ele mesmo, reeducado, como o faz o livro III da República. Por tabela,Gorgias também é alcançado, ele que acredita ingenuamente emHomero embora se achasse tão esperto. Mas a versão de Estesfcorodeve ter, aos olhos de Platão, um outro mérito, mais decisivo ainda:o de estabelecer uma distinção clara, sim geográfica, entre o domíniodas imagens, dos simulacros, dos símiles enganadores — Tróia — e oda realidade, da verdade e da constança — como por acaso no Egito!A chacina sob os muros de Tróia só prova então a miséria desseshomens "insensatos" que "lutam para possui-los [isto é, as sombrase os esboços do verdadeiro prazer] como se Lutou em Tróia pelasombra de Helena, no dizer de Estesícoro, por não se conhecer averdade"

s2

"Por não se conhecer a verdade": com efeito, se a verdadetivesse sido (re)conhecida, não teria havido nem guerra, nem morte,nem sangue, nem ao mesmo tempo, poesia, nem Ilíada, nem Odisséia.Assim, a tarefa da reta filosófica será de nos libertar das paixões, daguerra e da morte que acarretam, mas também de nos livrar dessasbelas narrativas enganosas que nos encantam.

O que significaria Helena, em compensação, se a ficção deHomero se revelasse verdadeira? Não tanto que algumas mulheres

49 Ver Euripides, Helena, obra na qual a alternativa comma - sorna é o fia da trama.50 Nicole Loraux, op. cit., nota da p. 240.51 República, Livro IX, 586 h-c.52 agnoiai ton aMthous, idem, ressaltado por mim, JMG. Trad. J. Guinsburg (Sao Paulo: Difel,

1965).

MORTE DA MEMÓRIA, MEMÓRIA OA MORTE 63

valem uma guerra, uma suposição absurda que o varonil Heródotose apressa em condenar ironicamente, no início de suas Histórias, para

melhor traçar a fronteira entre o discurso do mythos e aquele do logos.53

Helena pode ser a mais bela das mulheres; seu estranho poder não nasce,porém, da plenitude da perfeição, mas, ao contrário, daquilo que, atravésda princesa estrangeira, sempre dolorosamente se esquiva. Pois Helena,como o diz otimamente Nicole Loraux, "é ela mesma e mais que ela

mesma", 54 como também, podemos notá-lo, a imagem, o simulacro, a

escrita. Se encarna, sim, a "coisa sexual " ,55

não é porque ela seria uma

espécie de mulher fatal irresistível sobre a qual os homens não poderiamdeixar de se precipitar. E muito mais porque sua divina beleza lheslembra que, além de toda precipitação e de toda possessão, o jogo doaparecer e da semelhança continua inalterado, em sua gratuidade e suabela indiferença, sem que nenhum homem possa dele se assenhorar,mesmo sendo o marido o mais perfeito ou o mais fogoso amante. Assim,

como ressalta tão bem Nicole Loraux, a sedução exercida por Helena é,sem dúvida, profundamente sexual, mas justamente por aquilo que asexualidade comporta de "fantasmático" e, inseparavelmente, de "verda-

deiro",56 pela distância que cava em nós em relação a nós mesmos e aosoutros, pelo afastamento que provoca no mais intimo de nosso corpo. Semessa dimensão fantasmática não poderia haver Eros; é bem isso que faz a

realidade do fantasma cuja potência preocupante Platão se aplica a com-bater. E. notável, nesse contexto, observar que Helena, em Homero, nunca

é descrita com todos os atributos físicos que um anúncio de revista

especializada não deixaria de enumerar. Fala-se de Helena e da dominaçãdque exerce —e isso basta, com efeito, para nos persuadir do quanto ela é

desejável.Essa dinâmica não deixa de lembrar uma outra descrição de Eros,

a de Platão, justamente. O verdadeiro amante platônico descobre, eletambém, o quanto qualquer tentativa de possessão do amado é vãpoiso verdadeiro "objeto" do amor transcende qualquer apropriação.

Se o Banquete e o Fedro realçam esse caráter inesgotável da verdadeirabusca amorosa, é para demonstrar não tanto que , a sexualidade é má,mas sim; que o verdadeiro alvo do amor é a imortalidade. Essa

53 Heródoto, Historiai, Livro I, § 4; o mesmo Heródoto é partidário da versão anti-homérica(e moralizadora) segundo a qual Helena teria ficado, cheia de virtude e intocada, no Egito(Livro II, § 112-120).

54 Nicole Loraux, op. cit., p. 234.55 Idem, p. 233.56 Idem, ver as conclusões a respeito de Menelau na Helena de Euripides, pp. 250-51.

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64 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA

demonstração se encontra no centro do discurso de Diótima nadedução muito rápida, em todo caso bastante "sofística", do desejode imortalidade a partir daquele de ficar sempre em presença dobem.57 Esse desejo de imortalidade justifica igualmente (pois umajustificativa se faz necessária) que somente o amor heterossexual,produtor de filhos legítimos, reconhecíveis por seu pai, seja admitidona cidade das Leis. Se Platão, portanto, reconheceu muito bem ocaráter, num certo sentido, insaciável de Eros, é para melhor afirmaro laço entre imortalidade e amor. Ora, se Helena afirma, ela também,a profunda relação da sexualidade à perseguição do inalcançávelnaquilo que essa comporta de arrebatamentos e de êxtases, elatambém descobre que essa busca é necessariamente ligada à cruelda-de do esgotamento, à vaidade da luta, à perda e à morte. Como aetimologia, justa ou falsa, pouco importa, de seu nome já o dizia paraos Trágicos gregos e, mais tarde, para Ronsard, Helena remete aoverbo he/ein, enlevar, raptar, isto é, aos "verbos 'furtar', 'arrebatar','pilhar', 'levar embora', no meio dos quais se insinua, como umsinistro denominador comum, o verbo 'matar"' .

58O rapto de Helena

não significa somente as alegrias do "arrebatamento" amoroso; acar-reta também e sobretudo sua funesta inversão: a partida de tantosheróis e o rapto de suas vidas sob os muros de Tróia e, mais tarde, nastempestades do retorno.

Talvez consigamos, agora, precisar melhor par que Platão, contraHomero, escolheu Estesícoro, contra Helena em Tróia, Helena noEgito. Helena em Trola desencadeia os poderes conjuntos da bela aparên-cia e da morte. Se forem tão fortes quanto o cantam a Ilíada e a Odisséia,então pode-se com direito duvidar que o logos filosófico consiga,apesar de toda sua vontade de verdade e de luz, domá-los. Lembrare-mos aqui que o Fedro contava um outro episódio de domesticação: odo mau cavalo negro pela ação conjunta do cavalo branco e dococheiro, thumos e nous, na Luta que a alma trava consigo mesmaquando vê o belo rapaz desejável. O que possibilita, sem dúvida, avitória (freqüente) sobre o cavalo negro é também o fato dele ser"torto e disforme", ter "o pescoço baixo" e "um focinho achatado" e"orelhas Cobertas de pêlos" que o impedem de escutar bem e de

57 Banquete, 206a-207a. Em particular a definição 207a: "Athanasias deanankaion epithumeinmeta agathou ek tdn homologemendn, eiper tou tagathon heautoi einai aei ecos estin;anankaion de ek toutou tou togou kai tés athanasias ton erdta einai."

58 Nicole Loraux, op. cit., p. 247; Loraux cita aqui Ronsard.

MDRTE BA MEMÓRIA. MEMÓRIA DA MORTE : 65

obedecer (253 e); em suma, esse cavalo é tão feio que ninguém seengana. Nada tem dos encantos da bela Helena ou da bela imagem,que parecem bem mais difíceis de serem domados. É portanto melhordeixar a verdadeira Helena aos cuidados de um rei egípcio e fazer doseu fantasma o único responsável por tantas infelicidades que oshomens sofrem "por não se conhecer a verdade"; talvez então, commuita paciencia e muito esforço, a filosofia consiga lhes fazer reco-nhecer a verdade e torná-los mais felizes.

Porque encarna o laço profundo da sexualidade à morte, Helena écomo a irmã de Adonis, esse rapaz belo demais que amaram Afrodite ePerséfone. Oriundo da união incestuosa de sua mãe com seu avô, mortoantes de ter alcançado a idade de casar e de procriar filhos legítimos,Adonis encarnauma sexualidade "exuberante" 59 anárquica e transgres-siva, que ameaça a ordem, duramente conquistada, da família e dacidade. 60 Contra as interpretações de tipo frazeriano que faziam deleuma divindade da vegetação, cuja morte precoce anunciaria a renascen-ça primaveril, Marcel Détienne insiste de maneira convincente na unida-de estrutural entre sedução e conupçãob1 que funda essa figura. Essaarticulação se manifesta claramente no ritual dos jardins de Adonis cujamais antiga descrição se encontra, 62 justamente, na conclusão do Redro(276 b). Esses jardinzinhos artificiais eram plantados e regados com águaquente pelas mulheres, na maioria das vezes pelas mulheres livres emcompanhia de seus amantes, em oposição às esposas legítimas con-sagradas à guarda das famílias. Eles floresciam rapidamente e morriamem oito dias, à imagem da floração e da morte precoces do belo Adonis.Essa existência artificial, sim contranatureza, se caracteriza, portanto, porseu esplendor e por sua esterilidade; Platão a opõe ao ritmo natural epaciente da verdadeira semeadura que o bom agricultor tem portarefa conhecer e respeitar se desejar que sua semente (sperma)

63

tenha frutos. Nessa Longa comparação que encerra a digressão do

59 Retomo aqui uma das freqüentes traduções do "pollou spennatos mestos" que designa orapaz rebelde às regras sexuais da Cidade (Platão, Leis, 839b).

60 Sobre Adonis ver o livro de Marcel Détienne, Les jardins d'Adonis. La mythologie desaromates en Grèce (Paris: Gallimard, 1972/1984).

61 Idem, entre outros p. 236: "En conséquence, si la mythologie grecque des aromates centrée surAdonis a un sens, si ces différents récits mythiques articulés les uns aux autres veulent vraimenttransmettre d travers leurs codes communs un message unique, c'est peut-être celui-ci: que touteforme de séduction porte en soi le principe d'une menace de corruption."

62 Ainda segundo Détienne, idem, pp. 194 ss.63 Sobre "le double registre du mot 'semence' (spenna) dans la langue et dans la pensée

grecques" (Détienne, op. cit., p. 215), ver Détienne, idem, pp. 215 ss. e Derrida, op. cit.

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66 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMORIA E HISTÓRIA

diálogo a respeito dos méritos e dos perigos da escrita, esses jardinzi-nhos artificiais, brilhantes, femininos e estéreis são a imagem dodiscurso escrito que "aquele que conhece o justo, o bom e o verda-deiro" (276 c) não tomará a sério; no máximo, os guardará para avelhice esquecida "como ocasiões charmosas mas fúteis de rememo-ração" (276 d). Como o bom agricultor, o verdadeiro filósofo quercultivar na duração para colher frutos substanciais; assim, um traba-lha a terra enquanto o outro "planta e semeia discursos" nas almas(276 e). Nessa última metáfora, Platão reata um com outro os temasdo amor e do discurso que o diálogo tinha tratado sucessivamente.Os discursos da dialética são, simultaneamente, a semente apropriadae o fruto desejado, que alcançou a maturação, o meio privilegiado dageração e o filho amorosamente produzido (276 e — 277 a). 64 Emoposição ao discurso escrito, entregue a uma existência efêmera eestéril, o discurso filosófico gera e pare, além da diferença sexual ealém da vida humana, numa duração "imortal", "capaz(es) de produ-zir sempre, imortalmente, esse mesmo efeito", ...conclui Sócrates(277 a) em eco ao "desejo de imortalidade" de Diótima. 65 A metáforaorgãnica da agricultura que só falava da continuidade do vivente,portanto do ciclo da vida e da morte, deixa sub-repticiamente lugara uma outra figura: a de um discurso humano, certamente, mas noentanto liberado da sexualidade, do tempo e da morte, um discursocujo nome seria "filosofia".

A resistência, a desconfiança, mesmo a condenação de Platão emrelação ã escrita se nos tornaram mais claras: morte da memóriatalvez, a escrita é, também e com certeza, memória da morte. Noespaço restrito das páginas e dos muros, ela inscreve caracterespassageiros que embranquecerão e se apagarão como os ossos doshumanos em seus túmulos. Hoje, quando mesmo os deuses se torna-ram mortais e pode-se calcular a idade na qual a Terra deveráterminar, o ideal platônico de um discurso luminoso e imperecívelparece ser uma bela e sedutora ilusão, mais perigosa que Helena, queimpede o discurso filosófico de confrontar-se ã sua finitude e ima-

64 Da mesma maneira no Banquete, 210a ("...kai entauthagenndn logo us") e 210d ...pollouskai kalous logo us kai mega)oprepeis tiktei"). A este respeito, ver Yvon Brés, La psychologie dePlaton, Paris: PUF, 1973, em particular as páginas 250-276.

65 "Tout'aei athanaton parekhein hikanoi', ver Banquete, 207a: "Athanasias de anankaionepithumein ... ", ver também nota 57.

MORTE DA MEMÓRIA, MEMÓRIA DA MORTE : 67

nencia radicais. Também é uma esplêndida imagem da verdade queum filósofo-escritor modelou, o qual, por um surpreendente rodeiode escrita, nunca se nomeou como autor, mas escolheu como porta-voz privilegiado um homem morto há tempo, um mestre que serecusou a sé-10 66 — Sócrates, aquele que não escreve.

66 Ver Yvon Brés, op. cit., capitulo III: "Le maitre introuvable".

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IV. DIZER O TEMPO

A Benedito Nunes

Que é, pais, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quemo poderá apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzirpor palavras o seu conceito? E que assunto mais familiar e mais batidonas nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos, compreende-mos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quandodele nos falam. O que é, porconseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntareu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei.

Santo Agostinho, Confissões, Livro XI, 14 (17).Tradução de J. O. Santos e A. A. Pina.

São Paulo: Abril, Coleção Os Pensadores, 1973.

Com essa exclamação famosa, no centro do Livro XI de suasConfissões, Santo Agostinho inicia uma interrogação filosófica quemarca, até hoje, a reflexão ocidental sobre memória, tempo e história.Para essa mesa-redonda, escolhi alguns aspectos dessa interrogação,e isso por duas razões principais:— Primeira razão: porque o gênero discursivo das Confissões se situanum cruzamento privilegiado entre história e literatura. Com ahistória, ele compartilha uma pretensão de verdade como reconstru-ção exata e verificável dos acontecimentos do passado. É o motivoessencial da "sinceridade" que, desde Agostinho até, no mínimo,Rousseau, quem sabe até mesmo Althusser, serve sempre de justifi-cativa para o estranho empreendimento da narração autobiográfica.Com a literatura, o gênero das Confissões compartilha as estratégias

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70 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA

da ficção, em particular a construção do enredo, da trama (aquiloque Ricoeur chama de mise en intrigue —Temps et Récit, I [Paris: Seuil,1983], pp. 55 ss.); construção que remete a uma noção de verdadenão mais como exatidão da descrição, mas sim, muito mais, comoelaboração de sentido, seja ele inventado na liberdade da imaginaçãoou descoberto na ordenação do real.

Em vez de falar na construção do tempo e da memória primeirona história e, depois, na literatura, prefiro, de antemão, tratar dessediscurso fronteiriço, ambíguo, no qual a segurança da verificaçãohistórica e a arbitrariedade da imaginação literária se relativizam ese constituem mutuamente.— Segunda razão da minha escolha da reflexão agostiniana sobretempo e memória nas Confissões: ela marca um corte fundamentalcom as tentativas da filosofia antiga (em particular em Platão e emAristóteles) que definiam o tempo em relação ao movimento decorpos externos, em particular em relação ao movimento dos astros.Ao propor uma definição do tempo como inseparável da inte-rioridade psíquica, Agostinho abre um novo campo de reflexão: oda temporalidade, da nossa condição específica de seres que não sónascem, e morrem "no" tempo, mas, sobretudo, que sabem, que têmconsciência dessa sua condição temporal e mortal. Em particular,como já o indica nossa citação inicial, que podem falar e pensar notempo. Veremos que essa ligação entre tempo e linguagem (fala dotempo/tempo da fala, escrita do tempo/tempo da escrita, música dotempo/tempo da música) será absolutamente decisiva para a própriapossibilidade de uma definição do tempo — e da memória — porAgostinho. Em outros termos: é somente através de uma reflexãosobre nossa temporalidade, em particular sobre a temporalidadeinscrita em nossa linguagem, que podemos alcançar uma reflexãonão aporética sobre o tempo. Sigo aqui, como em toda essa exposi-ção, a leitura que Paul Ricoeur faz das Confissões, mais especifica-mente sua tese que "la spéculation sur le temps est une ruminationinconclusive d laquelle seule réplique l'activité narrative" (Temps etRécit, op. cit. p. 21) ("a especulação sobre o tempo é um matutarinconclusivo, ao qual só responde a atividade narradora").

No caso específico das Confissões, e isso dá à leitura desse texto,independentemente do valor de edificação espiritual que ele possater, o prazer da descoberta que a aproxima da leitura de um romancede aventura e de suspense, a interrogação sobre o tempo também é,

DIZER 0 TEMPO 71

de maneira inseparável, uma interrogação sobre o eu narrador, sobrea identidade narrativa portanto, e uma interrogação sobre o sentidodesse empreendimento comprido e complicado que são as própriasConfissões, sobre a enunciação dessa narrativa portanto. A conjunçãodessas três questões — sobre a natureza do tempo, sobre a identidadedo sujeito narrador, sobre o sentido da narração —explica também orecurso freqüente, cortando a narrativa propriamente dita, à oração.Agostinho não rezaria, pois, somente em virtude da sua santidade jápresente, mesmo que ainda não-canonizada, rezaria muito mais pararetomar fõlego na sua Longa busca e, simultaneamente, para secertificar, diante da bondade e da eternidade divinas, do possívelsucesso de sua empresa. O contraste entre tempo humano e eterni-dade divina se desdobra, pois, no contraste entre os longos e difíceismeandros da história humana que se vive e se conta — e a omnisciên-cia instantãnea de Deus que não precisa de nossas histórias paraconhecer a verdade:

"Sendo tua a eternidade, ignoras por ventura Senhor, o que tedigo, ou não vês no tempo o que se passa no tempo? Por que razãote narro, pois tantos acontecimentos? " Assim começa o Livro XI,ligando estreitamente a questão sobre a natureza do tempo à sobre osentido da narração das Confissões. A essa oração inicial correspondeuma segunda, no último trecho do Livro XI, mais precisamente nointervalo crucial entre as refutações das definições do tempo comomedida do movimento dos corpos e a aquisição progressiva dadefinição agostiniana do tempo como distentio animi, "distensão daalma/do espírito":

Confesso-te, Senhor, que ainda ignoro o que seja o tempo. Denovo te confesso também, Senhor — isto não o ignoro —, que digoestas coisas no tempo é que já há muito tempo que falo do tempo,e que esta longa demora não é outra coisa senão uma duração detempo. E como posso saber isto, se ignoro o que seja o tempo?Acontecerá talvez que não saiba exprimir o que sei? Ai de mim, quenem ao menos sei o que ignoro! (XI, 25 [32], trad. modificada).

Entre essas duas orações, Agostinho já venceu dois obstáculosmaiores à apreensão desse tempo que é condição transcendental doseu discurso sobre ele, fundamento da própria fala que se furta a ela.Um obstáculo é, como já dissemos, a refutação das definições antigas

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do tempo segundo o movimento dos corpos. Não me estenderei aquia esse respeito. O outro obstáculo, muito maior para nossa sensibili-dade moderna, é a refutação dos argumentos céticos sobre a inexis-tência do tempo. Argumentos angustiantes que voltarão, reiteradasvezes, nas numerosas queixas filosóficas ou poéticas sobre a caduci-dade, a fragilidade, mais, a mortífera transitoriedade do tempo hu-mano: o passado não existe, pois já morreu, o futuro tampouco, poisainda não é, e o presente, que deveria ser o tempo por excelênciaporque é a partir dele que se afirmam a morte do passado e ainexistência do futuro, o presente, então, nunca pode ser apreendidonuma substância estável, mas se divide em parcelas cada vez menoresaté indicar a mera passagem entre um passado que se esvai e umfuturo que ainda não é. Aos assaltos do ceticismo, Agostinho nãoretruca — malgrado sua santidade! — por uma afirmação de crença oude fé, mas sim por uma reflexão critica, e, em seguida, por uma reflexãopragmática sobre nossa linguagem.

Explico melhor. Uma reflexão crítica sobre nossa linguagem: aimpossibilidade de determinar onde se encontra esse tempo semprefugidio, em particular esse presente que "não tem nenhum espaço"("praesens autem nullum habetspatium" XI 15, 20), não acarreta, comoo querem os céticos, a inexistência em si do tempo, mas somente suainexistência espacial objetiva. Dito de outra maneira: é a nossa pro-pensão, quase natural, de falar e de pensar no tempo em termos (emimagens, em conceitos) espaciais que nos impede de entender suaverdadeira natureza.

Essa crítica já se encontrava no Livro X das Confissões, no qualAgostinho reconhecia que era impossível falar em termos espaciaisda memória, pois nenhuma metáfora (grandes "Campos", "Antros eCavernas sem número", "Vastos Palácios", "Grande Receptáculo" damemória etc.) consegue dar conta das imagens que a memória"encerra" "dentro" de si. Essa "dimensão" infinita da memória pro-voca em Agostinho, como mais tarde em Proust, uma reação deadmiração e de susto, quase de medo. Mesmo que não se pense nasidéias inatas oriundas de Deus e sempre presentes "em" nossa memó-ria, também quando não o percebemos, mesmo que se pense somentena memória profana, oriunda das sensações e do aprendizado huma-nos, a profusão de imagens que nos invade, às vezes à nossa revelia(cf. a bela análise das imagens que "irrompem aos turbilhões" contranossa vontade, X, 8, 12), exige o abandono da descrição da atividade

UIZEP 0 TEMPO : 73

espiritual do lembrar em termos espaciais. Para poder descrever, pois,seus próprios atos, o espírito não pode se pensar a si mesmo como opalco, gigantesco e sempre cambiante, de uma representação infinita,não pode se pensar em termos de espaço e de representação, mas deve,para se pensar a si mesmo, pensar simultaneamente o que está "além"dele, o que, portanto, lhe escapa, o que ele não pode nem conter nemcompreender. Agostinho expõe de maneira belíssima essa impossibi-lidade do espírito se apreendera si mesmo, se quiser dizer sua verdademais íntima:

É grande esta força (vis) da memória, imensamente grande, 6 meuDeus. P. um santuário infinitamente amplo. Quem o pode sondaraté ao profundo? Ora, esta potência é própria do meu espirito, epertence à minha natureza. Não chego, porém, a apreender todoo meu ser. Será porque o espírito é demasiado estreito para seconter a si mesmo? Então onde está o que de si mesmo nãoencerra? Estará fora e não dentro dele? Mas como é que o nãocontém? (X 8, 15).

E no fim do Livro X, antes de iniciar a análise do tempo no livroseguinte, Agostinho evoca a atividade psíquica e espiritual por exce-lência, a busca de e o encontro com Deus, coma sendo o paradoxode um movimento incessante que não acontece em lugar nenhum:"E não há nenhum lugar, quer retrocedamos, quer nos aproximemos,e não há nenhum lugar" ("Et nusquam locus, et recedimus et accedimus,et nusquam locus") (X 26, 37).

Pensar a memória não em categorias espaciais, mas em termos deatividade psíquica: a mesma tentativa se repete a respeito do tempono Livro XI — o que, podemos notá-lo, é mais temerário ainda, poisse a memória parecia estar dentro de nós, somos nós, agora, queparecemos estar dentro do tempo. A estratégia de crítica da linguagemespacial, inapropriada para dizer tanto a memória como o tempo, sedesdobra, no Livro XI, numa estratégia maior que poderíamos chamarde argumentação pragmática, isto é, não só de reflexão critica a respeitode nossas categorias lingüísticas, mas também de reflexão sobre osvários usos que fazemos da linguagem, sobre as várias formas deempregá-la, sobre os diferentes "jogos de linguagem" diria, hoje, umWittgenstein. Já ao colocar a questão central "quid est enim tempus?"("que é pois o tempo?"), Agostinho diferencia entre a tentativa

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74 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMOR IA E HISTORIA

aporética de explicar a natureza do tempo e, em contraposição, anossa fala comum que utiliza sempre essa noção de tempo, como sesoubéssemos, de maneira intuitiva, inconsciente, mas prática, o queele é:

Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Com-preendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. Oque é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eusei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei (XI14, 17).

Agostinho distingue, portanto, uma prática explicativa, analíticae uma prática comum, cotidiana, mais fundamental que a primeira,que permite resistir aos sofismas do pensamento entregue a si mesmo.Com efeito, é essa prática comum que refuta a demonstração dainexistência do tempo pelos céticos.

E contudo, Senhor, percebemos os intervalos dos tempos, com-paramo-los entre si e dizemos que uns são mais longos e outrossão mais breves. Medimos também quando esse tempo é maiscomprido ou mais curto do que outro... (XI 16, 21).

Esse protesto do sentimus, comparamus, dicimur, metimur é, comoo ressalta Ricoeur (op. cit; p. 24), o protesto de nossa atividadesensorial, lingüística e prática que não se deixa intimidar pelassutilezas argumentativas dos filósofos. O mesmo recurso a nossaprdtica discursiva fornece mais um elemento para recusar a supostainexistência do tempo: se não houvesse nem passado nem futuro,como poderíamos falar a respeito deles? Ora, nós contamos o passa-do, distinguimos o que nele aconteceu ou não, portanto o verdadeirodo falso em relação a ele; simetricamente, podemos prever o futuroe verificar a verdade ou a falsidade de nossas previsões. Podemosobservar que esse raciocínio se aplica à própria atividade narrativa deAgostinho nas Confissões: se não pudesse lembrar do passado, saber oque nele aconteceu, não poderia narrar sua infância e sua juventude— tema dos primeiros livros das Confissões — nem chegar a essemomento de auto-reflexão narrativa que constitui a especulação doLivro XI sobre o tempo, ou ainda: a própria narração das Confissõespressupõe, como condição transcendental, a existência do passado,

OILER 0 TEMPO 75

portanto do tempo passado e do tempo presente em que se escreve,mesmo que não se saiba como explicar ou definir essa existência.

Pensar o tempo significa, portanto, a obrigação de pensar nalinguagem que o diz e que "nele" se diz. Há no texto agostiniano umdeslocamento progressivo de uma reflexão — aporética — sobre otempo como um certo tipo, misterioso e inapreensível, de substância,para uma auto-reflexão sobre as várias atividades humanas. Essedeslocamento é assinalado pela passagem dos substantivos neutrossingulares Praeteritum, Praesens, Futurum, para a forma plural adjetiva— Praeterita, Praesentes, Futura, acontecimentos passados, presentes,futuros (cf. Ricoeur, op. cit. p. 26). Num segundo momento, passa-seda reflexão sobre os acontecimentos ou as coisas em si mesmas (Resipsae) para uma reflexão sobre os rastros — (vestigia) ou as "imagens"que deixam na alma, pois, como o diz Agostinho, "ainda que senarrem os acontecimentos verídicos já passados, a memória relata, nãoos próprios acontecimentos que já decorreram, mas sim as palavrasconcebidas pelas imagens daqueles fatos, os quais, ao passarem pelossentidos, gravaram no espírito uma espécie de vestígio" (XI 18, 23).

Não vou me demorar aqui nas dificuldades epistemológicas dessateoria do vestigium, dificuldades apontadas por todos os comentado-res (Ricoeur, op. cit, p. 28 ss.; Gilson, Introduction d l'étude de saintAugustin [Paris: Vrin, 1969], em particular primeira parte, capítulo5). Queria ressaltar muito mais que essa noção de vestigium, de"rastro", opera um duplo movimento: movimento de dessubstancia-lização do tempo, como já apontamos, pois a idéia de rastro alude aoestatuto ontológico paradoxal de um ser que não é mais (a esserespeito, cf. Freud e seu bloco mágico ou Derrida e suas traces), emovimento de interiorização na alma, pois, agora, trata-se de analisara atividade psíquica específica que reconhece imagens e rastros comíndices temporais diversos. A questão inicial, portanto, se transfor-mou; de uma questão sobre a essência ou sobre a substância ("o queé, pois, o tempo?") passa-se a uma questão sobre as condiçõestranscendentais de nossa apreensão, pela atividade intelectual e lin-güística, no espírito ou na alma, como diz Agostinho, de três moda-lidades diferentes de tempo:

Mas talvez fosse próprio dizer que os tempos são três: presentedas coisas passadas, presente das presentes, presente das futuras.Existem, pois, estes três tempos na minha mente que não vejo em

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76 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMORIA E HISTORIA

outra parte: lembrança presente das coisas passadas (praesens depraeteritis memoria), visão presente das coisas presentes (praesensde praesentibus contuitus) e esperança/expectativa presente dascoisas futuras (praesens de futurs exspectatio) (XI, 20, 26).

Esse resultado parcial recoloca, porém, o problema já comentadono Livro X da insuficiência do vocabulário espacial para descrever aatividade espiritual. Não basta, pois, passar de uma noção espacialexterior do tempo a uma noção espacial interior, mesmo que houves-se aí um progresso em direção a uma descrição mais especifica decomo agimos "no" tempo, com o tempo, "sobre" o tempo. Agostinhoretorna e amplia a questão ao se perguntar não mais sobre a essênciado tempo, mas sobre nossas práticas de medição: como conseguimosmedir o(s) tempo(s) se esse(s) não tiver(em) espaço? (XI 21, 27.) Essanova pergunta traz à exasperação a contradição entre a realidade daação subjetiva (da medida) e a insuficiência do vocabulário espacial.Os exemplos de Agostinho são todos emprestados, vale a penaressaltá-Io mais uma vez, ao domínio da linguagem: recitação de umpoema, canto de um hino, medida das silabas no verso. Nessemomento crucial do Livro XI, no qual se alcança, a duras penas, umadefinição, a questão da linguagem — esse estranho ser que só remeteàs coisas porque presentifica sua ausência — e a questão do tempo —esse outro estranho ser que não se deixa agarrar em seu incessanteescapulir — ambas questões se unem. Com efeito, a relação entretempo e linguagem não é, como parecia à primeira vista, uma merarelação de continente e de conteúdo, mas, criticadas essas categoriasespaciais que nos confundem em vez de nos esclarecer, muito maisprofundamente, uma relação transcendental mútua: o tempo se dá,de maneira privilegiada, à minha experiência em atividades de lin-guagem — no canto, na recitação, na escrita, na fala —, e só consigofalar, escrever, cantar e contar porque posso lembrar, exercer minhaatenção e prever. Cito o belo parágrafo 28 (38):

Vou recitar um hino que aprendi de cor. Antes de principiar, aminha expectação estende-se a todo ele (in totum exspectatio meatenditur). Porém, logo que o começar, a minha memória dilata-se(tenditurin memoria mea), colhendo tudo o que passa de expectaçãopara o pretérito. A vida deste meu ato divide-se em memória, porcausa do que já recitei, e em expectação, por causa do que hei de

OIZER 0 TEMPO 77

recitar (atque distenditur vita huius actionis mese in memoriam ... et in

exspectionem...). A minha atenção está presente e por ela passa[melhor: é lançado, transportado] o que era futuro para se tornarpretérito (praesens tamen adest attentio mea, per quam traicitur quod

erat futurum, ut fiat praeteritum). Quanto mais o hino se aproximado fim [melhor: quanto mais se faz avançar e avançar — quantomagis agitur et agitur] tanto mais a memória se alonga e a expecta-ção se abrevia, até que esta fica totalmente consumida, quando aação, já toda acabada, passar inteiramente para o domínio damemória (quum tata lila actio finita transient in memoriam). [Tradu-

ção modificada.]

Essa descrição exemplifica a definição, já proposta por Agostinhoem 26 (33), do tempo como distensio animi, distensão da alma;observemos aqui que Agostinho não chega a essa definição por umasérie de deduções lógicas rigorosas, pois a condição transcendental datemporalidade em relação a nossa linguagem e a nosso pensamento

impede que se possa refletir sobre ele como se fosse um objeto exteriorao pensar; Agostinho procede muito mais por uma análise pacienteque poderíamos chamar de fenomenológica (aliás Husserl e Heideggerlembrarão muitíssimo o Livro XI das Confissões; cf. Ricoeur, op. cit.p. 34), uma tentativa de descrição daquilo que acontece quandoagimos — e, em particular, quando falamos, contamos ou cantamos —nessa imbricação originária entre ação, linguagem e temporalidade.Ou ainda: Agostinho não tenta mais falar, de fora, sobre o objetotempo, mas sim descrever, ladeando com o pensar o próprio pensa-mento, nossa experiência do tempo. Ora, essa não se diz em termosespaciais objetivos, mas em termos ativos de esticamento, de dilacera-ção, de tensão entre o lembrar e o esperar. No trecho que acabamosde ler, encontramos os substantivos principais desse movimento da

alma: distentio e attentio (às vezes também o sinônimo intentio). Adistentio caracteriza mais uma tensão em sentidos opostos, portantouma luta incessante, dolorosa entre a ação da lembrança (do passado)e ação da expectativa (do futuro); a attentio designa muito mais a

concentração da atividade intelectual que tenta pensar essa luta, istoé, a intensidade de um presente que não é mais meio mero pontoindiferente de passagem, mas sim instante privilegiado de apreensãodessa não-coincidência, tomada de consciência ativa desse incessanteesticamento. Como Ricoeur (op. cit. p. 34 ss.) o sublinha com força, é

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78 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA

justamente o aprofundamento nesta falha dolorosa da temporalidadehumana, falha da qual os céticos queriam deduzir a inexistência dotempo, que permite a Agostinho sua verdadeira compreensão.

A estrutura temporal revelada pelo exemplo acima da recitação éaplicada, em seguida, a qualquer forma de narrativa, seja ela maiscurta (na sílaba), seja ela mais comprida como "a história — inteira —dos filhos dos homens" (28, 38). Mais essencialmente, essa distensãocaracteriza nossa existência temporal, portanto nunca plena de simesma numa beatitude eterna que só cabe a Deus, mas sim dilaceradanuma incessante e dolorosa não-coincidência consigo mesma, nessedesacerto, nesse desassossego que nos faz sofrer —e, inseparavelmen-te, procurar, inventar, desmanchar, construir e reconstruir sentido(s).

Chego ã minha conclusão que empresto, mais uma vez, ã belaleitura de Ricoeur. No texto agostiniano, é óbvio, essa reflexão sobrea temporalidade humana dilacerada só adquire seu sentido últimoem oposição ã plenitude da eternidade divina. No entanto, não hásomente um antagonismo irredutível entre temporalidade humana eeternidade divina, mas, na linha reta da teologia agostiniana daencarnação e da iluminação, uma relação mais secreta e fundadorade co-pertença: a própria visada da experiência temporal, na suaintensidade presente (attentio ou intentio no vocabulário de Agosti-nho) torna-se como que uma imagem do presente eterno de Deus emnós. À dialética tempo-eternidade corresponde, no seio da própriaexperiência temporal, a dialética entre distentio — a tensão com odilaceramento doloroso — e intentio ou attentio — a tensão comointensidade, força, concentração. Assim, ainda segundo Ricoeur, aoposição entre tempo humano e eternidade divina não acarreta só,como uma leitura edificante barata induziria a pensá-lo, uma desva-lorização do primeiro, falho e transitório, em relação ã plenitude dasegunda. De maneira muito mais instigante, esse contraste introduz,dentro da experiência humana do tempo, uma diferenciação qualita-tiva essencial. Ela permite, nas palavras de Ricoeur, uma teoria dasvárias intensidades temporais, um aprofundamento da temporalida-de humana, contra a concepção vulgar de um tempo cronológico,linear, "homogêneo e vazio" (W. Benjamin).

Permanece a seguinte questão: hoje, quando não podemos maisacreditar com a mesma certeza tranqüila, que o Outro de nosso temposeja a eternidade divina, como conseguir, porém, uma compreensãodiferenciada, inventiva da temporalidade — e da história! — humana

OILER O TEMPO : 79

em suas diversas intensidades? Questão essencial, ã qual o pensamentoteológico de Agostinho responde e ã qual, em sua profanidade radical,a reflexão contemporânea, seja ela histórica, poética ou filosófica, nãopode se furtar.

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V. DO CONCEITO DE MÍMESISNO PENSAMENTO DE ADORNO E BENJAMIN

Este trabalho se propõe a apresentar sucintamente um conceitoessencial para a reflexão estética, o conceito de piµr)aiç ("mimesis"ou "mimese"), e mostrar a sua relevancia no pensamento de T. W.Adorno e de Walter Benjamin. Desenvolveremos esta proposta emquatro tempos: primeiro, retomaremos rapidamente a discussão so-bre a mimesis em Platão e em Aristóteles, isto é, a sua rejeição porPlatão e a sua reabilitação por Aristóteles.

Segundo, analisaremos alguns trechos da Dialética do Esclareci-mento de Adorno e de Horkheimer (1985), trechos nos quais osautores retomam e transformam a crítica platónica ao conceito demimesis. Essa discussão reaparece no debate metodológico entreAdorno e Benjamin a respeito-do livro deste último sabre Baudelai-re. Tentaremos mostrar que Adorno critica uma tendência mimética(que ele também chama de mágica) na reflexão benjaminiana e lheopõe o método dialético de Hegel.

Num terceiro momento, retomaremos essa suspeita de Adornopara confirmá-la e afirmar que a mimesis é um conceito-chave dopensamento benjaminiano, mas, é claro, dotado de um papel muitoinstigante e profundamente positivo.

Enfim, numa quarta parte conclusiva, analisaremos rapidamentea interpretação muito mais nuançada que Adorno desenvolve, nota-damente na sua Teoria Estética (1982), pagando aqui, sem dúvidanenhuma, uma divida intelectual a Benjamin.

A mimesis em Platão e AristótelesA critica da mimesis em Platão remete a uma problemática poli-

tica, antes que estética. Esquece-se, às vezes, de que a famosa expulsãodos poetas para fora da cidade justa, no livro X da República, retoma

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82 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA

e conclui toda uma discussão feita nos livros anteriores, sobre aeducação adequada dos guerreiros e dos dirigentes. Trata-se de umproblema ideológico de primeira importáncia, a saber, da educaçãoapropriada das futuras elites, como as chamaríamos hoje. A educaçãotradicional ateniense comportava a música, da qual fazia parte apoesia declamada ou acompanhada por melodias, e a ginástica. Amúsica cuidava da alma, a ginástica, do corpo. Tratava-se sempre,como o diz Platão (377 b), de uma "modelagem" do aluno, da suaalma ou do seu corpo, ambos representados como passivos e dóceisa influências exteriores. Com as mãos as babás massageiam o corpodas crianças, com as suas histórias, a sua alma. Corpo e alma ficamimpregnados dessas modelagens físicas e psíquicas. Como um bombehaviorista moderno, Platão insiste na indebilidade dos costumesadquiridos na infancia. É nesse contexto que se coloca a questão dashistórias que podem e devem ser transmitidas, com razão e comproveito, aos jovens — e, inversamente, a questão das histórias quenão podem nem devem ser contadas. O legislador não pode deixaressa escolha à arbitrariedade das mulheres ou dos vários outrospedagogos: ele deve estabelecer regras severas de controle sobre asformas e os conteúdos transmitidos. Essa exigência coloca a questãoessencial do modelo a ser seguido e da imitação ou representaçãomimesis) desse modelo.

Cabe aqui lembrar que, na época de Platão, a "representação"artística em geral é chamada de mimesis. A tradução por "imitação"empobrece muito o sentido. Os gregos clássicos pensam sempre a artecomo uma figuração enraizada na mimesis, na representação, ou,melhor, na "apresentação" da beleza do mundo (mais Darstellung queVorstellung); a música é o exemplo privilegiado de mimesis, sem queseja imitativa no nosso sentido restrito.

Talvez consigamos entender melhor esse conceito platônico nãotanto pelo viés da imitação, mas tomando por base o objeto paradig-mático. Em oposição à nossa visão moderna (e romántica), que vê naarte principalmente uma criação subjetiva, que realça o caráter ino-vador da subjetividade do gênio, a visão antiga insiste muito mais nafidelidade da representação ao objeto representado:ksle, o objeto,

ue desencadeia, por sua beleza, o im.ulso mimétic.. A arte tentaaproximar-se dele com respeito e precisão e, por isso, é semprefigurativa, nesse sentido amplo, "mimética". Essa primazia do objetopreside a toda discussão da República sobre o modelo a ser seguido

DO CONCEITO DE MIMESIS NO PENSAMENTO DE ADORNO E BENJAMIN B3

para a formação de uma cidade justa e, no nosso caso especifico, sobreaquilo que deve ou não ser contado às crianças, no intuito deeducá-las para serem cidadãos justos. Nos livros Ill e IV, Platãoestabelece as regras às quais uma história boa deve obedecer, tantono seu conteúdo como na sua forma. Censura vários episódios,particularmente nos poemas homéricos, por não seguirem essasestritas regras fundadas na razão e na moral. A intolerância platônica,que a nós modernos parece insuportavelmente dogmática, remete aoaspecto ontológico contraditório da imagem: poderíamos dizer quea imagem mimética é, na filosofia de Platão, muito fraca, muito irreal,ilusória e, ao mesmo tempo, muito forte e ativa. O seu perigodevastador vem dessa contradição e explica (sem desculpá-la) aveemência platônica. Com efeito, a imagem mimética é, primeiro,definida na sua falta essencial de ser: em relação à idéia, à formaprimeira que os objetos concretos reproduzem inabilmente, a ima-gem poética ou plástica não é mais que cópia, afastada por três grausdo ser verdadeiro (exemplo do livro X: eidos da cama, cama emmadeira, "cama"). Ao mesmo tempo, essa imagem desprovida de serconsegue enganar e iludir não só, diz Platão, as crianças e as mulheres,mas também os homens maduros, sérios, virtuosos. Uma criancinhanão distingue bem o retrato do original nem a história da realidade,mas também um homem feito se comove e chora ao ver no palco oespetáculo de paixões das quais envergonhar-se-ia na vida real. Apesarde faltar totalmente ao ser verdadeiro, a mimesis tem uma força dearrebatamento a qual toda a filosofia de Platão procura resistir. Talvezpossamos dizer que a mimesis possui essa força não apesar de nãoparticipar do ser verdadeiro mas, mais secretamente, justamenteporque ela não participa dele, porque ela aponta para o engodo, paraa mentira, para a ilusão e a falta. Aprofundar essa hipótese nos levarialonge demais. No entanto, o que é claro é que Platão procura, contraos sofistas, manter a qualquer preço uma linha de distinção bemdefinida entre realidade e ilusão, verdade e mentira. Sem essa linha,todo o seu projeto de construção de uma cidade justa desmoronaria.Por isso, a sua critica da mimesis pertence a um projeto político muitomaior, que poderíamos chamar, hoje, de luta ideológica. Sabendo daforça das imagens, Platão tenta domar, controlar a produção dessasimagens, impondo-lhe normas éticas e políticas. Esse gesto inauguraa critica ideológica e, inseparavelmente, a censura, uma aliança infelizque perdura até hoje.

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84 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMORIA E HISTORIA

Duas observações rápidas antes de passar a Aristóteles:Como vários comentadores ressaltaram, a própria filosofia de

Platão repousa profundamente sobre uma concepção mimética dopensamento: trata-se, para o filósofo, de sempre traduzir e reproduziro paradigma ideal. Há portanto em Platão um gesto mimético origi-nário que ele deve distinguir a qualquer preço da atividade miméticaartística ilusória. No diálogo Sofista, ele diferenciará entre váriasformas de ptp>latç: uma filosófica, que representa autenticamente asessências, e as outras, produtoras de simulacros, que devem sercombatidas e rejeitadas (235 c).

Uma segunda observação, menos técnica e mais ligada à conti-nuação da nossa exposição: essa critica platônica antecipa todas ascríticas posteriores. Nelas também, a mimesis intervirá como fator deengano e de ilusão, ligado aos encantos da arte e à ingenuidade dosouvintes. Será geralmente associada a uma regressão das faculdadescriticas e a uma certa passividade, acometendo mais facilmente ascrianças e as mulheres ignorantes, que se deixam seduzir pelo falsobrilho e são mais sensíveis ao maravilhoso e ao irracional, caracterfs-ticas do mythos em oposição ao logos. Ilusão, brilho, regressão, passi-vidade, infancia, irracional, eis alguns dos termos-chave quereaparecem nas criticas da mimesis, na arte e no divertimento, desdePlatão e até as nossas discussões sobre a Rede Globo. Essas categoriastambém vão voltar no debate entre Adorno e Benjamin.

Contra o seu mestre Platão, Aristóteles reabilita a mimesis,ria Poética, como forma humana privilegiada de aprendizado(pav9uvetv). Operando um deslocamento das questões que, váriasvezes, foi comparado à revolução kantiana, Aristóteles não pergun-ta o que deve ser representado/imitado, mas como se imita. Per-gunta pela can a' ° de-homem, pelo mimeisthai noqual se enraíza a poietiké, entendida como criação de uma obraartística. A poética de Aristóteles também será normativa, comotodas as estéticas clássicas, mas as suas normas advêm do empregoapropriado das palavras, dos ritmos, da trama à finalidade debeleza da obra, não em vista da sua fidelidade a um modeloexterior. Assim, podemos notar que, contra Platão, que falava emparadigma e em mimesis, Aristóteles fala em mimesis e em mimeis-thai, ligando o êxito da representação artística não à reproduçãodo modelo, mas sim ao desenvolvimento integral e harmonioso dafaculdade (Suvaptç) mimética. A definição aristotélica ressalta, em

DO CONCEITO DE MIMES/S NO PENSAMENTO DE ADORNO E BENJAMIN B5

oposição a Platão, o ganho trazido pela mimesis ao conhecimento,pois o que é conhecido não é tanto o objeto reproduzido enquantotal — era a exigência aporética de Platão — mas muito mais a relaçãoentre a imagem e o objeto. O momento específico e prazeroso doaprendizado por meio do mimeisthai está na produção dessa relação.Isso também explica o nosso prazer em ver representados objetos que,na realidade, acharíamos repugnantes.

Ao que parece, duas causas, e ambas naturais, geraram a poesia. Oimitar é congênito no homem (e nisso difere dos outros viventes,pois, de todos, é ele o mais imitador, e, por imitação, aprende asprimeiras noções), e os homens se comprazem no imitado.

Sinal disso é o que acontece na experiencia: nós contempla-mos com prazer as imagens mais exatas daquelas mesmas coisasque olhamos com repugnancia, por exemplo (as representaçõesde) animais ferozes e (de) cadáveres. Causa é que o aprender nãos6 muito apraz aos filósofos, mas também, igualmente, aos demaishomens, se bem que menos participem dele. Efetivamente, tal éo motivo por que se deleitam perante as imagens: olhando-as,apreendem e discorrem sobre o que seja cada uma delas (e dirão),por exemplo: "esse é tal" (Aristóteles, 1979, linhas 4-20 de 1448 b,tradução modificada). [Ver bibliografia, p. 105 abaixo.]

Podemos ressaltar dois pontos essenciais nesse texto notável deAristóteles:

a) A mimesis faz parte da natureza humana, caracteriza em particularo aprendizado humano. Esta ligação entre mimeisthai e manthaneininsiste no componente ativo e criativo da mimesis (contra a posiçãoplatônica) e a inscreve na atividade humana por excelência, no conhe-cer. O aprendizado mimético, diz Aristóteles, produz prazer, agrada(xatpstv). Este momento de prazer não é interpretado como umdesvio perigoso da essência, como em Platão, mas, pelo contrário,como um fator favorável, que estimula e encoraja o processo deconhecimento (importancia do lúdico).

b) Ao descrever esse ganho de conhecimento, Aristóteles insistena sua característica de "reconhecimento". Os homens olham para asimagens e reconhecem nelas uma representação da realidade; dizem:"esse é tal". A atividade intelectual aqui remete ao logos (sullogizes-thai, linha 16), mas não repousa sobre uma relação de causa e efeito:

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OG : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA

enraíza-se muito mais no reconhecimento de "semelhanças". Esseconceito-chave de "semelhanças" orientará, alguns parágrafos maistarde, a teoria aristotélica da "metáfora": "Bem saber descobrir metáfo-ras", diz Aristóteles, significa "bem se aperceber das semelhanças"(1459 a: To yap Et) pETa$eperv opotov Bcclpatv). Não vou desenvolveraqui essa bela teoria aristotélica da metáfora. Gostaria, porém, deressaltar que Aristóteles não reconduz as imagens produzidas pelalinguagem a semelhanças objetivas extralingüísticas. Exemplifican-do: não é porque uma moça e uma rosa têm em comum umapropriedade objetiva e real que podem ser comparadas; é muito maisporque existe, dentro da linguagem, a possibilidade de "transportarpara uma coisa o nome da outra" (1457 b: Meracpopa S' écT1vóvoparoç ciXXorplou érzt$opa). que rosa e moça podem se unir numametáfora. A relação metafórica' é, portanto, primeiro uma relaçãoentre dois elementos da linguagem, do logos. Ela não se enraíza, emúltima instância, numa semelhança objetiva e concreta, numa seme-lhança dita real, mas muito mais no movimento da linguagem quedescobre e inventa semelhanças insuspeitas, efêmeras ou duradouras.Como mostra Derrida, a teoria aristotélica da linguagem esboça umateoria da autonomia da linguagem em relação à assim chamadarealidade concreta, isto é, uma teoria do funcionamento da lingua-gem sem referência necessária à sua função referencial.

Podemos tentar pensar agora juntos esses dois pontos da reflexãoaristotélica e chegar ao seguinte resultado, decisivo para uma teoria"positiva" da mimesis: a mimesis designa_urn processo deap

rendiza-gem espec -..........................

•. Miar-dasulaaças}-Aaquisição

d -e conhecimentos é favorecidap loc asn ctosprazerosos do prores-so. Poerdíamosdi>er, nesse sentido que o i..m.p__o mimético_está naraiz do lúdico edo arslstico. Ele -repousasohre-vfaculdade dereconhecer semelhanças e de.prnduzi-Ias na lin_ygage t teoria damimesis induz, yorta-nto á uma teoria da metáfora- Podemos avançarmais um passo no caminho esboçado por Aristóteles e dizer queconhecimento e semelhança, conhecimento e metáfora entretêmligações estreitas, muitas vezes esquecidas, muitas vezes negadas.Veremos a importância destas considerações para a reflexão de WalterBenjamin.

1 Sobre a qual pode-se ler o artigo de Jacques Derrida (1972).

00 CONCEITO OE MIMESIS NO PENSAMENTO DE AOORNO E BENJAMIN : B7

Críticas de Adorno ao conceito de mimesisGostaria agora de passar ao meu segundo ponto, pulando alguns

séculos. Mas vamos reencontrar a Grécia, pois as primeiras críticas deAdorno ao conceito de mimesis aparecem na sua célebre análise daOdisséia, na Dialética do Esclarecimento (1985). Seguindo o livro deJosef Friichtl (1986), gostaria de realçar que a posição de Adorno emrelação ao conceito de mimesis evolui no decorrer dos seus escritos;podemos, no entanto, afirmar que a sua primeira atitude é de rejeição.Na Dialética do Esclarecimento (1985) em particular, Adorno retoma acritica platónica da passividade do sujeito na mimesis e aá~óì~~ld3

-us e .e etnologia (Früchtl, 1986, p. 13).a etnolo•ia caracterizam a mimesis como

um comportamento regressivo No Freu. .e • m 'o Principio doPrazer 1975), essa regressão remete à pulsão de morte, a este miste-rioso desejo de dissolução do sujeito no nada. Nos textos dos etnólo-gos franceses da época (em particular R. Caillois e M . Mauss), citadospor Adorno e Horkheimer, o comportamento mimético é caracteri-zado como um comportamento regressivo de asslml acção ao perigo,na te~esasáalo. Seguindo o exemplo primeiro do mimetis-mo animal, por exemplo da borboleta imóvel que tem as mesmaslinhas marrons e verdes que a folha sobre a qual repousa, o "primiti-vo" se cobre de folhagens para melhor desaparecer na floresta, paranão ser visto pela onça que caça, mas também coloca uma máscarahorrenda para apaziguar, pela aproximação e pela identificação, odeus aterrorizante de que depende.

Esses rituais mágicos, analisados pelos etnólogos, apontam paraum aspecto essencial do comportamento mimético: na ntativ ese libertar do medo, o sujeito renuncia a se diferenciar dio outroguetemepara, ao imitá-lo, aniquilaradistanciaque os separa, a distância

- .ermite ao t .. . reconhecê-lo com.. n e devorá-lo ara tse salvar do perigo, o sujeito desiste. e si mesmo e,portanto, perde-se.Nessa dialética perversa jaz a insuficiência das práticas mágico-mimé-ticas e a necessidade de encontrar outras formas de resistência e deluta contra o medo: toda reflexão de Adorno e Horkheimer naDialética do Esclarecimento consiste em mostrar como a razão ociden-tal nasce da recusa desse pensamento mítico-mágico, numa tentativasempre renovada de livrar o homem do medo (que o esclarecimentonão o consiga, mas, pelo contrário, aprisione ainda mais o homem,essa é a outra vertente dessa reflexão).

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as.s. .gratanto a sicanálise como

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88 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM. MEMÓRIA E HISTÓRIA

O comportamento mágico-mimético ameaça profundamente osujeito que, ao querer se resguardar, arrisca o seu desaparecimento, asua morte na assimilação ao outro. Hi,_ nn entanto < como jáassiy]alamos an citar FFlirlru LCpmponenty óPundamente praze-rpso _também e 'justamente n ss perda: muito orig_inÿriamente eprofundamente, existe um desejo_ de dissolução, e aniquilamentodos ' fites ue, ao mesmo tempo, constituem e aprisionam o sujeito.Esse desejo — tao bem analisado por Bataille — remete à paixão e àsexualidade, ao êxtase religioso e místico, mas também, e insepara-velmente, à dor da loucura e à decomposição da morte. Nesse sentido,a análise de Adorno e Horkheimer descobre, como Platão, na mimesis,uma ameaça ao processo mesmo da civilização: ela não só faz regrediros homens a comportamentos mágicos e míticos, mas também amea-ça o processo mesmo de construção e de elaboração de formas, deregras, de limites, processo que define a civilização e, no vncabu lárioduos autores, que se ampara no processo de trabalho e no"progresso" racional-científico. _

O medo de perder o eu e o de suprimir com o eu o limite entre simesmo e a outra vida, o terror da morte e da destruição, estáirmanado a uma promessa de felicidade, que ameaça a cadainstante a civilização. O caminho da civilização era o da obediên-cia e do trabalho, sobre o qual a satisfação não brilha senão comomera aparência, como beleza destituída do seu poder (Adorno eHorkheimer, 1985, p. 44-5).

Na Dialética do Esclarecimento, a história de Ulisses é a descriçãodesse caminho penoso que rejeita a assimilação simbiótica miméticacom a natureza para forjar um sujeito que se constitui mediante otrabalho e se toma, nesse prócésso,consciente de si na sua diferençaradical, na sua separação do outro. Ulisses encarna esta passagem domito ao logos: ele não é mais o herói mítico dotado pelos deuses deuma força fisica mágica: também não é ainda o indivíduo desampara-do que só pode contar com a sua inteligência particular. Ulisses estáno limiar, na passagem entre essas duas figuras. Com a ajuda de Atena,deusa da razão, e de Hermes, deus dos negócios, Ulisses consegueresistir às forças dissolutas e regressivas da magia, como a bela análiseadomiana do episódio de Circe o ilustra: os seus companheirosingênuos e esquecidos sucumbem à vontade imediata de beber o filtro

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oferecido por Circe, interpretando talvez esse gesto como a promessade uma união sexual também imediata — isto é, sem mediações.Porque acreditaram no prazer imediato, porque confiaram demais nooutro (aqui, não por acaso, na outra!) e porque regrediram a um desejoarcaico, os companheiros de Ulisses sucumbem à força da magia e sãotransformados, numa mimesis irônica, em porcos.

Enquanto isso, Ulisses, prevenido por Hermes, resiste a Circe,ameaça-a com sua espada e a submete, podendo só depois dessa lutadomar os seus poderes e dormir com ela, bela descrição daquilo queserão, doravante, as relações entre os sexos opostos. Adorno_e Hork-heimer insistem com razão no preço pago pelo herói paraparaescaparsimbiose magica e constituir-se em sujeito autônomo. Esse preço éalto. Ele poderia ser descrito com a transformação da mimesis origi-nária, prazerosa e ameaçadora ao mesmo tempo, numa mimesisperversaque reproduz, na insensMilidade tto enrijecimento dosujeito, a dureza do processo pelo qual teve quepassar para seadaptar,ao mundo real e diríamos com Freud, deixar de ser crian a para setncnar adulto Essa segunda mimesis se constrói sobre o recalque 'aprimeira: ela caracteriza o sujeito que conseguiu resistir à tentação daregressão mas que perdeu, nessa luta tão necessária quanto fatal, aplasticidade e a exuberância da vida originária, quando não perdeu avida tout court.

Essa segunda mimesis, a adaptação forçada e violenta que, aoafirmar a superioridade do sujeito racional e distante, ao mesmotempo o nega na sua integridade, dá a chave de um dos mais famososardis de Ulisses: a sua falsa auto-identificação como Oudeis (Ninguém)diante do ciclope Polifemo. Para Adorno e Horkheimer, esse episódiotem uma significação exemplar: Ulisses só consegue escapar da devo-ração mítica porque antecipa, por assim dizer, a sua morte, chamandoa si mesmo de Ninguém. Essa identificação com a destruição, essarenúncia simbólica a si mesmo caracteriza a mutilação imposta ao serindeterminado e polimorfo (como diria Freud) pela laboriosa edifi-cação do sujeito autônomo e definido. A erradicação da barbarie e aconstrução penosa da civilização implicam um processo violento denegação dos impulsos, isto é, de abdicação pelos sujeitos da suavitalidade mais originária.

Na verdade, o sujeito Ulisses renega a própria identidade que otransforma [ macht] em sujeito e preserva a vida por uma imitação

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mimética do amorfo ... Mas sua auto-afirmação é, como naepopéia inteira, como em toda civilização, uma autodenegação.Desse modo, o eu cai precisamente no circulo compulsivo danecessidade natural, ao qual tentava escapar pela assimilação[Angleichung] (Adorno e Horkheimer, 1985, p. 71).

Esse raciocínio de Adorno e Horkheimer nos lembra as descriçõesfreudianas do mal-estar na civilização e nos faz entender melhor porque os nossos autores sempre insistiram na genealogia violenta daracionalidade iluminista, retomando também elementos da criticanietzschiana da moral. e ersa • - uma mf 'sissegunda e, poderíamos dizer, castradora, a uma mimesis primeira epolimorfa volta com toda sua violência secreta nos fenômenos deidentificação e de repulsão de massa, como são o nazismo e oanti-semitismo Não por acaso que, terminada a leitura dos trêscapítulos que formam o corpus da Dialética do Esclarecimento, depara-mo-nos com um outro texto menor, intitulado: Elementos do Anti-se-mitismo: Limites do Esclarecimento. A loucura fascista representa, aosolhos de Adorno e Horkheimer, que escrevem este texto em 1944, olimite do esclarecimento no sentido de "fronteira", aquilo que oprojeto iluminista de liberdade não consegue vencer, mas tambémno sentido de "delimitação", isto é, de determinação oculta, pois onúcleo secreto do esclarecimento jaz na sua interpenetração profundacom a violência. Reencontramos assim o tema fundamental da mime-sis no parágrafo quinto, parágrafo central dessa crítica do anti-semi-tismo e que também representa, na obra de Adorno, a análise maisdemorada do conceito de mimesis (Früchtl, 1986).

Adorno e Horkheimer partem da justificativa tão freqüente dosanti-semitas: a idiossincrasia, isto é, uma repulsão incontrolável eincontrolada em relação a algo exterior, no caso os judeus. Essajustificativa recusa de antemão um questionamento crítico, pois apelapara uma reação fisiológica, pretensamente natural, como de alguémque sofre de alergia ã poeira ou ao pêlo dos gatos. Nessa falsanaturalização jaz, no entanto, um elemento de verdade, a saber, alembrança recalcada de reações miméticas originárias, esses "mo-mentos da proto-história biológica", esses "sinais de perigo cujo ruídofazia os cabelos se eriçarem e o coração cessar de bater". Tais reações,independentes do controle consciente, são uma forma ffsica primeirade mimesis, que transforma o homem ou o animal cheio de medo

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num bicho imóvel, quase morto, cuja presença não é mais traída aoagressor por nenhum movimento: "A proteção pelo susto é umaforma de mimetismo. Essas reações de contração no homem sãoesquemas arcaicos da autoconservação: a vida paga o tributo de suasobrevivência, assimilando-se ao que é morto" (Adorno e Horkhei-mer, 1985, p. 168).

Ora, tal "mimese incontrolada" deve ser, nas palavras de Adornoe Horkheimer, "proscrita", se o homem quiser se livrar do medooriginário e tentar dominar essa natureza ameaçadora, isto é, iniciaro programa de controle da racionalidade iluminista. Esse processo decivilização que, como vimos, substitui a magia pelo trabalho e pelareflexão, repousa portanto sobre a rejeição dos comportamentosmiméticos arcaicos: não consegue, porém, erradicar essa lembrançaoriginária: a resposta mimética, que era uma reação de aversão e 4emedo, reaparece na aversão ao mimetismo e no medo do mimetismo,na sua proibição pelas réis sociais e culturais. Essa dialética explicaria,segundo Adorno e Horkheimer, várias proibições tão religiosas comopedagógicas, como a proibição da imagem na religião judaica ou dolúdico na vida adulta, ou ainda de grupos sociais cujos hábitos nãose encaixam nos valores do esforço, do sacrifício e do trabalho. Essesmecanismos de proibição são tanto mais fortes quando tentam im-pedir não só a recordação do medo primitivo, mas também a lem-brança dessa felicidade originária, da qual já falamos, que seexperimenta na dissolução dos limites subjetivos e na embriaguez dafusão com o infinito. Cito um belo parágrafo:

O rigor com que os dominadores impediram no curso dos séculosa seus próprios descendentes, bem como ás massas dominadas, arecaída em modos de viver miméticos — começando pela proibiçãode imagens na religião, passando pela proscrição social dos atores edos ciganos e chegando enfim a uma pedagopiáque desacostumaas crianças de serem infantis — é a própria condição da civilização.A educação social e individual reforça nos homens seu comporta-mento objetivo enquanto trabalhadores e impede-os de se perde-rem nas flutuações da natureza ambiente. Toda diversão, todoabandono tem algo de mimetismo. Foi se enrijecendo contra issoque o ego se forjou (Adorno e Horkheimer, 1985, p. 169).

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Esse enrijecimento do eu, cujo modelo é Ulisses atado sem movi-mentos ao mastro do seu próprio navio para poder escutar as sereiassem lhes sucumbir, esse enrijecimento caracteriza a segunda mimesisperversa, a única permitida pela civilização iluminista. O anti-semitis-mo na sua forma nazista permite, na análise de Adorno e Horkheimer,a experiência triunfante do recalque da mimesis originária e do sucessoda mimesis segunda, dessa "mimese da mimese" (1985, p. 172). 0 oficialnazista rígido, de pé no seu uniforme apertado, personifica a ordemviril que recusa as formas fluidas e impõe a mesma imagem semprerepetida nas paradas militares: a "disciplina ritual" e as formas sempreidênticas ajudam a identificação com o Führer, que deve, de maneiraterrorista, liberar os seus semelhantes do tenor antigo. Essa "identifi-cação-mimesis perversa" precisa' , para seu sucesso completo, encontrar

\rum objeto de abjeção, um objeto que represente esses desejos mimé-ticos mais originários, recalcados e proibidos: o contato físico imedia-to, a abolição da distância, este prazer da sujeira e do barro que ascrianças ainda saboreiam, essa decomposição gostosa e ameaçadorana fluidez sem formas. Contra várias explicações que tentam mostrar,valendo-se de características sociais ou "biológicas" dos judeus, porque foram escolhidos como objeto de aversão, a análise adorniana fazo caminho inverso: é o anti-sgnftflconstrói o seu judeu,necesstri_o à suapróp Ia çgnstftuição. Isso não significa que os judeusnão tenham, enquanto povo histórico, características históricas pecu-liares (como as têm os franceses, os alemães, os brasileiros, e assim pordiante, desde a cozinha até as maneiras de falar em amor). Ironicamen-te, a importância dada pelos ritos religiosos judaicos à pureza, aproibição das imagens numa religião que se constituiu coma lutacontra os ídolos, ou a ligação dos judeus com o comércio e o setor decirculação do dinheiro — pois foram proibidos durante muito tempode possuir terras —, todas essas características históricas apontammuito mais para uma exacerbação das tendências civilizadoras ilumi-nistas do que para uma regressão à magia primitiva. Um único traço,também histórico, é claro, iria predispõ-los, segundo nossos autores,a servir de bode expiatório e de objeto privilegiado de abjeção: o fatode os judeus trazerem consigo a carga histórica de terem sido semprevítimas, desde as perseguições de cunho religioso até hoje. É como seas perseguições do cristianismo triunfante tivessem deixado, nos seusinimigos prediletos, a marca da infâmia. Aqui também há um processoextremamente cruel de assimilação mimética: o rosto da vítima aterrori-

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zada desencadeia mais tenor da parte do seu algoz. O judeu (ohomossexual, o negro) que, muitas vezes, já tem uma atitude deacanhamento, que tenta, por medo, passar despercebido, chama jus-tamente por isso a atenção, a irritação e a violência. "Os proscritos",escreve Adorno, "despertam o desejo de proscrever. No sinal que aviolência deixa neles, inflama-se sem cessar a violência" (1985, p. 171).

, i Mimesis infernal, pensada também por Freud e Nietzsche, que condena avítima a se tornar novamente vítima e encoraja o torturador a continuartorturador.

Façamos agora uma pequena pausa e tentemos resumir o quedissemos. Poderíamos afirmar que prevalece, no pensamento deAdorno (e de Horkheimer) na época da Dialética do Esclarecimento,uma certa condenação da ifinesis_descrita antes de tudo como umprocesso social de identificação perversa. Trata-se de uma censuraparecida com a censufã pTatônica, a respeito da perda de distânciacritica que ocorre no processo mimético entre o sujeito e aquilo a quese identifica. A análise de Adorno e Horkheimer reforça a censuraplatónica graças ao motivo freudiano do recalque: a mimesis — iden-tificação perversa —, repousaria sobre o recalque de uma primeiramimesis arcaica, ao mesmo tempo ameaçadora e prazerosa: o medoindividual da regressão ao amorfo engendraria uma regressão coletivatotalitária, cuja expressão mais acabada é o fascismo.

Nesse contexto, o recurso de Adorno e Horkheimer à dialéticahegeliana pode ser facilmente compreendido, pois ninguém mais queHegel insistiu nas insuficiências das soluções pretensamente imedia-tas, isto é, sem mediação, que tentavam garantir a autenticidade doconhecimento. Como Hegel contra Jacobi, Adorno afirma, contra asfilosofias da vida ou da intuição, muito freqüentes na época, quequalquer pretensa imediaticidade ( Unmittelbarkeit) já é uma constru-ção do pensamento, uma "imediaticidade mediada" (vermittelte Un-mittelbarkeit), que provém do profundo (e compreensível) desejo depoder chegar a um conhecimento total, definitivo, no qual o objetoseria realmente alcançado e no qual o sujeito poderia repousar feliz.Esse antigo e belo sonho da metafísica é enganoso: mesmo quando seperde numa Wesens-schau (visão da essência) inefável, o sujeito nãodesaparece, mas consegue, pelo trabalho do espirito, ampliar os limitesda sua própria identidade. Ademais, o ideal de contemplação facil-mente faz esquecer a necessidade de transformação da má realidade,transformação sem a qual, se aceitarmos a herança hegeliana e

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marxista, não há éonhecimento verdadeiro. Num momento de crisetão profundo como o da Segunda Guerra Mundial, crise que ameaçaa sobrevivência da razão, deve-se enfatizar essa necessidade de críticaedetransformação inerenteaoconhecimento, emparticularàreflexãofilosófica. O_ pessimismo deAdornoeHorkheimer na Dialética doEsd`ci lievuser entend omo a expressão da recusa-radicalde..eu>rai em acordo, qu simplesmente de firmar um come ormissocom a realidade ex' e, realidade constituiria tambéme ineluta_-velmenié pe~ os campos de concentração.

Nessa concepção da realidade como uma totalidade socialmenteculpada (gesellschaftlicher Schuldzusammenhang) intervém uma outracaracterística do pensamento dialético, a saber, a convicção de quepartiéulár_e universal se determinam riu iâ_we tte, de que não sepode, portanto, analisar um elemento particular sem recorrer à suainserção na totalidade social, de que a verdade desse particular sópode ser encontrada na sua determinação pelo universal.

Estou resumindo de maneira terrivelmente rápida os dois traçosessenciais do pensamento dialético, tal como Adorno o assumiu comoum pensamento critico. Opa eiro traço seria_então essa coQ Qçãodo pensamento c_ o ~rocessomediatizado einfinitode transforma-ção; o segundo, a•co- ermina ão reciproca entreparticular_e uni-versa , concepção uma totalidade articulada, na qual partesetodo sea€tmem mutuamente. Se pensarmos agora juntos esses doistraços, perceberemos quenao existe necessariamente uma relaçãoentre eles, mbora e costume confundi-los amentocritico tivesse que ser tamb m e necessariamente um pensamento datotalid.~

c¿ueria insistir aqui nessa distinção analítica. Se não nos deixar-mos seduzir totalmente pela construção hegeliana do espirito abso-luto, poderemos ainda nos permitir diferenciar a possibilidade decritica da possibilidade de totalização do pensamento. Introduzo esseponto aqui porque ele me parece essencial para entender melhor oconflito que opôs Adorno e Benjamin, e que ressurge talvez tambémem várias discussões contemporâneas sobre a racionalidade e a irra-cionalidade da nossa (pós)modernidade.

Em relação a Adorno e Benjamin, encontramos a melhor explici-tação desse conflito na troca de cartas entre eles, de 1938, a respeitoda primeira versão do ensaio de Benjamin sobre Baudelaire, que eletinha escrito a pedido da Revista de Pesquisa Social, do instituto

D0 CONCEITO OE MIMESIS NO PENSAMENTO DE ADORNO E BENJAMIN 95

frankfurtiano de mesmo nome, exilado então em Nova York. Emnome da redação da revista, Adorno recusa o manuscrito e pede umareformulação do texto. A sua crítica maior diz respeito ao métodobenjaminiano de estabelecer paralelos entre características da obra deBaudelaire e fenômenos históricos contemporâneos — por exemplo,os choques dos transeuntes nas mas obstruidas de Paris e o ritmomarcado dos versos baudelairianos — sem que haja uma mediaçãomais global por trás dessas associações esclarecedoras mas não sempredesprovidas de uma certa arbitrariedade. Cito os trechos mais impor-tantes da carta de Adorno a Benjamin:

O sentimento de uma tal artificialidade se me impõe todas as vezesque o trabalho faz uma afirmação metafórica em lugar de umaafirmação ~rLlifii7 .. A razão (do meu desacordo teórico) está emque julgo in e Lz, do ponto de vista do método, tomar "materia-listicamente" alguns traços singulares claramente reconhecíveisdo âmbito da superestrutura, pondo-os em relação, sem mediaçãoe até mesmo de maneira causal, com os traços correspondentesda infra-estrutura. A determinação materialista das formaçõesculturais s6 é possível pela mediação através do processo global... A "mediação" que faz falta e que encontro encoberta por umaconjuração materialista historiográfica nada mais é do que ateoria, que o seu trabalho se poupa. A renúncia à teoria afe áaempiria. De um lado, essa renúncia confere à empiria um traçoalslieiite épico, de outro, tira dos fenômenos seu verdadeiro

peso histórico-filosófico, transformando-os em fenômenos expe-rienciados de maneira unicamente subjetiva. Pode-se formulá-Iotambém assim: o motivo teológico que consiste em nomear ascoisas pelo seu nome inverte-se tendencialmente numa exposiçãodeslumbrada da facticidade. Para falar de uma maneira drástica,poder-se-ia dizer que o trabalho se alojou no cruzamento da magiacom o positivismo. E um lugar enfeitiçado: só a teoria conseguiriaromper o feitiço... (Carta de 10 de novembro de 1938, traduçãoda autora).

Há algo de assombroso na reserva com que Benjamin respondea essa carta muito dura. Ele explica a falta de construção teórica pelanecessidade de reunir os "materiais filológicos" e defende a "repre-sentação deslumbrada da facticidade" como "a atitude autenticamen-

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te filológica". Nã'o responde ã principal objeção de Adorno, a saber,a falta de mediação a partir do processo global. Ora, a crítica deAdorno não era simplesmente uma observação metodológica de tipoacad@mico, mas continha uma suspeita política: a falta de boa teoria,isto é - - ... Adorno a a ' • 'a de dialética, de mediaça atroe sdo . rocesso lobal essa falta imicana a t . - m uma aceitaçãoFrftica da realidade. No ndo, o "recado" de Adorno a tenjamin éo seguinte: Benja~tn tenta ser marxista e critico mas, como se esqueceda imprescindível dialética, cai no mais perigoso positivismo (atrásdessa objeção hã também, sem dúvida, a rivalidade nfluenciasentre Adorno e Brecht). Este "lugar enfeitiçado", no qual, se do aspalavras de Adorno, aloja-se o trabalho de Benjamin, também"o cruzamento da magia com o positivismo" — e é nesse lugarperigoso que reencontramos o nosso tema da mtmesis. Com efeito, asobjeções de Adorno a Benjamin retomam várias das observaçõescríticas do primeiro a respeito da mtmesis: pensamento mágico rema-nescente, falta de distanciamento crítico e identificação com o exis-

tente,Tmnossibilidadeáe uma vis otalizante e, em ug-ae- um

apego sentimental ao particular, em vez da meação umafalsaime ratrci ode, ou ainda, como o diz Adorno no começo do trechoertado, 'uma afirmação metafórica em lugar de uma afirmação co-gente". Em outros textos sobre seu amigo morto, Adorno ressaltarápositivamente esses traços metafóricos e miméticos. Escreve, porexemplo, no ensaio Característica de W. Benjamin:

O pensamento adere e se aferra ã coisa, como se quisesse trans-formar-se num tatear, num cheirar, num saborear. Por força detal sensualidade de segundo grau, espera penetrar nas artérias deouro que nenhum processo classificatório alcança, sem, no entan-to, entregar-se por isso ao acaso da cega intuição sensível (Cohn,1986, p- 28. Tradução brasileira modificada pela autora) . 2

Mas aqui, na correspondência com o amigo vivo (e tambémconcorrente!), Adorno é formal: as tendências miméticas do pensa-mento benjaminiano apontam para a magia e para a aceitação do

2 "Der Gedanke rückt der Sache auf den Leib, als wollte er in Taste,,, Riechen, Schmecken $ichverwandeln. Kraft solcherzweiten Sinnlichkeit hoot er, in die Goldadem einzudringen, die keinklassifikatorisches Verfahren erreicht ohne dock darüber dem Zufall der blinden Anschauungsich zu überantworten."

00 CONCEITO DE MIMESIS NO PENSAMENTO DE ADORNO E BENJAMIN 97

existente. Resumindo: um pensamento crítico deve ser dialético, não_pode ser mimético.

Do conceito de mimesis e da sua importânciano pensamento de Walter Benjamin

Gostaria de passar agora ao terceiro ponto da minha exposição ede defender a seguinte tese: as suspeitas de Adorno devem ser, aomesmo tempo, confirmadas e invalidadas; se o conceito de mtmesis ébem um conceito-chave na reflexão benjaminiana, é porque ele tem umpapel positivo, muito instigante e, poderíamos afirmar, até critico.Poderíamos dizer que a filosofia benjaminiana abre uma possibilidade —que me parece essencial para a nossa famosa "pós-modernidade" — deum pensamento que desista da visão da totalidade, mas que, noentanto, continue critico e perturbador. No fim da sua vida, Adornoparece ter reconhecido essa possibilidade. Ele se confrontou com elana Dialética Negativa (1986): paralelamente, como veremos, reabili-tou a categoria da mtmesis na sua Teoria Estética (1982).

Mas vamos primeiro ã teoria benjaminiana da mtmesis. Ela seencontra, em primeiro lugar, na sua filosofia da linguagem.

Benjamin escreveu vários ensaios sobre linguagem. Para simpli-ficar, podemos dividi-los em dois grupos: os escritos de juventude,fortemente influenciados pela mística judaica ('Da Linguagem emGera] e da Linguagem do Homem", de 1916, e "A Tarefa do Tradutor",de 1921) e dois textos curtos escritos depois de 1933, que pertencem,portanto, ã sua assim chamada fase "materialista". Nesses dois últi-mos textos ("Doutrina do Semelhante" e "Sobre a Capacidade Mimé-tica"), Benjamin esboça uma teoria da mtmesis que também é umateoria da origem da linguagem. Como Aristóteles na Poética (1979),Benjamin distingue dois momentos principais da atividade miméticaespecificamente humana: não apenas reconhecer, mas também pro-duzir semelhanças. Essa produção mimética caracteriza a maior partedos jogos, das brincadeiras infantis. A criança não brinca s6 decomerciante ou de bombeiro (atividades humanas), mas também detrem, de cavalo, de carro ou de máquina de lavar. Como já ressaltavaAristóteles, a mtmesis sera ligada por definição ao jogo e ao aprendi-zado, ao conhecimento e ao prazer de conhecer. O homem é capazde produzir semelhanças porque reage, segundo Benjamin, as seme-lhanças jã existentes no mundo. De maneira paradoxal, essas seme-lhanças não permaneceram as mesmas no decorrer dos séculos. A

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BB : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTORIA

originalidade da teoria benjaminiana está em supor uma história dacapacidade mimética. Em outras palavras, as semelhanças não exis-tem em si, imutáveis e eternas, mas são descobertas e inventariadaspelo conhecimento humano de maneira diferente, de acordo com asépocas. Assim, reconhecemos hoje só uma parte mínima das seme-lhanças, comparável à ponta de um iceberg, se pensarmos em todas assemelhanças possíveis. As leis da similitude determinavam, outrora,um vasto saber presente na astrologia, na adivinhação e nas práticasrituais, para citar só alguns exemplos. Tal saber é hoje taxado demágico, em oposição ao saber racional, e o progresso científicogeralmente é compreendido como a eliminação crescente desseselementos mágicos. As reflexões de Benjamin vão numa direçãototalmente outra. A sua tese principal é que a capacidade miméticahumana não desapareceu em proveito de uma maneira de pensarabstrata e racional, mas se refugiou e se concentrou na linguagem ena escrita. Assistimos portanto (cf. M. Foucault, As Palavras e as Coisas,1966) não à sua decadência (Verfall) mas à sua transformação. Segun-do Benjamin, uma fonte comum une a leitura das constelações e dosplanetas feita pelo astrólogo, a leitura do adivinho das entranhas deum animal e a leitura de um texto: da mesma maneira, o gestomimético da dança aparenta-se ao da pintura e da escrita.

Tal teoria contradiz, é óbvio, qualquer concepção da linguagembaseada no arbitrário do signo. Desde seus primeiros ensaios sobre alinguagem até os últimos, Benjamin não cessou de condenar essaconcepção. Daí o seu interesse pelas hipóteses onomatopaicas sobrea origem da linguagem, hipóteses que ele, no entanto, julga restritivasdemais porque ligadas a uma concepção estreita daquilo que constituia semelhança. Com efeito, tendemos demais a assimilar semelhança,similitude (Ahnlichkeit) com reprodução (Abbildung), a pensar que aimagem de uma coisa é a sua cópia. Ou ainda, a definir a semelhançaem termos de identidade, dizendo que dois objetos são semelhantesquando apresentam um certo número dos mesmos traços. Benjamintenta pensar a semelhança independentemente de uma comparaçãoentre elementos iguais, como uma relação analógica que garanta aautonomia da figuração simbólica. A atividade mimética sempre éuma mediação simbólica, ela nunca se reduz a uma imitação. Em vãoprocurar-se-ia uma similitude entre a palavra e a coisa baseada naimitação. Saber ler o futuro nas entranhas do animal sacrificado ousaber ler uma história nos caracteres escritos sobre uma página

DO CONCEITO DE MIMESIS NO PENSAMENTO DE ADORNO E BENJAMIN 99

significa reconhecer não uma relação de causa e efeito entre a coisae as palavras ou as vísceras, mas uma relação comum de configuração.A imitação pode ter estado ou não presente na origem, ela pode seperder sem que a similitude se apague. Benjamin forja assim oconceito de "semelhança não-sensível" (unsinnliche Ahnlichkeit) edefine a linguagem como o "grau último" da capacidade miméticahumana e o "arquivo o mais completo dessa semelhança não-sensí-vel". Ele explica essa transformação filogenética da capacidade mi-mética pelo exemplo ontogenético do aprendizado da linguagemfalada e da escrita pela criança.

Nas suas lembranas de criança (Berliner Kindheit um Neunzeh-nhundert, de 1932-33E' Benjamin narra como ele costumava assimi-lar as palavras que não tinha "compreendido"; ele as transformavaem cartas-enigmas e as mimava, ele as representava como charadas:

Assim quis o acaso que se falasse uma vez em minha presença degravuras [Kupferstich]. No dia seguinte, pus-me debaixo da cadeirae estendia a cabeça para fora; isso era um "esconderijo-de-cabeça"[Kopf-verstich]. Se, ao fazer isso, eu me desfigurava e a palavratambém, eu só fazia o que devia fazer para criar raízes na vida.Aprendi em tempo a embrulhar-me nas palavras, que eram, defato, nuvens. O dom de reconhecer semelhanças nada mais é doque um tênue residuo da antiga coerção a tornar-se semelhante ea comportar-se de maneira semelhante. Essa coerção, as palavrasa exerciam sobre mim. Não as que me faziam semelhante amodelos de virtude, mas a apartamentos, a móveis, a roupas(Benjamin, Ges. Schr., IV-1, p. 261. Tradução da autora).

Pelo movimento do seu corpo inteiro, a criança brinca/representao nome e assim aprende a falar. O movimento da língua só é um casoparticular dessa brincadeira, desse jogo. Para a criança, as palavrasnão são signos fixados pela convenção mas, primeiramente, sons aserem explorados. Benjamin diz que a criança entra nas palavrascomo entra em cavernas entre as quais ela cria caminhos estranhos.Essa atitude não se deve a uma pretensa "ingenuidade infantil". Pelocontrário, ela testemunha a importância do aspecto material dalinguagem que os adultos geralmente esqueceram em proveito do seu

3 Para uma tradução em português, ver "Infancia em Berlim por volta de 1900" (Benjamin,1987).

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aspecto espiritual e conceitua], e que s6 a linguagem poética aindalembra.

O mesmo movimento mimético encontra-se no aprendizado daescrita. Quando a criança começa a escrever, quando ela desenha aletra, ela não só imita o modelo proposto pelo adulto mas, segundoBenjamin, ao escrever a palavra, ela desenha uma imagem (não umacópia) da coisa, ela estabelece uma relação figurativa com o objeto.Benjamin era um grande colecionador de livros infantis e gostavasobretudo desses abecedários que juntam na mesma página, numquadro familiar e excêntrico, as imagens correspondentes a váriaspalavras que começam pela mesma letra, como se ela fosse a figurasecreta da sua comunidade.

Numa conversa relatada por um amigo, Benjamin teria mesmodefendido a hipótese, à primeira vista grotesca, de que "todas aspalavras de qualquer lingua são parecidas na sua figuração escrita[Schrift-bild] com a coisa que elas designam" (Lembranças ..., 1968, p.40). Não é também por acaso que Benjamin, num breve artigo, refletesobre a escrita chinesa para explicar a relação entre pintura e escrita,a relação figurativa entre a escrita e o real, que não precisa necessa-riamente ser uma relação de imitação. Portanto, Benjamin recusa-sea operar uma partilha estrita entre a atividade mimética do desenhoou da pintura e a da escrita. Ele supõe estados históricos de transiçãoda pintura à escrita por intermédio dos hieróglifos e da escrita rúnica.Benjamin vai aqui ao encontro das reflexões de Derrida, ao fazerderivar a escrita não de uma abstração ou de uma convenção (que onosso alfabeto representaria perfeitamente), mas de um impulsomimético comum a qualquer inscrição, inscrição no espaço peladança, inscrição numa parede pela pintura, inscrição numa páginapela escrita.

Tal concepção mimética da linguagem e da escrita não questionasó a tese lingüística do arbitrário do signo; ela acarreta também umatransformação da definição do sentido. Desde os seus primeirosescritos, Benjamin recusa a determinação do sentido como comuni-cação de uma mensagem, como transmissão de um significado quepreexistiria à produção da fala. Os ensaios sobre a capacidade mimé-tica e sobre a semelhança distinguem uma dimensão "semiótica" euma dimensão "mimética" da linguagem. O adjetivo "semiótico"engloba justamente, de maneira bastante vaga, esse aspecto de trans-missão dos significados, aquilo que geralmente é considerado como

00 CONCEITO DE MIMES/S NO PENSAMENTO DE ADORNO E BENJAMIN 1 01

constitutivo do sentido. A dimensão mimética surgiria do semióticoassim como uma imagem fugaz e variável aparece e desaparece noprimeiro plano de um cenário.

O texto literal é o fundo único e imprescindível para a imagem-carta-enigmática poder se formar. O composto de sentido que seencontra nos sons da frase é portanto o fundo do qual o seme-lhante pode subitamente vir à luz, como um relâmpago, a partirde um tom (Benjamin, "Lehre vom Ahnlichen", p. 208-9. Tradu-ção da autora) . 4

Essa imagem rápida, inerente à dimensão mimética da lingua-gem, constitui para Benjamin o sentido essencial — mas mutável —do texto. O sentido como transmissão do significado só seria de fatoo pretexto, por certo imprescindível, que permitiria a elaboração deum outro texto.

Aqueles que conhecem melhor o pensamento de Benjamin de-vem ter percebido que essas reflexões sobre a capacidade mimética,circunscritas primeiro ao domínio da Linguagem, também tem umaimportancia fundamental para a sua teoria da história. Aliás, a mesmaimagem do relâmpago doador de sentido que floresce e desaparecenum instante, essa imagem caracteriza tanto a dimensão mimética dalinguagem como a verdadeira experiência histórica, tal qual a descre-vem as Teses "Sobre o Conceito de História" (Benjamin, 1985, p.222-35). Trata-se, nesse último texto, de pensar um tempo históricopleno, tempo da salvação do passado e, inseparavelmente, da açãopolítica no presente. Esta relação entre passado e presente não podeser pensada, segundo Benjamin, no modelo de uma cronologia linear,sucessão continua de pontos homogêneos, orientados ou não paraum fim feliz, pois nesse caso passado e presente não entreteriamnenhuma ligação mais consistente; mas tampouco pode essa relaçãoser pensada como uma retomada do passado no presente no mododa simples repetição, pois nesse caso também não haveria essatransformação do passado na qual a ação política também consiste.O ressurgimento do passado no presente, a sua reatualização salva-dora ocorre no momento favorável, no kairos histórico em que

4 "So ¡st der buchstãb!iche Text der Scant? der Fundus, in dem einzigund allein sick das Vexierbildformen /cairn. So ist der Sinnzusammenhan& der in den tauten des Satzes steckt, der Fundias,aus dem erstblitzartigAhnliches mit einem Nu aus einem Klangzum Vorschein kommen kann. "

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102 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM , MEMO AIA E HISTORIA

semelhanças entre passado e presente afloram e possibilitam umanova configuração de ambos.

No ensaio sobre Proust, autor que influenciou profundamentesua filosofia da história, Benjamin ressalta que este surgimento — amemória involuntária de Proust — tem mais a ver com o esquecimen-to do que com a memória tradicional. Esta se apega demais ao esforçoda consciência que procura reter o passado na sua identidade, na suamesmice. Ora, o passado é realmente passado ou, como diz Proust,perdido, ele não volta enquanto tal, mas só pode ressurgir, diferentede si mesmo e, no entanto, semelhante, abrindo um caminho ines-perado nas camadas do esquecimento. Se há uma retomada dopassado, este nunca volta como era, na repetição de um passadoidêntico: ao ressurgir no presente, ele não é o mesmo, ele se mostracomo perdido e, ao mesmo tempo, como transformado por esseressurgir; o passado é outro, mas, no entanto, semelhante a si mesmo.Nesse contexto, Benjamin insiste no "culto apaixonado das seme-lhanças" em Proust e ressalta que essa busca das semelhanças nãopode ser confundida com a procura da identidade: o modelo dessabusca é o mundo do inconsciente, o "mundo dos sonhos, em que osacontecimentos não são nunca idênticos, mas semelhantes, impene-travelmente semelhantes a si mesmos" (Benjamin, 1985, p. 314). 5

Essa feliz não-coincidência consigo mesmo também atinge o presen-te, que pode deixar de ser o mesmo para se tornar também outro,novo, futuro verdadeiro.

Conclusão: retomada do conceito de mimesis por AdornoParemos agora um pouco, depois desse rápido percurso benjami-

niano pelos caminhos da semelhança. Dois paradigmas de pensamen-to parecem se delinear nessa oposição entre Adorno e Benjamin. Dolado de Adorno (de Hegel e de Marx) e das exigências da dialética,temos um pensamento regido pela lógica da identidade e da não-iden-tidade, no qual o movimento do processo decorre da contradição edas suas sucessivas figuras de resolução e de recomposição: umpensamento cuja dimensão temporal remete a uma linearidade es-sencial, pois a contradição só pode se desenvolver numa sucessãoprecisa de momentos. Modelo cuja forma bastarda será a de umdeterminismo desenvolvista, como se a simples sucessão dos momen-

s Tradução de S. P. Rouanet (modificada pela autora).

00 CONCEITO BE MIMESIS NO PENSAMENTO DE AOOANO E BENJAMIN : 103

as pudesse substituir o próprio processo de negatividade e de con-tradição.

Do lado da mimesis, no sentido amplo que Benjamin deu a esseconceito, do lado de Nietzsche certamente e talvez também de Freud,encontramos uma Lógica não da identidade, mas da semelhança,portanto uma concepção nunca identitária do sujeito e da consciên-cia. O movimento do pensamento não remete aqui a contradiçõessucessivas num processo progressivo, rhas muito mais a um fazer edesfazer lúdico e figurativo, ao movimento da metáfora. A dimensãotemporal não consiste tanto na linearidade, mas mais na contigüida-de, não num depois do outro, mas num ao lado do outro. Nessadescontinuidade fundamental há momentos privilegiados em queocorrem condensações, reuniões entre dois instantes antes separadosque se juntam para formar uma nova intensidade e, talvez, possibilitara eclosão de um verdadeiro outro.

Se essa diferenciação rápida tiver algo de verdadeiro, então com-preenderemos melhor por que o conceito de mfmesis não pode sersimplesmente reduzido aos de magia e de regressão: a mimesis indi-caria muito mais uma dimensão essencial do pensar, esta dimensãode aproximação não violenta, lúdica, carinhosa, que o prazer suscita-do pelas metáforas nos devolve. Ela aponta para aquilo que Adorno,na sua Teoria Estética, define como o Telos der Erkenntnis, o "Telos doconhecimento" (1982, p. 87): uma aproximação do outro que consigacompreendê-Io sem prendê-lo e oprimi-lo, que consiga dizê-lo semdesfigurá-lo. Essa proximidade na qual o espaço da diferença e dadistãncia seja respeitado sem angústia, esse conhecimento sem vio-lência nem dominação já era a idéia reguladora que orientava todacrítica de Adorno na Dialética do Esclarecimento. E. a idéia de umareconciliação possível, mas cuja realização, em oposição ã dialéticado espírito absoluto em Hegel, sempre nos escapa. Esse movimentode promessa e de reserva descreve a dialética que Adorno, no fim dasua vida, chama de "dialética negativa", pois nunca repousa em simesma, nunca sossega na possibilidade da totalidade. O privilégio daobra de arte seria, segundo o último texto de Adorno, a sua Teoriaestética, de manifestar, de dar a ver numa configuração sensível ehistórica esse movimento da verdade. A arte é o "refúgio do compor-tamento mimético" (Adorno, 1982, p. 86), mas de uma mfinesisredimida que conseguiria fugir tanto da magia como da regressão.Cito na tradução portuguesa: "Mas o comportamento estético não é

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nem mimese imediata, nem mimese recalcada mas o processo queela desencadeia e no qual se mantém modificada" (Adorno, 1982, p.364). Algumas linhas abaixo Adorno retoma a associação entre ocomportamento mimético originário e o calafrio do homem queestremece de medo perante o monstro. Vocês lembram que essareação originária de "idiossincrasia" era citada por Adorno na suacrítica ao comportamento mimético perverso do anti-semita. Aqui,na última página da Teoria Estética, esse arrepio mimético originárioreaparece, mas sob sua figura reconciliada: é o tremor do sujeitoperante a beleza; essa febre sagrada que, no Fedro de Platão, aquitambém citado por Adorno, apodera-se do amante quando vê oamado, pois este lhe lembra a visão da divindade. Ali, diz Adorno, osujeito se deixa atingir, afetar pelo objeto, mas esse toque recíproconão produz feridas; o sujeito não apaga nem submete o outro a simesmo num gesto prepotente. Experiência erótica e estética quetambém define, segundo o velho ensinamento platónico, a experien-cia do conhecer verdadeiro, isto é, da união entre Eros e Logos.

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1 06 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA

. Le Sophiste. Paris: Les Belles Lettres, 1925. Trad. Auguste Diés.Seltz, J. "Lembranças". In: Über Walter Benjamin. Frankfurt am Main:

Suhrkamp Verlag, 1968.

VI. DO CONCEITO DE RAZÃO EM ADORNO

A Marcos, que não desiste da totalidade

Para este carrefour sobre a Escola de Frankfurt escolhi três textos deAdorno que gostaria de ler e comentar com voces. Preferi este caminhode análise a um outro possível, ode uma introdução geral à problemáticados frankfurtianos. Tais introduções não passam, na maioria das vezes,de generalidades bastante vagas, pois não há, rigorosamente falando,uma unidade doutrinária na Escola de Frankfurt Há muito mais preocu-pações comuns, comuns aliás a muitos outros pensadores da época, comoLukács e Korsch, por exemplo, preocupações que acarretam reflexões econclusões diferentes, às vezes antagônicas, nos abusivamente chamados"frankfurtianos". É só pensar, por exemplo, nas posições respectivas deBenjamin e de Adorno sobre a função da arte na modernidade ou de Adornoe de Marcuse a respeito da importancia do movimento estudantil.

Vou, então, restringir-me à filosofia de Adorno e, em particular,a uma análise da função que o conceito de razão aí desempenha.

A nossa hipótese de trabalho consiste na afirmação de que estafilosofia vive da tensão entre a crítica da racionalidade iluminista e areabilitação paradoxal da metafísica. Gostaria de expor esta tese com trêstextos que datam de épocas diferentes: o primeiro, da Dialética doEsclarecimento, de 1944; o segundo, de Mínima Moralia, de 1947; e oterceiro, da Dialética Negativa, de 1966.

Adianto também que esta exposição se apóia basicamente nasreflexões críticas de A. Wellmer l e J. Habermas. 2

1 Wellmer, A. Zur Dialektik von Moderne und Postmoderne (Frankfurt am Main: Surhkamp,1985).

2 Habermas, J. DerPhilosophischeDiskurs derModeme(Frankfurt am Main: Surhkamp, 1985).

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Escrito no exílio por Adorno e Horkheimer, o livro Dialética doEsclarecimento é tido como uma das mais negras, das mais pessimistasobras da filosofia contemporánea (Habermas, p. 150). Pessimismocuja justificativa maior se encontra certamente na dramática épocahistórica da sua redação: de um lado, o nazismo triunfante, do outro,o stalinismo e, no meio, o exílio dos autores, a constatação doprofundo aburguesamento da classe operária no capitalismo avança-do. Para onde quer que se dirijam os olhares só há dominação e mortee, pior ainda, acomodação à morte e resignação à dominação. Adornoe Horkheimer tentam entender como o antigo ideal de razão eman-cipadora, ideal explicito no Iluminismo, mas, segundo eles, já pre-sente na origem da racionalidade ocidental, como este ideal deu à luzum sistema social no qual racionalidade e dominação são insepará-veis. Essa "meta-história da razão" (Wellmer) pretende ser, ao mesmotempo, também uma história do poder social-político.

A primeira hipótese da Dialética do Esclarecimento, hipótese afir-mada, nunca discutida, é, portanto, a de que estruturas da organiza-ção racional e estruturas da organização social não só se correspondemcomo se apóiam mutuamente. Hipótese oriunda certamente da críticamarxista à ideologia, mas que tem, além disso, a pretensão dereconstruir o quadro transcendental do desenvolvimento da razão nasociedade ocidental.

A tese principal do livro consiste na proposição enunciada noprefácio:

O mito já é esclarecimento e o esclarecimento acaba por reverterà mitologia (Dialética do Esclarecimento, p. 15). [Ver bibliografia,p. 122 abaixo.]

Segundo Habermas (pp. 131-138), temos três passos (que corres-pondem aos capítulos iniciais) na argumentação que mostram essaimbricação da razão e do mito, a sua superação posterior e, finalmen-te, o enclausuramento da razão num pensamento tão constrangedore ameaçador como as lendas míticas:

1. O primeiro passo mostra a imbricação, desde o início, entreesclarecimento e mito, isto é, entre uma faculdade de emancipação ede crítica e aquilo que pretende combater, as forças cegas da naturezaque negam a autonomia do sujeito. Na sua luta contra o mito, a razãofica, por assim dizer, contagiada pelas forças às quais se opõe e cairá

DO CONCEITO OE RAZÃO EM ADORNO 1 09

no seu desenvolvimento ulterior, nos mesmos mecanismos de ofus-camento que criticava originariamente no mito. Esse processo éilustrado na constituição do sujeito racional de maneira privilegiadana belíssima análise da Odisséia, que não retomarei aqui. Esse desen-volvimento ulterior da racionalidade iluminista é analisado nas suascontradições no capitulo consagrado à moral.

2. O segundo passo (sobre a Juliette, de Sade) tratará das peripé-cias da ética iluminista (isto é, no fundo, da concepção de prática doesclarecimento), tanto na sua constituição em Kant como na suaautodestruição em Nietzsche e Sade. Como tinham mostrado que oesclarecimento já estava embutido no mito, Adorno e Horkheimermostram agora que as insuficiências e os paradoxos da moral ilumi-nista já se encontravam em sua origem no paradigma kantiano e sereproduzem na radicalidade oposta de Nietzsche e Sade.

3. Enfim, num terceiro passo, a possibilidade de uma saídaestética será questionada. O capitulo sobre indústria cultural encar-rega-se de negar — notadamente contra Walter Benjamin — a possibi-lidade de uma transcendência dentro da modernidade, também nodominio estético. Esse capítulo, talvez o mais dogmático, será subme-tido a vários remanejamentos e criticas, inclusive da parte dos pró-prios autores.

Podemos fazer duas observações a propósito deste brevíssimoresumo da Dialética do Esclarecimento:,

— A sua pretensão critica recobre o campo das três críticaskantianas; os primeiros capítulos, sobre o entrelaçamento da razão edo mito, correspondem à Critica da Razão Pura; o terceiro, sobre amoral iluminista, à Critica da Razão Prática; e, enfim, o último, sobreindústria cultural, à Critica do Juizo. O alcance epistemológico do livroé, portanto, geral. E como sublinha Habermas (op. cit., p. 145), todaa filosofia de Adorno, até os últimos escritos, Negative Dialektik eAesthetische Theorie, retomam e variam a problemática já esboçadanessa obra de juventude. Tratar-se-á sempre de saber como umpensamento crítico é possível, ainda que ele também se inscrevadentro de um conjunto social totalitário e afirmativo, ou, maisprecisamente em relação à idéia de razão, como manter a esperançade emancipação do esclarecimento quando este se tornou, ele mes-mo, a figura mais acabada do cerceamento mítico contra o qualpretendia lutar.

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Questão ao mesmo tempo transcendental e prática, que remeteã necessidade da critica tanto no sentido kantiano quanto no sentidomarxista: questão que só pode ser colocada desta forma, devemosobservá-lo, porque a filosofia adorniana repousa numa visão dialéticado real que pressupõe, em particular, a existência de um sistemasocial-político totalizante, isto é, no qual a totalidade determinaintegralmente os elementos particulares, enquanto estes só podemser compreendidos como constitutivos dessa totalidade. É essa pres-suposição dialética, na boa tradição hegeliana e marxista, que tornaa questão da possibilidade da ruptura crítica tão necessária e tãodramática.

Depois desta breve introdução, podemos agora ler o nosso pri-meiro texto.

No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclareci-mento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens domedo e de investi-los na posição de senhores. Mas a terra total-mente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidadetriunfal. O programa do esclarecimento era o desencantamentodo mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imagi-nação pelo saber. (...) Os deuses não podem livrar os homens domedo, pois são as vozes petrificadas do medo que eles trazemcomo nome. Do medo o homem presume estar livre quando nãohá mais nada de desconhecido. É isso que determina o trajeto dadesmitologização e do esclarecimento, que identifica o animadoao inanimado, assim como o mito identifica o inanimado aoanimado. O esclarecimento é a radicalização da angústia mítica.A pura imanência do positivismo, seu derradeiro produto, nadamais é do que um tabu, por assim dizer, universal. Nada mais podeficar de fora, porque a simples idéia do "fora" é a verdadeira fontede angústia (Dialética do Esclarecimento, pp. 19 e 29).

Gostaria de ressaltar duas hipóteses-chaves da Dialética do Escla-recimento neste belo texto:

— O progresso do pensamento fora do mito para o esclarecimen-to, progresso questionável e questionado, não é desencadeado porum interesse desinteressado pelo conhecimento "enquanto tal". Ori-gina-se muito mais num sentimento básico, no medo que acomete ofrágil homem frente As forças da natureza e à violência social. 0

00 CONCEITO DE RAZÃO EM ADORNO : 111

próprio pensar é desencadeado pelo medo. O saber enraíza-se nessatensão entre medo e emancipação.

— O problemático desse desenvolvimento do pensamento não seencontra, segundo Adorno e Horkheimer, nessa sua origem. Encon-tra-se na "solução" levantada para escapar ao medo. O saber que develiberar do medo é definido como um poder no sentido forte dedomínio: é só quando os homens se tornam "senhores" que elesconseguem ficar sem medo. Esse processo de dominação é cada vezmais amplo no decorrer da história: os mitos — enquanto falas — járepresentavam uma tentativa de dominar a angústia, dando-lhesum(s) nome(s); mais tarde, a crítica aos mitos e à concepção animistada natureza configura um domínio do logos (razão e linguagem) sobresi mesmo, um autodomínio, portanto. O processo de desmitologiza-ção culmina no de dessacralização, em particular, na denúncia mo-derna da religião: os deuses não passariam de projeções humanas,encarnações dos seus medos e dos seus desejos:

...não podem livrar os homens do medo, pois são as vozespetrificadas do medo que eles trazem como nomes.

A crítica da religião permite a façanha, característica da nossamodernidade, da tomada de poder dos homens sobre os deuses, dohumano sobre o divino e o sagrado. Tendo chegado af, o homemdever-se-ia encontrar livre do medo, pois não há mais nenhuma figuraonipotente que possa ameaçá-lo. Ora, paradoxalmente, a erradicaçãodo medo pelo esclarecimento não produz mais a sua libertação, pelocontrário, sempre segundo Adorno e Horkheimer, a

...terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de umacalamidade triunfal.

Poderíamos também dizer que a luz branca da razão, do esclare-cimento, transforma-se na escura luz devoradora da onipotência: aoquerer se livrar do medo pelo domínio total (e totalitário) sobre oreal, a razão do esclarecimento não pode mais tolerar nada que lheescapa, nem deuses, nem estrelas, nem sonhos. O esclarecimentoprecisa tudo controlar para se sentir seguro. Ao tentar isso, cai numprocesso de coerção tão ameaçador como o cego destino mítico. Issose deve a duas razões interligadas: 1) como o esclarecimento pretende

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abarcar tudo, qualquer força que viesse de fora se tornaria intensa-mente ameaçadora, pois colocaria em questão essa totalidade fechada(no pensamento mítico, a relação com o fora era, sem dúvida, angus-tiante, mas, ao mesmo tempo, comum, normal, pois os próprios mitostematizavam essa intervenção do outro); 2) a denegação da existênciade um fora que lhe escapasse e a afirmação do seu controle todopoderoso não fortalecem a razão, apesar das aparências: tomam-nasimplesmente mais frágil porque mais entregue às suas próprias interdi-ções, aos seus próprios tabus. Resumindo: a razão triunfante só vence aopreço de uma proibição ditatorial sobre si mesma, a própria razão setorna o deus ameaçador mítico em relação a si mesma. O grande temailuminista da autonomia da razão (isto é, o fato de ela se dar as suaspróprias leis e de não aceitar obedecer a nenhum poder exterior)transforma-se, na análise de Adorno e Horkheimer, no tema doautodomínio, e mais, da auto-repressão da razão sabre si mesma.

Vocês devem ter percebido que a argumentação de Adorno e deHorkheimer retoma motivos marxistas, freudianos e, como o ressal-tam Wellmer (p. 15 e ss.) e Habermas (p. 144 e ss.), nietzschianos.Seguindo esses dois comentadores, gostaria de explicitar rapidamenteesse parentesco com Nietzsche. A relação de Adorno e Horkheimer aNietzsche é, como diz Habermas, zwiespaeltig ("cindida") (p. 145). Secriticam o Iluminismo, continuam, porém, iluministas, pois reto-mam e reafirmam o ideal de emancipação da razão, denunciando assuas perversões, mas reivindicando o valor de verdade da sua exigên-cia critica. Nesse contexto, Nietzsche é condenado como sendo, emúltima análise, um irracionalista (essa denúncia do irracionalismoorientará também os vários textos de Habermas a respeito de Nietzs-che). No entanto, como o mostram Wellmer e Habermas, Nietzscheestá presente na hipótese epistemológica maior da Dialética do Escla-recimento, a saber, na redução genealógica da racionalidade iluministaa uma dinâmica do poder.

Podemos desdobrar essa denúncia nos dois traços principais darazão iluminista, segundo nossos autores, no seu caráter instrumen-talista e no seu apego à identidade. O conceito de "razão instrumen-tal" (cf. Horkheimer, Zur Kritik der Instrumentellen Vernunft, 1947)remete à diferença entre entendimento e razão (Habermas, p. 144) edenuncia o formalismo da razão como um mero instrumento decálculo e de dominação. Esse tema é profundamente nietzschiano,pois afirma que os conceitos não têm um outro valor de verdade

DO CONCEJO DE RAZÃO E M AOORNO : 113

senão o de ser, exclusivamente, instrumentos arbitrários que permi-tem se apoderar da realidade ("arbitrários" no sentido igualmentenietzschiano de que eles servem mais ou menos bem aos interessesdaqueles que os usam, não no sentido clássico de que representariamesquemas de apreensão mais ou menos fiéis ao real). Assim desapa-rece, como Habermas não se cansa de repetir a propósito de Nietzschee dos seus seguidores (cf. p. 144), a diferença entre validade (Geltung)e poder ( Macht), e isso dentro da própria razão filosófica que, pelomenos na sua origem, na luta de Platão contra a sofistica, pretendiaresguardar a não-identificação dessas duas instâncias.

A denúncia da instrumentalidade da razão é retomada e ampliadana crítica adorniana do conceito de identidade, critica esta quepercorre toda a sua obra — tanto é que Wellmer pilde intitular um dosseus ensaios "Adorno, Anwalt des Nicht-Identischen" ("Adorno, De-fensor do Não-Idêntico" ).

Esta discussão do conceito de identidade, em particular do seucaráter arbitrário e coercitivo, que impede a razão de pensar a plura-lidade e a multiplicidade, é comum a toda a reflexão contemporánea(cf., por exemplo, Heidegger, Deleuze etc.). A sua fonte se encontra,é claro, na dialética hegeliana, mas também e em particular no quediz respeito ao caráter coercitivo do conceito de identidade, emNietzsche. Wellmer menciona (p. 148) dois fragmentos póstumos deNietzsche que cito a seguir (tradução caseira):

A lógica está ligada à seguinte condição: contanto que haja casosidênticos. Com efeito, para que possamos pensar e concluir logi-camente, essa condição tem a obrigação de ser fingida como antescomprovada. Isto é: a vontade de verdade lógica só se podecumprir depois de ter sido aceita uma falsificação de princípiode todo acontecer. Disso resulta que aqui reina uma pulsão(Trieb) capaz dos dois meios, primeiro da falsificação, e depoisdo cumprimento do seu ponto de vista: a lógica não nasce davontade de verdade. 3

3 "DieLogik istgeknuepft au die Bedingung:gesetzt, es gibt identischeFaelle. Tatsaechlich, damitlogisch gedacht undgeschlossen werde, muss dieseBedigung erst ais erfuelit fingiert werden. Dasheissh der W illezur logischen Wahrheitkann erstsich voliziehen, nachdem einegrundzaetzlicheFaelschung alles Geschehens angenommen Woraus sich ergibt, dass hier ein Trieb waiter,der beiden Mittel faehig ist, tuent der Faelschung und dann der Durchfuemngseines Gesichts-punMes: die Logik stammt nicht aus dem Witten zur Wahrheit" (Ed. Schlechta, vol. III, p.476).

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114 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM . MEMÓRIA E HISTORIA

E:

A obrigação de formar conceitos, gêneros, formas, fins, leis ("ummundo de casos idênticos") não deve ser entendida como se pudés-semos assim fixar o mundo verdadeiro, mas como a obrigação denos ajeitar um mundo sob medida, no qual a nossa existência sejapossível: — criamos assim um mundo que é calculável, simplifi-cado, compreensível etc., para n6s. 4

No decorrer de toda a sua obra Adorno retoma, e mesmo inten-sifica, esta tese nietzschiana: o pensamento opera com repre-sentações, conceitos, idéias etc. que pressupõem uma ordenaçãoarbitrária (Nietzsche diz, de maneira bastante paradoxal, uma "falsi-ficação") da multiplicidade do real. Essa ordenação não é simples-mente imprescindível à sobrevivência do ser humano; ela contém emsi um momento de dominação, pois pretende fazer entrar a plurali-dade concreta na camisa-de-força do idêntico. Ou ainda: o conceitode identidade não é somente uma condição necessária ao funciona-mento da racionalidade ocidental, é mais que isso — ele configurauma tomada de poder nada inocente sobre a realidade, e só consegueapreendê-la pela violentação.

Duas breves observações se impõem neste ponto da nossa exposição:Pode-se e deve-se aplicar à noção de identidade, tal qual Adorno

a emprega, a mesma critica que ele aplica à razão iluminista, isto é:Adorno encobre com um único conceito uma multiplicidade de usose contextos nos quais as palavras "identidade", "identificar", "iden-tificação" etc. funcionam. Essa observação de Herbert Schnaedel-bach s provém da preocuPação atual da filosofia analítica com umaclarificação da linguagem filosófica, pois, segundo essa direção ana-Iftica, a maioria dos problemas filosóficos remeteria a um uso confusodas palavras e a uma substancialização desse uso (cf. Wittgenstein).Sem querer entrar nesse debate, podemos notar, com Schnaedelbach,

4 "Man soil die Noetigung, Begdffe, Gattungen, Formen, Zwecke, Gesetze zu bilden nine Weltder identischen Faelle) nichtso verstehen, ais ob wirdamit die wahre Weltzu /ixieren instandewaeren, sondem ais Noetigung, uns Bine Welt zurechtzumachen, bei der unte Existenzermoeglicht wind: wir schaffen damit eive Welt, die berechenbar, vereinfacht, verstaendlichusw, fuer uns (Id., p. 526).

5 Schnaedelbach, Herbert. "Dialektik ais Vernunftkritik, zur Konstruktion des Rationalenbei Adorno", in Adorno Konferenz 1983. Frankfurt am Main: suhrkamp, 1983, especial-mente pp. 69 e ss.

DO CONCEITO DE RAZÃO EM ADORNO : 115

que Adorno não distingue, por exemplo, "identificação" e "adequa-ção", "identidade" e "igualdade", "identificar com algo" e "identifi-car como algo" etc. Isso lhe permite, entre outras coisas, umaaproximação talvez rápida demais entre a lógica da identidade e alógica capitalista da troca ou entre a lógica da identidade e a consti-tuição repressiva do sujeito. Não é aqui o lugar de desenvolver estasobservações, que quis, porém, mencionar, pois me parecem muitoinstigantes e ajudariam talvez a não sucumbir totalmente aos encan-tos da radicalidade adorniana.

Segunda observação que nos levará a nosso segundo texto. ComoWellmer o ressalta (pp. 148-149), a idéia de uma ligação entre formasde pensamento e formas de dominação da natureza não remete só aNietzsche, mas, é claro, também a Marx, com a diferença de que esseprocesso de dominação da natureza é pensado positivamente emMarx como fazendo parte do processo de trabalho. Na Dialética doEsclarecimento, Adorno e Horkheimer radicalizam então a tese mar-xista da correspondência entre formas de pensamento e formas detrabalho ao denunciar, no próprio conceito marxista de trabalho, ummomento de violência. Ou, dito de outra maneira: o pensamento deMarx também se inscreve na racionalidade iluminista e incorpora suascaracterísticas de dominação. Essa crítica a Marx não impede que, agoracontra Nietzsche, Adorno e Horkheimer compartilhem do mesmo con-ceito enfático de verdade que o marxista, quando denunciam o caráterideológico da racionalidade instrumental. Não afirmam somente, comoNietzsche, que o pensamento identificador domina, violenta e, nessesentido, falsifica o real (relativismo dos valores, perspectivismo etc.).Dizem também, com Marx, que essa violência não remete somente auma condição transcendental do conhecimento humano, mas muitomais a uma dominação prática, que essa "falsificação" não provém sóde um perspectivismo universal, mas que ela é muito mais "umaaparência socialmente necessária", como Marx o elucida no parágrafosobre o valor fetiche da mercadoria. Há, portanto, diz Wellmer — quesigo totalmente nesse ponto —, uma concepção normativa da verdadeque funciona como critério de denúncia e orienta a exigência deemancipação comum a Marx, Adorno e Horkheimer. S6 que essaverdade não pode ser pensada, na critica adomiana, nem com osinstrumentos da nossa racionalidade identificadora nem com osvalores vigentes da nossa sociedade, embora — e isto é a cruz da

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116 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM MEMORIA E HISTORIA

dialética adórniana — não haja outros meios ã disposição. CitoWellmer (p. 149):

Adorno e Horkheimer retém com a perspectiva utópica da teoriamarxista também um conceito enfático de verdade que deve,porém, ser pensado ao mesmo tempo exterritorialmente emrelação ao mundo do pensamento identificador, ao contexto deofuscamento da racionalidade instrumental .6

É essa contradição entre anecessidade de pensar a verdade na sua figurade não-identidade, de diferença, de outro e a impossibilidade de escapar àfalsa totalidade ideológico-social que tematiza o nosso segundo texto:

A única filosofia ainda responsável em face do desespero seria urnatentativa de considerar todas as coisas como elas se apresentariamna perspectiva da redenção. O conhecimento não tem outra luzque aquela que a redenção irradia sobre o mundo: todo o resto seesgota na mera reprodução e permanece um fragmento de técnica.Seria preciso abrir perspectivas nas quais o mundo se mostrasseem suas alienações, em suas descontinuidades e em suas fraturas,da mesma maneira que aparecerá um dia, carente e deformado,sob a luz do messianismo. O que importa antes de mais nada aopensador é abrir tais perspectivas, sem arbítrio e sem violência,derivando-as do contato sensível com os objetos. É o mais simples,porque a situação reclama imperiosamente tal conhecimento, eporque a negatividade consumada, vista em seu conjunto, coin-cide com a imagem especular do seu contrário. Mas é tambémalgo totalmente impossível, porque pressupõe um lugar, subtraí-do à gravitação do existente, ainda que de forma infinitesimal, aopasso que todo conhecimento possível, se quiser ser rigoroso,deve ser arrancado pela violência ao que é, e está afetado precisa-mente por essa razão, pela mesma deformação e pela mesmainsuficiência daquilo a que pretende escapar. Quanto mais apai-xonadamente o pensamento quer isolar-se de seus condiciona-mentos, em busca do incondicionado, tanto mais inconsciente eportanto mais fatídica é sua absorção pelo mundo. Precisa com-

6 "Adorno und Horkheimer batten mit der utopischen Perspektivedermanschen Theoriezugleicheinen emphatischen Begrii der Wahreit fat, der aber nun gleichsam exterritodal gedachtwerden muss zur Welt des identilrzierenden Denkens, mm Verblendunszuzammenhang derinstrumentellen Rationalitaet" (op. cit., p. 149).

00 CONCEITO DE RAZÃO EM ADORNO : 117

preender sua própria impossibilidade, a fim de salvaguardar suapossibilidade. Mas, tendo em vista as exigências que dal decorrempara o pensamento, a questão da realidade ou irrealidade daredenção se torna quase indiferente. ]

Não vou me demorar no comentário deste belíssimo texto, que,parece, se basta a si mesmo, e que conclui a série de aforismos MinimaMoralia, subtítulo Reflexionen aus dem beschaedigten Leben (Reflexões aPartir da Vida Danificada), um dos mais pungentes livros de Adorno.Gostaria de ressaltar tres pontos.

1. Todo o texto remete, não há dúvida, a motivos da teologia,em particular da teologia neggativa. O motivo mais forte é, comoMichael Theunissen observa, o da prolepse, isto é, a presença ante-cipada do futuro no presente. Assim, Adorno evoca um conhecimento"na perspectiva da redenção" e afirma que o "conhecimento não temoutra luz que aquela que a redenção irradia sobre o mundo".

Atrás dessas formulações há a bela idéia de que todas as feridasdo mundo só poderão ser realmente conhecidas e reconhecidas nodia em que puderem igualmente ser enfim curadas; antes desse dianão há possibilidade de conhec@-las integralmente, pois o própriosofrimento do mundo afeta a nossa percepção, tornando-a grosseirae indiferenciada. Paralisia que poderíamos, talvez, interpretar tam-bém como uma estratégia canhestra de sobrevivência: não podemosnem queremos enxergar a amplidão do desastre, pois esta vista nosmataria; só o ousaremos quando houver, justamente, possibilidadede redimir este nosso mundo e este nosso olhar; mas paralisia quetambém remete àquilo que Adorno chama várias vezes de Verblen-dungzusammenhang, de contexto de ofuscamento, isto é, ao fato de onosso conhecimento, de o nosso pensamento racional em geral, nãopoder se furtar ao contexto social-politico de dominação. Essa conta-minação do pensamento por aquilo contra o qual pretende lutar nosleva à nossa segunda observação.

2. À luz da redenção se opõe, pois, no próprio texto, a escuridãoda "negatividade consumada". No pensamento de Adorno de MinimaMoralia o corpo social na sua totalidade é alienado. Mais: o sistema

7 Habermas, J. "O idealismo alemão dos filósofos judeus", ensaio no qua] este fragmentode Minima Moralia é traduzido, trad. de B. Freitag e S. P. Rouanet, in Habermas (sdo Paulo:Ática, 1980), p. 99.

8 Theunissen, Michael. "Negativitaet bei Adorno", in Adomo-Konferenz 1983, op. cit.,especialmente pp. 54 ss.

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118: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM , MEMÓRIA E HISTÓRIA

capitalista, entendido dialeticamente no sentido marxista, condicio-na também as formas de resistência a ele. O pensamento não escapaa essa determinação implacável. Ciente disso, ele deseja fugir docontexto social alienado e, justamente nesse movimento de raiva,reproduz a violência da totalidade.

...Todo conhecimento possível, se quiser ser rigoroso, deve serarrancado pela violencia ao que é e está afetado precisamente poressa razão, pela mesma deformação e pela mesma insuficiênciadaquilo a que se pretende escapar.

Nesse total ofuscamento, nenhuma alternativa se oferece: ou opensar se resigna à sua determinação e deixa de lutar, ou cisma emser incondicionado e esconde assim ainda mais o seu condicionamen-to; em ambos os casos, não se furta ao contexto geral de alienação.

A esperança de redenção e à sua luz salvadora se contrapõe, assim,no mesmo texto, a noite da totalidade fechada nas suas determinaçõesinelutáveis. É justamente esta contradição que define, em últimaanálise, o esforço do pensamento: sabe do seu condicionamentoirremediável, mas vive, no entanto, da esperança de poder escapar aesta estranha fatalidade dialética, de poder chegar a "um lugar sub-traído à gravitação do existente".

Podemos mesmo dizer que, para Adorno, o verdadeiro pensa-mento crítico não consiste em outro movimento que essa auto-reflexãosobre sua determinação e sobre a libertação dessa sua determinação. Porisso, coma diz no fim do nosso texto, a questão de saber se há ou nãoredenção se toma secundária, em vista de saber se tal pensamento, que sesalvaria a si mesmo no seu mais profundo dilaceramento, é possível. Porisso, podemos acrescentar, não há volta a teologia — que pressupõe aexistência do absoluto — , mas sim permanência na filosofia, maisprecisamente na filosofia da auto-reflexão do espirito, numa fiel conti-nuação da dialética hegeliana, o que desembocará na construção daDialética Negativa.

3. Temos já neste texto uma indicação preciosa do que poderiaser um pensamento certamente racional, porém não dominador. Aolado das altas abstrações da auto-reflexão encontramos, com efeito,uma outra exigência para o conhecer: aquilo que Adorno chama de"contato sensível com os objetos" (Fühlung mit den Gegenstiinden). Esseaspecto de respeito pelo sensível (repito e insisto, não pelo irracional,

DD CONCEITO DE RAZÃO EM ADORNO 119

Adorno não é um dos numerosos pais do irracionalismo contempo-râneo) assinala uma certa humildade do pensar que quer seguir comternura os contornos do sensível, gratuitamente, por simples prazere respeito, sem calcular antes qua] poderia ser o "lucro" que daíresultaria ou não. Esse gesto deverá assumir uma importáncia cres-cente na filosofia de Adorno, alimentando toda a sua revalorizaçãodo conceito de mimesis, não como mera imitação nem como intuiçãoaconceitual, mas, justamente, como uma flexibilidade aconcheganteà singularidade e à multiplicidade do concreto: o que desembocarána sua teoria estética (cf. Schnaedelbach, op. cit., p. 81, e Wellmer,op. cit., p. 153).

Espero que tenhamos agora elementos suficientes para chegarao nosso último texto que se encontra na Dialética Negativa, que éum pouco a suma teórica de Adorno ao lado de e junto com a suaTeoria Estética. Transcrevo este parágrafo, situado nas últimas páginasda obra:

Dialética é a autoconsciência do contexto objetivo de ofusca-mento mas não lhe escapou ainda. Irromper dele a partir dedentro é objetivamente sua meta. A força para a irrupção lheadvém a partir do próprio contexto de imanência; a ela caberiaainda uma vez aplicar a palavra de Hegel: a dialética absorve aforça do adversário e a emprega contra ele; não só no singular,visto dialeticamente, mas também, por fim, no todo. Elaapreende com os meios da lógica o seu caráter de coerção,esperando que ele ceda. Pois essa coerção é, ela mesma, aaparência mítica, a identidade imposta. O absoluto, entretanto,como se afigura à metafísica, seria o não-idêntico que tão-sóafloraria depois que a coerção à identidade se tivesse desfeito.Sem a tese da identidade a dialética não é o todo; mas entãotambém não seria urna falta capital abandoná-la num passodialético. É da determinação da dialética negativa não tranqüili-zar-se em si mesma como se ela fosse total; esta é a sua figura deesperança. 9

9 Negative Dialektik, p. 396 (trad. JMG). "Dialektik ist das Selbstbewubtsein des objektivenVerblendungszusammenhangs, nicht bereits diesem entronnem. Aus ihm von innen her auszu-brechen, ist abjektiv ihr Ziel. Die Kraft zum Ausbruch wdchst ihr aus dem lmmanenzzusa,n-menhang zu; au(sie ware, noch einmal, Hegels Diktum anzuwenden, Dialektik absorbiere dieKraft des Gegners, wende sie gegen ihn; nicht mur im dialektisch Einzelnen sondem am Endeim Ganzen. Sic fabt mit den Mitteln von Logik doren Zwangscharakter, hoffend, dap erweiche.

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120 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM , MEMÓRIA E HISTÓRIA

Adorno retoma aqui, numa continuidade notável, a idéia-mestra da Dialética do Esclarecimento, segundo a qual a racionalidadese reverte em mitologia ao impor mecanismos coercitivos tão abso-lutos como outrora, o pensamento identificador em particular. S6que, mais dialético talvez do que na primeira obra, ele conseguevislumbrar, digamos, não uma saída, mas talvez uma possibilidadede superação. Essa se encontra, seguindo a lição de Hegel, na auto-re-flexão do pensamento sobre o seu próprio caráter coercitivo: "ela (adialética) apreende com os meios da lógica o seu caráter de coerção,esperando que ele ceda."

Notemos aqui que o pensar não desiste dos seus própriosinstrumentos para chegar além de si mesmo. Adorno não propõe umintuicionismo imediato nem um irracionalismo ingênuo para escaparda lógica identificadora. Propõe, sim, na boa tradição plat©nica, umdemorar e um treinar na linguagem e na ratio, no logos, para enxergara sua insuficiência e indicar, talvez, o que seria seu outro fundador. l °Diz ele na mesma Dialética Negativa que o esforFo da filosofia consisteem "ir além do conceito através do conceito", o que soa como umcomentário da Sétima Carta de Platão. Essa esperança (a palavra voltavárias vezes em momentos-chaves do texto: "esperando que ceda" —"esta é a sua figura de esperança") parecia ausente da Dialética doEsclarecimento, já surgia timidamente sob uma forma quase teológicano texto de Minima Moralia, e, aqui, está afirmada como a condiçãotranscendental de umpensar verdadeiro. Notemos a propósito, comMichael Theunissen, l

que ela é um argumento de peso contra ainterpretação muito comum da filosofia adorniana como uma filoso-fia pessimista. Theunissen fala até do otimismo da Dialética Negativa.O que gostaria de ressaltar é, no entanto, um outro aspecto. A figurada esperança em Adorno torna-se cada vez mais inerente ao própriomovimento do espirito. Poderíamos talvez dizer que ele escreve umaDialética Negativa (e, certamente, uma Teoria Estética) para escapar datentação da teologia negativa. Que ele o tivesse ou não conseguido,

Dera, jener Zwang ist selber der mythisehe Schein, die eriwungene Identitdt. Das Absolutejedoch, wit' es der Metaphysik vorschwebt, ware das Nichtidentische das en! hervortrate,nachdem der Identitdtszwangzergmg. Ohnetdentitatsthese ist Dial ektik nicht das Gauze; dannaber ouch keine Kardinalsiinde, sie in einem dialektischen Schdtt zu verlassen. Es liegt in derBestimmung negntiver Dialektik, dap sie sich nicht bei sich beruhigt, ais ware sie total; das istihre Gestalt vo,i Hoffnung."

10 Cf. Schnaedelbach, op. cit., pp. 67, 75-6.11 "Ueber den Btgriff durch den Begriff hinauszugehen", Negative Dialektik, p. 25.12 Op. cit., pp. 49-50.

00 CONCEITO 0E RAZÃO EM ADORNO : 121

isto é uma outra questão. Mas há, sem dúvida nenhuma, nessemovimento do pensamento através e além de si mesmo, um esforçonotável de reabilitação da metafísica, da filosofia, contra a sua redu-ção à racionalidade identificadora do positivismo ou do senso ditocomum. Partindo assim de uma crítica da razão do esclarecimento,como o vimos, Adorno chega a uma salvação do conceito de razão,entendido agora como o logos pleno, capaz de dizer também os seuslimites e, ao faze-1o, de indicar a sua auto-superação. Não há, portan-to, ã diferença de Heidegger, destruição da metafísica em Adorno, massim muito mais a sua Aufhebung, destruição e conservação ao mesmotempo. l3 Aufhebung certamente no sentido hegeliano, mas, contra afilosofia hegeliana do espírito absoluto, Aufhebung que não intencio-na nenhuma totalidade positiva; ao contrário — e é par isso que sechama negativa —, a dialética adorniana desiste do absoluto, isto é,no fundo, da própria possibilidade de uma totalidade realmenteverdadeira. "É da determinação da dialética negativa não tranqüili-zar-se em si mesma como se fosse total; esta é a sua figura deesperança."

É a sua figura de esperança, certamente, e é, também, podemosnos arriscar a dizer, a sua mais alta figura de autonegação e, nessesentido, a última despedida da razão ocidental ã bela idéia de totali-dade dialética. Talvez Adorno seja o último filósofo que ainda tentoupensar juntas totalidade e razão — só que, para salvar um conceito derazão verdadeira, viu-se obrigado a abrir mão de um conceito detotalidade verdadeira.

13 Cf. Theunissen, op. cit., p. 59.

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BIBLIOGRAFIA

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ASSOUN, P. L. e RAULET, G. Marxisme et Théorie Critique. Paris: Payot,1978.Volume HABERMAS, intr. e trad. de B. Freitag e S. P. Rouanet. São

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HABERMAS, J. Der philosophische Diskurs der Moderne. Frankfurt amMain: Suhrkamp, 1985.

WELLMER, A. Zur Dialektik von Moderne und Postmoderne, Vemunftk-ritik nach Adorno. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1985.

VII. O HINO, A BRISA E A TEMPESTADE:

DOS ANJOS EM WALTER BENJAMIN

A Michael e Eleni. E para Peter

Talvez sejam os anjos a figura mais conhecida de Walter Benjamin,este autor judeu, alemão, filólogo e filósofo, teólogo e marxista, quefoi, primeiro, desconhecido e que se tornou, de repente, quase famosodemais, por demais na moda. Assim, as numerosas comemoraçõesque marcaram, em 1992, o centenário de seu nascimento, trazem,várias vezes, como emblema o Angelus Novus, essa gravura de Kleeque Benjamin comprou em 1921 em Munique, que ele consideravacomo sendo uma das suas mais preciosas aquisições e que ele descre-veu de maneira lancinante em sua nona tese "Sobre o Conceito deHistória": por exemplo, a capa do livro de Stéphane Mosês, O Anjo daHistória, livro consagrado a Rosenzweig, Benjamin e Scholem (Seuil,1992) ou, do outro ‘ lado do Atlãntico, o grande cartaz impresso peloInstituto Goethe de Buenos Aires para seu Colóquio Internacional deoutubro de 1992 sobre Walter Benjamin. Se os anjos povoam, por-tanto, o pensamento de Benjamin, esse povoamento subverte, comotantas vezes em Benjamin, a idéia mesma de uma posição estável, deuma pátria definitivamente conquistada, de um enraizamento subs-tancial, seja ele de ordem teórica ou existencial. Por isso, qualquerestudo dessa figura, que tenderia a reconduzir suas aparições parado-xais a uma única função essencial, corre o risco de aprisionar, maisuma vez, Benjamin nesta alternativa que ele não quis resolver,durante sua vida inteira, e isso apesar da insistência dos seus nume-rosos (e opostos) amigos: qual seja,' essa alternativa, a de ser oautêntico e último testemunho da tradição mística judaica ou; então,o precursor de uma tradição marxista renovada. A análise das figurasangelicais benjaminianas não escapa sempre a essa dicotomia, seja com

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124: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMORIA E HISTÕRIA

Scholem brandindo o manuscrito autobiográfico póstumo AgesilausSantander 1

como se esse fosse o signo irrefutável da participaçãofundamental de seu amigo à tradição mística, mesmo cabalísticajudaica, signo, portanto, da superficialidade de seu interesse pelomarxismo; ou, pelo contrário, que a presença dos anjos em Benjamin,seja silenciada ou, então, taxada de simples metáfora — como se talsimplicidade pudesse existir! —das esperanças dos vencidos humilha-dos em sua luta pela liberação.

Gostaria de examinar aqui a presença dos anjos na obra deBenjamin, mais especificamente de examinar aquilo que essa presen-ça contém de evasão e de perda, aquilo que faz que ela não nospreencha nem nos liberte, mas nos escape, até nos ameace. Ao mesmotempo evasivos e insistentes, os anjos surgem nesses textos às vezesdiscretamente, incógnitos por assim dizer, às vezes mais claramente,da claridade do fogo purificador, para desaparecer tão de repentecomo apareceram — a tal ponto que, muitas vezes, o leitor quase nãoos percebe. Essas características estilísticas reproduzem, de maneiranotável, na própria estrutura dos textos, a temporalidade especificados anjos tal qual a descreve "o motivo talmúdico do vir a ser e doparecer dos anjos diante de Deus, a propósito de que um livrocabalístico diz que desaparecem como faísca sobre o carvão". 2 Essesanjos fulgurantes e efémeros que Benjamin conhecia graças às pes-quisas de Scholem são, sem dúvida alguma, os que mais marcaramseu pensamento; e isso com tal força que voltam em três textosdiferentes e distantes cronologicamente: no artigo de 1921 escritopara anunciar a publicação de uma revista — que nunca devia sair! —intitulada justamente, Angelus Novus, no grande ensaio crítico de1931 sobre Karl Kraus e, por fim, nos fragmentos autobiográficos deagosto de 1931 reunidos sob o nome de Agesilaus Santander. Dasconversas com seu amigo, Benjamin não retém tanto a imagem dosarcanjos mensageiros que transmitem a vontade divina ou a imagemdos querubins em chamas que guardam o domínio de Yahvé. Esses

1 Agesilaus Santander, publicado por Gershom Scholem primeiro no volume coletivo ZurAktalitdt Wafter Benjamins (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1972), pp. 94-102, cam oscomentários de Scholem intitulados: "Walter Benjamin und sein Engel", idem, pp.87-138. As duas versões do fragmento são retomadas na edição das obras completas( Gesammelteschriften, vol. VII, pp. 520-523). Como tantas vezes, o comentário de Scholemé muito instrutivo por suas referências precisas á tradição mística judaica, mas bastanteinsuportável no seu tom personalizante e antimarxista.

2 G. Scholem, idem, pp. 108.

0 NINO, A BRISA E A TEMPESTADE: DOS ANJOS EM WALTER BENJAMIN 125

anjos gloriosos e imponentes se apagam frente a outros que poderiamser chamados de "menores", que só vivem no instante de seu hinopara, em seguida, se desvanecer na noite. No texto pragmático darevista Angelus Novus, Benjamin os descreve da seguinte maneira:

Pois os anjos — novos a cada instante em inúmeras multidões —são, segundo uma lenda talmúdica, mesmo criados para, depoisde terem cantado seu hino na frente de Deus, cessar e desaparecerno nada. Que uma tal atualidade que é a única verdadeira, caibaà revista, é isso que seu nome deveria significar. 3

Eis um texto muito estranho para anunciar uma nova revista!Contra os protestos de perenidade, de essencialidade ou de profun-didade costumeiros nesses casos, Benjamin reivindica uma atualidadesimultaneamente resplandecente e frágil, o tempo de cantar um hinoe, em seguida, de se aniquilar. Nenhuma pretensão, portanto, nem àduração nem a esse conceito trivial de atualidade que, tantas vezes,serve de álibi aos professores desarmados para convencer seus alunosa estudar os velhos textos. Os anjos talmúdicos são mais o indicio deum outro tempo que o das comemorações; eles introduzem, nacronologia linear e morosa que costumamos chamar de história, umacesura imperceptível mas que transforma esse continuum histórico,tão ocupado a se perpetuar a si mesmo. Aqui intervém um dos temasessenciais da filosofia de Benjamin, do primeiro até o último de seusescritos, o tema da critica a uma "concepção do tempo homogêneo evazio"; deve-se interromper esse desenrolar tranqüilo, produto da sagadas classes dominantes e da inércia espiritual dos historiadores, para queuma outra história possa dizer-se, entrecortada, lacunar, feita de sobres-saltos e de espasmos que surgem no presente como a imagem breve ebrilhante de um instante perdido ou recalcado: a história dos vencidosque não é nenhuma nova gesta heróica e apologética, mas sim, umanarrativa recortada, descontínua, frágil e sempre ameaçada peloesquecimento.

A atualidade dos anjos talmúdicos está à altura de sua intensida-de, essa jubilação do hino cantado na frente do trono de Deus, e deseu aniquilamento consecutivo. Esses dois aspectos, o jubilat6rio e oaniquilador, são inseparáveis, ou melhor, é justamente a união de

3 W. Benjamin, "Ankündingung der Zeitschift Angelus Novus", Gs. 5chr. 11-1, p. 246.Tradução de Jeanne Marie Gagnebin.

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126 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM MEMÓRIA E HISTÓRIA

ambos que permite pensar, segundo Benjamin, o conceito de umaverdadeira atualidade: fulgurante, evanescente e destruidora. Os an-jos são aqui os portadores de uma destruição necessária, sua própria,certamente e, mais profundamente ainda, a destruição de um tempoque teria a pretensão de se perpetuar a si mesmo. Esse lado destruidorsem o qual não pode haver nem atualidade verdadeira nem, comoveremos, verdadeira redenção, fica mais realçado na passagem para-lela do ensaio sobre Karl Kraus. Aqui também, podemos notá-lo,trata-se de descrever a atividade de Kraus como editor de uma revistade nome abrasador e purificador: Die Fackel, a tocha. Essa "obraefêmera", nos diz Benjamin no fim de seu ensaio, já "começou adurar" graças à crítica corrosiva que seu autor empreende da imprensaburguesa. A atividade angelical de Kraus nasce de um empreendimen-to obstinado de destruição sempre recomeçada, pois sempre rapida-mente caduca, da linguagem tão segura de si mesma dos bem-pensantese dos bem-apessoados. A verdade da operação crítica surge desta uniãoradical entre destruição e salvação: ao arrancar as palavras e as obrasdo contexto lenitivo que, às vezes o próprio autor, e, quase sempre,a história literária tradicional se apressam em lhes emprestar, a críticaquebra sua unidade factícia e, simultaneamente, expõe sua força deestranheza e de subversão. Esse tema caro a Benjamin desde seusprimeiros escritos adquire, no ensaio sobre Kraus, a dimensão de umaluta do "humanismo real", irreverente e transformador, o humanis-mo de Karl Marx e de Karl Kraus, contra o "ideal clássico do huma-nismo" que devia engendrar a matança da Primeira Guerra e asrepressões sanguinárias que se seguiram. A figura do anjo intervémaí como o "mensageiro do humanismo real", mas sob os traços deum Unmensch, de um não-homem, do inumano, de uma "criaturanascida de uma criança e de um devorador de homens", "nenhumnovo homem", um "novo anjo", "talvez um deles que, segundo oTalmud, novos em cada instante e em multidões inúmeras, sãocriados para, deois de alçar sua voz diante de Deus, cessar e desapa-recer no nada." Os anjos talmúdicos se tornaram aqui anjos exter-minadores e purificadores, nada têm de suaves e sorridentes criaturasprotetoras, mas, para salvar aquilo que ainda resta da humanidadereal dos homens e não se reduz à fraseologia, assumem os traços deinumano, até do monstruoso.

4 W. Benjamin, "Karl Kraus", Gs. Schr. II-I, p. 367. Tradução de Jeanne Marie Gagnebin.

0 HINO, A BRISA E A TEMPESTADE: DOS ANJOS EM WALTER BENJAMIN 127

Essas características ao mesmo tempo ameaçadoras e redentorassão reencontradas no anjo das duas versões do fragmento autobiográ-fico intitulado Agesilaus Santander que Scholem publicou e comentouem 1972, numa coletânea de ensaios de diversos autores, por ocasiãodos oitenta anos do nascimento de Benjamin. Scholem chega a decifraro título enigmático desses textos como sendo o anagrama de AngelusSantanas. Nesses fragmentos bastante esotéricos que Benjamin, issodeve ser notado, não pensou em publicar durante sua vida, o AngelusNovus de Klee reaparece como um dos anjos talmúdicos, mas ele édescrito de maneira mais precisa, com suas "garras afiadas" e o "batercortante de uma faca" de suas asas. s Um novo tema intervém: o donome secreto que, segundo a tradição judaica, seu anjo poderia revelara cada homem; mas esse motivo é, por assim dizer, enviesado, comoque pervertido pela ação profundamente desestruturante que o anjoexerce aqui. Com efeito, ele não revela nenhum nome escondido emais verdadeiro, recusando assim ao seu protegido a descoberta de suaessência invisível. Talvez seja isso um castigo, pois Benjamin o teriaimpedido, ao se apoderar do quadro de Mee, de cantar seu hino e dedesaparecer. Deste modo o "bom anjo" originário se transforma, nessetexto, num anjo certamente próximo, mas igualmente imprevisível,malicioso, até ameaçador. O anjo cujo nome não tem mais nada de"semelhante ao homem" não anuncia mais a plenitude do nomeverdadeiro e secreto, mas se refugia nos intersticios da ausência e daseparação:

Mas o anjo parece com tudo aquilo de que tive que me separar:os homens e também os objetos. Nos objetos que não tenho mais,ele mora. Ele os torna transparentes e atrás de cada um apareceaquele a quem foram destinados. Por isso, ninguém pode mesuperar na arte de presentear. Sim, talvez fosse o anjo atraído poralguém que d3 presentes e vai embora de mãos vazias.

Como o observou Jürgen Ebach, 6 esse anjo canhestro e inquie-tante é a réplica, ao mesmo tempo fiel e invertida, do anjo com o

5 Oto aqui de preferencia a segunda versão do fragmento Agesilaus Santander, op. cit., pp.100-102. Tradução de Jeanne Marie Gagnebin.

6 Jurgen Ebach, "Agesilaus Santander und Benedix Schdniliess: Die venvandelten NamenWalter Benjamins" in Antike und Moderne. Zu Walter Benjamins 'Passager", reunidos eeditados por Norbert Bolz e Richard Faber (Kdnigshausen und Neumann, 1986), pp.150/51.

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128: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA

qual, segundo a tradição, lutou Jacó: não revela seu nome, não tema força de abençoar, anuncia o vazio, a separação e a ausência emvez do reencontro com o irmão e com a pátria. Jürgen Ebach ressaltaigualmente que a tradição dos anjos efêmeros que cantam seu hinodiante de Deus, que essa tradição tinha se constituido principalmen-te a partir dos comentários dessa passagem do Gênese, o que ressaltaainda mais as estranhas afinidades entre a história de Jacó e essetexto de Benjamin (que traz o nome do último dos filhos de Jacó!).O fato de Benjamin sofrer da perna e ter dificuldade de andar naépoca em que escreveu essas linhas pode ser um indício a maisdessa proximidade com Jacó, aquele que Deus/o Anjo não conseguiuvencer, mas que ele tornou coxo.

Os anjos de Benjamin parecem assim progressivamente atingidospor uma espécie de incapacidade ou de deformação, bem como asbizarras criaturas de Kafka, esses ajudantes e esses mensageiros quepoderiam, pois, ser anjos potenciais, mas que só conseguem incomo-dar aqueles que deveriam ajudar e que não transmitem mais nenhu-ma mensagem. Na sua carta a Scholem a respeito do livro Kafka deMarx Brod, Benjamin fala do "mundo tão claro (heiter) e atravessadopor anjos" de Kafka, "complemento preciso de sua época que se deupor tarefa suprimir em grandes massas os habitantes deste planeta".Ele acrescenta que esse mundo complementar, portanto essa espéciede anexo ao mesmo tempo secundário e preciso, torna Kafka parentede Klee, esse outro grande inventor de anjos deformados, deslocados,dos quais não se sabe sempre, como das criaturas de Kafka, se elesestão nascendo, se eles são jovens anjos — outra tradução possível deAngeli Novi — que aprendem a voar, como o parecem indicar os nomesque lhes deu o pintor, 7 ou se eles não seriam mais anjos abortados,quase disformes, incapazes de voar, de ajudar e de transmitir qualquermensagem divina. Mas são, no entanto, os únicos anjos que aindarestam, esses seres "inacabados e inábeis para quem a esperançaexiste",8 como o diz Benjamin das figuras de Kafka.

Chegamos aqui a um dos paradoxos essenciais desta pequenaangelologia benjaminiana. Como os ajudantes e os mensageiros de

7 Ver a esse respeito Peter von Haselberg, "Benjamins Engel", in Materia/en zu BenjaminsThesen "über den Begriff der Geschichte", textos reunidos e editados por Peter Bulthaup(Frankfut am Main: Suhrkamp, 1975), pp. 348 ss.

8 Walter Benjamin, "Franz Kafka", in Ges. Sc?,,. J!-2, p. 415. Tradução de Jeanne MarieGagnebin. A grande carta de Benjamin a Scholem sobre Kafka é da mesma época. Cf. W.Benjamin, Briefe (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1966), vol. II, pp. 756-765.

B HINO, A BRISA E A TEMPESTADE _ DOS ANJOS EM WALTER BENJAMIN : 129

Kafka que, sem dúvida, seriam os únicos a deter a solução, mas quesão, ao mesmo tempo, frágeis, ligeiramente ridículos, canhestros edeslocados, assim também os anjos de Benjamin se caracterizam maispor sua fraqueza, até sua impotência, que por seu poder. Eles nãoescapam ao "desencantamento do mundo" e, em particular, a essaespécie de anacronismo risível da teologia, "hoje pequena e feia e quenão ousa se deixar ver", como o diz tão bem Benjamin na sua primeiratese "Sobre o Conceito de História". São essas transformações dateologia, devemos observá-lo, absolutamente essenciais para enten-der seu papel no pensamento de Benjamin, que deveriam induzir àprudência qualquer interpretação predominantemente religiosa desua obra. Longe de serem gloriosos mensageiros ou testemunhasinequívocas da transcendência, os anjos não possuem mais o esplen-dor do sagrado, mas participam, eles também, das hesitações, dasdúvidas, dos desamparos do mundo profano. Se ficaram seres desa-jeitados e muitas vezes incapazes, eles continuam porém, ou talvezmesmo por isso, a ser anjos, porque é mais na incapacidade e nafraqueza antes que na força e na potência que poderia ainda se dar,segundo Benjamin, algo como uma relação ao divino.

Dois muito belos trechos da "Infância Berlinense", essa seqüênciade quadros ao mesmo tempo autobiográficos e coletivos, colocam emcena esses anjos desamparados e, no entanto, ativos: o Anjo da Mortee o Anjo de Natal. O Anjo da Morte aparece num texto inquietante,"Acidentes e Crimes", que descreve o menino em seus passeioscitadinos, à procura, sim, à espreita da desgraça: um acidente, umamorte, um roubo, um incêndio ou um afogamento, tudo na grandecidade parece prestes a acolher uma infelicidade que não ocorre ouque já sumiu quando a criança, ofegante, chega no local. Maisfundamentalmente que a sempre possível infelicidade, é sua preven-ção onipresente que torna a atmosfera da grande cidade tão sufocan-te: os carros-fortes com as janelas cheias de grades, os salva-vidas que,como um anel, "prometiam em casamento com a morte" cada umadas muitas pontes do rio, e, enfim, as persianas fechadas do grandehospital onde agonizavam os "doentes graves".

Ao ouvirem falar do Anjo da Morte, comenta Benjamin — queassinalou com o dedo as casas dos egípcios, onde os primogênitosdeveriam morrer, os judeus devem ter visualizado aquelas casascom tanto terror quanto eu aquelas ¡anelas fechadas. Mas será aue

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o Anjo da Morte cumpria realmente sua obra? Ou será que umbelo dia as persianas se abriam, e o doente grave assomava à janelacomo convalescente? Não se deveria o ter ajudado — ajudar amorte, o fogo ou apenas o granizo que tamborilava nos vidros daminha janela sem jamais quebra-la? 9

Nessa estranha descrição, mesmo o Anjo da Morte, o Anjo vinga-dor e justiceiro de Yahvé se revela um anjo sem letra maiúscula e semgrande eficácia, um anjo que deve nachhelfen, como diz o alemão,"ajudar depois" a fim de que sua obra não se perca a meio caminho,

mas possa se cumprir. O verdadeiro perigo que espreita o meninoburguês e protegido não é, portanto, como esse texto o faz percebertão bem, nem o acidente, nem o roubo, nem a ruina de seus pais,mas, sim, que nada vá realmente até seu cumprimento, nem a revoltados infelizes, nem mesmo o terror da morte, nem a perigosaplenitudeda vida. Como o diz muito bem Anna Stussi no seu belo comentárioà "Infancia Berlinense": "O desejo da morte e do fogo aniquiladoresé o desejo da vida plena que s6 se tomaria possível na quebra(Zertrtlmmerun

$

) dos limites impostos pelos vidros, pelas persianas epelas grades. i1 O que manifesta aqui a impotência do anjo, portanto,é, sem dúvida, a fraqueza da tradição teológica e de qualquer tradiçãototalizadora, pois é a própria tradição que "adoeceu"; mas, tambémse manifesta, no seio dessa mesma impotência, uma nova exigência,especificamente política, pois aqui são os homens que, paradoxal-mente, poderiam ajudar os anjos a acabar sua obra necessária epurificadora. Podemos mesmo ir mais longe na interpretação e dizerque a intervenção do anjo não se manifesta mais na sua eficáciasoberana, mas, sim, neste apelo, ao mesmo tempo imperceptível elancinante, a interromper o escoamento moroso da infelicidadecotidiana e a instaurar o perigoso transtorno da felicidade.

Esse apelo se transforma na voz de uma "presença estrangeira"no quadro da mesma "Infância Berlinense" intitulado "Um anjo deNatal". O texto inteiro está construido em cima da antítese, simulta-neamente bem conhecida e mantida escondida pelos adultos, entrea abundancia dos ricos e a miséria dos pobres; esse contraste, exacer-

9 W. Benjamin, "Infancia em Berlim por volta de 1900", em Obras Escolhidas, vol. II (SaoPaulo: Braslllense, 1987), p. 131 (tradução modificada).

10 Anna Stussi, Erinnentng an die Zukunft (Gdttlngen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1977), p.239. Tradução de Jeanne Marie Gagnebin.

0 HINO. A BRISA E A TEMPESTAOE: DOS ANJOS EM WALTER BENJAMIN : 131

bado pelos preparativos de Natal, encontra seu correspondente sen-sível na oposição entre o calor luminoso das velas e das árvores deNatal e a escuridão dos pátios internos onde os pobres vêm tocarrealejo para receber algum trocado. O menino se mantém no limiar(uma noção privilegiada no pensamento de Benjamin) entre essesdois mundos: ele espera pela hora dos presentes no seu quarto demenino mimado, mas ele não acendeu a luz e, nesse fim de tarde deinverno, seu olhar é atraído pelas janelas dos apartamentos maispobres que dão para o pátio. Essas janelas escuras ou somenteiluminadas pela triste luz do gás só fazem aumentar o brilho da árvoreque espera por ele na sala. Nesse intervalo entre a escuridão da misériae a luz das festividades acessíveis aos ricos passa, de repente, o soprode uma outra vida:

....parecia-me que essas janelas natalinas continham em si asolidão, a velhice e a indigência — tudo aquilo que os pobrescalam.Então de novo me veio à lembrança a distribuição de,presentespreparada por meus pais; porém, mal me desviara da janela como coração pesado, como só o faz a proximidade de uma alegriacerteira, senti uma presença estranha no quarto. Não era nadaalém de um vento, de modo que as palavras que se formaram emmeus lábios foram como as pregas que um velame inerte lançasubitamente à brisa fresca: "O Menino Deus volta todos os anos/Aterra onde vivemos nós, humanos": com tais palavras se volatili-zou também o anjo que nelas começara a tomar forma.

11

A "presença estrangeira/estranha" que só se manifesta um instan-te, o tempo de esboçar seu hino, faz surgir o pressentimento de umaoutra felicidade possível, outra que a felicidade, como o diz Benjamin,"certeira", assegurada pela posição social e pela previsibilidade daternura dos pais. Essa presença de um outro ausente não nega arealidade do dado, da segurança da riqueza e dos presentes, masintroduz o murchar passageiro dessa segurança, como a brisa que fazpregas nas velas de um barco segundo a bela imagem de Benjamin —para partir de verdade, o navio precisa de um outro ela, do elãconsciente do navegador que sabe aproveitar o vento favorável. Essa

11 "Infancia em Berlim...", idem pp. 121/22.

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1 32 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM MEMÓRIA E HISTÓRIA

"brisa fresca" não tem, portanto, nada da violência irresistível dofuracão, ela quase não se percebe e, já, não está mais. É a irmã desta"leve brisa" na qual Elias reconhece a presença de Yahvé, o Deus todo-poderoso que não se manifesta nem na tempestade nem no terremo-to, mas sim num sopro refrescante (Primeiro Livro dos Reis, cap. 14).Isso quer dizer também o quanto ela é renovadora, preciosa e,simultaneamente, frágil, como a volta anual do menino Jesus na Terraque corre o risco de passar desapercebida, paradoxalmente sufocadapela rotina das festividades. O menino que a pressentira sairá do seuquarto e se juntará ã festa; mas algo fica como um mal-estar emrelação a seus esplendores, como uma distância entre a criança, ávidade presentes, e si mesma, distancia oriunda da escuridão das janelasno pátio e da imperceptível presença de uma alteridade radical:

Chamaram-me para o aposento defronte, no qual a árvore entraráem sua glória, o que dela me alienou até que, desprovida de seusuporte, terminou a festa enterrada na neve ou reluzente sob a chuva,ld onde um realejo a tinha iniciado. 12

Esse mal-estar, essa distancia testemunha a passagem do anjo que,como seu irmão do fragmento Agesilaus Santander, desestrutura aidentidade bem estabelecida do sujeito e da história; mas essa deses-truturação se mostra aqui, de maneira mais clara, ser um desamparobenéfico pois faz entrever durante um instante, o tempo de um hinoou de três versos de um canto de Natal, que infelicidade e felicidadepoderiam ser radicalmente outras, que a primeira não é nenhumanecessidade nem a segunda uma segurança. O anjo de Natal é aencarnação breve e frágil desses encontros muitas vezes falhos, asvezes felizes, nos quais a história dos homens poderia, de repente,não seguir mais a inércia de seu curso, mas interromper-se, bifurcar,abrir um novo caminho. Nesse momento então, os sofrimentos dopassado não seriam, certamente, nem abolidos nem reconciliados,mas as esperanças malogradas seriam reconhecidas, nomeadas, reto-madas na fidelidade de uma memória ativa e inovadora. Essa concep-ção simultaneamente revolucionária e messiânica de uma restituiçãointegral da história — Benjamin cita a noção de apokatastais deOrigines — baseia a filosofia da história do último Benjamin e se

12 Idem, grifos meus.

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encontra já em germe em seus ensaios críticos de juventude, consa-grados a temas ou a aspectos da tradição cultural muitas vezesesquecidos, desconhecidos, até excêntricos e taxados de menores.Devemos porém notar, para não cair no erro de fazer de Benjamin odefensor de uma espécie de acumulação positivista e arquivista dainfinita história dos vencidos, devemos notar, então, que a salvaçãodo passado não é simplesmente sua conservação integral, mas, maisprofundamente, a interrupção do desenrolar incansável da cronolo-gia, isto é a redenção, a liberação, sim, a dissolução e o desenlace(Er-lõsung) dessa temporalidade infinita e infernal: só nesse momentopoderia se realizar a atualidade dos anjos talmúdicos na qual cadainstante ficaria tão pleno do seu próprio canto que poderia desvane-cer-se com alegria frente ao próximo.

Mas o último anjo de Benjamin, o mais conhecido sem dúvida,não é o de um tempo jubilatório e efêmero, mas, naturalmente, o danona tese "Sobre o Conceito de História"; se não falei dele até agora,é também para mostrar que ele não é único, mesmo que seja, semdúvida, o mais patético, mas que ele se inscreve numa linhagembastante complexa. Cito:

Existe um quadro de Klee intitulado Angelus Novus. Nele estarepresentado um anjo, que parece estar na iminência de afastar-sede algo em que crava seu olhar. Seus olhos estão arregalados, suaboca está aberta e suas asas estão estendidas. O Anjo da históriadeve parecer assim, Ele tem o seu rosto voltado para o passado.Onde diante de n6s aparece uma cadeia de acontecimentos, eleenxerga uma única catástrofe, que sem cessar amontoa escombrossobre escombros e os arremessa a seus pés. Ele bem gostaria dedemorar-se, acordar os mortos e juntar os destroços. Mas doparaíso sopra uma tempestade que se emaranha em suas asas e étão forte que o anjo não mais pode fechá-las. Esta tempestade oimpele irresistivelmente para o futuro, ao qual volta as costas,enquanto o amontoado de escombros diante dele cresce até o céu.O que nós chamamos de progresso é essa tempestade. 13

Reencontramos aqui numerosos elementos das aparições angeli-cais precedentes. Trata-se de novo do Angelus Novus de Klee, do qual

13 W. Benjamin, "Sobre o Conceito de História", tradução manuscrita de Jeanne MarieGagnebin e Marcos L. Müller (Gs. Schr. 1-2, pp. 697/8).

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134: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTORIA

não se sabe se ele alça realmente v6o; aqui ele é arrastado pelatempestade e suas asas não conseguem mais se dobrar e se desdobrar,no movimento harmonioso do v6o. Esse misto de estar imobilizadono mesmo lugar e de fugir adiante de si corresponde à sua expressãodesatinada, a seus "olhos arregalados" que não conseguem mais sefechar, como essa boca "aberta" da qual não parece sair nenhum som.Esse anjo ao mesmo tempo petrificado e jogado para a frente é aprópria figura da impotência angelical, e, em particular, da impotên-cia em "demorar-se, acordar os mortos e juntar os destroços", i.é,interromper o curso nefasto do tempo e emprender a obra salvadorada memória. Esse anjo é literalmente atrelado ao passado, não tantoporque seu rosto se dirige para ele —Jürgen Ebach mostrou bem queessa idéia de passado estendido diante dos olhos corresponde aohebraico bíblico (e)fánin, lifnè, o que se estende diante do olhar, i.é,o passado -, 14

mas porque não consegue parar, não pode virar acabeça e enxergar outra coisa. Em outros termos, é a exclusividadedessa crispação desesperada em relação ao passado que impede apossibilidade de sua retomada transformadora na cesura do presente.A bem dizer, como o observou Stéphane Mosès, não há mais aquipresente no sentido forte de possibilidade de mudança, de invenção,de suspensão e de subversão. Ora, essa impotência desvairada éproduzida, segundo a metáfora benjaminiana, por uma "tempestade"(Sturm) que "sopra" do "Paraíso" e cuja violência é irresistivel;tempestade que é signo da maldição divina em relação ao casaloriginário, Adão e Eva, banidos para fora do Jardim, em total oposi-ção, portanto, com a "brisa leve" do encontro entre Deus e Elias. Umpouco como se sobrasse apenas, neste último período tão sombrio davida de Benjamin que, é bom lembrá-lo, escreve as teses "Sobre oConceito de História" no exílio, sob o choque do pacto de agosto de1939 entre Hitler e Stálin, como se sobrasse, então, da tradição bíblicajudaica, apenas a imagem do Deus vingador, colérico e onipotenteque quer destruir o mundo pecador. O "pecado" sendo aqui não,miticamente, o pecado original que nos expulsa do Paraíso, mas, demaneira muito mais insidiosa, real e histórica, essa funesta acomoda-ção à maldição divina, essa transformação perversa da infelicidadeem necessidade graças, em particular, à ideologia do progresso que

14 Jurgen Ebach. "Der Blick des Engels", em Walter Benjamin: Profane Edeuchmng undrettendeKritik, textos reunidos e editados por Norbert Bolz e Richard Faber (Kdnigshausenmid Neumann, 1985), pp. 72/73.

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Benjamin combate sem folga nesse texto que também devia ser seuúltimo texto: "O que nós chamamos de progresso é essa tempestade",diz ele e deve-se ressaltar o "nós" em oposição ao olhar do anjo. Ditode maneira teológica, bastante herética talvez, é quando os homensse resignam à ira divina e cessam de lembrar a Deus sua bondade, dereivindicar seu petdão e, como Jacó, de Lutar com Ele até o raiar daaurora, é nesse momento que eles se perdem contra si mesmos e,igualmente, contra Deus. Dito de maneira política e profana, équando os homens se resignam ao curso inelutável da infelicidade,dele fazem uma necessidade supra-histórica que chamam, depois, donome ambíguo de progresso, é nesse momento que eles cessam depoder tomar em mãos sua história e de poder agir sobre o presente eno presente, que eles continuam fixados no passado e se abstem deinventar seu futuro.

Neste presente pervertido que só é continuação do idêntico,nenhum anjo mais consegue se abrir passagem. Pois, o que todosanjos de Benjamin, sem exceção, desejam profundamente, é a felici-dade; essa não é nem a volta a um paraíso de antes da história, nemtampouco a avidez devoradora da modernidade, sempre em busca denovidades. A felicidade é muito mais, segundo a fórmula do anjoAgesilaus Santander, "O confronto (Widerstreit) onde se opõem oestrecimento do único, do novo, do ainda não-vivido com a beatitudedo mais uma vez, do repossuir, do (já) vivido". 15 Essa bela (e profun-damente erótica) definição da felicidade se encontra igualmentenuma passagem do ensaio sobre Proust, na qual Benjamin fala de uma"figura hínica da felicidade", a do "inaudito" e "daquilo que nuncaexistiu", e de uma "figura elegíaca da felicidade", "a restauraçãoeterna da primeira felicidade original", acrescentando que a "vontadede felicidade" sempre é inseparavelmente dupla, que a felicidaderequer numa só vez o hino e a elegia. Tensão de um tempo simulta-neamente sempre novo e sempre retomado como o é a atualidadeangelical na qual cada anjo canta seu hino e deixa, sem rancor nemressentimento, seu lugar ao próximo anjo, juntamente semelhante ediferente.

Essa temporalidade feliz descreveria também, em oposição aotempo inelutável e infinito da necessidade, seja ele justificado ou nãopelas diversas formas de teodicéia, descreveria, então, o único sentido

15 Agesilaus Santander, op. cit., p. 102. Inspiro-me na tradução e nos comentários de StéphaneMosés, L'Ange de l'Histoire (Paris: Seuil, 1992).

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1 36 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM . MEMORIA E HISTORIA

verdadeiro e libertador que poderia ainda conter a noção de progres-so. Num fragmento do Livro das Passagens, com efeito (Passagen-Werk),reencontramos, graças à reflexão estética, esta união entre o "auten-ticamente novo" e a doce regularidade da volta, aqui a volta doamanhecer:

Há em toda obra de arte verdadeira um lugar em que aquele nelaimerso é como que acariciado pelo sopro de vento fresco queanuncia a chegada da manhã. Resulta daí que a arte, que foi muitasvezes considerada como refratária a qualquer relação com oprogresso, que a arte pode servir à sua autêntica definição. Oprogresso não habita a continuidade do decorrer temporal, masas suas interferências: ali onde algo verdadeiramente novo se fazsentir pela primeira vez com a sobriedade do amanhecer. 16

Nas "interferências", nas cesuras do continuo histórico, ali ondeo tempo pára e onde retomamos fôlego, ali também, de repente, sopraum vento fresco, aquele no qual o Deus bíblico gostava de semanifestar aos profetas, aquele que lembra aos homens a possibilida-de e a urgência da felicidade.

16 W. Benjamin,lassagen-Werk, em Gs. Sdv. V-1, p. 593. Trad. J.M.G

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I. BAUDELAIRE, BENJAMIN E O MODERNO

Aquilo que sabemos que, em breve,já não teremos diante de n6s toma-se imagem.

Walter Benjamin

Walter Benjamin escreveu vários ensaios sobre Baudelaire. Essestextos fazem parte do projeto mais amplo de uma reconstruçãohistórico-filosófica do século XIX, o famoso Passagen-Werk, que deviaser uma espécie de arqueologia da época moderna, vista através dadescrição privilegiada das "passagens" parisienses, essas galerias re-pletas de lojas que ligavam entre si alguns faubourgs da cidade. OPassagen-Werk ficou inacabado como o ficou também o livro deconjunto sobre Baudelaire, Charles Baudelaire, um Lírico no Auge doCapitalismo. ) Na edição critica alemã das obras de Benjamin forampublicados, de maneira independente, os seguintes textos: "A Parisdo Segundo Império em Baudelaire" (três capítulos: "A Boêmia", "OFlaneut", "A Modernidade") (vol. 1-1), "Sobre Alguns Temas emBaudelaire" (vol. 1-1), um conjunto de reflexões intitulado "ParqueCentral" (vol.1-1), várias anotações ligadas à redação desses ensaios(vol. 1-3), enfim, o Caderno "J" do Passagen-Werk, intitulado "Baude-laire" (vol. 5-1). A editora Brasiliense, no terceiro volume das ObrasEscolhidas de W. Benjamin, nos oferece agora, na tradução, infeliz-mente muitas vezes pouco precisa, de J. C. Barbosa e E. Alves Batista,os tres primeiros textos, já publicados em outras coletàneas 2 e doiscadernos do Passagen-Werk, inéditos em portugu@s, "O Flaneur"

1 "Charles Baudelaire, En Lyriker im Zeitalter des Hochkapltalismus", em Walter Benja-min, Gesammeit Schri ten, 1-2 (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1974). Citado, a partir deagora, como G. S.. Sobre a história da publicação, cf. G. S. 1-3, páginas 1.064 e seguintes.

2 Flávio R. Kothe traduziu "A Paris do Segundo Império em Baudelaire" e "Parque Central",em Walter Benjamin, Coleção Grandes Cientistas Sociais, n. 50 (São Paulo: Ativa, 1985);Edson A. Cabral e José B. de Oliveira Damlão, "Sobre Alguns Temas em Baudelaire", novolume dos Pensadores, editora Abril.

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140: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM , MEMÓRIA E HISTÓRIA

(cadernos "M") e "Jogo e Prostituição" (caderno "O " ), cuja escolhadeveria ter sido justificada, pois outros cadernos são muito maisimportantes (par exemplo o "N", "Erkenntnistnistheoretisches, Theoriedes Fortschriffts" ou o "J", "Baudelaire").

Vale a pena lembrar rapidamente a história conturbada da publi-cação dos ensaios benjaminianos sobre Baudelaire, pois ela testemu-nha, de maneira exemplar, as dificuldades de toda ordem, queBenjamin enfrentou nos seus últimos anos de vida. Essa históriatambém nos previne contra uma interpretação apressada e globali-zante que leria nesses textos uma teoria acabada da poesia modernae da grande cidade, enquanto são partes, importantes, sem dúvida,de uma obra maior que não chegou a se realizar. História que tambémdiz respeito às difíceis relações de Benjamin com o Instituto dePesquisa Social, do qual dependia financeiramente, em particularcom o amigo/discípulo/rival Adorno. Benjamin escreveu o primeiroensaio, "A Paris do Segundo Império", em fins de 1938 e o enviou àrevista do Instituto. Numa carta que devia tornar-se famosa (de 10 denovembro de 38), Adorno o criticou severamente, deplorando a suafalta de articulação teórica, em particular, de argumentação dialética.Em nome da redação, pediu um remanejamento profundo do texto.Benjamin atendeu rapidamente às exigências desse "parecer negati-vo", o que indica certamente mais uma urgência económica que umacordo com as criticas de Adorno quanto ao fundo. Fruto dessasegunda redação é o ensaio "Sobre Alguns Temas em Baudelaire",escrito entre fevereiro e julho de 39, que retoma principalmente osmateriais trabalhados no segundo capitulo da primeira versão ("OPlaneur") e lhes acrescenta elementos teóricos novos, ligados a umaexplicitação dos conceitos de choque, de memória e de tempo emBaudelaire. Durante o ano de vida que lhe sobrou, Benjamin nãochegou a reformular os primeiros e terceiros capítulos. A Revista dePesquisa Social aceitou esse manuscrito e o publicou no seu númerode janeiro de 40, o último, aliás, a sair na Europa antes da transferên-cia definitiva da revista para Nova York.

Devemos ressaltar que as categorias, tidas pelo próprio Benjamincomo imprescindíveis a uma interpretação inovadora da poesia bau-delairiana,3

as categorias de alegoria e de fetiche assim como a suainter-relação, não puderam ser explicitadas de maneira abrangente

3 Cf. a esse respeito W. Menninghaus, Walter Benjamins Theodedersprachmagie (Frankfurtam Main: 5uhrkamp, 1980), em particular páginas 134 e seguintes.

BAUBELAIRE. BENJAMIN E 0 MOOERNO : 141

por Benjamin (as anotações de "Parque Central" indicam várias pistasdessa reflexão interrompida). Ao ler Benjamin sobre Baudelaire deve-mos, portanto, nos contentar com os fragmentos de uma interpreta-ção e não esperar uma construção teórica acabada. Apesar disso, aleitura benjaminiana provocou mudanças consideráveis na com-preensão tradicional de Baudelaire, pois relaciona, de maneira con-vincente, a estrutura íntima dessa obra às novas condições deprodução da arte na modernidade. É justamente esse conceito-chavetanto para a poesia de Baudelaire como para a interpretação deBenjamin, esse tão falado conceito de "modernidade", que gostariade explicitar aqui. Proponho proceder em três passos principais:primeiro, apresentar uma breve história do conceito; segundo, umaanálise do texto programático de Baudelaire, "O Pintor da Vida

Moderna" 4 e, enfim, uma descrição sucinta da transformação e daampliação da categoria de modernidade em Benjamin. A referênciacritica básica desse artigo é o livro de H. R. Jauss, consagrado àconsciência da modernidade na literatura. 5 Jauss relata o surgimentodo conceito de modernidade, mostra o seu lugar central em Baude-laire e, num apêndice, critica a interpretação benjaminiana. Segundoo nosso crítico, Benjamin teria cometido vários erros de leitura,negligenciando as conotações positivas da modernidade em Baude-laire, em proveito de uma denúncia, de cunho materialista, da alie-nação da vida urbana contemporânea. Nesse artigo pretendo verificaras críticas de Jauss para tentar explicitar, em seguida, as razões dessarelativa infidelidade benjaminiana em relação a Baudelaire. A nossahipótese é a de que Benjamin elabora uma reflexão a fundo sobre amodernidade, deixando de lado uma simples determinação cronoló-gica para elucidar, a partir do exemplo privilegiado de Baudelaire, asligações essenciais entre escrita e consciência do tempo (e da morte):é essa relação específica que será decisiva para a definição benjami-niana da "modernidade".

Segundo Jauss, a palavra "modernidade" remete a uma oposiçãomuito antiga, já existente na Antigüidade, entre "antigo" e "moder-

4 "Le Peintre dela Vie Modem?, em Baudelaire, Oeuvres Completes, tradução de Suely Cassai

em A Modernidade de Baudelaire (São Paulo: Paz e Terra, 1988), páginas 159-212. Citadoa partir de agora como "0 Pintor...", na tradução mencionada, As vezes ligeiramentemodificada.

5 H. R. Jauss, Literaturgeschichte ais Provokation (Frankfurt am Main: 5uhrkamp, 1970),primeiro capítulo: "Literarische Tradition und Gegenwürtiges Bewusstsein der Modemitat",páginas 11-66.

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no". Essa oposição indica, inicialmente, uma relação meramentetemporal, moderno sendo sinónimo de "atual"; antigo, de "de outro-ra". O debate não discute o caráter inovador do moderno ou atrasadodo antigo, mas, muito mais, o caráter exemplar do passado para opresente. Os homens da Renascença, por exemplo, reivindicam umafiliação a partir dos verdadeiros antiquli, isto é, os gregos e romanos,cujo valor paradigmático é ressaltado em oposição à barbárie daobscura Idade Média. A famosa Querelle des Anciens et des Modernes,na tumultuada sessão da Academia Francesa de 27 de janeiro de 1687,tem por eixo essa questão do valor exemplar e eterno dos Anciens. OsModernes, agrupados em redor de Charles Perrault, propõem outrasnormas, oriundas da racionalidade cartesiana e da confiança noprogresso das ciências. Eles se dizem, aliás, os verdadeiros Anciens,pois representam, aos seus próprios olhos, o coroamento da humani-dade, cuja infancia seria a Antigüidade, enquanto a Renascençaconfiguraria a sua idade madura. Jauss observa que a Querelle, apesarde propor uma mudança de valores, continua se desenrolando nomesmo quadro lógico de uma definição do moderno pela sua relaçãoprivilegiada com o passado, ou pela negação dessa relação. Essa vaise deslocar paulatinamente em direção ao futuro, uma evolução,aliás, que já estava inscrita na consciência iluminista dos Modernes de1687. Os romances utópicos do século XVIII estão cada vez maispreocupados com a imagem que o amanhã possa ter do hoje. Aconsciência do presente está cada vez mais orientada pela concepçãode um progresso histórico em detrimento de um olhar retrospectivo.

Paralelamente a essa evolução, devemos mencionar, segundoJauss, a emergência de um outro sentimento, à primeira vista contra-ditório com o iluminismo, o romantismo. Ele surge (mesmo sem sernomeado) nos romances de Madame de Staël e de Chateaubriand eserá, mais tarde, objeto de discussões apaixonadas no Romantismoalemão. O sentimento romántico é caracterizado por uma novarelação do presente com a história e a natureza. Ambas são vivencia-das sob o signo nostálgico do "não mais". A história é o reino defuntoda infancia da humanidade; a natureza, o da sua inocência perdida.O presente é vivido como um afastamento doloroso dessa harmoniapassada. A beleza vai ser definida como a forma ideal dessa ausencia,dessa falha constitutiva (saudade essencial à compreensão da belezaem Baudelaire, como veremos). Assim, o passado não é mais vivido,como um antigo paradigmático e eterno, mas como aquilo que foi

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definitivamente perdido. A nostalgia romántica se opõe, sem dúvida,ao otimismo iluminista; mas ambos movimentos convergem emdireção a um afastamento progressivo da consciência do presente emrelação ao passado. Essa ligação se rompe definitivamente com aRevolução Francesa, a "Grande Revolução", que instaura a idéia deum novo radical na história. O presente, o atual, o "moderno" implicaagora esse sentimento de ruptura com o passado, ruptura valorizadapositivamente, pois pretende ser a promessa de uma melhora decisiva.

Ora, ao se tomar sinônimo de "novo", o conceito de "moderno"assume uma dimensão certamente essencial para a nossa compreen-são de "modernidade", mas, ao mesmo tempo, uma dinâmica internaque ameaça implodir a sua relação com o tempo. Com efeito, o novoestá, por definição, destinado a se transformar no seu contrário, nonão-novo, no obsoleto, e o moderno, conseqüentemente, designa umespaço de atualidade cada vez mais restrito. Em outras palavras, omoderno fica rapidamente antigo, a linha de demarcação entre osdois conceitos, outrora tão clara, está cada vez mais fluida. Ao sedefinir pela novidade, a modernidade adquire uma característica que,ao mesmo tempo, a constitui e a destrói. Talvez assistamos hoje, coma famosa temática da "pós-modernidade", ao resultado lógico desseprocesso de autodevoração, dessa interpretação fundante e dissolven-te do antigo pelo moderno, do moderno pelo antigo.

A teoria da modernidade em Baudelaire, tal como a desenvolveno seu famoso ensaio, "O Pintor da Vida Moderna" (1859), repousasobre esse caráter paradoxal do moderno. Baudelaire se opõe àconcepção acadêmica e tradicional do Belo como forma eterna eabsoluta, ironizando os turistas apressados que atravessam o Louvreem sua busca, parando religiosamente na frente dos quadros famosose obrigatórios, negligenciando os "menores". Contra essa idéia atem-poral do Belo, Baudelaire pretende desenvolver uma "teoria racionale histórica do belo" que dê conta do elemento temporal, histórico,fugitivo da beleza. Esse vela, mas, ao mesmo tempo, mostra e exprimeo eterno da Beleza que só pode se manifestar sob essa aparênciatransitória e fugaz. O exemplo privilegiado de Baudelaire é a moda,(categoria que tomar-se-à muito importante para Benjamin), que,longe de ser um fenômeno superficial, dá a ver, mostra a beleza emcada uma das suas configurações históricas. A importancia desseelemento temporal acarreta mudanças na escolha dos objetos dacriação artistica, como o exprimem os títulos dos capítulos do ensaio,

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consagrado às gravuras de Constantin Guys: "O Croqui de Costu-mes", "Os Anais da Guerra", "O Militar", "O Dandy", "As Mulheres eas Cortesãs", "As Carruagens". Essa lista diz muito bem a preocupaçãode Guys com o mais atual, o mais recente, o mais novo, numa palavra,o mais modemo. 6

O próprio artista não fica imune a essa transforma-ção. No seu capitulo central, "O Artista, Homem do Mundo, Homemdas Multidões e Criança", Baudelaire dá uma interpretação significa-tiva da recusa do seu amigo Guys de ser mencionado com o nomeinteiro e do seu pedido de aparecer no texto só através das iniciais C.G.. Esse desejo manifesta que Guys (G.!) recusa o estatuto tradicionalde artista, misto de originalidade incompreensível e de limitaçãovirtuosística ao ofício, e reivindica o anonimato e a universalidade de"Homem do Mundo". Esse se caracteriza pelo seu interesse semprerenovado pelo universal e pelo mundano, por tudo o que acontecefora do seu quarto, para onde só regressará, à noite, para transcreversuas impressões. Nesse contexto, Baudelaire cita o conto de Poe, "OHomem das Multidões", cujo herói, recém-saído de uma grave enfer-midade, está sentado à mesa de um café, olhando com interesse amultidão dos passantes. O espetáculo multicolor e sempre diferenteé avivado pelo sentimento da saúde recuperada, pelo gosto renovadopela vida que estava quase perdida. A chave do caráter de Guys, afirmaBaudelaire, é um estado de espirito próximo, uma espécie de conva-lescença perpétua:

Ora, a convalescença é como uma volta à infancia. O convales-cente goza, no mais alto grau, como a criança, da faculdade de seinteressar intensamente pelas coisas, mesmo por aquelas queaparentemente se mostram as mais triviais. (...) A criança vê tudocomo novidade; ela sempre está inebriada. Nada se parece tantocom o que chamamos inspiração quanto a alegria com que acriança absorve a forma e a cor. Ousaria ir mais longe: afirmo quea inspiração tem alguma relação com a congestão, e que todopensamento sublime é acompanhado de um estremecimentonervoso, mais ou menos intenso, que repercute até no cerebelo.O homem de gênio tem nervos sólidos; na criança, eles são fracos.Naquele, a razão ganhou um lugar considerável; nesta, a sensibi-

6 M. Berman, Tudo que é Sólido Desmancha no Ar (São Paulo: Companhia das Letras, 1989),esp. páginas 123 seguintes), nao parece ter percebido o sentido profundo desses assuntos,aparentemente superficiais, para a estética baudelairiana.

BAUDELAIRE. BENJAMIN E O MODERNO 1 45

lidade ocupa quase todo o seu ser. Mas o genio é somente ainfancia reencontrada pela vontade; a infancia agora dotada, paraexpressar-se, de órgãos viris e do espirito analítico que lhe permi-tem ordenar a soma de materiais involuntariamente acumulada. ?

Parágrafo exemplar das convicções estéticas de Baudelaire: averdadeira arte é uma busca incessante do "novo" (palavra sempreressaltada pelo autor). Mas esse não é nenhuma substancia como seexistissem coisas novas a serem procuradas: encontradas, elas játomar-se-iam antigas. O novo é uma certa qualidade do olhar, própriado artista, do convalescente e da criança, olhar ao mesmo tempoprivilegiado e profundamente antinatural, sim, anormal, quase doen-te (cf. as comparações com a ebriedade e com a congestão). A criançatem esse dom de maneira natural, mas não tem os meios da razão quepossibilitam a sua expressão. Ao se tomar um adulto, ela adquire arazão e, geralmente, perde a intensidade da visão, não consegue entãover o novo porque perdeu a capacidade de encontrá-lo. Assim, só umretomo organizado à infancia permite a conjunção da curiosidade,da intensidade (próprias da criança) e da organização voluntária eracional (própria do adulto) que geram a expressão artística. O artistaluta para manter essa união; a poesia de Baudelaire está atravessadapela tensão dessa busca voluntária, organizada, da novidade e daembriaguez, luta contraditória e esgotante contra o aborrecimento("L'Ennui" com E maiúsculo das Flores do Mal), contra os perigos doacostumar-se e do acomodar-se (haverá, com outros meios, uma lutaidêntica em Proust e nos Surrealistas).

Se o novo depende muito mais da intensidade do olhar que dapretensa novidade das coisas observadas, isso significa que o observadordeve transformar-se sem parar: uma identidade estanque impediria aflexibilidade necessária a uma constante renovação da percepção. Oartista moderno é "homem do mundo" e "homem das multidões" tam-bém no sentido profundo de uma dissolução da particularidade nauniversalidade alheia. Esse processo explica a relação privilegiada de C.G. com a multidão que Baudelaire compara a um "imenso reservatóriode eletricidade" do qual, por assim dizer, o artista tiraria a sua energia ea sua força. É uma relação prazerosa, "imenso júbilo (de) eleger domi-cilio no numeroso, no movimento, no fugidio e no infinito", 8 que

7 "0 Pintor... t op. cit. , páginas 168/69.8 Idem, página 170.

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nasce de duas causas principais: na multidão, o artista encontra-seescondido, disfarçado como o príncipe que passeia sob os trapos deum mendigo no seu reino e, como "incógnito", pode ver a verdade;da mesma maneira, os seus contemporâneos não percebem o artistaque observa as suas grandezas e as suas burrices, ao vaguear pelas mas.O prazer do disfarce é realçado por aquele da dissolução da própriaidentidade em proveito da multiplicidade alheia:

Pode-se igualmente compará-lo a um espelho tão imenso quantoessa multidão; a um caleidoscópio dotado de consciência, que, a cadaum de seus movimentos, representa a vida múltipla e o encantocambiante de todos os elementos da vida. É um eu insaciável pelonão-eu, que a cada instante o revela e o exprime em imagens maisvivas do que a própria vida, sempre instável e fugidia. 9

Essa notáveis metáforas indicam que a característica do artista éuma plasticidade generalizada e não mais uma função bem definidae unívoca, da mesma maneira como a idéia de um Belo absolutocedeu lugar a uma beleza múltipla. Baudelaire ressalta nesse texto olado prazeroso dessa dissolução; em outros textos, os seus aspectosperigosos e ameaçadores também são evocados (nos poemas sobre amiséria do poeta, por exemplo). Segundo Benjamin, o próprio Bau-delaire encarnava essa desagregação da identidade: ao pintar o seuretrato, Courbet ter-se-ia queixado de que Baudelaire nunca pareciao mesmo.

Agora, esse "eu insaciável pelo não-eu" não anseia só pela absor-ção da vida alheia (como o faria qualquer flaveur que soubesse olhar),mas pela sua "reprodução". A ênfase de Baudelaire muda de tom. Sea idéia do Belo, se a identidade do poeta, se a própria vida não temmais uma definição fixa, essa fluidez não atinge o produto da criaçãoartística. Pelo contrário, a obra se ergue como aquilo que dura eperdura em oposição ao transitório e ao fugidio, sendo, por isso, maisviva que a vida. Embora sejam mercadorias como todos os outrosprodutos na sociedade capitalista, os poemas continuam, para Bau-delaire, a ser também, pela sua perfeição, signos da eternidade. Ooficio do escritor é de criar esse antídoto precioso contra a fugacidadeda vida e a voracidade do tempo. Essa convicção (que será também

9 Idem, página 171.

BAUD ELAIRE, BE NJAMiN E B MODERNO 1 47

a de Proust) explica por que vários comentadores puderam ler aobra de Baudelaire como um manifesto da arte pela arte — ainterpretação de Benjamin tem o grande mérito de relativizar essaleitura, indicando as razões sociais dessa separação entre arte e vida.

10

A descrição baudelairiana do trabalho do pintor ficou famosa. C. G.é o último a voltar para casa e, enquanto todos dormem, se põe à obranessa "fantástica esgrima" cujos traços heróicos foram tão bemressaltados por Benjamin. É uma luta contra o tempo, ou melhor,contra o esquecimento, que explica a energia sombria com a qual C.G. pinta "como se temesse que as imagens lhe escapassem, belicosomas sozinho e debatendo-se consigo mesmo " .

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Nas suas noitesestudiosas, ele recria a realidade diurna que só adquire vida e formaatravés do seu trabalho: "e as coisas renascem no papel, naturais emais que naturais, belas e mais que belas...." 12 Essas coisas "naturaise mais que naturais" chamam a atenção. A arte consegue criar umanatureza mais verdadeira que a própria natureza, que não oferece,segundo Baudelaire, nenhum critério de verdade. Pelo contrário,num anti-rousseauismo veemente, Baudelaire afirma que a naturezaé má, ligada que está ao pecado original, ao vício e à violência. Asconseqüências estéticas de tal posição são claras. Contra uma concep-ção mimética que ordena à arte imitar a natureza, Baudelaire defendeuma arte "mnemônica" (capítulo 5 desse ensaio) que passa pelamediação da memória e da imaginação. C. G. não passeia pela cidadepara copiar o real mas para armazenar uma série de impressões que,mais tarde, na solidão da criação, serão transformadas em imagens.Ele não pinta segundo a natureza mas, segundo a memória, que,segundo Baudelaire, permitir-lhe-á captar a síntese, a totalidade, aessência, em vez de ficar preso ao aleatório. É sempre a mesma lutacontra o tempo que não pode ser detido na realidade concreta, sempreef@mera, mas só pela força da memória, essa "memória ressurreicio-nista, evocadora, uma memória que diz a cada coisa: 'Lázaro, levan-te-te"' 13 Ou ainda, em outras palavras: o real precisa ter morrido parapoder ressuscitar na memória, adquirir uma outra vida que o salve doesquecimento (Proust também falará das "ressurreições da memória")

10 Cf. Jauss, op. cit., páginas 58/59.11 "O Pintor...", op. cit., página 173.12 Idem.13 Idem, página 180.

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Recusa da natureza enquanto critério de verdade e transfiguraçãodo real pela memória e pela imaginação, essas bases da estéticabaudelairiana impõem à arte uma tarefa extenuante: a de corrigir anatureza. O "Elogio da Maquilagem", penúltimo capitulo do nossoensaio, pode ser lido com um elogio disfarçado, "maquilado", da arte.Maquilagem e arte não devem sublinhar as belezas naturais, mas criarum "outro" ser, ideal e espiritual. É esse esforço permanente de"reformulação da natureza" que a "moda", sob sua aparente super-ficialidade, encarna, e que a "modernidade", como expressão cam-biante do entrosamento do efêmero e do eterno na beleza, manifesta.Habermas, que lê Baudelaire através dos óculos de Benjamin,

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afirma que a modernidade baudelairiana não remete à trivialidadeda(s) novidade(s), mas sim a um conceito pleno de atualidade com"recorte do tempo e da eternidade", indicando assim que é essaconsciência aguda da transitoriedade e da eternidade da obra que adefine como pertencente à modernidade.

Ao citar a definição da modernidade do "Pintor da Vida Moderna",a "modernidade é o transitório, o ef@mero, o contingente, é a metade daarte, sendo a outra metade o eterno e o imutável", Benjamin conclui demaneira depreciativa: "Não se pode dizer que isso vá fundo na questão."

15

Jauss observa o tom peremptório dessa crltica 16 e afirma que Benjaminnão captou o sentido fundamentalmente positivo de "modernidade" emBaudelaire por duas razões: ele não entende a dialética entre antigo emoderno, em particular o fato de que "antigo" não remete mais, emBaudelaire, ao paradigma da Antigüidade mas, sim, ao par obsoleto-novo;por isso Benjamin criticaria a ausência em Baudelaire de uma confron-tação teórica mais apurada com a arte da Antigüidade, enquanto talausencia é devida a uma mudança de paradigmas teóricos, segundoJauss. Nas suas análises, Benjamin sublinharia o apego de Baudelairea uma imagem idealizada de natureza e sua aversão pela grande cidade,insistindo na crueldade da modernidade sem perceber os traços posi-tivos desse conceito em Baudelaire. Curiosamente, Jauss deduz essesmal-entendidos da postura marxista de Benjamin, que queria ler a obrade Baudelaire como uma denúncia do capitalismo e não como umadescrição positiva da emergência da modernidade.

14 J. Habermas, Der Philosophische Diskurs der Moderne (Frankfurt am Main: Suhrkamp,1985), esp. páginas 17 e seguintes.

15 Walter Benjamin, Obras Escolhidas (Sao Paulo: Brasiliense, 1989), vol. 3, página 81.16 Jauss, op. cit., página 59.

BAUDELAIRE, BENJAMIN E 0 MODERNO 1 49

Ora, se podemos concordar com a justeza de várias das observa-ções de Jauss, não precisamos aceitar o seu balanço final. A nossahipótese é muito mais que Benjamin descobre "em" Baudelaire umamodernidade que não coincide com a modernidade "segundo" Bau-delaire, notadamente com as descrições entusiastas do "Pintor daVida Moderna". Nas Flores do Mal e no Spleen de Paris o heroísmo de

C. Guys é substituído pela alternativa dilacerante entre conquista dobelo e do novo e o triunfo do Aborrecimento, do tempo que tudoderrota e devora. Baudelaire não seria, então, o primeiro poetamoderno por ter tematizado a modernidade, mas porque a sua obrainteira remete à questão da possibilidade ou da impossibilidade dapoesia lírica em nossa época. Essa questão é parte integrante daspreocupações teóricas de Benjamin, a partir do fim dos anos vinte, arespeito das mutações sofridas pela produção estética nos séculos XIXe XX. Os principais conceitos dessa reflexão orientam as análises dapoesia de Baudelaire: a experiência (Erfahrung) na sua oposição à

experiência vivida (Erlebnis), a memória (Geddchtnis), o lembrar

(erinnern), a rememoração (Eingedenken), a harmonia do símbolo e adiscrepáncia da alegoria, enfim, o valor de culto da arte tradicional ea perda da aura na arte moderna.

Com apoio nos comentários muito esclarecedores de W. Menning-haus, 17 podemos afirmar que, para Benjamin, a característica da literaturada modernidade consiste na sua relação privilegiada com o tempo, ouantes, com a temporalidade e com a morte. Nesse sentido a modernidadese relaciona com a Antigüidade, não porque dependeria dela coma deum modelo, mas porque a Antigüidade revela uma propriedade co-mum a ambas, a sua Gebrechlichkeit (fragilidade). É porque o antigonos aparece como ruína que o aproximamos do moderno, igualmentefadado à destruição. Benjamin não insiste tanto na recusa da grandecidade por Baudelaire, mas muito mais no fato de que a sua poesiaurbana é uma poesia da transitoriedade e da fragilidade. É porque ospoemas de Baudelaire dizem a cidade na sua destrutibilidade que,paradoxalmente, eles perduram, ao contrário da poesia triunfalista deum Verhaeren, por exemplo, que via na cidade moderna o apogeu doprogresso humano: "Seu conceito da caducidade da grande metrópoleestá na origem da perenidade dos poemas que escreveu sobre Paris."

18

17 W. Menninghaus, op. cit., esp. Minas 134 e seguintes.18 A Paris do Segundo Império em Baudelaire, tradução de R. F. Kothe, op. cit., pagina 107. A

tradução no vol. 3 da Brasiliense não está exata.

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150 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM , MEMÓRIA E HISTÓRIA

O caráter histólico e efêmero da beleza, que Baudelaire interpretavano "Pintor da Vida Moderna" de maneira positiva como expressão dosempre-novo, revela-se aqui na sua negatividade, como ameaça constan-te de desaparecimento, como a ligação essencial ao tempo e à morte.Esse sentimento agudo da transitoriedade já caracterizava várias épocasdo passado, em particular a idade barroca cara a Benjamin; mas essaconsciência opunha então a eternidade divina à fugacidade humana,num horizonte teológico ainda estável. O que é próprio da modernidadeé o desmoronamento desse horizonte e, conseqüentemente, a falta deum pólo duradouro que servia, outrora, de razão e de consolo doefêmero. A cidade moderna não é um lugar de passagem em oposição àperenidade da Cidade de Deus mas, na sua mais profana e materialnatureza, o palco isolado de transformações incessantes que revelamsua fragilidade: "A forma de uma cidade/Muda mais rápido — ài demim! — que o coração de um mortal." 19

Esse verso do poema "OCisne", várias vezes citado por Benjamin, retoma e transforma oclássico motivo da inconstância humana; perto das mudanças acele-radas da cidade moderna, até o coração humano aparece como estável(essa aceleração também explica, em outros textos de Benjamin, ofim da narração tradicional).

No mesmo ano em que Baudelaire escreve "O Pintor da VidaModerna", o prefeito Haussmann começa os seus trabalhos de "reurba-nização" de Paris, revelando os bolsões de miséria que o velho centroescondia, destruindo quarteirões inteiros e abrindo novas elas, cavandoe erguendo, criando essa paisagem urbana tão característica (e tão.familiaraos habitantes das grandes cidades brasileiras de hoje!), onde minas eobras se confundem. Haussmann realiza materialmente a aproximaçãodo antigo e do moderno pela manifestação da caducidade do presente:às minas do passado correspondem as de hoje; a morte não habita só ospalácios de ontem, mas já se apoderou dos edificios que estamos cons-truindo. É esta convergência do passado e do presente na forma do seufuturo comum, a morte, que caracteriza a consciência temporal damodernidade. O sempre-novo revela-se na sua obsolescência essencial, nobrilho da vida fulgura a chama da destruição. Benjamin tenta mostrar queessa apreensão da temporalidade está inseparável da produção capitalista,notadamente do seccionamento do tempo no trabalho industrial e do

19 Tradução de Kothe, op. cit., página 106. A tradução de I. Junqueira, citada no vol. 3, daBrasiliense, página 81, está errada: "De uma cidade a história/ Depressa muda mais queum coração infiel."

BAUOELAIRE, BENJAMIN E 0 MODERNO : 1 51

caráter fetiche da mercadoria, "novidade" sempre prestes a se tomar sucata.Sem dúvida, Adorno teve boas razões de criticar a falta de rigor dialético dessashipóteses; deixou, porém, escapar o que era realmente o achado dialético deBenjamin, isto é, a explicação "materialista" da ressurgência, na modema obrade Baudelaire, de uma antiga figura retórica, a alegoria. Em estreita analogia comsuas análises do drama barroco, Benjamin lê a alegoria baudelairiana como ofito da desvalorização dos objetos transformados em mercadorias: "A des-valorização especifica do mundo dos objetos, tal que se apresenta na merca-doria, é o fundamento da intenção alegórica em Baudelaire." 20 Essadesvalorização se intensifica pelo processo de corrosão do tempo quecaracteriza a consciência da modernidade. Duplo desgaste que o mesmopoema, "O Cisne", tematiza, ao celebrar a grandeza e a caducidade de Paris:

Paris change! Mais rien dans ma mélancolieN'a bougé! Palais neufs, échafaudages, blocs,Vieux faubourgs, tout pour moi devient allégorie,Et mes chers souvenirs sontplus lourds que des rocs.

Paris muda! Mas nada na minha melancoliaMudou! Novos palácios, andaimes, blocosAntigas alamedas, tudo para mim se torna alegoriaE minhas caras lembranças são mais pesadas que rochedos.

21

À inconstancia da cidade Baudelaire opõe —como o poeta barroco— a continuidade da sua melancolia, à falta de solidez dos edifícios,o peso de pedra das suas lembranças. Souvenirs e Mélancolie, duaspalavras essenciais para entender, segundo Benjamin, a tentativabaudelairiana de opor à temporalidade moderna um outro tempo,luminoso e espesso como mel, o tempo de urna harmonia ancestral,de uma vie antérieure (uma "vida anterior", titulo de um dos maisbelos poemas das Flores do Mal). No capitulo 10 de Alguns Temas em

Baudelaire, Benjamin consegue desvendar a "arquitetura secreta" dasFlores do Mal graças à oposição central entre o tempo devorador evazio da modernidade e o tempo pleno e resplandecente de umlembrar imemorial.

22Oposição que Benjamin explicita nas catego-

rias-chaves da sua própria filosofia: ao tempo pleno da vie antérieure

20 W. Benjamin, Ges. Sch. 1-3, página 1151. Cf. Meninghaus, op. cit., páginas 150 e seguintes.21 Baudelaire, Les Fleurs du Mal, op. cit., página 82, tradução de J. M. G.22 Cf. Menninghaus, id.

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correspondem a experiência no sentido enfático do termo (Erfahrung),o símbolo na sua harmonia e o valor de culto da arte; ao tempo vazioda modernidade, a experiência vivida individual e isolada (Erlebnis), adispersão do sentido na alegoria e a desauratização da arte. Benjamindescobre essa tensão já no titulo do primeiro livro das Flores do Mal,"Spleen e Ideal". O Ideal (palavra tão antiga como a filosofia!) remetea uma harmonia perdida que o dizer poético tenta lembrar, harmoniada linguagem da natureza e da linguagem humana, dos sentidos entresi, do espirito e da sensualidade como o canta o famoso poema das"Correspondências". Nessa paisagem ideal que descreve a saudade deuma fusão anterior a qualquer separação, o tempo não escoa mais,mas se imobiliza no ritmo regular das ondas marítimas, imagemprivilegiada da felicidade em Baudelaire. Mas existe um outro tempo,o do Spleen (palavra bem moderna, um anglicismo!), o tempo inimigo("L'Ennemi") que devora cada vida, cada momento de felicidade,cada visão da beleza e, por isso, destrói o próprio poeta:

— O douleur, 6 douleur! Le Temps mange la vie,Et l'obscur Ennemi qui nous ronge le coeurDu sang que nous perdons croît et se fortifie!

23

— Ó dor, 6 dor! O Tempo destrói a vida,E o inimigo obscuro que nos rói o coraçãoDo sangue que perdemos cresce e se fortifica!

Na interpretação de Benjamin, esse tempo não remete somente àantiga meditação sobre a vaidade da vida humana e a fugacidade dosprazeres; ele também indica a alienação do trabalho no capitalismo,submetido ao tempo abstrato, inumano e insaciável dos relógios (e doscronómetros). No lazer, o mesmo ritmo recortado impera na figura dojogador, a que Baudelaire dedica vários poemas. O último poema de"Spleen e Ideal", "L'Horloge" ("O Relógio"), conclui o ciclo pela adver-tência dessa destruição inelutável, dessa devoração eficaz e cruel quegangrena a própria beleza.

Podemos observar que uma alternância temporal semelhante guiaráa busca de Proust e a interrogação de Benjamin a respeito do verdadeirotempo histórico. Benjamin detecta a origem da poesia baudelairiana

23 Les Fleurs du Mal, op. cit., página 16, tradução J. M. G.

BAUOELAIRE, BENJAMIN E 0 MODERNO 153

nessa luta, perdida de antemão, contra o tempo devastador. Baudelairenão escreve só para contar um passado desaparecido, mas, muito mais,para opor à destruição a frágil perenidade do poema; a escrita descreveo trabalho do tempo e da morte, mas, ao dizê-lo, luta contra ele.Benjamin cita nesse contexto uma anedota sobre o escritor Maximedu Camp, já no limiar da velhice; seus olhos diminuidos tiveram avisão súbita da futura Paris, em ruinas; decidiu, então, escrever o livroque a Antigüidade não nos legou, a descrição de uma cidade viva, masdestinada à morte. Essa inspiração, comenta Benjamin, também orien-ta a idéia baudelairiana de "modernidade". Ela tira a sua força dodesejo de descrever não só o que dura, mas sobre tudo o que, desdejá, pertence à morte. Encontramos o mesmo gesto em Proust, que sócomeçará a evocar os vultos da sua juventude depois de tê-los reco-nhecido sob as máscaras da dança dos mortos, no famoso episódio dobaile na casa do Príncipe de Guermantes. Em suas obras, Baudelaire e

Proust dizem a morte d obra, estabelecendo, entre escrita e morte, essarelação de luta e de conivência que caracteriza a literatura moderna.

No último e belíssimo poema das Flores do Mal, "Le Voyage" ("A

Viagem"), que resume todas as andanças do poeta, é a morte que seráencarregada de cuidar desse objeto do desejo moderno, do novo:

O Mort, vieux capitaine, il est temps! levons l'ancre!Ce pays nous ennuie, 6 Mort! Apareillons!,(...)Nous voulons, tant ce feu nous bride le cerveau,Plonger au fond du gouffre, Enfer ou Ciel, qu'importe?Au fond de l'Inconnu pour trouver du nouveau!

Ó Morte, velho capitão, é tempo! levantemos ancora!Este pais nos aborrece, 6 Morte! Aparelhemos!

Queremos, pois este fogo nos queima tanto o cérebro,Mergulhar no fundo do abismo, Inferno ou Céu, pouco importa!No fundo do Desconhecido para achar o novol

24

A grandeza e a modernidade de Baudelaire não provém portanto,segundo Benjamin, somente das suas descrições, em versos inesque-

24 Idem, pagina 127, tradução J. M. G.

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1 54: SETE AI)lAS SOBRE LINGUAGEM , MEMÓRIA E HISTÓRIA

cíveis, da felicidade imemorial, ou dos seus ensaios que proclamama busca do sempre novo:

As Flores do Mal não seriam, porém, o que são, fossem regidasapenas por esse éxito. O que as torna inconfundíveis é, antes, ofato de terem extraído à ineficácia do mesmo lenitivo ((melhor:do mesmo consolo)), à insuficiência ((melhor: falha)) do mesmoardor, ao fracasso da mesma obra — poemas que nada ficamdevendo àqueles em que as correspondances celebram suas festas. 2$

Baudelaire não é nem um poeta kitsch romântico, que ficariapreso à nostalgia do passado, nem um poeta triunfalista modernoso,que limitar-se-ia à apologia do existente. A sua verdadeira moderni-dade consiste em ousar afirmar, ao mesmo tempo e cam a mesmaintensidade, a força e a fragilidade da lembrança, o desejo de volta ea impossibilidade do retomo, o vigor do presente e a sua mortepróxima. Se essa tensão define, na leitura benjaminiana, a moderni-dade de Baudelaire, talvez possamos afirmar que ela também descre-ve, na nossa interpretação, a modernidade de Benjamin.

II. O CAMPONÊS DE PARIS:UMA TOPOGRAFIA ESPIRITUAL

Não se encontrar numa cidade não significa muito.Mas se perder numa cidade como alguém se perde

numa floresta requer instrução.Walter Benjamin s

No seu belo livro sobre a relação de Walter Benjamin com o Surrea-

lismo,2 o pesquisador alemão Josef Fürnkãs observa que se pode ler

o Camponês de Paris, em particular o famoso "Prefácio a umaMitologia Moderna", como uma paródia de meditação cartesiana.Textos fundantes do pensamento francês até hoje, as Meditações e

o Discurso do Método de Descartes encontram nessa homenagem aParis, capital da douce — e racionalista — França, seu apogeuirônico, aniquilador e simultaneamente glorificador pois, parasolapar a bela prosa clássica e austera de Descartes, Aragon precisasoltar as rédeas da língua francesa até o limite do incompreensível,como o observou a tradutora. O resultado dessa operação provocativae jubilatória é este texto labiríntico sobre o labirinto da cidade e sobreo labirinto do pensar.

Ainda hoje pode-se entrar em Paris por várias portas cujos nomes

remetem à cidade de origem: Porte d'Orléans, Porte de la Vilette, Portede Versailles etc. O primeiro olhar sobre a capital fica como queentremesclado à perspectiva da cidade de origem, antes que ambosse juntem na única imagem, insular e luminosa do coração de Paris.Assim também podemos entrar num texto e, em particular, nestelivro-cidade emblemático do Surrealismo, 3 por várias portas. Entre-

mos pela Porta Descartes. Tomemos a avenida clássica do monólogo

25 W. Benjamin, Obras Esc

1 "Infância em Berlim porvolta de 1900", Tiergarten, em: Obras Escolhidas, vol.11 (Sao Paulo:

Brasiliense, 1987), trad. modificada.2 Josef Fürnkas, surrealisnius als Erkenntnis. Walter Benjamin-Weimarer Einbahnstrasse und

Pariser Passagen (Stuttgart: J. B. Metzler, 1988), pp. 51 ss.lhidas vol.3, op. cit., página 134. 3 Ao lado de Nadja, de André Breton, publicado dois anos mais tarde.

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156 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM MEMÓRIA E HISTÓRIA

interior, desse "'eu" pensante cuja imediatez leva ao critério daevidência e da clareza para julgar a verdade do real. Mas aqui, já, umacurva perigosa se anuncia: como, pois, decidir que a evidência écritério de verdade, se também nossos erros nos oferecem o mesmosentimento: "Não haveria erro sem o próprio sentimento da evidên-cia. Sem esse, ninguém jamais se deteria no erro" (p. 38). 4

No quarto fechado, o eu cartesiano se recolhia na interioridade dadúvida radical e da auto-reflexão para escapar ao engano. O eu doCamponês de Paris deambula nas Passagens pouco iluminadas e sedesfaz nas semelhanças entre as certezas do erro e as erranças da certeza.Com efeito, não se trata mais de não ser enganado — esse medo constantede Descartes —, s mas sim de aproveitar o(s) erro(s), a(s) erráncia(s), o errarsob todas as suas formas para poder fugir da prisão da identidade, da razão,do cotidiano e do aborrecimento; busca de Baudelaire e de Rimbaudretomada pelo Surrealismo com um frenesi que a experiência dachacina da Primeira Guerra, a esperança concreta da revolução e,quase que simultaneamente, a descoberta do inconsciente e daspotencialidades infinitas da psiquê humana, podem, em parte,motivar. Não se trata, porém, de opor ao racionalismo iluministaum irracionalismo barato. A pretensão teórico e prático-literária émuito mais elevada. As certezas do pensamento cartesiano sãoabandonadas em proveito de uma pesquisa de ordem (queiram des-culpar o jargão técnico!) transcendental: "... exprimer, soit verbale-ment, soit par écrit soit de toute autre manière, le fonctionnement réelde la pensée" [exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, ou dequalquer outro modo, o funcionamento real do pensamento] . 6

Ora, como dizer com palavras o funcionamento do pensamentoquando este só pode se realizar através delas? Para essa questão típicada reflexão filosófica transcendental, os surrealistas recusam a soluçãokantiana (a critica a Kant também habita essas páginas, em particular naGalerie du Baromètre, perto do Theatre Moderne, pp. 87 ss.) e retomama antiga tentativa, que não pretende ser uma solução, da tradição

4 Todas as citações de O Camponês de Paris referem-se ã tradução de Flávia Nascimento,editada pela Imago em 1996, na Coleção lazuli.

5 Retomo aqui o comentário respeitoso de F. Alquié que fala de uma "affectivité profondede Descartes", de "sa peur constante d'être trompé" a propósito da decepção do filósofo emrelação ao ensino tradicional. Cf. Descartes, Oeuvres philosophiques, vol. I (Paris: Garnier,1963), p. 559.

6 Segundo a famosa definição/gozação séria do Surrealismo por Breton no Manifeste duSurréalisme (Paris: Éditions du Sagittaire, 1924), p. 42. Grifos meus.

0 CAMPONÈS OE PARIS : 157

mística: empurrar, por assim dizer, a linguagem até seus próprioslimites, bater em seus muros para provocar uma rachadura, cavar seusfundamentos para fazê-la — em parte — desmoronar. Operação peri-gosa, próxima da loucura e da desrazâo (não por acaso, Nadja acabaráenclausurada num asilo), mas necessariamente desarrazoada pois,aqui, a razão não consegue mais oferecer socorro algum: "É em vãoque, cavando há vinte e seis anos com um pedaço de razão quebrada,um subterrâneo que parte de seu colchão de palha, você acreditachegar às bordas do mar" (p. 78).

O grande tema iluminista da libertação do medo' deixa lugar àmetáfora da evasão da prisão de uma racionalidade e de uma lingua-gem que são denunciadas como empobrecedoras, restritivas, superfi-ciais, castradoras, mais tarde também se dirá burguesas. Apesar detodos os chavões que esses adjetivos podem evocar, não se develiquidar esse desejo como se fosse uma "revolta adolescente" qual-quer; insisto na exigência profundamente metafísica (Aragon usainúmeras vezes esse termo!) que subjaz a esse gesto provocativo:configurar os limites das palavras de dentro da linguagem, desenhar,com o lápis do raciocínio, as fronteiras da razão, expressar o funcio-namento do pensamento através do pensamento. Tentativa impossí-vel e apaixonante que sempre reinicia em novos enxames de palavras,até a exaustão. E, mais uma vez como na tradição mística, jorram asmetáforas da fronteira e de sua efêmera transposição: limiares, esca-das, portas semi-abertas, margens do abismo, "fechaduras que setrancam mal sobre o infinito" (p. 44), enfim, não por acaso, "nessasespécies de galerias cobertas... que se chamam, de maneira descon-certante, de passagens" (p. 44).

Entendemos agora o valor insubstituível da errância e do erronesse itinerário na cidade e no pensamento. Somente a experiênciado errar, em todos os seus sentidos, nos faz apalpar, coma que peloavesso, a experiência de uma verdade que não seria, primeiramente,a coerência de nosso pensamento, mas sim o movimento mesmo desua produção: hesitante, avançando "aos solavancos e aos pedaços"(Adorno), abrupto, atravessado por ritmos diversos. Errar é, simultanea-mente, perda das referências conhecidas e aprendizagem do desco-

7 Cf. Adorno e Horkheimer, Dialética do Esclarecimento, trad. de Guido de Almeida (Rio deJaneiro: Zahar, 1985), p. 11: "No sentido mais amplo do progresso do pensamento, oesclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e deinvesti-los na posição de senhores."

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nhecido, apavorante e apaixonante. Passeamos por Paris, sim, maspasseamos por "Passagens", entre o fora e o dentro, entre a luz do diae a luz artificial, entre a noite e o dia, entre a vida do comércio e amorte dessas galerias fadadas a uma destruição próxima; passeamospelo parque, mas o parque é natureza artificial, jardim construído,miniatura de Alpes suíços atravessados por um trem de subúrbiopobre. Isto é: passeamos por Paris porque aí podemos nos perder e,sobretudo, perder a nós mesmos.

Num longo livro recém-publicado sobre o mito de Paris, 8 KarlheinzStierle lembra muito acertadamente que o topos literário da cidadeserviu, inúmeras vezes, de metáfora privilegiada para a alma e para opensamento. Podemos citar Platão e sua República, descrição de umacidade justa que deveria ajudar a alcançar a definição da alma justa. Ereencontramos Descartes que, na segunda parte do Discurso do Método,esboça os fundamentos seguros do pensamento pelo paradigma dafundação urbanística e arquitetõnica:

... permanecia o dia inteiro fechado sozinho num quarto bemaquecido onde dispunha de todo o vagar para me entreter comos meus pensamentos. Entre eles, um dos primeiros foi que melembrei de considerar que, amiúde, não há tanta perfeição nasobras compostas de várias peças, e feitas pela mão de diversosmestres, como naquelas em que um só trabalhou. Assim, vê-seque os edificios empreendidos e concluídos por um só arqui-teto costumam ser mais belos e melhor ordenados do queaqueles que muitos procuraram reformar, fazendo uso de ve-lhas paredes construídas para outros fins. Assim, essas antigascidades que, tendo sido no começo pequenos burgos, torna-ram-se no correr do tempo grandes centros, são ordinariamentetão mal compassadas, em comparação com essas praças regu-lares, traçadas por um engenheiro à sua fantasia numa planície,que, embora considerando os seus edifícios cada qual à parte,se encontre neles muitas vezes tanta ou mais arte que nos dasoutras, todavia, a ver como se acham arranjados, aqui um grande,ali um pequeno, e como tornam as ruas curvas e desiguais,dir-se-ia que foi mais o acaso do que a vontade de algunshomens usando de razão que assim os dispós. 9

8 Karlheinz Stierle, Der Mythos von Paris. Zeichen und Bewu(itsein der Stadt (Cologne: DanserVerlag, 1993).

O CAMPUSES GE PARIS : 159

Nessa evocação emblemática de uma cidade ordenada segundo arazão ao mesmo tempo universal e solitária de um só arquiteto-filó-sofo esclarecido, o eu do cogito, Descartes rejeita as obras dos outrospor causa de seu caráter contingente, pois que ligado ao tempo e àhistória em vez de surgir somente da vontade e da razão. A crítica àtradição (à história e, no mesmo trecho, à infância, ambas comuns atodos e fontes de erro) desemboca no ideal de uma construçãoatemporal, cujo desenho siga a ordem eterna das razões estabelecidas,em última instância, pela e na bondade divina. Impossível perder-senessa cidade modelar e, da mesma maneira, não se dará nenhumpasso na atividade espiritual sem seguir o mapa traçado pelas certezase evidencias da razão.

No Discurso do Método, isto é, do caminho certo, a topologiaurbana já serve de metáfora privilegiada do pensamento. Ora, adimensão histórica da cidade, que a exigência de tabula rasa de umDescartes desejava justamente corrigir, para não dizer recalcar, seráressaltada na literatura contemporânea, como o observa K. Stier-le.

10A antiga oposição entre cidade terrestre, temporal e efêmera,

e Cidade de Deus, a-histórica e eterna, volta na lírica de umBaudelaire sobre Paris; a cidade é o lugar do novo, sim, massobretudo do transitório e do já caduco, signos de um tempomortal. Walter Benjamin analisou a relação entre a harmonia deum tempo imemorial e a ameaça de uma temporalidade devora-dora, travestida na vã busca da novid.hle, como sendo o núcleo doconceito baudelairiano de modernidade. Stierle também cita ossonhos paradigmáticos de Freud sobre Roma ou sobre Pompéiacomo imagens privilegiadas, no espaço da cidade e no "espaço" doinconsciente, de várias camadas temporais: aos monumentos his-tóricos de épocas diferentes, pelos quais caminha o passante,correspondem os blocos e os fragmentos mnemônicos de idadesdiversas que atravessa o sonhador. De Freud também essa belís-

9 Descartes, Discurso do Método, trad. Bento Prado Júnior e Jacó Guinsburg (São Paulo: Ed.Abril, Coleção Os Pensadores, 1979), p. 34. Uma bela retomada —crítica! —dessa metáfora

ecoa nas Philosophische Untersuchungen de Wittgenstein: "(Und mit wieviel Hdusem, oderStrassen, fange eine Stadt an, Stadt ni sein?) Unsere Sprache kann man ansehen als eine alee

Stadt: Ein Gewinkei aos Gasschen und Pldtzen, alcen und neuen Hdusem, und Hdusem mit

Zuhauten aus verschiedenen Zeiten; und dies umgeben von einer Menge neuer Vororte mitgeraden und regelmassigen Strassen und mit einfirmigen Hdusem". Em: Schd/tenr (Frankfurtam Main: Suhrkamp, 1969), p. 296.

10 Karlheinz Stierle, op. cit., pp. 17 ss .

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160 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA

sim a declaração de amor a Paris ou ao mito de Paris: "TambémParis, por muitos anos, fora objeto de meus desejos; e o sentimentode felicidade com que pus o pé, pela primeira vez, nas suas ruas,parecia uma garantia de que outros desejos seriam realizados" 11 Acidade como palco do inconsciente não é mais o lugar regradoe seguro das certezas racionais (duramente conquistadas, aliás),mas sim a paisagem esburacada e fugidia do desejo: ruínas aserem descobertas e interpretadas como na arqueologia, rastrosa serem decifrados e (per)seguidos como num romance de dete-tive ou de cowboy. Vários autores já apontaram para a significa-tiva contemporaneidade do romance de detetive, da pesquisaarqueológica e da psicanálise, três novos modos de interpretação e deleitura.

Avançamos aqui mais um patamar nessa pequena metaforologiaurbana: a cidade é imagem do pensamento, imagem também doinconsciente e, como o pensamento ou o inconsciente, deve ser lidae interpretada. A cidade se torna escrita a ser decifrada e o texto —em particular o texto sobre a cidade! — se transforma, por sua vez,numa paisagem a ser percorrida. 12 Essa reverberação mútua entretexto/escrita e cidade/escrita encontra no Camponês de Paris umadas suas mais felizes expressões, por vezes cheia de angústia e demistério, por outras, de alegria e de humor. Poder-se-ia evocartambém Kafka, Borges ou Italo Calvino. O livro está povoado deplacas, de propagandas, de outdoors e de inscrições como as mas e osmuros de Paris por ele descritos. Em Rua de Mão Única, homenagemao Surrealismo (à revolução e à sua amiga Asja Lacis também),Benjamin observou profeticamente que a escrita "é inexoravelmentearrastada para as ruas pelos reclames e submetida às brutaisheteronomias do caos econômico". Se, continuava Benjamin, "háséculos ela havia gradualmente começado a deitar-se" nos ma-nuscritos e, depois, nos livros impressos, "ela começa agora, coma mesma lentidão, a erguer-se novamente do chão (...) filmes ereclames forçam a escrita a submeter-se de todo à ditatorialverticalidade". 13 Ora, esse processo de verticalização e de evasão

11 Idem, p. 20. A citação se encontra na Interpretação dos Sonhos, cap. V, subcapltulo B, 5.Grifos de Freud.

12 A este respeito, ver J. Fürnkãs, op. cit., pp. 62 ss. Ver também os recentes livros-cidades

0 CAMPONES OE PARIS 161

fora das páginas tranqüilas dos livros encontra seu correspondenteirõnico, como Benjamin já o nota a respeito do Coup de Des de

Mallarmé, 14 na reapropriação pelo livro da escrita citadina que lhetinha escapado. Graças à reprodução de textos que parecemoriundos das ruas, portanto da "realidade" material e não da"ficção" literária, o livro também parodia o que ele poderia nosdar a crer que é: um mapa, um guia, um Michelin ou um Baedekerque permitiria nos orientar nos bairros descritos com uma pre-cisão pretensamente realista. Toda segunda parte do Camponês deParis, "O Sentimento da Natureza no Parque Buttes Chaumont", comsuas descrições topográficas minuciosas (cap. VII) e com sua cópia(!) das inscrições da coluna do termômetro (cap. XIII), verdadeirospastiches de um guia para turista, joga com essa alternancia entre adescrição realista e a embriaguez noturna dos três amigos, comotambém joga com a ambigüidade entre natureza e artifício (FláviaNascimento, na sua "Apresentação", nos lembra que o parque é umjardim artificial erguido por Haussmann num terreno que, antiga-mente, era um depósito de lixo!). O leitor que se aventurar nestetexto pensando encontrar nele uma trama clara com início, meioe fim conclusivo, se achará tão desnorteado como seu irmão, oturista aplicado, que deseja visitar o Buttes Chaumont com a ajudadesse guia de bolso: "Azar, então que isso tenha um ar inacaba-do, azar se o caminhante que percorre o Buttes Chaumont commeu livro nas mãos percebe que mal falei desse jardim e quenegligenciei o essencial dele" (ver p. 209).

Negligenciou Aragon realmente o essencial? Ou será que essaafirmação não significa mais uma pirueta literária auto-irônica? Nessadesorientação textual e geográfica, reencontramos o tema da errânciae do erro. Não há, na periferia da cidade, nenhum jardin à la françaisecom suas alamedas geométricas e suas árvores artisticamente poda-das. O parque participa da mesma estrutura labiríntica que, nocoração da capital, a rede escura das Passagens. Esse "grande arra-balde equivoco" (p. 161), ou o centro comercial, a natureza — "meuinconsciente" (p. 150) — ou a ficção do Theatre moderne, esses lugares

aparentemente opostos tecem a mesma rede labiríntica que é a teia do

13 W. Benjamin, Rua de mão única, trad. de Rubens R. Torres Filho, em: Obras Escolhidas,

de Willi Bolle, Fisiognomia da Metrópole Moderna. Representação da História em Walter vol. IBenjamin (São Paulo: Edusp, 1994), e de Renato Cordeiro Gomes, Todas as Cidades, aCidade (Rio de Janeiro: Rocco, 1994).

14 W.271

B, (São Paulo: Brasiliense, 1987), p. 28.njamin, idem, p. 28. Fürnkãs, op. cit., pp. 223 ss. W. Bolle, op. cit., cap. 7, pp.

s.

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1 62 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA

espírito e do texto. 15 Labirinto sem minotauro (p. 136), esse espaço nãopertence mais à mitologia clássica, mas sim à moderna; talvez ele sejamenos ameaçador pois nenhum monstro devorador nele mora; dele,porém, nenhum Ícaro consegue mais se salvar. Seus meandros não sãomais fruto da invenção especifica de um arquiteto engenhoso paraesconder a fera; eles descrevem os caminhos e os descaminhos do próprioespírito:

O espírito cai na armadilha dessas redes que o arrastam sem voltaem direção ao desenlace de seu destino, o labirinto sem Minotau-ro, onde reaparece, transfigurado como a virgem, o erro com osdedos radium, essa minha amante cantante, minha sombra paté-tica (p. 136).

O passeio iniciático pelas Passagens e pelo Parque pode se atera cantos misteriosos, a escadas escuras, a ambíguas vendedoras delenços ou a pudicos banhos públicos. Todos podem levar ao misté-rio, à vertigem, ao insólito, provocar o frisson e a embriaguez. Todostêm esse poder como, igualmente, nenhum deles o detém emparticular; pois, muito mais fundamentalmente que uma topologiade lugares sagrados, o Camponês de Paris elabora uma encenaçãodo divino, uma ascese da revelação. Os lugares enquanto espaçosreais importam pouco; só se transformam em espaços epifànicosgraças à força dessa atenção distraída que muitos comentadoresrelacionaram com a atenção flutuante de Freud e cujas raízesmergulham tanto na attentio da tradição mística como na hipersen-sibilidade dos "doentes mentais". A força do Surrealismo, como jáo afirmava em 1929 Walter Benjamin, não provém de uma fruiçãoequivoca de fenômenos ocultos, de uma celebração complacentedo mistério, mas, sim, contra qualquer leitura irracionalista apres-sada, de sua capacidade Empar de vislumbrar o maravilhoso nocoração do cotidiano:

De nada nos serve a tentativa patética ou fanática de apontar noenigmático seu lado enigmático; só devassamos o mistério namedida em que o encontramos no cotidiano, graças a uma ótica

15 Sobre o motivo do labirinto no pensamento filosófico, cf. Olgaria Matos, Os Arcanos doInteiramente Outro (Sao Paulo: Brasiliense, 1989), pp. 80 ss. e O Iluminismo Visionário:Benjamin, Leitor de Descartes e de Kant (Sao Paulo: Brasiliense, 1993), pp. 37 ss.

0 CAMPONÊS DE PARIS 1 63

dialética que vê o cotidiano como impenetrável e o impenetrávelcomo cotidiano. 16

As andanças do eu narrador no Camponês de Paris podemparecer o passeio esotérico de um sujeito esquisito nos labirintosde galerias equívocas, entre a baixa prostituição e a revelação dosagrado. Elas se descobrem como sendo, antes, a mensuraçãosimultaneamente desvairada e exata de um labirinto espiritual,como o reconhecimento sempre reiniciado de pontos de fugaabissais. Não se envereda, portanto, pelos caminhos do irraciona-lismo e do irreal, mas pelas alamedas, ao mesmo tempo reais esurreais, da terra: "Depois, sem dificuldade desde então, pus-me adescobrir o semblante do infinito sob as formas concretas que In_escoltavam, andando ao longo das atéias da terra" (p. 141). Ou,como Breton o nota em pé de página no Manifesto do Surrealismo:"O que há de admirável no fantástico é que não guarda mais nadade fantástico: não é outra coisa que o real."

17

Cabe observar aqui que essa "iluminação profana", segundo abela expressão de Benjamin, pode levar tanto aos arcanos do inefávelquanto à lucidez austera da militancia revolucionária. Por baixo, pordetrás do dito real, ou melhor, a ele inseparavelmente entrelaçado seperfila, pois, um outro surreal desconhecido, infinito, mas ao alcanceda mão para quem souber olhar. Assim também, no Camponês deParis, essas descrições de cenas triviais e cotidianas que, subitamen-te, parecem outras, quando uma paisagem comum se metamorfo-seia sob a luminosidade do luar:

Os homens vivem com os olhos fechados em meio aos precipíciosmágicos. Eles manejam inocentemente símbolos negros, seuslábios ignorantes repetem sem saber encantamentos terríveis,fórmulas semelhantes a revólveres. Há razões para estremecer aover uma família burguesa que toma seu café com leite pela manhã,sem observar o inconhecfvel que transparece nos quadrados verme-lhos e brancos da toalha de mesa (p. 201),

adverte o Camponês já no fim do seu passeio noturno.

16 W. Benjamin, "O Surrealismo — o Último Instantâneo da Inteligência Européia", em:Obras Escolhidas, vol. I, trad. S. P. Rouanet (São Paulo: Brasiliense, 1985), p. 33.

17 André Breton, op. cit., p. 25.

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1 64 SETE AULAS SOBAE LINGUAGEM, ME MORIA E HISTORIA

Qual é a via de acesso, qual é o método para alcançar essedesconhecido escondido e transparente? As respostas podem variar:escritura automática, drogas, sonhos, paixão, embriaguez. Mas há umcaminho unanime: o da imagem. E mais precisamente da imagemverbal, da metáfora, do pensamento figurativo em oposição ao pensa-mento "abstrato" ou "lógico" (p. 140) que se outorga a si mesmo asprerrogativas do rigor e da verdade. Os Surrealistas colocam aqui o dedona ferida originária da metafísica ocidental, nesse rasgo entre mythose logos, antigamente solidários na unidade da primazia da palavra e,pouco a pouco, separados, distinguidos e até opostos na constituiçãodo discurso racional (histórico, filosófico, científico, Ibgico) contra odiscurso poético-sagrado ( mítico, ficcional).18

A insistência de Aragon no motivo da "mitologia moderna" estáligada à ênfase da dimensão heurística, descobridora das imagens,"pois cada imagem a cada lance força-nos a revisar todo o Universo"(p. 93), dimensão mais preciosa ainda na medida que advém daprópria dinâmica da linguagem, e não de fora, da consciência ou daintenção de um sujeito soberano, pretensamente anterior a suaspalavras. Essa dimensão figurativa, imagética, portanto sensível dopensamento, se não pede ser totalmente afastada e rejeitada — poisos conceitos também são, originariamente, metáforas, como mesmoHegel o reconhece — foi, no entanto, duramente submetida às regrasde um outro tipo de conhecimento, abstrato e dedutivo, portantomais verdadeiro. Por que esse "portanto"? Talvez porque nosso idealde conhecimento, desde suas fontes gregas, tão claras e tão incertas,seja um ideal de estabilidade, de duração, de equilíbrio, às vezesmesmo de atemporalidade, para não dizer de eternidade ("oh, hybris!"exclamar-se-ia Homero, de cuja existência nós não temos certeza).

Nesse contexto, é importante notar que a "mitologia" de Aragonnão remete, como tantas outras mitologias contemporâneas, ao reen-contro com uma pseudo-eternidade, mas sim, conseqüentemente, àfugacidade, à caducidade, ao efêmero. A dimensão da imagem e adimensão do efêmero são inseparáveis como o assinala o magnífico enode francês do pequeno poema concreto consagrado ao efêmero (p. 117):"E P H É MÈ R E (...) Les faits m'errent (....)." "Os fatos me erram" — e asimagens me guiam, poderíamos acrescentar. Ao reassumir, então, esselado negligenciado do pensar que é a imaginação, no sentido concreto

18 Sobre esse processo, veros livros de Marcel Détienne, Les maîtres de vérité dans la Grècearchaique (Paris: Maspéro, 1967) e L'invention de la mythologie (Paris: Gallimard, 1981).

0 CAMPUSES OE PARIS : 165

de produção de imagens, o poeta também reassume a vertenteinstável, fugidia, evanescente — enfim, ligada à história, ao tempo eà morte — do pensamento. Nas lendas dessa "mitologia moderna",mesmo os deuses nascem e morrem como os mortais:

A ligação intima que eu descobria assim entre a atividade figura-tiva e a atividade metafísica de meu espirito, em cem circunstân-cias que despertavam ao mesmo tempo em minha consciência,voltou-me em direção das criações míticas, que outrora eu con-denara bastante sumariamente. Não Ode me escapar por muitotempo que a propriedade de meu pensamento, a propriedade daevolução de meu pensamento, era um mecanismo em todos ospontos análogo à génese mítica e que, sem dúvida, eu não pensavanada que não determinasse imediatamente em meu espírito aformação de um deus, por mais efêmero, por menos conscienteque ele fosse. Pareceu-me que o homem está pleno de deus comouma esponja imersa em pleno céu. Esses deuses vivem, atingemo apogeu de sua força, depois morrem, deixando para outrosdeuses seus altares perfumados (p. 142).

O estilo arcaizante, cheio de conjuntivos, das duas primeiras frases dessacitação, não deixa de lembrar, parodisticamente, a prosa cartesiana!

Lembrando o gesto doloroso da alegoria baudelairiana e, emparticular, os poemas de Baudelaire sobre Paris, a peregrinação doCamponês se torna tanto mais mitológica quanto mais é atravessada,por todos os poros da escrita e por todas as esquinas da cidade, pelaconsciência da temporalidade, da historicidade e da caducidade desseespaço urbano e psíquico. Assim, a descrição da Passagem da Óperaé iniciada poucos meses antes de sua destruição, sendo, portanto,simultaneamente, uma descrição ao vivo e uma homenagem póstu-ma. Como em Baudelaire é, pois, a consciência da morte que despertao olhar mitologizante — porque o presente já é visto como ruína deum tempo passado — e o desejo de escritura — sabe-se que as primeirasinscrições são as funerárias, rastros gravados em monumentos quelembram a presença do ausente. Como o ressaltam todos os comen-tadores, a própria ambigüidade da palavra "passagem" alude, igual-mente, à transgressão do último limiar, à morte. Morte de cada um,em sua singularidade irredutível, mas também morte coletiva confi-gurada pelo passado (mesmo radical da palavra "passagem"), recen-

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te ou afastado, que nos escapa. "Santuários dum culto do efêmero"(p. 44), "grande ataúde de vidro" (p. 62), as Passagens também são ocenário dos jogos amorosos, dos rendez-vous, das vãs esperas e daprostituição, porque Eros é o parceiro predileto de Thanatos, comoo sabe "o cãozinho Sigmund Freud" (sic!) que também vagueia poraí (p. 63). Na mesma "passagem" do texto e da Ópera, o poeta nosdiz abandonar, por um instante, seu "microscópio" e tentar retomaruma distancia maior tanto do "objeto" do texto como da própriaatividade de elaboração textual. O que essa pausa lhe permitiráenxergar? Uma única e mesma configuração no turbilhão da galeriae no gesto da mão: o movimento da escritura, da inscrição de signoscomplexos, desesperados, efêmeros, que significam uma só coisa:

Tento ler nessa rápida escritura e a única palavra que creiodistinguir em meio a esses caracteres cuneiformes incessantementetransformados não é Justiça, é Morte. Ó Morte, encantadora criançaum pouco poeirenta, eis um pequeno palácio para teus galanteios.Aproxima-te suavemente com teus calcanhares torneados, desa-massa o tafetá de teu vestido e dança (p. 62).

19

Esse pequeno palacete é, naturalmente, a Passagem da Ópera e,por conversão metonímica, a cidade inteira de Paris. Mas também é,sem dúvida, o texto que se está escrevendo, isto é, este livro que temosem mãos, a literatura inteira. Onipresente nas ruas e nas páginas, aMorte com M maiúsculo (como nos versos de Baudelaire) não apare-ce, porém, como em suas representações clássicas, como uma mulheralta, imponente, pálida e patética; mais pudica e mais ironicamente,ela é uma dançarina simultaneamente menina e antiga, uma criançaempoeirada (lembra os dançarinos, os tolos e os bufões nietzschia-nos). Mesmo a morte não consegue mais se vestir com as dobrassolenes da eternidade, mas, tal os adolescentes de hoje nas ruas dasmegalópoles, arruma-se com os farrapos da moda e do efêmero.Continua cruel, sim, mas é descrita com essa leveza lúcida que guiaos passos errantes do Camponês e que, talvez, seja a única formapossível de seriedade que nos resta. Cuidado, pois, ao entrar nesselivro: como as Passagens e as ruas parisienses, ele leva à rememoraçãodo passado, à perda da identidade, aos subterrâneos da consciência,

19 Na página anter.or, o tinteiro do escritor, visto de perto e aumentado por esta visão,lembrava a Morgue, o Necrotério!

O CAMPONÊS 0E PARIS : 167

aos "Infernos" — isto é, na mitologia grega, ao Hades, reino doinvisível e da morte. Mas leva brincando, com ternura, com humor,coma alegria das imagens. Como seu próprio assunto, este livro é umlugar de passagem, uma porta entreaberta, uma soleira. Ele pode,talvez até deva assustar. Mas também, nas palavras de Benjamin quemesclam a topologia onírica de Freud e a topologia literária deAragon, ele pode ser um guia precioso para ousarmos enfrentarnossos sonhos e nossas fantasias, nossos abismos, nossos diversosinfernos, nossa infancia inquieta e nossa errãncia adulta, nossamorte enfim:

Mostravam-se na Grécia Antiga lugares pelos quais se podia desceraos infernos. Também nossa existência desperta é um país ondehá vários pontos que descem aos infernos, um país cheio delugares pouco visíveis, onde deságuam os sonhos. De dia passa-mos por eles sem suspeitar nada, mas é só o sono chegar quevoltamos tateantes a eles, com gestos rápidos, e nos perdemos emescuros corredores. O labirinto das casas da cidade se parece, à luzclara do dia, com a consciência; as passagens (são as galerias quelevam à sua existência passada) desembocam de dia nas ruas semque as percebamos. Mas à noite, entre as massas escuras das casas,sua escuridão mais compacta se destaca, assustadora; e o passantetardio apressa-se a passar por elas sem entrar, exceto quando oanimamos a emprender uma viagem pelo beco estreito.20

20 W. Benjamin, Passagen-Werk, em Gesammelte Schriften V, vol. 2, p. 1046 (Trad. J. M. G.).Aproveitei a tradução de uma parte desse texto por S. P. Rouanet em As Razões do Iluminismo(São Paulo: Companhia das Letras, 1987), p. 118. Ver também os artigos de S. P. Rouanete de Nelson Brissac Peixoto no "Dossiê Walter Benjamin", Revista USP, n. 15, 1992, "E acidade que habita os homens ou são eles que moram nela?".

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III. INFÂNCIA E PENSAMENTO

A Rafaela e Cristina, com quem aprendi muitosobre infância e mais ainda sobre pensamento.

Há pouco menos de um ano, a Folha de S. Paulo publicava nosuplemento de domingo "Mais!" uma série de artigos sobre a idéiada infância e sua atual crise, no limiar do século XXI. Sem quererentrar no mérito dos vários artigos, na maioria de orientação psica-nalítica, podemos ressaltar que o simples questionamento da noçãode infância já é salutar em si, pois nos lembra, nas pegadas dohistoriador francês Philippe Ariès, que essa noção de uma idadeprofundamente diferente — e a ser respeitada nas suas diferenças —da idade e da vida adultas, que essa idéia é relativamente nova. Suaemergência é geralmente localizada no século XVIII, com o triunfodo individualismo burguês no Ocidente e de seus ideais de felicidadee emancipação. Marco privilegiado dessa — nossa — concepçãomoderna de infância seria o livro de Jean-Jacques Rousseau de 1762,o Emilio, que transforma a prática pedagógica de uma boa parte da eliteesclarecida. Voltaremos a ele.

Se a noção de infância não é, portanto, nenhuma categoria ditanatural, mas é, sim, profundamente histórica, cabe porém ressaltarque entre pensamento filosófico e infância as ligações são estreitase tão antigas como a própria filosofia, o que não invalida ahistoricidade nem da noção de infância, nem dessa estranha disci-plina que ninguém consegue definir direito, a filosofia. Ligaçõesprivilegiadas, não só porque as crianças colocam a seus paisencabulados as grandes questões filosóficas sobre o sentido davida, sobre a morte ou os limites do universo, ou porque, numcerto sentido, os filósofos seriam, no fundo, grandes crianças, quebrincam de maneira séria e esquisita com palavras difíceis, em vez

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de se preocupar com os negócios realmente importantes da vidaadulta; mas também e antes de tudo porque reflexão filosófica ereflexão pedagógica nascem juntas, porque é em redor da questão dapaidéia que se constitui o primeiro "sistema" que se autodenominade "filosófico", o pensamento de Platão. A problemática da paidéiajusta —da formação justa, poderíamos, pelo menos transitoriamente,traduzir — se coloca, como o sublinha o filósofo contemporâneoJean-François Lyotard, porque

Elle a pour présupposé que l'esprit des hommes ne leur est pas donnécomme il faut, et doit être ré-formé. Le monstre des philosophes c'estl'enfance. C'est aussi leur complice. L'enfance leur dit que l'esprit n'estpas donné. Mais qu'il est possible.

tem por pressuposto que o espirito dos homens não lhes é dadode maneira completa e deve ser reformado. O monstro dosfilósofos é a infância. Ela também é sua cúmplice. A criança lhesdiz que o espirito não é (um) dado. Mas que ele é (um) possível.'

Não vou fazer aqui uma história do conceito de formação; nãotenho competência para isso. Gostaria simplesmente de apresentar avocês alguns momentos dessa relação entre a infância e o pensamento,pensamento filosófico, sem dúvida, portanto um tipo específico depensamento, sim, mas, ao mesmo tempo, um pensamento queaspira a uma certa universalidade (na aceitação kantiana quedistingue a filosofia da escola, académica, de especialistas, dafilosofia no seu sentido mais amplo, que trata de questões comunsa todos os homens).

Podemos, desde o início, apontar para duas grandes linhas quevão guiar minha exposição. A primeira, que nasce com Platão,atravessa a pedagogia cristã com Santo Agostinho, por exemplo,e chega até nós através do racionalismo cartesiano, nos diz que ainfância é um mal necessário, uma condição próxima do estadoanimalesco e primitivo; que, como as crianças são seres privadosde razão, elas devem ser corrigidas nas suas tendências selvagens,irrefletidas, egoístas, que ameaçam a construção consensual dacidade humana graças à edificação racional, o que pressupõe o

1 J. F. Lyotard, Le postmoderne expliqué aux enfants (Paris: Galilée, 1986), p. 156

I NFANCIA E PENSAMENTO : 1 71

sacrifício das paixões imediatas e destrutivas. Freud e a necessidadeda repressão para chegar à sublimação criadora de valores culturaisjá estão em germe nessa pedagogia de origem platônica.

A segunda linha, é importante ressaltá-lo, também nasce emPlatão, atravessa o renascimento com Montaigne e chega a nossasescolas ditas alternativas através do romantismo de Rousseau. Ela nosassegura que não serve de nada querer encher as crianças de ensina-mentos, de regras, de normas, de conteúdos, mas que a verdadeiraeducação consiste muito mais num preparo adequado de suas almaspara que nelas, por impulso próprio e natural, possa crescer e sedesenvolver a inteligência de cada criança, no respeito do ritmo e dosinteresses próprios de cada criança particular.

À primeira vista contraditórias, essas duas linhas podem conduzir,em contextos diferentes, o discurso pedagógico de um mesmo pensa-dor. Assim, Platão, que nos assegura nas Leis (808 d/e) que, como asovelhas não podem ficar sem pastor, senão se perdem, assim tambéme mais ainda nenhuma criança pode ficar sem alguém que a vigiee controle em todos os seus movimentos, pois a "criança é, detodos os animais, o mais intratável" (ho de pais pantôn theriôn estidusmetacheiristotaton), na medida em que seu pensamento, aomesmo tempo cheio de potencialidades e sem nenhuma orienta-ção reta ainda, o torna "o mais ardiloso, o mais hábil e o maisatrevido" de todos os bichos (epiboulon kai drinu kai hybristotatontheriôn gignetai).

Essa criança, ameaçadora na sua força animal bruta, deve ser domes-ticada e amestrada segundo normas e regras educacionais fundadas naordem da razão (logos) e do bem tanto ético quanto político, em vista daconstrução da cidade justa. Empreendimento que Platão descreve deta-lhadamente —e sem esconder suas numerosas dificuldades — em várioslivros da República. Mas é na mesma obra que encontramos, algumaspáginas depois da famosa, assim chamada "alegoria da caverna", aafirmação enfática da capacidade de aprender humana, faculdade inata euniversal em todos, mesmo que não sempre na mesma proporção,faculdade inata, universal, natural portanto, que permite a Platão criticara educação tradicional ateniense, baseada no aprendizado de conteúdosexternos, oriundos da poesia homérica, e determinar a justa paidéiacomo um movimento interior à própria alma:

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A educação (paidéia) é, portanto, a arte que se propõe este fim, aconversão (periagoge) da alma, e que procura os meios mais fáceis emais eficazes de operá-la; ela não consiste em dar a vista ao órgãoda alma, pois que este já a possui; mas como ele está mal dispostoe não olha para onde deveria, a educação se esforça por levá-lo ãboa direção. 2

Educação-repressão, ou educação como um amoroso ajudar dasfaculdades naturais de cada criança para que cresçam na boa direção?Essa alternativa, apontada pelos escritos de Platão, nos remete, maisprofundamente, ao estatuto paradoxal da infância e dos "infantes",isto é, desses seres humanos, sim, mas no entanto privados de fala,isto é, privados daquilo que, segundo toda tradição metafísica oci-dental, é o próprio do homem: a linguagem, portanto a razão,linguagem e razão que permitem a instituição de uma ordem política.Lembremos que logos significa, indistintamente, ambos os conceitos,que não há, portanto, linguagem sem uma racionalidade nela inscrita,nem razão que não possa se dizer e se explicitar em palavras. Cabetambém ressaltar aqui, já que estamos nas etimologias, que a palavra"infância" não remete primeiro a uma certa idade, mas, sim, ãquiloque caracteriza o início da vida humana: a incapacidade, mais, aausência de fala (do verbo latim fari, falar, dizer e do seu particípiopresente, fans). A criança, o in-fans é primeiro aquele que nãofala, portanto aquele animal monstruoso (como o dizia Lyo-tard), no sentido preciso de que não tem nem rugido, nem canto,nem miar, nem Latir, como os outros bichos, mas que tampoucotem o meio de expressão próprio de sua espécie: a linguagemarticulada. Qual é a significação dessa ausência primordial? Até,digamos, Rousseau, essa ausência foi interpretada como o signoinequívoco de nossa natureza corrupta, pois é nele, nesse não-fa-lar infantil obscuro que se escondem tanto nossa proximidadecom o animal, como nosso afastamento de sua simplicidade ins-tintiva. Diferentemente dos pequenos bichos que nunca aprende-rão a falar e a pensar, os pequenos homens desenvolvem essafaculdade e, portanto, a possibilidade da escolha do mal contra obem. Se não só nascêssemos, mas também ficássemos sem lingua-gem, seríamos bichos talvez cruéis, mas sem a possibilidade de ser

2 Platão. República, 518 d. Trad. J. Guinsburg (São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1965).

INFANCIA E PENSAMENTO 173

moralmente ruins, pois a propensão ao mal só pode ser atribuída aum ser dotado de inteligência, de razão e de linguagem, capaz deescolher conscientemente entre o bem e o mal.

A infância reúne assim, no pensamento de um Santo Agostinho,por exemplo, a selvageria bruta do animal e a disponibilidade,simultaneamente infinita e latente, do homem para o mal. Ela é otestemunho vergonhoso do pecado que nos marca, já ao nascer, econtra o qual só podemos tentar lutar quando sairmos dela, quandopudermos entender os conselhos bondosos de nossos pais e lhesresponder pelas nossas palavras e nossas ações. Longe de ser a idadeda inocência, a infância é descrita por Santo Agostinho, em particularno Livro I das Confissões, como duplamente marcada pelo pecado:não só cada criança, cada infans — palavra cuja etimologia érealçada por Agostinho em oposição ao puer: qui non farer, I, 8,13— é signo, pelo seu nascimento, do comércio carnal e libidinosode seus pais, isto é, profundamente marcado pelo pecado original;mas também cada criancinha manifesta desejos e ódios, cuja intensi-dade desproporcional será justamente censurada numa idade maisavançada e que só é tolerada nela, na criancinha sem fala nem razão,porque é fraca, portanto e felizmente, impotente. Cito Agostinho, naépoca ainda nenhum santo, segundo suas próprias palavras:

—Em que podia pecar, nesse tempo? Em desejar ardentemente,chorando, os peitos de minha mãe? Se agora suspirasse com amesma avidez não pelos seios maternos, mas pelo alimentoque é próprio da minha idade, seria escarnecido e justamen-te censurado (...).—Assim, a debilidade dos membros infantis é inocente, mas nãoa alma das crianças. Vi e observei uma, cheia de inveja, queainda não falava e já olhava, pálida, de rosto colérico, para oirmãozinho de leite. 3

3 Quid ergo [zinc peccabam?An quia uberibus inhibiam plorans? Nam si nunc fadam, nonquidem uberibus, sed escae congruente annis meis ita inhians, deridebor atque reprenhendariustissime (...) Ita imbecillitas membromm infantilium innocens est, non animum infantium.Vide ego et expertus sum zeiantem parvulum: nondum loquebaturet intuebaturpallidus amaroaspecto conlactaneum suam. Santo Agostinho, Confissões, Livro I, 7,11. São Paulo: EditoraAbril, Coleção Os Pensadores, tradução ligeiramente modificada de J. Oliveira Santos, S. J.e A. Ambrosio de Pina, S. J.

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Podemos rir ou sorrir desses exemplos de Santo Agostinho.Devemos observar que ambos tratam, em termos freudianos, daprimeira manifestação da libido, do desejo e da necessidade doleite materno, mas não para ressaltar sua importância para ocoitadinho e, por via de conseqüência, para ressaltar a obrigação dea mãe responder a essa imposição, como Rousseau o interpretaráe, depois dele, Freud e nós todos. Não, pelo contrário, Agostinhovê nesse desejo, cuja violência não pode ser temperada nem pelalinguagem nem pela razão — pois o infans não as entende —, aprova da violência de nossas paixões e de nossos desejos volup-tuosos, sem freio. A criança evidencia, portanto, nossa naturezapecadora, pois nela não fala ainda nenhuma voz da razão, cuja luzé o reflexo da luz divina em nós, mas, sim, só grita a força daconcupiscência.

Como o mostra Elisabeth Badinter em cujas análises meapoio aqui4, mesmo com a passagem do pensamento filosóficomedieval, impregnado de teologia, para o pensamento da renascençae do racionalismo, que proclamam a independência da razão emrelação ds exigências da fé, mesmo no racionalismo de um Descartes,por exemplo, a infdncia continua sendo um lugar de perdição e deconfusão. Se ela não é mais o terreno privilegiado do pecado, conti-nua sendo o território primordial e essencial do erro, do preconceito,da crença cega, todos esses vícios do pensamento dos quais devemosnos libertar. Para o pai do racionalismo moderno, é nosso universalpertencer d infdncia, a essa idade sem razão e sem linguagem, queconstitui nosso enraizamento tenaz e infeliz no marasmo da não-ra-zão. Ou ainda: se pudéssemos ter nascido já adultos, isto é, já emplena posse do uso de nossa razão, então a luta da razão contra osvários preconceitos que a ofuscam não seria tão árdua, reta filosofiae felicidade humana cresceriam mais rapidamente e com maisliberdade. Cito a segunda parte do Discurso do Método:

E assim ainda, pensei que, como todos nós fomos criançasantes de sermos homens, e como nos foi preciso por muitotempo sermos governados por nossos apetites e nossos precep-tores, que eram amiúde contrários uns aos outros, e que,nem uns nem outros, nem sempre, talvez nos aconselhas-

4 Elisabeth Lyotard, L'amouren plus, histoire de l'amour maternel (Paris: Flammarion, 1980),pp. 42-52.

I NFANCIA E PENSAMENTO : 1 75

sem o melhor, é quase impossível que nossos juízos sejam tãopurosoutãosólidoscomoseriam, setivéssemosousointeirodenossa razãodesdeo nascimentoesenãotivéssemos sido guiadossenão por ela. 5

A infância se assemelha aqui, como o assinala em nota GérardLebrun, ã tradição histórica. Ambas já existem antes de nós chegar-mos â razão, nelas nascemos e crescemos, ambas são, por assim dizer,um mal necessário. Necessário porque o ser humano não é nenhumdeus, mas é defeituoso, fraco, falho; precisa, portanto, do socorro dosoutros para se desenvolver. Esses outros, pais ou professores presen-tes, mestres ou pensadores do passado, muitas vezes nos confundemem vez de nos esclarecer; são, simultaneamente, imprescindíveis eperigosos. Como Platão, Descartes reivindica, portanto, o direito decriticar a tradição e o direito â independência da razão, o que implicauma reforma da educação. Como Platão ainda, Descartes só quersalvar da infância o que a educação tradicional geralmente nãopercebe: a saber, o brotar de uma razão balbuciante que, muitas vezes,é sufocado pelo acúmulo de informações escuras e paradoxais. Já queexiste esse período infeliz da infância, devemos nos apressar em noslivrar dele da melhor maneira: isto é, criando as condições propícias aocrescimento rápido da luz natural da alma, do nous platônico, da razãocartesiana, para enfim nos tomarmos adultos; isto é, como o dirá Kant,sem medo de usarmos nosso entendimento, sem medo de sermosindependentes e autônomos, sem medo de sairmos da minoridade.

Esses belos motivos, caros ao iluminismo, celebram juntos aidade da razão — a idade adulta — e a emancipação ética e política,em oposição â idade da des-razão — a "in-fância" — e â sujeição aosmandamentos de outrem. A infância tem, nesta tradição de pensa-mento, um estatuto paradoxal: território perigoso das paixões, dopecado e do erro, zona escura sem os caminhos que traçam as palavrase que ilumina a razão, ela é, no entanto, na nossa miséria humana, o

5 René Descartes, Discurso do Método. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo:Ed. Abri!, Coleção Os Pensadores, 1979, p. 35. Et ainsi encore je pensai que, pour ce que nousavons tous été enfants avant que d'être hommes, et qu'il nous a fallu longtemps être gouvernéspar nos appétits et par nos précepteurs, qui étaient souvent contraires les uns aux autres, et qui,ni les uns ni les autres, ne nous conseillaient peut-être pas toujours le meilleur, il est presquei mpossible que nos jugements soient si purs, ni si solides qu'ils auraient été, si nous avions eul'usage entier de notre raison dés le point de notre naissance, et que nous n'eussions jamais étéconduits que par elle." (Discours de la méthode, seconde partie. Oeuvres philosophiques. Paris:Gamier, 1963, vol. I, pp. 580-81.)

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único solo à disposição de onde possa brotar, naturalmente, essamesma razão que lhe faz falta. Desprovida de logos — linguagem erazão —a infancia o detém, porém, em potência. Cabe à educação/for-mação realizar essa potencialidade e transformar esses pequenos seresegoístas, tirânicos e choraminguentos em homens dotados de lingua-gem, isto é, capazes de pensar e agir racionalmente, de se tomar oscidadãos responsáveis e independentes de uma res pública.

Podemos agora verificar que a relação do pensamento, em parti-cular do pensamento filosófico, com a infancia, se constitui atravésde uma mediação conceituai cujos principais momentos são umacerta concepção de natureza e uma certa concepção de razão. Con-fiança na pureza e no poder da razão (rastro da inteligência divina emnossa alma) e desconfiança em relação à natureza humana, marcadapelo pecado ou pelo erro, esses dois fatores levam a uma repre-sentação paradoxal da infancia como sendo, simultaneamente, ooutro ameaçador da razão, mas também o terreno exclusivo de suaeclosão. Ora, o corte introduzido por Rousseau em relação a nossasrepresentações de infancia, portanto também de pedagogia, pode serexplicado por uma certa inversão dos dois momentos que assinalava:com Rousseau, começamos a desconfiar da razão e a confiar ilimita-damente na natureza.

Vejamos mais de perto. Devemos, de antemão, notar que adesconfiança rousseauniana em relação à razão raciocinante e àspalavras insidiosas não é tão nova como pode parecer à primeira vista.Já na época de Platão, contra o desenvolvimento rápido e muito bem-sucedido da retórica e da sofística, cresce em Atenas uma grandedesconfiança em relação a esses profissionais da palavra que não usama linguagem para dizer a verdade, mas, sim, para confundir, seduzire enganar. Contra os belos artifícios da retórica e da sofística, Platãoquer, justamente, salvar um outro tipo de discurso — o qual chamade filosofia —, o discurso da transparência e da verdade. As relaçõesentre sofistica e filosofia são complexas, e não vou me demorar nelasaqui. S6 queria assinalar que filosofia e sofistica não são tão facilmen-te distinguíveis como, várias vezes, a argumentação platônica preten-de. Se para Platão e para toda tradição filosófica clássica, a figura deSócrates, por exemplo, é a figura do primeiro filósofo, pai fundadore mártir ao mesmo tempo, não há, porém, dúvida nenhuma que seusconcidadãos, que não eram bobos, condenaram Sócrates à morte porse tratar de mais um desses profissionais da palavra subversiva e

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habilidosa, de um sofista talvez mais refinado que os outros. Masvoltemos ao ideal platônico de um discurso transparente e verdadei-ro. Ele também orienta toda escrita de Rousseau, só que agora suagarantia maior não provém da clareza da razão, mas sim da sinceri-dade — palavra-chave em Rousseau —, do sentimento. Enquanto emPlatão ainda reina a exigência de uma palavra comum, racional,compartilhada na amizade e na temperança, uma palavra política queobedece tanto às leis divinas como às leis humanas, em Rousseau apossibilidade dessa ordem ao mesmo tempo querida pelos deuses eedificada pelos homens, dessa ordem comum ao cosmos e à polis, sedesfez. O abismo entre natureza e cultura, physis e nomos, já presentena discussão entre Platão e a sofistica, parece, depois de vários séculosde cristianismo e sobretudo, de absolutismo político, intransponível.A coerência de um discurso não assegura a retidão das intenções doseu autor. Platão já sabia disso, mas propunha, para corrigir os efeitosde manipulação de uma coerência meramente formal, uma ordemmais elevada da razão, fruto do convívio e da discussão amigáveis deduas almas que abdicam dos seus interesses particulares para chegara um consenso racional. Em Rousseau, à racionalidade formal, calcu-lista e manipuladora não se opõe a explicitação paciente de um logosmais elevado, mas, sim, a intensidade do sentimento que une cadaum consigo mesmo, longe dos olhos dos outros e das convençõesimpostas. Somente essa imediaticidade do sentimento de si, essabusca de uma sinceridade radical do eu em relação a si mesmo,garante a veracidade da linguagem. Nesse contexto, é característicoque as primeiras palavras nasçam, segundo a teoria rousseauniana daorigem das línguas, da efusão dos sentimentos individuais através docanto e não da discussão dialética entre varios parceiros diferentes.

Em oposição às palavras sedutoras, lisonjeiras, enganadoras e auma razão calculista, ligada a uma ordem social injusta, Rousseautenta edificar um discurso sincero e um contrato social oriundo davontade geral. No nosso contexto, podemos ressaltar a valorizaçãorousseauniana não s6 da natureza — contra os artifícios da cultura —,mas também da linguagem sem palavras dos sentimentos contra asarmadilhas da linguagem mais elaborada. Essa valorização absolutada natureza primeira e originária leva Rousseau a elaborar uma teoriada deformação, do aviltamento, da decadência através da história eda cultura, em nítida oposição ao otimismo da filosofia da históriailuminista, baseado na certeza de um progresso talvez lento, mas

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seguro. Em termos pedagógicos, os papéis se transformam radical-mente: em vez de corrigir a natureza infantil e de querer, o maisrapidamente possível, a tomar adulta, o educador do Emilio deve, pelocontrário, escutar com atenção a voz da natureza na criança, ajudarseu desenvolvimento harmonioso segundo regras ditadas não pelasconvenções sociais, mas oriundas da maturação natural das falculda-des infantis. Cito Émile:

Posons pour maxime incontestable que les premiers mouvements de lanature sont toujours droits: il n'y a point de perversité originelle dansle coeur humain. Il ne se trouve pas un seul vice dont on ne puisse direcomment et par ou il y est entré. La seule passion naturelle d l'hommeest l'amour de soi-même ou l'amour propre pris dans un sens étendu(...). Jusqu'à ce que le guide de l'amour-propre qui est la raison puissenaître, il importe donc qu'un enfant ne fasse rien parce qu'il est vu ouentendu, rien en un mot par rapport aux autres, mais seulement ceque la nature lui demande, et alors il ne fera rien que de bien . 6

Tradução "caseira":

Aceitemos como máxima incontestável que os primeiros movi-mentos da natureza são sempre retos: não há nenhuma perversi-dade originária no coração humano. Não se encontra nelenenhum vicio do qual não se possa dizer como e por que caminhopenetrou ali. A única paixão natural ao homem é o amor de simesmo ou amor-próprio, entendido no sentido amplo (...). Atéque o guia do amor-próprio, que a razão, possa nascer, importa,portanto, que uma criança não faça nada porque é vista ou ouvida,numa palavra, nada em relação aos outros, mas somente aquiloque a natureza lhe pede e então não fará nada senão o bem.

A "máxima incontestável" da retidão natural leva à defesa de umaeducação que não só protege as crianças, mas as defende contra adureza e a arbitrariedade da sociedade adulta. Uma primeira conse-qüência é a necessidade de isolar os pequenos, de mantê-los afastadosdo mundo artificial da cultura, por exemplo numa bela propriedadede campo (no Emilio), num sítio, num jardim de infância ou numa

6 Jean-Jacques Rousseau, bulle (Paris: Édition Pléiade, 1969), vol. IV, p. 322.

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escola alternativa, para as crianças se desenvolverem natural e har-moniosamente, em constante proximidade com a natureza harmo-niosa. Uma segunda conseqüência consiste em respeitar os ritmosnaturais do crescimento, em particular, em respeitar justamente nacriança sua ausência de linguagem articulada, de não apressá-la aaprender nem a andar, nem a falar, nem a escrever. O in-fans não émais, pois, o rastro vergonhoso de nossa natureza corrupta e animal,mas sim, muito mais, o testemunho precioso de uma linguagem dossentimentos autênticos e verdadeiros, ainda não corrompidos pelaconvivência mundana. Assim se elabora uma pedagogia do respeitoà criança, da celebração de sua naturalidade, de sua autenticidade, desua inocência em oposição ao mundo adulto pervertido onde reinamas convenções; isto é, entre outras, uma linguagem retórica falsa euma racionalidade artificial, separada dos sentimentos originários.Simultaneamente se valoriza um espaço pedagógico à parte — a escola— e um tempo de formação ditado pelos ritmos naturais do cresci-mento infantil, portanto bastante comprido. Essa pedagogia, da qualnão é preciso dizer o quanto nos impregna até hoje, acarreta umainfância prolongada, uma adolescência cada vez mais estendida, pelomenos para aquelas crianças que têm direito à infancia e não sãojogadas o mais rapidamente possível no mercado de trabalho. Conhe-cemos à saciedade um dos seus maiores problemas: a saber, a inserçãodessa eterna criança supostamente boa e natural na dura realidadeadulta, cheia de obrigações impostas. Dos sofrimentos de Emíliocrescido, apaixonado e infeliz até nossa relutância em passar dainfância feliz para a resignação da vida adulta e do trabalho, ocaminho é reto.

Não podemos deixar de observar aqui que a educação ideal, talqual Rousseau a imagina para Emilio, em particular esse respeitoprofundo pelos movimentos naturais do menino em oposição àarbitrariedade de regras sociais convencionais, que essa educação nãoé a mesma que receberá Sofia, apesar de seu belo nome: para asmeninas — e para as mulheres em geral — o olhar do outro, isto é, asconvenções sociais e o desejo masculino que Rousseau não pareceperceber aqui como sendo arbitrários, o olhar do outro continua aditar as regras de sua virtude.

Essa contradição apontada por várias pesquisadoras, 7 nos remetenão só aos "preconceitos machistas" de Rousseau, mas também àdificuldade de uma definição de natureza que não seja, predominan-

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temente, a imagem invertida e idealizada de um estado socioculturaldo qual sofremos. Rousseau, aliás, sabe dessa dificuldade, como suasobservações metodológicas no inicio do Discurso Sobre a Origem daDesigualdade Entre os Homens o ressaltam. Em relação â felicidadeperdida da infância, parece ser menos lúcido. Trata-se, pois, deassegurar na infancia o lugar privilegiado de uma felicidade e de umaproximidade da natureza que o adulto tem por missão sagrada nãos6 reconhecer e defender, mas também reencontrar como funda-mento intimo de si mesmo. Em outras palavras, Jean-Jacques precisada criança feliz e inocente para poder acreditar e nos fazer acreditarno seu esforço de homem adulto, mas sincero, de autenticidade e detransparência. Ou ainda: a inocência infantil é a garantia da trans-parência interior, tal qual a reivindica a escrita adulta das Confissões.8

Essas observações querem simplesmente indicar por que somos,me parece, ainda hoje, tão rousseaufstas, mesmo sem ter lido nenhu-ma Linha do Emilio. É que depois da infância —território do pecado—,Rousseau inaugurou um motivo muito mais forte hoje: a infanciacomo paraíso, perdido mas próximo. Numa época de "desencanta-mento" (Entzauberung der Welt de Max Weber) como a nossa, numaépoca que não consegue mais crer nem na vida depois da morte, nemno progresso histórico, nem na emancipação da sociedade, esforça-mo-nos para, pelo menos, acreditar ainda na possibilidade da felici-dade individual. E nisso a construção de uma infância idealizada nosajuda: fomos, sim, crianças felizes e inocentes, e nossos filhos sópodem (e devem) ser, igualmente, belos, alegres, ingênuos e despreo-cupados. E mesmo que nossa vida adulta profissional, social e senti-mental seja decepcionante e frustrante, no mínimo devemos ser paisamorosos, abnegados, companheiros, enfim, pais (sobretudo mães!)exemplares, como se, de repente, no reino encantado da infância eda filiação, pudéssemos nos livrar das mágoas e das insuficiências quecarregamos na existência restante. Como diz Contardo Calligaris nonúmero do "Mais!" citado no início de minha exposição:

Delas (das crianças) esperamos que nos ofereçam a imagem deuma plenitude e de uma felicidade que não é, e nunca foi, a

7 Elisabeth De Fontenay, "Pour Émile, Sophie ou l'invention du ménage". Em TempsModernes, maio de 1976, n. 38, e Badinter, op. cit.

8 A esse respeito, ver o bellssimo livro de Jean Starobinski, A Transparência e o Obstáculo(São Paulo: Companhia das Letras, 1994).

INFANCIA E PENSAMENTO : 1B1

nossa, mas graças a qual podemos amar a n6s mesmos. Olhamospara elas como para uma foto de nossa infância onde queremosparecer felizes. E para isso as protegemos, cuidamos e satisfazemos.

A criança é a caricatura da felicidade impossível: vestida defeliz, isenta das fadigas do sexo e do trabalho, idealmente des-preocupada. 9

Não quero concluir com essa denúncia, talvez ela mesma bastantecomplacente, do nosso narcisismo em relação â infancia, em relaçãoas crianças, em particular a nossos filhos. Gostaria, por fim, deapontar para algumas pistas que a reflexão filosófica contemporâneaabre nesse campo de ressonâncias mútuas entre infância e pensamen-to. Penso especificamente em textos de Walter Benjamim, de Jean-François Lyotard e de Giorgio Agamben. 10 O belo livro de WalterBenjamin não é, propriamente, uma autobiografia. Não se trata, paraBenjamin, de contar sua infância ou de resguardar lembranças felizes.Sobretudo não se trata de idealizá-la, de descrever um paraíso perdidoque o adulto possa ressuscitar pela escrita. O que interessa a Benjaminé tentar elaborar uma certa experiência (Erfahrung) cam a in-fância.

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Essa experiência é dupla: primeiro, ela remete sempre ã reflexão doadulto que, ao lembrar o passado, não o lembra tal como realmente foi,mas, sim, somente através do prisma do presente projetado sobre ele.Essa reflexão sobre o passado visto através do presente descobre nainfância perdida signos, sinais que o presente deve decifrar, caminhose sendas que ele pode retomar, apelos aos quais deve responder pois,justamente, não se realizaram, foram pistas abandonadas, trilhas nãopercorridas. Nesse sentido, a lembrança da infância não é idealização,mas, sim, realização do possível esquecido ou recalcado. A experiênciada infância é a experiência daquilo que poderia ter sido diferente, istoé, releitura crítica do presente da vida adulta.

9 Suplemento Mais! da Folha de S. Paulo, 24/07/1994, p. 6/4.10 Walter Benjamin, "Berliner Kindheit um 1900" em Gesammelte Schriften W-1 (Frankfurt

am Main: suhrkamp, 1972). Trad. brasileira em Obras Escolhidas II (são Paulo: Brasillen-se, 1987). J.F. Lyotard, Le postmoderne expliqué aux enfants, op. cit. Do mesmo autor, vertambém L'inhumain, (Paris: Galilée, 1988). Giorgio Agamben, Enfance et histoire (Paris:Fayot, 1988).

l i Ver a "Introdução" do próprio Benjamin para a última versão da "Infancla Berlinense",no volume VIT das Gesammelte Schriften.

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Há uma segunda dimensão dessa experiência crítica da infância.Benjamin não ressalta a ingenuidade ou a inocência infantis, mas, sim,a inabilidade, a desorientação, a falta de desenvoltura das crianças emoposição à "segurança" dos adultos. Mas essa incapacidade infantil épreciosa: não porque ela nos permite lançar um olhar retrospectivocomovido e cheio de benevolência sobre os coitadinhos que fomos,ou que nos cercam hoje. Mas porque contém a experiência preciosa eessencial ao homem do seu desajustamento em relação ao mundo, dasua insegurança primeira, enfim, da sua não-soberania. Essa fraquezainfantil também aponta para verdades que os adultos não querem maisouvir: verdade política da presença constante dos pequenos e doshumilhados que a criança percebe, simplesmente, porque ela mesma,sendo pequena, tem outro campo de percepção; ela vê aquilo que oadulto não vê mais, os pobres que moram nos porões cujas janelasbeiram a calçada, ou as figuras menores na base das estátuas erigidaspara os vencedores. A incapacidade infantil de entender direito certaspalavras, ou de manusear direito certos objetos também recorda que,fundamentalmente, nem os objetos nem as palavras estão ai somenteá disposição para nos obedecer, mas que nos escapam, nos questio-nam, podem ser outra coisa que nossos instrumentos dóceis. ]

As imagens da infância evocadas por Benjamin tentam pensaraquilo que, profundamente, jaz neste prefixo in — da palavra in-fan-cia. O que significa para o pensamento humano essa ausência origi-nária e universal de linguagem, de palavras, de razão, esse antes dologos que não é nem silêncio inefável, nem mutismo consciente, masdesnudamento e miséria no limiar da existência e da fala? Retomandoesta questão, Giorgio Agamben nos indica que essa experiênciainefável da in-fãncia — inefável não porque seria um início paradisía-co além das palavras, mas porque a in-fãncia está aquém das palavras,ao mesmo tempo sem palavras, sem linguagem e, porém, condiçãode possibilidade de sua eclosão —, que essa experiência da infância"exclui que a linguagem possa se apresentar como totalidade everdade" 13 Nem domínio do pecado nem jardim do paraíso, ainfância habita muito mais, como seu limite interior e fundador,nossa linguagem e nossa razão humanas. Ela é o signo semprepresente de que a humanidade do homem não repousa somente sobre

12 A esse respeito, ver J. M. Gagnebin, História e Narração em Walter Benjamin (São Paulo:Perspectiva, 1997), cap. IV.

13 Enfance et histoire, op. cit. p. 66.

I NFANCIA E PENSAMENTO : 1 83

sua força e seu poder, mas também, de maneira mais secreta, mas tãoessencial, sobre suas faltas e suas fraquezas, sobre esse vazio quenossas palavras, tais como fios num motivo de renda, não deveriamencobrir, mas, sim, muito mais, acolher e bordar. É porque a in-fãncianão é a humanidade completa e acabada, é porque a in-fãncia é, comodiz fortemente Lyotard, in-humana, que, talvez, ela nos indique oque há de mais verdadeiro no pensamento humano: a saber, suaincompletude, isto é, também, a invenção do possível.

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FONTES

I. O Infcfo da História e as Lágrimas de TucididesPublicado na revista Margem, n.l, publicação da Faculdade de Ciên-cias Sociais da PUC/SP e dos Programas de Estudos Pós-Graduados emCiências Sociais e História (São Paulo: EDUC, março de 1992).

II. As Flautistas, as Parteiras e as GuerreirasTexto apresentado para uma mesa-redonda no Sedes Sapientiae, emoutubro de 1979, São Paulo e, mais tarde, para a Semana de Filosofiada PUC/SP em outubro de 1984. Foi publicado nos Cadernos PUC/SP,n. 21, "Filosofia, Linguagem, Arte" (São Paulo: EDUC, 1985). Ooriginal em francês com o post-scriptum em anexo foi publicado narevista Les Cahiers du Grif (Paris: Éditions Tierce, 1992), "Provenancesde la pensée. Femmes/Philosophie".

III. Morte da Memória, Memória da Morte: da Escrita em PlatãoTexto apresentado no Colóquio Interdisciplinar de Estudos Gregos,PUC/SP, em 27 de abril de 1994, e, igualmente, como Conferênciano Instituto de Estudos Avançados da USP, em 8 de novembro domesmo ano. Inédito. A versão original francesa deve ser publicada embreve na revista Etudes Philosophiques (Paris: PUF).

IV. Dizer o TempoTexto apresentado no Congresso de Literatura e História na UNI-CAMP, na mesa-redonda de 26 de setembro de 1994, sobre "Aconstrução do tempo e da memória na história e na literatura".Publicado no número especial consagrado ao Tempo dos Cadernos deSubjetividade, n. 1/2, 1994, Programa de Estudos Pós-Graduados emPsicologia Clinica da PUC/SP.

V. Do Conceito de Mimesis no Pensamento de Adorno e BenjaminTexto apresentado no Ciclo de Conferências sobre a Escola de Frank-furt, realizado na Faculdade de Ciências e Letras da UNESP, Campus

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de Araraquara, em 1990. Publicado na revista Perspectiva, Editora daUNESP, n. 16, 1993.

VI. Do Conceito de Razão em AdornoTexto apresentado no Colóquio de Filosofia para os 80 anos daformação do curso de Filosofia da PUC/SP, entre 15 e 18 de agosto de1988. Publicado no livro coletivo que reúne as contribuições dessecolóquio: Umpassado revisado: 80 anos do Curso de Filosofia da PUC/SP,org. Salma Tannus Muchail (São Paulo: EDUC, 1992).

VII. O Nino, a Brisa e a Tempestade: os Anjos em Walter BenjaminVersão brasileira do artigo publicado pela revista Autrement, Paris,março de 1996, n. 162, "Le réveil des anges".

Apêndices

I. Baudelaire, Benjamin e o ModernoResenha publicada no Caderno "Letras" da Folha de S. Paulo, 7 deoutubro de 1989.

II. O Camponês de Paris: Uma Topografia EspiritualPosfácio a Aragon, O Camponês deParis. Tradução de Flávia Nascimen-to (Rio de Janeiro: Imago, 1996).

III. Infdncia e PensamentoConferência apresentada no seminário "Infáncia, Escola, Modernida-de", promovido pela Universidade Federal do Paraná e pela Secretariade Estado da Educação, em Curitiba, no dia 22 de maio de 1995.

Jeanne Marie Gagnebin nasceu em Lausanne (Suíça) em 1949.Depois de uma formação clássica em filosofia e literatura em Genebra,concluiu seu doutorado na Alemanha com uma tese sobre a filosofiada história de Walter Benjamin. Desses anos todos provém tanto um

apego ã tradição clássica quanto uma inquietação, nascida da ebuli-ção dos anos pós-68, que questiona essa mesma tradição. Radicadano Brasil desde 1978, Jeanne Marie Gagnebin é professora titular defilosofia da PUC/SP e professora Livre-docente de teoria literária daUnicamp. Publicou, entre outros, História e Narração em Walter Ben-jamin (Perspectiva, 1994).

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Biblioteca Pierre MenardDirigida por Arthur Nestrovski

Harold BloomA Angústia da Influência

Arthur Nestrovski (org.)riverrun

Ensaios sobre James Joyce

Concebida segundo padrões internacionais de editoração e pesquisa,a BIBLIOTECA PIERRE MENARD se dedica d publicação de trabalhos deinterpretação literária de autores nacionais e estrangeiros. Os textos, denível médio ou avançado, vem preencher uma lacuna no espaçouniversitário, mas serão de interesse igualmente para todo leitor desejosode aprofundar suas `afinidades eletivas` com a literatura, bem comopara estudiosos de filosofia, lingüística, psicologia e psicanálise, história,comunicação e outras ciências humanas vinculadas a questões de inter-pretação e leitura. A BIBLIOTECA PIERRE MENARD é dirigida por ArthurNestrovski.

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Harold BloomUm Mapa da Desleitura

J. Hillis MillerA Ética da LeituraEnsaios 1979-1989

Paul de ManAlegorias da Leitura

Jeanne Marie GagnebinSete Aulas

Sobre Linguagem,Memória e História

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