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SILVIO YASUI A CONSTRU˙ˆO DA REFORMA PSIQUI`TRICA E O SEU CONTEXTO HISTRICO Dissertaªo apresentada Faculdade de CiŒncias e Letras da Universidade Estadual Paulista Jœlio de Mesquita Filho, Campus de Assis, para a obtenªo do ttulo de mestre em Psicologia. Orientador: Prof“. Dr“. Claudete Ribeiro ASSIS 1999

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SILVIO YASUI

A CONSTRUÇÃO DA REFORMA

PSIQUIÁTRICA E O SEU CONTEXTO

HISTÓRICO

Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras

da Universidade Estadual Paulista �Júlio de Mesquita

Filho�, Campus de Assis, para a obtenção do título de

mestre em Psicologia.

Orientador: Profª. Drª. Claudete Ribeiro

ASSIS

1999

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SILVIO YASUI

A CONSTRUÇÃO DA REFORMA PSIQUIÁTRICA E O SEU CONTEXTO HISTÓRICO

COMISSÃO JULGADORA

DISSERTAÇÃO PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE

Orientador _________________________________________

2º Examinador ______________________________________

3º Examinador ______________________________________

Assis, de de 1999

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À Heloisa, por tudo, e

à memória de Koh Yasui

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Agradecimentos

Este trabalho foi escrito a muitas mãos. Mãos que não

teclaram no computador, mas que estavam por trás das palavras, frases,

idéias e, principalmente, na emoção de poder ver este texto finalmente

terminado. E, nos nomes que enuncio abaixo, vai o agradecimento e o

reconhecimento a todos que colaboraram com este trabalho, direta ou

indiretamente;

à Claudete Ribeiro pela paciência em acompanhar este

orientando;

ao Prof. Dr. Abílio da Costa Rosa e ao Prof. Dr. Paulo

Amarante, por suas valiosas sugestões e contribuições;

à Prof. Cristina Amélia Luzio, pela amizade sempre

presente e pelas contribuições a este trabalho;

ao Prof. José Sterza Justo, pelo constante apoio e

incentivo;

aos colegas do Departamento de Psicologia Clínica da

UNESP-Assis;

aos colegas de trabalho da DIR VIII de Assis,

especialmente à diretora, Márcia Ale Deperon, por sua compreensão e

apoio;

aos colegas de trabalho da UNISAM de Penápolis, com

quem muito aprendi;

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aos articuladores de saúde mental da CSI, que me

proporcionaram um inestimável aprendizado nos encontros com outras

cidades e realidades;

aos meus alunos da UNESP - Assis, com quem estabeleço

estimulantes e gratificantes diálogos;

a todos os meus inesquecíveis amigos e companheiros de

trabalho do Centro de Atenção Psicossocial Luiz da Rocha Cerqueira

(CAPS): Adalberto, Ana Luiza, Annete, Arnaldo, Cristina, Denise, Jonas,

Mirian, Regina, Sandra, Sérgio, Silvia, Videira (in memoriam), Cida,

Nerse, Elienai, Eduardo (in memoriam) Fátima, Hionar, Irene, Maria do

Carmo, Maria Emilia, Nice, Odete, Tiana, e a todos os diversos estagiários

FUNDAP;

à Dra. Ana Pitta pelo apoio e incentivo;

ao Geraldo, da Associação Franco Basaglia;

ao Jairo Idel Goldberg, em especial;

à Sylvia Fernandes e à Beth Araújo Lima, pela amizade

fraternal de todas as horas;

ao Zé Leon, fraterno amigo desde os tempos da

adolescência, quando apenas sonhávamos;

aos usuários do CAPS, que me deram grandes lições;

aos inúmeros fraternos amigos que tenho encontrado pela

vida, apesar dos tantos desencontros;

aos que irão chegar...

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 9

CAPÍTULO I

MOVIMENTOS SOCIAIS, REFORMA SANITÁRIA E REFORMA PSIQUIÁTRICA: CONSTRUINDO A CONTRA-HEGEMONIA 17

1.1. Os Movimentos Sociais .......................................................................................17

1.2. Movimento Sanitário e Reforma Sanitária...........................................................22

1.3. Conceitos para articular a Reforma Psiquiátrica: redemocratização, saúde, hegemonia, bloco histórico e intelectuais......................25

1.4. Apresentando algumas questões... .....................................................................36

CAPITULO II

OS ANOS SETENTA - REBELDES EM ANOS DE CHUMBO 39

2.1. O Cenário: Abertura lenta e gradual e os Movimentos Sociais.........................39

2.2. Semeando a Reforma Psiquiátrica .....................................................................48 2.2.1. Assistência em saúde mental; do público ao privado, mas sempre no hospital psiquiátrico ...............................................................................................49 2.2.2. Documentos, intenções e poucos gestos: sementes da Reforma Psiquiátrica .............................................................................................................53

2.3. O final dos anos setenta: germinam as sementes, brota o Movimento da Reforma Psiquiátrica ..................................................................................................65

2.4. Retomando as questões... ...................................................................................71

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CAPITULO III

OS ANOS OITENTA - CONQUISTANDO ESPAÇOS E CONSTRUINDO NOVAS PRÁTICAS 76

3.1. O Cenário: Redemocratização e a reconquista da cidadania...........................76

3.2. Construindo a Reforma Psiquiátrica ...................................................................86

3.3. Um pouco de São Paulo: das Ações Integradas de Saúde à Plenária de Trabalhadores de Saúde Mental. ................................................................................92

3.3.1. A Sorbonne..................................................................................................93 3.3.2. As Ações Integradas de Saúde.....................................................................94 3.3.3. O Juqueri .....................................................................................................100 3.3.4. Plenária dos Trabalhadores de Saúde Mental ...........................................103

3.4. Por uma sociedade sem manicômios: nasce o Movimento da Luta Antimanicomial. ................................................................................................106

3.5. Retomando as questões... .................................................................................119

CAPÍTULO IV

OS ANOS NOVENTA - LUTANDO CONTRA O NEO-LIBERALISMO 123

4.1. O Cenário: os anos noventa - O desafio de avançar no contexto da política neo-liberal..................................................................................................................123

4.2. Movimento Sanitário: institucionalizando a Reforma Sanitária .......................131

4.3. Institucionalizar a Reforma Psiquiátrica e desinstitucionalizar o Movimento141 4.3.1. A institucionalização da Reforma Psiquiátrica ..........................................142 4.3.2. De volta às origens.....................................................................................152

4.4 - Apresentando os novos paradigmas ...............................................................165

4.5. Retomando as questões.... ................................................................................174

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CAPÍTULO V

CONSTRUINDO NOVOS PARADIGMAS: O CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL PROF. LUIZ DA ROCHA CERQUEIRA (CAPS) 182

5.1. O contexto e o início ..........................................................................................184

5.2. Buscando uma identidade .................................................................................188

5.3. Mudando, transformando a partir dos detalhes do cotidiano..........................195

5.4. Ampliando a clínica: trabalho, moradia, lazer...................................................204

5.5. CAPS: um exemplo isolado ...............................................................................215

5.6. Retomando as questões... .................................................................................220

CONSIDERAÇÕES FINAIS 223

BIBLIOGRAFIA 230

ANEXO 243

RESUMO 247

ABSTRACT 248

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9

INTRODUÇÃO A prática profissional e o tempo histórico

Certa ocasião, em um curso ministrado no Brasil, um

pesquisador italiano fez um comentário provocativo sobre como os latino-

americanos iniciam seus relatórios científicos, para desespero da

objetividade anglo-saxônica; geralmente com �Desde 1800 as lutas

contra...� ou �Historicamente determinado, desde 1500...� etc. Séculos de

colonização e com uma economia de grande dependência, talvez nos

marquem ainda no lugar de colônia e, portanto, sentimos a necessidade

de reafirmar constantemente que temos uma história feita de lutas contra

a opressão e de atos heróicos. Uma história que não termina e que,

talvez, precisamos nos apropriar do fato de que a construímos.

Para não fugir a essa regra, este trabalho falará também

sobre a história. A história de uma assistência psiquiátrica que tinha (e

ainda tem) na internação compulsória no hospício seu único projeto

terapêutico, e de como esta foi (e ainda está) se transformando,

especialmente nos últimos anos, com a invenção de novas instituições e

de novas modalidades de atenção e de como essas coisas da história

influenciaram essas invenções.

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O autor é, também, um dos atores dessa história recente.

De 1983 a 1987, trabalhando no Hospital Psiquiátrico do Juqueri, em um

projeto que visava a oferecer uma condição de vida mais digna e humana

para os pacientes, através da constituição de unidades denominadas

Lares Abrigados, pudemos ver e sentir de perto como a prática da

internação vai destruindo vidas. Milhares de pessoas viveram e vivem no

Juqueri, assim como nos demais hospitais psiquiátricos, no mais das

vezes, sem qualquer justificativa psiquiátrica, relevante ou não, para

estarem internadas. Estão condenadas à exclusão perpétua, ao ócio e ao

abandono. À época, cunhamos um termo, que hoje se tornou de uso

comum nos hospitais psiquiátricos: chamávamos os pacientes dos Lares

Abrigados de moradores, exatamente para descaracterizar sua condição

de internados, na tentativa de instituir um novo estatuto, não mais

paciente submetido às normas e regras hospitalares, mas morador,

construindo o seu espaço de habitação, reconstruindo a sua cidadania.

Em 1987, questões políticas institucionais nos

afastaram do projeto e do Juqueri. Saímos do asilo e fomos trabalhar na

assistência extra-hospitalar, no primeiro Centro de Atenção Psicossocial

(CAPS) da rede pública: o CAPS Prof. Luiz da Rocha Cerqueira,

considerado, por vários setores ligados à área de saúde, como exemplo

de tratamento de pacientes com graves distúrbios psíquicos. Da

desconstrução do manicômio, a tarefa que nos propúnhamos no Juqueri,

para a construção de uma verdadeira assistência ao paciente, era tratar o

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intenso sofrimento psíquico, construir uma nova prática, um novo modo

de atenção.

Em 1989, publicamos um texto em que

descrevíamos, na forma de um depoimento pessoal, o trabalho

desenvolvido no CAPS, com suas dificuldades e potencialidades e o

momento histórico que possibilitou a sua emergência. Fatos como a

campanha das Diretas-Já e o surgimento do Movimento dos

Trabalhadores de Saúde Mental são citados como elementos importantes

para compreender em que contexto aquela prática foi construída.

Mudança, participação e cidadania não eram apenas palavras que nos

empolgavam, eram atos que nos faziam sentir, em todas as dimensões do

cotidiano, construtores da história� (Yasui, 1989, p.51). Com essas

palavras, tentávamos demonstrar o espírito com que trabalhávamos

àquela época.

É o espírito que norteia este trabalho. Tal qual um contador

de estórias que, resgatando retalhos e fragmentos do cotidiano, escreve

e reflete sobre sua prática, sobre seu tempo, e tem a pretensão de legar

às gerações porvir o registro de seu tempo histórico. Falando a partir do

pequeno quintal de nossa prática, temos o desejo e a vontade de falar

sobre o mundo e de contar como, a partir de pequenos gestos cotidianos,

podemos produzir grandes transformações.

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Na segunda metade da década de setenta, em plena

vigência da ditadura militar, inúmeras pessoas reuniam-se para discutir

seus dramas e carências cotidianas: a falta de transporte urbano, o custo

de vida, a falta de habitação, saneamento básico, saúde, dentre outros.

Enfrentando as severas e autoritárias restrições da época, iniciaram

diversas manifestações de reivindicações. A partir das pontuais questões

cotidianas, essas manifestações transformaram-se em inúmeros

movimentos caracterizados, principalmente, por sua independência do

aparelho do Estado, e conquistaram espaço e repercussão apontando

para uma ruptura das antigas formas tuteladas de organização,

marcando a retomada dos chamados Movimentos Sociais.

Fortalecendo o poder de articulação da sociedade civil, os

Movimentos Sociais contribuíram de maneira decisiva no enfrentamento

político ao regime militar, acelerando o processo de redemocratização.

Era a gente da periferia das grandes cidades lutando para melhorar sua

condição de vida, ajudando a mudar o país.

Contaminados por esse momento histórico de articulação e

de confronto com a ditadura militar, trabalhadores que atuavam no interior

das instituições psiquiátricas, inconformados com aquele cotidiano de

violência e segregação, iniciaram ações de contestação, apoiados,

inclusive, por vários textos técnicos e documentos oficiais. Saltaram os

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muros dos asilos, denunciando a face autoritária e controladora da ciência

psiquiátrica, aliando-se à luta contra o autoritarismo vigente na sociedade.

Foi no contexto de retomada dos movimentos sociais, a

partir, especialmente, do cotidiano das instituições, que começaram as

transformações da assistência psiquiátrica brasileira. Nomearemos esse

processo de construção de Movimento da Reforma Psiquiátrica, no

sentido de tentar contemplar seus diferentes momentos e seus diferentes

atores, a exemplo da nomeação dada à Reforma Sanitária.

O campo da saúde mental é um campo político por

excelência, sensível e suscetível ao jogo de forças do poder que se

estabelece na sociedade. Nesse sentido, o Movimento da Reforma

Psiquiátrica radicaliza o sentido da palavra movimento: irá modificar-se,

transformar-se, estabelecer alianças, atualizar permanentemente seus

temas, em consonância com o seu tempo histórico. É a gente

trabalhadora lutando para transformar a assistência em saúde mental,

querendo, também, transformar o país.

E esse é o tema de interesse desta pesquisa. Tendo como

objetivo contribuir para a discussão e a consolidação da transformação da

assistência em saúde mental, pretende-se, a partir de conceitos que

analisam a Reforma Sanitária, compor o cenário político e social em que

o Movimento da Reforma Psiquiátrica foi sendo construído, de seu início

nos anos setenta até os anos noventa, caracterizando-o como um

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movimento social contra-hegemônico. Inicialmente impulsionado por

intelectuais e por trabalhadores de saúde mental, o Movimento da

Reforma Psiquiátrica foi construindo paradigmas e produzindo rupturas

em diversos campos, ampliando e estabelecendo alianças com outros

segmentos da sociedade civil, principalmente organizações populares

como as associações de usuários e pacientes. Como exemplaridade

desse Movimento e dos novos paradigmas que apresenta, analisaremos

o CAPS Luiz da Rocha Cerqueira.

Vale frisar que, embora a designação Reforma Psiquiátrica

possua limitações que não correspondem ao processo que efetivamente

vem ocorrendo, muito mais dinâmico, abrangente e transformador,

optamos por utilizá-lo por seu uso consagrado. O Movimento da Reforma

Psiquiátrica caracteriza-se como um movimento, amplo constituído por

diversos personagens e por outros movimentos que tiveram (e ainda têm)

sua importância em determinados momentos históricos, ora aparecendo

como atores principais, ora como coadjuvantes, ora como um movimento

coeso, ora como um movimento com cisões: Rede Alternativa à

Psiquiatria, Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental,

Coordenadores de Saúde Mental, Plenária de Trabalhadores de Saúde

Mental, Movimento da Luta Antimanicomial. Mais recentemente, com o

seu fortalecimento e sua estreita ligação com outros segmentos sociais, o

Movimento da Luta Antimanicomial tem sido a expressão mais visível do

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processo de transformação psiquiátrica brasileiro, caracterizando-se como

um Movimento Social.

No Capítulo I, apresentamos uma análise efetuada por

alguns autores, destacando o trabalho de Escorel (1989) que, utilizando-

se de referenciais teóricos de Gramsci, discute a saúde a partir de uma

perspectiva de articulação e promoção de processos de transformação

social, levados a cabo pelo Movimento Sanitário. Ao final, apresentamos

algumas questões que nortearam o presente trabalho, no sentido de

aplicar a mesma análise ao Movimento da Reforma Psiquiátrica.

No Capítulo II, apresentamos o cenário político e

econômico que serviram como pano de fundo ao nascimento dos

Movimentos Sociais, na década de setenta, anos marcados pela

resistência e enfrentamento ao regime militar. Através de documentos

oficiais, apresentamos os primeiros passos e gestos do Movimento da

Reforma Psiquiátrica.

No Capítulo III, apresentamos o cenário político do final do

período de transição democrática, marcado por uma grande mobilização

nacional, a Campanha das Diretas-Já, e pela Constituinte. Descrevemos

o processo de ampliação e fortalecimento do Movimento da Reforma

Psiquiátrica, que conquistará espaços no aparato estatal e,

principalmente, através dos novos dispositivos institucionais sustentados

por uma prática eticamente comprometida com a causa dos

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trabalhadores, iniciará uma transformação na assistência em saúde

mental, estabelecendo alianças com outros setores da sociedade,

especialmente com as Associações de Familiares e Usuários.

No Capítulo IV, descrevemos o cenário que perdura até os

dias atuais: o da implantação do modelo econômico neo-liberal. É dentro

desse contexto que analisamos o processo de institucionalização do

Movimento da Reforma Sanitária e do Movimentos da Reforma

Psiquiátrica, que conquistaram grandes espaços no interior do Estado.

Enquanto o primeiro se distanciou das questões cotidianas da assistência,

o segundo encontrou, através do Movimento da Luta Antimanicomial, um

importante dispositivo para, sem abandonar a estratégia de ocupação do

aparelho estatal, ampliar seu campo de atuação e manter-se

permanentemente atualizado com o cotidiano da assistência.

Apresentamos, também, os principais paradigmas construídos pelo

Movimento da Reforma Psiquiátrica.

No Capítulo V, como exemplaridade do processo da

Reforma Psiquiátrica, apresentamos o trabalho desenvolvido pelo Centro

de Atenção Psicossocial Prof. Luiz da Rocha Cerqueira, de São Paulo. No

cotidiano daquela instituição, no processo de sua construção, as questões

foram surgindo e os paradigmas foram sendo construídos .

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CAPÍTULO I

MOVIMENTOS SOCIAIS, REFORMA SANITÁRIA E REFORMA PSIQUIÁTRICA: CONSTRUINDO A CONTRA-HEGEMONIA

Vem, vamos embora que esperar não é saber, Quem sabe faz a hora, não espera acontecer

Geraldo Vandré

O Movimento da Reforma Psiquiátrica teve sua origem

nos anos setenta e fortaleceu-se a partir dos anos oitenta. Inserido em

um movimento mais amplo, o do Movimento Sanitário, desenvolveu-se

em um determinado contexto histórico: o processo de redemocratização

do país.

Esse processo teve início na segunda metade dos anos

setenta, com a chamada Abertura Lenta e Gradual e foi impulsionado,

principalmente, por um marcante fenômeno urbano daqueles anos: a

retomada dos Movimentos Sociais.

1.1. Os Movimentos Sociais

Foi em um cenário de crise econômica e de legitimação

política (que trataremos em capítulo posterior) que começaram a surgir

diversas manifestações nas grandes metrópoles, tais como: ações

espontâneas de revolta contra as condições de transporte urbano;

manifestações contra a carestia, organizadas a partir das Associações de

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Moradores de Bairro; passeatas estudantis reivindicando liberdades

democráticas e marcando o renascimento do Movimento Estudantil; e,

ao final dos anos setenta, surgiu o Movimento Operário do ABC1 paulista,

com marcantes diferenças em relação à tradição do sindicalismo

brasileiro, submetido e submisso à tutela do Estado.

Surpreendendo a todos, pois até então as análises

tendiam a interpretar a fábrica e o partido político como os lugares

exclusivos e privilegiados de manifestações da classe operária, esses

movimentos, pontuais em suas reivindicações, surgiram em um momento

histórico marcado pela opressão, em que os canais de manifestações

estavam emudecidos ou eliminados pelo regime autoritário. Apontaram

para um sentido e um alcance que ultrapassou o imediato e o local, para

mobilizar e articular, como experiência compartilhada, as várias

opressões vividas em locais diferenciados (Telles, 1987). Ou seja, era a

vivência comum da exclusão política e da segregação urbana

possibilitando a construção de identidades coletivas.

Ao exporem suas reivindicações, tornaram visíveis os

conflitos e as contradições sociais

tornavam, para usar uma expressão de Lefort, 'o social legível'

em seus acontecimentos, reconhecíveis pela denúncia nele

inscrita da opressão e da exclusão vividas naqueles anos,

1 Santo André, São Bernardo e São Caetano, cidades da Grande São Paulo, conhecidas por seu grande parque industrial.

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reconhecível ainda nos sinais de uma sociedade que não havia

sido inteiramente submergida pela violência e pela coerção

estatal. (Ibid., p.61)

Esses movimentos tiveram, como característica,

reivindicações vinculadas às questões básicas de sobrevivência cotidiana.

A moradia e seu mundo de sociabilidades, o bairro e

seus 'pequenos' dramas cotidianos montados em torno das

condições imediatas de vida e em torno das chamadas

carências urbanas ganhavam uma nova visibilidade, armando o

cenário reconhecível que fazia aparecer os trabalhadores como

sujeitos de práticas, cujo sentido estava na possibilidade que

estas sugeriam de uma revitalização da sociedade contra a

institucionalidade vigente. (Ibid., p.62)

Na sociedade civil, articularam-se espaços de

experiências significativas e de construção de novos sujeitos, que

elaboraram práticas cotidianas de resistência, construíram laços de

solidariedade e projetos de vida, criaram códigos de reconhecimento e

identidade, teceram representações acerca do mundo. Assim, as

condições concretas de vida surgiram como campo de luta que

possibilitou o reconhecimento de interesses comuns, a noção de

participação, as ações e decisões coletivas e articularam um sentido

político aos espaços, afirmando reivindicações e exigências de direitos

frente ao Estado.

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Dentro desse quadro, a reivindicação pelo Direito à Saúde

tornou-se uma das mais importantes.

Segundo Luz (1979), o período de 68-74 pode ser

caracterizado como "sete anos de vacas gordas para economia e sete

anos de vacas magras para a saúde" (Ibid., p.72). Os altos índices de

mortalidade infantil2, a epidemia de meningite no ano de 1974, a

inexistência de equipamentos de saúde nas áreas da periferia das

cidades, eram exemplos das precárias condições da saúde pública, que

se caracterizava por um perfil médico-assistencial privado com gerência

estatal, comandado e coordenado pela Previdência Social. O complexo

setor médico-empresarial, prestador de serviços e produtor de insumos,

articulado com a burocracia previdenciária, eram os responsáveis pela

execução da política de saúde, tendo como uma das conseqüências um

predomínio da assistência médico-hospitalar privada em detrimento das

ações de natureza médico-sanitária.

Esse predomínio determinou uma baixa efetividade da

política social de saúde, criando um sistema com uma dinâmica perversa,

gerando profundas desigualdades na apropriação dos serviços de saúde

e provocando manifestações dos setores excluídos, nas grandes

metrópoles, e mais especificamente, na Grande São Paulo (Jacobi, 1989).

2 IYDA, 1993, p.97, citando ORTIZ, mostra que a taxa de mortalidade infantil foi: de 72,58 em 1965; de 83,19 em 1970; de 84,63 em 1975. Como comparação, países industrializados (EUA, Japão, Canadá, Inglaterra etc.) apresentam taxas menores do que 3,0. Esse índice refere-se ao número de crianças mortas por mil nascidas vivas.

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Para Jacobi (Ibid.), que analisa os Movimentos Sociais a

partir dos Movimentos Populares pelo saneamento básico e pela saúde

dos bairros periféricos da região metropolitana de São Paulo,

um dos aspectos mais relevantes dos movimentos

reivindicatórios urbanos tem sido o de cristalizar o significado

da cidadania não só em termos de conquistas materiais mas,

principalmente, na constituição de uma identidade que

gradualmente vai quebrando a consciência fragmentária que

lhes é imposta pelas heranças do regime político autoritário e

pela situação de subalternidade de seus agentes. No processo

de interação com os órgãos públicos, as suas demandas

configuram a emergência de uma identidade social específica e

localizada no bairro, que faz deles sujeitos que reivindicam

direitos, numa perspectiva de apropriação igualitária de bens

de consumo coletivo e de cidadania ou de melhores condições

de vida nas cidades. (Ibid., p.159).

É dentro desse panorama, em que os Movimentos Sociais

surgiram como legítimos interlocutores de reivindicações abrindo a

possibilidade de um projeto social de reconquista dos direitos e de

reconstrução democrática que, em meados da década de setenta, vamos

encontrar o início do Movimento Sanitário, tendo a democratização da

saúde como uma de suas bandeiras de luta e como parte de uma

estratégia maior de democratização da sociedade.

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1.2. Movimento Sanitário e Reforma Sanitária

O Movimento Sanitário organizou-se, originalmente, a

partir da universidade, especialmente nos Departamentos de Medicina

Preventiva que introduziram o método histórico-estrutural no campo da

saúde, buscando compreender processos como a determinação social da

doença e a organização social da prática médica. Para além de produzir

um novo saber, pretendiam produzir práticas alternativas ao modelo

dominante, individualista e altamente especializado, como os projetos de

medicina comunitária. E, em um projeto maior, articular conhecimentos

à busca de novas práticas políticas e à difusão de uma consciência

sanitária.

Foi a partir da segunda metade dos anos setenta que o

Movimento Sanitário, com a incorporação de organizações sindicais

médicas, imprimiu uma dimensão política às reivindicações pela

transformação do sistema de saúde. Em sua vertente político-ideológica

busca,

inspirado na experiência italiana, mecanismos capazes de

difundir uma nova consciência sanitária, ao mesmo tempo que

construir uma rede organizada e canalizadora das diferentes

manifestações de oposição à política de saúde. (Teixeira &

Mendonça, 1995, p.206)

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Nesse sentido, a constituição do Centro Brasileiro de

Estudos da Saúde (CEBES), em 1976, surgiu não só como um

importante instrumento de difusão de uma nova proposta para a

organização do sistema de saúde inserida na luta mais geral pela

democratização do país, como também como um articulador de uma rede

de relações envolvendo intelectuais, setores da burocracia, lideranças

populares e sindicais e profissionais de saúde.

Ainda que sem um apoio consistente dos usuários, o

Movimento Sanitário seguiu uma estratégia de politizar as discussões

sobre a saúde, ocupar espaços políticos e de organizar uma coalizão de

forças da oposição em torno de um projeto técnico e político de reforma

do sistema de saúde, contendo diretrizes e princípios para a organização

de um sistema público, universal e integral de atenção à saúde, que foi

sendo construído ao longo dos anos de forma cada vez mais detalhada

e abrangente.

Nos anos oitenta, o Movimento Sanitário estava

organizado, articulado e era o único grupo capaz de apresentar uma

alternativa concreta de reforma do sistema de saúde que enfrentava uma

crise em seu modelo privatizante. Vários intelectuais do Movimento foram

convidados a exercer altos postos na Previdência Social, em meio a uma

profunda crise, também, daquela instituição. O eixo de luta pela mudança

deslocou-se de fora para dentro do aparelho estatal. O Movimento

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conquistou, assim, uma importante arena política de confronto com

setores e segmentos mais privatizantes na definição da política de saúde.

O conjunto de propostas políticas e técnicas defendido

pelo Movimento Sanitário concretizou-se no que se denominou de

Reforma Sanitária.

O conceito de Reforma Sanitária refere-se a um

processo de transformação da norma legal e do aparelho

institucional que regulamenta e se responsabiliza pela proteção

à saúde dos cidadãos que corresponde a um efetivo

deslocamento do poder político em direção às camadas

populares, cuja expressão material concretiza-se na busca do

direito universal à saúde e na criação de um sistema único sob

a égide do Estado. (Teixeira & Mendonça, 1995, p.194)

Ao longo dos anos oitenta e nos anos noventa, a Reforma

Sanitária foi a grande responsável pela transformação do sistema de

saúde no país, tendo na consagração do preceito constitucional da

Saúde como direito de todos e dever de estado, uma de suas mais

importantes conquistas.

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25

1.3. Conceitos para articular a Reforma Psiquiátrica: redemocratização, saúde, hegemonia, bloco histórico e intelectuais.

Hoje, passados mais de vinte anos, embora os

Movimentos Sociais tenham frustrado as expectativas de se constituírem

em um grande movimento de massa, que transformariam as relações

sociais, não há dúvidas de que contribuíram para fortalecer a sociedade

civil e implementar o processo de redemocratização.

A redemocratização trouxe uma nova correlação de forças

entre as classes dominantes e as classes subalternas, com o

fortalecimento da autonomia da sociedade civil. O revigoramento do

espaço público fez com que as instituições públicas e as políticas sociais

fossem, cada vez mais, objetos de constante tematização e as propostas

importantes sobre elas, de mudanças ou de manutenção, devessem ser

debatidas sob o marco de regras democráticas.

Para Gallo & Nascimento (1995), esse processo implicou

uma mudança de estratégia das classes dominantes que buscaram não

mais o domínio, utilizando-se da coerção, mas a direção da sociedade.

Esse processo de dirigir um bloco de forças em torno de propostas

consensuais, é o que Gramsci (apud Coutinho, 1981) denomina de

hegemonia, em contraposição à coerção.

Luz (1979) define o conceito de hegemonia como de um

poder político-ideológico que a classe dominante procura estender ao

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conjunto da sociedade, à totalidade das classes e grupos sociais.

Ressalta do conceito uma interpretação dinâmica, vendo-o como um

processo de uma prática sempre recomeçada e de uma prática

contraditória, na medida em que institui como universal uma ordem que é

fundamentalmente particular. Ou seja, toma os interesses de uma classe

como os da sociedade.

O processo de hegemonia pressupõe uma longa luta de

persuasão na sociedade civil que, por seu caráter prolongado, foi

chamado por Gramsci de guerra de posição, podendo ser definida como

"a luta pela conquista da hegemonia da direção política ou do consenso"

(Coutinho, 1981, p.105).

Com o processo de redemocratização do país, a área de

saúde passou a sofrer as influências do fortalecimento do

movimento dos profissionais do setor, e da crescente

tematização da questão da saúde na sociedade em geral.

Vivemos atualmente, então, uma situação �sui generis�, em que

o Movimento Sanitário em suas diferentes variantes acumulou

êxitos, forçando reformas administrativas importantes, mas

encontra dificuldades em levar à prática a descentralização e a

unificação do Sistema de Saúde, ressentindo-se ainda de um

apoio mais constante tanto dos profissionais da área, como da

população organizada para a proposta de Reforma Sanitária.

(Gallo & Nascimento, 1995, pp.92-93)

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Isso caracteriza, para os autores, o universo gramsciano:

uma guerra de posições,

onde atores a favor e contra a Reforma Sanitária defendem

seus ideários e entram em luta (de forma aberta ou velada),

nas mais diversas instâncias - no interior dos aparelhos das

instituições de saúde, junto às organizações da sociedade, no

Congresso e nas instituições dos profissionais do setor - , no

contexto de uma grave crise social e econômica. (Ibid., p.93)

Nesse sentido, a Reforma Sanitária, ainda que tenha

nascido como um projeto de intelectuais do setor, visou a atender às

necessidades das classes subalternas, contrapondo-se aos interesses

das empresas privadas do setor e implicando-a, necessariamente, no

quadro mais geral de luta de classes do país.

A luta pela Reforma Sanitária não pode deixar de andar

�pari e passu� com a luta por mudanças estruturais na

sociedade brasileira, o que eqüivale dizer que o Movimento

Sanitário, em seu projeto contra-hegemônico, tem

necessariamente de enfatizar o estreito vínculo entre saúde e

sociedade, e ligar-se às correntes políticas e organizações

sociais que de uma forma ou outra contestam a sociedade

instituída. (Ibid., p. 94)

A construção de um projeto contra-hegemônico, ou seja, a

construção de um projeto hegemônico das classes subalternas, implica a

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28

formulação de propostas consensuais com poder político-ideológico que

sejam a expressão dessa classe.

Mas um setor específico da sociedade, como é o da

saúde, pode almejar propor-se como um projeto contra-hegemônico sem

configurar-se, ao contrário, como um projeto de características

corporativas dada a natureza do Movimento Sanitário?

Para responder a essa questão, nos fundamentaremos

em um texto de Escorel (1995) que, utilizando-se de conceitos de

Gramsci, analisa o Movimento Sanitário como uma proposta contra-

hegemônica na construção de um novo bloco histórico. Os conceitos

utilizados e construídos pela autora servirão para nos guiar na análise

que pretendemos realizar sobre o Movimento da Reforma Psiquiátrica.

Isso justifica o motivo pelo qual nos estenderemos nesse texto.

Para Escorel (Ibid.), a luta pela transformação da situação

de saúde da população brasileira é parte privilegiada da luta pela

transformação da sociedade. Considera que a arena de luta da saúde é

um campo de múltiplas interseções e relações com as demais esferas do

desenvolvimento das sociedades.

A autora avalia que, por seu valor universal e por ser

considerado como parte integrante das condições mínimas de

sobrevivência, a saúde é componente fundamental da democracia e da

cidadania. Cita Bobbio, ao entender essa primeira como democracia

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substancial, ou seja, "indica um conjunto de fins e meios entre os quais

se sobressai a igualdade jurídica, social e econômica" (apud Escorel,

1995, p.182).

Retoma o conceito de saúde plena, definido na 8ª

Conferência Nacional de 1986, como

resultante das condições de alimentação, habitação, educação,

renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer,

liberdade, acesso e posse de terra e acesso aos serviços de

saúde. É assim, antes de tudo, resultado das formas de

organização social da produção, as quais podem gerar grandes

desigualdades nos níveis de vida. (Escorel, 1995, p.182)

Ao defini-la como resultante e condicionante desses

fatores, a luta pela transformação da saúde deve estar inserida em uma

luta global, pela transformação social.

Afirma que a saúde é uma explicitação das condições de

igualdade social, uma vez que é determinada por esse conjunto de

direitos.

A noção de direitos nos remete à definição de cidadania,

compreendida não só pela existência formal de direitos civis,

políticos e sociais, mas pela possibilidade efetiva de exercê-los.

(...) A igualdade social é portanto uma noção concreta sobre

um cotidiano onde a garantia de determinadas condições de

vida e sobrevivência permite (ou não) ao homem ser livre,

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manifestar seu pensamento, organizar-se e lutar por aquilo que

lhe parece correto. [Trata-se da] ampliação da noção de

igualdade: de uma igualdade formal a uma igualdade na

apropriação da riqueza social. (Ibid., p.183)

A saúde é, assim, como os outros direitos sociais, um

elemento potencialmente revolucionário e de consenso. Revolucionário,

pois se constitui em um campo privilegiado de luta de classes, onde se

pode dar a formação e a transformação da consciência (luta ideológica),

onde se chocam as concepções de vida das diferentes classes sociais.

Sendo parte integrante e fundamental desse conceito de igualdade e da

possibilidade de desenvolvimento pleno das qualidades de cada um, a

luta pela saúde adquire um caráter subversivo, inclusive em contraposição

ao tratamento de mercadoria que recebe nas sociedades capitalistas. E é

elemento potencialmente de consenso, pois a saúde é um valor

largamente compartilhado, um direito que pode congregar um conjunto de

forças para, através de uma aliança empreender uma luta para sua

conquista. Como citamos anteriormente, os Movimentos Populares de

saúde analisados por Jacobi (1989) atestam essas afirmações.

Escorel (1995) utiliza o conceito de classe nacional de

Gramsci, para discutir a saúde como uma questão nacional, cuja

especificidade a transforma em palco privilegiado e precursor de uma luta

mais global de transformação da sociedade. Para obter a hegemonia e

se propor ao poder a classe operária deve, para Gramsci (apud Escorel,

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1995) em sua noção de classe nacional, superar todo o corporativismo e

fazer-se portadora de um projeto global de sociedade. Dentro desse

processo, os intelectuais são importantes na agregação de um bloco

histórico, de uma vontade coletiva, ou seja, na construção das relações

de hegemonia.

Embora a analise feita por Gramsci (apud Escorel, 1995)

se refira à luta de classes, a autora propõe analisar a questão da saúde e

da luta para sua conquista a partir das categorias apontadas:

uma questão torna-se nacional na medida em que supera todo

o corporativismo e é portadora de um projeto global da

sociedade. Analisar a luta implica necessariamente perceber a

direção que lhe é dada, em que pode-se identificar qual o

projeto global da sociedade que está implícito ou subjacente a

essa luta num campo particular de transformação social.

(Escorel, 1995, p.185)

Neste sentido, o Movimento Sanitário em sua luta pela

transformação do sistema de saúde configura-se como um sujeito político

coletivo. A autora caracteriza o Movimento Sanitário como um movimento

suprapartidário cuja organicidade é formada por um projeto, a

transformação das condições de saúde da população, e por uma

linguagem comum, o pensamento médico-social que podemos definir

como sendo o da consciência sanitária.

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Ressalta que o Movimento Sanitário nunca se distanciou

da luta pela transformação da sociedade tendo, nos anos da ditadura,

como diretriz: Saúde e Democracia. Nos anos da transição política, teve

como estratégia a ocupação nos aparelhos de Estado no sentido de dar

outra direção à política pública. Nos anos que nomeia sendo o do último

capítulo da transição democrática, o Movimento Sanitário organizou-se

para escrever, na Constituinte, o direito à saúde como direito elementar

do cidadão brasileiro. "Para isso, o Movimento Sanitário fez valer uma de

suas outras características que é o estabelecimento de alianças com

setores progressistas, populares ou não, comprometidos com luta"

(Ibid., p.186). Conceber a unidade como valor estratégico e a saúde como

uma questão nacional permitiu ao movimento manter-se orgânico e

organizado ao longo dos anos.

Para a autora , apesar das alianças e da participação de

outros movimentos populares, o Movimento Sanitário é ainda um

movimento de intelectuais de classe média, mas que não defende

interesses próprios, corporativos.

O Movimento Sanitário pode ser considerado como um

intelectual coletivamente orgânico das classes trabalhadoras

no campo da luta da saúde (... e podemos) pensá-lo como

uma manifestação do novo bloco histórico no setor saúde, que

procura, mais do que construir uma nova ideologia,

transformar as relações sociais existentes sem com isso retirar

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o principal campo de luta da Reforma Sanitária que é o da luta

ideológica. (Ibid., p. 186 )

Conceitua, a seguir, as noções de hegemonia e bloco

histórico, citando Gruppi:

Gramsci especifica o modo pelo qual põe o problema da

hegemonia da classe operária: a hegemonia se realiza

enquanto descobre mediações, ligações com outras forças

sociais, enquanto encontra vínculos também culturais e faz

valer no campo cultural as próprias posições. (apud Escorel,

1995, p.187)

E, ao trabalhar o conceito de bloco histórico, Gruppi

aponta, ainda, que:

a hegemonia tende a construir um bloco histórico, ou seja, a

realizar uma unidade de forças sociais e políticas diferentes e

tende a conservá-las juntas através da concepção de mundo

que ela traçou e difundiu ... hegemonia é isso: determinar os

traços específicos de uma condição histórica, de um processo,

tornar-se protagonista de reivindicações que são de outros

estratos sociais, da solução das mesmas, de modo a unir em

torno de si esses estratos, realizando com eles uma aliança na

luta contra o capitalismo e, desse modo, isolando o próprio

capitalismo. (apud Escorel, 1995, p.187)

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Acrescentamos que, para Portelli (1977), o conceito de

bloco histórico deve ser analisado sob um triplo aspecto: o estudo das

relações entre estrutura (base econômica) e superestrutura (sociedade

civil e sociedade política); análise da maneira pela qual um sistema de

valores impregna, penetra, socializa e integra um sistema social; e como

se desagrega a hegemonia da classe dirigente, edificando um novo

sistema hegemônico, criando-se um novo bloco histórico. Podemos definir

assim bloco histórico como a articulação interna de uma situação histórica

determinada.

Assim, a autora destaca que a construção de um bloco

histórico alternativo ao dominante passa pelo estabelecimento da

hegemonia e formação de alianças, que devem ser analisadas enquanto

momentos de constituição na construção do bloco histórico. O Movimento

Sanitário, nascido de um grupo de intelectuais, constituiu um projeto com

a perspectiva das classes trabalhadoras e populares, ampliou o leque de

suas alianças e vem se transformando num projeto comum a outras

classes superando o corporativismo inicial. Participou intensamente na

luta ideológica, criando, com o conjunto de forças sociais progressistas,

pressupostos políticos, econômicos e ideológicos num processo que é

comumente nomeado de construção da contra-hegemonia.

Finaliza a autora analisando o papel dos intelectuais,

lembrando que, para Gramsci, "não existe uma classe independente de

intelectuais, e sim cada grupo social tem sua própria camada de

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intelectuais ou tende a formá-la" (apud Escorel, 1995 p.189) e, mais

adiante, afirma: o que interessa

são os intelectuais como massa e não somente como

indivíduos. É sem dúvida importante e útil para o proletariado,

que um ou mais intelectuais, individualmente, adiram ao seu

programa e doutrina, se fundam com o proletariado, se

convertam em parte e se sintam parte dele. O proletariado é,

como classe, pobre de elementos organizativos e não tem nem

pode formar um estrato próprio de intelectuais senão muito

lentamente, muito trabalhosamente, e somente depois da

conquista do poder estatal. Mas também é importante que na

massa dos intelectuais se produza uma fratura de caráter

orgânico, historicamente caracterizada; que se construa, como

formação de massas uma tendência de esquerda no sentido

moderno da palavra ou seja orientado para o proletariado

revolucionário. (Ibid., p.190)

Analisa a autora que, desde sua origem, nos

Departamentos de Medicina Preventiva e Social, até os dias atuais, o

Movimento Sanitário vem direcionando a luta da saúde em direção às

classes trabalhadoras e também

construindo valores ideológicos proletários quando luta por um

sistema de Saúde universal, equânime, acessível e

democrático, quando pensa na saúde como valor universal e

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se concentra no alvo de impedir a mercantilização da saúde.

(Escorel, 1995, p.191)

E ressalta a luta ideológica travada com o liberalismo no

conjunto dos intelectuais, médicos e demais profissionais de saúde,

buscando "produzir na massa dos intelectuais (setoriais) uma fratura de

caráter orgânico" (Escorel, 1995, p.191)). As alianças estabelecidas pelo

Movimento Sanitário ampliaram a base social da luta pela Reforma

Sanitária, permitindo também que fossem ultrapassados os limites

setoriais da fratura orgânica.

A autora finaliza seu artigo afirmando que as categorias

utilizadas na análise permitem concluir que as ações do Movimento

Sanitário têm sido

efetivamente na direção de um longo e árduo processo de

criação de novos pressupostos políticos, econômicos e

ideológicos que tornarão possível o estabelecimento e a

consolidação do socialismo em nosso País. (Ibid.)

1.4. Apresentando algumas questões...

Os Movimentos Sociais dos anos setenta possibilitaram o

surgimento de novos sujeitos históricos, que se afirmaram como

interlocutores fundamentais na construção da cidadania (Jacobi, 1989),

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acelerando o processo de transição democrática. No contexto desses

movimentos, um grupo de intelectuais iniciou um movimento pela

transformação das condições de saúde da população, que por seu valor

intrínseco, constituíram-se em um movimento contra-hegemônico na

construção de um bloco histórico alternativo ao dominante.

É dentro do contexto dos Movimentos Sociais, como um

setor dentro do Movimento Sanitário, que um outro grupo de intelectuais

iniciou o Movimento da Reforma Psiquiátrica.

Ornellas (1997) analisa o movimento de transformação

psiquiátrica, afirmando que a

... denúncia da natureza violenta do sistema asilar contém os

ingredientes para a construção de um discurso ideológico,

mobilizador e transformador. E com esse discurso o

movimento antiinstituição, antiasilos, anti-sistema psiquiátrico,

cresceu e expandiu-se, estendendo-se por quase todo o

mundo ocidental, num processo em que se articula enquanto

corrente ideológica e movimento social. (Ibid., p.191)

O campo da saúde mental configura-se como um lugar de

conflitos e disputas. É essencialmente o lugar do encontro do singular e

do social, do eu e do outro. É, também, o lugar do confronto: das idéias

de liberdade e solidariedade contra o controle e a segregação, do privado

e do público, da inclusão e da exclusão, da afirmação da cidadania e de

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sua negação. Portanto, uma campo de lutas políticas, sociais e

ideológicas.

Assim, o Movimento da Reforma Psiquiátrica é um

movimento com fortes conotações políticas, impregnado ética e

ideologicamente. O processo de sua construção esta intimamente ligado à

luta pela transformação da sociedade.

Nesse sentido, é possível traçar um paralelo entre a

análise, feita por Escorel, do Movimento Sanitário para o Movimento da

Reforma Psiquiátrica?

Quais os elementos semelhantes? Em que se

diferenciam?

O Movimento da Reforma Psiquiátrica pode ser

caracterizado como expressão de um bloco ideológico vinculado aos

interesses subalternos?

Qual o papel dos intelectuais nesse processo?

Essas são questões que nos guiarão ao percorrermos os

anos de constituição do Movimento da Reforma Psiquiatra,

contextualizando os momentos históricos e buscando traçar paralelos

entre este e o Movimento Sanitário.

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CAPITULO II

OS ANOS SETENTA - REBELDES EM ANOS DE CHUMBO

2.1. O Cenário: Abertura lenta e gradual e os Movimentos Sociais

Apesar de você

Amanhã há de ser Outro dia

Chico Buarque

Após um período caracterizado por um forte ritmo de

crescimento, a chamada era do milagre econômico, que dava

sustentação ao modelo autoritário do regime militar, veio um período

crítico do modelo econômico vigente que, em meados dos anos setenta,

caracterizou-se por um grande endividamento externo e por uma grave

situação econômica resultante da incapacidade do Estado em manter o

ritmo de crescimento. Ou seja, uma conjuntura recessiva internacional,

conseqüência da crise do petróleo de 1973, que levou a uma queda no

ritmo de crescimento de nossas exportações e retraiu a disponibilidade de

capitais do mercado financeiro mundial, promovendo uma alta excessiva

das taxas de juros.

Este movimento atingiu em cheio a economia como a

nossa, pelo encarecimento das importações e pela elevação do

custo do dinheiro. Dessa forma, qualquer novo pacote para

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repor máquinas e equipamentos desgastados ou obsoletos

estava dificultado, comprometendo o prosseguimento da

acumulação. (Mendonça & Fontes, 1988, p.56)

Uma das conseqüências desse crítico período foi um

arrocho salarial da classe trabalhadora, que atingiu níveis baixíssimos.

Para um índice de cem, em 1940, o Departamento Intersindical de

Estudos Estatísticos e Sócio-Econômicos (DIEESE) apontou os seguintes

índices: em 1972, 65; em 1973, 59; em 1974, 54 e em 1975, 57 (apud

Ibid., pp.11-12). Ou seja, em 1974 o valor do salário mínimo eqüivalia a

apenas a quase metade do valor de 1940.

Uma grande crise foi gerada pelo esgotamento do modelo

econômico, um dos maiores arrochos salariais impostos aos

trabalhadores, sindicatos sob intervenção, repressão política, censura à

imprensa. Diante desse quadro, a reação da população deu-se de

maneira explosiva; entre 1974 e 1976, violentos quebra-quebras de

ônibus e trens aconteceram em São Paulo e no Rio de Janeiro, não como

manifestações organizadas, mas como expressão de uma revolta

espontânea contra a precária situação dos transportes urbanos de

massa.

A permanência do arbítrio e do alijamento dos setores

populares associou amplas camadas sociais, da imprensa à

Igreja, do Movimento Estudantil às Associações de Moradores,

contribuindo para que as reivindicações que germinavam

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desde os primeiros anos da década viessem à tona por volta

de 1976-77, no quadro da crise de legitimidade por que

passava então o regime militar. (Mendonça & Fontes, 1988,

p. 70)

Foi a partir de 1976 que as Associações de Moradores e

Sociedades Amigos de Bairro assumiram uma nova expressão: eram

alternativas de participação popular combativas e autônomas em relação

ao Estado. Sua capacidade de articulação extrapolou as questões

regionais e locais para ações de caráter por vezes nacional como, por

exemplo, o Movimento do Custo de Vida.

Durante o período de maior repressão, a Igreja Católica,

através das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), com suas diversas

Pastorais, constituíram-se nas únicas organizações populares capazes de

desempenhar um papel crítico do regime, com um papel decisivo como

importante aglutinador e animador das reivindicações e de muitos dos

movimentos populares que surgiram na segunda metade dos anos

setenta.

Como destacamos anteriormente, foi no contexto de uma

grave crise econômica, que aprofundou as contradições urbanas,

expondo a fragilidade do Estado em dar respostas às carências sociais,

que os Movimentos Sociais organizaram-se, partindo de questões

cotidianas básicas como transporte urbano, custo de vida, saneamento

básico e saúde. Privilegiada arena de luta social, esses movimentos

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possibilitaram a seu ator principal, a população da periferia das grandes

metrópoles, ser um sujeito de prática social, de ação coletiva: ser, enfim,

um sujeito histórico fundamental na construção da cidadania.

Em 1977, entrou em cena o Movimento Estudantil, que

eclodiu com força através de diversas manifestações, exigindo a

redemocratização do país através das palavras de ordem: Pelas

Liberdades Democráticas e Pela Anistia, Ampla, Geral e Irrestrita.

Hoje, consente quem cala. Basta às prisões. (...) por que

não mais aceitamos as mordaças é que exigimos a imediata

libertação de nossos companheiros presos (..) é por isso que

conclamamos todos, neste momento, a aderirem a esta

manifestação pública sob as mesmas e únicas bandeiras: fim

às torturas, prisões e perseguições políticas; pela libertação

imediata dos companheiros presos; pela anistia ampla, geral e

irrestrita a todos os presos, banidos e exilados políticos; pelas

liberdades democráticas. ( Abril Cultural, 1986, p.106)

Este é um trecho da Carta Aberta à População, lida em

conjunto por cerca de dez mil estudantes no largo de São Francisco, em

São Paulo. A manifestação, que pedia a libertação de operários e

estudantes presos, distribuindo panfletos contra o governo no dia

primeiro de maio, foi precedida de uma passeata. Houve confrontos com a

polícia militar. Seguiram-se outras passeatas e outras manifestações,

também com confrontos com a tropa de choque.

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Nesse mesmo ano, em São Paulo, houve a

reestruturação da União Nacional dos Estudantes (UNE ), através de um

congresso que culminou com a invasão da Pontifícia Universidade

Católica (PUC) pela força policial e a prisão de centenas de estudantes.

Apesar dessa ação de força, a UNE se reorganizou, ainda que

clandestinamente, e continuou atuando na liderança do Movimento

Estudantil.

Em 1977, revelou-se que os índices de reajuste salarial

referentes ao ano de 1973 haviam sido manipulados. Esse fato precipitou

uma ampla articulação entre os mais importantes sindicatos da Grande

São Paulo, que se dispuseram a enfrentar o governo na Justiça, segundo

as próprias leis de exceção. Nascia um novo sindicalismo, que sacudiu os

anos 78 e 79 com uma onda inusitada de greve pós-64, resultado de um

longo processo de oposição sindical que, fugindo dos limites estreitos do

sindicalismo oficial, fortaleceu o movimento operário através sobretudo

das comissões de fábrica (Moisés et al., 1982).

A grande importância desse 'novo sindicalismo', além de

expressar as reivindicações de cidadania política do

operariado, foi ter trazido à tona questões cruciais para seu

ulterior desenvolvimento. Buscava-se recuperar a autonomia

sindical, através de negociações diretas entre trabalhadores e

empresários, livres da tutela estatal, e o reconhecimento legal

de seus representantes nas fábricas (delegados sindicais).

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Expressava também a percepção da setorização econômica,

exigindo aumentos salariais proporcionais à produtividade de

cada ramo. (Mendonça & Fontes, 1988, p.72)

Em 1974, o partido do governo sofreu uma derrota nas

eleições para o Congresso Nacional, o que apontou para uma clara

insatisfação popular com o regime militar, cujas tentativas de conquistar

apoio popular revelaram-se inócuas. O MDB3 que surgia das urnas era

um partido que se transformava de oposição consentida em oposição

escolhida, configurando-se em uma real alternativa político-partidária

capaz de aglutinar os diversos segmentos da sociedade descontentes

com o governo militar.

No interior das Forças Armadas, ganhou força a corrente

mais liberal que articulou a sucessão presidencial em torno do nome do

Gal. Ernesto Geisel, que promoveu, já no governo, uma política de

distensão política, a Abertura Lenta, Segura e Gradual, mantendo o

aparato repressivo do período anterior.

Dois pontos merecem destaque nesse processo: por um

lado,o fortalecimento da oposição legitimando o dissenso como

matéria política e não de segurança; por outro, o reforço da

figura presidencial, como forma de desmobilização progressiva

3 O golpe militar de 1964 extinguiu os partidos políticos existentes, permitindo apenas a existência de dois; o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que era o partido da oposição consentida e a Aliança Renovadora Nacional (ARENA) , o partido do governo.

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dos grupos militares mais resistentes à mudança. (Klein &

Figueiredo, apud Mendonça & Fontes, 1988, p.74)

Em outubro de 1975, o jornalista Wladimir Herzog morria

nas dependências do DOI-CODI4 vítima de torturas, o que gerou uma

forte repercussão e mobilização da sociedade. Em janeiro de 1976, o

operário Manoel Fiel Filho morria nas mesmas circunstâncias, o que

obrigou o presidente Geisel a afastar o comandante do Segundo Exército.

Em outubro de 1977, como demonstração de força, o presidente Geisel

demitiu o ministro do Exército, o Gal. Sylvio Frota, candidato da linha

dura que articulava a sucessão presidencial. Anos mais tarde, em

entrevista a Ronaldo Costa Couto, o presidente Geisel admitiu que

aquelas mortes foram "um verdadeiro assassinato" (Couto, 1999, p.182).

Em 1976, nova derrota do governo, desta vez nas

eleições municipais. A crescente representatividade do MDB, tanto no

legislativo federal, quanto nos municípios mais importantes5, constituiu-se

em uma ameaça para aqueles setores linha-dura, pois podia significar

uma perda de controle sobre a maioria dos parlamentares, em especial,

no Senado.

4 Destacamento de operações e informações - Centro de operações de defesa interna. Órgão do Exército, responsável pelas ações de repressão e tortura. 5 Vale lembrar que, em todas as capitais e nas cidades consideradas de segurança nacional, a eleição para prefeitos era indireta. Ou seja, o governador nomeava um nome que era submetido à Assembléia Legislativa para aprovação, esse era o processo que caracterizava a eleição indireta. Esse era também processo utilizado para a eleição indireta do Presidente da República, sendo que a casa legislativa consultada era o Congresso Nacional.

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46

Em abril de 1977, o governo baixou o Pacote de Abril,

que confirmou eleições indiretas para os governadores e criou eleições

indiretas de um terço do Senado; alterou o colégio eleitoral que elegeria o

presidente e ampliou o mandato deste, de cinco para seis anos.

Como conseqüência, apesar de o MDB obter a maioria

dos votos nas eleições parlamentares gerais de 1978, a ARENA, partido

governista, permaneceu com a maioria através da nomeação dos

senadores biônicos (senadores escolhidos pelo Colégio Eleitoral

constituído por deputados estaduais).

Esses atos de violência, que contradiziam a propalada

intenção de normalidade institucional, provocaram uma forte reação:

amplos setores da sociedade, entidades de classes, Igreja, empresários,

comunidade científica, estudantes, movimentos sociais etc. articularam-

se e pressionaram o governo que ficava, a cada dia, mais isolado. Houve

um despertar da sociedade civil, um despertar de cidadania.

Por certo a face autoritária do regime não foi alterada,

mas esse ensaio de mobilização, tão heterogêneo quanto

intenso, rendeu alguns frutos, como a extinção do AI-5 e a

adesão de setores dominantes �liberais� ao projeto de abertura

como saída desejável para o impasse político vivido no país.

(Mendonça & Fontes, 1988, p.76)

Em dezembro de 1978, dez anos depois de sua edição, o

Ato Institucional n.º 5 (AI-5) deixava de existir. Terminava a censura

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47

prévia, a prisão sem acusação formal, restituía-se o habeas-corpus,

reduziam-se os mecanismos excepcionais e controle do Executivo sobre o

Congresso. O seu fim possibilitou uma maior organização dos

Movimentos Populares. Na mesma entrevista que já citamos, o presidente

Geisel irá afirmar: "consegui vencer todas as resistências e acabar com o

AI-5, que era uma das excrescências que tínhamos" (Couto, 1999, p.253).

O MDB assumiu para si a responsabilidade de congregar

as oposições e atuar conjuntamente com outros setores da sociedade,

tais como a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Ordem dos

Advogados do Brasil (OAB), a Confederação Nacional dos Bispos do

Brasil (CNBB), num enfrentamento contra o regime. Porém, dividido entre

os autênticos e os moderados, sua atuação refletia essa divisão entre

uma radical oposição ao regime e uma oposição consentida.

Em 1979, assumiu como presidente o Gal. João Batista

Figueiredo que, em seu discurso de posse diante do Congresso Nacional,

afirmou: "Juro fazer desse país uma democracia". Alguns dias depois,

referindo-se a abertura democrática em entrevista à imprensa, declarou,

em seu folclórico estilo: "É para abrir mesmo, e quem quiser que eu não

abra eu prendo e arrebento" (Couto, 1999, p.256)6.

6O autor cita , em uma nota de rodapé, outras pérolas do pensamento do presidente Figueiredo, que reproduzimos a seguir: "Prefiro cheiro de cavalo a cheiro de povo"; �Cavalo e mulher , a gente só sabe se é bom depois que monta"; �Se ganhasse salário mínimo, eu dava um tiro no coco"; "Eu gosto mesmo é de clarim e de quartel"; e por fim, em sua última entrevista como presidente: "E que me esqueçam".

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48

Foi sob seu governo que, em agosto, decretou-se a

anistia. Embora fosse um avanço político importante, foi uma anistia

limitada que acabou por beneficiar integralmente os militares envolvidos

no aparato repressivo e que tinham cometido assassinatos, o mesmo não

ocorrendo para os antigos participantes da luta armada. Mesmo limitada,

a anistia permitiu o retorno de todos os exilados.

Louco um bêbado com chapéu coco

fazia irreverências mil para noite do Brasil (...) que sonha com a volta do irmão do Henfil

Com tanta gente que partiu, no rabo de um foguete Chora

A nossa pátria mãe gentil, Choram Marias e Clarices no solo do Brasil

Mas sei que uma dor assim pungente não há de ser inutilmente

A esperança dança na corda bamba de sombrinha (... ) A esperança equilibrista sabe que o show de todo artista

Tem de continuar Aldir Blanc, em música de João Bosco

2.2. Semeando a Reforma Psiquiátrica

Foi no contexto histórico que acabamos de descrever que,

ao longo dos anos setenta, através de encontros internacionais,

documentos oficiais, experiências pontuais, protestos e manifestações,

foram sendo lançadas no aparelho estatal e no cotidiano das instituições

as sementes da Reforma Psiquiátrica.

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49

2.2.1. Assistência em saúde mental; do público ao privado, mas sempre no hospital psiquiátrico

Desde a inauguração do Hospício de Alienados Pedro II,

no Rio de Janeiro, e ao longo do século até os anos sessenta, a

assistência psiquiátrica brasileira caracterizou-se por ser eminentemente

hospitalocêntrica e pública. Embora, de maneira geral, a qualidade da

assistência prestada pelos hospitais nunca tenha sido exemplar, nos

anos cinqüenta e sessenta, encontrávamos uma situação caótica:

superlotação, escassos recursos humanos, precárias condições sanitárias

e estruturais, denúncias de maus tratos e violência física.

Trabalhando no Juqueri7, em São Paulo, colhemos relatos

contraditórios entre pacientes e funcionários, que apontavam para uma

das facetas perversas da instituição. Enquanto os primeiros queixavam-se

de que, naqueles anos da década de cinqüenta e sessenta, tinham de

dormir nos degraus das escadas e de que, no frio, não havia cobertores

para se aquecerem, funcionários relatavam orgulhosos que aqueles eram

tempos de fartura, "não faltava comida nem roupa nova para ninguém".

Pesquisando um pouco mais, pudemos constatar que, de fato, foram anos

de grandes investimentos em compras, mas que não chegavam aos

pacientes. Como é absolutamente comum neste país, perdiam-se ou

7 Departamento Psiquiátrico II, nacionalmente conhecido como Hospital Psiquiátrico do Juqueri.

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desviavam-se nos tortuosos caminhos da burocracia institucional8. Quase

todos pacientes relatavam histórias de violência física, que era um

elemento quase natural do cotidiano. Violência tão natural , que aquela

instituição foi utilizada nos anos da ditadura pelos órgãos de repressão.

A seguir, apresentamos trecho de uma reportagem

realizada pelo jornalista Ewaldo Dantas Ferreira, publicada no jornal Folha

de S. Paulo de 21 de fevereiro de 1963, sobre o Hospital do Juqueri,

representativo do ambiente da época:

O hospital psiquiátrico de madrugada é assim: milhares e

milhares de corpos humanos - homens, mulheres e crianças -

nus, imundos, entrelaçados numa confusão horrenda de

membros, espalhados pelos corredores, escadarias, pelo chão

de cimento dos salões-dormitórios. Dormem em grupos, sobre

camas quebradas, sem colchões e sobre colchões

estraçalhados sem cama. Sobre trapos em frangalhos. Sobre

fezes.

O quadro em seu horror, supera toda a imaginação. Não

se pode compará-lo a uma imensa pocilga, porque a realidade

ficaria atenuada. O mau cheiro violento, fere as narinas,

8 Uma das estratégias usadas para desviar materiais novos era de destruir, por exemplo, um cobertor novo e dar baixa em vários como se cada pedaço do cobertor destruído correspondesse a um inteiro, colocando-se a culpa no ato tresloucado de algum paciente agressivo, que havia destruído vários cobertores. Após isso, os cobertores novos iriam para casas de funcionários ou para o comércio local.

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tonteia, provoca náuseas. O ar, irrespirável. O ambiente uma

antevisão do pior dos infernos. (apud Rádice, 1978, p.22)

Na década de cinqüenta, nos dourados anos JK, dentro

de um contexto de otimismo e euforia desenvolvimentista, em uma

sociedade que se pretendia moderna e industrial, a existência desses

asilos deveria ser, pelo menos, minimizada e humanizada. É notório o

descrédito que essas instituições atingiram junto à população, expresso

em termos populares, músicas, piadas. A incompetência foi um forte

argumento em favor da livre iniciativa.

Com o golpe militar de 1964, a psiquiatria adquiriu o

status de prática assistencial de massa, com o início da mercantilização

da loucura através da celebração dos convênios com o Instituto Nacional

de Previdência Social (INPS), criado em 1967 (Resende, 1987). A

psiquiatria começou a transformar-se em um lucrativo negócio e para

defendê-lo formou-se um poderoso lobby que atuava, e ainda atua,

impedindo qualquer tentativa de mudança. Destaque-se que a

mercantilização não era exclusividade da psiquiatria, mas parte de um

contexto mais amplo, que por um lado estendeu a assistência médica a

amplos setores da classe trabalhadora em substituição às caixas de

aposentadoria e assistência médica dos sindicatos, extintas pelo governo

militar e, por outro, incentivou a prática privada na saúde financiada pelo

erário público.

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A empresa de saúde sempre viu o lucro e só o lucro. Não

nos iludamos, porque esse é o seu papel. Não pode ver a

saúde sob outro prisma. Em psiquiatria já tem o monopólio da

assistência curativa individual através do leito hospitalar

exatamente por ser a opção mais rendosa. Para ampliar tal

monopólio, usa de todos os meios historicamente empregados

pelo capitalismo selvagem. (Cerqueira, 1984b, p.226)

O número de leitos privados saltou de 3.034, em 1941,

para 78.273, em 1978, um crescimento de quase vinte vezes em menos

de quarenta anos, enquanto o número de leitos oficiais permaneceu

quase inalterado no mesmo período: 21.079, em 1941, e 22.603, em 1978

(Cerqueira, 1984a). O tempo médio de permanência oscilava sempre

acima dos noventa dias, o que indicava uma duração média de internação

alta, que favorecia a institucionalização dos pacientes. Ou seja, a

constituição de uma população cativa de consumidores compulsórios

das internações psiquiátricas. Saliente-se que, nos anos sessenta,

segundo Cerqueira (1984a) e Resende (1987), houve uma modificação

no perfil nosológico da clientela dos hospitais psiquiátricos, surgindo uma

proporção expressiva de pacientes neuróticos e alcoolistas, patologias

cuja necessidade de internação psiquiátrica é, no mínimo, questionável.

Em relatório de 1971, um grupo técnico do Ministério da

Saúde resumiu assim a situação da assistência psiquiátrica no âmbito

federal:

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distorções no uso de leitos, principalmente com altas taxas de

readmissão e tempo elevado de permanência; inexistência de

ambulatórios; crescimento quase geométrico das internações

não corresponde ao índice de crescimento das psicoses;

excessivo aumento das internações com diagnóstico de

neurose. (Costa-Rosa, 1987, p.68)

Portanto, a partir dos anos sessenta, podemos

caracterizar a assistência psiquiátrica brasileira como sendo

eminentemente hospitalocêntrica e preponderantemente privada.

2.2.2. Documentos, intenções e poucos gestos: sementes da Reforma Psiquiátrica

(...) e se trago as mãos distantes do meu peito

É que há distância entre intenção e gesto Chico Buarque

Luiz Cerqueira, realizando, em texto de 1973, um balanço

sobre as suas realizações à frente da Coordenadoria de Saúde Mental

(CSM)9, destaca e lista uma série de documentos nacionais e

internacionais que:

9 Instância técnico administrativa da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, responsável pela ações e pela política de saúde mental.

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São Paulo ou o Brasil não podem ignorar dagora (sic) por

diante (...) estes documentos irreversíveis, firmados por nossas

autoridades e consagradores de uma assistência psiquiátrica

não tradicional. (Cerqueira, 1984c, p.242)

Costa-Rosa (1987), ao analisar a tentativa de implantação

do modelo comunitário no Estado de São Paulo, traça algumas linhas da

origem desse modelo e analisa alguns desses documentos.

Cerqueira (1984c) situa as origens do movimento pela

transformação da saúde mental no Brasil, a partir de 1967, tendo como

marco a Ata de Porto Alegre do I Colóquio sobre Problemas e

Necessidades da Psiquiatria Assistencial e Preventiva no Brasil. Um

grupo de profissionais, reunidos naquele colóquio, produziu um bloco de

conclusões, onde se destacam:

a restauração do Serviço Nacional de Doentes Mentais, a

integração da Saúde Mental à Saúde Pública, ênfase na

criação e ampliação da rede extra-hospitalar, aceleração dos

programas de formação de pessoal - resultando já a

incorporação das Universidades brasileiras nesse processo;

finalmente, propõem também o reforço do Hospital Psiquiátrico

como empresa privada e a sua expansão às custas de parte

dos seus lucros. (Costa-Rosa, 1987, p.65)

Costa-Rosa (Ibid.) destaca em sua análise o confronto

entre os interesses públicos e privados já naquele primeiro encontro

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nacional, representado no texto, por um lado, no reforço na atenção

extra-hospitalar e, por outro, no reforço no sistema hospitalar privado.

Em 1968, em San Antonio, no Texas, foi realizada a

Primeira Conferência sobre Saúde Mental nas Américas, cujas

recomendações reforçaram a Ata de Porto Alegre e acrescentaram:

elevação do padrão de serviços de Saúde Pública, a

integração da Saúde Mental com os demais setores da Saúde,

realização de estudos epidemiológicos e criação de serviços de

modalidade comunitária. A partir desse encontro é produzido e

editado pela Associação de Psiquiatria Americana um texto em

que são arregimentadas as principais características do

modelo americano, apresentadas com a explícita preocupação

pelo respeito às peculiaridades dos grupos sociais para dentro

dos quais sejam transportadas. (Costa-Rosa, 1987, p.65)

Alguns dos pontos daquele texto estavam presentes no

modelo comunitário brasileiro como uma herança do modelo americano.

Destaque-se que inúmeros profissionais e professores brasileiros de

escolas médicas participaram daquele encontro.

Em 1969, a Organização Pan-americana de Saúde

(OPAS) e a Organização Mundial de Saúde (OMS) promoveram, em Viña

del Mar, uma reunião que contou com a participação do Ministro da Saúde

do Brasil e que produziu um relatório intitulado Recomendações do Grupo

de Trabalho sobre a Administração de Serviços Psiquiátricos e de Saúde

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Mental, salientando a necessidade da implantação de um sistema de

Psiquiatria da Comunidade, com ênfase nas ações de prevenção e no

estímulo às atividades de ensino e pesquisa.

Em 1970, realizou-se em São Paulo o Primeiro

Congresso Brasileiro de Psiquiatria, em conjunto com a Associação

Psiquiátrica Latino-Americana. Entre as conclusões, destacam-se:

medidas urgentes para corrigir distorções mais graves; a necessidade de

se caracterizar um organismo normativo de liderança efetiva em nível

federal; novamente a ênfase na criação de uma rede de serviços extra-

hospitalares; e a Declaração de Princípios de Saúde Mental de Mário

Machado de Lemos, Ministro da Saúde à época, composta por dez itens

(direito e responsabilidade; integração; regionalização; recursos de todos

para todos; prevenção; conscientização; formação de pessoal; hospital

comunitário; serviços extra-hospitalares; e pesquisa), que serviu de base

ideológica a uma série de ações (Costa-Rosa, 1987).

Em 1971, foram produzidos dois documentos: Relatório

sobre a Assistência Psiquiátrica no INPS e Relatório da Comissão

Permanente de Saúde Mental da Associação Brasileira de Psiquiatria,

ambos apontando para uma reformulação da assistência.

Em 1972, ocorreu o Segundo Congresso Brasileiro de

Psiquiatria, em Belo Horizonte, no qual foram reafirmados os dez

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princípios de saúde mental, que naquela data foram incorporados às

propostas do governo federal e do governo do Estado de São Paulo.

Ocorreu, também a Terceira Reunião de Ministros da

Saúde, em Santiago no Chile. Costa-Rosa (1987) destaca algumas falas

do Ministro da Saúde, presente àquela Reunião, situando o teor das

formulações pretendidas e suas metas:

O sistema nacional permanece profundamente alicerçado na

assistência hospitalar, oferecendo poucos e minguados

recursos extra-hospitalares... Há necessidade de uma

reformulação de fundo e forma... A atuação preventiva com

base em práticas, atividades e com a participação da

comunidade é fundamental para que na década de 70/80

possamos suplantar as práticas asilares ou custodiais ainda

presentes. (Ibid., p.69)

Considerando os seguintes argumentos básicos:

deficiência dos padrões hospitalares; inexistência de trabalhos de

prevenção; a insuficiência de serviços; a escassez de recursos humanos

e a inexistência de serviços extra-hospitalares, firmou-se, a partir daquela

Reunião de Ministros da Saúde, um Acordo para a execução de um

programa de Saúde Mental no Brasil, com validade até 1974, e que

propunha ênfase na formulação de uma Política Nacional de Saúde

Mental, cujas diretrizes foram estabelecidas pelo Ministro Mário Machado

de Lemos.

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Naquela reunião, foi formulado um Plano Decenal de

Saúde para as Américas, que estabeleceu as seguintes recomendações

para a saúde mental:

• Prevenção Primária, secundária e terciária em saúde

mental;

• Criação de serviços para diminuir a tendência de aumento

de alcoolismo e farmacodependências;

• Planejamento de leitos psiquiátricos para cada 1000

habitantes;

• Priorizar o atendimento ambulatorial e hospitalização

breve, de preferência em hospitais gerais;

• Criação de Centros Comunitários de Saúde Mental em

cidades com mais de 100.000 habitantes e estimular a

participação da comunidade em torno deles

• Modernização da legislação psiquiátrica;

• Modernização dos tratamentos utilizando especialmente

técnicas grupais;

• Estimular o ensino de saúde mental em escolas de

medicina e de outras escolas que formam profissionais de

saúde. (apud Figueiredo, 1996, p.203)

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Em 1973, o Ministério da Previdência aprovou o Manual

para Assistência Psiquiátrica, que serviu de base para a Portaria n.º 32

do Ministério da Saúde de 1974.

Esses dois documentos estabelecem as bases das

propostas de atuação no âmbito federal até 1974, e guardam

estreita relação com os princípios do modelo comunitário. Aí se

destacam a ênfase nos princípios que orientam a Psiquiatria

Comunitária, os serviços que estimulem a participação ativa da

"comunidade", o estabelecimento de uma relação de leitos por

habitante(1:1.000 na cidade e 1:2000 no campo), prioridade

para o atendimento ambulatorial e tempo de hospitalização

curto, capacitação de recursos humanos, promoção de

investigações epidemiológicas e atividades de pesquisa em

geral. (Costa-Rosa, 1987, p.71)

O Manual para Assistência Psiquiátrica, que propunha a

diversificação da oferta de serviços (emergência, semi-internação,

enfermaria psiquiátrica em hospital geral, pensão protegida), enfatizando

a atenção extra-hopitalar e o controle das internações, e a Portaria n.º 32,

segundo Cerqueira (1984a), foram sabotados desde seu primeiro dia.

Ambos (...) continuam letra morta, só para não diminuir

os lucros da empresa de saúde nem demonstrar a fragilidade

do modelo médico tradicional exclusivo, defendido por outros

tantos psiquiatras reacionários encarrapitados nas cátedras,

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60

nas cúpulas administrativas e nos ricos consultórios privados.

Conseguem leis, financiamentos, privilégios. (Ibid., p.225)

O discurso oficial, estabelecido em documentos, portarias,

resoluções, nacionais e internacionais, não conseguiu mudar a realidade

assistencial que continuava excessivamente hospitalocêntrica e favorecia

os grupos econômicos privados.

Ainda no ano de 1973, foi realizado o I Encontro Regional

de Técnicos de Saúde Mental, em Florianópolis, promovido pela Divisão

Nacional de Saúde Mental (DINSAM), do Ministério da Saúde, que

pretendia mobilizar os trabalhadores de saúde mental para "a prática de

uma nova política consoante com os progressos científicos e tecnológicos

que permitirão ações mais efetivas na promoção, proteção e prevenção

da Saúde Mental" (Costa-Rosa, 1987, p.82). Das conclusões do encontro,

ressaltam-se: os mesmos pontos básicos do modelo comunitário; a

necessidade da consolidação dos instrumentos legais que regem a

atuação em saúde mental, adequando-os à nova orientação assistencial-

preventiva; assinalam os obstáculos existentes para a implantação da

nova política tais como ausência de programas estaduais, dificuldade de

coordenação entre os diversos sistemas de saúde, e carência de pessoal.

Esses encontros prosseguiram, no mesmo ano de 1973,

com o I Encontro Estadual de Técnicos de Saúde Mental, em São

Paulo, e com o II Encontro Regional de Técnicos de Saúde Mental, em

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61

João Pessoa. O que pretendeu ser uma série de encontros regionais,

terminou com a realização de apenas três encontros.

É dentro desse contexto que, no Estado de São Paulo,

nos anos de 73/74, Luiz Cerqueira, à frente da Coordenadoria de Saúde

Mental da Secretaria de Estado da Saúde, formulou e tentou implantar

uma nova proposta de assistência em saúde mental. Em sua curta

gestão, dentre outras realizações: proibiu as internações no Juqueri, criou

prontos-socorros para estadia de curta duração, firmou convênios com

faculdades e tentou controlar as internações na rede privada. Ao sair,

afirmou:

Aqui e agora, ao deixar a Coordenadoria, elementar senso de

humildade manda reconhecer que os anos não curam certa

onipotência de reformador que pretendeu dar uma passada

maior do que as pernas. Devo convir, porém, que sem a

experiência destes meses em São Paulo, ainda repetiria a

ousadia de tentar concorrer para uma mudança de

mentalidade...Não se pode reformular sem mexer em nada.

(Cerqueira, 1984c, p.241)

Cerqueira foi substituído por um grupo ligado aos

hospitais privados. Para um melhor detalhamento desse período e das

propostas apresentadas, em especial aquelas referentes ao modelo

comunitário, recomendamos a leitura do texto de Costa-Rosa (1987) que

estamos utilizando.

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Para Costa-Rosa (Ibid.), o ano de 1975 marcou um ponto

de virada no sentido das propostas e ações que visavam à implantação

do modelo comunitário no âmbito federal, com a vitória da empresa de

saúde na aprovação da lei n.º 6.229, que dispunha sobre a organização

do Sistema Nacional de Saúde e consolidou a dicotomia existente no

sistema, delegando ao Ministério da Saúde um caráter eminentemente

normativo e as ações básicas de saúde, e ao recém criado Ministério da

Previdência e Assistência Social a responsabilidade pelo atendimento

médico-individualizado, ou seja, pela assistência hospitalar. Cerqueira

(1984a) critica duramente essa lei, creditando à Federação Brasileira dos

Hospitais, principal representante dos interesses da medicina privada, a

vitória em sua aprovação. A lei impediu a mudança do modelo tradicional

e privilegiou a opção hospitalar, pois era a que proporcionava mais lucro

ao empresário.

Teixeira & Mendonça (1995), analisando o mesmo

período, destacam um outro aspecto, afirmando que a Previdência Social

foi reforçando o modelo privatizante ao mesmo tempo em que foi criando

espaços, dentro de uma nova ordenação institucional que estava se

estabelecendo, para a discussão das ações governamentais de saúde,

possibilitando a elaboração de programas através dos quais o Movimento

Sanitário pode experimentar suas propostas de forma localizada e

marginal e introduzir alguns focos de mudança.

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As principais diretrizes desses programas foram: utilização da

rede pública para uma atenção mais integral; introdução de

mecanismos de planejamento na administração de serviços,

introdução da perspectiva da co-gestão entre os órgãos

públicos10; participação dos profissionais e da população no

controle da gestão de serviços. (Ibid., p.215)

É nesse momento histórico que Figueiredo (1996) enfatiza

que, em 1977, foi criado, pela DINSAM, o Projeto Integrado de Saúde

Mental (PISAM), por ocasião da VI Conferência Nacional de Saúde,

inspirado no modelo da psiquiatria comunitária e que defendia uma

política desospitalizante. O projeto retomou os mesmos princípios de

documentos anteriores: utilização da epidemiologia psiquiátrica para

instrumentalizar a elaboração de uma política de saúde mental; ampliação

da rede ambulatorial, criação de centros comunitários de saúde mental,

descentralização e interiorização das ações através do treinamento de

outros profissionais de saúde para atuarem no campo das doenças

mentais. O autor faz referência a um artigo de Freitas, de 1980 (apud

Figueiredo, 1996), que apresenta dados sobre a diminuição das

internações em função da atuação de médicos generalistas nas ações de

saúde mental.

10 Uma dessas co-gestões será efetivada nos hospitais psiquiátricos vinculados à DINSAM, no início dos anos 80. Amarante (1998) detalha esse processo.

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64

Em 1979, os Ministros da Saúde e da Previdência Social

publicaram uma Portaria que estabelecia diretrizes de atuação conjunta

em Saúde Mental. Para Costa-Rosa (1987), a leitura do texto da Portaria

demonstra que, se por um lado existia o retorno dos princípios e diretrizes

expressos nos mesmos documentos que serviram de base para a

implantação do modelo comunitário, a sua aplicação estava sob a

regulamentação da lei n.º 6.229, que garantia a preponderância dos

interesses privados. Nesse sentido, conclui que o que se reafirmavam

eram mais os princípios e as diretrizes técnicas do que as práticas do

modelo comunitário.

Interessante salientar que todos esses documentos

oficiais surgiram nos anos mais negros da ditadura militar. É sob o

governo do presidente General Emílio Garrastazu Médici que, por um

lado, crescia substancialmente o número de leitos contratados, seguindo

um claro plano global de privatização da saúde e, por outro, documentos

oriundos do interior do mesmo governo apontavam para uma necessária

revisão dessa mesma política hospitalocêntrica. A análise da experiência

do movimento comunitário da década de setenta, realizada por Costa-

Rosa (1987), ilustra como as ações em termos do processo de estratégia

de hegemonia são complexas e, ao mesmo tempo, capazes de produzir

resultados para o polo dos interesses subordinados, mesmo sob

condições históricas adversas.

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65

2.3. O final dos anos setenta: germinam as sementes, brota o Movimento da Reforma Psiquiátrica

Controlando a minha maluquez Misturada com minha lucidez

Eu vou ficar Ficar com certeza

maluco beleza Raul Seixas (música de 1977)

Uma crise na DINSAM, no ano de 1978, foi o estopim do

Movimento da Reforma Psiquiátrica e o início do Movimento dos

Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM). Naquele ano, médicos

denunciaram as precárias condições a que eram submetidos os pacientes

nos hospitais psiquiátricos daquele órgão ligado ao Ministério da Saúde,

que respondeu, demitindo 260 estagiários e profissionais. Em abril,

profissionais das quatro unidades do Rio de Janeiro deflagraram a

primeira greve no setor público após o regime militar, que logo recebeu o

apoio de várias entidades (Amarante, 1998, p.51).

É o ano das greves históricas. No ABC paulista, eclodiu a

greve dos metalúrgicos, também a primeira após a ditadura militar.

Em outubro daquele ano, foi realizado o V Congresso

Brasileiro de Psiquiatria, em Camboriú (SC), conhecido como o

Congresso da Abertura.

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66

(...) pela primeira vez, os movimentos de saúde mental

participam de um encontro dos setores considerados

conservadores, organizados em torno da Associação Brasileira

de Psiquiatria, estabelecendo uma 'frente ampla' a favor das

mudanças, dando ao congresso um caráter de discussão e

organização político-ideológica, não apenas das questões

relativas à política de saúde mental, mas voltadas ainda para a

crítica ao regime político nacional. (Amarante, 1998, pp.53-

54)

Ressalte-se que uma das moções, aprovadas ao final do

Congresso, foi a moção pela Anistia, Ampla Geral e Irrestrita.

Várias denúncias foram levantadas, todas centradas

na mercantilização da loucura, através das clínicas privadas, e

na situação asilar, com ênfase no abandono dos hospitais do

Ministério da Saúde, no Rio de Janeiro; entretanto, não se

entreviam ainda possibilidades concretas de modificação do

quadro. (Delgado, 1987, p.175)

O Congresso de Camboriú cumpriu função semelhante à

do MDB, no plano da política. Apesar de conservadora, a Associação

Brasileira de Psiquiatria (ABP) acolheu e abriu espaço para o Movimento

da Reforma Psiquiátrica.

Amarante nos informa que, ainda em 1978, aconteceu o

I Congresso Brasileiro de Psicanálise de Grupos e Instituições, na cidade

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67

do Rio de Janeiro, e o lançamento do Instituto Brasileiro de Psicanálise de

Grupos e Instituições (IBRAPSI), uma nova sociedade psicanalítica de

orientação analítico-institucional. O congresso possibilitou a vinda ao

Brasil de diversos e importantes nomes do cenário mundial no campo da

saúde mental, como Robert Castel, Felix Guattari, Erwin Goffman e, em

especial, Franco Basaglia, que iniciaram uma série de debates e

conferências pelo Brasil (Amarante,1998, p.55).

A presença de Basaglia foi um importante momento para

o Movimento. Por onde passou, foi contagiando com suas idéias,

produzindo um efeito de vontade e potência. "Contra o pessimismo da

razão, o otimismo da prática"11, afirmou em várias de suas conferências.

Isso serviu como palavra de ordem para uma geração de profissionais

que, logo a seguir, ingressaram nas instituições de saúde mental e

começaram a buscar novas soluções concretas para aquelas instituições,

fortalecendo a necessidade de se politizar o discurso e a prática do

Movimento de Trabalhadores de Saúde Mental e da Reforma Psiquiátrica.

Em janeiro de 1979, no Instituto Sedes Sapientiae, em

São Paulo, realizou-se o I Congresso Nacional dos Trabalhadores de

Saúde Mental. Foram debatidos desde uma nova identidade profissional,

passando pelo questionamento do modelo asilar dos hospitais públicos

até a luta pela transformação do sistema de saúde vinculado à luta pela

11 Esse também é o título da coletânea de suas conferências no Brasil, (Basaglia, 1979.).

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democracia. Aprovaram-se moções pelas liberdades democráticas, pela

Anistia, Ampla Geral e Irrestrita, dentre outras. Amarante ressalta que, já

nesse Congresso, se solidificou a crítica ao modelo asilar dos grandes

hospitais públicos como reduto dos marginalizados e uma discussão

sobre os limites dos "suportes teóricos de racionalização dos serviços e

as diretrizes legais para alterar-se a assistência psiquiátrica, num indício

de que a solução política se faz necessária" (Amarante, 1998, p.55), o

que apontou para um direcionamento do movimento em discutir o modelo

de atenção deixando de lado aspectos mais corporativos.

Em novembro de 1979, ocorreu o II Encontro Mineiro de

Psiquiatria, patrocinado pela Associação Mineira de Psiquiatria, com a

participação de Franco Basaglia12, Antonio Slavich e Robert Castel. Entre

clássicos temas dos encontros tradicionais de psiquiatria, discutiram-se

também trabalhos alternativos, assistência psiquiátrica e participação

popular.

As denúncias formuladas nos encontros realizados nos

anos finais da década de setenta conquistaram um espaço na imprensa,

especialmente sobre as péssimas condições dos macro-asilos públicos.

Isso produziu alguns efeitos que apresentamos a seguir.

12 Em sua segunda visita ao país em um curto espaço de tempo.

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69

Em 1977, A Assembléia Legislativa de São Paulo instituiu

uma Comissão Especial de Inquérito (CEI)13 para apurar as distorções

nos hospitais psiquiátricos públicos do Estado, especialmente do

Departamento Psiquiátrico II (Hospital do Juqueri), no qual se constatou: a

precariedade das condições de assistência; violência praticada contra

pacientes; um grande número de irregularidades administrativas, como a

grande incidência de roubos e desvios de materiais, incluindo-se aí

remédios psicotrópicos; injunções político-partidárias, e outras mais. Em

seu parecer final, apontava as urgentes providências para que uma série

de sugestões fossem concretizadas. O destino dessas conclusões foi o

mesmo das averiguações realizadas nos anos de 50, 57, 63, 67, 71 e 74:

o buraco negro da administração pública. Nada ou muito pouco foi

realizado.

Em fevereiro de 1978, a Assembléia Legislativa

Fluminense divulgou o relatório final da Comissão Parlamentar de

Inquérito, instituída para apurar irregularidades na rede extra-hospitalar da

Secretaria Estadual de Saúde, composta pelos hospitais de Jurujuba

(Niterói), Vargem Alegre (Barra do Pirai) e Teixeira Brandão (Carmo). Em

sua conclusão, apontaram que os dois primeiros hospitais eram "casos

13 Relatório parcial pode ser encontrado em SOUZA, 1980, p.257-296. A leitura impressiona. Os integrantes da CEI relatam em determinado trecho do relatório o dia-a-dia, como em um diário, o que foram encontrando. Um exemplo: "08/08/77 - Creches! - Falamos com Dr. Eleo em relação às fezes de rato encontradas na sopa dos bebês, segundo ele isto já aconteceu e que está tomando providências. (... ) 26/08/77 Creches! Nesta já foi encontrado na sopa dos bebês, palha de aço, cabelo, fezes de rato e barata, hoje foi encontrado moscas."

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70

pavorosos de hospitalização desumana" e que o terceiro era uma

"maravilhosa experiência em assistência psiquiátrica". Naqueles anos, foi

possível encontrar experiências isoladas que garantiam, no mínimo, um

tratamento mais digno, ainda que no interior do asilo. É importante

salientar que os três maiores hospitais do Rio de Janeiro (Centro

Psiquiátrico Pedro II, Hospital Psiquiátrico Phillipe Pinel e a Colônia

Juliano Moreira) não foram objetos de investigação daquela CPI, pois

eram subordinados ao Ministério da Saúde.

Em 1979, uma nova denúncia levou promotores e juízes

de São Paulo ao Manicômio Judiciário, que fazia parte do Complexo

Juqueri. Além dos mesmos velhos problemas, encontraram centenas de

pacientes internados/presos por medida de segurança que já deveriam

estar em liberdade. Juízes e promotores, após a visita correcional,

encaminharam ao Secretário da Saúde (na época, o Dr. Adib Jatene),

pedidos de providências, especialmente no que se referia à contratação

de pessoal especializado (médicos, psicólogos, etc.). Pela primeira vez,

em muitos anos, diversas medidas começaram a ser tomadas em relação

ao Manicômio Judiciário, como a aquisição de equipamentos e a

contratação de profissionais14. Essas medidas repercutiram no início dos

anos oitenta, pois muitos dos profissionais contratados elaboraram e

14 Apesar de estar sob a gestão do Governador Paulo Maluf, o Secretário Estadual de Saúde Adib Jatene conseguia vencer as pressões que tentavam impor critérios com objetivos eleitoreiros em sua administração, que sempre se pautou por critérios técnicos, fortalecendo a posição dos médicos sanitaristas, recebendo e acolhendo a participação dos movimentos populares de saúde (Jacobi, 1989).

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implantaram propostas de transformação institucional no Complexo do

Juqueri.

Em 1980, a partir do II Encontro Nacional de

Trabalhadores em Saúde Mental (do qual trataremos no capítulo

posterior), foi constituída uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI)

no Congresso Nacional, para apurar as distorções na assistência

psiquiátrica no Brasil, bem como rever a legislação penal e civil pertinente

ao doente mental.

Um filme teve um impacto maior do que essas

Comissões de Investigação juntas: o filme Em nome da Razão, dirigido

por Helvéccio Ratton. Trata-se de um documentário filmado no hospício

de Barbacena, em que a principal voz é dos próprios loucos, que

denunciam com seus rostos e corpos, marcados pelo sofrimento, a

violência institucional dos asilos psiquiátricos. Apesar de não de ter sido

exibido em circuito comercial, o filme transformou-se em um cult movie

underground, circulando por diversas universidades, sindicatos,

associações de profissionais, sensibilizando a sociedade para a questão

da loucura e de suas instituições.

2.4. Retomando as questões...

Desde o início dos anos setenta, encontramos

documentos oficiais, nacionais e internacionais, que apresentam vários

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elementos presentes no Movimento da Reforma Psiquiátrica: crítica ao

modelo hospitalocêntrico, participação da comunidade nos serviços,

revisão da legislação psiquiátrica, criação e diversificação de novos

serviços, ampliação da rede extra-hopitalar. Em sua grande parte, são

documentos produzidos no interior do aparelho estatal com propostas de

implantação de uma nova política de saúde mental. Produziram algumas

experiências concretas, como no Estado de São Paulo, com Luiz

Cerqueira, mas que não sobreviveram por muito tempo.

Se não conseguiram produzir um efeito de transformação

ou mudança da política da saúde mental, deixaram suas sementes, que

foram regadas e fertilizadas pelos debates e discussões realizados,

principalmente, no interior das universidades. Estas recebiam e faziam

repercutir os ecos das notícias sobre as transformações na assistência

que, desde a década de quarenta e, em especial, a partir de fins dos

anos sessenta, ocorriam na Europa, através de diversos e diferentes

movimentos: Psicoterapia Institucional; Psiquiatria de Setor;

Comunidades Terapêuticas; Anti-Psiquiatria; Psiquiatria Democrática e

nos Estados Unidos: Psiquiatria Preventiva15. Movimentos que, com

maior ou menor intensidade, como modelo de política oficial, prática

alternativa ou modelo substitutivo, influenciaram vários segmentos do

Movimento da Reforma Psiquiátrica.

15 Fleming (1976) irá descrever esses movimentos e Amarante (1998) irá revisitar os paradigmas daqueles movimentos e sua articulação com o Movimento da Reforma Psiquiátrica.

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É importante salientar as dezenas, talvez centenas de

experiências pontuais, localizadas, muitas efêmeras, espalhadas pelo

país, realizadas ao longo do século16 , que buscavam humanizar o

atendimento ou contrapunham-se ao modelo hegemônico e, se pouco ou

quase nada conseguiram mudar, serviram para lançar sementes e

produzir pequenos brotos.

O Movimento da Reforma Psiquiátrica ganhou uma maior

visibilidade no final dos anos setenta, sob as condições históricas da

retomada dos movimentos populares e da redemocratização. A luta pela

transformação da assistência psiquiátrica surgiu em estreita vinculação

aos temas e às questões políticas que ocuparam a agenda da sociedade:

democratização, anistia ampla, geral e irrestrita e, passaram a fazer

parte dos encontros de profissionais da saúde mental. O debate sobre a

loucura e a instituição asilar saiu dos muros dos asilos e das

universidades e ganhou domínio público, através de denúncias que a

grande imprensa noticiava e da articulação do Movimento com entidades

da sociedade civil sensibilizadas com a questão da violência institucional

e da segregação. O Movimento da Reforma Psiquiátrica hasteou suas

16 Podemos citar, como exemplo, o hospital psiquiátrico de Juqueri onde, nos anos vinte, o Dr. Ozório César utilizava-se da expressão artística como instrumento terapêutico. Nesta mesma linha, vamos encontrar, na década de quarenta, o trabalho da psiquiatra Nise da Silveira e o Museu de Imagens do Inconsciente. Ainda vamos encontrar, nos anos vinte o trabalho do Dr. Ulisses Pernambucano, citado por Luiz Cerqueira como um pioneiro da psiquiatria social brasileira. E, nos anos sessenta e setenta, as experiências de comunidades terapêuticas desenvolvidas em diversos Estados, em especial São Paulo e Rio Grande do Sul.

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bandeiras ao lado das bandeiras de lutas dos Movimentos Sociais,

inscrevendo-se no processo histórico nacional.

Em relação ao inicio dos anos setenta, período marcado

por uma luta entre os discursos e planos oficiais e o modelo de saúde e a

medicina privada, o Movimento passou a ser animado por uma nova

geração de trabalhadores de saúde mental, que começou a ingressar nas

instituições psiquiátricas em grande número, no final dos anos setenta e,

especialmente, no início dos anos oitenta. Era o caminho da reforma

sendo construído por quem estava nas instituições, vivenciando o

cotidiano de violência, angustiado pelas contradições e questões que a

prática impunha mas que, inspirado pelo clima político cultural, acreditava

na possibilidade de transformação. Foram os atores implicados nesse

processo que continuaram, nos anos oitenta, ampliando, ocupando

espaços na administração pública e, principalmente, inventando novas

instituições.

Foi em um cenário político desfavorável, caracterizado

pelo arbítrio e pelo autoritarismo, que as experiências pontuais

desafiavam a prática manicomial dominante e que discursos e

documentos oficiais clamavam por mudanças institucionais. Foi em um

clima de perseguição e repressão a manifestações de oposição ao

regime, que o Movimento da Reforma Psiquiátrica nasceu e fortaleceu-se

através, principalmente, da mobilização dos trabalhadores que, ao

recusarem o papel de carcereiros da loucura, tornaram visíveis os

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dispositivos de segregação e violência das instituições psiquiátricas. O

Movimento da Reforma Psiquiátrica alinhava suas bandeiras às bandeiras

de luta de seu tempo histórico, apresentando-se, nessa guerra de

posições, como uma força a mais no campo de luta pela conquista da

direção política ou do consenso (Coutinho, 1981).

A hegemonia, ou o bloco histórico hegemônico, comporta

contradições que possibilitam a abertura de brechas. No campo da saúde,

e da saúde mental em especial, essas brechas e a sua ocupação

propiciaram, por um lado, a criação de espaços no interior do aparelho

estatal que foram instrumentalizados por profissionais comprometidos

com o polo subordinado e, por outro, a construção de práticas que foram

sendo consolidadas e incorporadas ao discurso oficial, nos anos oitenta e

noventa.

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CAPITULO III

OS ANOS OITENTA - CONQUISTANDO ESPAÇOS E CONSTRUINDO NOVAS PRÁTICAS

3.1. O Cenário: Redemocratização e a reconquista da cidadania

mas renova-se a esperança nova aurora a cada dia

e há que se cuidar do broto prá que a vida nos dê flor e fruto

Coração de estudante Há que se cuidar da vida

Há que se cuidar do mundo Tomar conta da amizade

Alegria e muito sonho Espalhados no caminho

Verdes: planta e sentimento Folhas, coração, juventude e fé.

Wagner Tiso e Milton Nascimento

Os anos do presidente Figueiredo, os últimos do governo

militar, iniciaram-se em um panorama econômico muito semelhante ao

que descrevemos no capítulo anterior. Uma conjuntura financeira

internacional desfavorável, caracterizada por uma recessão mundial, uma

alta taxa de juros, uma nova crise do petróleo e a interrupção de créditos

internacionais colocando a economia brasileira, devedora e tomadora de

empréstimos internacionais, em mais uma grande e grave crise.

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Internamente, houve uma acentuada queda do Produto

Interno Bruto (PIB), um elevado aumento dos juros internos, um aumento

da dívida externa e uma aceleração do processo inflacionário. Esse

quadro, associado ao modelo concentrador de renda e a um grande

arrocho salarial, levou muitas empresas e empresários a lucrarem com a

inflação. Muitos economistas afirmam que a década de oitenta foi a

década perdida para a sociedade brasileira. Não para a elite brasileira,

que soube aproveitar aqueles anos aumentando o nível de concentração

de renda, colocando o país como um dos campeões mundiais de injustiça

social e com uma das piores distribuições de renda

Se, por um lado, a crise financeira submeteu a população

brasileira a grandes sacrifícios, por outro, livre da ameaça do AI-5, vários

setores puderam organizar-se, nos novos partidos políticos que surgiram

com a reformulação partidária, nos movimentos populares que

conquistaram mais espaço e força naqueles anos, e nos sindicatos que

ampliaram o temário de suas reivindicações, introduzindo temas como

moratória internacional e rompimento com o Fundo Monetário

Internacional (FMI).

O ano de 1980 começou com os novos partidos que

surgiram da reorganização partidária efetuada em fins de 1979, que

objetivava desarticular a frente de oposição e retirar o peso negativo que

a sigla ARENA representava, substituindo-a pela sigla PDS (Partido

Democrático Social). Surgiram: o Partido Popular liderado por Tancredo

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Neves, que pouco durou; o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), após

uma intensa luta judicial ficou com Ivete Vargas, obrigando Leonel Brizola

a criar uma outra sigla PDT, (Partido Democrático Trabalhista) e

reivindicar para si a tradição getulista; o MDB, que se manteve

relativamente coeso e liderado por Ulisses Guimarães, transformou-se em

Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB); e o Partido dos

Trabalhadores (PT), tendo como presidente o líder do sindicalismo do

ABC Luís Inácio Lula da Silva, saudado pelas esquerdas como o mais

importante fato novo da política brasileira. Os partidos legalizaram-se em

1980, mesmo ano em que o presidente convocou, para o ano de 1982,

as primeiras eleições para governadores do período militar.

O movimento sindical recebeu um duro tratamento no

início do governo presidencial de Figueiredo, com a intervenção nos

sindicatos, afastamento de seus dirigentes, a prisão de vários líderes,

inclusive Lula, então presidente do sindicato dos metalúrgicos de São

Bernardo do Campo. Mas a intimidação não surtiu o efeito esperado. Pelo

contrário, o movimento sindical fortaleceu-se com a articulação com

setores da Igreja Católica, associação de moradores e os partidos

políticos mantendo uma mobilização contra o governo.

Em 1983, foi criada a Central Única dos Trabalhadores

(CUT), que teve um papel fundamental na organização e articulação do

movimento sindical e como interlocutor dos interesses da classe

trabalhadora em negociações junto ao governo e aos empresários.

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79

Os anos iniciais do governo Figueiredo também foram

marcados por uma série de atos terroristas, atribuídos a organizações

clandestinas de direita. No ano de 1980, ocorreram 46 deles.

Em São Paulo, o jurista Dalmo Dallari, ligado à

Arquidiocese de São Paulo, é seqüestrado e ferido. No Rio de

Janeiro, em setembro, uma carta-bomba endereçada ao

presidente da OAB, jurista Seabra Fagundes, explode e mata

sua secretária, Lyda Monteiro da Silva. Outra, no mesmo dia,

fere algumas pessoas na Câmara Municipal do Rio de Janeiro.

Muitas bancas de jornal que vendem publicações esquerdistas

são destruídas à bomba. (Couto, 1999, pp.283-284)

Contudo, o ato de maior impacto e de maior

conseqüência política foi a bomba do Riocentro. Como parte das

comemorações do Dia do Trabalho de 1981, foi realizado um show com a

participação de vários artistas consagrados da música popular brasileira.

A certa altura, duas bombas explodiram: a primeira em um carro,

matando um sargento do exército e ferindo um capitão, e outra na casa

de força. Nenhuma dessas explosões interrompeu ou causou qualquer

transtorno ao show e aos seus participantes. Uma tragédia de grandes

proporções não ocorreu por muito pouco. Investigações realizadas pelos

órgãos militares concluíram, cinicamente, que a bomba havia sido um ato

terrorista de esquerda, quando todos os indícios e evidências apontavam

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exatamente para o oposto, ou seja, que os responsáveis estavam dentro

do próprio exército, confrontando o processo de redemocratização.

Paradoxalmente, as bombas mostraram uma espantosa

eficácia: dividiram o governo que mantinha apenas uma aparente

unidade; produziram uma ampla repercussão negativa; mobilizaram a

opinião pública, que não aceitou a farsa dos relatórios; provocaram um

repúdio da maioria do Congresso; causaram um forte desgaste na

imagem do Exército; e geraram uma crise política decorrente da saída do

governo do Gal. Golbery do Couto e Silva, um dos principais mentores e

coordenadores intelectuais do processo de abertura. A abertura política

saiu fortalecida do episódio e a linha dura do Exército e o terrorismo de

direita ficaram inibidos. Couto (1999), ao relatar o ocorrido, afirma:

Há quem suspeite que o episódio possa ter viabilizado

um compromisso eticamente reprovável, mas de interesse da

abertura: a troca da impunidade dos responsáveis - via

apuração restrita e controlada - pela aceitação da continuidade

da abertura pelos radicais [de direita], inclusive das eleições

diretas para governador em 1982. (Ibid., p.303)17

Era o início do fim dos governos militares. Desgastado,

sem credibilidade, sem legitimidade, enfrentando uma das piores crises

17 O autor faz citação de um trecho do livro Estado e oposição no Brasil, de Maria Helena Moreira Alves, que afirma claramente que houve de fato essa negociação interna entre duas facções opostas do Estado de Segurança Nacional: impunidade em troca das eleições.

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econômicas, o presidente João Batista Figueiredo ainda teve que

administrar inúmeras divisões internas em seu governo, inclusive a

dissidência de seu vice civil Aureliano Chaves e do presidente do partido

de sustentação do governo, José Sarney.

Em novembro de 1982, foram realizadas as eleições para

governadores. Os partidos de oposição saíram vitoriosos das urnas,

elegendo governadores nos mais importantes Estados brasileiros como

São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.

Essas vitórias ampliaram o espaço político e o poder da

oposição não apenas como organizações político-partidárias, mas como

uma frente ampla pela restauração do regime democrático. Abriram,

também, espaços institucionais importantes que foram ocupados, em

muitos casos, por aqueles personagens excluídos e perseguidos pelo

regime militar e por vários outros militantes comprometidos com os

interesses das classes trabalhadoras. Isso transformou cada instituição

em um importante palco de luta entre dirigentes e burocratas

remanescentes do regime militar e os novos profissionais comprometidos

com o processo de transformação. No campo da saúde e, em especial, da

saúde mental, isso foi particularmente verdadeiro. Nos asilos

psiquiátricos, o primeiro dos palcos, os profissionais que ingressaram com

o objetivo de transformar aquelas instituições enfrentaram a psiquiatria

burocrática (Costa, 1991), construída ao longo dos anos da ditadura e

entranhada nas relações institucionais.

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Com o enfraquecimento do governo e uma crescente

insatisfação popular, a frente de oposição foi incorporando cada vez

mais segmentos oriundos do regime18, ampliando-se e pagando, nesse

processo, o custo da convivência com crescentes contradições.

Em 1984, um movimento iniciado no ano anterior, sem

muita expressão, em apoio à emenda do Deputado Federal Dante de

Oliveira, que propunha eleições diretas para presidência ao final daquele

ano, foi ganhando força e crescendo vertiginosamente entre janeiro e

abril. Organizada por uma frente suprapartidária, com o apoio dos

governadores de oposição, a campanha das Diretas-Já mobilizou milhões

de pessoas em diversos comícios por várias cidades do país, finalizando

com dois gigantescos, na Candelária no Rio de Janeiro e no Vale do

Anhangabaú, em São Paulo, em que se contabilizou mais de um milhão

de pessoas em cada um deles. Havia uma vibrante energia política no ar.

A participação da população, preferindo o papel de protagonista ao de

espectador, surpreendeu aos próprios organizadores, atropelando e

acelerando o processo. Criou-se um clima de resgate da cidadania em

torno das palavras de ordem quero votar para presidente e Diretas-Já.

18 Cuja participação na frente, muitas vezes, era menos uma decorrência de uma posição ideológica e mais um descontentamento que expressava apenas o fato de terem sido preteridos em alguns negócios, ou da perda de espaço no interior do próprio governo.

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Mas, apesar da mobilização, a emenda foi rejeitada no

Congresso Nacional19. Um clima de imensa frustração e revolta tomou

conta do país. Uma das maiores mobilizações populares da história do

Brasil, que uniu as oposições, fraturou a base parlamentar do governo,

não podia terminar sem nenhuma mudança. A energia política foi

canalizada para uma candidatura indireta apresentada ao Colégio

Eleitoral.

Ao final daquele ano de 1984, como resultado de intensas

articulações políticas públicas e de bastidores, que acabaram por afastar

o nome do deputado Ulisses Guimarães, o senhor Diretas-Já, de disputar

a Presidência pela via indireta, o colégio eleitoral elegeu o nome de

Tancredo Neves, como o primeiro presidente civil pós-golpe militar, dando

início à Nova República.

No dia 15 de março de 1985, o regime militar encerrou-se

após mais de vinte anos. Mas o país não viu o presidente Tancredo

Neves assumir, e sim o senador José Sarney, fundador e primeiro

presidente do PDS, que abandonara para se candidatar a vice.

Tancredo, após uma agonia de 37 dias, morreu no dia 21 de abril. O

presidente Sarney, mantendo os compromissos democráticos assumidos,

em maio daquele ano promulgou uma emenda constitucional que

restabelecia as eleições presidenciais e para as prefeituras das capitais e

19 A emenda obteve 298 votos, mas precisava de 320. Houve 65 infames votos contrários e 115 covardes ausências.

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cidades consideradas de segurança nacional, e abrandou as exigências

para o registro de novos partidos, criando condições para que

tradicionais partidos de esquerda pudessem se legalizar, além de

inúmeras outras agremiações. Em novembro, foram realizadas as

primeiras eleições para as capitais e principais cidades do país, após o

regime militar.

A Nova República de Sarney foi marcada por um

momento econômico, o Plano Cruzado, e por outro político, a

promulgação da Constituição, em 1988.

O Plano Cruzado, de 1986, foi o primeiro de uma série de

planos de estabilização econômica implantados no período de 1986-94.

Suas principais características foram a substituição da moeda (o cruzeiro

foi temporariamente aposentado pelo cruzado), o congelamento de

preços, dos salários e do câmbio. Ao longo do ano de 1986, conseguiu-

se manter a inflação, um dos maiores problemas econômicos, em

patamares muito baixos. Porém o governo, encantado com os dividendos

políticos do plano, recusou-se a efetuar modificações necessárias para

sua sobrevivência antes das eleições de novembro daquele ano. O PMDB

obteve uma vitória esmagadora, elegendo governadores em praticamente

todos os Estados. O plano econômico afundou logo depois, com a volta

da inflação.

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O Congresso eleito naquele ano ganhara poderes de

constituinte e, sob a presidência do deputado Ulisses Guimarães,

elaborou a nova Constituição, a primeira da história do país a aceitar

emendas populares20. Em seus quase 250 artigos, destacam-se os

direitos individuais e coletivos. Em seu artigo n.º 196, do Da Ordem

Social, fixou que a Saúde é um direito de todos e dever do Estado,

consolidando na carta constitucional uma das bandeiras de luta do

Movimento Sanitário, o eixo central do Sistema Único de Saúde (SUS)

(Teixeira & Mendonça, 1995). Promulgada em outubro de 1988, marcou a

retomada plena das liberdades civis.

Naquele mesmo ano de 1988, foram realizadas novas

eleições para as capitais e principais cidades do país. O PMDB, grande

vitorioso na eleição anterior, perdia nas principais capitais e cidades para

os partidos de oposição (ao PMDB). As grandes surpresas foram a vitória

do PT na cidade de São Paulo e na cidade de Santos. Em ambas, com

candidatas mulheres.

Em 1989, o processo de redemocratização teve

finalmente seu fim, com a eleição por via direta do Presidente da

República. Disputaram 24 candidatos, que realizaram comícios,

passeatas, carreatas, showmícios. Mas foi o horário político nas

emissoras de rádio e TV e os debates promovidos pelas grandes redes

20 Estas deveriam ser apresentadas por, pelo menos, três entidades e conter um mínimo de trinta mil assinaturas.

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que cumpriram o papel de formadores de opinião dos eleitores. No

segundo turno, houve uma disputa acirrada entre Fernando Collor de

Mello e Luís Inácio Lula da Silva. As forças de esquerda se uniram em

torno do nome de Lula, enquanto o empresariado21 e as elites

fortaleceram a candidatura de Collor, mesmo sabendo que não passava

de um aventureiro. Utilizando-se de ataques pessoais, principalmente nos

últimos dias da campanha, Collor conseguiu reverter uma forte tendência

do eleitorado em favor de Lula, e venceu as eleições com 35 milhões de

votos contra 31 milhões. A república de Alagoas22 teve seu início junto

com os anos noventa.

3.2. Construindo a Reforma Psiquiátrica

Contra o pessimismo da razão o otimismo da prática

Franco Basaglia

Como dissemos no capítulo anterior, o Movimento da

Reforma Psiquiátrica teve seu início nos anos finais da década de

setenta, com críticas ao sistema de assistência psiquiátrica e à indústria

21 Mário Amato, líder dos empresários paulista, afirmou que se Lula vencesse todos os empresários iriam embora do Brasil no dia seguinte. 22 Confraria de amigos do presidente, em sua grande maioria do Estado de Alagoas, que se instalou no poder.

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da loucura, que saíam dos muros dos asilos e das universidades, para

conquistar visibilidade social. Diferentemente dos anos anteriores, quando

as questões sociais que envolviam a saúde mental não eram citadas nos

documentos e encontros oficiais, elas ganharam destaque e deslocaram

o eixo do movimento para uma discussão mais política e social. Seu ator

também se modificou, com a entrada em cena do Movimento dos

Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM), que foi se ampliando ao longo

dos anos.

Em 1980, assim como ocorreu no ano anterior em São

Paulo, foi realizado no Rio de Janeiro o I Encontro Regional de

Trabalhadores em Saúde Mental, onde se discutiram:

problemas sociais relacionados à doença mental, à política

nacional de saúde mental, às alternativas surgidas para os

profissionais da área, suas condições de trabalho, à

privatização da medicina, à realidade político-social da

população brasileira e às denúncias das muitas barbaridades

ocorridas nas instituições psiquiátricas. (Amarante 1998,

p.56)

No mesmo ano, em Salvador, aconteceu o II Encontro

Nacional de Trabalhadores de Saúde Mental, paralelo ao VI Congresso

Brasileiro de Psiquiatria. Segundo Amarante (1998), o Movimento dos

Trabalhadores e a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), que no

congresso anterior estavam próximos, experimentaram um

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distanciamento, tendo como um dos pontos críticos o caráter não-

democrático para a eleição da diretoria da ABP, apesar de a mesma ter

sido signatária do Movimento pela Anistia e pelas liberdades

democráticas. Foram aprovadas moções de apoio à luta pela

democratização na ABP e federadas e de crítica à privatização da saúde.

Naquele congresso, foram discutidos temas como a

defesa dos direitos dos pacientes psiquiátricos, através de grupos de

defesa dos direitos humanos e da vinculação da luta da saúde aos

movimentos populares. Amarante apresenta outros temas que foram

também debatidos:

implicações econômicas, sociais, políticas e ideológicas na

compreensão das relações entre o processo de proletarização

da medicina, do poder médico, da assistência médico-

psiquiátrica em processos de exclusão e controle sociais mais

abrangentes. Critica-se o modelo assistencial como ineficiente,

cronificador e estigmatizante em relação à doença mental. Os

determinantes das políticas de saúde mental, do processo de

mercantilização da loucura, da privatização da saúde, do

ensino médico e da psiquiatrização da sociedade. (Amarante,

1998, p.56)

Observa-se, pelos temas, uma crescente preocupação

em ampliar as discussões do campo técnico para uma perspectiva política

e social, sintonizados com o contexto histórico em que o Movimento da

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89

Reforma Psiquiátrica estava imerso. Tratava-se aqui da necessidade de

articulação, não só no âmbito das discussões, mas das ações com outros

setores sociais, que naquele momento lutavam pela redemocratização do

país através da luta pela reconquista dos direitos civis, por uma liberdade

de organização e participação política, pela democratização da ordem

econômica. Nesse sentido, a saúde mental começava a ser tomada, no

interior do Movimento da Reforma Psiquiátrica, como uma questão que

transcendia os limites e os muros dos asilos e das discussões

acadêmicas. A política de saúde, as instituições, a prática profissional,

eram compreendidas a partir da análise dos interesses de classes que

representam e da função social que cumprem. A luta pela transformação

da saúde mental passou, portanto, para uma luta maior pela

transformação da saúde e da sociedade.

Dentro desta perspectiva, que já apresentamos

anteriormente no capítulo I, vale ressaltar alguns importantes momentos

daqueles anos, no campo da luta pela transformação da saúde

empreendida pelo Movimento Sanitário, e as conseqüências para o

Movimento da Reforma Psiquiátrica.

No início dos anos oitenta, a crise financeira da

Previdência Social se agrava, exigindo do governo uma solução. Surgiu o

Plano Prev-Saúde, que incorporou teses e propostas do Movimento

Sanitário, tais como descentralização, hierarquização, regionalização e

ênfase aos serviços básicos de saúde. Após suscitar debates e

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90

polêmicas, acabou por não ser implementado. Mas houve a incorporação

de alguns intelectuais do Movimento Sanitário na burocracia estatal, na

tentativa de se buscar soluções para crise.

Um exemplo desse processo de incorporação foi o que

ocorreu nas instituições públicas do Ministério da Saúde (MS), por

ocasião do convênio de co-gestão estabelecido com o Ministério da

Previdência e Assistência Social (MPAS). Por esse convênio, o MPAS

deixava de ser um comprador de serviços das unidades hospitalares do

MS e passava a colaborar no custeio, planejamento e avaliação,

participando da administração global das unidades co-geridas. Várias

instituições participaram desse convênio, dentre elas os hospitais

psiquiátricos vinculados à DINSAM. Amarante (1998) detalha esse

processo, destacando que foi um marco nas políticas públicas de saúde,

pois possibilitou a incorporação de setores críticos do sistema de saúde

no interior do aparelho estatal e a criação de espaços concretos de

transformação daquelas instituições de saúde que estavam sob o modelo

da co-gestão.

No final de 1981, a Presidência da República criava o

Conselho Nacional de Administração da Saúde Previdenciária

(CONASP), um foro que contou com a participação, não-paritária, de

representantes governamentais, patronais, universitários da área médica

e dos trabalhadores. Em agosto de 82, o trabalho do CONASP se

consubstanciou no Plano de Reorientação da Assistência Médica da

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Previdência, que propunha oficialmente modificações que objetivavam a

racionalização do sistema, a melhoria da qualidade dos serviços e a

reversão do modelo assistencial privatizante, com a descentralização e

utilização prioritária dos serviços públicos federais, estaduais e municipais

na cobertura assistencial da população. Como parte do Plano de

Reorientação, o Projeto de Ações Integradas de Saúde (AIS) foi um

importante instrumento no avanço da adoção dos princípios de

universalização, de eqüidade e de integração dos serviços de saúde, em

especial para o Estado de São Paulo, que descreveremos um pouco mais

adiante.

No âmbito da saúde mental, o CONASP elaborou na

mesma época um plano específico para a assistência psiquiátrica, que

propunha diretrizes gerais para uma reformulação, tais como a

descentralização, regionalização e hierarquização dos serviços, e o

fortalecimento da intervenção do Estado. Foi implantado

experimentalmente como projeto-piloto no Rio de Janeiro (Amarante,

1998).

Em 1981, brasileiros de diversos Estados participaram,

em Cuernavaca, no México, de um encontro da Rede Internacional de

Alternativa à Psiquiatria.

A rede, no Brasil, pretendia ser o núcleo agregador de

todos os movimentos alternativos existentes e que estivessem

atuando isoladamente. A rede chega, de fato, no Brasil, em

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1982, ano eleitoral, conjuntura pluripartidária com partidos em

formação, ditadura militar em declínio, e se instala

principalmente no eixo São Paulo, Rio de Janeiro e Minas

Gerais. (Figueiredo, 1988, p.161)

Vale ressaltar que se de fato a rede chegou ao Brasil em

1982, desde o final dos anos setenta já circulavam informações e

adesões informais. Em um certo sentido, já estávamos integrados à rede.

3.3. Um pouco de São Paulo: das Ações Integradas de Saúde a Plenária de Trabalhadores de Saúde Mental.

Como destacamos anteriormente, o processo de

redemocratização do país possibilitou o acesso aos cargos executivos das

políticas públicas de saúde, em todos os níveis (federal, estadual e

municipal), de uma geração de profissionais comprometida com propostas

e políticas de transformação da saúde e da sociedade. A mesma geração

que no final dos anos setenta, com sua militância, havia iniciado tanto o

Movimento Sanitário quanto o da Reforma Psiquiátrica. Isso possibilitou,

no campo da saúde mental, a proliferação de trabalhos e experiências

que, inicialmente isoladas e sem reconhecimento oficial, começaram a se

articular, fortalecendo e ampliando o movimento.

Esse processo ocorreu em diversos Estados, mas

concentraremos nossa análise no Estado de São Paulo, sem deixar de

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lado os eventos nacionais importantes, por possuirmos mais elementos

para tal caminhada, tanto no que se refere aos documentos quanto às

impressões e marcas da memória, por termos participado pessoalmente

desse processo.

3.3.1. A Sorbonne

Em 1982, em São Paulo, diversos grupos constituíram-se

para elaborar o programa de governo do então candidato Franco

Montoro, cuja bandeira principal estava na palavra de ordem: é hora de

mudar. Esses diversos grupos ficaram conhecidos como Sorbonne.

Em setembro, um grupo de profissionais da saúde mental,

professores, e outros, após um grande número de reuniões23 e

discussões realizaram um seminário para consolidar os princípios de um

programa de saúde mental, cujos pontos mais importantes eram:

regionalização, hierarquização e integração dos serviços, com ênfase no

trabalho nos níveis primário e secundário, uma progressiva

desospitalização com a desativação de leitos psiquiátricos vinculadas à

criação de redes de ambulatórios e centros de saúde, criação de

leitos de retaguarda em

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hospitais gerais, trabalhos com a comunidade, investimentos na

preparação de recursos humanos e suspensão paulatina dos convênios

com hospitais psiquiátricos privados.

"É importante notar que nem todos os participantes eram

adeptos do PMDB. Havia muita vontade de mudar, depois de tantos anos

de escuridão, e todo mundo participava de tudo o que podia" (Cesarino,

1989, p.7). Nascia ali a política de saúde mental tanto do governo do

Estado de São Paulo, quanto da prefeitura municipal de São Paulo,

levada a cabo pelo prefeito nomeado Mário Covas. Os princípios

colocados já estavam consagrados em diversos documentos, como o

plano CONASP que citamos anteriormente, embora alguns pontos não

tenham sido incorporados posteriormente, nem ao discurso e muito

menos à prática da Coordenadoria de Saúde Mental (CSM) da Secretaria

de Estado da Saúde. Referimo-nos, especialmente, à desativação de

leitos e à suspensão paulatina dos convênios com hospitais psiquiátricos

privados, que caiu no esquecimento, apesar de constar como uma das

diretrizes.

3.3.2. As Ações Integradas de Saúde

23O grupo ficou conhecido como o grupo da Madre Teodora, pois as reuniões eram realizadas na rua com o mesmo nome.

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Um fato de grande importância na implantação não só das

propostas de saúde mental, mas de um projeto de transformação da

assistência em saúde, aconteceu em outubro de 1983, quando se

estabeleceu um convênio entre o Ministério da Previdência e Assistência

Social, o Ministério da Saúde e o Governo do Estado de São Paulo,

contando com a adesão da Prefeitura Municipal de São Paulo, para

implantação das Ações Integradas de Saúde, a que nos referimos

anteriormente e que aqui se chamou Programa de Ações Integradas de

Saúde. Esse programa possibilitou um repasse de verbas da União para

o Estado e Prefeituras que foram utilizadas, principalmente, no

reaparelhamento e reformas dos equipamentos públicos, na contratação

de pessoal para ampliação da rede de assistência e na implantação e

ampliação de diversos programas de saúde.

O documento do convênio estabelecia os seguintes

princípios e diretrizes:

• ... responsabilidade do Poder Público em relação à saúde

da população e ao controle do sistema de saúde;

• integração interinstitucional, tendo como eixo o setor

público, ao qual esta articulado, técnica e funcionalmente, o

setor privado prestador de serviços;

• definição de programas, ações e atividades das instituições

envolvidas, a partir do quadro de doenças mais prevalentes em

nível regional e local;

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• integralidade das ações de saúde, superando as

dicotomias preventivo/curativo, individual/coletivo,

ambulatório/hospitalar;

• regionalização e hierarquização única dos serviços

públicos e privados;

• valorização das atividades básicas de saúde assegurando-

se o encaminhamento dos casos de comprovada necessidade

de atendimento mais complexo;

• utilização prioritária e plena da capacidade instalada da

rede pública;

• descentralização do processo de planejamento e de

administração;

• planejamento da cobertura assistencial, a partir das

necessidades de atendimento da população, com parâmetros e

estratégias assistenciais de melhor custo/benefício;

• co-participação, claramente definida, das várias instituições

envolvidas, no financiamento das ações de saúde, de acordo

com as responsabilidades institucionais;

• desenvolvimento de recursos humanos como condição

básica na operação do sistema, incluindo definição dos

conteúdos e estratégias de formação de recursos humanos,

assentada sobre a prática de serviços de saúde, e o

estabelecimento de Planos adequados de Cargos e Salários;

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• reconhecimento da legitimidade de participação dos vários

segmentos sociais na definição, no encaminhamento de

soluções e na avaliação do nível de desempenho da

assistência prestada. (apud Pitta-Hoisel, 1984, pp.108-109)

Pitta-Hoisel (Ibid.) nos informa que o projeto previa a

constituição de comissões gestoras: em nível estadual, Comissões

Interinstitucionais de Saúde (CIS); em nível regional, Comissões

Regionais Interinstitucionais (CRIS) e, em nível municipal, Comissões

Locais ou Municipais Interinstitucionais de Saúde (CLIS ou CIMS). Previa

também um órgão deliberativo interministerial entre os Ministérios da

Saúde, Educação e Previdência Social, que trabalhariam em consonância

com o Conselho Nacional de Secretários de Saúde, no acompanhamento

das AIS.

Nesse convênio, já estavam colocados os princípios e

diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS): universalidade; eqüidade;

descentralização, regionalização e integração dos serviços de saúde;

atenção integral; prioridade às ações básicas de saúde e a participação

popular. Essas foram as primeiras conquistas concretas do Movimento da

Reforma Sanitária, que instrumentalizaram e nortearam o processo de

transformação da saúde, caminhando para o Sistema Único e

Descentralizado de Saúde (SUDS), em meados dos anos oitenta, até a

consagração do SUS, nos anos noventa. No âmbito do Estado de São

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Paulo e do país, aconteceu o início de uma longa e árdua jornada que

continua nos dias atuais.

É importante destacar que, na cidade de São Paulo,

encontramos no início dos anos oitenta a formação de diversos Conselhos

de Saúde, organizados a partir das pressões e demandas apresentadas à

Secretaria de Estado da Saúde pelos movimentos populares. Segundo

um depoimento de um representante daquela secretaria, a "população

hoje está muito danada, chega com papel todo preparado, explicando o

que precisa. Ela sabe pedir, e só pede o que vai conseguir" (Jacobi, 1989,

p.110). Lembramos que a participação popular no controle e fiscalização

dos serviços de saúde já era prevista na legislação no final dos anos

setenta e hoje está regulamentada por lei federal, através de

representação paritária nos três níveis deliberativos do SUS: Conselho

Municipal de Saúde; Conselho Estadual de Saúde e Conselho Nacional

de Saúde, e também no nível institucional, com o Conselho Gestor de

Unidade.

O Programa das Ações Integradas de Saúde possibilitou

a implantação de uma importante experiência no município de São Paulo,

o projeto Zona Norte24, e a implementação da política de saúde mental da

Secretaria de Estado da Saúde. Marcos Pacheco Toledo Ferraz, então

24 O Projeto de Ações Integradas de Saúde Mental na Zona Norte, do município de São Paulo, foi o primeiro projeto na cidade a propor e executar uma integração e uma hierarquização entre diferentes serviços, contemplando ações em nível primário, secundário e terciário (Cesarino, 1989).

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coordenador, apontava as prioridades da Coordenadoria de Saúde

Mental:

a) implantar ações de saúde mental em Centros de Saúde, com

uma equipe mínima composta por psicólogo, psiquiatra e

assistente social;

b) ampliar a rede ambulatorial;

c) recuperar os leitos próprios;

d) promover a regionalização, hierarquização e integração dos

serviços. (Toledo Ferraz & Morais, 1985, p.16)

No mesmo texto, os autores destacam: a expansão no

âmbito estadual da rede extra-hospitalar25, com a criação de novos

ambulatórios de saúde mental e a implantação das equipes mínimas em

vários centros de saúde; a parceria com as universidades e com

instituições formadoras26 para capacitação dos profissionais da rede; o

esforço empreendido no sentido de prover a Coordenadoria de Recursos

Humanos; e os investimentos realizados no sentido de recuperar os

hospitais psiquiátricos públicos, objetivando resgatar "seu caráter

terapêutico, transformando-os em unidades ágeis, funcionantes e sobre

tudo os mais humanizados possíveis " (Toledo Ferraz & Morais, 1985,

p.16). Ressaltaram as ações que estavam sendo executadas no Juqueri.

25 Vide quadro 2 do anexo. 26 Tais como Instituto Sedes Sapientiae, Instituto de Psicanálise, Sociedade de Psicodrama.

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3.3.3. O Juqueri

O Juqueri, exatamente por seu forte significado simbólico

e por ter sido alvo de denúncias e de uma Comissão Parlamentar de

Inquérito (CPI), no final dos anos setenta, havia sido destaque na

formulação da política de saúde mental com uma proposta reformista que

consistia em melhorar as condições de moradia e humanizar as relações

interpessoais. Em entrevista a Cid Pimentel, Francisco Drummond, diretor

clínico do Juqueri, no início do Governo, afirmava:

Para repensá-lo enquanto espaço de moradia das

pessoas, seria necessário basicamente duas coisas: uma,

confrontar o discurso médico legitimador daquele espaço como

espaço terapêutico e, por outro lado, tentar promover uma

transformação da forma como o conjunto de funcionários viam

e compartilhavam a instituição, do ponto de vista ideológico. A

luta que se travava ali era uma luta ideológica. (apud Castro

Sá & Pimentel, 1991, p.106)

Percebe-se que o diretor clínico do Juqueri propunha algo

que contestava o discurso do próprio Coordenador.

Na mesma entrevista, Drummond apontava a

necessidade de se efetivar a proposta e relatava que foram formuladas

duas ações concretas que se traduziram no eixo das mudanças a serem

implementadas. A primeira, os Centros de Convivência, eram espaços

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externos aos pavilhões, onde se desenvolviam diversas atividades

expressivas, terapêuticas e culturais, cujo objetivo principal era criar uma

prática institucional demonstrando, especialmente aos funcionários e

técnicos, que os pacientes não precisavam ficar confinados aos pátios,

que a liberdade era possível27. A segunda, os Lares Abrigados, eram

pavilhões modificados para serem transformados em moradias de fato,

com possibilidade de personalização, organização auto-gerida pelos

próprios pacientes, doravante renomeados de moradores, o que lhes

garantia também a possibilidade de sair e voltar.

Apesar das propostas de mudanças, esse conjunto de

ações só pôde ser plenamente implementado no ano de 1984, a partir de

uma nova denúncia na imprensa que gerou uma crise institucional, em

fevereiro daquele ano, e levou o Governador Franco Montoro ao Juqueri.

Como conseqüência, a instituição sofreu uma intervenção, uma grande

injeção de recursos financeiros e a agilização na contratação de recursos

humanos.

Inegavelmente, a administração da CSM, à época, teve

seus méritos, especialmente por implantar uma política de saúde mental

até então inexistente, excetuando-se a efêmera passagem de Luiz

Cerqueira à frente daquela Coordenadoria de Saúde Mental. O que

significa dizer que existia uma proposta de trabalho, com pressupostos

27 Costumava repetir uma frase de Basaglia que ficou marcada como uma espécie de lema do processo de transformação do Juqueri : �a liberdade é terapêutica�.

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conceituais, em torno da qual foram organizados equipamentos,

contratadas equipes, executadas ações, realizados investimentos.

Frente ao que havia e ao que houve depois, em termos de política de

saúde mental, foi um grande e meritório esforço. Os conceitos daquela

política de saúde mental tinham uma nítida influência da psiquiatria

preventiva norte-americana, ainda que com certas noções de psiquiatria

de setor francesa. Lancetti (1989) elabora uma critica àquela política,

tomando como eixo de sua análise a Proposta de Trabalho para equipes

multiprofissionais em Unidades Básicas e Ambulatórios de Saúde Mental,

conhecida como a Cartilha da Coordenadoria de Saúde Mental, em que

aponta os limites e os riscos da noção de prevenção ali contidos. Também

o trabalho de Costa-Rosa (1987), já citado, apresenta uma análise crítica

da política de saúde mental do governo Montoro.

Um outro ponto crítico nas ações daquele período é o que

se refere aos leitos psiquiátricos. Embora com o poder institucional para

intervir de maneira firme no sentido de reduzir o número excessivo de

leitos psiquiátricos existentes no Estado, a CSM, no período de 83 a 85,

conforme o texto já citado do próprio coordenador, manteve o percentual

de destinação orçamentária, ou seja, 38% dos gastos eram destinados

aos hospitais conveniados28. Apesar dos documentos citarem

constantemente uma frase de Gentile de Melo, para quem o "doente

mental é um cheque ao portador para o empresário da saúde", e ressaltar

28 Vide quadro 1 do anexo.

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que a ênfase excessiva na hospitalização era movida por interesses do

lucro, não houve um gesto efetivo da Coordenadoria de Saúde Mental

para fiscalizar a assistência prestada nos hospitais psiquiátricos

conveniados, tais como o tempo de permanência, número de

reinternações ou qualquer outro indicador de qualidade.

3.3.4. Plenária dos Trabalhadores de Saúde Mental

A ampliação das unidades trouxe para o campo da saúde

mental uma geração de jovens profissionais que, em sua grande maioria,

recém-saídos das universidades, não estavam contaminados pela inércia

burocrática das instituições públicas, e "assumiram com entusiasmo e de

forma crítica a tarefa de implantar as novas propostas e,

fundamentalmente, trabalhar acreditando em mudanças" (Yasui, 1989,

p.49).

É importante salientar que, se, em 1978/79, o quadro

político tinha como pauta o fim da ditadura, a Anistia Ampla, Geral e

Irrestrita, o fim do AI-5, o momento agora era o da reivindicação em

massa pela eleição direta para presidente da república. Para lá fluíam os

inúmeros movimentos sociais que também naquele período começavam a

despontar, como já destacamos anteriormente.

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Contaminados pelo momento histórico e por um espírito

coletivo de participação, os trabalhadores de saúde mental procuravam

traduzir para o cotidiano essa vontade, essa energia no

compromisso com o trabalho, com a mudança. Um significativo

exemplo foi o I Congresso de Trabalhadores de Saúde Mental

de São Paulo, em 1985. Após os discursos oficiais de abertura,

dezenas de profissionais ergueram-se de suas cadeiras e

enunciaram um protesto coletivo (...) expressão daqueles que

'nomeados' pelo Estado como trabalhadores, assumiam de fato

essa condição, reivindicando uma participação mais efetiva nas

decisões daquilo que, afinal, é o seu ofício: o trabalho em

saúde mental. (Yasui, 1989, p.50)

Começava a nascer a Plenária de Trabalhadores de

Saúde Mental, um agente social coletivo que congregava diversas

entidades e que atuou como um saudável e severo crítico das

contradições da Coordenadoria de Saúde Mental de São Paulo. Havia

naquele momento um grande clima de discussão, por vezes até

passional, entre diversos grupos de trabalhadores, entidades e os

gerentes. A Plenária era um espaço para as questões que nasciam,

muitas vezes, da angústia que muitos trabalhadores sentiam ao enfrentar

as dificuldades inerentes à implantação de serviços em áreas em que não

existia nenhuma forma de atenção; ou da demanda que os usuários

apresentavam frente às novas práticas; ou se referiam ao processo lento

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das mudanças causadas pela inércia da burocracia estatal; ou se referiam

a criticas ao modelo psiquiátrico-preventivo da política de saúde mental;

ou reivindicavam a participação dos trabalhadores no processo de

discussão das diretrizes dessa política. Enfim, existiam questões,

angústias, temas e posições para todos os gostos. Se unanimidade

havia, era a que se relacionava à necessidade de mudar, de transformar a

assistência psiquiátrica, tendo como perspectiva a transformação da

saúde no contexto da transformação da sociedade.

Em março de 1987, foi inaugurado, em São Paulo, o

Centro de Atenção Psicossocial Prof. Luiz da Rocha Cerqueira (CAPS)29,

cujo projeto inicial remonta a fins de 1986. Organizado, basicamente, a

partir de um grupo de técnicos que atuava na Divisão de Ambulatórios da

CSM30, ao longo dos anos o CAPS incorporou diversos profissionais

oriundos de importantes experiências de transformação institucional que

participavam da Plenária de Trabalhadores de Saúde Mental. O CAPS

acolheu, na composição de sua equipe, profissionais diversos, de

diferentes linhas de pensamento e de atuação. Do confronto entre as

idéias e do encontro com a prática foi-se construindo uma das mais

importantes experiências institucionais daqueles anos. "O surgimento do

29 Trataremos mais detalhadamente do CAPS no capítulo V. 30 Instância técnica e administrativa responsável pela assistência psiquiátrica extra-hospitalar. Do grupo que elaborou o projeto do CAPS, faziam parte a Diretora daquela Divisão, Dra. Ana Pitta, e diversos técnicos responsáveis pela supervisão das unidades da CSM.

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CAPS (...) passou a exercer forte influência na criação ou transformação

de muitos serviços por todo o país" (Amarante, 1998, p.82).

Por vezes pelos mesmos caminhos, por vezes por

caminhos paralelos, uma outra trajetória animada, especialmente em São

Paulo, pela Plenária de Trabalhadores de Saúde Mental, estabeleceu-se

no interior do Movimento da Reforma Psiquiátrica. No mesmo ano de

1987, realizou-se o II Congresso Nacional de Trabalhadores de Saúde

Mental31, em Bauru-SP, que marcou o início do Movimento Nacional da

Luta Antimanicomial, consagrando o lema Por uma sociedade sem

manicômios.

3.4. Por uma sociedade sem manicômios: nasce o Movimento da Luta Antimanicomial.

Amarante (1998) afirma que, a partir de 1985, pode-se

constatar que uma significativa parcela dos postos de chefia de

programas estaduais e municipais de saúde mental, bem como a direção

de importantes unidades hospitalares públicas, especialmente na região

sudeste do país, estavam sob a condução de fundadores e ativistas do

Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental. Ocupando praticamente

todos os espaços,

31 O I Congresso foi realizado em São Paulo, no Instituto Sedes Sapientiae, conforme já informamos anteriormente.

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107

encarregaram-se de elaborar novas propostas, produzir e

reproduzir novas idéias, formar novos militantes. Operaram

uma substituição de um prática psiquiátrica conservadora ou

voltada para interesses privados, por uma ação política de

transformação da psiquiatria como prática social. (Ibid., p.69)

Em 1985, é organizado o I Encontro de Coordenadores de

Saúde Mental da Região Sudeste, que foi reproduzido em outras regiões

e conjuntos de cidades, dando início a uma trajetória que terminou com a

I Conferência Nacional de Saúde Mental. Esse primeiro Encontro foi

precedido de outros estaduais, com a participação de representantes de

vários instituições, e representou "uma estratégia de articular os vários

dirigentes para discutir e rever suas práticas, de criar mecanismos e

condições de auto-reforço e cooperação mútua " (Amarante, 1998, p.69).

Em 1986, a Plenária de Trabalhadores de Saúde Mental32

organizou, em São Paulo, de forma independente, o II Congresso de

Trabalhadores, tendo como temas-eixo: Saúde Mental e Trabalho;

Saúde Mental e Movimentos Sociais; Saúde Mental e Constituinte. Esse

32 As seguintes entidades faziam parte da comissão organizadora: ASSES - Associação dos Servidores da Secretaria de Saúde; Sindicato dos Assistentes Sociais de São Paulo; Sindicato dos Médicos de São Paulo; Sindicato dos Enfermeiros de São Paulo; Centro de Estudos do Hospital Pinel; Instituto Sedes Sapientiae; Grupo de Fonoaudiólogos de São Paulo; Sociedade de Psicodrama de São Paulo; CUT - Central Única dos Trabalhadores; Associação Paulista de Fonoaudiologia; Conselho Regional de Psicologia de São Paulo; Hospital das Clínicas da FMUSP; Grupo de Saúde Mental do PT; Conselho Regional de Assistentes Sociais de São Paulo; Núcleo de Trabalho e Estudos de Psiquiatria Institucional; Centro Comunitário de Saúde Mental de Parelheiros; Trabalhadores de Saúde Mental de Osasco; Instituto de Psicologia da PUC; Grupo de Supervisores dos Ambulatórios de Saúde Mental; Sindicato dos Psicólogos de São Paulo.

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108

Congresso surgiu como resposta ao I Congresso, realizado no ano

anterior, organizado pela Coordenadoria de Saúde Mental sem a

participação dos trabalhadores de saúde mental, marcando uma diferença

entre determinadas lideranças do Movimento da Reforma Psiquiátrica,

por demasiado comprometidas com o aparato estatal e o desejo dos

trabalhadores de imprimir uma dinâmica mais democrática e com maior

participação.

O temário daquele congresso refletia o momento político

do país, às vésperas de uma nova eleição para governadores e para a

Assembléia Nacional Constituinte. Posteriormente, foi lançado um livro

contendo uma coletânea das conferências desse congresso, com o

significativo título de Saúde Mental e Cidadania ( Marsiglia et al., 1987).

Em junho de 1987, como desdobramento da histórica 8ª

Conferência Nacional de Saúde de 1986, foi realizada a I Conferência

Nacional de Saúde Mental, tendo como temas básicos: economia,

sociedade e Estado - impactos sobre a saúde e doença mental; Reforma

Sanitária e reorganização da assistências à saúde mental; Cidadania e

doença mental - direitos, deveres e legislação do doente mental.

A plenária de instalação foi marcada por um conflito

significativo: os participantes rejeitaram o regulamento que a ABP e a

DINSAM elaboraram, pois tentavam impor um caráter técnico e

congressista ao evento, o que levou as duas instituições organizadoras a

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109

ameaçarem se retirar. O regulamento foi modificado, garantindo a

natureza participativa, a exemplo do que ocorrera na 8ª Conferência.

A Conferência foi realizada em um clima de intensas

discussões, e o seu relatório final demonstra a força de articulação do

Movimento, fazendo prevalecer suas teses em praticamente todos os

itens dos temas da Conferência. Ficou para a história esse relatório.

No tema I - Economia, Sociedade e Estado, o relatório

analisa o modelo econômico altamente concentrador brasileiro,

apontando para a necessidade de se ampliar o conceito de saúde,

considerando em seus determinantes as condições materiais de vida.

Destacamos os seguintes trechos:

Situando a Saúde Mental no bojo da luta de classes,

podemos afirmar que seu papel tem consistido na classificação

e exclusão dos 'incapacitados' para a produção (...) Assim

sendo, os trabalhadores de saúde mental podem se constituir

em instrumentos de dominação do povo brasileiro, seja por

opção astuta e de identificação com os interesses da classe

dominante, seja por ingenuidade que supõe que a intervenção

técnica é neutra e asséptica. É urgente pois o reconhecimento

da função de dominação dos trabalhadores de saúde mental e

a sua revisão crítica, redefinindo seu papel, reorientando a sua

prática e configurando a sua identidade ao lado das classes

trabalhadoras (...) É mister (...) resgatar para saúde sua

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concepção revolucionária, baseada na luta pela igualdade de

direitos e no exercício real da participação popular,

combatendo a psiquiatrização do social, a miséria social e

institucional. (BRASIL/MS, 1992, p.15)

No tema II - Reforma Sanitária e reorganização da

assistência, o relatório reafirma as teses do Movimento Sanitário,

introduzindo a especificidade da saúde mental no contexto de suas

diretrizes e princípios, apontando para a constituição de um Sistema

Único de Saúde, com garantia da participação popular. No plano

assistencial, aponta para os mesmo princípios consagrados em outros

documentos, tais como reversão da tendência hospitalocêntrica com

prioridade para o sistema extra-hospitalar e etc. Interessante destacar que

o relatório propõe que, a partir daquela Conferência,

o setor público não credenciará nem instalará novos leitos

psiquiátricos hospitalares tradicionais, reduzindo,

progressivamente os leitos existentes e substituindo-os por

leitos psiquiátricos em hospitais gerais públicos ou por serviços

inovadores alternativos à internação psiquiátrica (...) Será

proibida a construção de novos hospitais psiquiátricos

tradicionais (...) Em regiões onde houver necessidade de novos

leitos psiquiátricos estes deverão estar necessariamente

localizados em hospitais gerais. (Ibid., p.20)

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Por fim, no tema III - Cidadania e Doença mental - o

relatório reafirma, também, teses do Movimento Sanitário, sugerindo

inclusões no texto constitucional no que se referia ao direito à saúde e

propõe reformulações da legislação ordinária que trata especificamente

da saúde mental, ou seja: código civil; código penal e legislação sanitária;

propõe, ainda, modificações na legislação trabalhista, considerando a

interface trabalho/saúde mental. Dentre as propostas apresentadas

assinalamos:

que se assegurem mecanismos e recursos legais de garantia

do direito individual contra a internação involuntária (por

exemplo: �habeas-corpus�, comunicação automática à

autoridade judiciária competente, criação de tutela provisória

para estes pacientes), visando a possível reversibilidade do

estado de internação no período máximo de 72 horas. (Ibid.,

p.26)

O texto do relatório demonstra uma estreita vinculação

entre o Movimento Sanitário e o Movimento da Reforma Psiquiátrica.

Ambos tomam a saúde como uma questão revolucionária, no eixo da luta

pela transformação da sociedade. Aponta, especificamente, aos

trabalhadores de saúde mental, a necessária revisão de seu papel de

agente de exclusão e de dominação, para reorientá-lo na direção de uma

identidade com os interesses da classe trabalhadora. Estão presentes

nesse documento oficial, não apenas propostas técnicas, mas

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argumentos e proposições que engajam o processo de transformação de

um setor especifico da saúde, a saúde mental, em uma luta que

transcende essa especificidade e a coloca em um estreito vínculo com a

luta pela transformação da sociedade. Reflexo, também, do momento

histórico que se vivia, em plena vigência da Assembléia Nacional

Constituinte. Mas era apenas mais um documento oficial, talvez o primeiro

que colocou a questão da saúde mental nessa perspectiva da luta entre

os interesses de classes.

A Conferência marcou, também, o encontro entre novos

e antigos militantes do MTSM, que realizaram várias reuniões paralelas

para discutir os rumos e estratégias do Movimento. Refletindo a

necessidade de renovação, o documento final desses encontros aponta

para a "necessidade de 'desatrelamento' do aparelho de Estado,

buscando formas independentes de organização e voltando-se, como

estratégia principal, para a intervenção na sociedade" (Amarante, 1998,

p.80). Decidiu-se naqueles dias pela organização de um II Congresso

Nacional do MTSM.

Apesar do retrocesso em alguns espaços institucionais

que ocorreram em algumas experiências, especialmente em São Paulo33,

o movimento ganhou força ao longo do ano e finalizou dezembro de 1987

33 Mais adiante, no Capitulo V em que traremos do CAPS, detalharemos um pouco mais esse período de retrocesso.

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com a realização, em Bauru - SP34, do II Congresso Nacional de

Trabalhadores em Saúde Mental organizado em torno dos seguintes

eixos:

1. Por uma sociedade sem manicômios - significa um rumo

para o movimento discutir a questão da loucura para além do

limite assistencial. Concretiza a criação de uma utopia que

pode demarcar um campo para a crítica das propostas

assistenciais em voga. Coloca-nos diante das questões

teóricas e políticas suscitadas pela loucura.

2. Organização dos trabalhadores de saúde mental - a

relação com o Estado e com a condição de trabalhadores da

rede pública. As questões do corporativismo e

interdisciplinariedade, a questão do contingente não

universitário, as alianças, táticas e estratégias.

3. Análise e reflexão das nossas práticas concretas - uma

instância crítica da discussão e avaliação (A quem servimos e

de que maneiras). A ruptura com o isolamento que caracteriza

essas práticas, contextualizando-as e procurando avançar.

(apud Amarante, 1998, p.80)

34 A escolha de Bauru deveu-se ao fato de estar sob uma administração progressista, à época ao menos, o que facilitava a realização do evento. Destaque-se que havia várias lideranças expressivas à frente da saúde, que lá implantaram o primeiro Núcleo de Atenção Psicossocial (NAPS). Praticamente todas as lideranças foram posteriormente para a cidade de Santos.

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Os eixos do Congresso já demonstravam uma nova

estratégia: o lema �por uma sociedade sem manicômios�, que seria

adotado a partir daí, colocava em destaque a questão da loucura no

âmbito sociocultural. Tratava-se de produzir uma utopia que deveria

nortear e balizar as propostas assistenciais do agora; de resgatar, como

no final dos anos setenta, a discussão com a sociedade da segregação

e da violência institucional; de repensar as práticas e inventar

possibilidades para ampliar o campo de atuação; de criar novas parcerias.

Foi um congresso histórico, marcado por um clima de

entusiasmo e participação, contando com a presença de lideranças

municipais, técnicos, usuários, familiares, estudantes, e que se encerrou

com uma alegre e contagiante passeata com mais de trezentas pessoas,

pelas ruas de Bauru, pedindo a extinção dos manicômios. O Manifesto de

Bauru, aprovado na plenária e distribuído no dia da passeata, marca o

nascimento de um novo movimento: o Movimento Nacional da Luta

Antimanicomial:

Nossa atitude marca uma ruptura. Ao recusarmos o papel de

agentes da exclusão e da violência institucionalizadas, que

desrespeita os mínimos direitos da pessoa humana,

inauguramos um novo compromisso. Temos claro que não

basta racionalizar e modernizar os serviços nos quais

trabalhamos.

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O Estado que gerencia tais serviços é o mesmo que impõe e

sustenta os mecanismos de exploração e de produção social

da loucura e da violência. O compromisso estabelecido pela

luta antimanicomial impõe uma aliança com o movimento

popular e a classe trabalhadora organizada.

O Manicômio é a expressão de uma estrutura, presente nos

diversos mecanismos de opressão deste tipo de sociedade. A

opressão nas fábricas, nas instituições de menores, nos

cárceres, a discriminação contra os negros, homossexuais,

índios, mulheres. Lutar pelos direitos de cidadania dos doentes

mentais significa incorporar-se à luta de todos os trabalhadores

por seus direitos mínimos, à saúde, justiça e melhores

condições de vida. (apud CRP, 1997, p.93)

A partir daquele Congresso, o nascente movimento

organizou-se em vários Estados e caminhou para uma articulação

nacional. Deliberou-se estabelecer o dia 18 de maio como o Dia Nacional

de Luta Antimanicomial35. O Movimento vem mantendo ao longo dos anos

uma singular e importante peculiaridade: a de não existir como uma

instituição. Não há uma sede, telefone, e-mail, ficha de inscrição, rituais

de filiação. É, paradoxalmente, de uma existência abstrata, pois se coloca

no campo da utopia, e concreta, pois se materializa na prática cotidiana

35 Após algumas discussões, uma das primeiras datas sugeridas seria a do dia 13 de maio, data da aprovação da Lei 180 da Itália e da libertação da escravatura. Mas a escolha acabou recaindo no dia 18 de maio, sem nenhum motivo relevante. Mas a mão do destino marcou uma grande coincidência: o dia 18 de maio é também o dia da inauguração do Hospital Psiquiátrico do Juqueri.

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de profissionais, familiares, usuários e tantos outros que se identificam

com a idéia de uma sociedade sem a violência institucionalizada, sem

segregações, sem exclusões, com justiça social e

democratização/socialização dos meios de produção. Está na prática

cotidiana do profissional no serviço de saúde mental identificado com

essa perspectiva; está na aula do professor atento à formação de uma

nova geração; nas reuniões dos sindicatos que se preocupam com a

loucura do trabalho. É um dispositivo social que congrega e articula

pessoas, trabalhos, lugares.

Em 1989, com as eleições municipais, o movimento

ganhou sua experiência de maior repercussão. O PT assumia a prefeitura

da cidade de Santos. Em maio de 1989, a Casa de Saúde Anchieta,

hospital psiquiátrico privado, sofreu uma intervenção da Secretaria

Municipal de Saúde, em função das atrocidades, incluindo-se mortes,

cometidas com os pacientes ali internados. Iniciou-se a partir da

desmontagem do manicômio um processo de transformação exemplar,

com implantação de uma rede de atenção em saúde mental substitutiva,

composta por NAPS (Núcleos de Atenção Psicossocial), por cooperativas,

associações etc.

A transformação da Saúde Mental em Santos tem se

configurado como processo social complexo ancorado na

desconstrução do paradigma psiquiátrico; partindo da

desmontagem manicômio, como síntese da 'instituição a ser

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negada' projeta a construção da Saúde Mental como território

de cidadania, emancipação e reprodução social. (Nicácio,

1994, p.24)

A autora citada apresenta, nesse trabalho, uma análise

detalhada daquele processo de transformação.

No mesmo ano, a prefeitura de São Paulo também iria

desenvolver um processo de mudança na assistência em saúde mental

da capital, mas de natureza distinta. O projeto baseou-se na constituição

de uma rede de serviços com Centros de Convivência, Hospital-dia,

emergências psiquiátrica e leitos psiquiátricos em Hospital Geral. Cada

equipamento visava a dar conta de um determinado nível de

complexidade de atenção à saúde mental, seguindo, em essência, os

mesmos princípios colocados pela psiquiatria preventiva: regionalização,

integração e hierarquização. A implantação desse modelo assistencial

ocorreu de maneira descontínua, em diferentes bairros, de tal maneira

que, em alguns equipamentos, as equipes acabavam por operar uma

prática mais identificada com os princípios do CAPS e da experiência

santista.

A experiência de fato inovadora foi a dos Centros de

Convivências36, pois levava aos equipamentos públicos de lazer da

36 Espaços localizados em áreas de lazer onde eram desenvolvidas atividades de diversos tipos: aulas de Tai-Chi-Chuan, de canto, artesanato etc. Além dos pacientes das diferentes unidades, qualquer pessoa podia participar daquelas atividades.

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cidade, principalmente os parques municipais, a possibilidade da criação

de um espaço de convivência com a diferença: loucos e sãos

desenvolvendo atividades conjuntamente.

No final dos anos oitenta, surgiu um novo ator no

Movimento pela Reforma Psiquiátrica: as associações de usuários e

familiares. Além do Grupo SOSINTRA do Rio de Janeiro (criado em

1979), e do Grupo Loucos Pela Vida do Juqueri, nasceram a Associação

Franco Basaglia- SP, a Associação Franco Rotelli - Santos, o SOS Saúde

Mental, dentre outras. O movimento deixou de ter a participação

majoritária de trabalhadores da saúde e passou a contar com familiares,

usuários e outras pessoas não ligadas diretamente ao campo da saúde

mental. As associações atuaram na construção de novas possibilidades

de atenção e cuidados e na luta pela transformação da assistência em

saúde mental.

Com o processo da reforma psiquiátrica saindo do

âmbito exclusivo dos técnicos e das técnicas, e chegando até a

sociedade civil, surgiram novas estratégias de ação cultural

com a organização de festas e eventos sociais e políticos nas

comunidades, na construção de possibilidades até então

impossíveis. (Amarante, 1998, p.82)

Em 1989, foi aprovado pela Câmara dos Deputados o

Projeto de Lei n.º 3.657, de autoria do deputado Paulo Delgado, que

propunha a extinção progressiva dos hospitais psiquiátricos.

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3.5. Retomando as questões...

Pode-se observar que os anos oitenta foram

extremamente intensos e ricos em eventos. Mantendo as críticas ao asilo

e à violência institucional no contexto da contestação ao regime militar,

fortalecendo o processo de redemocratização, o Movimento da Reforma

Psiquiátrica buscou ampliar as discussões técnicas para uma perspectiva

política e social. No início dos anos oitenta buscou, também, a exemplo

do Movimento Sanitário, conquistar espaços dentro do aparelho estatal no

sentido de introduzir mudanças no sistema de saúde. A eleição para

governadores de 82 alavancou essa estratégia, proporcionando o

ingresso na rede pública de uma nova geração de trabalhadores. O

período da Nova República consolidou esse processo com a incorporação

dos principais princípios e diretrizes do Movimento Sanitário na

Constituição. O Movimento Sanitário institucionalizou-se, confundindo-se

com o Estado. O Movimento da Reforma Psiquiátrica, ressentindo-se

desse fato, principalmente a partir de seu principal ator, o Movimento dos

Trabalhadores da Saúde Mental, produziu uma ruptura em 1987, no

Congresso de Bauru, inaugurando o Movimento da Luta Antimanicomial

e retomando a necessidade de ampliar o campo das discussões e ações

em saúde mental. A partir da eleição para prefeitos, em 89, a cidade de

Santos, na gestão do PT, produziu uma experiência singular que

abrangeu duas características do Movimento da Reforma Psiquiátrica: a

ocupação dos espaços de decisão e de poder do aparelho estatal,

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possibilitando a invenção de um processo de transformação radical da

assistência em saúde mental.

No capítulo I, apresentamos algumas questões, a partir da

análise empreendida por Escorel (1995) sobre o Movimento Sanitário. A

primeira delas referia-se à possibilidade de traçar paralelos entre aquela

análise do Movimento Sanitário e o Movimento da Reforma Psiquiátrica.

Ao analisarmos a evolução do Movimento da Reforma Psiquiátrica,

observamos vários pontos de convergência entre os dois: ambos

nasceram a partir de segmentos específicos, os intelectuais,

especialmente da universidade no Movimento Sanitário, e os intelectuais

e trabalhadores de saúde mental37 no Movimento da Reforma

Psiquiátrica; em um mesmo momento histórico, o da redemocratização do

país; promoveram um processo de luta para a transformação de um

setor que possui um valor universal, a saúde, e nela a saúde mental,

tomando-a como questão nacional, "cuja especificidade a transforma em

palco de luta privilegiado e precursora de uma luta mais global de

transformação da sociedade" (Escorel, 1995, p.184); para isso, superaram

os estreitos limites de seus campos, estabelecendo alianças com outros

segmentos da sociedade.

37 Em nota de rodapé, Escorel alerta que toma o termo �intelectual� em um sentido estreito como pensadores, pesquisadores e estudiosos, conhecidos como pertencentes à academia. Neste sentido, o MRP terá a participação destes e também de profissionais que atuavam nas instituições, que nomeamos aqui como trabalhadores de saúde mental.

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Embora a saúde mental faça parte do processo de saúde

e, portanto, esteja englobada como questão nacional, vale destacar que

o Movimento da Reforma Psiquiátrica estabeleceu lutas próprias, como a

luta contra a violência institucional e a segregação. O Movimento da

Reforma Psiquiátrica levantou bandeiras absolutamente adequadas e

inseridas no contexto histórico, pois eram as mesmas de uma sociedade

que lutava pela transformação.

Desde o final dos anos setenta, essa foi uma marca

permanente do Movimento da Reforma Psiquiátrica, a de posicionar-se

politicamente a favor dos interesses do polo subordinado e de construir

práticas que produzissem, não apenas assistência de qualidade, mas

transformações nas relações sociais. Ampliando o temário de suas

discussões para uma perspectiva social, econômica e política, o

Movimento da Reforma Psiquiátrica colocou, principalmente a partir do

Movimento da Luta Antimanicomial, o campo ideológico como um

importante campo de luta, estabelecendo ligações com outras forças

sociais, buscando cada vez mais uma organicidade com as classes

trabalhadoras. Esse processo foi mais evidente nos anos noventa, que

trataremos a seguir.

Esses elementos nos fazem concluir que o Movimento da

Reforma Psiquiátrica, apresenta características muito evidentes de

constituir-se como um movimento que, nascido de um setor, defendendo

interesses na perspectiva das classes trabalhadoras, começou, nesses

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anos oitenta, que analisamos, a superar seu corporativismo através de

alianças, especialmente ao incorporar setores da própria população

(usuários e familiares), buscando construir um projeto comum.

Assim, parece-nos que estamos caminhando para a

possibilidade de um entendimento do Movimento da Reforma Psiquiátrica

na perspectiva da construção de um processo contra-hegemônico.

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CAPÍTULO IV

OS ANOS NOVENTA - LUTANDO CONTRA O NEO-LIBERALISMO

4.1. O Cenário: os anos noventa - O desafio de avançar no contexto da política neo-liberal

A tua piscina tá cheia de ratos Tuas idéias não correspondem aos fatos

O tempo não para Eu vejo o futuro repetir o passado

Eu vejo um museu de grandes novidades O tempo não para

Cazuza

Depois de afirmar que, se Lula fosse eleito, confiscaria a

poupança de todos os brasileiros, de jurar que mataria a inflação com um

só tiro e de que faria a direita indignada e a esquerda perplexa,

Fernando Collor de Mello assumiu como o primeiro presidente eleito pelo

voto direto desde 1960, anunciando que traria a modernidade econômica

ao país com o livre mercado, fim dos subsídios, redução do papel do

Estado e um amplo processo de privatização.

No dia seguinte ao de sua posse, decretou o maior

choque da história econômica brasileira, ao extinguir o Cruzado Novo,

reintroduzindo o Cruzeiro e confiscando todo saldo acima de cinqüenta mil

cruzeiros (cerca de cinqüenta dólares) depositado em contas bancárias

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em instituições financeiras do país. Na retomada da democracia, Collor

iniciou seu governo com uma brutal intervenção nos direitos civis, recém-

reconquistados, e assim governou através de centenas de medidas

provisórias. Além do confisco, realizou uma desindexação geral entre

preços e salários, com a anulação de todos os instrumentos da política

salarial anterior, mantendo a indexação apenas para o salário mínimo,

estabelecendo que a relação capital-trabalho deveria ser resolvida na livre

negociação; aumentou impostos e tarifas, criou novos tributos, suspendeu

incentivos fiscais, reduziu alíquotas de importação, com o objetivo de abrir

o mercado; iniciou uma reforma administrativa, com o objetivo de demitir

funcionários públicos; e elaborou um plano de privatizações.

Pretendia, com essas medidas, acabar com a inflação,

razão principal das dificuldades que afligiam a economia e a sociedade

provocadas, segundo argumentava ele e sua equipe, principalmente por

uma crise do Estado, causada pelo descontrole das finanças públicas,

pelo intervencionismo estatal, pela incompetência administrativa, pela

burocracia, pelo empreguismo etc. A solução proposta foi o enxugamento

do Estado e um suposto retorno ao mercado, através da implantação de

uma política econômica neo-liberal. E usou um paradoxo desse modelo

econômico, a força da intervenção do Estado na sociedade, e do

autoritarismo das medidas provisórias para impor essa política,

argumentando que a urgência das reformas era incompatível com o

tempo institucional democrático.

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... vive-se sob o império de um plano racional, cujo objetivo

consiste em compatibilizar a vida social e a política à lógica da

eficácia capitalista moderna, embora a aparência seja a de uma

situação dominada pelo fortuito (...) A dramatização

exasperada da questão monetária foi, assim, a via através da

qual o Executivo estabeleceu sua relação direta com as

massas desorganizadas, imobilizou o Congresso, os partidos e

os sindicatos, iniciando uma escalada de extração da vontade

política da sociedade em favor do Estado(...) O modelo

neoliberal assume a força de um imperativo dogmático. A

ameaça da hiperinflação foi o recurso por meio do qual o

Executivo exerceu chantagem sobre a nação, obrigando-a a

perfilhar seu projeto de sociedade. (Vianna, 1991, pp.49-51)

Procurando atender às exigências internacionais de um

mundo globalizado, propondo o neoliberalismo e a economia livre de

mercado, o presidente Collor reeditou o que havia de mais tradicional na

política brasileira, a separação entre o Estado e a sociedade, com a

prevalência do primeiro sobre a segunda. Os direitos sociais da

Constituição eram um entrave para a economia moderna. Assim, investiu

contra os direitos sociais dos trabalhadores. O passaporte para a

economia de primeiro mundo deu-se pela submissão política dos setores

sociais, pela autonomização política do Estado em relação à sociedade.

O futuro com o qual nos acenava o presidente era o nosso passado:

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126

desvalorizando a política e atacando os setores organizados da

sociedade, foi abrindo caminho à sua obra de desconstrução nacional.

Como conseqüência de sua política econômica, o

presidente Collor conseguiu mergulhar o país em um processo recessivo,

com uma queda acentuada da atividade produtiva e com o aumento do

desemprego, sem conseguir controlar a inflação que poucos meses

depois estava de volta.

Usando gravatas Hermés, canetas MontBlanc, desfilando

camisetas com frases de efeito, fazendo declarações de mau gosto e

criando falsas polêmicas, o presidente Collor, que se apresentava como o

grande estadista, o grande líder político da burguesia que levaria o país

ao primeiro mundo, revelou-se apenas uma grande farsa, repleta de

tramas familiares e amores de bastidores, descarado mau uso do

dinheiro público para reformas suntuosas e festas de aniversário38 e

esquemas de favorecimento de país de terceiro mundo. Em maio de

1992, seu irmão denunciou na imprensa o tesoureiro de sua campanha,

P.C. Farias, acusando-o de ser o testa-de-ferro do presidente em um

poderoso esquema de corrupção. Após a denúncia, uma Comissão

Parlamentar de Inquérito (CPI) foi instaurada e revelou-se um gigantesco

esquema de fraude, corrupção, tráfico de influência, propinas, extorsão,

38 Ficou famosa uma reportagem que exibia as suntuosas reformas realizadas em sua casa, conhecida como Casa da Dinda, como também ficou famosa a festa de aniversário que a primeira dama proporcionou a uma amiga, gastando uma fortuna dos recursos da LBA, instituição que a esposa do presidente dirigia.

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envolvendo uma quantidade de dinheiro público até hoje não precisada.

Durante o processo de investigação, iniciou-se o

Movimento pela Ética na Política, envolvendo várias entidades da

sociedade civil como a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Ordem

dos Advogados do Brasil (OAB), a Confederação Nacional dos Bispos

Brasileiros (CNBB) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT). Em 13

de setembro, o presidente pediu à população que saísse às ruas vestindo

as cores verde e amarelo, em seu apoio. No dia esperado, milhões de

pessoas pelo país todo saíram de preto, em um protesto, contra Collor e

a corrupção, articulado por aquele Movimento. As mobilizações de

protesto trouxeram novamente à cena o Movimento Estudantil. Milhares

de estudantes saíram às ruas com os rostos pintados, em passeatas

ruidosas, coloridas e irreverentes, exigindo a derrubada de Collor.

No mesmo mês de setembro, entidades da sociedade

civil39 encaminharam à Câmara o pedido de impeachment do presidente.

Um mês depois, após 84 dias de investigações, a Câmara concluiu que a

conduta de Collor fora incompatível com a dignidade do cargo e autorizou

o Senado a julgá-lo. Acusado de crime de responsabilidade, teve seus

direitos políticos cassados por oito anos. Renunciou ao cargo, tentando

escapar do processo de cassação, mas não conseguiu. Em 29 de

39 Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

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dezembro de 1992, deixava a presidência, assumindo seu vice, Itamar

Franco.

Herdando um cargo que não esperava, Itamar Franco

assumiu com o compromisso de compor um governo com representantes

das forças Pró-Impeachment, e esboçou a aglutinação de um arco político

inédito na redemocratização do país, por incluir, embora com reticências,

o PT e o PDT (pelo menos a parte da bancada que se rebelou contra a

orientação do governador Brizola). Tentou impor uma imagem pública

distinta do seu antecessor, a de um mineiro por adoção, simples, tranqüilo

e equilibrado. Porém, logo revelou ser de temperamento explosivo,

inseguro e hesitante. Realizou inúmeras trocas de ministros40,

especialmente na área econômica, por não concordar com o programa

de privatizações e não conseguir uma efetiva estratégia de combate à

inflação. Crescia a impopularidade do Presidente e o governo, a essa

altura, passava a ser alvo de amplo coro de críticas.

Em vista do profundo desgaste do governo, em maio de

1993, o presidente Itamar deu posse ao senador Fernando Henrique

Cardoso, até então Ministro das Relações Exteriores, como Ministro da

Fazenda, obtendo carta branca para gerir a economia. Iniciou a

implantação de mais um plano econômico de estabilização: o plano Real.

Anunciado em dezembro de 93, e descartando choques e congelamentos,

40 55, no total.

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129

a implantação do plano só aconteceu definitivamente em julho de 1994,

com a criação de uma nova moeda, o Real, e de uma série de medidas

que visavam à estabilidade cambial, à desindexação da economia e ao

controle do déficit público. Iniciou-se um processo de corte nas despesas

públicas que atingiu (quase que exclusivamente) setores essenciais,

como saúde e educação.

A redução drástica da inflação41 alavancou a candidatura

de Fernando Henrique Cardoso à eleição presidencial de 1994, que

venceu já no primeiro turno, em aliança com o Partido da Frente Liberal

(PFL), constituído por políticos ligados ao regime militar, dissidentes do

Partido Democrático Social (PDS). De renomado intelectual de esquerda,

o político FHC revelou-se um partidário de alianças que, em outros

tempos, seriam, muito provavelmente, alvo de suas duras críticas.

Se, em nome do combate à inflação, as autoritárias e

desastrosas medidas adotadas pelo presidente Collor obtiveram, pelo

menos inicialmente, o apoio da população, os êxitos obtidos pelo

presidente Fernando Henrique Cardoso na redução drástica da inflação,

no acesso de parcelas da população a bens de consumo, a preços

estáveis e acessíveis, aliado a sua biografia pregressa, que inspirava

confiança das elites brasileiras, escaldadas por terem apoiado um

41 Para uma inflação mensal média de cerca de 40%, no primeiro semestre de 1994, tivemos uma inflação média mensal de 3%, no segundo semestre, após a adoção do Real como moeda.

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130

aventureiro, garantiram a simpatia e a adesão de amplos setores da

sociedade ao plano de estabilização. Com uma ampla base parlamentar,

sustentada por políticos de longa tradição fisiológica, o presidente utilizou-

se de maneira abusiva das medidas provisórias e pôde ampliar o

processo de privatizações e implementar a política monetarista, baseada

em altas taxas de juros, para atrair capital externo e assim controlar o

valor do Real e as reservas. Para conter o déficit público, reduziu

investimentos nas áreas sociais e propôs diversas mudanças

constitucionais, retirando, reduzindo ou flexibilizando direitos

conquistados nas relações de trabalho, na previdência social, no

funcionalismo público etc.

Em julho de 1997, foi promulgada uma emenda

constitucional, que permitiu ao presidente, governadores e prefeitos a

concorrem ao segundo mandato. No mesmo dia, o PSDB, partido do

presidente, lançava-o candidato à reeleição. A imprensa e vários

analistas políticos colocaram a votação da emenda constitucional sob

suspeita, havendo denúncias de compra de votos.

Em outubro de 1998, Fernando Henrique Cardoso foi

reeleito presidente, novamente em primeiro turno.

Em seu primeiro governo, teve no êxito do Plano Real seu

grande eixo de sustentação. O brilho da redução da inflação a níveis

decentes ofuscou os vários problemas que o governo enfrentou (e ainda

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131

enfrenta): um aprofundamento da crise social, com taxas elevadíssimas

de desemprego; crise em praticamente todas as áreas sociais, tais como

saúde e educação; altas taxas de juros, penalizando o setor produtivo

nacional; escândalos políticos e financeiros. Privilegiando o capital

financeiro, o governo FHC colocou em segundo plano as políticas sociais,

aumentando ainda mais a distância entre a elite que novamente se

beneficiou com a modernidade da política neoliberal e o resto da

população, que continuou habitando o Brasil de terceiro mundo: aquele da

segregação, da violência, da desigualdade social, do analfabetismo, do

abandono.

Propondo ajustar o país às exigências de uma economia

mundial globalizada, o presidente acatou, concedeu e aceitou todas as

exigências de organismos e instituições internacionais. Recontou, enfim,

uma velha história: a globalização parece ser apenas o nome mais

moderno do velho e conhecido imperialismo. O presidente esqueceu a

teoria que o famoso sociólogo Fernando Henrique Cardoso apresentou ao

mundo dos intelectuais: a teoria da dependência.

4.2. Movimento Sanitário: institucionalizando a Reforma Sanitária

Foi no contexto de uma política de redução do Estado,

que afetou drasticamente os investimentos nas áreas sociais, que o

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132

Movimento da Reforma Sanitária ampliou a ocupação dos espaços no

aparelho estatal, privilegiando-o como principal campo de luta.

Como resultado, houve uma profunda mudança

institucional que incorporou os princípios sanitários e consolidou o

Sistema Único de Saúde (SUS). O Movimento Sanitário, a Reforma

Sanitária e SUS confundem-se no interior do Estado.

Em setembro e dezembro de 1990, Collor assinou duas

importantes leis que regulamentavam os princípios e diretrizes

estabelecidos na Constituição Federal, no capítulo da Saúde: a Lei n.º

8.080, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção

recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços

correspondentes; e a Lei n.º 8.142, que dispõe sobre a participação da

comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as

transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da

saúde.

Eram os instrumentos legais para a efetiva implantação

do SUS, que previam, entre outros pontos, a descentralização das ações,

através da municipalização dos equipamentos e dos serviços e o controle

social através dos Conselhos de Saúde (municipais, estaduais e

nacional). Porém, a sua efetiva implantação encontrou grandes

resistências. Como exemplo, podemos apontar que a legislação prevê a

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133

transferência fundo-a-fundo42, mas a normatização do repasse de

recursos, por portaria do Ministério da Saúde, era através da produção

realizada nos serviços, o que provocou uma forte distorção em relação ao

previsto na legislação. O pagamento por produção privilegiou a

quantidade, com um excessivo aumento no número de atendimentos dos

profissionais, em detrimento da qualidade da assistência prestada. Esses

obstáculos foram discutidos na 9ª Conferência Nacional de Saúde (CNS),

realizada em agosto de 1992, conhecida pelo título de um documento

intitulado: a coragem de fazer cumprir a lei.

Realizada no clima das denúncias contra o presidente

Collor, o próprio Ministro da Saúde, à época, Adib Jatene, reconheceu,

no discurso de abertura, que o resgate da qualidade da política de saúde

passava pela superação "da crise ética e política que passa o País".

Apesar da conjuntura adversa em que foi realizada, a 9ª Conferência

contou com um amplo processo de organização (mobilizando centenas de

milhares de pessoas) e assumiu a tarefa de definir formas de viabilizar o

processo de municipalização da saúde, de acordo com a Constituição e a

recém-criada legislação do SUS, e de apontar caminhos para superar a

crise que atingia a saúde.

42 Transferência de recursos financeiros do Ministério da Saúde diretamente para a prefeitura municipal, para a execução das ações de saúde.

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134

Mas foi somente a partir de 1993, com uma nova portaria

ministerial, a chamada Norma Operacional Básica 93 (NOB 93)43, que

houve uma tentativa de consolidação do processo de descentralização,

com a formulação de distintos níveis de gestão para os municípios: gestão

semi-plena, parcial e incipiente. Entre cada uma delas existia uma

graduação em termos das responsabilidades e complexidades de

assistência possíveis de serem assumidos pelo município, o que

corresponderia ao montante de recursos a ser repassado fundo-a-fundo.

Contudo, ainda permaneciam algumas distorções como a remuneração

por procedimentos. Em 1994, foi finalmente publicado um decreto que

permitia a transferência de recursos financeiros fundo-a-fundo. Isso

incentivou vinte municípios a pleitearem e ingressarem no maior estágio

de gestão: a gestão semi-plena.

A partir daquele ano, foram constituídas as Comissões

Intergestores Bipartite, reunindo municípios e governos estaduais, e a

Comissão Intergestores Tripartite, reunindo municípios, governos

estaduais e o governo federal. Essas Comissões são órgãos colegiados

deliberativos sobre as questões referentes à implantação e

implementação do SUS, e fórum de discussão sobre os impasses entre

as partes envolvidas no processo.

43 Conjunto de princípios e regras que buscam organizar e regulamentar a saúde.

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135

A municipalização fortaleceu a constituição, nos

municípios, dos Conselhos Municipais de Saúde, que são os órgãos

colegiados deliberativos das questões referentes à implantação e

implementação das ações de saúde do SUS, no âmbito municipal. Sua

constituição é paritária entre representantes do governo e da sociedade.

O processo de municipalização das ações e

equipamentos de saúde iniciou-se, em algumas cidades, na segunda

metade da década de oitenta, com as Ações Integradas de Saúde (AIS), e

prosseguiu de maneira lenta mas constante, ao longo dos anos; a partir

dos anos noventa, especialmente, a partir de 1994, com a possibilidade

da transferência de recursos fundo-a-fundo, esse processo foi acelerado.

Ao longo do ano de 1996, a municipalização passou por

uma profunda reavaliação. Naquele ano, foram discutidas várias versões

de uma nova regulamentação, que foi denominada Norma Operacional

Básica 96 (NOB 96).

Entre as várias reuniões para sua elaboração, aconteceu

a 10ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em setembro de 1996, e

que contou com a participação de mais de quatro mil pessoas, entre

delegados em pré-conferências estaduais, convidados e observadores. A

Conferência foi realizada em um momento de grave restrição

orçamentária na saúde, conseqüência da política econômica do governo

FHC, e marcada pela necessidade de avaliação do sistema implantado e

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136

pela busca no aprimoramento de seus mecanismos, em especial no que

se referia ao financiamento.

Avaliações feitas em diversos documentos que serviram

de subsídios para as discussões da Conferência apontavam para um

avanço na implantação do SUS, observado nos seguintes fatos: o

processo de descentralização atingia 2.965 municípios habilitados, de um

total de 4.974; a possibilidade da mudança do modelo assistencial, com a

implantação de diversas experiências, especialmente, as do Programa de

Agentes Comunitários de Saúde e do Programa de Saúde da Família44,

em diversos municípios; o aumento da participação popular,

principalmente através dos Conselhos Municipais de Saúde e das

Conferências Municipais de Saúde, que começavam a se tornar uma

rotina.

Por outro lado, algumas análises também revelavam uma

grande preocupação com a deturpação da imagem pública do SUS,

como mostra Nelson Rodrigues dos Santos, coordenador da Comissão

Organizadora da 10ª Conferência Nacional de Saúde:

por distorções, incompreensões e desinformações induzidas

não só pelas suas próprias insuficiências, como também

pelas pesadas heranças anti-sociais com seus interesses

ameaçados pela implantação do SUS, que vão desde

44 Ambos os programas buscam reverter o modelo assistencial hegemônico centrado na medicina curativa e hospitalar, enfatizando as ações preventivas.

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setores mercantilizados do modelo anterior de saúde, até

setores ligados ao planejamento econômico e social que

abandonaram a doutrina da solidariedade social e do

desenvolvimento da ciência e tecnologia. (apud Nascimento,

s/d)

A má reputação da imagem pública do SUS é,

atualmente, bastante disseminada, na medida em que apenas uma

pequena parcela da população, residente nos municípios em que o SUS

foi implantado com seriedade e competência, pode sentir a melhoria da

qualidade do atendimento. E ainda nesses, com a alternância do poder

municipal, sofrem, por vezes, o duro golpe da reversão de prioridades,

causando graves retrocessos45. No mais, a grande maioria da população

ainda está longe de sentir qualquer alteração na qualidade de

atendimento proposta pelo SUS, convivendo com uma ambígua situação

em que, de um lado, a Constituição de 88 garante o direito à saúde, com

acesso universal, igualitário e com eqüidade e, de outro, uma máquina

antiga operando com arremedos de modernidade, preservando um

modelo de baixa eficácia (Merhy & Bueno, 1999).

45 A cidade de São Paulo é um exemplo. Com a mudança de administração, em 1993, a prefeitura, liderada por Paulo Maluf, optou por abandonar o Sistema Único de Saúde e implantar um modelo próprio baseado na privatização na gestão da saúde, desconsiderando todo o processo histórico do SUS, desrespeitando posicionamento contrário do Conselho Municipal de Saúde, desrespeitado a Constituição e a Lei Orgânica da Saúde.

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Destacamos alguns trechos da Carta da 10ª Conferência

Nacional de Saúde, anexada ao relatório final:

A despeito dos avanços institucionais e democráticos, as

condições sanitárias e as instituições de saúde continuam em

grave crise no Brasil. No centro deste processo do setor saúde,

encontramos a política econômica de cunho neoliberal

implementada pelo governo federal e parte dos governos

estaduais. Imposta por países e organismos internacionais e

pela elite financeira nacional, desenvolve-se esta nefasta

política que produz: dependência e endividamento interno e

externo, empobrecimento, desemprego, quebra de direitos

trabalhistas, exclusão social, violência, doença e morte. Sob o

discurso da �modernização� estabelece-se, de fato, o �Estado

Mínimo� para as políticas sociais, e o �Estado Máximo� para o

grande capital financeiro nacional e internacional (...)

(...) O SUS representa o exemplo mais importante de

democratização do Estado, em nosso país. Reafirmamos o

SUS como garantia, a toda a população, do acesso às ações

de prevenção, promoção, assistência e reabilitação da saúde.

O texto constitucional de 1988 consagra a saúde como produto

social, portanto, resultante de um conjunto de direitos que

envolvem o emprego, o salário, a habitação, o saneamento, a

educação, o transporte, o lazer, etc. Torna-se necessária uma

nova cultura de intervenções, com fortalecimento de ações

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intersetoriais, com participação da sociedade, parcerias e

solidariedade, que dependem, também, de soluções urgentes a

favor da redistribuição de renda, de políticas urbanas

adequadas, de geração de emprego e reforma agrária

imediata.

A construção de um novo modelo de atenção à saúde passa,

necessariamente, pela maior autonomia dos municípios, das

regiões e pela reafirmação da participação popular e o controle

social com conselhos paritários, tripartites e deliberativos para

que o SUS, cada vez mais, dê certo. (apud Nascimento, s/d)

Com esse texto, os participantes posicionaram-se, de

maneira firme, contrários à política econômica e reafirmaram os princípios

e diretrizes estabelecidos pelo Movimento Sanitário, desde os anos

setenta, tais como: o SUS como instrumento de democratização; a

compreensão da saúde como resultante de fatores sociais; autonomia

dos municípios e a participação popular. Mantiveram-se os princípios,

defendiam-se os interesses da saúde na perspectiva da construção de

valores ideológicos comprometidos com as classes subalternas. Mas o

contexto político era outro: os atores do Movimento Sanitário estavam

ocupando praticamente todos os espaços mais importantes no interior do

aparelho estatal; tinham o poder institucional e legal para provocar as

transformações do sistema de saúde, e assim o fizeram com as normas,

regras, portarias e decretos.

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140

E, no entanto, a assistência estava, e ainda está, distante

de sentir os efeitos dessas transformações: o modelo continua centrado

na produção de procedimentos médicos curativos; a condição de saúde

da população pouco melhora, ao contrário, algumas doenças já

controladas ressurgem, como o cólera, a malária, a dengue, a

tuberculose; e o processo de sucateamento dos equipamentos da rede

pública se intensifica.

Na construção de um bloco hegemônico alternativo, os

atores do Movimento Sanitário privilegiaram o aparelho do Estado como

palco de luta, abrindo um franco confronto com as chamadas áreas

técnicas da economia. Praticamente todos os documentos oficiais dos

anos noventa tinham, como um dos temas, a urgente necessidade de

regulamentação do financiamento da área da saúde. Havia uma disputa

ideológica entre setores do governo, que comandavam a área

econômica, defensores do Estado Mínimo, e o Movimento Sanitário

instalado dentro do mesmo aparelho que, a todo custo, tentava, e ainda

tenta, manter os princípios da descentralização, da universalidade e da

eqüidade, dentro de uma conjuntura econômica de investimento

extremamente desfavorável, que asfixiava a capacidade de atendimento,

gerando uma profunda crise na qualidade da atenção e desmoralizando o

SUS. Sintoma desse conflito foi a saída do Ministro da Saúde Adib

Jatene, considerado como um dos ministros notáveis, que, após propor a

criação de um novo imposto para saúde, e ser duramente criticado, viu o

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141

imposto denominado Contribuição Provisória sobre Movimentação

Financeira (CPMF) transformar-se pelas mãos dos magos da economia,

de um mecanismo para aumentar os recursos da saúde em a única fonte

destes e posteriormente sequer isso.

Ao privilegiar uma luta técnico-política e o aparelho de

Estado como palco, o Movimento Sanitário distanciou-se de um trabalho

junto às classes subalternas. Trabalhando em defesa daqueles

interesses, mas no interior do aparelho, encontrou dificuldades em

estabelecer alianças, em ampliar sua base de apoio social, em colocar-se

como "intelectual orgânico do proletariado para produzir

permanentemente uma fratura ideológica na massa dos intelectuais

setoriais" (Escorel, 1995, p.191). Na guerra de posições, o Movimento

Sanitário talvez tenha que voltar a se aproximar das concretas questões

cotidianas, para delas alimentar-se, sob o risco de transformar a Reforma

Sanitária em apenas um conjunto de normas e regras que pouco modifica

a realidade assistencial da população.

4.3. Institucionalizar a Reforma Psiquiátrica e desinstitucionalizar o Movimento

O Movimento da Reforma Psiquiátrica seguiu, nos anos

noventa, basicamente dois caminhos: acompanhou os passos do

Movimento Sanitário e também se instalou na máquina estatal, ocupando

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praticamente todos os espaços disponíveis; e, por outro, através,

principalmente do Movimento da Luta Antimanicomial (MLA), fortaleceu e

ampliou alianças com segmentos da sociedade civil, especialmente com

as associações de usuários e familiares.

4.3.1. A institucionalização da Reforma Psiquiátrica

Em novembro de 1990, a Organização Pan-americana de

Saúde (OPAS) e a Organização Mundial de Saúde (OMS) realizaram em

Caracas, na Venezuela, a Conferência Regional para a Reestruturação da

Atenção Psiquiátrica, com a participação de diversas entidades, juristas,

parlamentares e delegações técnicas de diversos países. Desse encontro

resultou a Declaração de Caracas, cujo texto foi recorrentemente utilizado

nos vários encontros de Saúde Mental que foram realizados nos anos

noventa. O conteúdo repete, ainda que de forma mais vaga, os mesmos

princípios e diretrizes de outros documentos internacionais anteriores.

Em 1990, a Secretaria de Estado da Saúde, dentro de

uma série de cadernos sobre temas da saúde, publica um caderno

específico para saúde mental46, que trata, basicamente, de parâmetros e

metas referenciais para a organização de serviços e foi utilizado por

46 Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo - CADAIS - Saúde Mental - Planejamento e Organização de Serviços - Subsídios para o Planejamento Municipal e Regional.

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muitos municípios paulistas. Este foi um dos poucos trabalhos realizados

por aquela secretaria no período posterior a 86, que na gestão Quércia

optou por priorizar investimentos em áreas de visibilidade política, tais

como estradas e edificações, do que nas áreas sociais; e na gestão

Fleury47, sua prioridade foi manter o mínimo investimento para não

comprometer as abaladas finanças estaduais, exauridas pelos excessos

de seu antecessor. No próximo capítulo detalharemos mais o processo de

desinvestimento que se abateu sobre o Estado de São Paulo nos

governos Quércia e Fleury. De qualquer modo, a incipiente política de

saúde daquelas gestões incorporou em seu discurso alguns dos

princípios da Reforma Psiquiátrica.

No contexto da municipalização, a que nos referimos

anteriormente, em que a transferência de recursos financeiros era

efetuada através da remuneração por procedimentos, a saúde mental

contava apenas com a internação e as consultas ambulatoriais como

procedimentos cadastrados. Serviços altamente complexos e modelos de

propostas assistenciais, como o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS)

e os Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) não existiam para o SUS48.

Em novembro de 1991, a Secretaria Nacional de Assistência à Saúde do

Ministério da Saúde publicou a Portaria n.º 189/91, que modificou a

47 Talvez o evento de maior visibilidade do Governo Fleury tenha sido a chacina de 111 presos no presídio do Carandiru. 48 O CAPS não existe sequer para a Secretaria de Estado da Saúde. Oficialmente seu nome é Unidade Básica de Saúde - Itapeva.

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144

sistemática de remuneração das internações hospitalares, procurando

reduzir o tempo de internação49, e criou diversos procedimentos,

buscando contemplar as diferentes experiências assistenciais que

estavam sendo realizadas: NAPS/CAPS, oficinas terapêuticas, visitas

domiciliares, dentre outras. Logo a seguir, em janeiro de 1992, foi

publicada a Portaria n.º 224/92, que estabeleceu diretrizes e normas para

a assistência em saúde mental e que ainda está em vigência.

As diretrizes reafirmam os princípios do SUS da

universalidade, integralidade e regionalização e propõe: a diversidade de

métodos e técnicas; a multiprofissionalidade na prestação dos serviços; a

participação social na formulação, execução e controle das políticas de

saúde mental; e a definição dos órgãos gestores locais como

responsáveis pelo controle e avaliação dos serviços. Caracteriza a

assistência e estabelece parâmetros para o atendimento em ambulatórios

de saúde mental, define, caracteriza e estabelece normas para o

atendimento em NAPS/CAPS, e Hospital-dia. Normatiza ainda, a

assistência nos hospitais psiquiátricos, estabelecendo alguns parâmetros

assistenciais mínimos, tais como, atividades a serem desenvolvidas e o

número de profissionais por pacientes.

Essas portarias incentivaram a criação de diversas

49 A portaria estabeleceu um número máximo de diárias a serem pagas por cada Autorização de Internação Hospitalar (AIH), abrindo a possibilidade de um controle maior por parte do gestor estadual ou municipal.

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145

unidades assistenciais espalhadas pelo país, muitas com o nome de

NAPS ou de CAPS, que acabaram por se transformar em sinônimos de

unidades assistenciais de vanguarda. O que nos faz pensar em duas

questões importantes: a primeira e óbvia é a de que o nome da instituição

não significa automaticamente uma adesão, tanto dos trabalhadores

quanto dos gestores, aos princípios, diretrizes e aos novos paradigmas

que aquelas experiências pioneiras colocavam, nem é a garantia de um

serviço de qualidade e de substituição aos manicômios, aliás muito pelo

contrário. A prática assistencial das instituições pode ser tão excludente e

violenta quanto o pior dos manicômios50. A segunda questão refere-se ao

fato de que muitos municípios encontraram, nos procedimentos de saúde

mental, uma oportunidade para aumentarem os recursos financeiros

repassados à saúde, devido ao seu elevado valor, comparativamente aos

outros da tabela de remuneração do SUS51. Ou seja, estavam mais

preocupados com as finanças municipais do que em implantar um modelo

de assistência em saúde mental.

Nos dois anos subseqüentes, o Ministério da Saúde

publicou novas portarias, dentre elas algumas que estabeleciam

diferenças entre hospitais psiquiátricos com diferentes remunerações da

Autorização para Internação Hospitalar (AIH). Isso obrigou os hospitais a

50 Retomaremos essa questão mais adiante, no capítulo referente ao CAPS. 51 Praticamente todas as ações em saúde (consultas médicas, de psicologia, curativos, cirurgias etc.) são remuneradas pelo SUS. Existe uma tabela que discrimina e define cada ação, estipulando um determinado valor que é pago pelo SUS ao gestor que executou a ação.

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se adequarem às exigências contidas nas portarias. Esse processo

possibilitou aos Estados e municípios exercerem uma maior fiscalização,

controle e uma intervenção naqueles hospitais psiquiátricos privados ou

filantrópicos (muitos pilantrópicos) prestadores de serviço ao SUS, que

não apresentassem condições mínimas de funcionamento. No Estado de

São Paulo, todos os hospitais psiquiátricos foram submetidos a uma

supervisão de avaliação, que resultou no fechamento de alguns deles,

com uma redução de mais de dois mil leitos psiquiátricos52.

Em dezembro de 1992, foi realizada a 2ª Conferência

Nacional de Saúde Mental (CNSM). Precedida de etapas municipais,

regionais e estaduais, que contaram com o envolvimento direto de cerca

de vinte mil pessoas, a etapa nacional contou com a participação de

quinhentos delegados eleitos nas conferências estaduais, com

composição paritária dos dois segmentos: usuários e sociedade civil,

governo e prestadores de serviço. Contou ainda com a presença de 320

observadores credenciados, 150 participantes na condição de ouvintes,

cem convidados (sendo 15 estrangeiros), totalizando mais de mil

pessoas53 de diferentes partes do país. Eram trabalhadores, gestores

estaduais e municipais, políticos, representantes dos hospitais

psiquiátricos, representantes de entidades de saúde, associações de

52 Essa redução não ocasionou nenhum problema assistencial. O Estado de São Paulo possui um excedente de leitos psiquiátricos. Vide quadro 3 do anexo. 53 Dados constantes na apresentação do relatório da Conferência.

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147

usuários e familiares de pacientes, entidades de auto-ajuda,

representantes de universidades, que discutiram ativamente os temas

propostos. A participação efetiva de usuários, em todos os fóruns,

foi responsável pelo surgimento de uma nova dinâmica de

organização do trabalho, onde os depoimentos pessoais, as

intervenções culturais e a defesa dos direitos transformaram as

relações e as trocas entre todos os participantes.

(BRASIL/MS, 1994, p.8)

Diversos pontos do relatório, aprovados na plenária final,

tiveram a defesa emocionada e firme dos usuários.

Em sintonia com o momento do país54, a 2ª CNSM

discutiu três grandes temas: crise, democracia e reforma psiquiátrica;

modelos de atenção em saúde mental; e direitos e cidadania. O relatório

final subdivide-se em três partes: marcos conceituais; atenção à saúde

mental e municipalização; e direitos e legislação.

Em sua primeira parte, o relatório aponta a atenção

integral e cidadania como conceitos direcionadores das deliberações da

Conferência.

A atenção integral deverá propor um conjunto de

dispositivos sanitários e socioculturais que partam de uma

visão integrada das várias dimensões humanas da vida do

54 Todas as etapas da conferência foram realizadas durante o processo de impeachment do Pres. Collor.

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148

indivíduo, em diferentes e múltiplos âmbitos de intervenção

(educativo, assistencial e de reabilitação). (Ibid., p.13)

Reafirma os princípios da universalidade, integralidade,

eqüidade, descentralização, participação popular e municipalização,

propondo a substituição do modelo hospitalocêntrico por uma rede de

serviços, diversificada e qualificada, e a intensificação da desospitalização

através dos programas públicos de lares e pensões protegidas. Propõe,

também, a articulação com os recursos existentes na comunidade e a

necessária transformação das relações cotidianas entre

trabalhadores de saúde mental, usuários, famílias, comunidade

e serviços, em busca da desinstitucionalização, bem como da

humanização das relações no campo da saúde mental. (Ibid.,

p.16)

Chama a atenção para uma necessária construção

coletiva de práticas e saberes cotidianos, que considere: o trabalho em

equipe, outros campos de conhecimento e os saberes populares. Por fim,

destaca a relação entre cidadania, Estado e Sociedade, propondo

estimular a organização dos cidadãos em associações comunitárias,

alterações na legislação e ações no campo da informação e educação.

Em sua segunda parte, o relatório apresenta inúmeras

propostas relativas à atenção à saúde mental e municipalização. No

capítulo sobre as recomendações gerais, destacamos que o mesmo:

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reafirmava o principio da municipalização, acrescentando a proposta de

utilização dos conceitos de território e responsabilidade55 como

dispositivos para uma ruptura com o modelo hospitalocêntrico; propõe

criar a Comissão Nacional de Reforma Psiquiátrica e fazer constar, no

calendário oficial, o dia 18 de maio como o dia nacional de luta por uma

sociedade sem manicômios. No capítulo sobre financiamento, apresenta

propostas: que asseguram no orçamento o financiamento da saúde; a

extinção de pagamentos da internação hospitalar através das AIHs; e a

criação de instrumentos para o redirecionamento dos recursos da área

hospitalar para a rede extra-hospitalar. No capítulo sobre gerenciamento,

reafirma princípios do SUS e propõe diversas ações para garantir a

transparência no gerenciamento dos serviços público e o acesso da

população a estes. No capítulo sobre vigilância, propõe, basicamente uma

parceria mais próxima com a vigilância sanitária e epidemiológica,

incluindo a saúde mental como uma área das ações daquelas. Finaliza

essa segunda parte com propostas para a capacitação dos trabalhadores

de saúde, sobre as relações no trabalho em termos de organização e

conquista de direitos, e sobre a promoção de pesquisas voltadas para a

investigação epidemiológica e sócio-antropológicas e para a avaliação da

rede de atenção em saúde mental.

A terceira parte do relatório apresenta propostas

referentes ao tema Direitos e Legislação. São cinco capítulos

55 Conceitos utilizados no programa de saúde mental de Santos.

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abrangendo os seguintes temas: questões gerais sobre uma necessária

revisão legal; direitos civis e cidadania; direitos trabalhistas; drogas e

legislação; direitos dos usuários. Talvez tenha sido a parte do relatório na

qual os usuários participaram de forma mais ativa, especialmente na

plenária final. São mais de cem propostas aprovadas, que compõem um

amplo leque, cuja tônica central é a revisão da legislação brasileira, que

apresenta dispositivos legais conflitantes com as novas práticas de

atenção em saúde mental e da cidadania dos usuários, e a criação de

dispositivos que garantam os direitos de cidadania e de acesso aos

serviços de saúde.

Realizada em circunstâncias históricas distintas da 1ª

CNSM, cujo relatório apresentava diversas proposições de caráter

político, o texto da 2ª CNSM não foi tão contundente na crítica ao modelo

econômico nem ao momento político que se estava vivendo. Embora

aquelas questões estivessem como pano de fundo, o relatório era muito

mais extenso e específico nas questões da saúde mental, chegando ao

requinte de detalhamentos técnicos, como propostas de extinção dos

pagamentos das internações através das AIHs. A 2ª CNSM foi realizada

em um momento em que diversas experiências já estavam consolidadas e

espalhando-se pelo país56; já existia uma lei, aprovada na Câmara dos

Deputados e tramitando no Senado, e leis estaduais aprovadas ou em

56 O CAPS Luiz Cerqueira já é uma realidade consolidada e o Programa de Saúde Mental de Santos já é reconhecido internacionalmente como experiência modelar, inclusive pela Organização Pan-americana de Saúde (OPAS).

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tramitação; já existiam dispositivos institucionais (portarias ministeriais)

que possibilitavam a implantação de novos serviços e aumentavam a

fiscalização dos hospitais; já existiam diversas associações de usuários

atuando ativamente pelo país. Ou seja, estava em curso um processo de

transformação da saúde mental no campo assistencial, no campo jurídico,

no campo institucional e no campo cultural.

Muitas das propostas apresentadas se concretizaram,

como, por exemplo, a criação de leis estaduais e municipais57 que

incorporaram as propostas apresentadas no relatório e a criação da

Comissão Nacional de Reforma Psiquiátrica58. Nesse sentido, o relatório

da 2ª CNSM apontou para a consolidação das conquistas e para onde

avançar.

A 2ª CNSM, consolidou também a conquista dos espaços

institucionais. A posição oficial do aparato estatal estava alicerçada pelas

diretrizes propostas e pelos conceitos do Movimento da Reforma

Psiquiátrica. Utilizando-se da mesma estratégia do Movimento Sanitário, a

Reforma Psiquiátrica institucionalizou-se enquanto política oficial (se é

que, pelo menos desde os anos setenta, em algum momento deixou de

sê-lo ao menos no discurso). Na guerra de posições no interior da

57 Já contam com leis aprovadas o Distrito Federal e os Estados do Rio Grande do Sul, do Paraná, de Minas Gerais, de Pernambuco, do Ceará e as cidades de Ribeirão Preto/SP, do Rio Grande /RS e Belém/PA. Estados que têm Projetos de Lei em tramitação: Santa Catarina, Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás, Bahia, Rio Grande do Norte, Paraíba, Sergipe e a cidade de Salvador/BA . 58 Criada em dezembro de 1993.

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construção de um processo de hegemonia, o Movimento da Reforma

Psiquiátrica conquistou territórios no interior do aparelho estatal.

E, por outro lado, não se afastou de suas raízes, suas

origens. Na mesma 2ª CNSM, a presença de centenas de delegados,

usuários e familiares indicava para as novas alianças que o Movimento da

Reforma Psiquiátrica estabeleceu e fortaleceu: as associações e

organizações sociais.

4.3.2. De volta às origens...

Enquanto os encontros institucionais oficiais se tornavam

mais raros, ou em número bem menor do que em outros períodos,

marcando um certo refluxo da capacidade de organização dos setores do

Movimento da Reforma Psiquiátrica instalados no aparelho estatal, os

setores do movimento mais identificados com o Movimento da Luta

Antimanicomial (MLA) retomavam a sociedade civil e o plano cultural

como palco de lutas e conquistas. Privilegiando a articulação e a

ampliação das alianças com outros segmentos da sociedade, estenderam

o movimento para além do campo da saúde mental, incorporando

definitivamente novos atores, buscando conquistar o apoio e a

apropriação da sociedade a essa luta. Os anos noventa foram férteis em

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encontros e eventos com a participação ativa das associações de

usuários e familiares, além de outros setores da sociedade.

Em setembro de 1993, foi realizado, em Salvador, o I

Encontro Nacional da Luta Antimanicomial. Os trabalhos desenvolveram-

se em torno de um tema comum, O Movimento Antimanicomial, Enquanto

um Movimento Social, e dos seguintes temas específicos:

• A tragédia nacional e a produção do sofrimento

• A invenção da assistência: Impasses e possibilidades na

construção das práticas antimanicomiais

• Luta antimanicomial e intervenção cultural: a cultura como

alvo e a cultura como meio.

• Legislação Psiquiátrica: a (re)construção dos direitos pela

via legal.

• A luta antimanicomial e as instituições: Autonomia,

contradições, parcerias e ambigüidades. (CRP, 1997, p.65)

O relatório59 do tema comum caracteriza o MLA como um

movimento social, plural, independente, autônomo, que deve

manter parcerias com outros movimentos sociais. (...) Como

movimento social e político ele nos aponta para alianças

59 O relatório final do Encontro compõe-se do relatório do tema comum deliberado na plenária final, dos relatórios dos temas específicos debatidos em grupos, de anexos dos encontros estaduais sobre os temas, moções aprovadas na plenária e de textos temáticos de outras entidades. Citaremos apenas os relatórios deliberados naquele Encontro Nacional.

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possíveis, e para uma ética que deve regê-lo, que tem uma

identidade clara com a luta contra todas as formas de

opressão. (Ibid.)

Aponta, também, para um avanço do movimento de uma

posição corporativa, dos Trabalhadores de Saúde Mental, para um

movimento social mais amplo, "saindo de um caráter meramente teórico e

técnico, para uma intervenção política na sociedade" (Ibid.).

O MLA retomava uma característica do Movimento da

Reforma Psiquiátrica presente no final dos anos setenta, quando suas

intervenções privilegiavam a cena social como campo de exposição. A

questão que se colocava naquele período era sair dos muros do asilo,

incorporar as bandeiras de luta e ampliar as alianças com os setores

progressistas em organização da sociedade, sensibilizando-os para as

questões da violência institucional e da segregação, como temas de

discussão e debates no contexto daquele momento histórico. No capítulo

II, referimo-nos particularmente ao filme Em nome da Razão, como

exemplo de uma intervenção que provocou múltiplos efeitos no campo

cultural.

De todo modo, o MLA ampliou os limites de atuação das

intervenções do interior das instituições para o campo social. Extrapolou,

não apenas os muros do asilo, mas dos novos serviços, criando

dispositivos de articulação e parceria com outras instituições e outros

atores sociais. O II Congresso de Trabalhadores de Saúde Mental, de

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Bauru, encerrou-se, em um chuvoso domingo, com uma passeata pelas

ruas da cidade. Desde então, o dia 18 de maio, Dia Nacional da Luta

Antimanicomial, é comemorado em diversos pontos do país, com eventos

que ocupam as praças e as ruas. Tradicionalmente são realizadas

atividades de caráter cultural: exposições de arte, música, dança, teatro,

filmes, debates etc. Geralmente o tom é de uma grande festa. É a loucura

ocupando os espaços públicos, mostrando sua face, convidando à

possibilidade da convivência com a diferença, reivindicando seu direito de

circular e o seu lugar, não da exclusão, mas o da inclusão. A produção

desses eventos requer um longo trabalho de articulação com outros

segmentos e setores sociais, como, por exemplo, Secretarias de Cultura,

artesãos, imprensa, escolas etc. Dessa maneira, várias pessoas,

entidades e instituições acabam se envolvendo com o evento,

sensibilizando-se com a luta e transformando-se em parceiros.

O relatório dos temas específicos do I Encontro Nacional

da Luta Antimanicomial reflete a tendência e o pensamento do MLA, nos

seguintes aspectos: o tema 01 conclui que a situação social, política e

econômica do país é produtora de sofrimento, incluso o psíquico, e

aponta para a necessidade de inserir a questão da saúde mental em

todos os Movimentos Sociais; o tema 02 apresenta uma reflexão sobre o

fazer clínico, que "deve ser pensado como ato político" (CRP, 1997, p.68),

e salienta que a invenção da assistência em saúde mental passa pela

construção de práticas que propiciem a atenção integral à saúde num

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processo coletivo que contemple a cultura, a interdisciplinaridade, os

movimentos populares, sindicais, comunitários e legislativos; o tema 03

reafirma o MLA como um movimento de toda a sociedade e propõe ações

que possam romper com a cultura manicomial. Dentre elas, sugere

articular vários segmentos culturais na promoção de atividades

expressivas usando-se a rua com o objetivo de criar mecanismos de

troca para comprometer e envolver a sociedade; o tema 04 aponta a via

legal como um dos instrumentos de luta a serem utilizados, reafirma a

necessidade de uma revisão na legislação psiquiátrica; o tema 05 analisa

o Estado Brasileiro como historicamente marcado pelo

autoritarismo, paternalismo, populismo e clientelismo, que

responde aos interesses da classe dominante, sendo aliados

naturais. Assim as políticas públicas vigentes se colocam no

contexto do neoliberalismo latino americano, cujo objetivo é a

ampliação das relações de mercado para reprodução do

capital, em detrimento de políticas sociais e estatizadas. (CRP,

1997, p.79)

Nessa perspectiva, o MLA criticava a política ministerial

e procurava colocar-se em uma posição de independência em relação ao

aparelho estatal, sendo cuidadoso quanto à participação na política oficial

de saúde mental.

Por outro lado, o Ministério reconheceu no MLA um

importante interlocutor. A composição da Comissão Nacional de Reforma

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Sanitária do Conselho Nacional de Saúde contempla um representante

do MLA como um segmento da sociedade, assim como representantes

dos usuários, dos hospitais etc., seguindo a mesma distribuição paritária

entre segmentos da sociedade e do governo das demais Comissões da

Saúde. De qualquer forma, essa é uma questão permanente para o

movimento, que procura manter uma característica predominantemente

de Movimento Social, ainda que muitos de seus importantes atores

tenham sido gestores de políticas municipais de saúde. Isto marca uma

importante diferença em relação a outros segmentos do Movimento da

Reforma Psiquiátrica, que aderiram ou se instalaram no aparelho de

Estado, afastando-se do cotidiano da assistência.

Em dezembro de 1993, foi realizado, na cidade de

Santos, o III Encontro Nacional de Entidades de Usuários, Familiares da

Luta Antimanicomial60, que contou com a participação de 388 pessoas,

sendo 234 usuários, 29 familiares e 125 técnicos, com representação de

nove Estados: Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais, Pernambuco, Distrito

Federal, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Santa Catarina e São Paulo.

Como resultado das discussões, foi produzida a Carta de Direitos dos

Usuários e Familiares de Serviços de Saúde Mental

A carta subdivide-se em cinco itens:

60 O I Encontro Nacional foi realizado em São Paulo, em 1991. O II Encontro realizou-se, em 1992, na cidade do Rio de Janeiro.

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I - direitos gerais na sociedade; afirma princípios de garantia do

direito à vida plena, à assistência, à saúde mental, à livre

expressão e firma posição contra a discriminação e a

exploração do usuário.

II - características gerais dos serviços de saúde mental de

serviços complementares; aponta para o entendimento da

assistência em saúde mental abrangendo outros serviços

(jurídico, reabilitação, educação, garantia de trabalho, etc.) e

apresenta características dos serviços que, resumidamente,

devem: ser abertos, próximo à residência do usuário, ser

gratuitos e preferencialmente públicos, dispor de assistência

jurídica ao usuário, possibilitar o acesso gratuito ao transporte e

a medicação, permitir e incentivar a organização dos usuários.

III - características dos tratamentos em saúde mental; define,

especialmente, o que deve ser proibido como formas de tortura

e violência, pretensamente terapêuticas: camisa-de-força,

psicocirurgia, insulinoterapia61, esterilização involuntária, cela

forte, ECT62, amarrar, superdosagem de medicamentos.

Propõe a comunicação ao Ministério Público, em 48 horas, em

qualquer internação, clareza na informação ao usuário sobre o

serviço e o tratamento, e orientação quanto o suporte aos

61 Técnica que consiste em induzir um coma hipoglicêmico, através da aplicação de uma injeção de insulina. 62 Eletroconvulsoterapia, o conhecido eletrochoque. Trata-se de um tratamento que consiste em aplicar choques elétricos, na região das têmporas, para a indução de um estado de convulsão no paciente.

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familiares e mecanismos de participação nas decisões e

fiscalização dos serviços.

IV - direitos dos usuários de serviços de saúde mental; propõe

basicamente o direito do usuário: ao acesso as informações

contidas no prontuário, aos meios de comunicação, ao sigilo e

inviolabilidade de correspondência, à privacidade e

individualidade, a participar das decisões nos serviços e

conselhos, a representação legal. Destaque-se que a maior

parte dos direitos propostos hoje constam de diversos

documentos oficiais63.

V - reivindicações e temas de lutas e moções; apresenta

várias propostas de encaminhamento, moções, sugestões de

diversos sentidos tais como: encaminhar ao poder Legislativo e

Judiciário proposta para considerar a aplicação do ECT crime

inafiançável; promoção de orientações a policiais, Corpo de

Bombeiros e outros técnicos em relação aos cuidados

especiais e direitos do portador de transtorno mental em crise;

denunciar municípios que não cumprirem a legislação do SUS;

revisão das políticas sobre os manicômios judiciários e o

desenvolvimento de programas alternativos entre várias outras.

(CRP, 1997, pp.136-138)

63 Manual do usuário dos serviços de saúde da Secretaria de Estado da Saúde, de 1995; Código de Defesa do Consumidor; e recentemente uma lei estadual, lei n.º 10.241 de 17/03/99, que trata dos direitos do usuários dos serviços de saúde.

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De maneira geral, o texto da Carta de Direitos não traz

novidades em relação aos outros relatórios apresentados. É contundente

em relação a práticas terapêuticas de caráter duvidoso, tais como o ECT,

e na defesa dos direitos dos usuários. Alerta, a certa altura, quanto ao

cuidado que se deve ter quanto à linguagem utilizada por muitos

profissionais nos encontros, por vezes demasiadamente hermética e

técnica. Ou seja, reafirma, basicamente, os princípios e diretrizes

defendidos pelo Movimento da Reforma Psiquiátrica, a partir da

perspectiva de quem, historicamente, foi colocado na posição de objeto,

nos vários sentidos que essa palavra possa conter, das políticas de saúde

mental e das intervenções psiquiátricas.

Mas a grande novidade não é propriamente o texto, mas o

processo de sua elaboração. Um texto discutido e debatido pelos usuários

e familiares. O louco, destituído de sua condição de cidadão, afirma-se

como sujeito de seu tempo e escreve, literal e simbolicamente, uma

página de sua história. Os vários encontros que precederam e a própria

Carta reafirmam a identidade dos movimentos dos familiares e usuários

como um Movimento Social que vai conquistando espaço e

características próprias.

A Carta se encerra com um conhecido manifesto de

Antonin Artaud, dirigido aos diretores de manicômios, que afirma, em seu

trecho final:

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Que tudo isso seja lembrado amanhã pela manhã, na hora da

visita, quando tentarem conversar sem dicionário com esses

homens sobre os quais, reconheçam, os senhores só tem a

superioridade da força. (Ibid., p.141)

Incisivas palavras de quem sentiu na pele os efeitos da

internação em um hospital psiquiátrico, e que servem para lembrar aquilo

que Basaglia (1977), baseando-se em Gramsci, definia como sendo o

trabalho dos funcionários do consenso, ou seja, daqueles que são

encarregados de concretizar as instituições psiquiátricas, legitimando a

violência e a segregação através do cotidiano de suas práticas.

Em novembro de 1995, realizou-se, em Belo Horizonte, o

II Encontro Nacional da Luta Antimanicomial, com a participação de mais

de mil representantes das mais diferentes regiões do país, trabalhadores

de saúde mental, usuários, familiares de vários segmentos sociais.

As discussões orientaram-se por um eixo organizativo

(história do movimento, avaliação, identidade, estrutura organizativa,

estratégias de luta, deliberações sobre eventos e representações do

movimento) e por um eixo temático ( exclusão: na cultura; no trabalho; na

assistência; no direito).

Das conclusões do relatório do eixo organizativo, no item

avaliação, destacam-se: a avaliação do avanço do MLA em nível nacional;

o cuidado com a apropriação do discurso antimanicomial por setores

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cujas propostas são opostas às do movimento; ênfase na necessidade de

uma atuação na formação dos futuros profissionais, objetivando a

multiplicação das práticas efetivamente antimanicomiais. No item

identidade, destacam-se: reafirmação do caráter múltiplo, público,

democrático, autônomo e popular do MLA; a definição da

desinstitucionalização como eixo do movimento e não a desospitalização

e humanização; reforça a inserção do MLA no contexto social de forma

ampla e integrada com outros movimentos; e reafirma a construção de

uma política de saúde mental pública e gratuita de acordo com os

princípios do SUS. No item estratégias de luta, sublinham-se as propostas

de atuação e intervenção no âmbito social, no sentido de ampliar alianças

e no fortalecimento do movimento; propostas de ampliação da inserção do

MLA junto às instituições formadoras e participação nas instâncias de

planejamentos das políticas sociais.

O eixo temático apresenta diversos pontos para uma

análise da exclusão, em diferentes campos e propostas para cada um

deles. De maneira geral, reafirmam textos anteriores, balizando-se pela

ampliação da discussão sobre o ideário do MLA em diferentes espaços

sociais, como as escolas, universidades, mídia; pela constante discussão

sobre os princípios e conceitos técnicos e éticos que fundamentam as

práticas assistenciais. Introduz uma discussão sobre o tema trabalho em

suas múltiplas dimensões: conceito; leis trabalhistas, cooperativas,

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capacitação. Apresenta várias propostas que apontam para uma

participação mais ativa do MLA na mudança do aparato jurídico.

O relatório focaliza dois temas que gostaríamos de

destacar e refletir: a desinstitucionalização e o tema trabalho.

Ao tratar da identidade do MLA, o relatório propõe definir

como eixo a desinstitucionalização, em oposição à desospitalização e à

humanização. Para um leitor menos afeto à área, essa poderá parecer

uma estranha posição. Tomar como eixo um conceito que se opõe à

desocupação dos leitos hospitalares e à humanização das relações de

tratamento? A desinstitucionalização64 é um conceito do referencial

teórico-prático do pensamento e da experiência italiana, que propõe uma

ruptura epistemológica ao repensar radicalmente sobre o objeto da

psiquiatria, colocando em questão sua identidade e seu estatuto.

Renuncia à busca etiológica da doença mental, colocando-a, como

afirmava Basaglia, entre parênteses para melhor conhecer as

necessidades do homem doente, o que significa uma "ruptura com a

leitura, o olhar, o conjunto de procedimentos que identificam o sujeito

internado à doença, o sofrimento a um objeto simples" (Nicácio, 1994,

p.46). A transformação proposta pelos italianos não se encerra com uma

mudança de natureza institucional, mas

64 Embora não seja uma posição teórico-técnica hegemônica no interior do MRP, tem orientado muitas das discussões sobre o caráter das práticas assistenciais, servindo como um importante balizador

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se insere no campo da reflexão epistemológica do

conhecimento, das ideologias, do papel dos técnicos e dos

intelectuais. Partindo do encontro com a prática psiquiátrica

concreta, Basaglia vai refletir sobre os instrumentos e a

finalidade da Psiquiatria como ciência no contexto do sistema

social. (...) Neste horizonte, o projeto de desinstitucionalização

é a transformação do próprio objeto da Psiquiatria e como tal

não se identifica com a desospitalização ou com propostas de

construção de modernos serviços de assistência. A ruptura

com as instituições referidas à doença abre um caminho de

produção de saber, a busca de novos paradigmas para o

conhecimento da loucura. (Nicácio, 1994, pp.51-52)65

Trata-se portanto de criar/inventar não só novas

instituições ou modos de cuidar, mas de produzir constantemente uma

nova realidade. Usina de idéias, de concepções sobre a prática, de

reflexão crítica sobre a relação saúde/doença, de formas de sociabilidade,

de formas culturais. As transformações propostas devem transcender o

estreito campo das práticas institucionais de saúde mental e inscrever-se

na luta pela construção de um processo de transformação social.

O segundo tema referia-se ao trabalho que nesse relatório

surge com maior destaque e revela uma atualização do temário do MLA.

65 Nessa dissertação de mestrado, Nicácio relata o processo de transformação da saúde de Santos, na gestão petista. Uma importante experiência relatada por quem foi uma das principais autoras do processo.

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Naquele momento histórico, várias experiências de cooperativas de

trabalho, em parceria com associações de usuários, estavam, e estão,

em pleno funcionamento. São dispositivos sociais para melhoria da

qualidade de vida dos usuários, pois criam a possibilidade de relações de

trabalho em que prevaleçam a eqüidade, a parceria e a solidariedade, em

contraposição ao injusto, competitivo, discriminador e alienante mundo do

trabalho.

Por fim, destacamos mais três encontros: em 1996,

realizou-se na cidade de Franco da Rocha o IV Encontro Nacional de

Usuários e Familiares dos Serviços de Saúde Mental. Também naquele

ano, foi realizado o V Encontro Mundial de Reabilitação Psicossocial, em

Roterdã, na Holanda, para o qual foram representantes de usuários e

familiares; e, em 1997, realizou-se na cidade de Porto Alegre o III

Encontro Nacional de Luta Antimanicomial.

A realização desses encontros demonstra que o MLA

estabeleceu uma rotina de reuniões e de participação em eventos que

marca sua capacidade de organização.

4.4 - Apresentando os novos paradigmas

Foi com o Movimento da Luta Antimanicomial que o

Movimento da Reforma Psiquiátrica radicalizou um processo que já se

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insinuava ao longo dos anos. Rompendo os estreitos limites de uma

modificação na organização dos equipamentos de saúde ou de

implementação de propostas de caráter exclusivamente técnicas ou

científicas, o Movimento da Reforma Psiquiátrica foi se definindo mais

claramente como um constante processo de transformações nos campos

assistencial, cultural e conceitual.

Se fosse oportuno, neste contexto complexo,

questionar-se quanto ao principal objetivo da Reforma

Psiquiátrica, talvez fosse possível responder que seria poder

transformar as relações que a sociedade, os sujeitos e as

instituições estabeleceram com a loucura, com o louco e com a

doença mental, conduzindo tais relações no sentido da

superação do estigma, da segregação, da desqualificação dos

sujeitos ou, ainda, no sentido de estabelecer com a loucura

uma relação de coexistência, de troca, de solidariedade, de

positividade e de cuidados. (Amarante, 1997, p.165)

Nesse sentido, reafirmando o que já havíamos dito

anteriormente, o título de Reforma Psiquiátrica não faz jus, pelos

possíveis problemas que o termo possa causar, à riqueza e à

complexidade do que aqui estamos a relatar. Trata-se de uma radical

ruptura com o modelo asilar predominante, através, não só de um

questionamento de seus conceitos, fundamentos e de suas práticas

mas, principalmente, através da construção de novos paradigmas.

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A crítica radical à psiquiatria tradicional, efetuada desde

os anos setenta, produziu uma mudança na concepção do objeto,

focado exclusivamente na doença, com uma decorrente prática centrada

quase que exclusivamente na figura do médico, para uma concepção que

supera as dicotomias saúde/doença, individual/social, entendendo a

saúde mental como um campo complexo, composto por uma rede de

fatores sociais, psicológicos, culturais e biológicos. Nessa concepção, não

se busca a preponderância de um determinado fator sobre outro, ao

contrário, trata-se de tomar o drama do existir humano em sua

complexidade. Considerando essa múltipla determinação, que leva a uma

ação terapêutica interprofissional, Costa-Rosa afirma que

o que entra no campo, a priori, não é mais a determinação

orgânica (ou qualquer outra, o que poderia ser equivalente)

mas sim a postura que procura discriminar qual é a

determinação, ou determinações dos problemas em questão.

(Costa-Rosa, 1990, p.14).

As práticas decorrentes dessa concepção orientaram-se

para uma atenção e para o desenvolvimento de cuidados centrados na

singularidade e no radical respeito à subjetividade. Essa é a dimensão da

construção do percurso do tratamento.

Lobosque (1997) caracteriza três princípios para uma

clínica antimanicomial: princípio da singularidade, retomando a questão

da relação entre particular e universal, privado e público, individual e

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168

social, concebendo-a como um atributo de um coletivo que não se deixa

envolver por um ideário individualista, nem se faz amarrar por

perspectivas de unidade ou totalização; a clínica antimanicomial será

toda a

clínica que convide o sujeito a sustentar sua diferença, sem

precisar excluir-se do social ... Daí o trabalho clínico, que se

coloca, sim, caso a caso: conduzir o tratamento de forma tal

que o sujeito siga o caminho que lhe é próprio - mantendo-o,

ao mesmo tempo, cabível nos limites da cultura (Lobosque,

1997, p.23).

O segundo princípio apresentado pela autora é o do

limite: trata-se de tomar a sua construção como um problema lógico e não

como um imperativo moral, ou seja, busca-se estabelecer o traçado de

um contorno e não o processamento de uma exclusão

... questionar a exclusão não é o mesmo que incluir pura e

simplesmente. Assim 'fazer caber' o louco na cultura é também

ao mesmo tempo convidar a cultura a conviver com certa falta

de cabimento, reinventando com ela também seus limites ...

pensar, propor, sustentar formas de contrato social nas quais

não seja mortífera a presença da loucura, é algo que faz parte

de uma clínica antimanicomial (Ibid., p.23)

O terceiro princípio é o da articulação: trata-se aqui da

necessária articulação e interlocução com outras práticas e outros

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campos e de pensamento, considerando o projeto de uma sociedade sem

manicômios. Deve-se produzir um constante trabalho de reflexão e de

crítica à sociedade em seus aspectos econômicos, políticos e sociais,

buscando articulações com demais movimentos sociais, bem como

manter-se atualizada e atenta através de uma interlocução interdisciplinar.

Uma clínica poderá dizer-se articulada quando levar em conta

as configurações da ordem pública em que se inscreve,

preocupando-se em modificá-las; quando, considerando a

dimensão de seu trabalho para cada paciente, ocupar-se das

questões públicas cuja abordagem se faz indispensável para

garantir a possibilidade mesma desse trabalho (Ibid., p.24)

Costa-Rosa (1990) irá nomear o conjunto das práticas

promovidas pelo Movimento da Reforma Psiquiátrica como Modo

Psicossocial, em oposição ao Modo Asilar predominante. Propõe o autor

que, para caracterizar a mudança de paradigma de atenção, capaz de

superar o modelo asilar, é imprescindível que a prática preencha algumas

condições, relativas a transformações radicais em quatro âmbitos:

concepção do objeto e dos meios de trabalho; concepções das formas da

organização institucional; formas do relacionamento com a clientela; e

concepção dos efeitos típicos em termos terapêuticos e éticos.

Concepção do objeto e dos meios de trabalho:

contrapondo-se à ênfase nas determinações orgânicas e sua decorrente

prática, e ao meio de trabalho que reproduz modelo da divisão de

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trabalho correspondente a linha de montagem, o Modo Psicossocial

caracteriza-se pela transformação nas concepções do objeto,

considerando os múltiplos fatores já descritos anteriormente e na

participação e implicação do sujeito no tratamento, tendo como meio de

trabalho a equipe interprofissional que através do intercâmbio entre seus

saberes e práticas, supera radicalmente o modelo da linha de

montagem.

Concepções das formas da organização institucional:

opondo-se à organização verticalizada e a um fluxo de poder em sentido

único do Modo Asilar, o Modo Psicossocial caracteriza-se por uma

organização institucional dos dispositivos de trabalho horizontal, na qual a

participação, autogestão e interprofissionalidade são as metas radicais.

Formas do relacionamento com a clientela: enquanto o

Modo Asilar se caracteriza pela separação entre doentes e sãos, com a

instituição cumprindo uma função de depositária que interdita o diálogo, o

Modo Psicossocial propõe que a instituição, através de seus agentes,

adquira o caráter de espaços de interlocução, agenciadora de

subjetividades. E considerando a dimensão de suas ações no âmbito da

Saúde Coletiva, a instituição deve funcionar como ponto de fala e escuta

da população.

Concepção dos efeitos típicos em termos terapêuticos e

éticos: enquanto no Modo Asilar se observa uma hipertrofia nos defeitos

de tratamento, como a cronificação asilar, decorrente de um entendimento

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do tratamento centrado na supressão ou no tamponamento dos sintomas,

no Modo Psicossocial o que se visa é ao reposicionamento subjetivo,

levando-se em conta a dimensão coletiva e sociocultural. Deverá ser

pensado na perspectiva de uma ética que se abra para a singularização.

Assim, implicação subjetiva e sociocultural, além da singularização, são

as metas radicais quanto à ética das práticas do Modo Psicossocial.

Finalizando, destacamos que, em junho de 1991,

técnicos, pesquisadores, professores e coordenadores de programas e

serviços de saúde mental e gerentes de sistemas locais de saúde

reuniram-se em Santos, em um workshop intitulado Saúde Mental e

Cidadania no Contexto dos Sistema Locais de Saúde, organizado pela

Secretaria de Higiene e Saúde da Prefeitura de Santos, pela Secretaria

de Estado da Saúde e pela Coordenação de Projetos de Saúde da

Cooperação Italiana. Nesse encontro, elaborou-se a Carta de Santos,

que sintetiza, em suas conclusões, os paradigmas do Movimento da

Reforma Psiquiátrica. Subdividindo-a em três itens, os signatários da

Carta apresentam, no primeiro, características conceituais comuns que

permeiam as novas práticas:

a) o acolhimento de pacientes graves;

b) o acompanhamento de todos os momentos do processo de

tratamento: do atendimento à crise, um conjunto de

terapêuticas que têm por objetivo a reorganização psíquica,

respeitando-se a subjetividade de cada um; práticas de

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intermediação entre sujeito e a sociedade com o objetivo de

reinserção e participação social;

c) a observação que o tratamento é um processo longo e

complexo que deve abarcar várias dimensões do indivíduo

discriminando-se o momento e o sentido de cada intervenção;

d) a convivência com a diversidade e as contradições como

parte do processo;

e) a preocupação de procurar tratar cada caso buscando

encaminhamentos que preservem a subjetividade do indivíduo;

f) a busca de diferentes modelos para coordenar as diversas

intervenções necessárias ao resgate do exercício de cada vida

civil dos indivíduos ...

g) o situar-se como uma ponte entre unidades assistenciais e

organismos sociais que possam facilitar e promover a inserção

do indivíduo na sociedade. (Kalil, 1991, p.24)

No segundo item, propõem para as novas práticas, novos

técnicos: "A constituição da equipe de trabalho dar-se-á através de um

processo de participação coletiva onde técnicos, administrativos, teóricos,

efetuadores constituam uma espiral de conhecimentos e tecnologias

adequadas" (Ibid, p.24)

No terceiro item, solicitam o esforço por parte de gerentes

de redes locais, responsáveis pela direção de serviços e técnicos, para

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diminuir as distâncias de formação, conhecimentos e história que os

separam.

A Carta de Santos se encerra conclamando os

Secretários municipais, coordenadores de programas e

serviços de saúde mental, trabalhadores de instituições de

ensino e pesquisa em saúde mental, profissionais, usuários e

sociedade em geral a desenvolver estratégias locais de

transformações institucionais condizentes com o aqui

acordado. Enfatizam que a reinserção social do doente mental

deve respeitar uma contratualidade social que tenha no

exercício da cidadania seu paradigma. (Ibid, pp.25-26)

Os textos citados sintetizam as principais características

do que poderíamos chamar de uma transformação paradigmática radical.

Embora ao longo dos anos encontremos inúmeras experiências

singulares que já se fundamentavam nesses conceitos, é a partir do

Movimento da Reforma Psiquiátrica que essa transformação, operada e

concretizada cotidianamente na prática das novas instituições,

conquistou uma maior visibilidade e foi contagiando e contaminado outros

operadores, outros profissionais, que foram criando e inventando outras

instituições e outras novas práticas.

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4.5. Retomando as questões....

Os anos noventa estão se caracterizando pela

consolidação do processo democrático, ao menos no plano político. O

impeachment do presidente Collor foi uma demonstração da capacidade

de superação da sociedade diante de uma grave situação sem que

soluções de caserna, comuns na história desse país, fossem acionadas.

O vice-presidente assumiu e, posteriormente, foram realizadas novas

eleições presidenciais, para governadores, prefeitos, ou seja, a

alternância do poder foi se tornando uma rotina, embora nem sempre esta

significou uma mudança para melhor, por vezes muito pelo contrário.

Consolidou-se, também, o processo de organização e

implantação do Sistema Único de Saúde, principal bandeira de luta do

Movimento Sanitário que, como já destacamos, toma o campo do

Aparelho Estatal como palco privilegiado de sua luta. Embora as

condições de saúde da população, menos por insuficiências do sistema e

mais pelo agravamento da crise social, não tenham melhorado

substancialmente, criaram-se mecanismos de participação e controle

popular, como os Conselhos de Saúde, que buscam, entre outras ações,

democratizar as relações entre Estado e Sociedade. Infelizmente, a

capacidade de negociação contratual desses mecanismos frente à política

econômica não tem demonstrado força suficiente para influenciar e intervir

na construção de políticas sociais mais justas.

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O processo de consolidação do Estado Democrático, que

restaurou os direitos inscritos na Constituição Cidadã (termo cunhado por

Ulisses Guimarães), não conseguiu incorporar uma parcela significativa

da população, que continuou à margem do mundo dos direitos e do

mundo maravilhoso do capitalismo globalizado. A política econômica tem

afrontado esse processo ao propor, seguindo as regras e as orientações

impostas por organismos internacionais, a redução das tarefas do

Estado, implantando o chamado Estado Mínimo, entregando suas

atribuições à lógica de uma onipresente figura denominada mercado que,

em nossa dependente economia, tem-se revelado extremamente

perversa, aumentando a acumulação de riquezas das elites,

aprofundando a mais do que injusta distribuição de renda e agravando a

crise social.

Segregação, violência e exclusão continuam, mais do que

nunca, como pautas na agenda da discussão nacional. Neste sentido, a

defesa da noção de saúde direito de todos e dever do estado cumpre um

importante papel pois implica, além de transformar a saúde como questão

nacional, como afirma Escorel (1995), uma contra-ofensiva de caráter

ideológico em defesa, não só de um direito constitucional, mas de uma

perspectiva de entendimento de uma sociedade que garanta efetivamente

os direitos básicos de acesso à saúde, ao trabalho, à educação, à

moradia, e, portanto, uma sociedade baseada em valores mais justos, na

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qual o Estado tem o dever de cumprir o papel de regulador e de

mantenedor desses direitos.

No campo da saúde mental, essa luta irá se construir

exatamente na articulação que os novos serviços, comprometidos com o

ideário do Movimento da Reforma Psiquiátrica, estabelecerem com outros

segmentos dos Movimentos Sociais, tais como as associações de

usuários e familiares, ONGs, sindicatos etc. Ao trazer o tema da luta

antimanicomial como parte de uma luta maior contra a segregação, a

violência, a discriminação, a exclusão, produz a força de uma

disseminação ideológica propondo valores para a constituição de um

bloco histórico comprometido com valores e as causas do polo

subordinado.

O Movimento da Reforma Psiquiátrica estabeleceu,

especialmente nesses anos noventa, uma diferença em relação ao

Movimento Sanitário: ocupou espaços no aparelho estatal e manteve uma

identidade de Movimento Social, através do MLA e das associações de

usuários. Nutrindo-se das cotidianas questões que surgem no embate da

construção da transformação da assistência, o Movimento da Reforma

Psiquiátrica vai se atualizando também com as questões sociais de seu

tempo histórico, ampliando suas alianças com outros setores da

sociedade.

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Como já havíamos afirmado no capítulo I, essas alianças

fortalecem o estabelecimento da hegemonia. Lembrando novamente

Gruppi, ao citar Gramsci: "a hegemonia se realiza enquanto descobre

mediações, ligações com outras forças sociais, enquanto encontra

vínculos também culturais e faz valer no campo cultural as próprias

posições" (apud Gruppi, 1978, p.63). É exatamente esse um dos mais

importantes eixos de luta do Movimento da Reforma Psiquiátrica, através

do MLA. Como destacamos ao longo deste capítulo, as propostas

apontam para uma participação cada vez maior no contexto cultural,

buscando conquistar mais espaços e a adesão da população.

Para Carlos Nelson Coutinho, a hegemonia "é a

capacidade de formular uma proposta a partir do ponto de vista de uma

determinada classe, mas conseguindo a adesão das demais classes se

transforme em projeto comum, superando corporativismos" (apud Escorel,

1995, p.189). Assim como o projeto da Reforma Sanitária, o Movimento

da Reforma Psiquiátrica partiu de um grupo de intelectuais, constituiu um

projeto com a perspectiva das classes trabalhadoras e populares, e vem

conseguindo superar o corporativismo inicial, transformando-se em um

projeto comum a outras classes, incorporando em sua luta a participação

ativa de outros segmentos sociais. Embora essa seja uma história

recente, o Movimento da Reforma Psiquiátrica está mais próximo de uma

posição orgânica junto ao polo subordinado, buscando transformar as

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relações sociais, construindo um bloco histórico alternativo ao

dominante.

Nesse processo, os intelectuais cumprem importante

papel. Ao se recusarem, como afirmava Basaglia (1977), o papel de

funcionários do consenso, negando-se a cumprir o mandato social que as

instituições delegam, dialetizando no plano prático tal negação, ao

romperem com sua função de instrumentos de manutenção ideológica da

opressão, ao transformarem o cotidiano de suas práticas, os intelectuais

produzem uma fratura de caráter orgânico, possibilitando que o

Movimento da Reforma Psiquiátrica possa assumir-se como intelectual

orgânico a serviço dos interesses do polo subordinado.

A constante problematização colocada pelo Movimento da

Reforma Psiquiátrica sobre os rumos a serem tomados, alimentada pelas

questões oriundas do encontro com a prática da transformação da

assistência e, principalmente, do rico encontro com as demandas

produzidas pelas alianças com a sociedade, demonstram a preocupação

permanente de manter sua organicidade e de não se afastar da luta pela

transformação da sociedade.

Vale, aqui, lançar luzes ao outro lado. É inegável nesse

processo a existência de fortes reações contrárias que se concretizam

com as articulações e o estabelecimentos de estratégias de grupos

diretamente afetados com esse processo de transformação,

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especialmente o grupo dos donos de hospitais psiquiátricos. Uma das

estratégias daqueles grupos econômicos é tentar modernizar seu

discurso. Em um texto apresentado na 2ª Conferência Nacional de Saúde

Mental, intitulado Programa de atenção em saúde mental, a Federação

Brasileira de Hospitais propõe uma organização da assistência em níveis

(internação, semi-internação e ambulatório), contemplando ações como

centros de convivência e hospital-dia. O mesmo texto, porém, não

consegue ocultar seu caráter conservador, ao colocar as seguintes

premissas básicas:

As desordens psíquicas, especialmente os quadros

psicóticos situam-se, primeiramente, no âmbito da medicina,

cobertos pelos atos médicos de Diagnóstico e Tratamento,

visando e possibilitando a reinserção do indivíduo na sociedade.

(...) O saber médico-científico e a intervenção terapêutica do

psiquiatra têm que ser a mola propulsora no atendimento ao

doente mental, sem descurar-se, em qualquer regime

assistencial de atendimentos básicos de terapia individual,

grupal de ressocialização. (Federação Brasileira de Hospitais,

1991)

A mesma Federação organizou sua própria associação de

familiares, a Associação de Familiares dos Doentes Mentais, que

participou dos encontros oficiais e tem tido atuações, especialmente junto

à imprensa, como defensora do hospital psiquiátrico que afirma ser a

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única instituição que pode tratar de seus parentes. Essa iniciativa

originou-se no Rio de Janeiro e já se espalhou por várias cidades e

Estados.

Assim, o processo que aqui apresentamos contém outras

faces e outros bastidores que estabelecem uma dinâmica de avanços e

retrocessos, conquistas e perdas, inerentes a qualquer Movimento Social.

Se, como afirmamos, o bloco histórico hegemônico comporta contradições

e fraturas que possibilitam a articulação para a organização de um

processo contra-hegemônico, a construção mesma deste também

comporta suas contradições e fraturas. Reações às transformações

podem ser observadas em várias campos e frentes: dos interesses

corporativos e econômicos, como assinalamos acima com a FBH;

resistências dos trabalhadores no interior das instituições66; forte

resistência em romper com um padrão cultural criado em torno da

internação etc.

Embora presentes e exercendo influências sobre o

Movimento da Reforma Psiquiátrica, preferimos privilegiar as linhas

gerais do quadro histórico do processo de Reforma Psiquiátrica. Falamos

do Movimento em seus gestos mais largos, de maior visibilidade,

buscando dar contornos aos momentos intensos e decisivos. Procuramos

desenhar os aspectos mais salientes e relevantes de uma parte dessa

66 A esse respeito, vide o texto de COSTA, 1991.

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história: a dos atores do Movimento, os trabalhadores, em um momento,

os usuários e familiares, em outro momento.

Vale salientar que, especialmente ao longo dos anos

noventa, diversos Estados realizam encontros, promovem discussões,

produzem práticas. Embora não estejam nomeados um a um neste

trabalho, estão presentes nas linhas com que procuramos desenhar o

Movimento da Reforma Psiquiátrica como um Movimento Social de

caráter nacional.

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CAPÍTULO V

CONSTRUINDO NOVOS PARADIGMAS: O CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL PROF. LUIZ DA ROCHA CERQUEIRA (CAPS)

Sim, todo amor é sagrado E o fruto do trabalho é mais que sagrado

A massa que faz o pão Vale a luz do teu suor

Lembra que o sono é sagrado E alimenta de horizontes o tempo acordado de viver

Beto Guedes e Ronaldo Bastos

Neste capítulo, focaremos nossas lentes para tentar

captar alguns detalhes da concretização do movimento da Reforma

Psiquiátrica, seus gestos e ações cotidianas. Nos capítulos anteriores,

destacamos o papel desempenhado pelos intelectuais no processo de

constituição de um novo bloco histórico. Citamos Basaglia (1977) que,

baseando-se em Gramsci, ressalta a recusa ativa do papel de

funcionários do consenso que os trabalhadores de saúde mental

deveriam exercer no cotidiano de suas práticas. A partir dessa posição,

observamos que os atores do Movimento da Reforma Psiquiátrica têm

construído diversos trabalhos ao longo dos anos, formulando paradigmas,

inaugurando e consolidando um complexo processo de transformação em

diversos campos. Amarante (1999) destaca quatro campos fundamentais

desse processo:

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1. Campo teórico-conceitual: desconstrução, reconstrução de

conceitos fundantes da psiquiatria (doença mental, alienação,

isolamento, terapêutica, cura, saúde mental, normalidade,

anormalidade) (...)

2. Campo técnico-assistencial: a partir de e simultaneamente à

reconstrução dos conceitos acima (...) a construção de uma

rede de novos serviços, (...) (de) espaços de sociabilidade, de

trocas e produção de subjetividades, substitutivos (e não

apenas alternativos) ao modelo terapêutico tradicional. (...)

3. Campo jurídico-político: revisão das legislações sanitária,

civil e penal no que diz respeito aos conceitos de 'doença

mental', 'psicopatia' e 'loucos de todo o gênero', e construção

de novas possibilidades de cidadania, trabalho e ingresso

social. (...)

4. Campo sociocultural: como conseqüência, e também

simultaneamente, de todas as demais ações listadas

anteriormente, (...) e a partir de ações no campo sociocultural,

busca-se uma transformação do imaginário social relacionado

com a loucura, a doença mental, a anormalidade e assim por

diante. (Ibid., pp. 50-51)

O trabalho desenvolvido pelo Centro de Atenção

Psicossocial Prof. Luiz da Rocha Cerqueira (CAPS) é um importante

marco referencial para as práticas que se organizaram a partir do final dos

anos oitenta. Sua história e suas ações são a exemplaridade do processo

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de transformação assistencial do Movimento da Reforma Psiquiátrica e

contemplam os campos assinalados acima, por Amarante.

5.1. O contexto e o início

Como já destacamos, no período de 82 a 86, temos a

implantação das chamadas Ações Integradas de Saúde, que

impulsionaram o processo da Reforma Sanitária no Estado de São Paulo.

Seguindo os princípios da descentralização, hierarquização e

regionalização, iniciou-se uma reestruturação e uma reorganização dos

serviços e das ações de saúde.

Nesse contexto, a Coordenadoria de Saúde Mental (CSM)

da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo começou a implantar um

modelo de atenção em saúde mental, que contemplava os princípios

acima mencionados, com uma forte inspiração no modelo da psiquiatria

preventiva americana. Vários autores (Costa-Rosa, 1987 & Lancetti,

1989), como já afirmamos, fazem críticas ao modelo adotado.

Vale destacar que, se, por um lado, o Movimento

Sanitário e o Movimento da Reforma Psiquiátrica apresentam, como já

assinalamos, características de movimentos orgânicos, por outro, ao se

incorporarem ao aparelho estatal, a concretização e a implantação dos

princípios e diretrizes seguiu ou foi influenciada, por vezes, como no caso

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da saúde mental em São Paulo, por modelos oferecidos pelos

organismos internacionais.

De qualquer modo, o processo implantado pela CSM

ampliou a rede de assistência extra-hospitalar, com a criação de novos

ambulatórios de saúde mental e equipes para as várias unidades básicas

de saúde, criou algumas emergências psiquiátricas em hospitais gerais,

revitalizou convênios com as universidades para reciclagem dos

profissionais da rede, instituiu supervisões técnicas e institucionais,

iniciou um processo de recuperação dos hospitais próprios. Como

também já afirmamos, embora com limitações, a CSM implementou uma

política de saúde mental.

O final da gestão do governo Montoro produziu uma

ampla reforma administrativa na Secretaria de Estado da Saúde, que

extinguiu instâncias gerenciais e criou os Escritórios Regionais de Saúde

(ERSA), dando início ao processo de municipalização das ações e

equipamentos de saúde.

Essa reforma, implementada nos últimos meses de 1986,

possibilitou a utilização da sede da extinta Divisão de Ambulatório para

uma atividade assistencial. Em função de suas características e

localização, o casarão da rua Itapeva67 era desejado e pleiteado por

67 A rua Itapeva é onde se localiza o imóvel que abriga o CAPS, a uma quadra da avenida Paulista, importante centro financeiro de São Paulo. Trata-se de um amplo casarão com cerca de 700 m2, trinta cômodos, com três pavimentos (térreo, primeiro andar e pavimento inferior), um jardim e espaço para estacionamento.

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diversas secretarias. O empenho de um pequeno grupo de profissionais

daquele órgão foi de vital importância para que aquele espaço não fosse

destinado a uma repartição pública burocrática. Esse grupo formulou

uma proposta assistencial, visando a atender a uma parcela de usuários

que apresenta graves distúrbios psíquicos com dificuldades de

relacionamento e inserção social, que necessita de um tratamento

intensivo e diversificado, e que não encontrava, por diversos motivos, uma

adequada assistência nos equipamentos de saúde mental da rede

pública, tendo como oferta compulsória de tratamento a hospitalização. O

CAPS surgiu como uma proposta de atendimento diferenciada e como

início de uma rede de espaços intermediários "entre a hospitalização com

seus riscos de cronificação e segregação e o pleno exercício da

cidadania" (Yasui, 1989, p.52).

Inaugurado oficialmente em 12 de março de 1987, nos

últimos dias do governo Montoro e após um longo processo de

negociações e pressões, o CAPS enfrentou dificuldades de diversas

ordens: administrativas, de recursos financeiros, de recursos humanos.

Eram os reflexos da mudança de governo e da mudança de prioridades.

O processo de descentralização e de municipalização, de

todo modo importante para a implantação da Reforma Sanitária,

provocou, naquele momento, uma descontinuidade da política de saúde

mental que vinha sendo desenvolvida. Apesar de o mesmo partido

(PMDB) permanecer no poder nas duas gestões posteriores, o

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compromisso ideológico e a orientação eram de outra ordem. Nos meses

iniciais do governo Quércia, houve um retrocesso em diversos e

importantes trabalhos que estavam sendo desenvolvidos, motivado,

principalmente, por provincianas questões políticas eleitoreiras e

administrativas locais, que ganharam destaque e se sobrepujaram aos

princípios éticos e técnicos. Desarticularam-se ações, afastaram-se

profissionais que coordenavam trabalhos, instituíram-se regras e normas

autoritárias em alguns locais68. Procurou-se, nas palavras do diretor de

um complexo hospitalar, restabelecer a ordem. A ordem da exclusão, da

mediocridade, da mesquinhez.

Paradoxalmente, foi naquele momento de refluxo que o

CAPS, alguns meses após sua inauguração, iniciou suas atividades em

regime de meio-período69. Caminhando na contramão daquele momento,

o CAPS foi acolhendo profissionais que vinham de importantes

experiências institucionais na saúde mental, tais como de projetos de

reformulação dos hospitais psiquiátricos do Juqueri e do Pinel, e de

ambulatórios de saúde mental em que se desenvolviam trabalhos junto à

comunidade. Profissionais que saíram dos seus trabalhos (alguns

compulsoriamente),

68 Como exemplo, podemos citar a ordem de serviço da Diretoria do Departamento Psiquiátrico II (Hospital do Juqueri), de 1987, proibindo os profissionais de realizarem reuniões, sem autorização prévia daquela Diretoria. Processo semelhante foi enfrentado pelos profissionais da Enfermaria de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.

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pois a reversão de prioridades e o privilégio para as questões políticas

locais desarticularam, desmobilizaram e desmotivaram a continuidade de

muitas daquelas ações.

A equipe do CAPS foi constituída, portanto, de

profissionais, em sua grande maioria, com experiência na rede pública e,

mais do que isso, com um forte desejo de transformar os modelos de

atenção em saúde mental. Participar da construção daquele trabalho,

naquele momento histórico, era participar, por um lado, de uma espécie

de núcleo de resistência a desmontagem que estava sendo empreendido

e, por outro, da construção de um lugar de possibilidades, de invenção,

de criação.

5.2. Buscando uma identidade

A entrada em cena do usuário no CAPS, em julho de

1987, deu início efetivo ao que antes era um conjunto de idéias, desejo de

construir uma nova prática, um programa de atividades, formulado por

uma equipe em fins de 1986. Na concretização das propostas através do

encontro diário com a loucura, com o drama, com a demanda do usuário,

surgiram dúvidas, incertezas. Os profissionais que, gradativamente, iam

69 O CAPS começou a atender aos usuários em julho de 1987, funcionando no período das 8 hs às 12 hs. O período vespertino era destinado a atividades internas, tais como reuniões, treinamento de funcionários, discussões dos casos etc.

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sendo incorporados ao CAPS, trouxeram mais questões sobre a prática

cotidiana até então desenvolvida.

A rotina do primeiro ano de funcionamento do CAPS era

basicamente a seguinte: uma vez admitido na triagem, o usuário iniciava

suas atividades durante toda a manhã. Ao chegar, dirigia-se a um dos

seguintes ateliês: artesanato, pintura ou costura, de acordo com sua

escolha ou indicação. Às dez horas, era oferecido um lanche e, entre

10:30 hs e 11 hs, tinham início as atividades grupais, com a participação

de todos os usuários e variando de acordo com o dia da semana: grupo

verbal, jornal-mural, expressão corporal, música, jardinagem, passeio e

vídeo. A coordenação de cada uma dessas atividades ficava a cargo de

um ou mais técnicos que apresentassem interesse ou tivessem mais

habilidades.

O modelo que norteava essas ações era o de uma

estrutura intermediária, entendida como

uma unidade de tratamento em saúde mental que se introduz

num sistema hierarquizado de cuidados, indo da internação

hospitalar ao tratamento ambulatorial e ao suporte da

comunidade (...) É considerado (...) como uma estrutura de

passagem, na qual os pacientes permanecem durante um

determinado tempo até adquirirem condição clínica estável, de

modo a poderem continuar o tratamento em definitivo em

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equipamentos como características ambulatoriais. (Goldberg,

1998, p.29)

Esse modelo tentava inscrever o CAPS no sistema

hierarquizado, regionalizado e integrado das ações de saúde, como uma

unidade a mais dentro dessa escala de maior a menor complexidade de

atenção à saúde mental.

A proposta desse modelo, associado às angústias que as

demandas e questões teóricas, técnicas, administrativas etc. - geradas

do encontro cotidiano corpo-a-corpo que tínhamos com a loucura -

acabava por criar uma grande insatisfação na equipe, pois não

conseguíamos produzir dispositivos que dessem conta daquele turbilhão

que vivíamos. Insatisfação por percebermos que estávamos muito aquém

das possibilidades de intervenções terapêuticas e assistenciais que a

equipe poderia construir. Quedávamo-nos hesitantes e tímidos, ante os

desafios que se apresentavam.

O modelo que procurávamos seguir mostrava-se

insuficiente para atender à demanda e à complexidade dos casos que se

apresentavam diariamente ao CAPS. Pessoalmente, à época, temia que

estivéssemos organizando nosso trabalho a partir de uma perspectiva

médica, na qual buscávamos a remissão do delírio ou a estabilização dos

sintomas mais exuberantes que os pacientes apresentavam. Ao

utilizarmos tal perspectiva, poderíamos estar concretizando uma prática

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tão excludente e controladora como a de qualquer manicômio, pois tomar

o delírio como a manifestação sintomática de um quadro patológico, cujo

critério de cura se coloca em sua remissão, é excluir a possibilidade da

produção de sentido, é utilizar o poder do saber para fazer calar aquilo

que não se compreende e fazer prevalecer a norma. Freud, ao comentar

as memórias do presidente Schreber, a certa altura do texto, faz a

seguinte afirmação a propósito dos delírios dos paranóicos: "(...) A

formação delirante, que presumimos ser o produto patológico, é, na

realidade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de

reconstrução" (Freud, 1911, pp.95-96).

Era preciso repensar e debater as concepções que a

equipe tinha sobre os conceitos e paradigmas de saúde/doença,

tratamento, cura, normalidade/anormalidade etc. Era preciso repensar e

debater a sustentação teórico-técnica de nossas atividades. Era preciso

repensar e debater as implicações ideológicas de nossa prática. Era

preciso ousar mais, correr riscos, inventar possibilidades, criar outros

dispositivos que o modelo hierarquizado de assistência no qual

estávamos inseridos não conseguia oferecer. Com tantos imperativos a

insistir em cada um dos integrantes daquela equipe extremamente

exigente, iniciou-se, nos primeiros meses de 1989, um processo de

supervisão institucional que criou um espaço coletivo semanal,

catalisando e possibilitando que as questões cotidianas enfrentadas

pudessem circular entre todos. Pudemos, naquele espaço: desatar os

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nós institucionais; recontar a recente história do CAPS, para dela nos

apropriarmos; explicitar e debater as questões e posições teóricas,

técnicas e políticas; refletir sobre as limitações que a nossa prática nos

impunha; marcamos as diferenças, enfrentamos as contradições.

Começávamos a fazer da diferença ponto de encontro das dúvidas, de

confronto de nossas míopes certezas e ponto de partida para a

diversificação e construção de novos paradigmas.

Vale lembrar uma discussão que realizamos sobre a porta

do CAPS. Há um forte sentido emblemático nela. Em uma das reuniões

que realizamos, uma usuária nos questionou sobre o fato de a porta do

CAPS permanecer fechada. Argumentava que ficava parecendo com

hospital. Após uns instantes de puro constrangimento, afirmamos que era

uma medida de precaução e segurança para os próprios usuários. Nova

pergunta: "- Mas não quero ficar presa aqui dentro. Por que não posso

sair e circular?". A partir dessa pergunta, vários outros usuários também

questionaram. Argumentavam que por vezes queriam sair para tomar

café, comprar um cigarro, beber um refrigerante e tinham que pedir

permissão e procurar quem tinha a chave da porta.

A equipe havia sido colocada em uma encruzilhada ética.

Manter a porta fechada era assumir que não estávamos nos livrando de

velhos e ultrapassados conceitos de segurança dos pacientes, revelando

que a lógica manicomial ainda poderia estar presente e configurada na

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anedótica posse da chave da porta70. Após algumas reuniões, optamos,

finalmente, em manter a porta permanentemente aberta. Em um certo

sentido, jogamos a chave fora. Ao abrir espaço e acolher a reivindicação

dos usuários, aprendemos com eles a começar a construir uma

instituição que mantém as portas abertas para a rua, para a vida. E

quando se fechava71, a porta ganhava um sentido diferente: criava-se um

circuito de solidariedade, pois, certamente, havia alguém na casa

precisando de uma atenção mais próxima. A porta fechava-se como um

dispositivo de intervenção, para acolher mais intensivamente alguém, e

todos participavam desse acolhimento.

O encontro com a loucura nos impulsionava na direção de

uma posição ética que privilegiava uma atenta escuta ao acontecer

cotidiano. Havia uma tensão vital constante no ar, que nos fazia despertar

toda vez que o sono da inércia burocrática ameaçava instituir-se. Atentos

e alertas para que o CAPS não acabasse por se transformar em um

aparelho de reprodução sutil e sofisticado de dispositivos de controle e

exclusão, buscávamos construir uma identidade a partir da complexidade

que o encontro com a loucura produzia e não a partir de uma

organização formal externa ou de um modelo previamente delimitado.

70 Referimos aqui a velha piada sobre a diferença entre os loucos, os médicos e os enfermeiros: os últimos possuem a chave da porta. Mais do que uma piada, revela um clássico dispositivo institucional manicomial; não há hospital psiquiátrico que não tenha suas portas trancadas, no sentido concreto e simbólico que a frase possa ter. 71 A exceção era quando algum usuário necessitava de cuidados especiais, que contra-indicassem que a porta permanecesse aberta. De qualquer modo, havia sempre um funcionário na porta para permitir que os outros pudessem sair e entrar.

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Nesse sentido, buscávamos uma espécie de independência em relação à

hierarquia dos equipamentos da rede e em relação ao modelo que estava

sendo implementado, mas de cuja elaboração poucos haviam participado.

E mais do que isso, lançávamo-nos nessa aventura

misteriosa que é trabalhar com a loucura, com a dimensão humana que

nos obriga a criar a cada encontro com o usuário, a estar atento a todo

momento ao inusitado , ao inesperado, ao sem sentido. Abrimos mão das

tranqüilas, paralisantes e fetichistas certezas científicas. Jurandir Freire

Costa, em uma apresentação na comemoração do segundo aniversário

do CAPS, destacava algumas das qualidades exemplares que ele

percebia em nosso trabalho, dentre elas a de que desmistificávamos o

fetiche do saber que, para ele,

é erigir de fato um saber qualquer como sendo aquilo que vai

dar a resposta última para esse enigma que é o humano. Se a

gente entende o fato da loucura usada na expressão de

Foucault como um modo de razão ou racionalidade que é

diferente do nosso, não qualquer coisa que seja superior ou

inferior como romanticamente já se quis dizer, mas como uma

forma de vida diversa ... temos que ter a humildade de nos

contentarmos, não com a busca do que seria fetichisticamente

verdadeiro, porque dogmaticamente afirmado em função de um

dado saber que sutura e plenifica totalmente nosso imaginário

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(...) mas sim buscar o vocabulário último para uma vida mais

bela e mais feliz. (Costa, 1989)72

5.3. Mudando, transformando a partir dos detalhes do cotidiano

Prefiro ser Essa metamorfose ambulante

Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo Sobre o que é o amor

Sobre o que eu nem sei quem sou Raul Seixas

Em agosto de 1988, o CAPS começou a funcionar em

período integral. Mais do que uma ampliação no horário, iniciava-se uma

nova proposta: o CAPS tornava-se um trabalho produzido

coletivamente.

Resumidamente, podemos descrever a rotina

desenvolvida naquele período da seguinte maneira: uma vez admitido,

realizávamos com o usuário e sua família um contrato provisório que

durava o tempo necessário para que ele conhecesse o que era oferecido

e para que a equipe pudesse definir com o mesmo as atividades a serem

desenvolvidas e os horários a freqüentar. Durante a semana, o usuário

dispunha de uma sala de atividades onde podia encontrar materiais

72COSTA, J.F., 1989 (Centro de Atenção Psicossocial-CAPS, São Paulo). Comunicação pessoal.

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diversos. A cada dia da semana existia uma programação de atividades

nas quais poderia participar: expressão corporal, jornal, jardinagem,

passeio, esportes, vídeo etc. Além disso, o próprio usuário podia propor e

organizar uma nova atividade, como, por exemplo, campeonato de

pingue-pongue, buraco, xadrez etc. De acordo com suas necessidades,

podia participar das seguintes modalidades terapêuticas com enquadre

fixo (dia, hora, número de participantes, terapeuta, etc.): atendimento

individual, grupo terapêutico verbal, grupo de terapia ocupacional,

atendimento familiar nuclear e acompanhamento medicamentoso. Além

disso, foram instituídos ateliês com monitores especializados de cerâmica,

teatro, música e marcenaria. Com isso, ampliávamos e diversificávamos

as possibilidades de intervenção e invenção terapêutica, criando

condições para favorecer que o usuário pudesse, ao seu modo e a seu

tempo, descobrir, construir algum sentido, seu sentido, sua verdade.

Nos anos de 1989 e 199073, novas avaliações do trabalho

foram realizadas e, como resultado de um amplo e longo processo de

discussão interna, houve uma nova reorganização do cotidiano

institucional: houve uma reorganização gerencial e administrativa interna

(ao menos até o ponto que tínhamos alguma autonomia), mudou-se a

natureza das atividades até então desenvolvidas, novas propostas de

trabalho foram elaboradas e incorporadas.

73 Goldbeg,1998 detalha muito bem esse processo, relatando a trajetória de diversos usuários, nos diferentes momentos, e as questões que se apresentavam a nós. Além

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Goldberg (1998) salienta algumas pistas que orientaram

o constante redimensionamento do projeto:

1. Um projeto, como o do CAPS, que pretendia acompanhar

o cotidiano de pessoas com problemas mentais graves e

investia na possibilidade de mudar a perspectiva de vida

dessas pessoas, deveria também avalizar continuamente sua

proposta terapêutica, segundo as necessidades nascidas

dessa prática junto aos pacientes;

2. Mudanças no projeto ocorreriam mediante discussão em

fóruns internos instituídos, quando um ou mais profissionais

detectassem a insuficiência do modelo vigente para atender às

necessidades dos usuários;

3. O aparecimento de problemas no ambiente da instituição

como agressões, violência, ausência significativa de usuários

no dia-a-dia, clima tenso entre usuários ou recaídas freqüentes

deveriam ser tomados como sintomas de algum transtorno na

dinâmica do modelo;

4. Discussões sobre o desempenho geral do trabalho na

instituição deveriam ocorrer periodicamente, mesmo quando

nenhuma intercorrência fosse registrada. (Ibid., p.54)

Após diversas experiências e discussões, optamos por

uma organização institucional do trabalho, relativamente simples: uma

disso, ele o faz com a propriedade de quem sempre foi a grande liderança desse

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diretoria técnica, três núcleos (terapêutico intensivo, projetos especiais e

ensino e pesquisa), uma seção administrativa (posteriormente também

um núcleo) e um conselho consultivo da diretoria, formado pelos

coordenadores dos núcleos e da administração. Atualmente, a

organização do trabalho do CAPS é constituída por:

Núcleo Terapêutico ou Núcleo Terapêutico Intensivo - É o

núcleo original, a partir do qual foram realizadas as modificações e

ampliações da proposta de trabalho. Constitui-se das atividades de

intervenção que descrevemos. Objetiva, fundamentalmente, o

atendimento ao usuário, em crise ou não, que necessite de uma atenção

intensiva, entendida não só pelo tempo de permanência na instituição,

mas, principalmente, pela diversidade de atividades oferecidas e pelos

diferentes campos de atuação. A estrutura é operada por uma equipe

que tem sua prática sustentada por uma trama de conceitos de uma

diversidade teórica enriquecedora.

Núcleo de Ensino e Pesquisa - Constitui-se na

organização, viabilização e operacionalização do programa de

aprimoramento para profissionais das áreas de enfermagem, psicologia e

terapia ocupacional, através do financiamento da Fundação do

Desenvolvimento Administrativo (FUNDAP); da supervisão de estágios de

cursos de graduação; da realização de investigação científica de interesse

para área; e da documentação da produção teórica-científica

trabalho, ao longo de todos esses anos.

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desenvolvida no CAPS. A partir de 1996, esse núcleo foi

consideravelmente ampliado, com a celebração de um convênio, criando

o Projeto de Integração Docente-Assistencial (PIDA) entre a Secretaria de

Estado da Saúde e a Universidade de São Paulo, envolvendo de um lado

o CAPS e o Ambulatório de Saúde Mental Centro e, de outro, os

Departamentos de Medicina Preventiva, da Faculdade de Medicina; de

Enfermagem Materno-Infantil e Psiquiátrica da Escola de Enfermagem e o

Curso de Terapia Ocupacional.

Núcleo de Projetos Especiais - É o núcleo que mais se

desenvolveu com a criação da Associação Franco Basaglia, de que

trataremos logo mais. É a partir das demandas apresentadas pelos

usuários que começamos a elaborar estratégias para ampliação dos

vínculos, das relações, da capacidade contratual dos usuários.

Núcleo administrativo - É responsável pela organização

administrativa do CAPS e do apoio logístico para a viabilização das

atividades assistenciais.

É o Núcleo onde se observa grande expansão e uma

necessária agilidade e competência técnico-administrativa no

fluxo burocrático ampliado em conseqüência do Convênio e da

absorção dos recursos humanos e clientela do Ambulatório

Centro. (Silva, 1997, p.51)

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Essa organização possibilitou uma melhor definição do

papel gerencial e administrativo, estabelecendo um fluxo de

encaminhamento para aqueles problemas diários que acometem toda a

instituição e que acabavam por interferir e sugar os esforços de todos da

equipe: o cano estourado, a comida atrasada, a cota de passes para

ônibus que não veio, controle de freqüência dos funcionários, compra de

materiais, manutenção da limpeza da casa, providenciar o indispensável

cafezinho etc. Os profissionais da equipe (técnicos ou não técnicos)

podiam dedicar seu tempo aos cuidados dos usuários. Para evitar uma

fragmentação do trabalho em função desse desenho organizacional,

instituímos diversas reuniões, cujo objetivo maior era criar espaços de

discussão e deliberação coletiva sobre o processo de construção

cotidiana do CAPS: reunião geral mensal (com todos os profissionais da

casa), reuniões semanais por núcleos, reuniões semanais do conselho

consultivo, reuniões semanais da equipe técnica, reuniões semanais da

equipe de apoio.

Acrescente-se a essas reuniões, acima mencionadas, a

reunião geral que realizávamos semanalmente com os usuários.

Importante espaço de discussão coletiva, para lá convergiam e de lá

saíam muitas das questões e dos temas que seriam discutidos nas outras

reuniões. A reunião geral era um termômetro das relações institucionais.

Os temas muitas vezes eram reflexo de dificuldades, indecisões ou

inseguranças da própria equipe, como o exemplo da porta que já citamos.

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Talvez não fosse muito dizer que era uma espécie de epicentro da rotina

da casa. Praticamente todas as questões relacionadas a essa rotina

eram lá debatidas e decididas coletivamente: problemas com a

manutenção da limpeza da casa, queixa freqüente do pessoal de apoio da

manutenção que, uma vez explicitada na reunião, comprometeu a todos

em zelar e manter a higiene da casa; propostas de atividades eram

sugeridas e apresentadas; os usuários e funcionários novos que

ingressavam na casa eram lá apresentados a todos; as saídas também

eram lá comunicadas e trabalhadas; as férias eram comunicadas; festas

eram sugeridas e discutidas; enfim, a rotina da casa passava

necessariamente por um processo de discussão coletiva, que envolvia a

todos da casa: usuários, profissionais técnicos, profissionais de apoio e

estagiários. A fala de cada um era valorizada, considerada e discutida por

todos. Havia um solidário esforço em incorporar e acolher mesmo as

falas mais desconexas, de difícil compreensão ou aquelas mais

exageradamente extravagantes. Estavam todos convidados, quase que

convocados, a serem sujeitos participantes, ativos e implicados no

processo de construção cotidiana do CAPS.

A reunião geral propiciou, entre outros aspectos, uma

mudança na natureza das atividades desenvolvidas, que deixaram de ser

objeto de discussão apenas técnica e passaram a se orientar pela

discussão nesse espaço coletivo. Detalhes do cotidiano, como lavar ou

consertar uma roupa, cuidar do cabelo e da aparência, sair para passear

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nos finais de semana, acabaram por se transformar em discussões e em

projetos. A perspectiva ética e técnica que nos colocávamos valorizava

os detalhes da rotina. Nosso fazer cotidiano tinha-os como critério de

avaliação constante.

Como exemplo dessa atenção ao detalhe, ao cuidado

cotidiano, relatamos fragmento de um texto que apresentamos em um dos

eventos do CAPS.

Dona (chamemos assim) Coralina, chega um dia na sala onde

ocorre a 'aula de argila'. Começa a bater, amassar e a moldar o

barro até que, de suas mãos, surge a figura de uma menina

com um vasto chapéu. Ao trabalhar os detalhes da figura,

começa a contar a estória da menina. Uma menina

camponesa. O chapéu a protegia do sol enquanto trabalhava

na terra. Conta do patrão, da casa da fazenda, da plantação de

café, dos bois, das vacas, das coisas do interior. Pega outro

pedaço de argila, começa a bater. Lembra-se das barrancas do

rio onde ela, menina, misturava, batia e moldava o barro

enquanto seus pés descansavam na água. De repente fica em

silêncio, mexendo no barro até que começa a delinear uma

nova forma, um cálix bento. Retoma a estória falando agora de

religiosidade, da igrejinha e seus santos, da água benta. Sua

fala é cantada. Como Cora Coralina quando recitava seus

poemas. Suas palavras são simples, diretas e, talvez por isso,

líricas (...) Nem sempre Dona Coralina vai ao ateliê de

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cerâmica. No mais das vezes fica deitada no banco do jardim.

Mas, quando vai, existe sempre a possibilidade da poesia.

Daquele instante único que nos surpreende e ficamos como

que paralisados e, ao mesmo tempo, sentido que algo se

movimenta em nós. Algo que 'vem de forma assim tão

caudalosa'74. (Yasui, 1990, p.4)

Apesar do tom, talvez excessivamente poético e nada

científico do texto acima, o que gostaríamos de salientar é uma posição

desarmada de pré-julgamentos e preconceitos teóricos e uma constante

disponibilidade em perceber e acolher o inédito, o inusitado, o imprevisto,

o incomum. Matérias delicadas que formam a possibilidade da criação.

Dona Coralina ficava praticamente o dia todo deitada no banco do jardim.

Elizabeth Araújo Lima, terapeuta ocupacional que também trabalhava no

CAPS, fazendo referência ao texto acima, comenta que a usuária

parece presa a uma existência atemporal e a uma ausência de

sentido; está paralisada. Podemos pensar que, se há uma

parada de processo um estado-de-clínica (...) foi instalado; está

bloqueada a possibilidade de acontecimentos e a vida perdeu

seu caráter de processualidade e estagnou . Mas é no ateliê de

argila que Dona Coralina, ao criar formas e fazer poesia, deixa

passar reminiscências e marcas que imprimem no hoje uma

74Referência à música Iolanda de Pablo Milanês com versão de Chico Buarque, freqüentemente solicitada pelos usuários no grupo de música que coordenava.

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novidade: a fala, a forma, o encontro, o olhar do outro que,

tocado, a olha de outro lugar. (Araújo Lima, 1997, p.85)

É dessa possibilidade criativa de encontro, que íamos

construindo o nosso cotidiano. E, ao construí-lo, criávamos novas

possibilidades de compreensão da loucura; novas perspectivas de olhar

para aquilo que não faz sentido. Nós nos afetávamos com os detalhes

que nos faziam refletir constantemente sobre a prática que estávamos a

concretizar, e sobre os conceitos e princípios que as norteavam.

Retomando o texto de Amarante (1999) que citamos no

início deste capítulo, o CAPS configurava-se como uma unidade que

produzia uma transformação no campo teórico-conceitual, que se refletia

imediatamente na construção de uma inovadora experiência no campo

técnico-assistencial ao se propor um trabalho que privilegiava o encontro,

o cotidiano, o detalhe das relações como critérios de uma clínica geradora

de possibilidades.

5.4. Ampliando a clínica: trabalho, moradia, lazer

A gente não quer só comida A gente quer comida, diversão e arte ...

A gente quer saída para qualquer parte... A gente não quer só comer

A gente quer comer, quer fazer amor ... A gente quer prazer para aliviar a dor

A gente não quer só dinheiro A gente quer dinheiro e felicidade...

A gente quer inteiro e não pela metade... Desejo, necessidade, vontade

Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Britto

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O processo constante de reavaliação e mudança que

realizávamos foi-nos apontando, já em 1988, um importante limite ao

trabalho desenvolvido até então. Vários usuários nos interpelavam,

insatisfeitos em participar daquela rotina de atividades e demandando

necessidades de outra ordem. Ana Luiza Aranha e Silva, enfermeira do

CAPS, apresenta as questões mais freqüentes:

�Quando vou receber alta e vou poder trabalhar?' 'Como faço

para o patrão não perceber que me trato com psiquiatra?' 'Por

que sou demitido quando tenho uma crise?' 'Por que não

consigo fazer como vocês e trabalhar todos os dias?' (...)

Observa-se que o usuário de serviço de saúde mental que tem

demanda por trabalho necessita de um suporte diferenciado

para poder desenvolver a contento suas atividades mas, em

geral, tem dificuldade para encontrar condições postas

socialmente para esse fim, o que resulta numa situação viciosa

de impossibilidade que leva à impossibilidade e assim

sucessivamente. (Silva, 1997, p.11)

Entre 1988 e 1989, tornou-se uma das prioridades do

CAPS encontrar dispositivos que pudessem dar conta daquela demanda.

Não se podia tratá-la apenas como uma solicitação de um emprego, mas

tomá-la em sua complexidade que envolvia questões de diversas ordens.

A primeira era evitar a todo custo tomar o trabalho na perspectiva que

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tradicionalmente se tem utilizado no campo da assistência psiquiátrica,

seja como dispositivo de Tratamento Moral com características punitivas,

tal como no raiar da psiquiatria, ou vinculado a conceitos e concepções

que o transformam em um dispositivo de adaptação social, tal como

propõem as Ciências do Comportamento75: comportamentos aprendidos e

reforçados, que transformam o trabalho em ações mecânicas e sem

sentido. Uma segunda questão tratava de repensar criticamente o

trabalho dentro de uma perspectiva social, ou seja, dentro do modo de

produção capitalista, como gerador de valor econômico e social. Nesse

sentido, uma terceira questão que se colocava era a de criar dispositivos

que possibilitassem a construção de um processo de produção material,

em que valores como solidariedade, acolhimento, tolerância, estivessem

presentes como produto das relações estabelecidas nesse processo.

Silva, utilizando-se de Saraceno, irá definir o trabalho

como um dos instrumentos de intervenção do processo de

trabalho em saúde mental que busca a ampliação do nível de

contratualidade sociais do usuário e para isso alinha-se como

uma perspectiva de superação da tradição psiquiátrica. (Ibid.,

p.46).

75 Para detalhamento dessa discussão, recomendo trabalho acima citado e BENNETON, 1991.

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Essa definição irá partir de uma conceituação de

reabilitação76 psicossocial, que é entendida por Saraceno como

uma estratégia global, política e afetiva que engloba todas as

áreas das relações sociais do usuário individual e familiar,

inclusive e particularmente o que se refere ao seu estatuto

jurídico de incapaz. (apud Silva,1997, p.47)

Ainda com Saraceno (1996), a reabilitação psicossocial,

por ser uma estratégia global, é uma necessidade e uma exigência ética

que "deve pertencer a um grupo de profissionais que tem como prioridade

a abordagem ética do problema da saúde mental" (Saraceno, 1996, p.13).

Deve ser entendida como um processo de reconstrução, de um exercício

pleno da cidadania e de plena contratualidade nos três grandes cenários:

habitat, rede social e trabalho como valor social. O autor destaca os vários

cenários onde a reabilitação psicossocial pode se dar; no trabalho, na

casa, na ida ao supermercado. São os vários cenários da produção da

sociedade, nos quais todos nos colocamos com maior ou menor poder de

contratualidade nas relações:

É dentro destes cenários que temos o desenrolar das

cenas, das histórias, dos efeitos de todos os elementos:

dinheiro, afetos, poderes, símbolos, etc. Cada um com seu

poder de aquisição neste mundo onde, às vezes, somos mais

76 Conceito também polêmico e marcado na tradição psiquiátrica com um valor de adaptação e controle social, mas que aqui é tomado na perspectiva que os autores citados apontam: a de uma superação da tradição psiquiátrica.

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hábeis ou menos hábeis, mais habilitados ou menos

habilitados. E há, também, a 'desabilidade' por falta de poder

contratual. (...) Muitos pacientes têm um nível de

contratualidade no seu espaço habitacional que tende a zero,

ou porque não tem casa e isso é um marco ou porque têm casa

e sua casa é um marco, ou porque têm uma capacidade de

produção social muito baixa, muito limitada, e então perdem no

nível da contratualidade. Essa é a grande troca afetiva e

material do ser humano: a habilidade do indivíduo em efetuar

suas trocas. (Saraceno, 1996, pp.15-16)

Nesse sentido, o CAPS começou a elaborar estratégias

que visavam a ampliar esse poder de contratualidade, incentivar as

possibilidades de trocas afetivas e materiais. A demanda apresentada

pelos pacientes por trabalho revelava apenas uma dimensão da tarefa

que tínhamos a construir. Existiam outras tantas demandas que, embora

não formuladas de maneira tão clara, estavam presentes, enunciadas

para ouvidos e olhos mais atentos, e que poderíamos sintetizar como

sendo demandas por moradia e lazer. Relações familiares extremamente

tensas e complexas, ou a falta mesmo de um lugar com condições

mínimas, levavam muitos usuários a pleitearem permanecer no CAPS,

mesmo encerrado o período. Alguns chegavam a pular o muro do CAPS e

dormir na varanda da casa. Isso levou a equipe a discutir várias vezes a

necessidade de se instituir um turno integral de funcionamento,

dificultado, entre outros, por questões administrativas, e a discutir uma

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proposta de moradia para alguns usuários. Por outro lado, em diversas

reuniões gerais os usuários solicitavam da equipe e uns aos outros

companhia para passeios ou programas aos fins-de-semana. Queixavam-

se de não terem onde ir, nem com quem, e de que passavam a maior

parte do tempo dormindo. Ao longo da semana, quando compareciam ao

CAPS, era comum vê-los saindo para tomar chá em um restaurante de

comida vegetariana, ou freqüentarem a biblioteca da Federação das

Indústrias de São Paulo (FIESP), ou irem a um show no Museu de Arte de

São Paulo (MASP), ou irem passear pelo parque do Trianon77. Esse

movimento tinha, necessariamente, o CAPS como ponto de referência.

Partiam e para lá voltavam. E essa era uma das reivindicações dos

usuários, que o CAPS ficasse aberto aos fins-de-semana com atividades

de lazer, ou como uma possibilidade de referência, o que afinal acabou

acontecendo. Mesmo fechado, servia como ponto de encontro entre os

usuários que aos domingos iam, por exemplo, ao cinema.

Trabalho, moradia, lazer e cultura. Desafios para os quais

a equipe do CAPS tinha desejos, idéias, projetos, mas a burocracia

institucional da administração pública não possuía a capacidade de nos

oferecer de maneira ágil e rápida instrumentos para viabilizar muitos

daqueles projetos. Por outro lado, carecíamos de um dispositivo que

pudesse incorporar uma outra demanda que também surgia: os familiares,

77 A região onde o CAPS se localiza, praticamente na Av. Paulista, concentra muitos locais que oferecem uma grande variedade de possibilidades de diversão e cultura:

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que se dispunham a participar mais ativamente do cotidiano da casa, não

apenas comparecendo aos atendimentos, mas contribuindo de alguma

outra forma78.

A alternativa para responder, ou procurar responder

aqueles desafios, era instituir um dispositivo no interior da rede social que

pudesse congregar e articular de forma mais ágil os vários projetos e

que, ao mesmo tempo, transcendesse os limites das propostas técnicas e

fosse mais orgânica e mais ampla na sua composição e na capacidade

de criação. Ou seja, um dispositivo que, criado a partir do CAPS, o

superasse e se tornasse uma força autônoma com a importância de uma

organização social, com a ativa participação não só de usuários e seus

familiares, mas de todos os que lutam e se interessam pela questão da

transformação da assistência e da cultura.

Nesse sentido, em abril de 1989, foi fundada a

Associação Franco Basaglia, organização não-governamental, portanto

com identidade jurídica própria, que aglutina usuários, familiares e

profissionais dos serviços de saúde mental, estudantes e, como

afirmamos acima, qualquer outra pessoa interessada na questão da

cinemas, teatros, restaurantes, museus, galerias de arte, oferecendo desde programações gratuitas até as mais sofisticadas e caras. 78 Houve uma greve na saúde, em 1990, que contou com a adesão dos trabalhadores do CAPS. Realizamos uma reunião com os usuários e seus familiares, para explicar os motivos da greve e discutir como seria a rotina com a greve. Para nossa surpresa, os familiares tomaram a iniciativa de assumirem a tarefa de organizar atividades ao longo da semana. A cada dia, um grupo de familiares ficava responsável por propor e executar alguma atividade, como passeio, ida ao cinema, passar o dia na escola de natação de um deles etc.

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saúde mental. Ao longo desses anos, a Associação tem conseguido

desenvolver diversos projetos de caráter científico, cultural e de

sociabilidade, boa parte deles em parceira com o CAPS, através do

Núcleo de Projetos Especiais, outros tantos de forma autônoma, e tem

angariado adesões e simpatias de diversos setores da sociedade,

servindo de exemplo a outras instituições que foram se constituindo e

conquistando representatividade junto aos dispositivos criados pela

Reforma Psiquiátrica, como por exemplo, o fato de um dos representantes

dos familiares no Conselho Nacional da Reforma Psiquiátrica ser da

Associação Franco Basaglia.

A criação da Associação Franco Basaglia, ao possibilitar a

concretização de uma série de projetos, implementou o processo de

reestruturação do CAPS que descrevemos na seção anterior e

desenvolveu, especialmente, o Núcleo de Projetos Especiais.

A interface entre CAPS, Associação Franco Basaglia e

Núcleo Terapêutico, Núcleo dos Projetos Especiais foi sendo construída

em um clima de intensas discussões. Os profissionais que operavam

aqueles dispositivos eram os mesmos, o que causava situações por

vezes confusas, por vezes conflitantes. A constante tematização das

demandas, a busca por encontrar soluções e dispositivos que pudessem

ampliar o campo de intervenção, levou a equipe a um processo, que já

descrevemos, de amadurecimento teórico das noções e conceitos que

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permeavam aquelas ações. Dessa forma, os limites e contornos entre as

distintas instâncias do CAPS foram sendo desenhados pelo mão do

tempo, pelos gestos da prática, pela cotidiana reflexão.

A primeira atividade desenvolvida pelo Núcleo de Projetos

Especiais foi o Projeto Trabalho, que teve início com a Copiadora,

seguido da Marcenaria79 e do Sabor Paulista.

Os setores de trabalho vêm estruturando e modificando a

forma de sua operacionalização no decorrer dos anos com

autonomia e não existe um modelo de gerenciamento

financeiro e organizacional de referência. Cada setor se auto-

gerencia (produção, distribuição do produto, forma de

remuneração e organização do usuário-trabalhador no posto

que ocupa dentro do setor) e tem a Associação Franco

Basaglia como referência para administrar o recurso financeiro

angariado, nos setores ou na iniciativa privada, que o repassa

ao usuário-trabalhador sob a forma de remuneração por horas

trabalhadas. Por isso prevalece o entendimento de que cada

setor de trabalho deve contar com uma coordenação que

funcione como um elemento organizador e estruturante e que

cada setor individualmente, desenvolva sua própria fórmula e

mecanismos de viabilização econômica. (Silva, 1997, p.60)

79 Sobre o trabalho na Copiadora e uma melhor descrição dos outros projetos desenvolvidos, vide SILVA, 1997. Maiores detalhes e uma análise do trabalho desenvolvido pela Marcenaria, vide MOTTA, 1997.

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O projeto Copiadora consiste de uma atividade de

reprodução de cópias através de uma máquina, inicialmente para uso

interno, e posteriormente para a clientela externa. A Marcenaria presta

serviços de manufaturas em madeira e possui uma linha de produção

própria de brinquedos educativos e caixas para ludoterapia. O Sabor

Paulista passou por várias fases mas, sinteticamente, podemos afirmar

que se trata de um espaço para a produção e comercialização de

produtos alimentícios, de refeições a lanches.

Além das atividades acima citadas, atualmente existem

mais os seguintes setores: lava-carros, que atende à clientela interna do

CAPS, com perspectiva de ampliação; projeto mensageiro, que se trata

da contratação de um usuário-trabalhador pela Associação, para a

realização de trabalhos externos como mensageiro; lojinha, responsável

pela comercialização de produtos doados ou adquiridos, com um

funcionamento semelhante a um brechó; cesta de sanduíches, que faz da

comercialização interna da produção do Sabor Paulista.

Uma descrição detalhada de cada um dos setores do

Projeto Trabalho, um olhar mais atento aos detalhes cotidianos do

processo de elaboração, discussão, construção e execução,

demonstrariam a complexidade e o alcance de cada um deles, mas

extrapolam os limites do trabalho que aqui apresentamos. Mas vale

salientar, novamente, que cada uma dessas ações nasceu a partir da

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percepção de necessidades ou da demanda explícita dos usuários e

concretizou-se após um longo processo de discussão coletiva.

O Núcleo de Projetos Especiais conta ainda, com os

seguintes dispositivos: grupo de projetos, espaço destinado aos usuários

encaminhados ao CAPS que buscam inserção no Projeto Trabalho, com o

objetivo de produzir reflexões e discussões sobre o tema trabalho, e

desenvolver projetos pontuais e particularizados; núcleo familiar, espaço

destinado aos familiares dos usuários para discussões, reflexões e

acolhimento; Clube do Basaglia, que se trata de um dispositivo criado em

1996, que busca uma estratégia global de inclusão e participação de

todos os interessados em discutir a temática da saúde mental,

promovendo atividades sociais e culturais, festas, cursos, encontro de

familiares etc.; projeto moradia, que existe como proposta desde 89, foi

possível concretizá-la somente em 1997, com a celebração do Convênio

PIDA, constitui-se de uma casa alugada, onde atualmente alguns

usuários residem nela, sob a orientação de um profissional da equipe. O

Núcleo contou com os seguintes dispositivos: projeto acompanhantes

terapêuticos, durou apenas um ano, e se tratava da capacitação de

estudantes e recém-formados, através de um curso de acompanhantes

terapêuticos; oficinas culturais, projeto que se desenvolveu durante quatro

anos (90/94), resultado de uma parceria da Associação Franco Basaglia,

CAPS e Secretaria da Cultura, com a contratação de especialistas em

artes (artesanato, cerâmica, música, pintura etc.) para o desenvolvimento

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de oficinas de artes com duração limitada, com o objetivo de atender uma

determinada parcela de usuário que demandava mais um espaço para

aprendizado e convivência do que propriamente a inserção no Projeto

Trabalho.

Múltiplas ações de intervenção terapêutica; espaços

coletivos de decisão institucional; invenção de estratégias para o trabalho,

o lazer, a moradia; invenção de estratégias e dispositivos para incorporar

a participação de familiares e de outros setores da sociedade e para

repercutir e difundir valores, noções, conceitos, novos paradigmas sobre a

loucura, sobre o drama do humano; criação/invenção de estratégias e de

dispositivos para ampliar a capacidade contratual social de cada um dos

nossos usuários. São algumas características de uma instituição

complexa que conjuga cotidianamente verbos como: acolher, escutar,

olhar, cuidar, incluir, inventar, ousar. Verbos conjugados por uma equipe

sempre atenta a um acontecer qualquer, ao detalhe, a algo que possa

construir/reconstruir um caminho, uma trajetória, uma história.

5.5. CAPS: um exemplo isolado

O CAPS é uma unidade da Secretaria de Estado da

Saúde e, portanto, está submetido à política que aquela implementa ou

não. No projeto original, o CAPS Prof. Luiz da Rocha Cerqueira deveria

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ser o primeiro de uma rede. A Secretaria de Estado da Saúde constituiu

apenas mais o CAPS Perdizes, resultado da transformação do

Ambulatório de Saúde Mental das Perdizes e do empenho dos

profissionais daquela unidade, e o Centro de Atenção Psicossocial de

Pirituba, resultado da transformação do Hospital Psiquiátrico do Pinel em

um complexo assistencial. Após oito anos de governo PMDB e quatro de

governo PSDB, mais nenhum CAPS foi constituído por aquela Secretaria.

Como atenuante do último governo, pode-se afirmar que o processo de

municipalização já estava consolidado, sendo portanto maior a

responsabilidade dos municípios na implantação de novos equipamentos.

Durante o governo Quércia e, principalmente, durante o governo Fleury, o

CAPS enfrentou mais dificuldades e encontrou mais obstáculos do que

apoio. Consolidado como um projeto importante e tendo o

reconhecimento de diversos segmentos, o CAPS surge em vários textos

oficiais como um exemplo a ser seguido e implantado em todo o Estado.

Vale ressaltar o que ocorreu com a política de saúde

mental naqueles anos. Várias equipes de saúde mental, que haviam sido

implantadas no governo Montoro, acabaram por transformar-se em

equipes maiores, muitas vezes com a contratação realizada pelas

prefeituras e se transformaram em ambulatórios de saúde mental de

atendimento regional, muito em função do aumento da demanda de

atendimento que acabavam por gerar. Geralmente se instalavam em

casas alugadas pelas próprias prefeituras. Com a aceleração do processo

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de municipalização, que se iniciou pelas unidades básicas de saúde, o

que acabou ocorrendo foi um desinvestimento do poder público estadual

naqueles equipamentos que deveriam estar, mesmo no processo de

municipalização, ainda sob a sua responsabilidade, por se tratar de um

equipamento de atenção secundária e de caráter regional. Os problemas

eram de diversas ordens: as equipes não conseguiam completar-se;

profissionais que saíam não eram repostos; a manutenção dos locais e

equipamentos era precária, sendo transferidos para as prefeituras muitas

vezes em péssimas condições; a reposição dos medicamentos era

descontínua, quando não inexistente. Dessa maneira, muitos municípios

acabaram por assumir gradativamente toda a responsabilidade dos

ambulatórios, da manutenção dos prédios, da contratação de

profissionais, tendo de manter o atendimento regional, o que, de fato

acabava também não ocorrendo. Essa é uma realidade que se repete em

muitos ambulatórios espalhados pelas cidades do interior do Estado: a

responsabilidade do governo estadual foi empurrada para os municípios,

que tiveram de responder pelo atendimento regional. Estes, como

arcavam com a quase totalidade dos custos, acabaram por fechar ou

dificultar o acesso dos pacientes dos outros municípios, que ficaram sem

atendimento. Ou seja, a política de saúde mental implementada pelos

governos Quércia e Fleury foi desinvestir nos equipamentos, provocando

a desassistência.

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Isso não significa dizer que não concordamos com o

processo de municipalização, ou que o Estado tenha, necessariamente,

de manter essas unidades. O que queremos apontar é a falta de

sensibilidade do poder público estadual daquelas gestões que, apesar de

manter o CAPS, não investiam nele e tampouco em outras áreas. Pelo

contrário, afastavam-se e repassavam a responsabilidade pela assistência

aos municípios em uma parceria desigual e injusta. A sensação que se

tinha à época era a de que, sem coragem ou competência para destruir o

trabalho do CAPS, a estratégia era a de manter um determinado controle

pelo manejo dos parcos recursos a ele destinado.

Comparando-se com o projeto de Santos80, o CAPS

sofreu as conseqüências da falta de apoio e de uma articulação política.

Enquanto a experiência santista era respaldada por um projeto político-

social, que a inseria em um plano articulado de ações que não se

esgotavam na saúde, embora tivesse nela um importante e fundamental

eixo, o CAPS sustentava-se apenas na capacidade que a equipe tinha de

criar e articular ações de sobrevivência.

Assim, o projeto CAPS, tido como uma instituição

exemplar, princípio de uma extensa rede, acabou por se transformar,

praticamente, em unidade única da Secretaria de Estado da Saúde.

Embora a equipe tenha sido convidada a expor e debater o trabalho

80 A política de saúde mental do Município de Santos, no governo do PT, está bem descrita em Nicácio (1994). Vale destacar que os NAPS (Núcleos de Atenção

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desenvolvido em várias cidades do Estado e do país, foram poucas e

raras as vezes que aquela Secretaria de Estado demonstrou interesse em

estabelecer com o CAPS uma interlocução, em termos de política de

saúde. Éramos exibidos e reconhecidos como exemplo da política de

Saúde Mental do Estado e, ao mesmo tempo, excluídos das discussões

sobre a mesma política.

Ainda hoje, o projeto mais importante em saúde mental

implantado pela Secretaria de Estado da Saúde foi e continua sendo o

CAPS Prof. Luiz da Rocha Cerqueira. Menos pelo interesse institucional e

muito mais pela dedicação e pelo incansável esforço de sua equipe.

Transformado agora em um complexo Programa de

Integração Docente Assistencial, talvez o seu poder contratual e a sua

capacidade de articulação aumente, com o apoio da universidade. Mas,

ao mesmo tempo, permanecem os mesmos riscos apontados no texto de

89. Os riscos de se cristalizar as relações, ficar preso a um lugar de

fascínio diante de sua própria competência. Lugar símbolo, profissionais

símbolos, pacientes símbolos. É preciso estar sempre atento e forte, para

o risco de mudar e permanecer o mesmo. Torcemos para que os

profissionais que fazem hoje aquele cotidiano continuem a retirar desse

mesmo cotidiano o alimento que nutre esse organismo vivo, que é o

CAPS .

Psicossocial) funcionavam em período integral, como parte de uma complexa rede de dispositivos institucionais sustentada por uma efetiva política de saúde.

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5.6. Retomando as questões...

O que acabamos de descrever demonstra que o trabalho

desenvolvido pelo CAPS abrange as múltiplas áreas; saúde, educação,

trabalho, moradia, lazer e cultura. Ou seja, abrange as mais importantes

áreas do humano, dentro de uma perspectiva de transformação, no

cotidiano, das relações sociais, operando com conceitos, valores e

noções como cidadania, solidariedade, inclusão, acolhimento,

participação, e outros mais.

... a vida cotidiana é a vida do homem inteiro; ou seja, o

homem participa na vida cotidiana como todos os aspectos de

sua individualidade, de sua personalidade. Nela, colocam-se

'em funcionamento' todos os seus sentidos, todas as suas

capacidades intelectuais, suas habilidades manipulativas, seus

sentimento, idéias, ideologias. (Heller, 1989, p.17)

Goldberg (1998), descrevendo e analisando uma grande

diversidade de casos, irá salientar a importância do cotidiano,

ressaltando-o e reconhecendo-o como instância terapêutica, a partir da

qual o trabalho do CAPS foi-se estruturando:

É preciso, portanto - se queremos reconhecer e

trabalhar com o cotidiano desses pacientes - abordá-lo como

instância construtiva, cuja estrutura de repetição não cessa de

organizar mundos de vida, ou de permitir a eles a superação

contínua de estados drásticos de dilaceração do aparelho

psíquico. Mas cumpre observar desde já que, ao

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reconhecermos o cotidiano como instância simbólica de

reconstrução contínua para o paciente, não poderíamos reduzi-

lo a uma espécie de pano de fundo da doença, servindo-nos

dele para aferir resultados de estratégias de tratamento. Ainda

que uma das contribuições secundárias na consideração do

cotidiano possa ser esta, não se pode obliterar que o interesse

principal da estratégia terapêutica não é propriamente

investigá-lo como 'meio' conduzindo a certos 'resultados' pré-

fixados, mas conhecê-lo e talvez ampliá-lo como único espaço

simbólico que de fato resta a esses pacientes, afluindo além

disso como uma interface expressiva que lhes permite

resgatar-se culturalmente. (Goldberg, 1998, p.133)

A invenção permanente da instituição, dentro de novos

paradigmas, coloca o CAPS como exemplaridade do processo de

transformação apontado pelo Movimento da Reforma Psiquiátrica, no

campo teórico e técnico, institucional, jurídico e cultural. Ultrapassando

limites conceituais do seu projeto original, o trabalho foi se transformando

a partir do encontro cotidiano com o drama do existir humano, implicando

a equipe em uma perspectiva ética de alinhamento com o usuário. Foi

ampliando seu campo de atuação, a partir da criação de dispositivos de

incorporação de usuários e familiares e do estabelecimento de alianças

com outros setores sociais.

A vida cotidiana não está 'fora' da história, mas no 'centro'

do acontecer histórico: é a verdadeira 'essência' da substância

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social. ... As grandes ações não cotidianas que são contadas

nos livros de história partem da vida cotidiana e a ela retornam.

Toda grande façanha histórica concreta torna-se particular e

histórica precisamente graças a seu posterior efeito na

cotidianidade. O que assimila a cotidianidade de sua época

assimila, também, com isso, o passado da humanidade,

embora tal assimilação possa não ser consciente, mas apenas

'em-si'. (Heller, 1989, p.20)

Nesse sentido, é também a exemplaridade de uma

instituição que produz, em sua prática cotidiana, ações na construção de

um bloco histórico alternativo. Ou seja, realiza concretamente estratégias

do processo de contra-hegemonia, alinhando-se na mesma perspectiva

dos Movimentos Sociais que lutam pelo processo de transformação da

sociedade.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Gente olha pro céu, gente quer saber o um Gente é o lugar de se perguntar o um

Das estrelas se perguntarem se tantas são ... Gente é muito bom gente deve ser bom

Tem de se cuidar de se respeitar o bom ... Gente viva brilhando estrelas da noite

Gente quer comer gente quer ser feliz

Gente quer respirar ar pelo nariz Não meu nego não traia nunca essa força não

Essa força que mora em seu coração Gente lavando roupa amassando o pão

Gente pobre arrancando a vida com a mão No coração da mata gente quer prosseguir

Quer durar quer crescer quer luzir Gente é para brilhar não prá morrer de fome ...

Gente espelho de estrelas reflexo do esplendor... Gente espelho da vida doce mistério

Vida doce mistério Caetano Veloso

Destacamos, no capítulo anterior, a relevância do

cotidiano na construção da prática do CAPS. É o eixo em torno do qual a

instituição foi sendo constituída, modificada, transformada. É nele que o

drama da existência dos nossos usuários se desenvolve, que ocorrem os

encontros e desencontros, as aproximações e despedidas. É nele que

concretizamos a nossas ações, refletimos, mudamos, criamos,

inventamos.

Foram de singelos e persistentes passos que o CAPS foi

realizando sua grande marcha. Diariamente, no encontro com os

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usuários, na reunião geral, nos corredores, nos atendimentos, éramos

submetidos a diversos momentos que exigiam decisões, escolhas. Aceitar

ou não um convite para um café com o usuário, no bar da esquina, podia

envolver uma multiplicidade de alternativas e implicações que faria a

diferença entre uma prática comprometida com a tradição psiquiátrica ou

psicanalítica ortodoxa, e uma prática que se pretendia construir

comprometida eticamente com o usuário. Eram gestos cotidianos que nos

faziam refletir sobre o nosso compromisso ético. Sair com o usuário,

deixá-lo pagar o café e receber dele um forte abraço dizendo que aquilo o

tinha feito ficar muito feliz, pois se sentia capaz de poder realizar algo

para nós, deixava-nos com a certeza de, ainda que sem saber muito bem

o porquê, estarmos caminhando na direção certa. Com uma certa

sensação de que algo se transformava.

Os Movimentos Sociais dos anos setenta, em sua grande

maioria, nasceram das necessidades de sobrevivência cotidianas:

transporte, moradia, saneamento básico, saúde. Foram se transformando

em temas que possibilitaram a criação de uma identificação e o

reconhecimento de interesses coletivos comuns. Na conversa com os

vizinhos, nas discussões no salão paroquial da igreja, em encontros

espontâneos nos lugares públicos, foi sendo constituído um Movimento

pautado por reivindicações vinculadas às condições de vida,

especialmente da vida urbana. Foi no cotidiano dos bairros das periferias

das grandes cidades que a organização coletiva possibilitou o surgimento

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na cena política de novos sujeitos históricos que foram se afirmando como

essenciais interlocutores no processo de reconstrução da cidadania.

Em tempos autoritários, as condições cotidianas de vida

surgiram como campo de luta, que possibilitaram a conquista de espaços

políticos para a manifestação, articulação, reivindicação e exigências de

direitos frente ao Estado, solidificando, na sociedade civil, a noção de

participação e ação coletivas, acelerando a transição democrática.

No contexto desses movimentos, um grupo de

intelectuais, no cotidiano da vida universitária, iniciou um movimento pela

transformação das condições de saúde da população, que por seu valor

intrínseco constituiu-se em um movimento contra-hegemônico na

construção de um bloco histórico alternativo ao dominante. Teixeira &

Mendonça (1995) destacam três direcionamentos básicos das estratégias

de luta pela Reforma Sanitária: a politização da questão da saúde,

visando a aprofundar e difundir uma nova consciência sanitária; a

alteração da norma legal necessária à criação do sistema único universal

de saúde, a mudança do arcabouço e das práticas institucionais sob a

orientação dos princípios democráticos.

Nascido também a partir de uma mobilização de

intelectuais, no cotidiano de suas práticas institucionais e nas

universidades, o Movimento da Reforma Psiquiátrica buscou, como

destacamos no capítulo anterior, produzir transformações nos campos

teórico e técnico assistencial, jurídico-político e sociocultural. Desde seu

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início, nos anos setenta, o Movimento da Reforma Psiquiátrica

apresentou-se com um temário de caráter social e estabeleceu

estratégias para ampliar os limites de sua atuação, para além dos muros

dos asilos e das universidades. Em um constante processo dialético entre

teoria e ação, foram sendo criados novos paradigmas e novas práticas

institucionais (NAPS/CAPS por exemplo), que acabaram por influenciar e

inspirar mudanças na estrutura normativa das ações de saúde (as

portarias do Ministério da Saúde). Embora uma lei nacional ainda não

esteja aprovada, a existência de diversas leis estaduais e municipais de

Reforma Psiquiátrica aprovadas e outras tantas em tramitação, demonstra

um processo em evolução de mudança do aparato jurídico em torno da

saúde mental. Finalmente, o Movimento da Luta Antimanicomial, hoje a

face mais ativa do Movimento da Reforma Psiquiátrica, tem-se

caracterizado mais claramente como um Movimento Social que congrega

diversos setores da sociedade, tais como: associações de usuários e

familiares, conselhos de profissionais, sindicatos, centrais sindicais,

parlamentares, e outros mais, formando um amplo leque de alianças e

parcerias.

Desse modo, podemos concluir que existem diversos

pontos em comum entre o Movimento Sanitário e o Movimento da

Reforma Psiquiátrica. Ambos nasceram de corporações intelectuais, a

partir de uma perspectiva das classes trabalhadoras, e estabeleceram

estratégias de alianças com setores da sociedade, buscando ampliar e

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incorporar esses setores à sua luta. Em decisivos momentos históricos,

participaram ativamente das lutas sociais, alinhando-se sempre na

perspectiva da transformação da sociedade. Conquistaram espaços no

interior do aparelho estatal, produzindo modificações na estrutura

burocrático-institucional, tornando-a um instrumento, necessário mas

ainda insuficiente, para a transformação das condições de saúde da

população.

Enquanto o Movimento Sanitário optou por investir

prioritariamente na estratégia de ocupação estatal, o Movimento da

Reforma Psiquiátrica, ao contrário, superando os limites de um movimento

específico animado por intelectuais, foi ampliando suas alianças,

atualizando e renovando a sua luta. Amarante (1999) afirma que o

Movimento da Reforma Psiquiátrica radicaliza os princípios da Reforma

Sanitária descritos por Nelson Rodrigues dos Santos: inclusão,

solidariedade, cidadania.

Esses princípios são concretizados pela prática de

centenas de profissionais, nos diversos locais e instituições inventadas ou

transformadas; pelo trabalho de centenas de pessoas nas dezenas de

entidades nascidas a partir da mobilização proporcionada pelo Movimento

da Reforma Psiquiátrica; pelos dispositivos de trabalho criados pelas

unidades; pelos encontros com a loucura; pela possibilidade de

reconstrução da vida cotidiana de cada usuário.

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Em tempos de globalização econômica, radicalização da

dependência internacional, o neo-liberalismo aponta para um Estado

Mínimo que, por um lado, abandona os investimentos nas áreas sociais

e, por outro, amplia e refina dispositivos de manutenção do poder

econômico, através de políticas de exclusão e controle. Há cada vez mais

concentração de renda, mais injustiça social, mais desemprego e menos

manifestações populares de protesto, menos articulações de oposição. É

comum ouvir-se a frase: -�É melhor ganhar pouco do que não ganhar

nada�. Sindicatos negociam redução de salários, em troca de estabilidade

de emprego. Capturada pela lógica econômica neo-liberal, a solidariedade

cede terreno ao individualismo. Cinismo e violência ganham destaque e

relevância. Há menos cultura popular e mais narcisismo em tempos

sombrios. Parece que nada há para além do jardim da globalização neo-

liberal.

Individualização excessiva, letargia, fascínio pelo banal

apresentado como espetáculo, a-historização do cotidiano, são alguns

dos elementos que se apresentam para a produção de nossas

subjetividades de final de milênio: desagregadas e isoladas, facilmente

controláveis e, no mais das vezes, ávidas por se incluírem no restrito e

inacessível grupo dos privilegiados.

É nesse cenário que os Movimentos Sociais, e dentre eles

o Movimento da Reforma Psiquiátrica, encontram seu grande desafio: o

de produzir e inventar espaços de encontro para a problematização do

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cotidiano, para a formulação de novas questões; espaços para produção

de rupturas, para radicalização das contradições; espaços para

apropriação da vida.

Forjar alianças, exercer a solidariedade, articular forças.

Há um grande caminho a ser construído. Há um mundo a ser

transformado.

Para que toda gente, louca ou não, brilhe e seja feliz.

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Page 243: 80284108 a Construcao Da Reforma Psiquiatrica e Seu Contexto Historico Silvio Yassui

243

ANEXO

Alguns números para pensar...

A seguir, apresentamos alguns dados referentes aos

equipamentos extra-hospitalares de saúde mental81.

Quadro 01 - Distribuição dos recursos orçamentários da Coordenadoria de Saúde Mental da Secretaria de Estado da Saúde

Setores % dos gastos 1983 % dos gastos 1984

% dos gastos 1985

Hosp. Próprios 54% 55% 51%

Hosp. Conveniados 38% 36% 38%

Div. de Ambulatórios 05% 06% 07%

Sede 03% 03% 04%

Total 100% 100% 100%

Fonte CSM - SES

O quadro acima demonstra que houve, entre 1983 e 1985,

uma redução de 3% dos gastos com internações psiquiátricas e um

aumento de 2% nos gastos com a rede extra-hospitalar. É importante

81 Utilizou-se como fonte o texto de TOLEDO FERRAZ, M.P. Prioridades em saúde mental , in Arquivos da CSM-SP, vol. XLIV, n.º Único, pp 11/17, jan a dez, 1984 ; dados da secretaria de Estado da Saúde; Datasus do Ministério da Saúde.

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244

frisar que no período descrito a maioria dos leitos psiquiátricos do Estado

de São Paulo eram conveniados com a Secretaria de Estado da Saúde.

Quadro 02 - Implantação da Ações de Saúde Mental. Comparação entre os anos de 1983, 1985 e 1997

1983 1985 1997*

Centro Saúde

Amb. Centro Saúde

Amb. Centro

Saúde

Amb. CAPS

NAPS

G. S. Paulo 19 11 46 21 136 31 15

Interior 27 07 60 07 182 47 34

Total 46 18 106 28 318 78 49

Fonte CSM e CSI * dados preliminares e parciais de serviços implantados

O quadro acima demonstra que, no período de 1983 e

1985, houve um aumento de 230% no número de equipes de saúde

mental nos centros de saúde e de 64% no número de ambulatórios de

saúde mental.

Comparando-se o ano de 1985 com os dados preliminares

de 1997, temos um aumento de 300% em equipes de saúde mental nos

Centros de Saúde e um aumento de 278% no número de ambulatórios de

saúde mental.

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245

Se somarmos os equipamentos extra-hospitalares, teremos

um aumento total, de 1983 a 1985, de 142%. De 1985 para 1997, um

aumento de 332%.

Podemos afirmar que, em 1997, há três vezes mais

unidades extra-hospitalares do que em 1985 e sete vezes mais do que

em 1983.

Quadro 03 - Comparação entre o número total de internações e o número de leitos no Est. de São Paulo, no período de 1992 a 1998.

1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998

n.º total de Internações

136.710 134.130 145.126 140.794 127.088 123.852 118.036

n.º total de leitos

33.698 31.837 30.807 27.397 25.457 23.166 22.645

Fonte: DATASUS - Ministério da Saúde

O quadro n.º 03 acima e o gráfico n.º 01 abaixo

demonstram que no período de 1992 a 1998 o número de leitos

psiquiátricos no Est. de São Paulo caiu de 33.698 para 22.645, ou seja,

uma redução de 32,8%.

Vale ressaltar que, no período de 1994 a 1998, coincide

com a avaliação de todos os hospitais psiquiátricos do Estado para o

enquadramento na Psiquiatria IV.

Entretanto, o número de internações reduziu-se apenas em

13,6 % no mesmo período. Observa-se que foi somente a partir de 1996

que o total de internações de fato começa a reduzir-se.

Page 246: 80284108 a Construcao Da Reforma Psiquiatrica e Seu Contexto Historico Silvio Yassui

246

Fonte DATASUS - Ministério da Saúde

Embora hoje a rede de assistência em saúde mental conte

com mais equipamentos extra-hospitalares, com menos leitos

psiquiátricos, o número de internações continua alto.

O Movimento da Reforma Psiquiátrica está apenas

começando sua tarefa, sua longa jornada.

Gáfico nº 01 - Comparativo entre internações e leitos psiquiátricos no Estado de São Paulo.

0

20.000

40.000

60.000

80.000

100.000

120.000

140.000

160.000

1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998

n.º total de Internaçõesn.º total de leitos

Page 247: 80284108 a Construcao Da Reforma Psiquiatrica e Seu Contexto Historico Silvio Yassui

247

YASUI, S. A construção da reforma psiquiátrica e o seu contexto histórico. Assis, 1999. 248 p. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Assis, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho".

RESUMO

O objetivo do presente trabalho é o de contribuir para a discussão e a

consolidação da transformação da assistência em saúde mental. A partir

de conceitos inspirados em Gramsci, pretende-se compor o cenário

político e social em que o Movimento da Reforma Psiquiátrica foi sendo

construído, desde os anos setenta até os anos noventa, estabelecendo

relações e paralelos com os Movimentos Sociais e com o Movimento da

Reforma Sanitária. Neste processo de construção cotidiana, destacam-se

os paradigmas e as rupturas que o Movimento da Reforma Psiquiátrica foi

produzindo em diversos campos: teórico, assistencial, jurídico, político e

sociocultural, o que possibilita caracterizá-lo como um Movimento Social

contra-hegemônico. Como exemplaridade desse processo, analisa-se o

Centro de Atenção Psicossocial Luiz da Rocha Cerqueira de São Paulo.

Palavras-chaves: Saúde mental; atenção psicossocial; história da

psiquiatria; reforma sanitária.

Page 248: 80284108 a Construcao Da Reforma Psiquiatrica e Seu Contexto Historico Silvio Yassui

248

YASUI, S. The build of the Psychiatric Reform and its description context. Assis, 1999. 248 p. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Assis, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho".

ABSTRACT

The aim of this present work is to contribute for the discussion and

consolidation of the assistance transformation in mental health. From

some concepts inspired in Gramsci, we intend to build a political and

social scene in which the Movement of Psychiatric Reform was being built

since the seventies until nineties, stablishing relations and parallels with

the Social Movement and with the Movement of Sanitary Reform. In the

process of daily construction are detached the paradigms and the ruptures

that the Movement of Psychiatric Reform was producing in several fields:

theorical, assistencial, judicial, political and social-cultural, which makes

possible to characterize it as a contra-hegemonic Social Moviment. As an

example of this process we analyze Luiz da Rocha Cerqueira

Psychosocial Care Center in São Paulo.

Keywords: Mental health; psychosocial care; psyhiatric history; sanytary

reform.