80284108 a Construcao Da Reforma Psiquiatrica e Seu Contexto Historico Silvio Yassui
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SILVIO YASUI
A CONSTRUÇÃO DA REFORMA
PSIQUIÁTRICA E O SEU CONTEXTO
HISTÓRICO
Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras
da Universidade Estadual Paulista �Júlio de Mesquita
Filho�, Campus de Assis, para a obtenção do título de
mestre em Psicologia.
Orientador: Profª. Drª. Claudete Ribeiro
ASSIS
1999
SILVIO YASUI
A CONSTRUÇÃO DA REFORMA PSIQUIÁTRICA E O SEU CONTEXTO HISTÓRICO
COMISSÃO JULGADORA
DISSERTAÇÃO PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE
Orientador _________________________________________
2º Examinador ______________________________________
3º Examinador ______________________________________
Assis, de de 1999
À Heloisa, por tudo, e
à memória de Koh Yasui
Agradecimentos
Este trabalho foi escrito a muitas mãos. Mãos que não
teclaram no computador, mas que estavam por trás das palavras, frases,
idéias e, principalmente, na emoção de poder ver este texto finalmente
terminado. E, nos nomes que enuncio abaixo, vai o agradecimento e o
reconhecimento a todos que colaboraram com este trabalho, direta ou
indiretamente;
à Claudete Ribeiro pela paciência em acompanhar este
orientando;
ao Prof. Dr. Abílio da Costa Rosa e ao Prof. Dr. Paulo
Amarante, por suas valiosas sugestões e contribuições;
à Prof. Cristina Amélia Luzio, pela amizade sempre
presente e pelas contribuições a este trabalho;
ao Prof. José Sterza Justo, pelo constante apoio e
incentivo;
aos colegas do Departamento de Psicologia Clínica da
UNESP-Assis;
aos colegas de trabalho da DIR VIII de Assis,
especialmente à diretora, Márcia Ale Deperon, por sua compreensão e
apoio;
aos colegas de trabalho da UNISAM de Penápolis, com
quem muito aprendi;
aos articuladores de saúde mental da CSI, que me
proporcionaram um inestimável aprendizado nos encontros com outras
cidades e realidades;
aos meus alunos da UNESP - Assis, com quem estabeleço
estimulantes e gratificantes diálogos;
a todos os meus inesquecíveis amigos e companheiros de
trabalho do Centro de Atenção Psicossocial Luiz da Rocha Cerqueira
(CAPS): Adalberto, Ana Luiza, Annete, Arnaldo, Cristina, Denise, Jonas,
Mirian, Regina, Sandra, Sérgio, Silvia, Videira (in memoriam), Cida,
Nerse, Elienai, Eduardo (in memoriam) Fátima, Hionar, Irene, Maria do
Carmo, Maria Emilia, Nice, Odete, Tiana, e a todos os diversos estagiários
FUNDAP;
à Dra. Ana Pitta pelo apoio e incentivo;
ao Geraldo, da Associação Franco Basaglia;
ao Jairo Idel Goldberg, em especial;
à Sylvia Fernandes e à Beth Araújo Lima, pela amizade
fraternal de todas as horas;
ao Zé Leon, fraterno amigo desde os tempos da
adolescência, quando apenas sonhávamos;
aos usuários do CAPS, que me deram grandes lições;
aos inúmeros fraternos amigos que tenho encontrado pela
vida, apesar dos tantos desencontros;
aos que irão chegar...
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 9
CAPÍTULO I
MOVIMENTOS SOCIAIS, REFORMA SANITÁRIA E REFORMA PSIQUIÁTRICA: CONSTRUINDO A CONTRA-HEGEMONIA 17
1.1. Os Movimentos Sociais .......................................................................................17
1.2. Movimento Sanitário e Reforma Sanitária...........................................................22
1.3. Conceitos para articular a Reforma Psiquiátrica: redemocratização, saúde, hegemonia, bloco histórico e intelectuais......................25
1.4. Apresentando algumas questões... .....................................................................36
CAPITULO II
OS ANOS SETENTA - REBELDES EM ANOS DE CHUMBO 39
2.1. O Cenário: Abertura lenta e gradual e os Movimentos Sociais.........................39
2.2. Semeando a Reforma Psiquiátrica .....................................................................48 2.2.1. Assistência em saúde mental; do público ao privado, mas sempre no hospital psiquiátrico ...............................................................................................49 2.2.2. Documentos, intenções e poucos gestos: sementes da Reforma Psiquiátrica .............................................................................................................53
2.3. O final dos anos setenta: germinam as sementes, brota o Movimento da Reforma Psiquiátrica ..................................................................................................65
2.4. Retomando as questões... ...................................................................................71
CAPITULO III
OS ANOS OITENTA - CONQUISTANDO ESPAÇOS E CONSTRUINDO NOVAS PRÁTICAS 76
3.1. O Cenário: Redemocratização e a reconquista da cidadania...........................76
3.2. Construindo a Reforma Psiquiátrica ...................................................................86
3.3. Um pouco de São Paulo: das Ações Integradas de Saúde à Plenária de Trabalhadores de Saúde Mental. ................................................................................92
3.3.1. A Sorbonne..................................................................................................93 3.3.2. As Ações Integradas de Saúde.....................................................................94 3.3.3. O Juqueri .....................................................................................................100 3.3.4. Plenária dos Trabalhadores de Saúde Mental ...........................................103
3.4. Por uma sociedade sem manicômios: nasce o Movimento da Luta Antimanicomial. ................................................................................................106
3.5. Retomando as questões... .................................................................................119
CAPÍTULO IV
OS ANOS NOVENTA - LUTANDO CONTRA O NEO-LIBERALISMO 123
4.1. O Cenário: os anos noventa - O desafio de avançar no contexto da política neo-liberal..................................................................................................................123
4.2. Movimento Sanitário: institucionalizando a Reforma Sanitária .......................131
4.3. Institucionalizar a Reforma Psiquiátrica e desinstitucionalizar o Movimento141 4.3.1. A institucionalização da Reforma Psiquiátrica ..........................................142 4.3.2. De volta às origens.....................................................................................152
4.4 - Apresentando os novos paradigmas ...............................................................165
4.5. Retomando as questões.... ................................................................................174
CAPÍTULO V
CONSTRUINDO NOVOS PARADIGMAS: O CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL PROF. LUIZ DA ROCHA CERQUEIRA (CAPS) 182
5.1. O contexto e o início ..........................................................................................184
5.2. Buscando uma identidade .................................................................................188
5.3. Mudando, transformando a partir dos detalhes do cotidiano..........................195
5.4. Ampliando a clínica: trabalho, moradia, lazer...................................................204
5.5. CAPS: um exemplo isolado ...............................................................................215
5.6. Retomando as questões... .................................................................................220
CONSIDERAÇÕES FINAIS 223
BIBLIOGRAFIA 230
ANEXO 243
RESUMO 247
ABSTRACT 248
9
INTRODUÇÃO A prática profissional e o tempo histórico
Certa ocasião, em um curso ministrado no Brasil, um
pesquisador italiano fez um comentário provocativo sobre como os latino-
americanos iniciam seus relatórios científicos, para desespero da
objetividade anglo-saxônica; geralmente com �Desde 1800 as lutas
contra...� ou �Historicamente determinado, desde 1500...� etc. Séculos de
colonização e com uma economia de grande dependência, talvez nos
marquem ainda no lugar de colônia e, portanto, sentimos a necessidade
de reafirmar constantemente que temos uma história feita de lutas contra
a opressão e de atos heróicos. Uma história que não termina e que,
talvez, precisamos nos apropriar do fato de que a construímos.
Para não fugir a essa regra, este trabalho falará também
sobre a história. A história de uma assistência psiquiátrica que tinha (e
ainda tem) na internação compulsória no hospício seu único projeto
terapêutico, e de como esta foi (e ainda está) se transformando,
especialmente nos últimos anos, com a invenção de novas instituições e
de novas modalidades de atenção e de como essas coisas da história
influenciaram essas invenções.
10
O autor é, também, um dos atores dessa história recente.
De 1983 a 1987, trabalhando no Hospital Psiquiátrico do Juqueri, em um
projeto que visava a oferecer uma condição de vida mais digna e humana
para os pacientes, através da constituição de unidades denominadas
Lares Abrigados, pudemos ver e sentir de perto como a prática da
internação vai destruindo vidas. Milhares de pessoas viveram e vivem no
Juqueri, assim como nos demais hospitais psiquiátricos, no mais das
vezes, sem qualquer justificativa psiquiátrica, relevante ou não, para
estarem internadas. Estão condenadas à exclusão perpétua, ao ócio e ao
abandono. À época, cunhamos um termo, que hoje se tornou de uso
comum nos hospitais psiquiátricos: chamávamos os pacientes dos Lares
Abrigados de moradores, exatamente para descaracterizar sua condição
de internados, na tentativa de instituir um novo estatuto, não mais
paciente submetido às normas e regras hospitalares, mas morador,
construindo o seu espaço de habitação, reconstruindo a sua cidadania.
Em 1987, questões políticas institucionais nos
afastaram do projeto e do Juqueri. Saímos do asilo e fomos trabalhar na
assistência extra-hospitalar, no primeiro Centro de Atenção Psicossocial
(CAPS) da rede pública: o CAPS Prof. Luiz da Rocha Cerqueira,
considerado, por vários setores ligados à área de saúde, como exemplo
de tratamento de pacientes com graves distúrbios psíquicos. Da
desconstrução do manicômio, a tarefa que nos propúnhamos no Juqueri,
para a construção de uma verdadeira assistência ao paciente, era tratar o
11
intenso sofrimento psíquico, construir uma nova prática, um novo modo
de atenção.
Em 1989, publicamos um texto em que
descrevíamos, na forma de um depoimento pessoal, o trabalho
desenvolvido no CAPS, com suas dificuldades e potencialidades e o
momento histórico que possibilitou a sua emergência. Fatos como a
campanha das Diretas-Já e o surgimento do Movimento dos
Trabalhadores de Saúde Mental são citados como elementos importantes
para compreender em que contexto aquela prática foi construída.
Mudança, participação e cidadania não eram apenas palavras que nos
empolgavam, eram atos que nos faziam sentir, em todas as dimensões do
cotidiano, construtores da história� (Yasui, 1989, p.51). Com essas
palavras, tentávamos demonstrar o espírito com que trabalhávamos
àquela época.
É o espírito que norteia este trabalho. Tal qual um contador
de estórias que, resgatando retalhos e fragmentos do cotidiano, escreve
e reflete sobre sua prática, sobre seu tempo, e tem a pretensão de legar
às gerações porvir o registro de seu tempo histórico. Falando a partir do
pequeno quintal de nossa prática, temos o desejo e a vontade de falar
sobre o mundo e de contar como, a partir de pequenos gestos cotidianos,
podemos produzir grandes transformações.
12
Na segunda metade da década de setenta, em plena
vigência da ditadura militar, inúmeras pessoas reuniam-se para discutir
seus dramas e carências cotidianas: a falta de transporte urbano, o custo
de vida, a falta de habitação, saneamento básico, saúde, dentre outros.
Enfrentando as severas e autoritárias restrições da época, iniciaram
diversas manifestações de reivindicações. A partir das pontuais questões
cotidianas, essas manifestações transformaram-se em inúmeros
movimentos caracterizados, principalmente, por sua independência do
aparelho do Estado, e conquistaram espaço e repercussão apontando
para uma ruptura das antigas formas tuteladas de organização,
marcando a retomada dos chamados Movimentos Sociais.
Fortalecendo o poder de articulação da sociedade civil, os
Movimentos Sociais contribuíram de maneira decisiva no enfrentamento
político ao regime militar, acelerando o processo de redemocratização.
Era a gente da periferia das grandes cidades lutando para melhorar sua
condição de vida, ajudando a mudar o país.
Contaminados por esse momento histórico de articulação e
de confronto com a ditadura militar, trabalhadores que atuavam no interior
das instituições psiquiátricas, inconformados com aquele cotidiano de
violência e segregação, iniciaram ações de contestação, apoiados,
inclusive, por vários textos técnicos e documentos oficiais. Saltaram os
13
muros dos asilos, denunciando a face autoritária e controladora da ciência
psiquiátrica, aliando-se à luta contra o autoritarismo vigente na sociedade.
Foi no contexto de retomada dos movimentos sociais, a
partir, especialmente, do cotidiano das instituições, que começaram as
transformações da assistência psiquiátrica brasileira. Nomearemos esse
processo de construção de Movimento da Reforma Psiquiátrica, no
sentido de tentar contemplar seus diferentes momentos e seus diferentes
atores, a exemplo da nomeação dada à Reforma Sanitária.
O campo da saúde mental é um campo político por
excelência, sensível e suscetível ao jogo de forças do poder que se
estabelece na sociedade. Nesse sentido, o Movimento da Reforma
Psiquiátrica radicaliza o sentido da palavra movimento: irá modificar-se,
transformar-se, estabelecer alianças, atualizar permanentemente seus
temas, em consonância com o seu tempo histórico. É a gente
trabalhadora lutando para transformar a assistência em saúde mental,
querendo, também, transformar o país.
E esse é o tema de interesse desta pesquisa. Tendo como
objetivo contribuir para a discussão e a consolidação da transformação da
assistência em saúde mental, pretende-se, a partir de conceitos que
analisam a Reforma Sanitária, compor o cenário político e social em que
o Movimento da Reforma Psiquiátrica foi sendo construído, de seu início
nos anos setenta até os anos noventa, caracterizando-o como um
14
movimento social contra-hegemônico. Inicialmente impulsionado por
intelectuais e por trabalhadores de saúde mental, o Movimento da
Reforma Psiquiátrica foi construindo paradigmas e produzindo rupturas
em diversos campos, ampliando e estabelecendo alianças com outros
segmentos da sociedade civil, principalmente organizações populares
como as associações de usuários e pacientes. Como exemplaridade
desse Movimento e dos novos paradigmas que apresenta, analisaremos
o CAPS Luiz da Rocha Cerqueira.
Vale frisar que, embora a designação Reforma Psiquiátrica
possua limitações que não correspondem ao processo que efetivamente
vem ocorrendo, muito mais dinâmico, abrangente e transformador,
optamos por utilizá-lo por seu uso consagrado. O Movimento da Reforma
Psiquiátrica caracteriza-se como um movimento, amplo constituído por
diversos personagens e por outros movimentos que tiveram (e ainda têm)
sua importância em determinados momentos históricos, ora aparecendo
como atores principais, ora como coadjuvantes, ora como um movimento
coeso, ora como um movimento com cisões: Rede Alternativa à
Psiquiatria, Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental,
Coordenadores de Saúde Mental, Plenária de Trabalhadores de Saúde
Mental, Movimento da Luta Antimanicomial. Mais recentemente, com o
seu fortalecimento e sua estreita ligação com outros segmentos sociais, o
Movimento da Luta Antimanicomial tem sido a expressão mais visível do
15
processo de transformação psiquiátrica brasileiro, caracterizando-se como
um Movimento Social.
No Capítulo I, apresentamos uma análise efetuada por
alguns autores, destacando o trabalho de Escorel (1989) que, utilizando-
se de referenciais teóricos de Gramsci, discute a saúde a partir de uma
perspectiva de articulação e promoção de processos de transformação
social, levados a cabo pelo Movimento Sanitário. Ao final, apresentamos
algumas questões que nortearam o presente trabalho, no sentido de
aplicar a mesma análise ao Movimento da Reforma Psiquiátrica.
No Capítulo II, apresentamos o cenário político e
econômico que serviram como pano de fundo ao nascimento dos
Movimentos Sociais, na década de setenta, anos marcados pela
resistência e enfrentamento ao regime militar. Através de documentos
oficiais, apresentamos os primeiros passos e gestos do Movimento da
Reforma Psiquiátrica.
No Capítulo III, apresentamos o cenário político do final do
período de transição democrática, marcado por uma grande mobilização
nacional, a Campanha das Diretas-Já, e pela Constituinte. Descrevemos
o processo de ampliação e fortalecimento do Movimento da Reforma
Psiquiátrica, que conquistará espaços no aparato estatal e,
principalmente, através dos novos dispositivos institucionais sustentados
por uma prática eticamente comprometida com a causa dos
16
trabalhadores, iniciará uma transformação na assistência em saúde
mental, estabelecendo alianças com outros setores da sociedade,
especialmente com as Associações de Familiares e Usuários.
No Capítulo IV, descrevemos o cenário que perdura até os
dias atuais: o da implantação do modelo econômico neo-liberal. É dentro
desse contexto que analisamos o processo de institucionalização do
Movimento da Reforma Sanitária e do Movimentos da Reforma
Psiquiátrica, que conquistaram grandes espaços no interior do Estado.
Enquanto o primeiro se distanciou das questões cotidianas da assistência,
o segundo encontrou, através do Movimento da Luta Antimanicomial, um
importante dispositivo para, sem abandonar a estratégia de ocupação do
aparelho estatal, ampliar seu campo de atuação e manter-se
permanentemente atualizado com o cotidiano da assistência.
Apresentamos, também, os principais paradigmas construídos pelo
Movimento da Reforma Psiquiátrica.
No Capítulo V, como exemplaridade do processo da
Reforma Psiquiátrica, apresentamos o trabalho desenvolvido pelo Centro
de Atenção Psicossocial Prof. Luiz da Rocha Cerqueira, de São Paulo. No
cotidiano daquela instituição, no processo de sua construção, as questões
foram surgindo e os paradigmas foram sendo construídos .
17
CAPÍTULO I
MOVIMENTOS SOCIAIS, REFORMA SANITÁRIA E REFORMA PSIQUIÁTRICA: CONSTRUINDO A CONTRA-HEGEMONIA
Vem, vamos embora que esperar não é saber, Quem sabe faz a hora, não espera acontecer
Geraldo Vandré
O Movimento da Reforma Psiquiátrica teve sua origem
nos anos setenta e fortaleceu-se a partir dos anos oitenta. Inserido em
um movimento mais amplo, o do Movimento Sanitário, desenvolveu-se
em um determinado contexto histórico: o processo de redemocratização
do país.
Esse processo teve início na segunda metade dos anos
setenta, com a chamada Abertura Lenta e Gradual e foi impulsionado,
principalmente, por um marcante fenômeno urbano daqueles anos: a
retomada dos Movimentos Sociais.
1.1. Os Movimentos Sociais
Foi em um cenário de crise econômica e de legitimação
política (que trataremos em capítulo posterior) que começaram a surgir
diversas manifestações nas grandes metrópoles, tais como: ações
espontâneas de revolta contra as condições de transporte urbano;
manifestações contra a carestia, organizadas a partir das Associações de
18
Moradores de Bairro; passeatas estudantis reivindicando liberdades
democráticas e marcando o renascimento do Movimento Estudantil; e,
ao final dos anos setenta, surgiu o Movimento Operário do ABC1 paulista,
com marcantes diferenças em relação à tradição do sindicalismo
brasileiro, submetido e submisso à tutela do Estado.
Surpreendendo a todos, pois até então as análises
tendiam a interpretar a fábrica e o partido político como os lugares
exclusivos e privilegiados de manifestações da classe operária, esses
movimentos, pontuais em suas reivindicações, surgiram em um momento
histórico marcado pela opressão, em que os canais de manifestações
estavam emudecidos ou eliminados pelo regime autoritário. Apontaram
para um sentido e um alcance que ultrapassou o imediato e o local, para
mobilizar e articular, como experiência compartilhada, as várias
opressões vividas em locais diferenciados (Telles, 1987). Ou seja, era a
vivência comum da exclusão política e da segregação urbana
possibilitando a construção de identidades coletivas.
Ao exporem suas reivindicações, tornaram visíveis os
conflitos e as contradições sociais
tornavam, para usar uma expressão de Lefort, 'o social legível'
em seus acontecimentos, reconhecíveis pela denúncia nele
inscrita da opressão e da exclusão vividas naqueles anos,
1 Santo André, São Bernardo e São Caetano, cidades da Grande São Paulo, conhecidas por seu grande parque industrial.
19
reconhecível ainda nos sinais de uma sociedade que não havia
sido inteiramente submergida pela violência e pela coerção
estatal. (Ibid., p.61)
Esses movimentos tiveram, como característica,
reivindicações vinculadas às questões básicas de sobrevivência cotidiana.
A moradia e seu mundo de sociabilidades, o bairro e
seus 'pequenos' dramas cotidianos montados em torno das
condições imediatas de vida e em torno das chamadas
carências urbanas ganhavam uma nova visibilidade, armando o
cenário reconhecível que fazia aparecer os trabalhadores como
sujeitos de práticas, cujo sentido estava na possibilidade que
estas sugeriam de uma revitalização da sociedade contra a
institucionalidade vigente. (Ibid., p.62)
Na sociedade civil, articularam-se espaços de
experiências significativas e de construção de novos sujeitos, que
elaboraram práticas cotidianas de resistência, construíram laços de
solidariedade e projetos de vida, criaram códigos de reconhecimento e
identidade, teceram representações acerca do mundo. Assim, as
condições concretas de vida surgiram como campo de luta que
possibilitou o reconhecimento de interesses comuns, a noção de
participação, as ações e decisões coletivas e articularam um sentido
político aos espaços, afirmando reivindicações e exigências de direitos
frente ao Estado.
20
Dentro desse quadro, a reivindicação pelo Direito à Saúde
tornou-se uma das mais importantes.
Segundo Luz (1979), o período de 68-74 pode ser
caracterizado como "sete anos de vacas gordas para economia e sete
anos de vacas magras para a saúde" (Ibid., p.72). Os altos índices de
mortalidade infantil2, a epidemia de meningite no ano de 1974, a
inexistência de equipamentos de saúde nas áreas da periferia das
cidades, eram exemplos das precárias condições da saúde pública, que
se caracterizava por um perfil médico-assistencial privado com gerência
estatal, comandado e coordenado pela Previdência Social. O complexo
setor médico-empresarial, prestador de serviços e produtor de insumos,
articulado com a burocracia previdenciária, eram os responsáveis pela
execução da política de saúde, tendo como uma das conseqüências um
predomínio da assistência médico-hospitalar privada em detrimento das
ações de natureza médico-sanitária.
Esse predomínio determinou uma baixa efetividade da
política social de saúde, criando um sistema com uma dinâmica perversa,
gerando profundas desigualdades na apropriação dos serviços de saúde
e provocando manifestações dos setores excluídos, nas grandes
metrópoles, e mais especificamente, na Grande São Paulo (Jacobi, 1989).
2 IYDA, 1993, p.97, citando ORTIZ, mostra que a taxa de mortalidade infantil foi: de 72,58 em 1965; de 83,19 em 1970; de 84,63 em 1975. Como comparação, países industrializados (EUA, Japão, Canadá, Inglaterra etc.) apresentam taxas menores do que 3,0. Esse índice refere-se ao número de crianças mortas por mil nascidas vivas.
21
Para Jacobi (Ibid.), que analisa os Movimentos Sociais a
partir dos Movimentos Populares pelo saneamento básico e pela saúde
dos bairros periféricos da região metropolitana de São Paulo,
um dos aspectos mais relevantes dos movimentos
reivindicatórios urbanos tem sido o de cristalizar o significado
da cidadania não só em termos de conquistas materiais mas,
principalmente, na constituição de uma identidade que
gradualmente vai quebrando a consciência fragmentária que
lhes é imposta pelas heranças do regime político autoritário e
pela situação de subalternidade de seus agentes. No processo
de interação com os órgãos públicos, as suas demandas
configuram a emergência de uma identidade social específica e
localizada no bairro, que faz deles sujeitos que reivindicam
direitos, numa perspectiva de apropriação igualitária de bens
de consumo coletivo e de cidadania ou de melhores condições
de vida nas cidades. (Ibid., p.159).
É dentro desse panorama, em que os Movimentos Sociais
surgiram como legítimos interlocutores de reivindicações abrindo a
possibilidade de um projeto social de reconquista dos direitos e de
reconstrução democrática que, em meados da década de setenta, vamos
encontrar o início do Movimento Sanitário, tendo a democratização da
saúde como uma de suas bandeiras de luta e como parte de uma
estratégia maior de democratização da sociedade.
22
1.2. Movimento Sanitário e Reforma Sanitária
O Movimento Sanitário organizou-se, originalmente, a
partir da universidade, especialmente nos Departamentos de Medicina
Preventiva que introduziram o método histórico-estrutural no campo da
saúde, buscando compreender processos como a determinação social da
doença e a organização social da prática médica. Para além de produzir
um novo saber, pretendiam produzir práticas alternativas ao modelo
dominante, individualista e altamente especializado, como os projetos de
medicina comunitária. E, em um projeto maior, articular conhecimentos
à busca de novas práticas políticas e à difusão de uma consciência
sanitária.
Foi a partir da segunda metade dos anos setenta que o
Movimento Sanitário, com a incorporação de organizações sindicais
médicas, imprimiu uma dimensão política às reivindicações pela
transformação do sistema de saúde. Em sua vertente político-ideológica
busca,
inspirado na experiência italiana, mecanismos capazes de
difundir uma nova consciência sanitária, ao mesmo tempo que
construir uma rede organizada e canalizadora das diferentes
manifestações de oposição à política de saúde. (Teixeira &
Mendonça, 1995, p.206)
23
Nesse sentido, a constituição do Centro Brasileiro de
Estudos da Saúde (CEBES), em 1976, surgiu não só como um
importante instrumento de difusão de uma nova proposta para a
organização do sistema de saúde inserida na luta mais geral pela
democratização do país, como também como um articulador de uma rede
de relações envolvendo intelectuais, setores da burocracia, lideranças
populares e sindicais e profissionais de saúde.
Ainda que sem um apoio consistente dos usuários, o
Movimento Sanitário seguiu uma estratégia de politizar as discussões
sobre a saúde, ocupar espaços políticos e de organizar uma coalizão de
forças da oposição em torno de um projeto técnico e político de reforma
do sistema de saúde, contendo diretrizes e princípios para a organização
de um sistema público, universal e integral de atenção à saúde, que foi
sendo construído ao longo dos anos de forma cada vez mais detalhada
e abrangente.
Nos anos oitenta, o Movimento Sanitário estava
organizado, articulado e era o único grupo capaz de apresentar uma
alternativa concreta de reforma do sistema de saúde que enfrentava uma
crise em seu modelo privatizante. Vários intelectuais do Movimento foram
convidados a exercer altos postos na Previdência Social, em meio a uma
profunda crise, também, daquela instituição. O eixo de luta pela mudança
deslocou-se de fora para dentro do aparelho estatal. O Movimento
24
conquistou, assim, uma importante arena política de confronto com
setores e segmentos mais privatizantes na definição da política de saúde.
O conjunto de propostas políticas e técnicas defendido
pelo Movimento Sanitário concretizou-se no que se denominou de
Reforma Sanitária.
O conceito de Reforma Sanitária refere-se a um
processo de transformação da norma legal e do aparelho
institucional que regulamenta e se responsabiliza pela proteção
à saúde dos cidadãos que corresponde a um efetivo
deslocamento do poder político em direção às camadas
populares, cuja expressão material concretiza-se na busca do
direito universal à saúde e na criação de um sistema único sob
a égide do Estado. (Teixeira & Mendonça, 1995, p.194)
Ao longo dos anos oitenta e nos anos noventa, a Reforma
Sanitária foi a grande responsável pela transformação do sistema de
saúde no país, tendo na consagração do preceito constitucional da
Saúde como direito de todos e dever de estado, uma de suas mais
importantes conquistas.
25
1.3. Conceitos para articular a Reforma Psiquiátrica: redemocratização, saúde, hegemonia, bloco histórico e intelectuais.
Hoje, passados mais de vinte anos, embora os
Movimentos Sociais tenham frustrado as expectativas de se constituírem
em um grande movimento de massa, que transformariam as relações
sociais, não há dúvidas de que contribuíram para fortalecer a sociedade
civil e implementar o processo de redemocratização.
A redemocratização trouxe uma nova correlação de forças
entre as classes dominantes e as classes subalternas, com o
fortalecimento da autonomia da sociedade civil. O revigoramento do
espaço público fez com que as instituições públicas e as políticas sociais
fossem, cada vez mais, objetos de constante tematização e as propostas
importantes sobre elas, de mudanças ou de manutenção, devessem ser
debatidas sob o marco de regras democráticas.
Para Gallo & Nascimento (1995), esse processo implicou
uma mudança de estratégia das classes dominantes que buscaram não
mais o domínio, utilizando-se da coerção, mas a direção da sociedade.
Esse processo de dirigir um bloco de forças em torno de propostas
consensuais, é o que Gramsci (apud Coutinho, 1981) denomina de
hegemonia, em contraposição à coerção.
Luz (1979) define o conceito de hegemonia como de um
poder político-ideológico que a classe dominante procura estender ao
26
conjunto da sociedade, à totalidade das classes e grupos sociais.
Ressalta do conceito uma interpretação dinâmica, vendo-o como um
processo de uma prática sempre recomeçada e de uma prática
contraditória, na medida em que institui como universal uma ordem que é
fundamentalmente particular. Ou seja, toma os interesses de uma classe
como os da sociedade.
O processo de hegemonia pressupõe uma longa luta de
persuasão na sociedade civil que, por seu caráter prolongado, foi
chamado por Gramsci de guerra de posição, podendo ser definida como
"a luta pela conquista da hegemonia da direção política ou do consenso"
(Coutinho, 1981, p.105).
Com o processo de redemocratização do país, a área de
saúde passou a sofrer as influências do fortalecimento do
movimento dos profissionais do setor, e da crescente
tematização da questão da saúde na sociedade em geral.
Vivemos atualmente, então, uma situação �sui generis�, em que
o Movimento Sanitário em suas diferentes variantes acumulou
êxitos, forçando reformas administrativas importantes, mas
encontra dificuldades em levar à prática a descentralização e a
unificação do Sistema de Saúde, ressentindo-se ainda de um
apoio mais constante tanto dos profissionais da área, como da
população organizada para a proposta de Reforma Sanitária.
(Gallo & Nascimento, 1995, pp.92-93)
27
Isso caracteriza, para os autores, o universo gramsciano:
uma guerra de posições,
onde atores a favor e contra a Reforma Sanitária defendem
seus ideários e entram em luta (de forma aberta ou velada),
nas mais diversas instâncias - no interior dos aparelhos das
instituições de saúde, junto às organizações da sociedade, no
Congresso e nas instituições dos profissionais do setor - , no
contexto de uma grave crise social e econômica. (Ibid., p.93)
Nesse sentido, a Reforma Sanitária, ainda que tenha
nascido como um projeto de intelectuais do setor, visou a atender às
necessidades das classes subalternas, contrapondo-se aos interesses
das empresas privadas do setor e implicando-a, necessariamente, no
quadro mais geral de luta de classes do país.
A luta pela Reforma Sanitária não pode deixar de andar
�pari e passu� com a luta por mudanças estruturais na
sociedade brasileira, o que eqüivale dizer que o Movimento
Sanitário, em seu projeto contra-hegemônico, tem
necessariamente de enfatizar o estreito vínculo entre saúde e
sociedade, e ligar-se às correntes políticas e organizações
sociais que de uma forma ou outra contestam a sociedade
instituída. (Ibid., p. 94)
A construção de um projeto contra-hegemônico, ou seja, a
construção de um projeto hegemônico das classes subalternas, implica a
28
formulação de propostas consensuais com poder político-ideológico que
sejam a expressão dessa classe.
Mas um setor específico da sociedade, como é o da
saúde, pode almejar propor-se como um projeto contra-hegemônico sem
configurar-se, ao contrário, como um projeto de características
corporativas dada a natureza do Movimento Sanitário?
Para responder a essa questão, nos fundamentaremos
em um texto de Escorel (1995) que, utilizando-se de conceitos de
Gramsci, analisa o Movimento Sanitário como uma proposta contra-
hegemônica na construção de um novo bloco histórico. Os conceitos
utilizados e construídos pela autora servirão para nos guiar na análise
que pretendemos realizar sobre o Movimento da Reforma Psiquiátrica.
Isso justifica o motivo pelo qual nos estenderemos nesse texto.
Para Escorel (Ibid.), a luta pela transformação da situação
de saúde da população brasileira é parte privilegiada da luta pela
transformação da sociedade. Considera que a arena de luta da saúde é
um campo de múltiplas interseções e relações com as demais esferas do
desenvolvimento das sociedades.
A autora avalia que, por seu valor universal e por ser
considerado como parte integrante das condições mínimas de
sobrevivência, a saúde é componente fundamental da democracia e da
cidadania. Cita Bobbio, ao entender essa primeira como democracia
29
substancial, ou seja, "indica um conjunto de fins e meios entre os quais
se sobressai a igualdade jurídica, social e econômica" (apud Escorel,
1995, p.182).
Retoma o conceito de saúde plena, definido na 8ª
Conferência Nacional de 1986, como
resultante das condições de alimentação, habitação, educação,
renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer,
liberdade, acesso e posse de terra e acesso aos serviços de
saúde. É assim, antes de tudo, resultado das formas de
organização social da produção, as quais podem gerar grandes
desigualdades nos níveis de vida. (Escorel, 1995, p.182)
Ao defini-la como resultante e condicionante desses
fatores, a luta pela transformação da saúde deve estar inserida em uma
luta global, pela transformação social.
Afirma que a saúde é uma explicitação das condições de
igualdade social, uma vez que é determinada por esse conjunto de
direitos.
A noção de direitos nos remete à definição de cidadania,
compreendida não só pela existência formal de direitos civis,
políticos e sociais, mas pela possibilidade efetiva de exercê-los.
(...) A igualdade social é portanto uma noção concreta sobre
um cotidiano onde a garantia de determinadas condições de
vida e sobrevivência permite (ou não) ao homem ser livre,
30
manifestar seu pensamento, organizar-se e lutar por aquilo que
lhe parece correto. [Trata-se da] ampliação da noção de
igualdade: de uma igualdade formal a uma igualdade na
apropriação da riqueza social. (Ibid., p.183)
A saúde é, assim, como os outros direitos sociais, um
elemento potencialmente revolucionário e de consenso. Revolucionário,
pois se constitui em um campo privilegiado de luta de classes, onde se
pode dar a formação e a transformação da consciência (luta ideológica),
onde se chocam as concepções de vida das diferentes classes sociais.
Sendo parte integrante e fundamental desse conceito de igualdade e da
possibilidade de desenvolvimento pleno das qualidades de cada um, a
luta pela saúde adquire um caráter subversivo, inclusive em contraposição
ao tratamento de mercadoria que recebe nas sociedades capitalistas. E é
elemento potencialmente de consenso, pois a saúde é um valor
largamente compartilhado, um direito que pode congregar um conjunto de
forças para, através de uma aliança empreender uma luta para sua
conquista. Como citamos anteriormente, os Movimentos Populares de
saúde analisados por Jacobi (1989) atestam essas afirmações.
Escorel (1995) utiliza o conceito de classe nacional de
Gramsci, para discutir a saúde como uma questão nacional, cuja
especificidade a transforma em palco privilegiado e precursor de uma luta
mais global de transformação da sociedade. Para obter a hegemonia e
se propor ao poder a classe operária deve, para Gramsci (apud Escorel,
31
1995) em sua noção de classe nacional, superar todo o corporativismo e
fazer-se portadora de um projeto global de sociedade. Dentro desse
processo, os intelectuais são importantes na agregação de um bloco
histórico, de uma vontade coletiva, ou seja, na construção das relações
de hegemonia.
Embora a analise feita por Gramsci (apud Escorel, 1995)
se refira à luta de classes, a autora propõe analisar a questão da saúde e
da luta para sua conquista a partir das categorias apontadas:
uma questão torna-se nacional na medida em que supera todo
o corporativismo e é portadora de um projeto global da
sociedade. Analisar a luta implica necessariamente perceber a
direção que lhe é dada, em que pode-se identificar qual o
projeto global da sociedade que está implícito ou subjacente a
essa luta num campo particular de transformação social.
(Escorel, 1995, p.185)
Neste sentido, o Movimento Sanitário em sua luta pela
transformação do sistema de saúde configura-se como um sujeito político
coletivo. A autora caracteriza o Movimento Sanitário como um movimento
suprapartidário cuja organicidade é formada por um projeto, a
transformação das condições de saúde da população, e por uma
linguagem comum, o pensamento médico-social que podemos definir
como sendo o da consciência sanitária.
32
Ressalta que o Movimento Sanitário nunca se distanciou
da luta pela transformação da sociedade tendo, nos anos da ditadura,
como diretriz: Saúde e Democracia. Nos anos da transição política, teve
como estratégia a ocupação nos aparelhos de Estado no sentido de dar
outra direção à política pública. Nos anos que nomeia sendo o do último
capítulo da transição democrática, o Movimento Sanitário organizou-se
para escrever, na Constituinte, o direito à saúde como direito elementar
do cidadão brasileiro. "Para isso, o Movimento Sanitário fez valer uma de
suas outras características que é o estabelecimento de alianças com
setores progressistas, populares ou não, comprometidos com luta"
(Ibid., p.186). Conceber a unidade como valor estratégico e a saúde como
uma questão nacional permitiu ao movimento manter-se orgânico e
organizado ao longo dos anos.
Para a autora , apesar das alianças e da participação de
outros movimentos populares, o Movimento Sanitário é ainda um
movimento de intelectuais de classe média, mas que não defende
interesses próprios, corporativos.
O Movimento Sanitário pode ser considerado como um
intelectual coletivamente orgânico das classes trabalhadoras
no campo da luta da saúde (... e podemos) pensá-lo como
uma manifestação do novo bloco histórico no setor saúde, que
procura, mais do que construir uma nova ideologia,
transformar as relações sociais existentes sem com isso retirar
33
o principal campo de luta da Reforma Sanitária que é o da luta
ideológica. (Ibid., p. 186 )
Conceitua, a seguir, as noções de hegemonia e bloco
histórico, citando Gruppi:
Gramsci especifica o modo pelo qual põe o problema da
hegemonia da classe operária: a hegemonia se realiza
enquanto descobre mediações, ligações com outras forças
sociais, enquanto encontra vínculos também culturais e faz
valer no campo cultural as próprias posições. (apud Escorel,
1995, p.187)
E, ao trabalhar o conceito de bloco histórico, Gruppi
aponta, ainda, que:
a hegemonia tende a construir um bloco histórico, ou seja, a
realizar uma unidade de forças sociais e políticas diferentes e
tende a conservá-las juntas através da concepção de mundo
que ela traçou e difundiu ... hegemonia é isso: determinar os
traços específicos de uma condição histórica, de um processo,
tornar-se protagonista de reivindicações que são de outros
estratos sociais, da solução das mesmas, de modo a unir em
torno de si esses estratos, realizando com eles uma aliança na
luta contra o capitalismo e, desse modo, isolando o próprio
capitalismo. (apud Escorel, 1995, p.187)
34
Acrescentamos que, para Portelli (1977), o conceito de
bloco histórico deve ser analisado sob um triplo aspecto: o estudo das
relações entre estrutura (base econômica) e superestrutura (sociedade
civil e sociedade política); análise da maneira pela qual um sistema de
valores impregna, penetra, socializa e integra um sistema social; e como
se desagrega a hegemonia da classe dirigente, edificando um novo
sistema hegemônico, criando-se um novo bloco histórico. Podemos definir
assim bloco histórico como a articulação interna de uma situação histórica
determinada.
Assim, a autora destaca que a construção de um bloco
histórico alternativo ao dominante passa pelo estabelecimento da
hegemonia e formação de alianças, que devem ser analisadas enquanto
momentos de constituição na construção do bloco histórico. O Movimento
Sanitário, nascido de um grupo de intelectuais, constituiu um projeto com
a perspectiva das classes trabalhadoras e populares, ampliou o leque de
suas alianças e vem se transformando num projeto comum a outras
classes superando o corporativismo inicial. Participou intensamente na
luta ideológica, criando, com o conjunto de forças sociais progressistas,
pressupostos políticos, econômicos e ideológicos num processo que é
comumente nomeado de construção da contra-hegemonia.
Finaliza a autora analisando o papel dos intelectuais,
lembrando que, para Gramsci, "não existe uma classe independente de
intelectuais, e sim cada grupo social tem sua própria camada de
35
intelectuais ou tende a formá-la" (apud Escorel, 1995 p.189) e, mais
adiante, afirma: o que interessa
são os intelectuais como massa e não somente como
indivíduos. É sem dúvida importante e útil para o proletariado,
que um ou mais intelectuais, individualmente, adiram ao seu
programa e doutrina, se fundam com o proletariado, se
convertam em parte e se sintam parte dele. O proletariado é,
como classe, pobre de elementos organizativos e não tem nem
pode formar um estrato próprio de intelectuais senão muito
lentamente, muito trabalhosamente, e somente depois da
conquista do poder estatal. Mas também é importante que na
massa dos intelectuais se produza uma fratura de caráter
orgânico, historicamente caracterizada; que se construa, como
formação de massas uma tendência de esquerda no sentido
moderno da palavra ou seja orientado para o proletariado
revolucionário. (Ibid., p.190)
Analisa a autora que, desde sua origem, nos
Departamentos de Medicina Preventiva e Social, até os dias atuais, o
Movimento Sanitário vem direcionando a luta da saúde em direção às
classes trabalhadoras e também
construindo valores ideológicos proletários quando luta por um
sistema de Saúde universal, equânime, acessível e
democrático, quando pensa na saúde como valor universal e
36
se concentra no alvo de impedir a mercantilização da saúde.
(Escorel, 1995, p.191)
E ressalta a luta ideológica travada com o liberalismo no
conjunto dos intelectuais, médicos e demais profissionais de saúde,
buscando "produzir na massa dos intelectuais (setoriais) uma fratura de
caráter orgânico" (Escorel, 1995, p.191)). As alianças estabelecidas pelo
Movimento Sanitário ampliaram a base social da luta pela Reforma
Sanitária, permitindo também que fossem ultrapassados os limites
setoriais da fratura orgânica.
A autora finaliza seu artigo afirmando que as categorias
utilizadas na análise permitem concluir que as ações do Movimento
Sanitário têm sido
efetivamente na direção de um longo e árduo processo de
criação de novos pressupostos políticos, econômicos e
ideológicos que tornarão possível o estabelecimento e a
consolidação do socialismo em nosso País. (Ibid.)
1.4. Apresentando algumas questões...
Os Movimentos Sociais dos anos setenta possibilitaram o
surgimento de novos sujeitos históricos, que se afirmaram como
interlocutores fundamentais na construção da cidadania (Jacobi, 1989),
37
acelerando o processo de transição democrática. No contexto desses
movimentos, um grupo de intelectuais iniciou um movimento pela
transformação das condições de saúde da população, que por seu valor
intrínseco, constituíram-se em um movimento contra-hegemônico na
construção de um bloco histórico alternativo ao dominante.
É dentro do contexto dos Movimentos Sociais, como um
setor dentro do Movimento Sanitário, que um outro grupo de intelectuais
iniciou o Movimento da Reforma Psiquiátrica.
Ornellas (1997) analisa o movimento de transformação
psiquiátrica, afirmando que a
... denúncia da natureza violenta do sistema asilar contém os
ingredientes para a construção de um discurso ideológico,
mobilizador e transformador. E com esse discurso o
movimento antiinstituição, antiasilos, anti-sistema psiquiátrico,
cresceu e expandiu-se, estendendo-se por quase todo o
mundo ocidental, num processo em que se articula enquanto
corrente ideológica e movimento social. (Ibid., p.191)
O campo da saúde mental configura-se como um lugar de
conflitos e disputas. É essencialmente o lugar do encontro do singular e
do social, do eu e do outro. É, também, o lugar do confronto: das idéias
de liberdade e solidariedade contra o controle e a segregação, do privado
e do público, da inclusão e da exclusão, da afirmação da cidadania e de
38
sua negação. Portanto, uma campo de lutas políticas, sociais e
ideológicas.
Assim, o Movimento da Reforma Psiquiátrica é um
movimento com fortes conotações políticas, impregnado ética e
ideologicamente. O processo de sua construção esta intimamente ligado à
luta pela transformação da sociedade.
Nesse sentido, é possível traçar um paralelo entre a
análise, feita por Escorel, do Movimento Sanitário para o Movimento da
Reforma Psiquiátrica?
Quais os elementos semelhantes? Em que se
diferenciam?
O Movimento da Reforma Psiquiátrica pode ser
caracterizado como expressão de um bloco ideológico vinculado aos
interesses subalternos?
Qual o papel dos intelectuais nesse processo?
Essas são questões que nos guiarão ao percorrermos os
anos de constituição do Movimento da Reforma Psiquiatra,
contextualizando os momentos históricos e buscando traçar paralelos
entre este e o Movimento Sanitário.
39
CAPITULO II
OS ANOS SETENTA - REBELDES EM ANOS DE CHUMBO
2.1. O Cenário: Abertura lenta e gradual e os Movimentos Sociais
Apesar de você
Amanhã há de ser Outro dia
Chico Buarque
Após um período caracterizado por um forte ritmo de
crescimento, a chamada era do milagre econômico, que dava
sustentação ao modelo autoritário do regime militar, veio um período
crítico do modelo econômico vigente que, em meados dos anos setenta,
caracterizou-se por um grande endividamento externo e por uma grave
situação econômica resultante da incapacidade do Estado em manter o
ritmo de crescimento. Ou seja, uma conjuntura recessiva internacional,
conseqüência da crise do petróleo de 1973, que levou a uma queda no
ritmo de crescimento de nossas exportações e retraiu a disponibilidade de
capitais do mercado financeiro mundial, promovendo uma alta excessiva
das taxas de juros.
Este movimento atingiu em cheio a economia como a
nossa, pelo encarecimento das importações e pela elevação do
custo do dinheiro. Dessa forma, qualquer novo pacote para
40
repor máquinas e equipamentos desgastados ou obsoletos
estava dificultado, comprometendo o prosseguimento da
acumulação. (Mendonça & Fontes, 1988, p.56)
Uma das conseqüências desse crítico período foi um
arrocho salarial da classe trabalhadora, que atingiu níveis baixíssimos.
Para um índice de cem, em 1940, o Departamento Intersindical de
Estudos Estatísticos e Sócio-Econômicos (DIEESE) apontou os seguintes
índices: em 1972, 65; em 1973, 59; em 1974, 54 e em 1975, 57 (apud
Ibid., pp.11-12). Ou seja, em 1974 o valor do salário mínimo eqüivalia a
apenas a quase metade do valor de 1940.
Uma grande crise foi gerada pelo esgotamento do modelo
econômico, um dos maiores arrochos salariais impostos aos
trabalhadores, sindicatos sob intervenção, repressão política, censura à
imprensa. Diante desse quadro, a reação da população deu-se de
maneira explosiva; entre 1974 e 1976, violentos quebra-quebras de
ônibus e trens aconteceram em São Paulo e no Rio de Janeiro, não como
manifestações organizadas, mas como expressão de uma revolta
espontânea contra a precária situação dos transportes urbanos de
massa.
A permanência do arbítrio e do alijamento dos setores
populares associou amplas camadas sociais, da imprensa à
Igreja, do Movimento Estudantil às Associações de Moradores,
contribuindo para que as reivindicações que germinavam
41
desde os primeiros anos da década viessem à tona por volta
de 1976-77, no quadro da crise de legitimidade por que
passava então o regime militar. (Mendonça & Fontes, 1988,
p. 70)
Foi a partir de 1976 que as Associações de Moradores e
Sociedades Amigos de Bairro assumiram uma nova expressão: eram
alternativas de participação popular combativas e autônomas em relação
ao Estado. Sua capacidade de articulação extrapolou as questões
regionais e locais para ações de caráter por vezes nacional como, por
exemplo, o Movimento do Custo de Vida.
Durante o período de maior repressão, a Igreja Católica,
através das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), com suas diversas
Pastorais, constituíram-se nas únicas organizações populares capazes de
desempenhar um papel crítico do regime, com um papel decisivo como
importante aglutinador e animador das reivindicações e de muitos dos
movimentos populares que surgiram na segunda metade dos anos
setenta.
Como destacamos anteriormente, foi no contexto de uma
grave crise econômica, que aprofundou as contradições urbanas,
expondo a fragilidade do Estado em dar respostas às carências sociais,
que os Movimentos Sociais organizaram-se, partindo de questões
cotidianas básicas como transporte urbano, custo de vida, saneamento
básico e saúde. Privilegiada arena de luta social, esses movimentos
42
possibilitaram a seu ator principal, a população da periferia das grandes
metrópoles, ser um sujeito de prática social, de ação coletiva: ser, enfim,
um sujeito histórico fundamental na construção da cidadania.
Em 1977, entrou em cena o Movimento Estudantil, que
eclodiu com força através de diversas manifestações, exigindo a
redemocratização do país através das palavras de ordem: Pelas
Liberdades Democráticas e Pela Anistia, Ampla, Geral e Irrestrita.
Hoje, consente quem cala. Basta às prisões. (...) por que
não mais aceitamos as mordaças é que exigimos a imediata
libertação de nossos companheiros presos (..) é por isso que
conclamamos todos, neste momento, a aderirem a esta
manifestação pública sob as mesmas e únicas bandeiras: fim
às torturas, prisões e perseguições políticas; pela libertação
imediata dos companheiros presos; pela anistia ampla, geral e
irrestrita a todos os presos, banidos e exilados políticos; pelas
liberdades democráticas. ( Abril Cultural, 1986, p.106)
Este é um trecho da Carta Aberta à População, lida em
conjunto por cerca de dez mil estudantes no largo de São Francisco, em
São Paulo. A manifestação, que pedia a libertação de operários e
estudantes presos, distribuindo panfletos contra o governo no dia
primeiro de maio, foi precedida de uma passeata. Houve confrontos com a
polícia militar. Seguiram-se outras passeatas e outras manifestações,
também com confrontos com a tropa de choque.
43
Nesse mesmo ano, em São Paulo, houve a
reestruturação da União Nacional dos Estudantes (UNE ), através de um
congresso que culminou com a invasão da Pontifícia Universidade
Católica (PUC) pela força policial e a prisão de centenas de estudantes.
Apesar dessa ação de força, a UNE se reorganizou, ainda que
clandestinamente, e continuou atuando na liderança do Movimento
Estudantil.
Em 1977, revelou-se que os índices de reajuste salarial
referentes ao ano de 1973 haviam sido manipulados. Esse fato precipitou
uma ampla articulação entre os mais importantes sindicatos da Grande
São Paulo, que se dispuseram a enfrentar o governo na Justiça, segundo
as próprias leis de exceção. Nascia um novo sindicalismo, que sacudiu os
anos 78 e 79 com uma onda inusitada de greve pós-64, resultado de um
longo processo de oposição sindical que, fugindo dos limites estreitos do
sindicalismo oficial, fortaleceu o movimento operário através sobretudo
das comissões de fábrica (Moisés et al., 1982).
A grande importância desse 'novo sindicalismo', além de
expressar as reivindicações de cidadania política do
operariado, foi ter trazido à tona questões cruciais para seu
ulterior desenvolvimento. Buscava-se recuperar a autonomia
sindical, através de negociações diretas entre trabalhadores e
empresários, livres da tutela estatal, e o reconhecimento legal
de seus representantes nas fábricas (delegados sindicais).
44
Expressava também a percepção da setorização econômica,
exigindo aumentos salariais proporcionais à produtividade de
cada ramo. (Mendonça & Fontes, 1988, p.72)
Em 1974, o partido do governo sofreu uma derrota nas
eleições para o Congresso Nacional, o que apontou para uma clara
insatisfação popular com o regime militar, cujas tentativas de conquistar
apoio popular revelaram-se inócuas. O MDB3 que surgia das urnas era
um partido que se transformava de oposição consentida em oposição
escolhida, configurando-se em uma real alternativa político-partidária
capaz de aglutinar os diversos segmentos da sociedade descontentes
com o governo militar.
No interior das Forças Armadas, ganhou força a corrente
mais liberal que articulou a sucessão presidencial em torno do nome do
Gal. Ernesto Geisel, que promoveu, já no governo, uma política de
distensão política, a Abertura Lenta, Segura e Gradual, mantendo o
aparato repressivo do período anterior.
Dois pontos merecem destaque nesse processo: por um
lado,o fortalecimento da oposição legitimando o dissenso como
matéria política e não de segurança; por outro, o reforço da
figura presidencial, como forma de desmobilização progressiva
3 O golpe militar de 1964 extinguiu os partidos políticos existentes, permitindo apenas a existência de dois; o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que era o partido da oposição consentida e a Aliança Renovadora Nacional (ARENA) , o partido do governo.
45
dos grupos militares mais resistentes à mudança. (Klein &
Figueiredo, apud Mendonça & Fontes, 1988, p.74)
Em outubro de 1975, o jornalista Wladimir Herzog morria
nas dependências do DOI-CODI4 vítima de torturas, o que gerou uma
forte repercussão e mobilização da sociedade. Em janeiro de 1976, o
operário Manoel Fiel Filho morria nas mesmas circunstâncias, o que
obrigou o presidente Geisel a afastar o comandante do Segundo Exército.
Em outubro de 1977, como demonstração de força, o presidente Geisel
demitiu o ministro do Exército, o Gal. Sylvio Frota, candidato da linha
dura que articulava a sucessão presidencial. Anos mais tarde, em
entrevista a Ronaldo Costa Couto, o presidente Geisel admitiu que
aquelas mortes foram "um verdadeiro assassinato" (Couto, 1999, p.182).
Em 1976, nova derrota do governo, desta vez nas
eleições municipais. A crescente representatividade do MDB, tanto no
legislativo federal, quanto nos municípios mais importantes5, constituiu-se
em uma ameaça para aqueles setores linha-dura, pois podia significar
uma perda de controle sobre a maioria dos parlamentares, em especial,
no Senado.
4 Destacamento de operações e informações - Centro de operações de defesa interna. Órgão do Exército, responsável pelas ações de repressão e tortura. 5 Vale lembrar que, em todas as capitais e nas cidades consideradas de segurança nacional, a eleição para prefeitos era indireta. Ou seja, o governador nomeava um nome que era submetido à Assembléia Legislativa para aprovação, esse era o processo que caracterizava a eleição indireta. Esse era também processo utilizado para a eleição indireta do Presidente da República, sendo que a casa legislativa consultada era o Congresso Nacional.
46
Em abril de 1977, o governo baixou o Pacote de Abril,
que confirmou eleições indiretas para os governadores e criou eleições
indiretas de um terço do Senado; alterou o colégio eleitoral que elegeria o
presidente e ampliou o mandato deste, de cinco para seis anos.
Como conseqüência, apesar de o MDB obter a maioria
dos votos nas eleições parlamentares gerais de 1978, a ARENA, partido
governista, permaneceu com a maioria através da nomeação dos
senadores biônicos (senadores escolhidos pelo Colégio Eleitoral
constituído por deputados estaduais).
Esses atos de violência, que contradiziam a propalada
intenção de normalidade institucional, provocaram uma forte reação:
amplos setores da sociedade, entidades de classes, Igreja, empresários,
comunidade científica, estudantes, movimentos sociais etc. articularam-
se e pressionaram o governo que ficava, a cada dia, mais isolado. Houve
um despertar da sociedade civil, um despertar de cidadania.
Por certo a face autoritária do regime não foi alterada,
mas esse ensaio de mobilização, tão heterogêneo quanto
intenso, rendeu alguns frutos, como a extinção do AI-5 e a
adesão de setores dominantes �liberais� ao projeto de abertura
como saída desejável para o impasse político vivido no país.
(Mendonça & Fontes, 1988, p.76)
Em dezembro de 1978, dez anos depois de sua edição, o
Ato Institucional n.º 5 (AI-5) deixava de existir. Terminava a censura
47
prévia, a prisão sem acusação formal, restituía-se o habeas-corpus,
reduziam-se os mecanismos excepcionais e controle do Executivo sobre o
Congresso. O seu fim possibilitou uma maior organização dos
Movimentos Populares. Na mesma entrevista que já citamos, o presidente
Geisel irá afirmar: "consegui vencer todas as resistências e acabar com o
AI-5, que era uma das excrescências que tínhamos" (Couto, 1999, p.253).
O MDB assumiu para si a responsabilidade de congregar
as oposições e atuar conjuntamente com outros setores da sociedade,
tais como a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB), a Confederação Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB), num enfrentamento contra o regime. Porém, dividido entre
os autênticos e os moderados, sua atuação refletia essa divisão entre
uma radical oposição ao regime e uma oposição consentida.
Em 1979, assumiu como presidente o Gal. João Batista
Figueiredo que, em seu discurso de posse diante do Congresso Nacional,
afirmou: "Juro fazer desse país uma democracia". Alguns dias depois,
referindo-se a abertura democrática em entrevista à imprensa, declarou,
em seu folclórico estilo: "É para abrir mesmo, e quem quiser que eu não
abra eu prendo e arrebento" (Couto, 1999, p.256)6.
6O autor cita , em uma nota de rodapé, outras pérolas do pensamento do presidente Figueiredo, que reproduzimos a seguir: "Prefiro cheiro de cavalo a cheiro de povo"; �Cavalo e mulher , a gente só sabe se é bom depois que monta"; �Se ganhasse salário mínimo, eu dava um tiro no coco"; "Eu gosto mesmo é de clarim e de quartel"; e por fim, em sua última entrevista como presidente: "E que me esqueçam".
48
Foi sob seu governo que, em agosto, decretou-se a
anistia. Embora fosse um avanço político importante, foi uma anistia
limitada que acabou por beneficiar integralmente os militares envolvidos
no aparato repressivo e que tinham cometido assassinatos, o mesmo não
ocorrendo para os antigos participantes da luta armada. Mesmo limitada,
a anistia permitiu o retorno de todos os exilados.
Louco um bêbado com chapéu coco
fazia irreverências mil para noite do Brasil (...) que sonha com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu, no rabo de um foguete Chora
A nossa pátria mãe gentil, Choram Marias e Clarices no solo do Brasil
Mas sei que uma dor assim pungente não há de ser inutilmente
A esperança dança na corda bamba de sombrinha (... ) A esperança equilibrista sabe que o show de todo artista
Tem de continuar Aldir Blanc, em música de João Bosco
2.2. Semeando a Reforma Psiquiátrica
Foi no contexto histórico que acabamos de descrever que,
ao longo dos anos setenta, através de encontros internacionais,
documentos oficiais, experiências pontuais, protestos e manifestações,
foram sendo lançadas no aparelho estatal e no cotidiano das instituições
as sementes da Reforma Psiquiátrica.
49
2.2.1. Assistência em saúde mental; do público ao privado, mas sempre no hospital psiquiátrico
Desde a inauguração do Hospício de Alienados Pedro II,
no Rio de Janeiro, e ao longo do século até os anos sessenta, a
assistência psiquiátrica brasileira caracterizou-se por ser eminentemente
hospitalocêntrica e pública. Embora, de maneira geral, a qualidade da
assistência prestada pelos hospitais nunca tenha sido exemplar, nos
anos cinqüenta e sessenta, encontrávamos uma situação caótica:
superlotação, escassos recursos humanos, precárias condições sanitárias
e estruturais, denúncias de maus tratos e violência física.
Trabalhando no Juqueri7, em São Paulo, colhemos relatos
contraditórios entre pacientes e funcionários, que apontavam para uma
das facetas perversas da instituição. Enquanto os primeiros queixavam-se
de que, naqueles anos da década de cinqüenta e sessenta, tinham de
dormir nos degraus das escadas e de que, no frio, não havia cobertores
para se aquecerem, funcionários relatavam orgulhosos que aqueles eram
tempos de fartura, "não faltava comida nem roupa nova para ninguém".
Pesquisando um pouco mais, pudemos constatar que, de fato, foram anos
de grandes investimentos em compras, mas que não chegavam aos
pacientes. Como é absolutamente comum neste país, perdiam-se ou
7 Departamento Psiquiátrico II, nacionalmente conhecido como Hospital Psiquiátrico do Juqueri.
50
desviavam-se nos tortuosos caminhos da burocracia institucional8. Quase
todos pacientes relatavam histórias de violência física, que era um
elemento quase natural do cotidiano. Violência tão natural , que aquela
instituição foi utilizada nos anos da ditadura pelos órgãos de repressão.
A seguir, apresentamos trecho de uma reportagem
realizada pelo jornalista Ewaldo Dantas Ferreira, publicada no jornal Folha
de S. Paulo de 21 de fevereiro de 1963, sobre o Hospital do Juqueri,
representativo do ambiente da época:
O hospital psiquiátrico de madrugada é assim: milhares e
milhares de corpos humanos - homens, mulheres e crianças -
nus, imundos, entrelaçados numa confusão horrenda de
membros, espalhados pelos corredores, escadarias, pelo chão
de cimento dos salões-dormitórios. Dormem em grupos, sobre
camas quebradas, sem colchões e sobre colchões
estraçalhados sem cama. Sobre trapos em frangalhos. Sobre
fezes.
O quadro em seu horror, supera toda a imaginação. Não
se pode compará-lo a uma imensa pocilga, porque a realidade
ficaria atenuada. O mau cheiro violento, fere as narinas,
8 Uma das estratégias usadas para desviar materiais novos era de destruir, por exemplo, um cobertor novo e dar baixa em vários como se cada pedaço do cobertor destruído correspondesse a um inteiro, colocando-se a culpa no ato tresloucado de algum paciente agressivo, que havia destruído vários cobertores. Após isso, os cobertores novos iriam para casas de funcionários ou para o comércio local.
51
tonteia, provoca náuseas. O ar, irrespirável. O ambiente uma
antevisão do pior dos infernos. (apud Rádice, 1978, p.22)
Na década de cinqüenta, nos dourados anos JK, dentro
de um contexto de otimismo e euforia desenvolvimentista, em uma
sociedade que se pretendia moderna e industrial, a existência desses
asilos deveria ser, pelo menos, minimizada e humanizada. É notório o
descrédito que essas instituições atingiram junto à população, expresso
em termos populares, músicas, piadas. A incompetência foi um forte
argumento em favor da livre iniciativa.
Com o golpe militar de 1964, a psiquiatria adquiriu o
status de prática assistencial de massa, com o início da mercantilização
da loucura através da celebração dos convênios com o Instituto Nacional
de Previdência Social (INPS), criado em 1967 (Resende, 1987). A
psiquiatria começou a transformar-se em um lucrativo negócio e para
defendê-lo formou-se um poderoso lobby que atuava, e ainda atua,
impedindo qualquer tentativa de mudança. Destaque-se que a
mercantilização não era exclusividade da psiquiatria, mas parte de um
contexto mais amplo, que por um lado estendeu a assistência médica a
amplos setores da classe trabalhadora em substituição às caixas de
aposentadoria e assistência médica dos sindicatos, extintas pelo governo
militar e, por outro, incentivou a prática privada na saúde financiada pelo
erário público.
52
A empresa de saúde sempre viu o lucro e só o lucro. Não
nos iludamos, porque esse é o seu papel. Não pode ver a
saúde sob outro prisma. Em psiquiatria já tem o monopólio da
assistência curativa individual através do leito hospitalar
exatamente por ser a opção mais rendosa. Para ampliar tal
monopólio, usa de todos os meios historicamente empregados
pelo capitalismo selvagem. (Cerqueira, 1984b, p.226)
O número de leitos privados saltou de 3.034, em 1941,
para 78.273, em 1978, um crescimento de quase vinte vezes em menos
de quarenta anos, enquanto o número de leitos oficiais permaneceu
quase inalterado no mesmo período: 21.079, em 1941, e 22.603, em 1978
(Cerqueira, 1984a). O tempo médio de permanência oscilava sempre
acima dos noventa dias, o que indicava uma duração média de internação
alta, que favorecia a institucionalização dos pacientes. Ou seja, a
constituição de uma população cativa de consumidores compulsórios
das internações psiquiátricas. Saliente-se que, nos anos sessenta,
segundo Cerqueira (1984a) e Resende (1987), houve uma modificação
no perfil nosológico da clientela dos hospitais psiquiátricos, surgindo uma
proporção expressiva de pacientes neuróticos e alcoolistas, patologias
cuja necessidade de internação psiquiátrica é, no mínimo, questionável.
Em relatório de 1971, um grupo técnico do Ministério da
Saúde resumiu assim a situação da assistência psiquiátrica no âmbito
federal:
53
distorções no uso de leitos, principalmente com altas taxas de
readmissão e tempo elevado de permanência; inexistência de
ambulatórios; crescimento quase geométrico das internações
não corresponde ao índice de crescimento das psicoses;
excessivo aumento das internações com diagnóstico de
neurose. (Costa-Rosa, 1987, p.68)
Portanto, a partir dos anos sessenta, podemos
caracterizar a assistência psiquiátrica brasileira como sendo
eminentemente hospitalocêntrica e preponderantemente privada.
2.2.2. Documentos, intenções e poucos gestos: sementes da Reforma Psiquiátrica
(...) e se trago as mãos distantes do meu peito
É que há distância entre intenção e gesto Chico Buarque
Luiz Cerqueira, realizando, em texto de 1973, um balanço
sobre as suas realizações à frente da Coordenadoria de Saúde Mental
(CSM)9, destaca e lista uma série de documentos nacionais e
internacionais que:
9 Instância técnico administrativa da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, responsável pela ações e pela política de saúde mental.
54
São Paulo ou o Brasil não podem ignorar dagora (sic) por
diante (...) estes documentos irreversíveis, firmados por nossas
autoridades e consagradores de uma assistência psiquiátrica
não tradicional. (Cerqueira, 1984c, p.242)
Costa-Rosa (1987), ao analisar a tentativa de implantação
do modelo comunitário no Estado de São Paulo, traça algumas linhas da
origem desse modelo e analisa alguns desses documentos.
Cerqueira (1984c) situa as origens do movimento pela
transformação da saúde mental no Brasil, a partir de 1967, tendo como
marco a Ata de Porto Alegre do I Colóquio sobre Problemas e
Necessidades da Psiquiatria Assistencial e Preventiva no Brasil. Um
grupo de profissionais, reunidos naquele colóquio, produziu um bloco de
conclusões, onde se destacam:
a restauração do Serviço Nacional de Doentes Mentais, a
integração da Saúde Mental à Saúde Pública, ênfase na
criação e ampliação da rede extra-hospitalar, aceleração dos
programas de formação de pessoal - resultando já a
incorporação das Universidades brasileiras nesse processo;
finalmente, propõem também o reforço do Hospital Psiquiátrico
como empresa privada e a sua expansão às custas de parte
dos seus lucros. (Costa-Rosa, 1987, p.65)
Costa-Rosa (Ibid.) destaca em sua análise o confronto
entre os interesses públicos e privados já naquele primeiro encontro
55
nacional, representado no texto, por um lado, no reforço na atenção
extra-hospitalar e, por outro, no reforço no sistema hospitalar privado.
Em 1968, em San Antonio, no Texas, foi realizada a
Primeira Conferência sobre Saúde Mental nas Américas, cujas
recomendações reforçaram a Ata de Porto Alegre e acrescentaram:
elevação do padrão de serviços de Saúde Pública, a
integração da Saúde Mental com os demais setores da Saúde,
realização de estudos epidemiológicos e criação de serviços de
modalidade comunitária. A partir desse encontro é produzido e
editado pela Associação de Psiquiatria Americana um texto em
que são arregimentadas as principais características do
modelo americano, apresentadas com a explícita preocupação
pelo respeito às peculiaridades dos grupos sociais para dentro
dos quais sejam transportadas. (Costa-Rosa, 1987, p.65)
Alguns dos pontos daquele texto estavam presentes no
modelo comunitário brasileiro como uma herança do modelo americano.
Destaque-se que inúmeros profissionais e professores brasileiros de
escolas médicas participaram daquele encontro.
Em 1969, a Organização Pan-americana de Saúde
(OPAS) e a Organização Mundial de Saúde (OMS) promoveram, em Viña
del Mar, uma reunião que contou com a participação do Ministro da Saúde
do Brasil e que produziu um relatório intitulado Recomendações do Grupo
de Trabalho sobre a Administração de Serviços Psiquiátricos e de Saúde
56
Mental, salientando a necessidade da implantação de um sistema de
Psiquiatria da Comunidade, com ênfase nas ações de prevenção e no
estímulo às atividades de ensino e pesquisa.
Em 1970, realizou-se em São Paulo o Primeiro
Congresso Brasileiro de Psiquiatria, em conjunto com a Associação
Psiquiátrica Latino-Americana. Entre as conclusões, destacam-se:
medidas urgentes para corrigir distorções mais graves; a necessidade de
se caracterizar um organismo normativo de liderança efetiva em nível
federal; novamente a ênfase na criação de uma rede de serviços extra-
hospitalares; e a Declaração de Princípios de Saúde Mental de Mário
Machado de Lemos, Ministro da Saúde à época, composta por dez itens
(direito e responsabilidade; integração; regionalização; recursos de todos
para todos; prevenção; conscientização; formação de pessoal; hospital
comunitário; serviços extra-hospitalares; e pesquisa), que serviu de base
ideológica a uma série de ações (Costa-Rosa, 1987).
Em 1971, foram produzidos dois documentos: Relatório
sobre a Assistência Psiquiátrica no INPS e Relatório da Comissão
Permanente de Saúde Mental da Associação Brasileira de Psiquiatria,
ambos apontando para uma reformulação da assistência.
Em 1972, ocorreu o Segundo Congresso Brasileiro de
Psiquiatria, em Belo Horizonte, no qual foram reafirmados os dez
57
princípios de saúde mental, que naquela data foram incorporados às
propostas do governo federal e do governo do Estado de São Paulo.
Ocorreu, também a Terceira Reunião de Ministros da
Saúde, em Santiago no Chile. Costa-Rosa (1987) destaca algumas falas
do Ministro da Saúde, presente àquela Reunião, situando o teor das
formulações pretendidas e suas metas:
O sistema nacional permanece profundamente alicerçado na
assistência hospitalar, oferecendo poucos e minguados
recursos extra-hospitalares... Há necessidade de uma
reformulação de fundo e forma... A atuação preventiva com
base em práticas, atividades e com a participação da
comunidade é fundamental para que na década de 70/80
possamos suplantar as práticas asilares ou custodiais ainda
presentes. (Ibid., p.69)
Considerando os seguintes argumentos básicos:
deficiência dos padrões hospitalares; inexistência de trabalhos de
prevenção; a insuficiência de serviços; a escassez de recursos humanos
e a inexistência de serviços extra-hospitalares, firmou-se, a partir daquela
Reunião de Ministros da Saúde, um Acordo para a execução de um
programa de Saúde Mental no Brasil, com validade até 1974, e que
propunha ênfase na formulação de uma Política Nacional de Saúde
Mental, cujas diretrizes foram estabelecidas pelo Ministro Mário Machado
de Lemos.
58
Naquela reunião, foi formulado um Plano Decenal de
Saúde para as Américas, que estabeleceu as seguintes recomendações
para a saúde mental:
• Prevenção Primária, secundária e terciária em saúde
mental;
• Criação de serviços para diminuir a tendência de aumento
de alcoolismo e farmacodependências;
• Planejamento de leitos psiquiátricos para cada 1000
habitantes;
• Priorizar o atendimento ambulatorial e hospitalização
breve, de preferência em hospitais gerais;
• Criação de Centros Comunitários de Saúde Mental em
cidades com mais de 100.000 habitantes e estimular a
participação da comunidade em torno deles
• Modernização da legislação psiquiátrica;
• Modernização dos tratamentos utilizando especialmente
técnicas grupais;
• Estimular o ensino de saúde mental em escolas de
medicina e de outras escolas que formam profissionais de
saúde. (apud Figueiredo, 1996, p.203)
59
Em 1973, o Ministério da Previdência aprovou o Manual
para Assistência Psiquiátrica, que serviu de base para a Portaria n.º 32
do Ministério da Saúde de 1974.
Esses dois documentos estabelecem as bases das
propostas de atuação no âmbito federal até 1974, e guardam
estreita relação com os princípios do modelo comunitário. Aí se
destacam a ênfase nos princípios que orientam a Psiquiatria
Comunitária, os serviços que estimulem a participação ativa da
"comunidade", o estabelecimento de uma relação de leitos por
habitante(1:1.000 na cidade e 1:2000 no campo), prioridade
para o atendimento ambulatorial e tempo de hospitalização
curto, capacitação de recursos humanos, promoção de
investigações epidemiológicas e atividades de pesquisa em
geral. (Costa-Rosa, 1987, p.71)
O Manual para Assistência Psiquiátrica, que propunha a
diversificação da oferta de serviços (emergência, semi-internação,
enfermaria psiquiátrica em hospital geral, pensão protegida), enfatizando
a atenção extra-hopitalar e o controle das internações, e a Portaria n.º 32,
segundo Cerqueira (1984a), foram sabotados desde seu primeiro dia.
Ambos (...) continuam letra morta, só para não diminuir
os lucros da empresa de saúde nem demonstrar a fragilidade
do modelo médico tradicional exclusivo, defendido por outros
tantos psiquiatras reacionários encarrapitados nas cátedras,
60
nas cúpulas administrativas e nos ricos consultórios privados.
Conseguem leis, financiamentos, privilégios. (Ibid., p.225)
O discurso oficial, estabelecido em documentos, portarias,
resoluções, nacionais e internacionais, não conseguiu mudar a realidade
assistencial que continuava excessivamente hospitalocêntrica e favorecia
os grupos econômicos privados.
Ainda no ano de 1973, foi realizado o I Encontro Regional
de Técnicos de Saúde Mental, em Florianópolis, promovido pela Divisão
Nacional de Saúde Mental (DINSAM), do Ministério da Saúde, que
pretendia mobilizar os trabalhadores de saúde mental para "a prática de
uma nova política consoante com os progressos científicos e tecnológicos
que permitirão ações mais efetivas na promoção, proteção e prevenção
da Saúde Mental" (Costa-Rosa, 1987, p.82). Das conclusões do encontro,
ressaltam-se: os mesmos pontos básicos do modelo comunitário; a
necessidade da consolidação dos instrumentos legais que regem a
atuação em saúde mental, adequando-os à nova orientação assistencial-
preventiva; assinalam os obstáculos existentes para a implantação da
nova política tais como ausência de programas estaduais, dificuldade de
coordenação entre os diversos sistemas de saúde, e carência de pessoal.
Esses encontros prosseguiram, no mesmo ano de 1973,
com o I Encontro Estadual de Técnicos de Saúde Mental, em São
Paulo, e com o II Encontro Regional de Técnicos de Saúde Mental, em
61
João Pessoa. O que pretendeu ser uma série de encontros regionais,
terminou com a realização de apenas três encontros.
É dentro desse contexto que, no Estado de São Paulo,
nos anos de 73/74, Luiz Cerqueira, à frente da Coordenadoria de Saúde
Mental da Secretaria de Estado da Saúde, formulou e tentou implantar
uma nova proposta de assistência em saúde mental. Em sua curta
gestão, dentre outras realizações: proibiu as internações no Juqueri, criou
prontos-socorros para estadia de curta duração, firmou convênios com
faculdades e tentou controlar as internações na rede privada. Ao sair,
afirmou:
Aqui e agora, ao deixar a Coordenadoria, elementar senso de
humildade manda reconhecer que os anos não curam certa
onipotência de reformador que pretendeu dar uma passada
maior do que as pernas. Devo convir, porém, que sem a
experiência destes meses em São Paulo, ainda repetiria a
ousadia de tentar concorrer para uma mudança de
mentalidade...Não se pode reformular sem mexer em nada.
(Cerqueira, 1984c, p.241)
Cerqueira foi substituído por um grupo ligado aos
hospitais privados. Para um melhor detalhamento desse período e das
propostas apresentadas, em especial aquelas referentes ao modelo
comunitário, recomendamos a leitura do texto de Costa-Rosa (1987) que
estamos utilizando.
62
Para Costa-Rosa (Ibid.), o ano de 1975 marcou um ponto
de virada no sentido das propostas e ações que visavam à implantação
do modelo comunitário no âmbito federal, com a vitória da empresa de
saúde na aprovação da lei n.º 6.229, que dispunha sobre a organização
do Sistema Nacional de Saúde e consolidou a dicotomia existente no
sistema, delegando ao Ministério da Saúde um caráter eminentemente
normativo e as ações básicas de saúde, e ao recém criado Ministério da
Previdência e Assistência Social a responsabilidade pelo atendimento
médico-individualizado, ou seja, pela assistência hospitalar. Cerqueira
(1984a) critica duramente essa lei, creditando à Federação Brasileira dos
Hospitais, principal representante dos interesses da medicina privada, a
vitória em sua aprovação. A lei impediu a mudança do modelo tradicional
e privilegiou a opção hospitalar, pois era a que proporcionava mais lucro
ao empresário.
Teixeira & Mendonça (1995), analisando o mesmo
período, destacam um outro aspecto, afirmando que a Previdência Social
foi reforçando o modelo privatizante ao mesmo tempo em que foi criando
espaços, dentro de uma nova ordenação institucional que estava se
estabelecendo, para a discussão das ações governamentais de saúde,
possibilitando a elaboração de programas através dos quais o Movimento
Sanitário pode experimentar suas propostas de forma localizada e
marginal e introduzir alguns focos de mudança.
63
As principais diretrizes desses programas foram: utilização da
rede pública para uma atenção mais integral; introdução de
mecanismos de planejamento na administração de serviços,
introdução da perspectiva da co-gestão entre os órgãos
públicos10; participação dos profissionais e da população no
controle da gestão de serviços. (Ibid., p.215)
É nesse momento histórico que Figueiredo (1996) enfatiza
que, em 1977, foi criado, pela DINSAM, o Projeto Integrado de Saúde
Mental (PISAM), por ocasião da VI Conferência Nacional de Saúde,
inspirado no modelo da psiquiatria comunitária e que defendia uma
política desospitalizante. O projeto retomou os mesmos princípios de
documentos anteriores: utilização da epidemiologia psiquiátrica para
instrumentalizar a elaboração de uma política de saúde mental; ampliação
da rede ambulatorial, criação de centros comunitários de saúde mental,
descentralização e interiorização das ações através do treinamento de
outros profissionais de saúde para atuarem no campo das doenças
mentais. O autor faz referência a um artigo de Freitas, de 1980 (apud
Figueiredo, 1996), que apresenta dados sobre a diminuição das
internações em função da atuação de médicos generalistas nas ações de
saúde mental.
10 Uma dessas co-gestões será efetivada nos hospitais psiquiátricos vinculados à DINSAM, no início dos anos 80. Amarante (1998) detalha esse processo.
64
Em 1979, os Ministros da Saúde e da Previdência Social
publicaram uma Portaria que estabelecia diretrizes de atuação conjunta
em Saúde Mental. Para Costa-Rosa (1987), a leitura do texto da Portaria
demonstra que, se por um lado existia o retorno dos princípios e diretrizes
expressos nos mesmos documentos que serviram de base para a
implantação do modelo comunitário, a sua aplicação estava sob a
regulamentação da lei n.º 6.229, que garantia a preponderância dos
interesses privados. Nesse sentido, conclui que o que se reafirmavam
eram mais os princípios e as diretrizes técnicas do que as práticas do
modelo comunitário.
Interessante salientar que todos esses documentos
oficiais surgiram nos anos mais negros da ditadura militar. É sob o
governo do presidente General Emílio Garrastazu Médici que, por um
lado, crescia substancialmente o número de leitos contratados, seguindo
um claro plano global de privatização da saúde e, por outro, documentos
oriundos do interior do mesmo governo apontavam para uma necessária
revisão dessa mesma política hospitalocêntrica. A análise da experiência
do movimento comunitário da década de setenta, realizada por Costa-
Rosa (1987), ilustra como as ações em termos do processo de estratégia
de hegemonia são complexas e, ao mesmo tempo, capazes de produzir
resultados para o polo dos interesses subordinados, mesmo sob
condições históricas adversas.
65
2.3. O final dos anos setenta: germinam as sementes, brota o Movimento da Reforma Psiquiátrica
Controlando a minha maluquez Misturada com minha lucidez
Eu vou ficar Ficar com certeza
maluco beleza Raul Seixas (música de 1977)
Uma crise na DINSAM, no ano de 1978, foi o estopim do
Movimento da Reforma Psiquiátrica e o início do Movimento dos
Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM). Naquele ano, médicos
denunciaram as precárias condições a que eram submetidos os pacientes
nos hospitais psiquiátricos daquele órgão ligado ao Ministério da Saúde,
que respondeu, demitindo 260 estagiários e profissionais. Em abril,
profissionais das quatro unidades do Rio de Janeiro deflagraram a
primeira greve no setor público após o regime militar, que logo recebeu o
apoio de várias entidades (Amarante, 1998, p.51).
É o ano das greves históricas. No ABC paulista, eclodiu a
greve dos metalúrgicos, também a primeira após a ditadura militar.
Em outubro daquele ano, foi realizado o V Congresso
Brasileiro de Psiquiatria, em Camboriú (SC), conhecido como o
Congresso da Abertura.
66
(...) pela primeira vez, os movimentos de saúde mental
participam de um encontro dos setores considerados
conservadores, organizados em torno da Associação Brasileira
de Psiquiatria, estabelecendo uma 'frente ampla' a favor das
mudanças, dando ao congresso um caráter de discussão e
organização político-ideológica, não apenas das questões
relativas à política de saúde mental, mas voltadas ainda para a
crítica ao regime político nacional. (Amarante, 1998, pp.53-
54)
Ressalte-se que uma das moções, aprovadas ao final do
Congresso, foi a moção pela Anistia, Ampla Geral e Irrestrita.
Várias denúncias foram levantadas, todas centradas
na mercantilização da loucura, através das clínicas privadas, e
na situação asilar, com ênfase no abandono dos hospitais do
Ministério da Saúde, no Rio de Janeiro; entretanto, não se
entreviam ainda possibilidades concretas de modificação do
quadro. (Delgado, 1987, p.175)
O Congresso de Camboriú cumpriu função semelhante à
do MDB, no plano da política. Apesar de conservadora, a Associação
Brasileira de Psiquiatria (ABP) acolheu e abriu espaço para o Movimento
da Reforma Psiquiátrica.
Amarante nos informa que, ainda em 1978, aconteceu o
I Congresso Brasileiro de Psicanálise de Grupos e Instituições, na cidade
67
do Rio de Janeiro, e o lançamento do Instituto Brasileiro de Psicanálise de
Grupos e Instituições (IBRAPSI), uma nova sociedade psicanalítica de
orientação analítico-institucional. O congresso possibilitou a vinda ao
Brasil de diversos e importantes nomes do cenário mundial no campo da
saúde mental, como Robert Castel, Felix Guattari, Erwin Goffman e, em
especial, Franco Basaglia, que iniciaram uma série de debates e
conferências pelo Brasil (Amarante,1998, p.55).
A presença de Basaglia foi um importante momento para
o Movimento. Por onde passou, foi contagiando com suas idéias,
produzindo um efeito de vontade e potência. "Contra o pessimismo da
razão, o otimismo da prática"11, afirmou em várias de suas conferências.
Isso serviu como palavra de ordem para uma geração de profissionais
que, logo a seguir, ingressaram nas instituições de saúde mental e
começaram a buscar novas soluções concretas para aquelas instituições,
fortalecendo a necessidade de se politizar o discurso e a prática do
Movimento de Trabalhadores de Saúde Mental e da Reforma Psiquiátrica.
Em janeiro de 1979, no Instituto Sedes Sapientiae, em
São Paulo, realizou-se o I Congresso Nacional dos Trabalhadores de
Saúde Mental. Foram debatidos desde uma nova identidade profissional,
passando pelo questionamento do modelo asilar dos hospitais públicos
até a luta pela transformação do sistema de saúde vinculado à luta pela
11 Esse também é o título da coletânea de suas conferências no Brasil, (Basaglia, 1979.).
68
democracia. Aprovaram-se moções pelas liberdades democráticas, pela
Anistia, Ampla Geral e Irrestrita, dentre outras. Amarante ressalta que, já
nesse Congresso, se solidificou a crítica ao modelo asilar dos grandes
hospitais públicos como reduto dos marginalizados e uma discussão
sobre os limites dos "suportes teóricos de racionalização dos serviços e
as diretrizes legais para alterar-se a assistência psiquiátrica, num indício
de que a solução política se faz necessária" (Amarante, 1998, p.55), o
que apontou para um direcionamento do movimento em discutir o modelo
de atenção deixando de lado aspectos mais corporativos.
Em novembro de 1979, ocorreu o II Encontro Mineiro de
Psiquiatria, patrocinado pela Associação Mineira de Psiquiatria, com a
participação de Franco Basaglia12, Antonio Slavich e Robert Castel. Entre
clássicos temas dos encontros tradicionais de psiquiatria, discutiram-se
também trabalhos alternativos, assistência psiquiátrica e participação
popular.
As denúncias formuladas nos encontros realizados nos
anos finais da década de setenta conquistaram um espaço na imprensa,
especialmente sobre as péssimas condições dos macro-asilos públicos.
Isso produziu alguns efeitos que apresentamos a seguir.
12 Em sua segunda visita ao país em um curto espaço de tempo.
69
Em 1977, A Assembléia Legislativa de São Paulo instituiu
uma Comissão Especial de Inquérito (CEI)13 para apurar as distorções
nos hospitais psiquiátricos públicos do Estado, especialmente do
Departamento Psiquiátrico II (Hospital do Juqueri), no qual se constatou: a
precariedade das condições de assistência; violência praticada contra
pacientes; um grande número de irregularidades administrativas, como a
grande incidência de roubos e desvios de materiais, incluindo-se aí
remédios psicotrópicos; injunções político-partidárias, e outras mais. Em
seu parecer final, apontava as urgentes providências para que uma série
de sugestões fossem concretizadas. O destino dessas conclusões foi o
mesmo das averiguações realizadas nos anos de 50, 57, 63, 67, 71 e 74:
o buraco negro da administração pública. Nada ou muito pouco foi
realizado.
Em fevereiro de 1978, a Assembléia Legislativa
Fluminense divulgou o relatório final da Comissão Parlamentar de
Inquérito, instituída para apurar irregularidades na rede extra-hospitalar da
Secretaria Estadual de Saúde, composta pelos hospitais de Jurujuba
(Niterói), Vargem Alegre (Barra do Pirai) e Teixeira Brandão (Carmo). Em
sua conclusão, apontaram que os dois primeiros hospitais eram "casos
13 Relatório parcial pode ser encontrado em SOUZA, 1980, p.257-296. A leitura impressiona. Os integrantes da CEI relatam em determinado trecho do relatório o dia-a-dia, como em um diário, o que foram encontrando. Um exemplo: "08/08/77 - Creches! - Falamos com Dr. Eleo em relação às fezes de rato encontradas na sopa dos bebês, segundo ele isto já aconteceu e que está tomando providências. (... ) 26/08/77 Creches! Nesta já foi encontrado na sopa dos bebês, palha de aço, cabelo, fezes de rato e barata, hoje foi encontrado moscas."
70
pavorosos de hospitalização desumana" e que o terceiro era uma
"maravilhosa experiência em assistência psiquiátrica". Naqueles anos, foi
possível encontrar experiências isoladas que garantiam, no mínimo, um
tratamento mais digno, ainda que no interior do asilo. É importante
salientar que os três maiores hospitais do Rio de Janeiro (Centro
Psiquiátrico Pedro II, Hospital Psiquiátrico Phillipe Pinel e a Colônia
Juliano Moreira) não foram objetos de investigação daquela CPI, pois
eram subordinados ao Ministério da Saúde.
Em 1979, uma nova denúncia levou promotores e juízes
de São Paulo ao Manicômio Judiciário, que fazia parte do Complexo
Juqueri. Além dos mesmos velhos problemas, encontraram centenas de
pacientes internados/presos por medida de segurança que já deveriam
estar em liberdade. Juízes e promotores, após a visita correcional,
encaminharam ao Secretário da Saúde (na época, o Dr. Adib Jatene),
pedidos de providências, especialmente no que se referia à contratação
de pessoal especializado (médicos, psicólogos, etc.). Pela primeira vez,
em muitos anos, diversas medidas começaram a ser tomadas em relação
ao Manicômio Judiciário, como a aquisição de equipamentos e a
contratação de profissionais14. Essas medidas repercutiram no início dos
anos oitenta, pois muitos dos profissionais contratados elaboraram e
14 Apesar de estar sob a gestão do Governador Paulo Maluf, o Secretário Estadual de Saúde Adib Jatene conseguia vencer as pressões que tentavam impor critérios com objetivos eleitoreiros em sua administração, que sempre se pautou por critérios técnicos, fortalecendo a posição dos médicos sanitaristas, recebendo e acolhendo a participação dos movimentos populares de saúde (Jacobi, 1989).
71
implantaram propostas de transformação institucional no Complexo do
Juqueri.
Em 1980, a partir do II Encontro Nacional de
Trabalhadores em Saúde Mental (do qual trataremos no capítulo
posterior), foi constituída uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI)
no Congresso Nacional, para apurar as distorções na assistência
psiquiátrica no Brasil, bem como rever a legislação penal e civil pertinente
ao doente mental.
Um filme teve um impacto maior do que essas
Comissões de Investigação juntas: o filme Em nome da Razão, dirigido
por Helvéccio Ratton. Trata-se de um documentário filmado no hospício
de Barbacena, em que a principal voz é dos próprios loucos, que
denunciam com seus rostos e corpos, marcados pelo sofrimento, a
violência institucional dos asilos psiquiátricos. Apesar de não de ter sido
exibido em circuito comercial, o filme transformou-se em um cult movie
underground, circulando por diversas universidades, sindicatos,
associações de profissionais, sensibilizando a sociedade para a questão
da loucura e de suas instituições.
2.4. Retomando as questões...
Desde o início dos anos setenta, encontramos
documentos oficiais, nacionais e internacionais, que apresentam vários
72
elementos presentes no Movimento da Reforma Psiquiátrica: crítica ao
modelo hospitalocêntrico, participação da comunidade nos serviços,
revisão da legislação psiquiátrica, criação e diversificação de novos
serviços, ampliação da rede extra-hopitalar. Em sua grande parte, são
documentos produzidos no interior do aparelho estatal com propostas de
implantação de uma nova política de saúde mental. Produziram algumas
experiências concretas, como no Estado de São Paulo, com Luiz
Cerqueira, mas que não sobreviveram por muito tempo.
Se não conseguiram produzir um efeito de transformação
ou mudança da política da saúde mental, deixaram suas sementes, que
foram regadas e fertilizadas pelos debates e discussões realizados,
principalmente, no interior das universidades. Estas recebiam e faziam
repercutir os ecos das notícias sobre as transformações na assistência
que, desde a década de quarenta e, em especial, a partir de fins dos
anos sessenta, ocorriam na Europa, através de diversos e diferentes
movimentos: Psicoterapia Institucional; Psiquiatria de Setor;
Comunidades Terapêuticas; Anti-Psiquiatria; Psiquiatria Democrática e
nos Estados Unidos: Psiquiatria Preventiva15. Movimentos que, com
maior ou menor intensidade, como modelo de política oficial, prática
alternativa ou modelo substitutivo, influenciaram vários segmentos do
Movimento da Reforma Psiquiátrica.
15 Fleming (1976) irá descrever esses movimentos e Amarante (1998) irá revisitar os paradigmas daqueles movimentos e sua articulação com o Movimento da Reforma Psiquiátrica.
73
É importante salientar as dezenas, talvez centenas de
experiências pontuais, localizadas, muitas efêmeras, espalhadas pelo
país, realizadas ao longo do século16 , que buscavam humanizar o
atendimento ou contrapunham-se ao modelo hegemônico e, se pouco ou
quase nada conseguiram mudar, serviram para lançar sementes e
produzir pequenos brotos.
O Movimento da Reforma Psiquiátrica ganhou uma maior
visibilidade no final dos anos setenta, sob as condições históricas da
retomada dos movimentos populares e da redemocratização. A luta pela
transformação da assistência psiquiátrica surgiu em estreita vinculação
aos temas e às questões políticas que ocuparam a agenda da sociedade:
democratização, anistia ampla, geral e irrestrita e, passaram a fazer
parte dos encontros de profissionais da saúde mental. O debate sobre a
loucura e a instituição asilar saiu dos muros dos asilos e das
universidades e ganhou domínio público, através de denúncias que a
grande imprensa noticiava e da articulação do Movimento com entidades
da sociedade civil sensibilizadas com a questão da violência institucional
e da segregação. O Movimento da Reforma Psiquiátrica hasteou suas
16 Podemos citar, como exemplo, o hospital psiquiátrico de Juqueri onde, nos anos vinte, o Dr. Ozório César utilizava-se da expressão artística como instrumento terapêutico. Nesta mesma linha, vamos encontrar, na década de quarenta, o trabalho da psiquiatra Nise da Silveira e o Museu de Imagens do Inconsciente. Ainda vamos encontrar, nos anos vinte o trabalho do Dr. Ulisses Pernambucano, citado por Luiz Cerqueira como um pioneiro da psiquiatria social brasileira. E, nos anos sessenta e setenta, as experiências de comunidades terapêuticas desenvolvidas em diversos Estados, em especial São Paulo e Rio Grande do Sul.
74
bandeiras ao lado das bandeiras de lutas dos Movimentos Sociais,
inscrevendo-se no processo histórico nacional.
Em relação ao inicio dos anos setenta, período marcado
por uma luta entre os discursos e planos oficiais e o modelo de saúde e a
medicina privada, o Movimento passou a ser animado por uma nova
geração de trabalhadores de saúde mental, que começou a ingressar nas
instituições psiquiátricas em grande número, no final dos anos setenta e,
especialmente, no início dos anos oitenta. Era o caminho da reforma
sendo construído por quem estava nas instituições, vivenciando o
cotidiano de violência, angustiado pelas contradições e questões que a
prática impunha mas que, inspirado pelo clima político cultural, acreditava
na possibilidade de transformação. Foram os atores implicados nesse
processo que continuaram, nos anos oitenta, ampliando, ocupando
espaços na administração pública e, principalmente, inventando novas
instituições.
Foi em um cenário político desfavorável, caracterizado
pelo arbítrio e pelo autoritarismo, que as experiências pontuais
desafiavam a prática manicomial dominante e que discursos e
documentos oficiais clamavam por mudanças institucionais. Foi em um
clima de perseguição e repressão a manifestações de oposição ao
regime, que o Movimento da Reforma Psiquiátrica nasceu e fortaleceu-se
através, principalmente, da mobilização dos trabalhadores que, ao
recusarem o papel de carcereiros da loucura, tornaram visíveis os
75
dispositivos de segregação e violência das instituições psiquiátricas. O
Movimento da Reforma Psiquiátrica alinhava suas bandeiras às bandeiras
de luta de seu tempo histórico, apresentando-se, nessa guerra de
posições, como uma força a mais no campo de luta pela conquista da
direção política ou do consenso (Coutinho, 1981).
A hegemonia, ou o bloco histórico hegemônico, comporta
contradições que possibilitam a abertura de brechas. No campo da saúde,
e da saúde mental em especial, essas brechas e a sua ocupação
propiciaram, por um lado, a criação de espaços no interior do aparelho
estatal que foram instrumentalizados por profissionais comprometidos
com o polo subordinado e, por outro, a construção de práticas que foram
sendo consolidadas e incorporadas ao discurso oficial, nos anos oitenta e
noventa.
76
CAPITULO III
OS ANOS OITENTA - CONQUISTANDO ESPAÇOS E CONSTRUINDO NOVAS PRÁTICAS
3.1. O Cenário: Redemocratização e a reconquista da cidadania
mas renova-se a esperança nova aurora a cada dia
e há que se cuidar do broto prá que a vida nos dê flor e fruto
Coração de estudante Há que se cuidar da vida
Há que se cuidar do mundo Tomar conta da amizade
Alegria e muito sonho Espalhados no caminho
Verdes: planta e sentimento Folhas, coração, juventude e fé.
Wagner Tiso e Milton Nascimento
Os anos do presidente Figueiredo, os últimos do governo
militar, iniciaram-se em um panorama econômico muito semelhante ao
que descrevemos no capítulo anterior. Uma conjuntura financeira
internacional desfavorável, caracterizada por uma recessão mundial, uma
alta taxa de juros, uma nova crise do petróleo e a interrupção de créditos
internacionais colocando a economia brasileira, devedora e tomadora de
empréstimos internacionais, em mais uma grande e grave crise.
77
Internamente, houve uma acentuada queda do Produto
Interno Bruto (PIB), um elevado aumento dos juros internos, um aumento
da dívida externa e uma aceleração do processo inflacionário. Esse
quadro, associado ao modelo concentrador de renda e a um grande
arrocho salarial, levou muitas empresas e empresários a lucrarem com a
inflação. Muitos economistas afirmam que a década de oitenta foi a
década perdida para a sociedade brasileira. Não para a elite brasileira,
que soube aproveitar aqueles anos aumentando o nível de concentração
de renda, colocando o país como um dos campeões mundiais de injustiça
social e com uma das piores distribuições de renda
Se, por um lado, a crise financeira submeteu a população
brasileira a grandes sacrifícios, por outro, livre da ameaça do AI-5, vários
setores puderam organizar-se, nos novos partidos políticos que surgiram
com a reformulação partidária, nos movimentos populares que
conquistaram mais espaço e força naqueles anos, e nos sindicatos que
ampliaram o temário de suas reivindicações, introduzindo temas como
moratória internacional e rompimento com o Fundo Monetário
Internacional (FMI).
O ano de 1980 começou com os novos partidos que
surgiram da reorganização partidária efetuada em fins de 1979, que
objetivava desarticular a frente de oposição e retirar o peso negativo que
a sigla ARENA representava, substituindo-a pela sigla PDS (Partido
Democrático Social). Surgiram: o Partido Popular liderado por Tancredo
78
Neves, que pouco durou; o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), após
uma intensa luta judicial ficou com Ivete Vargas, obrigando Leonel Brizola
a criar uma outra sigla PDT, (Partido Democrático Trabalhista) e
reivindicar para si a tradição getulista; o MDB, que se manteve
relativamente coeso e liderado por Ulisses Guimarães, transformou-se em
Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB); e o Partido dos
Trabalhadores (PT), tendo como presidente o líder do sindicalismo do
ABC Luís Inácio Lula da Silva, saudado pelas esquerdas como o mais
importante fato novo da política brasileira. Os partidos legalizaram-se em
1980, mesmo ano em que o presidente convocou, para o ano de 1982,
as primeiras eleições para governadores do período militar.
O movimento sindical recebeu um duro tratamento no
início do governo presidencial de Figueiredo, com a intervenção nos
sindicatos, afastamento de seus dirigentes, a prisão de vários líderes,
inclusive Lula, então presidente do sindicato dos metalúrgicos de São
Bernardo do Campo. Mas a intimidação não surtiu o efeito esperado. Pelo
contrário, o movimento sindical fortaleceu-se com a articulação com
setores da Igreja Católica, associação de moradores e os partidos
políticos mantendo uma mobilização contra o governo.
Em 1983, foi criada a Central Única dos Trabalhadores
(CUT), que teve um papel fundamental na organização e articulação do
movimento sindical e como interlocutor dos interesses da classe
trabalhadora em negociações junto ao governo e aos empresários.
79
Os anos iniciais do governo Figueiredo também foram
marcados por uma série de atos terroristas, atribuídos a organizações
clandestinas de direita. No ano de 1980, ocorreram 46 deles.
Em São Paulo, o jurista Dalmo Dallari, ligado à
Arquidiocese de São Paulo, é seqüestrado e ferido. No Rio de
Janeiro, em setembro, uma carta-bomba endereçada ao
presidente da OAB, jurista Seabra Fagundes, explode e mata
sua secretária, Lyda Monteiro da Silva. Outra, no mesmo dia,
fere algumas pessoas na Câmara Municipal do Rio de Janeiro.
Muitas bancas de jornal que vendem publicações esquerdistas
são destruídas à bomba. (Couto, 1999, pp.283-284)
Contudo, o ato de maior impacto e de maior
conseqüência política foi a bomba do Riocentro. Como parte das
comemorações do Dia do Trabalho de 1981, foi realizado um show com a
participação de vários artistas consagrados da música popular brasileira.
A certa altura, duas bombas explodiram: a primeira em um carro,
matando um sargento do exército e ferindo um capitão, e outra na casa
de força. Nenhuma dessas explosões interrompeu ou causou qualquer
transtorno ao show e aos seus participantes. Uma tragédia de grandes
proporções não ocorreu por muito pouco. Investigações realizadas pelos
órgãos militares concluíram, cinicamente, que a bomba havia sido um ato
terrorista de esquerda, quando todos os indícios e evidências apontavam
80
exatamente para o oposto, ou seja, que os responsáveis estavam dentro
do próprio exército, confrontando o processo de redemocratização.
Paradoxalmente, as bombas mostraram uma espantosa
eficácia: dividiram o governo que mantinha apenas uma aparente
unidade; produziram uma ampla repercussão negativa; mobilizaram a
opinião pública, que não aceitou a farsa dos relatórios; provocaram um
repúdio da maioria do Congresso; causaram um forte desgaste na
imagem do Exército; e geraram uma crise política decorrente da saída do
governo do Gal. Golbery do Couto e Silva, um dos principais mentores e
coordenadores intelectuais do processo de abertura. A abertura política
saiu fortalecida do episódio e a linha dura do Exército e o terrorismo de
direita ficaram inibidos. Couto (1999), ao relatar o ocorrido, afirma:
Há quem suspeite que o episódio possa ter viabilizado
um compromisso eticamente reprovável, mas de interesse da
abertura: a troca da impunidade dos responsáveis - via
apuração restrita e controlada - pela aceitação da continuidade
da abertura pelos radicais [de direita], inclusive das eleições
diretas para governador em 1982. (Ibid., p.303)17
Era o início do fim dos governos militares. Desgastado,
sem credibilidade, sem legitimidade, enfrentando uma das piores crises
17 O autor faz citação de um trecho do livro Estado e oposição no Brasil, de Maria Helena Moreira Alves, que afirma claramente que houve de fato essa negociação interna entre duas facções opostas do Estado de Segurança Nacional: impunidade em troca das eleições.
81
econômicas, o presidente João Batista Figueiredo ainda teve que
administrar inúmeras divisões internas em seu governo, inclusive a
dissidência de seu vice civil Aureliano Chaves e do presidente do partido
de sustentação do governo, José Sarney.
Em novembro de 1982, foram realizadas as eleições para
governadores. Os partidos de oposição saíram vitoriosos das urnas,
elegendo governadores nos mais importantes Estados brasileiros como
São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.
Essas vitórias ampliaram o espaço político e o poder da
oposição não apenas como organizações político-partidárias, mas como
uma frente ampla pela restauração do regime democrático. Abriram,
também, espaços institucionais importantes que foram ocupados, em
muitos casos, por aqueles personagens excluídos e perseguidos pelo
regime militar e por vários outros militantes comprometidos com os
interesses das classes trabalhadoras. Isso transformou cada instituição
em um importante palco de luta entre dirigentes e burocratas
remanescentes do regime militar e os novos profissionais comprometidos
com o processo de transformação. No campo da saúde e, em especial, da
saúde mental, isso foi particularmente verdadeiro. Nos asilos
psiquiátricos, o primeiro dos palcos, os profissionais que ingressaram com
o objetivo de transformar aquelas instituições enfrentaram a psiquiatria
burocrática (Costa, 1991), construída ao longo dos anos da ditadura e
entranhada nas relações institucionais.
82
Com o enfraquecimento do governo e uma crescente
insatisfação popular, a frente de oposição foi incorporando cada vez
mais segmentos oriundos do regime18, ampliando-se e pagando, nesse
processo, o custo da convivência com crescentes contradições.
Em 1984, um movimento iniciado no ano anterior, sem
muita expressão, em apoio à emenda do Deputado Federal Dante de
Oliveira, que propunha eleições diretas para presidência ao final daquele
ano, foi ganhando força e crescendo vertiginosamente entre janeiro e
abril. Organizada por uma frente suprapartidária, com o apoio dos
governadores de oposição, a campanha das Diretas-Já mobilizou milhões
de pessoas em diversos comícios por várias cidades do país, finalizando
com dois gigantescos, na Candelária no Rio de Janeiro e no Vale do
Anhangabaú, em São Paulo, em que se contabilizou mais de um milhão
de pessoas em cada um deles. Havia uma vibrante energia política no ar.
A participação da população, preferindo o papel de protagonista ao de
espectador, surpreendeu aos próprios organizadores, atropelando e
acelerando o processo. Criou-se um clima de resgate da cidadania em
torno das palavras de ordem quero votar para presidente e Diretas-Já.
18 Cuja participação na frente, muitas vezes, era menos uma decorrência de uma posição ideológica e mais um descontentamento que expressava apenas o fato de terem sido preteridos em alguns negócios, ou da perda de espaço no interior do próprio governo.
83
Mas, apesar da mobilização, a emenda foi rejeitada no
Congresso Nacional19. Um clima de imensa frustração e revolta tomou
conta do país. Uma das maiores mobilizações populares da história do
Brasil, que uniu as oposições, fraturou a base parlamentar do governo,
não podia terminar sem nenhuma mudança. A energia política foi
canalizada para uma candidatura indireta apresentada ao Colégio
Eleitoral.
Ao final daquele ano de 1984, como resultado de intensas
articulações políticas públicas e de bastidores, que acabaram por afastar
o nome do deputado Ulisses Guimarães, o senhor Diretas-Já, de disputar
a Presidência pela via indireta, o colégio eleitoral elegeu o nome de
Tancredo Neves, como o primeiro presidente civil pós-golpe militar, dando
início à Nova República.
No dia 15 de março de 1985, o regime militar encerrou-se
após mais de vinte anos. Mas o país não viu o presidente Tancredo
Neves assumir, e sim o senador José Sarney, fundador e primeiro
presidente do PDS, que abandonara para se candidatar a vice.
Tancredo, após uma agonia de 37 dias, morreu no dia 21 de abril. O
presidente Sarney, mantendo os compromissos democráticos assumidos,
em maio daquele ano promulgou uma emenda constitucional que
restabelecia as eleições presidenciais e para as prefeituras das capitais e
19 A emenda obteve 298 votos, mas precisava de 320. Houve 65 infames votos contrários e 115 covardes ausências.
84
cidades consideradas de segurança nacional, e abrandou as exigências
para o registro de novos partidos, criando condições para que
tradicionais partidos de esquerda pudessem se legalizar, além de
inúmeras outras agremiações. Em novembro, foram realizadas as
primeiras eleições para as capitais e principais cidades do país, após o
regime militar.
A Nova República de Sarney foi marcada por um
momento econômico, o Plano Cruzado, e por outro político, a
promulgação da Constituição, em 1988.
O Plano Cruzado, de 1986, foi o primeiro de uma série de
planos de estabilização econômica implantados no período de 1986-94.
Suas principais características foram a substituição da moeda (o cruzeiro
foi temporariamente aposentado pelo cruzado), o congelamento de
preços, dos salários e do câmbio. Ao longo do ano de 1986, conseguiu-
se manter a inflação, um dos maiores problemas econômicos, em
patamares muito baixos. Porém o governo, encantado com os dividendos
políticos do plano, recusou-se a efetuar modificações necessárias para
sua sobrevivência antes das eleições de novembro daquele ano. O PMDB
obteve uma vitória esmagadora, elegendo governadores em praticamente
todos os Estados. O plano econômico afundou logo depois, com a volta
da inflação.
85
O Congresso eleito naquele ano ganhara poderes de
constituinte e, sob a presidência do deputado Ulisses Guimarães,
elaborou a nova Constituição, a primeira da história do país a aceitar
emendas populares20. Em seus quase 250 artigos, destacam-se os
direitos individuais e coletivos. Em seu artigo n.º 196, do Da Ordem
Social, fixou que a Saúde é um direito de todos e dever do Estado,
consolidando na carta constitucional uma das bandeiras de luta do
Movimento Sanitário, o eixo central do Sistema Único de Saúde (SUS)
(Teixeira & Mendonça, 1995). Promulgada em outubro de 1988, marcou a
retomada plena das liberdades civis.
Naquele mesmo ano de 1988, foram realizadas novas
eleições para as capitais e principais cidades do país. O PMDB, grande
vitorioso na eleição anterior, perdia nas principais capitais e cidades para
os partidos de oposição (ao PMDB). As grandes surpresas foram a vitória
do PT na cidade de São Paulo e na cidade de Santos. Em ambas, com
candidatas mulheres.
Em 1989, o processo de redemocratização teve
finalmente seu fim, com a eleição por via direta do Presidente da
República. Disputaram 24 candidatos, que realizaram comícios,
passeatas, carreatas, showmícios. Mas foi o horário político nas
emissoras de rádio e TV e os debates promovidos pelas grandes redes
20 Estas deveriam ser apresentadas por, pelo menos, três entidades e conter um mínimo de trinta mil assinaturas.
86
que cumpriram o papel de formadores de opinião dos eleitores. No
segundo turno, houve uma disputa acirrada entre Fernando Collor de
Mello e Luís Inácio Lula da Silva. As forças de esquerda se uniram em
torno do nome de Lula, enquanto o empresariado21 e as elites
fortaleceram a candidatura de Collor, mesmo sabendo que não passava
de um aventureiro. Utilizando-se de ataques pessoais, principalmente nos
últimos dias da campanha, Collor conseguiu reverter uma forte tendência
do eleitorado em favor de Lula, e venceu as eleições com 35 milhões de
votos contra 31 milhões. A república de Alagoas22 teve seu início junto
com os anos noventa.
3.2. Construindo a Reforma Psiquiátrica
Contra o pessimismo da razão o otimismo da prática
Franco Basaglia
Como dissemos no capítulo anterior, o Movimento da
Reforma Psiquiátrica teve seu início nos anos finais da década de
setenta, com críticas ao sistema de assistência psiquiátrica e à indústria
21 Mário Amato, líder dos empresários paulista, afirmou que se Lula vencesse todos os empresários iriam embora do Brasil no dia seguinte. 22 Confraria de amigos do presidente, em sua grande maioria do Estado de Alagoas, que se instalou no poder.
87
da loucura, que saíam dos muros dos asilos e das universidades, para
conquistar visibilidade social. Diferentemente dos anos anteriores, quando
as questões sociais que envolviam a saúde mental não eram citadas nos
documentos e encontros oficiais, elas ganharam destaque e deslocaram
o eixo do movimento para uma discussão mais política e social. Seu ator
também se modificou, com a entrada em cena do Movimento dos
Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM), que foi se ampliando ao longo
dos anos.
Em 1980, assim como ocorreu no ano anterior em São
Paulo, foi realizado no Rio de Janeiro o I Encontro Regional de
Trabalhadores em Saúde Mental, onde se discutiram:
problemas sociais relacionados à doença mental, à política
nacional de saúde mental, às alternativas surgidas para os
profissionais da área, suas condições de trabalho, à
privatização da medicina, à realidade político-social da
população brasileira e às denúncias das muitas barbaridades
ocorridas nas instituições psiquiátricas. (Amarante 1998,
p.56)
No mesmo ano, em Salvador, aconteceu o II Encontro
Nacional de Trabalhadores de Saúde Mental, paralelo ao VI Congresso
Brasileiro de Psiquiatria. Segundo Amarante (1998), o Movimento dos
Trabalhadores e a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), que no
congresso anterior estavam próximos, experimentaram um
88
distanciamento, tendo como um dos pontos críticos o caráter não-
democrático para a eleição da diretoria da ABP, apesar de a mesma ter
sido signatária do Movimento pela Anistia e pelas liberdades
democráticas. Foram aprovadas moções de apoio à luta pela
democratização na ABP e federadas e de crítica à privatização da saúde.
Naquele congresso, foram discutidos temas como a
defesa dos direitos dos pacientes psiquiátricos, através de grupos de
defesa dos direitos humanos e da vinculação da luta da saúde aos
movimentos populares. Amarante apresenta outros temas que foram
também debatidos:
implicações econômicas, sociais, políticas e ideológicas na
compreensão das relações entre o processo de proletarização
da medicina, do poder médico, da assistência médico-
psiquiátrica em processos de exclusão e controle sociais mais
abrangentes. Critica-se o modelo assistencial como ineficiente,
cronificador e estigmatizante em relação à doença mental. Os
determinantes das políticas de saúde mental, do processo de
mercantilização da loucura, da privatização da saúde, do
ensino médico e da psiquiatrização da sociedade. (Amarante,
1998, p.56)
Observa-se, pelos temas, uma crescente preocupação
em ampliar as discussões do campo técnico para uma perspectiva política
e social, sintonizados com o contexto histórico em que o Movimento da
89
Reforma Psiquiátrica estava imerso. Tratava-se aqui da necessidade de
articulação, não só no âmbito das discussões, mas das ações com outros
setores sociais, que naquele momento lutavam pela redemocratização do
país através da luta pela reconquista dos direitos civis, por uma liberdade
de organização e participação política, pela democratização da ordem
econômica. Nesse sentido, a saúde mental começava a ser tomada, no
interior do Movimento da Reforma Psiquiátrica, como uma questão que
transcendia os limites e os muros dos asilos e das discussões
acadêmicas. A política de saúde, as instituições, a prática profissional,
eram compreendidas a partir da análise dos interesses de classes que
representam e da função social que cumprem. A luta pela transformação
da saúde mental passou, portanto, para uma luta maior pela
transformação da saúde e da sociedade.
Dentro desta perspectiva, que já apresentamos
anteriormente no capítulo I, vale ressaltar alguns importantes momentos
daqueles anos, no campo da luta pela transformação da saúde
empreendida pelo Movimento Sanitário, e as conseqüências para o
Movimento da Reforma Psiquiátrica.
No início dos anos oitenta, a crise financeira da
Previdência Social se agrava, exigindo do governo uma solução. Surgiu o
Plano Prev-Saúde, que incorporou teses e propostas do Movimento
Sanitário, tais como descentralização, hierarquização, regionalização e
ênfase aos serviços básicos de saúde. Após suscitar debates e
90
polêmicas, acabou por não ser implementado. Mas houve a incorporação
de alguns intelectuais do Movimento Sanitário na burocracia estatal, na
tentativa de se buscar soluções para crise.
Um exemplo desse processo de incorporação foi o que
ocorreu nas instituições públicas do Ministério da Saúde (MS), por
ocasião do convênio de co-gestão estabelecido com o Ministério da
Previdência e Assistência Social (MPAS). Por esse convênio, o MPAS
deixava de ser um comprador de serviços das unidades hospitalares do
MS e passava a colaborar no custeio, planejamento e avaliação,
participando da administração global das unidades co-geridas. Várias
instituições participaram desse convênio, dentre elas os hospitais
psiquiátricos vinculados à DINSAM. Amarante (1998) detalha esse
processo, destacando que foi um marco nas políticas públicas de saúde,
pois possibilitou a incorporação de setores críticos do sistema de saúde
no interior do aparelho estatal e a criação de espaços concretos de
transformação daquelas instituições de saúde que estavam sob o modelo
da co-gestão.
No final de 1981, a Presidência da República criava o
Conselho Nacional de Administração da Saúde Previdenciária
(CONASP), um foro que contou com a participação, não-paritária, de
representantes governamentais, patronais, universitários da área médica
e dos trabalhadores. Em agosto de 82, o trabalho do CONASP se
consubstanciou no Plano de Reorientação da Assistência Médica da
91
Previdência, que propunha oficialmente modificações que objetivavam a
racionalização do sistema, a melhoria da qualidade dos serviços e a
reversão do modelo assistencial privatizante, com a descentralização e
utilização prioritária dos serviços públicos federais, estaduais e municipais
na cobertura assistencial da população. Como parte do Plano de
Reorientação, o Projeto de Ações Integradas de Saúde (AIS) foi um
importante instrumento no avanço da adoção dos princípios de
universalização, de eqüidade e de integração dos serviços de saúde, em
especial para o Estado de São Paulo, que descreveremos um pouco mais
adiante.
No âmbito da saúde mental, o CONASP elaborou na
mesma época um plano específico para a assistência psiquiátrica, que
propunha diretrizes gerais para uma reformulação, tais como a
descentralização, regionalização e hierarquização dos serviços, e o
fortalecimento da intervenção do Estado. Foi implantado
experimentalmente como projeto-piloto no Rio de Janeiro (Amarante,
1998).
Em 1981, brasileiros de diversos Estados participaram,
em Cuernavaca, no México, de um encontro da Rede Internacional de
Alternativa à Psiquiatria.
A rede, no Brasil, pretendia ser o núcleo agregador de
todos os movimentos alternativos existentes e que estivessem
atuando isoladamente. A rede chega, de fato, no Brasil, em
92
1982, ano eleitoral, conjuntura pluripartidária com partidos em
formação, ditadura militar em declínio, e se instala
principalmente no eixo São Paulo, Rio de Janeiro e Minas
Gerais. (Figueiredo, 1988, p.161)
Vale ressaltar que se de fato a rede chegou ao Brasil em
1982, desde o final dos anos setenta já circulavam informações e
adesões informais. Em um certo sentido, já estávamos integrados à rede.
3.3. Um pouco de São Paulo: das Ações Integradas de Saúde a Plenária de Trabalhadores de Saúde Mental.
Como destacamos anteriormente, o processo de
redemocratização do país possibilitou o acesso aos cargos executivos das
políticas públicas de saúde, em todos os níveis (federal, estadual e
municipal), de uma geração de profissionais comprometida com propostas
e políticas de transformação da saúde e da sociedade. A mesma geração
que no final dos anos setenta, com sua militância, havia iniciado tanto o
Movimento Sanitário quanto o da Reforma Psiquiátrica. Isso possibilitou,
no campo da saúde mental, a proliferação de trabalhos e experiências
que, inicialmente isoladas e sem reconhecimento oficial, começaram a se
articular, fortalecendo e ampliando o movimento.
Esse processo ocorreu em diversos Estados, mas
concentraremos nossa análise no Estado de São Paulo, sem deixar de
93
lado os eventos nacionais importantes, por possuirmos mais elementos
para tal caminhada, tanto no que se refere aos documentos quanto às
impressões e marcas da memória, por termos participado pessoalmente
desse processo.
3.3.1. A Sorbonne
Em 1982, em São Paulo, diversos grupos constituíram-se
para elaborar o programa de governo do então candidato Franco
Montoro, cuja bandeira principal estava na palavra de ordem: é hora de
mudar. Esses diversos grupos ficaram conhecidos como Sorbonne.
Em setembro, um grupo de profissionais da saúde mental,
professores, e outros, após um grande número de reuniões23 e
discussões realizaram um seminário para consolidar os princípios de um
programa de saúde mental, cujos pontos mais importantes eram:
regionalização, hierarquização e integração dos serviços, com ênfase no
trabalho nos níveis primário e secundário, uma progressiva
desospitalização com a desativação de leitos psiquiátricos vinculadas à
criação de redes de ambulatórios e centros de saúde, criação de
leitos de retaguarda em
94
hospitais gerais, trabalhos com a comunidade, investimentos na
preparação de recursos humanos e suspensão paulatina dos convênios
com hospitais psiquiátricos privados.
"É importante notar que nem todos os participantes eram
adeptos do PMDB. Havia muita vontade de mudar, depois de tantos anos
de escuridão, e todo mundo participava de tudo o que podia" (Cesarino,
1989, p.7). Nascia ali a política de saúde mental tanto do governo do
Estado de São Paulo, quanto da prefeitura municipal de São Paulo,
levada a cabo pelo prefeito nomeado Mário Covas. Os princípios
colocados já estavam consagrados em diversos documentos, como o
plano CONASP que citamos anteriormente, embora alguns pontos não
tenham sido incorporados posteriormente, nem ao discurso e muito
menos à prática da Coordenadoria de Saúde Mental (CSM) da Secretaria
de Estado da Saúde. Referimo-nos, especialmente, à desativação de
leitos e à suspensão paulatina dos convênios com hospitais psiquiátricos
privados, que caiu no esquecimento, apesar de constar como uma das
diretrizes.
3.3.2. As Ações Integradas de Saúde
23O grupo ficou conhecido como o grupo da Madre Teodora, pois as reuniões eram realizadas na rua com o mesmo nome.
95
Um fato de grande importância na implantação não só das
propostas de saúde mental, mas de um projeto de transformação da
assistência em saúde, aconteceu em outubro de 1983, quando se
estabeleceu um convênio entre o Ministério da Previdência e Assistência
Social, o Ministério da Saúde e o Governo do Estado de São Paulo,
contando com a adesão da Prefeitura Municipal de São Paulo, para
implantação das Ações Integradas de Saúde, a que nos referimos
anteriormente e que aqui se chamou Programa de Ações Integradas de
Saúde. Esse programa possibilitou um repasse de verbas da União para
o Estado e Prefeituras que foram utilizadas, principalmente, no
reaparelhamento e reformas dos equipamentos públicos, na contratação
de pessoal para ampliação da rede de assistência e na implantação e
ampliação de diversos programas de saúde.
O documento do convênio estabelecia os seguintes
princípios e diretrizes:
• ... responsabilidade do Poder Público em relação à saúde
da população e ao controle do sistema de saúde;
• integração interinstitucional, tendo como eixo o setor
público, ao qual esta articulado, técnica e funcionalmente, o
setor privado prestador de serviços;
• definição de programas, ações e atividades das instituições
envolvidas, a partir do quadro de doenças mais prevalentes em
nível regional e local;
96
• integralidade das ações de saúde, superando as
dicotomias preventivo/curativo, individual/coletivo,
ambulatório/hospitalar;
• regionalização e hierarquização única dos serviços
públicos e privados;
• valorização das atividades básicas de saúde assegurando-
se o encaminhamento dos casos de comprovada necessidade
de atendimento mais complexo;
• utilização prioritária e plena da capacidade instalada da
rede pública;
• descentralização do processo de planejamento e de
administração;
• planejamento da cobertura assistencial, a partir das
necessidades de atendimento da população, com parâmetros e
estratégias assistenciais de melhor custo/benefício;
• co-participação, claramente definida, das várias instituições
envolvidas, no financiamento das ações de saúde, de acordo
com as responsabilidades institucionais;
• desenvolvimento de recursos humanos como condição
básica na operação do sistema, incluindo definição dos
conteúdos e estratégias de formação de recursos humanos,
assentada sobre a prática de serviços de saúde, e o
estabelecimento de Planos adequados de Cargos e Salários;
97
• reconhecimento da legitimidade de participação dos vários
segmentos sociais na definição, no encaminhamento de
soluções e na avaliação do nível de desempenho da
assistência prestada. (apud Pitta-Hoisel, 1984, pp.108-109)
Pitta-Hoisel (Ibid.) nos informa que o projeto previa a
constituição de comissões gestoras: em nível estadual, Comissões
Interinstitucionais de Saúde (CIS); em nível regional, Comissões
Regionais Interinstitucionais (CRIS) e, em nível municipal, Comissões
Locais ou Municipais Interinstitucionais de Saúde (CLIS ou CIMS). Previa
também um órgão deliberativo interministerial entre os Ministérios da
Saúde, Educação e Previdência Social, que trabalhariam em consonância
com o Conselho Nacional de Secretários de Saúde, no acompanhamento
das AIS.
Nesse convênio, já estavam colocados os princípios e
diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS): universalidade; eqüidade;
descentralização, regionalização e integração dos serviços de saúde;
atenção integral; prioridade às ações básicas de saúde e a participação
popular. Essas foram as primeiras conquistas concretas do Movimento da
Reforma Sanitária, que instrumentalizaram e nortearam o processo de
transformação da saúde, caminhando para o Sistema Único e
Descentralizado de Saúde (SUDS), em meados dos anos oitenta, até a
consagração do SUS, nos anos noventa. No âmbito do Estado de São
98
Paulo e do país, aconteceu o início de uma longa e árdua jornada que
continua nos dias atuais.
É importante destacar que, na cidade de São Paulo,
encontramos no início dos anos oitenta a formação de diversos Conselhos
de Saúde, organizados a partir das pressões e demandas apresentadas à
Secretaria de Estado da Saúde pelos movimentos populares. Segundo
um depoimento de um representante daquela secretaria, a "população
hoje está muito danada, chega com papel todo preparado, explicando o
que precisa. Ela sabe pedir, e só pede o que vai conseguir" (Jacobi, 1989,
p.110). Lembramos que a participação popular no controle e fiscalização
dos serviços de saúde já era prevista na legislação no final dos anos
setenta e hoje está regulamentada por lei federal, através de
representação paritária nos três níveis deliberativos do SUS: Conselho
Municipal de Saúde; Conselho Estadual de Saúde e Conselho Nacional
de Saúde, e também no nível institucional, com o Conselho Gestor de
Unidade.
O Programa das Ações Integradas de Saúde possibilitou
a implantação de uma importante experiência no município de São Paulo,
o projeto Zona Norte24, e a implementação da política de saúde mental da
Secretaria de Estado da Saúde. Marcos Pacheco Toledo Ferraz, então
24 O Projeto de Ações Integradas de Saúde Mental na Zona Norte, do município de São Paulo, foi o primeiro projeto na cidade a propor e executar uma integração e uma hierarquização entre diferentes serviços, contemplando ações em nível primário, secundário e terciário (Cesarino, 1989).
99
coordenador, apontava as prioridades da Coordenadoria de Saúde
Mental:
a) implantar ações de saúde mental em Centros de Saúde, com
uma equipe mínima composta por psicólogo, psiquiatra e
assistente social;
b) ampliar a rede ambulatorial;
c) recuperar os leitos próprios;
d) promover a regionalização, hierarquização e integração dos
serviços. (Toledo Ferraz & Morais, 1985, p.16)
No mesmo texto, os autores destacam: a expansão no
âmbito estadual da rede extra-hospitalar25, com a criação de novos
ambulatórios de saúde mental e a implantação das equipes mínimas em
vários centros de saúde; a parceria com as universidades e com
instituições formadoras26 para capacitação dos profissionais da rede; o
esforço empreendido no sentido de prover a Coordenadoria de Recursos
Humanos; e os investimentos realizados no sentido de recuperar os
hospitais psiquiátricos públicos, objetivando resgatar "seu caráter
terapêutico, transformando-os em unidades ágeis, funcionantes e sobre
tudo os mais humanizados possíveis " (Toledo Ferraz & Morais, 1985,
p.16). Ressaltaram as ações que estavam sendo executadas no Juqueri.
25 Vide quadro 2 do anexo. 26 Tais como Instituto Sedes Sapientiae, Instituto de Psicanálise, Sociedade de Psicodrama.
100
3.3.3. O Juqueri
O Juqueri, exatamente por seu forte significado simbólico
e por ter sido alvo de denúncias e de uma Comissão Parlamentar de
Inquérito (CPI), no final dos anos setenta, havia sido destaque na
formulação da política de saúde mental com uma proposta reformista que
consistia em melhorar as condições de moradia e humanizar as relações
interpessoais. Em entrevista a Cid Pimentel, Francisco Drummond, diretor
clínico do Juqueri, no início do Governo, afirmava:
Para repensá-lo enquanto espaço de moradia das
pessoas, seria necessário basicamente duas coisas: uma,
confrontar o discurso médico legitimador daquele espaço como
espaço terapêutico e, por outro lado, tentar promover uma
transformação da forma como o conjunto de funcionários viam
e compartilhavam a instituição, do ponto de vista ideológico. A
luta que se travava ali era uma luta ideológica. (apud Castro
Sá & Pimentel, 1991, p.106)
Percebe-se que o diretor clínico do Juqueri propunha algo
que contestava o discurso do próprio Coordenador.
Na mesma entrevista, Drummond apontava a
necessidade de se efetivar a proposta e relatava que foram formuladas
duas ações concretas que se traduziram no eixo das mudanças a serem
implementadas. A primeira, os Centros de Convivência, eram espaços
101
externos aos pavilhões, onde se desenvolviam diversas atividades
expressivas, terapêuticas e culturais, cujo objetivo principal era criar uma
prática institucional demonstrando, especialmente aos funcionários e
técnicos, que os pacientes não precisavam ficar confinados aos pátios,
que a liberdade era possível27. A segunda, os Lares Abrigados, eram
pavilhões modificados para serem transformados em moradias de fato,
com possibilidade de personalização, organização auto-gerida pelos
próprios pacientes, doravante renomeados de moradores, o que lhes
garantia também a possibilidade de sair e voltar.
Apesar das propostas de mudanças, esse conjunto de
ações só pôde ser plenamente implementado no ano de 1984, a partir de
uma nova denúncia na imprensa que gerou uma crise institucional, em
fevereiro daquele ano, e levou o Governador Franco Montoro ao Juqueri.
Como conseqüência, a instituição sofreu uma intervenção, uma grande
injeção de recursos financeiros e a agilização na contratação de recursos
humanos.
Inegavelmente, a administração da CSM, à época, teve
seus méritos, especialmente por implantar uma política de saúde mental
até então inexistente, excetuando-se a efêmera passagem de Luiz
Cerqueira à frente daquela Coordenadoria de Saúde Mental. O que
significa dizer que existia uma proposta de trabalho, com pressupostos
27 Costumava repetir uma frase de Basaglia que ficou marcada como uma espécie de lema do processo de transformação do Juqueri : �a liberdade é terapêutica�.
102
conceituais, em torno da qual foram organizados equipamentos,
contratadas equipes, executadas ações, realizados investimentos.
Frente ao que havia e ao que houve depois, em termos de política de
saúde mental, foi um grande e meritório esforço. Os conceitos daquela
política de saúde mental tinham uma nítida influência da psiquiatria
preventiva norte-americana, ainda que com certas noções de psiquiatria
de setor francesa. Lancetti (1989) elabora uma critica àquela política,
tomando como eixo de sua análise a Proposta de Trabalho para equipes
multiprofissionais em Unidades Básicas e Ambulatórios de Saúde Mental,
conhecida como a Cartilha da Coordenadoria de Saúde Mental, em que
aponta os limites e os riscos da noção de prevenção ali contidos. Também
o trabalho de Costa-Rosa (1987), já citado, apresenta uma análise crítica
da política de saúde mental do governo Montoro.
Um outro ponto crítico nas ações daquele período é o que
se refere aos leitos psiquiátricos. Embora com o poder institucional para
intervir de maneira firme no sentido de reduzir o número excessivo de
leitos psiquiátricos existentes no Estado, a CSM, no período de 83 a 85,
conforme o texto já citado do próprio coordenador, manteve o percentual
de destinação orçamentária, ou seja, 38% dos gastos eram destinados
aos hospitais conveniados28. Apesar dos documentos citarem
constantemente uma frase de Gentile de Melo, para quem o "doente
mental é um cheque ao portador para o empresário da saúde", e ressaltar
28 Vide quadro 1 do anexo.
103
que a ênfase excessiva na hospitalização era movida por interesses do
lucro, não houve um gesto efetivo da Coordenadoria de Saúde Mental
para fiscalizar a assistência prestada nos hospitais psiquiátricos
conveniados, tais como o tempo de permanência, número de
reinternações ou qualquer outro indicador de qualidade.
3.3.4. Plenária dos Trabalhadores de Saúde Mental
A ampliação das unidades trouxe para o campo da saúde
mental uma geração de jovens profissionais que, em sua grande maioria,
recém-saídos das universidades, não estavam contaminados pela inércia
burocrática das instituições públicas, e "assumiram com entusiasmo e de
forma crítica a tarefa de implantar as novas propostas e,
fundamentalmente, trabalhar acreditando em mudanças" (Yasui, 1989,
p.49).
É importante salientar que, se, em 1978/79, o quadro
político tinha como pauta o fim da ditadura, a Anistia Ampla, Geral e
Irrestrita, o fim do AI-5, o momento agora era o da reivindicação em
massa pela eleição direta para presidente da república. Para lá fluíam os
inúmeros movimentos sociais que também naquele período começavam a
despontar, como já destacamos anteriormente.
104
Contaminados pelo momento histórico e por um espírito
coletivo de participação, os trabalhadores de saúde mental procuravam
traduzir para o cotidiano essa vontade, essa energia no
compromisso com o trabalho, com a mudança. Um significativo
exemplo foi o I Congresso de Trabalhadores de Saúde Mental
de São Paulo, em 1985. Após os discursos oficiais de abertura,
dezenas de profissionais ergueram-se de suas cadeiras e
enunciaram um protesto coletivo (...) expressão daqueles que
'nomeados' pelo Estado como trabalhadores, assumiam de fato
essa condição, reivindicando uma participação mais efetiva nas
decisões daquilo que, afinal, é o seu ofício: o trabalho em
saúde mental. (Yasui, 1989, p.50)
Começava a nascer a Plenária de Trabalhadores de
Saúde Mental, um agente social coletivo que congregava diversas
entidades e que atuou como um saudável e severo crítico das
contradições da Coordenadoria de Saúde Mental de São Paulo. Havia
naquele momento um grande clima de discussão, por vezes até
passional, entre diversos grupos de trabalhadores, entidades e os
gerentes. A Plenária era um espaço para as questões que nasciam,
muitas vezes, da angústia que muitos trabalhadores sentiam ao enfrentar
as dificuldades inerentes à implantação de serviços em áreas em que não
existia nenhuma forma de atenção; ou da demanda que os usuários
apresentavam frente às novas práticas; ou se referiam ao processo lento
105
das mudanças causadas pela inércia da burocracia estatal; ou se referiam
a criticas ao modelo psiquiátrico-preventivo da política de saúde mental;
ou reivindicavam a participação dos trabalhadores no processo de
discussão das diretrizes dessa política. Enfim, existiam questões,
angústias, temas e posições para todos os gostos. Se unanimidade
havia, era a que se relacionava à necessidade de mudar, de transformar a
assistência psiquiátrica, tendo como perspectiva a transformação da
saúde no contexto da transformação da sociedade.
Em março de 1987, foi inaugurado, em São Paulo, o
Centro de Atenção Psicossocial Prof. Luiz da Rocha Cerqueira (CAPS)29,
cujo projeto inicial remonta a fins de 1986. Organizado, basicamente, a
partir de um grupo de técnicos que atuava na Divisão de Ambulatórios da
CSM30, ao longo dos anos o CAPS incorporou diversos profissionais
oriundos de importantes experiências de transformação institucional que
participavam da Plenária de Trabalhadores de Saúde Mental. O CAPS
acolheu, na composição de sua equipe, profissionais diversos, de
diferentes linhas de pensamento e de atuação. Do confronto entre as
idéias e do encontro com a prática foi-se construindo uma das mais
importantes experiências institucionais daqueles anos. "O surgimento do
29 Trataremos mais detalhadamente do CAPS no capítulo V. 30 Instância técnica e administrativa responsável pela assistência psiquiátrica extra-hospitalar. Do grupo que elaborou o projeto do CAPS, faziam parte a Diretora daquela Divisão, Dra. Ana Pitta, e diversos técnicos responsáveis pela supervisão das unidades da CSM.
106
CAPS (...) passou a exercer forte influência na criação ou transformação
de muitos serviços por todo o país" (Amarante, 1998, p.82).
Por vezes pelos mesmos caminhos, por vezes por
caminhos paralelos, uma outra trajetória animada, especialmente em São
Paulo, pela Plenária de Trabalhadores de Saúde Mental, estabeleceu-se
no interior do Movimento da Reforma Psiquiátrica. No mesmo ano de
1987, realizou-se o II Congresso Nacional de Trabalhadores de Saúde
Mental31, em Bauru-SP, que marcou o início do Movimento Nacional da
Luta Antimanicomial, consagrando o lema Por uma sociedade sem
manicômios.
3.4. Por uma sociedade sem manicômios: nasce o Movimento da Luta Antimanicomial.
Amarante (1998) afirma que, a partir de 1985, pode-se
constatar que uma significativa parcela dos postos de chefia de
programas estaduais e municipais de saúde mental, bem como a direção
de importantes unidades hospitalares públicas, especialmente na região
sudeste do país, estavam sob a condução de fundadores e ativistas do
Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental. Ocupando praticamente
todos os espaços,
31 O I Congresso foi realizado em São Paulo, no Instituto Sedes Sapientiae, conforme já informamos anteriormente.
107
encarregaram-se de elaborar novas propostas, produzir e
reproduzir novas idéias, formar novos militantes. Operaram
uma substituição de um prática psiquiátrica conservadora ou
voltada para interesses privados, por uma ação política de
transformação da psiquiatria como prática social. (Ibid., p.69)
Em 1985, é organizado o I Encontro de Coordenadores de
Saúde Mental da Região Sudeste, que foi reproduzido em outras regiões
e conjuntos de cidades, dando início a uma trajetória que terminou com a
I Conferência Nacional de Saúde Mental. Esse primeiro Encontro foi
precedido de outros estaduais, com a participação de representantes de
vários instituições, e representou "uma estratégia de articular os vários
dirigentes para discutir e rever suas práticas, de criar mecanismos e
condições de auto-reforço e cooperação mútua " (Amarante, 1998, p.69).
Em 1986, a Plenária de Trabalhadores de Saúde Mental32
organizou, em São Paulo, de forma independente, o II Congresso de
Trabalhadores, tendo como temas-eixo: Saúde Mental e Trabalho;
Saúde Mental e Movimentos Sociais; Saúde Mental e Constituinte. Esse
32 As seguintes entidades faziam parte da comissão organizadora: ASSES - Associação dos Servidores da Secretaria de Saúde; Sindicato dos Assistentes Sociais de São Paulo; Sindicato dos Médicos de São Paulo; Sindicato dos Enfermeiros de São Paulo; Centro de Estudos do Hospital Pinel; Instituto Sedes Sapientiae; Grupo de Fonoaudiólogos de São Paulo; Sociedade de Psicodrama de São Paulo; CUT - Central Única dos Trabalhadores; Associação Paulista de Fonoaudiologia; Conselho Regional de Psicologia de São Paulo; Hospital das Clínicas da FMUSP; Grupo de Saúde Mental do PT; Conselho Regional de Assistentes Sociais de São Paulo; Núcleo de Trabalho e Estudos de Psiquiatria Institucional; Centro Comunitário de Saúde Mental de Parelheiros; Trabalhadores de Saúde Mental de Osasco; Instituto de Psicologia da PUC; Grupo de Supervisores dos Ambulatórios de Saúde Mental; Sindicato dos Psicólogos de São Paulo.
108
Congresso surgiu como resposta ao I Congresso, realizado no ano
anterior, organizado pela Coordenadoria de Saúde Mental sem a
participação dos trabalhadores de saúde mental, marcando uma diferença
entre determinadas lideranças do Movimento da Reforma Psiquiátrica,
por demasiado comprometidas com o aparato estatal e o desejo dos
trabalhadores de imprimir uma dinâmica mais democrática e com maior
participação.
O temário daquele congresso refletia o momento político
do país, às vésperas de uma nova eleição para governadores e para a
Assembléia Nacional Constituinte. Posteriormente, foi lançado um livro
contendo uma coletânea das conferências desse congresso, com o
significativo título de Saúde Mental e Cidadania ( Marsiglia et al., 1987).
Em junho de 1987, como desdobramento da histórica 8ª
Conferência Nacional de Saúde de 1986, foi realizada a I Conferência
Nacional de Saúde Mental, tendo como temas básicos: economia,
sociedade e Estado - impactos sobre a saúde e doença mental; Reforma
Sanitária e reorganização da assistências à saúde mental; Cidadania e
doença mental - direitos, deveres e legislação do doente mental.
A plenária de instalação foi marcada por um conflito
significativo: os participantes rejeitaram o regulamento que a ABP e a
DINSAM elaboraram, pois tentavam impor um caráter técnico e
congressista ao evento, o que levou as duas instituições organizadoras a
109
ameaçarem se retirar. O regulamento foi modificado, garantindo a
natureza participativa, a exemplo do que ocorrera na 8ª Conferência.
A Conferência foi realizada em um clima de intensas
discussões, e o seu relatório final demonstra a força de articulação do
Movimento, fazendo prevalecer suas teses em praticamente todos os
itens dos temas da Conferência. Ficou para a história esse relatório.
No tema I - Economia, Sociedade e Estado, o relatório
analisa o modelo econômico altamente concentrador brasileiro,
apontando para a necessidade de se ampliar o conceito de saúde,
considerando em seus determinantes as condições materiais de vida.
Destacamos os seguintes trechos:
Situando a Saúde Mental no bojo da luta de classes,
podemos afirmar que seu papel tem consistido na classificação
e exclusão dos 'incapacitados' para a produção (...) Assim
sendo, os trabalhadores de saúde mental podem se constituir
em instrumentos de dominação do povo brasileiro, seja por
opção astuta e de identificação com os interesses da classe
dominante, seja por ingenuidade que supõe que a intervenção
técnica é neutra e asséptica. É urgente pois o reconhecimento
da função de dominação dos trabalhadores de saúde mental e
a sua revisão crítica, redefinindo seu papel, reorientando a sua
prática e configurando a sua identidade ao lado das classes
trabalhadoras (...) É mister (...) resgatar para saúde sua
110
concepção revolucionária, baseada na luta pela igualdade de
direitos e no exercício real da participação popular,
combatendo a psiquiatrização do social, a miséria social e
institucional. (BRASIL/MS, 1992, p.15)
No tema II - Reforma Sanitária e reorganização da
assistência, o relatório reafirma as teses do Movimento Sanitário,
introduzindo a especificidade da saúde mental no contexto de suas
diretrizes e princípios, apontando para a constituição de um Sistema
Único de Saúde, com garantia da participação popular. No plano
assistencial, aponta para os mesmo princípios consagrados em outros
documentos, tais como reversão da tendência hospitalocêntrica com
prioridade para o sistema extra-hospitalar e etc. Interessante destacar que
o relatório propõe que, a partir daquela Conferência,
o setor público não credenciará nem instalará novos leitos
psiquiátricos hospitalares tradicionais, reduzindo,
progressivamente os leitos existentes e substituindo-os por
leitos psiquiátricos em hospitais gerais públicos ou por serviços
inovadores alternativos à internação psiquiátrica (...) Será
proibida a construção de novos hospitais psiquiátricos
tradicionais (...) Em regiões onde houver necessidade de novos
leitos psiquiátricos estes deverão estar necessariamente
localizados em hospitais gerais. (Ibid., p.20)
111
Por fim, no tema III - Cidadania e Doença mental - o
relatório reafirma, também, teses do Movimento Sanitário, sugerindo
inclusões no texto constitucional no que se referia ao direito à saúde e
propõe reformulações da legislação ordinária que trata especificamente
da saúde mental, ou seja: código civil; código penal e legislação sanitária;
propõe, ainda, modificações na legislação trabalhista, considerando a
interface trabalho/saúde mental. Dentre as propostas apresentadas
assinalamos:
que se assegurem mecanismos e recursos legais de garantia
do direito individual contra a internação involuntária (por
exemplo: �habeas-corpus�, comunicação automática à
autoridade judiciária competente, criação de tutela provisória
para estes pacientes), visando a possível reversibilidade do
estado de internação no período máximo de 72 horas. (Ibid.,
p.26)
O texto do relatório demonstra uma estreita vinculação
entre o Movimento Sanitário e o Movimento da Reforma Psiquiátrica.
Ambos tomam a saúde como uma questão revolucionária, no eixo da luta
pela transformação da sociedade. Aponta, especificamente, aos
trabalhadores de saúde mental, a necessária revisão de seu papel de
agente de exclusão e de dominação, para reorientá-lo na direção de uma
identidade com os interesses da classe trabalhadora. Estão presentes
nesse documento oficial, não apenas propostas técnicas, mas
112
argumentos e proposições que engajam o processo de transformação de
um setor especifico da saúde, a saúde mental, em uma luta que
transcende essa especificidade e a coloca em um estreito vínculo com a
luta pela transformação da sociedade. Reflexo, também, do momento
histórico que se vivia, em plena vigência da Assembléia Nacional
Constituinte. Mas era apenas mais um documento oficial, talvez o primeiro
que colocou a questão da saúde mental nessa perspectiva da luta entre
os interesses de classes.
A Conferência marcou, também, o encontro entre novos
e antigos militantes do MTSM, que realizaram várias reuniões paralelas
para discutir os rumos e estratégias do Movimento. Refletindo a
necessidade de renovação, o documento final desses encontros aponta
para a "necessidade de 'desatrelamento' do aparelho de Estado,
buscando formas independentes de organização e voltando-se, como
estratégia principal, para a intervenção na sociedade" (Amarante, 1998,
p.80). Decidiu-se naqueles dias pela organização de um II Congresso
Nacional do MTSM.
Apesar do retrocesso em alguns espaços institucionais
que ocorreram em algumas experiências, especialmente em São Paulo33,
o movimento ganhou força ao longo do ano e finalizou dezembro de 1987
33 Mais adiante, no Capitulo V em que traremos do CAPS, detalharemos um pouco mais esse período de retrocesso.
113
com a realização, em Bauru - SP34, do II Congresso Nacional de
Trabalhadores em Saúde Mental organizado em torno dos seguintes
eixos:
1. Por uma sociedade sem manicômios - significa um rumo
para o movimento discutir a questão da loucura para além do
limite assistencial. Concretiza a criação de uma utopia que
pode demarcar um campo para a crítica das propostas
assistenciais em voga. Coloca-nos diante das questões
teóricas e políticas suscitadas pela loucura.
2. Organização dos trabalhadores de saúde mental - a
relação com o Estado e com a condição de trabalhadores da
rede pública. As questões do corporativismo e
interdisciplinariedade, a questão do contingente não
universitário, as alianças, táticas e estratégias.
3. Análise e reflexão das nossas práticas concretas - uma
instância crítica da discussão e avaliação (A quem servimos e
de que maneiras). A ruptura com o isolamento que caracteriza
essas práticas, contextualizando-as e procurando avançar.
(apud Amarante, 1998, p.80)
34 A escolha de Bauru deveu-se ao fato de estar sob uma administração progressista, à época ao menos, o que facilitava a realização do evento. Destaque-se que havia várias lideranças expressivas à frente da saúde, que lá implantaram o primeiro Núcleo de Atenção Psicossocial (NAPS). Praticamente todas as lideranças foram posteriormente para a cidade de Santos.
114
Os eixos do Congresso já demonstravam uma nova
estratégia: o lema �por uma sociedade sem manicômios�, que seria
adotado a partir daí, colocava em destaque a questão da loucura no
âmbito sociocultural. Tratava-se de produzir uma utopia que deveria
nortear e balizar as propostas assistenciais do agora; de resgatar, como
no final dos anos setenta, a discussão com a sociedade da segregação
e da violência institucional; de repensar as práticas e inventar
possibilidades para ampliar o campo de atuação; de criar novas parcerias.
Foi um congresso histórico, marcado por um clima de
entusiasmo e participação, contando com a presença de lideranças
municipais, técnicos, usuários, familiares, estudantes, e que se encerrou
com uma alegre e contagiante passeata com mais de trezentas pessoas,
pelas ruas de Bauru, pedindo a extinção dos manicômios. O Manifesto de
Bauru, aprovado na plenária e distribuído no dia da passeata, marca o
nascimento de um novo movimento: o Movimento Nacional da Luta
Antimanicomial:
Nossa atitude marca uma ruptura. Ao recusarmos o papel de
agentes da exclusão e da violência institucionalizadas, que
desrespeita os mínimos direitos da pessoa humana,
inauguramos um novo compromisso. Temos claro que não
basta racionalizar e modernizar os serviços nos quais
trabalhamos.
115
O Estado que gerencia tais serviços é o mesmo que impõe e
sustenta os mecanismos de exploração e de produção social
da loucura e da violência. O compromisso estabelecido pela
luta antimanicomial impõe uma aliança com o movimento
popular e a classe trabalhadora organizada.
O Manicômio é a expressão de uma estrutura, presente nos
diversos mecanismos de opressão deste tipo de sociedade. A
opressão nas fábricas, nas instituições de menores, nos
cárceres, a discriminação contra os negros, homossexuais,
índios, mulheres. Lutar pelos direitos de cidadania dos doentes
mentais significa incorporar-se à luta de todos os trabalhadores
por seus direitos mínimos, à saúde, justiça e melhores
condições de vida. (apud CRP, 1997, p.93)
A partir daquele Congresso, o nascente movimento
organizou-se em vários Estados e caminhou para uma articulação
nacional. Deliberou-se estabelecer o dia 18 de maio como o Dia Nacional
de Luta Antimanicomial35. O Movimento vem mantendo ao longo dos anos
uma singular e importante peculiaridade: a de não existir como uma
instituição. Não há uma sede, telefone, e-mail, ficha de inscrição, rituais
de filiação. É, paradoxalmente, de uma existência abstrata, pois se coloca
no campo da utopia, e concreta, pois se materializa na prática cotidiana
35 Após algumas discussões, uma das primeiras datas sugeridas seria a do dia 13 de maio, data da aprovação da Lei 180 da Itália e da libertação da escravatura. Mas a escolha acabou recaindo no dia 18 de maio, sem nenhum motivo relevante. Mas a mão do destino marcou uma grande coincidência: o dia 18 de maio é também o dia da inauguração do Hospital Psiquiátrico do Juqueri.
116
de profissionais, familiares, usuários e tantos outros que se identificam
com a idéia de uma sociedade sem a violência institucionalizada, sem
segregações, sem exclusões, com justiça social e
democratização/socialização dos meios de produção. Está na prática
cotidiana do profissional no serviço de saúde mental identificado com
essa perspectiva; está na aula do professor atento à formação de uma
nova geração; nas reuniões dos sindicatos que se preocupam com a
loucura do trabalho. É um dispositivo social que congrega e articula
pessoas, trabalhos, lugares.
Em 1989, com as eleições municipais, o movimento
ganhou sua experiência de maior repercussão. O PT assumia a prefeitura
da cidade de Santos. Em maio de 1989, a Casa de Saúde Anchieta,
hospital psiquiátrico privado, sofreu uma intervenção da Secretaria
Municipal de Saúde, em função das atrocidades, incluindo-se mortes,
cometidas com os pacientes ali internados. Iniciou-se a partir da
desmontagem do manicômio um processo de transformação exemplar,
com implantação de uma rede de atenção em saúde mental substitutiva,
composta por NAPS (Núcleos de Atenção Psicossocial), por cooperativas,
associações etc.
A transformação da Saúde Mental em Santos tem se
configurado como processo social complexo ancorado na
desconstrução do paradigma psiquiátrico; partindo da
desmontagem manicômio, como síntese da 'instituição a ser
117
negada' projeta a construção da Saúde Mental como território
de cidadania, emancipação e reprodução social. (Nicácio,
1994, p.24)
A autora citada apresenta, nesse trabalho, uma análise
detalhada daquele processo de transformação.
No mesmo ano, a prefeitura de São Paulo também iria
desenvolver um processo de mudança na assistência em saúde mental
da capital, mas de natureza distinta. O projeto baseou-se na constituição
de uma rede de serviços com Centros de Convivência, Hospital-dia,
emergências psiquiátrica e leitos psiquiátricos em Hospital Geral. Cada
equipamento visava a dar conta de um determinado nível de
complexidade de atenção à saúde mental, seguindo, em essência, os
mesmos princípios colocados pela psiquiatria preventiva: regionalização,
integração e hierarquização. A implantação desse modelo assistencial
ocorreu de maneira descontínua, em diferentes bairros, de tal maneira
que, em alguns equipamentos, as equipes acabavam por operar uma
prática mais identificada com os princípios do CAPS e da experiência
santista.
A experiência de fato inovadora foi a dos Centros de
Convivências36, pois levava aos equipamentos públicos de lazer da
36 Espaços localizados em áreas de lazer onde eram desenvolvidas atividades de diversos tipos: aulas de Tai-Chi-Chuan, de canto, artesanato etc. Além dos pacientes das diferentes unidades, qualquer pessoa podia participar daquelas atividades.
118
cidade, principalmente os parques municipais, a possibilidade da criação
de um espaço de convivência com a diferença: loucos e sãos
desenvolvendo atividades conjuntamente.
No final dos anos oitenta, surgiu um novo ator no
Movimento pela Reforma Psiquiátrica: as associações de usuários e
familiares. Além do Grupo SOSINTRA do Rio de Janeiro (criado em
1979), e do Grupo Loucos Pela Vida do Juqueri, nasceram a Associação
Franco Basaglia- SP, a Associação Franco Rotelli - Santos, o SOS Saúde
Mental, dentre outras. O movimento deixou de ter a participação
majoritária de trabalhadores da saúde e passou a contar com familiares,
usuários e outras pessoas não ligadas diretamente ao campo da saúde
mental. As associações atuaram na construção de novas possibilidades
de atenção e cuidados e na luta pela transformação da assistência em
saúde mental.
Com o processo da reforma psiquiátrica saindo do
âmbito exclusivo dos técnicos e das técnicas, e chegando até a
sociedade civil, surgiram novas estratégias de ação cultural
com a organização de festas e eventos sociais e políticos nas
comunidades, na construção de possibilidades até então
impossíveis. (Amarante, 1998, p.82)
Em 1989, foi aprovado pela Câmara dos Deputados o
Projeto de Lei n.º 3.657, de autoria do deputado Paulo Delgado, que
propunha a extinção progressiva dos hospitais psiquiátricos.
119
3.5. Retomando as questões...
Pode-se observar que os anos oitenta foram
extremamente intensos e ricos em eventos. Mantendo as críticas ao asilo
e à violência institucional no contexto da contestação ao regime militar,
fortalecendo o processo de redemocratização, o Movimento da Reforma
Psiquiátrica buscou ampliar as discussões técnicas para uma perspectiva
política e social. No início dos anos oitenta buscou, também, a exemplo
do Movimento Sanitário, conquistar espaços dentro do aparelho estatal no
sentido de introduzir mudanças no sistema de saúde. A eleição para
governadores de 82 alavancou essa estratégia, proporcionando o
ingresso na rede pública de uma nova geração de trabalhadores. O
período da Nova República consolidou esse processo com a incorporação
dos principais princípios e diretrizes do Movimento Sanitário na
Constituição. O Movimento Sanitário institucionalizou-se, confundindo-se
com o Estado. O Movimento da Reforma Psiquiátrica, ressentindo-se
desse fato, principalmente a partir de seu principal ator, o Movimento dos
Trabalhadores da Saúde Mental, produziu uma ruptura em 1987, no
Congresso de Bauru, inaugurando o Movimento da Luta Antimanicomial
e retomando a necessidade de ampliar o campo das discussões e ações
em saúde mental. A partir da eleição para prefeitos, em 89, a cidade de
Santos, na gestão do PT, produziu uma experiência singular que
abrangeu duas características do Movimento da Reforma Psiquiátrica: a
ocupação dos espaços de decisão e de poder do aparelho estatal,
120
possibilitando a invenção de um processo de transformação radical da
assistência em saúde mental.
No capítulo I, apresentamos algumas questões, a partir da
análise empreendida por Escorel (1995) sobre o Movimento Sanitário. A
primeira delas referia-se à possibilidade de traçar paralelos entre aquela
análise do Movimento Sanitário e o Movimento da Reforma Psiquiátrica.
Ao analisarmos a evolução do Movimento da Reforma Psiquiátrica,
observamos vários pontos de convergência entre os dois: ambos
nasceram a partir de segmentos específicos, os intelectuais,
especialmente da universidade no Movimento Sanitário, e os intelectuais
e trabalhadores de saúde mental37 no Movimento da Reforma
Psiquiátrica; em um mesmo momento histórico, o da redemocratização do
país; promoveram um processo de luta para a transformação de um
setor que possui um valor universal, a saúde, e nela a saúde mental,
tomando-a como questão nacional, "cuja especificidade a transforma em
palco de luta privilegiado e precursora de uma luta mais global de
transformação da sociedade" (Escorel, 1995, p.184); para isso, superaram
os estreitos limites de seus campos, estabelecendo alianças com outros
segmentos da sociedade.
37 Em nota de rodapé, Escorel alerta que toma o termo �intelectual� em um sentido estreito como pensadores, pesquisadores e estudiosos, conhecidos como pertencentes à academia. Neste sentido, o MRP terá a participação destes e também de profissionais que atuavam nas instituições, que nomeamos aqui como trabalhadores de saúde mental.
121
Embora a saúde mental faça parte do processo de saúde
e, portanto, esteja englobada como questão nacional, vale destacar que
o Movimento da Reforma Psiquiátrica estabeleceu lutas próprias, como a
luta contra a violência institucional e a segregação. O Movimento da
Reforma Psiquiátrica levantou bandeiras absolutamente adequadas e
inseridas no contexto histórico, pois eram as mesmas de uma sociedade
que lutava pela transformação.
Desde o final dos anos setenta, essa foi uma marca
permanente do Movimento da Reforma Psiquiátrica, a de posicionar-se
politicamente a favor dos interesses do polo subordinado e de construir
práticas que produzissem, não apenas assistência de qualidade, mas
transformações nas relações sociais. Ampliando o temário de suas
discussões para uma perspectiva social, econômica e política, o
Movimento da Reforma Psiquiátrica colocou, principalmente a partir do
Movimento da Luta Antimanicomial, o campo ideológico como um
importante campo de luta, estabelecendo ligações com outras forças
sociais, buscando cada vez mais uma organicidade com as classes
trabalhadoras. Esse processo foi mais evidente nos anos noventa, que
trataremos a seguir.
Esses elementos nos fazem concluir que o Movimento da
Reforma Psiquiátrica, apresenta características muito evidentes de
constituir-se como um movimento que, nascido de um setor, defendendo
interesses na perspectiva das classes trabalhadoras, começou, nesses
122
anos oitenta, que analisamos, a superar seu corporativismo através de
alianças, especialmente ao incorporar setores da própria população
(usuários e familiares), buscando construir um projeto comum.
Assim, parece-nos que estamos caminhando para a
possibilidade de um entendimento do Movimento da Reforma Psiquiátrica
na perspectiva da construção de um processo contra-hegemônico.
123
CAPÍTULO IV
OS ANOS NOVENTA - LUTANDO CONTRA O NEO-LIBERALISMO
4.1. O Cenário: os anos noventa - O desafio de avançar no contexto da política neo-liberal
A tua piscina tá cheia de ratos Tuas idéias não correspondem aos fatos
O tempo não para Eu vejo o futuro repetir o passado
Eu vejo um museu de grandes novidades O tempo não para
Cazuza
Depois de afirmar que, se Lula fosse eleito, confiscaria a
poupança de todos os brasileiros, de jurar que mataria a inflação com um
só tiro e de que faria a direita indignada e a esquerda perplexa,
Fernando Collor de Mello assumiu como o primeiro presidente eleito pelo
voto direto desde 1960, anunciando que traria a modernidade econômica
ao país com o livre mercado, fim dos subsídios, redução do papel do
Estado e um amplo processo de privatização.
No dia seguinte ao de sua posse, decretou o maior
choque da história econômica brasileira, ao extinguir o Cruzado Novo,
reintroduzindo o Cruzeiro e confiscando todo saldo acima de cinqüenta mil
cruzeiros (cerca de cinqüenta dólares) depositado em contas bancárias
124
em instituições financeiras do país. Na retomada da democracia, Collor
iniciou seu governo com uma brutal intervenção nos direitos civis, recém-
reconquistados, e assim governou através de centenas de medidas
provisórias. Além do confisco, realizou uma desindexação geral entre
preços e salários, com a anulação de todos os instrumentos da política
salarial anterior, mantendo a indexação apenas para o salário mínimo,
estabelecendo que a relação capital-trabalho deveria ser resolvida na livre
negociação; aumentou impostos e tarifas, criou novos tributos, suspendeu
incentivos fiscais, reduziu alíquotas de importação, com o objetivo de abrir
o mercado; iniciou uma reforma administrativa, com o objetivo de demitir
funcionários públicos; e elaborou um plano de privatizações.
Pretendia, com essas medidas, acabar com a inflação,
razão principal das dificuldades que afligiam a economia e a sociedade
provocadas, segundo argumentava ele e sua equipe, principalmente por
uma crise do Estado, causada pelo descontrole das finanças públicas,
pelo intervencionismo estatal, pela incompetência administrativa, pela
burocracia, pelo empreguismo etc. A solução proposta foi o enxugamento
do Estado e um suposto retorno ao mercado, através da implantação de
uma política econômica neo-liberal. E usou um paradoxo desse modelo
econômico, a força da intervenção do Estado na sociedade, e do
autoritarismo das medidas provisórias para impor essa política,
argumentando que a urgência das reformas era incompatível com o
tempo institucional democrático.
125
... vive-se sob o império de um plano racional, cujo objetivo
consiste em compatibilizar a vida social e a política à lógica da
eficácia capitalista moderna, embora a aparência seja a de uma
situação dominada pelo fortuito (...) A dramatização
exasperada da questão monetária foi, assim, a via através da
qual o Executivo estabeleceu sua relação direta com as
massas desorganizadas, imobilizou o Congresso, os partidos e
os sindicatos, iniciando uma escalada de extração da vontade
política da sociedade em favor do Estado(...) O modelo
neoliberal assume a força de um imperativo dogmático. A
ameaça da hiperinflação foi o recurso por meio do qual o
Executivo exerceu chantagem sobre a nação, obrigando-a a
perfilhar seu projeto de sociedade. (Vianna, 1991, pp.49-51)
Procurando atender às exigências internacionais de um
mundo globalizado, propondo o neoliberalismo e a economia livre de
mercado, o presidente Collor reeditou o que havia de mais tradicional na
política brasileira, a separação entre o Estado e a sociedade, com a
prevalência do primeiro sobre a segunda. Os direitos sociais da
Constituição eram um entrave para a economia moderna. Assim, investiu
contra os direitos sociais dos trabalhadores. O passaporte para a
economia de primeiro mundo deu-se pela submissão política dos setores
sociais, pela autonomização política do Estado em relação à sociedade.
O futuro com o qual nos acenava o presidente era o nosso passado:
126
desvalorizando a política e atacando os setores organizados da
sociedade, foi abrindo caminho à sua obra de desconstrução nacional.
Como conseqüência de sua política econômica, o
presidente Collor conseguiu mergulhar o país em um processo recessivo,
com uma queda acentuada da atividade produtiva e com o aumento do
desemprego, sem conseguir controlar a inflação que poucos meses
depois estava de volta.
Usando gravatas Hermés, canetas MontBlanc, desfilando
camisetas com frases de efeito, fazendo declarações de mau gosto e
criando falsas polêmicas, o presidente Collor, que se apresentava como o
grande estadista, o grande líder político da burguesia que levaria o país
ao primeiro mundo, revelou-se apenas uma grande farsa, repleta de
tramas familiares e amores de bastidores, descarado mau uso do
dinheiro público para reformas suntuosas e festas de aniversário38 e
esquemas de favorecimento de país de terceiro mundo. Em maio de
1992, seu irmão denunciou na imprensa o tesoureiro de sua campanha,
P.C. Farias, acusando-o de ser o testa-de-ferro do presidente em um
poderoso esquema de corrupção. Após a denúncia, uma Comissão
Parlamentar de Inquérito (CPI) foi instaurada e revelou-se um gigantesco
esquema de fraude, corrupção, tráfico de influência, propinas, extorsão,
38 Ficou famosa uma reportagem que exibia as suntuosas reformas realizadas em sua casa, conhecida como Casa da Dinda, como também ficou famosa a festa de aniversário que a primeira dama proporcionou a uma amiga, gastando uma fortuna dos recursos da LBA, instituição que a esposa do presidente dirigia.
127
envolvendo uma quantidade de dinheiro público até hoje não precisada.
Durante o processo de investigação, iniciou-se o
Movimento pela Ética na Política, envolvendo várias entidades da
sociedade civil como a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Ordem
dos Advogados do Brasil (OAB), a Confederação Nacional dos Bispos
Brasileiros (CNBB) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT). Em 13
de setembro, o presidente pediu à população que saísse às ruas vestindo
as cores verde e amarelo, em seu apoio. No dia esperado, milhões de
pessoas pelo país todo saíram de preto, em um protesto, contra Collor e
a corrupção, articulado por aquele Movimento. As mobilizações de
protesto trouxeram novamente à cena o Movimento Estudantil. Milhares
de estudantes saíram às ruas com os rostos pintados, em passeatas
ruidosas, coloridas e irreverentes, exigindo a derrubada de Collor.
No mesmo mês de setembro, entidades da sociedade
civil39 encaminharam à Câmara o pedido de impeachment do presidente.
Um mês depois, após 84 dias de investigações, a Câmara concluiu que a
conduta de Collor fora incompatível com a dignidade do cargo e autorizou
o Senado a julgá-lo. Acusado de crime de responsabilidade, teve seus
direitos políticos cassados por oito anos. Renunciou ao cargo, tentando
escapar do processo de cassação, mas não conseguiu. Em 29 de
39 Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
128
dezembro de 1992, deixava a presidência, assumindo seu vice, Itamar
Franco.
Herdando um cargo que não esperava, Itamar Franco
assumiu com o compromisso de compor um governo com representantes
das forças Pró-Impeachment, e esboçou a aglutinação de um arco político
inédito na redemocratização do país, por incluir, embora com reticências,
o PT e o PDT (pelo menos a parte da bancada que se rebelou contra a
orientação do governador Brizola). Tentou impor uma imagem pública
distinta do seu antecessor, a de um mineiro por adoção, simples, tranqüilo
e equilibrado. Porém, logo revelou ser de temperamento explosivo,
inseguro e hesitante. Realizou inúmeras trocas de ministros40,
especialmente na área econômica, por não concordar com o programa
de privatizações e não conseguir uma efetiva estratégia de combate à
inflação. Crescia a impopularidade do Presidente e o governo, a essa
altura, passava a ser alvo de amplo coro de críticas.
Em vista do profundo desgaste do governo, em maio de
1993, o presidente Itamar deu posse ao senador Fernando Henrique
Cardoso, até então Ministro das Relações Exteriores, como Ministro da
Fazenda, obtendo carta branca para gerir a economia. Iniciou a
implantação de mais um plano econômico de estabilização: o plano Real.
Anunciado em dezembro de 93, e descartando choques e congelamentos,
40 55, no total.
129
a implantação do plano só aconteceu definitivamente em julho de 1994,
com a criação de uma nova moeda, o Real, e de uma série de medidas
que visavam à estabilidade cambial, à desindexação da economia e ao
controle do déficit público. Iniciou-se um processo de corte nas despesas
públicas que atingiu (quase que exclusivamente) setores essenciais,
como saúde e educação.
A redução drástica da inflação41 alavancou a candidatura
de Fernando Henrique Cardoso à eleição presidencial de 1994, que
venceu já no primeiro turno, em aliança com o Partido da Frente Liberal
(PFL), constituído por políticos ligados ao regime militar, dissidentes do
Partido Democrático Social (PDS). De renomado intelectual de esquerda,
o político FHC revelou-se um partidário de alianças que, em outros
tempos, seriam, muito provavelmente, alvo de suas duras críticas.
Se, em nome do combate à inflação, as autoritárias e
desastrosas medidas adotadas pelo presidente Collor obtiveram, pelo
menos inicialmente, o apoio da população, os êxitos obtidos pelo
presidente Fernando Henrique Cardoso na redução drástica da inflação,
no acesso de parcelas da população a bens de consumo, a preços
estáveis e acessíveis, aliado a sua biografia pregressa, que inspirava
confiança das elites brasileiras, escaldadas por terem apoiado um
41 Para uma inflação mensal média de cerca de 40%, no primeiro semestre de 1994, tivemos uma inflação média mensal de 3%, no segundo semestre, após a adoção do Real como moeda.
130
aventureiro, garantiram a simpatia e a adesão de amplos setores da
sociedade ao plano de estabilização. Com uma ampla base parlamentar,
sustentada por políticos de longa tradição fisiológica, o presidente utilizou-
se de maneira abusiva das medidas provisórias e pôde ampliar o
processo de privatizações e implementar a política monetarista, baseada
em altas taxas de juros, para atrair capital externo e assim controlar o
valor do Real e as reservas. Para conter o déficit público, reduziu
investimentos nas áreas sociais e propôs diversas mudanças
constitucionais, retirando, reduzindo ou flexibilizando direitos
conquistados nas relações de trabalho, na previdência social, no
funcionalismo público etc.
Em julho de 1997, foi promulgada uma emenda
constitucional, que permitiu ao presidente, governadores e prefeitos a
concorrem ao segundo mandato. No mesmo dia, o PSDB, partido do
presidente, lançava-o candidato à reeleição. A imprensa e vários
analistas políticos colocaram a votação da emenda constitucional sob
suspeita, havendo denúncias de compra de votos.
Em outubro de 1998, Fernando Henrique Cardoso foi
reeleito presidente, novamente em primeiro turno.
Em seu primeiro governo, teve no êxito do Plano Real seu
grande eixo de sustentação. O brilho da redução da inflação a níveis
decentes ofuscou os vários problemas que o governo enfrentou (e ainda
131
enfrenta): um aprofundamento da crise social, com taxas elevadíssimas
de desemprego; crise em praticamente todas as áreas sociais, tais como
saúde e educação; altas taxas de juros, penalizando o setor produtivo
nacional; escândalos políticos e financeiros. Privilegiando o capital
financeiro, o governo FHC colocou em segundo plano as políticas sociais,
aumentando ainda mais a distância entre a elite que novamente se
beneficiou com a modernidade da política neoliberal e o resto da
população, que continuou habitando o Brasil de terceiro mundo: aquele da
segregação, da violência, da desigualdade social, do analfabetismo, do
abandono.
Propondo ajustar o país às exigências de uma economia
mundial globalizada, o presidente acatou, concedeu e aceitou todas as
exigências de organismos e instituições internacionais. Recontou, enfim,
uma velha história: a globalização parece ser apenas o nome mais
moderno do velho e conhecido imperialismo. O presidente esqueceu a
teoria que o famoso sociólogo Fernando Henrique Cardoso apresentou ao
mundo dos intelectuais: a teoria da dependência.
4.2. Movimento Sanitário: institucionalizando a Reforma Sanitária
Foi no contexto de uma política de redução do Estado,
que afetou drasticamente os investimentos nas áreas sociais, que o
132
Movimento da Reforma Sanitária ampliou a ocupação dos espaços no
aparelho estatal, privilegiando-o como principal campo de luta.
Como resultado, houve uma profunda mudança
institucional que incorporou os princípios sanitários e consolidou o
Sistema Único de Saúde (SUS). O Movimento Sanitário, a Reforma
Sanitária e SUS confundem-se no interior do Estado.
Em setembro e dezembro de 1990, Collor assinou duas
importantes leis que regulamentavam os princípios e diretrizes
estabelecidos na Constituição Federal, no capítulo da Saúde: a Lei n.º
8.080, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção
recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços
correspondentes; e a Lei n.º 8.142, que dispõe sobre a participação da
comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as
transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da
saúde.
Eram os instrumentos legais para a efetiva implantação
do SUS, que previam, entre outros pontos, a descentralização das ações,
através da municipalização dos equipamentos e dos serviços e o controle
social através dos Conselhos de Saúde (municipais, estaduais e
nacional). Porém, a sua efetiva implantação encontrou grandes
resistências. Como exemplo, podemos apontar que a legislação prevê a
133
transferência fundo-a-fundo42, mas a normatização do repasse de
recursos, por portaria do Ministério da Saúde, era através da produção
realizada nos serviços, o que provocou uma forte distorção em relação ao
previsto na legislação. O pagamento por produção privilegiou a
quantidade, com um excessivo aumento no número de atendimentos dos
profissionais, em detrimento da qualidade da assistência prestada. Esses
obstáculos foram discutidos na 9ª Conferência Nacional de Saúde (CNS),
realizada em agosto de 1992, conhecida pelo título de um documento
intitulado: a coragem de fazer cumprir a lei.
Realizada no clima das denúncias contra o presidente
Collor, o próprio Ministro da Saúde, à época, Adib Jatene, reconheceu,
no discurso de abertura, que o resgate da qualidade da política de saúde
passava pela superação "da crise ética e política que passa o País".
Apesar da conjuntura adversa em que foi realizada, a 9ª Conferência
contou com um amplo processo de organização (mobilizando centenas de
milhares de pessoas) e assumiu a tarefa de definir formas de viabilizar o
processo de municipalização da saúde, de acordo com a Constituição e a
recém-criada legislação do SUS, e de apontar caminhos para superar a
crise que atingia a saúde.
42 Transferência de recursos financeiros do Ministério da Saúde diretamente para a prefeitura municipal, para a execução das ações de saúde.
134
Mas foi somente a partir de 1993, com uma nova portaria
ministerial, a chamada Norma Operacional Básica 93 (NOB 93)43, que
houve uma tentativa de consolidação do processo de descentralização,
com a formulação de distintos níveis de gestão para os municípios: gestão
semi-plena, parcial e incipiente. Entre cada uma delas existia uma
graduação em termos das responsabilidades e complexidades de
assistência possíveis de serem assumidos pelo município, o que
corresponderia ao montante de recursos a ser repassado fundo-a-fundo.
Contudo, ainda permaneciam algumas distorções como a remuneração
por procedimentos. Em 1994, foi finalmente publicado um decreto que
permitia a transferência de recursos financeiros fundo-a-fundo. Isso
incentivou vinte municípios a pleitearem e ingressarem no maior estágio
de gestão: a gestão semi-plena.
A partir daquele ano, foram constituídas as Comissões
Intergestores Bipartite, reunindo municípios e governos estaduais, e a
Comissão Intergestores Tripartite, reunindo municípios, governos
estaduais e o governo federal. Essas Comissões são órgãos colegiados
deliberativos sobre as questões referentes à implantação e
implementação do SUS, e fórum de discussão sobre os impasses entre
as partes envolvidas no processo.
43 Conjunto de princípios e regras que buscam organizar e regulamentar a saúde.
135
A municipalização fortaleceu a constituição, nos
municípios, dos Conselhos Municipais de Saúde, que são os órgãos
colegiados deliberativos das questões referentes à implantação e
implementação das ações de saúde do SUS, no âmbito municipal. Sua
constituição é paritária entre representantes do governo e da sociedade.
O processo de municipalização das ações e
equipamentos de saúde iniciou-se, em algumas cidades, na segunda
metade da década de oitenta, com as Ações Integradas de Saúde (AIS), e
prosseguiu de maneira lenta mas constante, ao longo dos anos; a partir
dos anos noventa, especialmente, a partir de 1994, com a possibilidade
da transferência de recursos fundo-a-fundo, esse processo foi acelerado.
Ao longo do ano de 1996, a municipalização passou por
uma profunda reavaliação. Naquele ano, foram discutidas várias versões
de uma nova regulamentação, que foi denominada Norma Operacional
Básica 96 (NOB 96).
Entre as várias reuniões para sua elaboração, aconteceu
a 10ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em setembro de 1996, e
que contou com a participação de mais de quatro mil pessoas, entre
delegados em pré-conferências estaduais, convidados e observadores. A
Conferência foi realizada em um momento de grave restrição
orçamentária na saúde, conseqüência da política econômica do governo
FHC, e marcada pela necessidade de avaliação do sistema implantado e
136
pela busca no aprimoramento de seus mecanismos, em especial no que
se referia ao financiamento.
Avaliações feitas em diversos documentos que serviram
de subsídios para as discussões da Conferência apontavam para um
avanço na implantação do SUS, observado nos seguintes fatos: o
processo de descentralização atingia 2.965 municípios habilitados, de um
total de 4.974; a possibilidade da mudança do modelo assistencial, com a
implantação de diversas experiências, especialmente, as do Programa de
Agentes Comunitários de Saúde e do Programa de Saúde da Família44,
em diversos municípios; o aumento da participação popular,
principalmente através dos Conselhos Municipais de Saúde e das
Conferências Municipais de Saúde, que começavam a se tornar uma
rotina.
Por outro lado, algumas análises também revelavam uma
grande preocupação com a deturpação da imagem pública do SUS,
como mostra Nelson Rodrigues dos Santos, coordenador da Comissão
Organizadora da 10ª Conferência Nacional de Saúde:
por distorções, incompreensões e desinformações induzidas
não só pelas suas próprias insuficiências, como também
pelas pesadas heranças anti-sociais com seus interesses
ameaçados pela implantação do SUS, que vão desde
44 Ambos os programas buscam reverter o modelo assistencial hegemônico centrado na medicina curativa e hospitalar, enfatizando as ações preventivas.
137
setores mercantilizados do modelo anterior de saúde, até
setores ligados ao planejamento econômico e social que
abandonaram a doutrina da solidariedade social e do
desenvolvimento da ciência e tecnologia. (apud Nascimento,
s/d)
A má reputação da imagem pública do SUS é,
atualmente, bastante disseminada, na medida em que apenas uma
pequena parcela da população, residente nos municípios em que o SUS
foi implantado com seriedade e competência, pode sentir a melhoria da
qualidade do atendimento. E ainda nesses, com a alternância do poder
municipal, sofrem, por vezes, o duro golpe da reversão de prioridades,
causando graves retrocessos45. No mais, a grande maioria da população
ainda está longe de sentir qualquer alteração na qualidade de
atendimento proposta pelo SUS, convivendo com uma ambígua situação
em que, de um lado, a Constituição de 88 garante o direito à saúde, com
acesso universal, igualitário e com eqüidade e, de outro, uma máquina
antiga operando com arremedos de modernidade, preservando um
modelo de baixa eficácia (Merhy & Bueno, 1999).
45 A cidade de São Paulo é um exemplo. Com a mudança de administração, em 1993, a prefeitura, liderada por Paulo Maluf, optou por abandonar o Sistema Único de Saúde e implantar um modelo próprio baseado na privatização na gestão da saúde, desconsiderando todo o processo histórico do SUS, desrespeitando posicionamento contrário do Conselho Municipal de Saúde, desrespeitado a Constituição e a Lei Orgânica da Saúde.
138
Destacamos alguns trechos da Carta da 10ª Conferência
Nacional de Saúde, anexada ao relatório final:
A despeito dos avanços institucionais e democráticos, as
condições sanitárias e as instituições de saúde continuam em
grave crise no Brasil. No centro deste processo do setor saúde,
encontramos a política econômica de cunho neoliberal
implementada pelo governo federal e parte dos governos
estaduais. Imposta por países e organismos internacionais e
pela elite financeira nacional, desenvolve-se esta nefasta
política que produz: dependência e endividamento interno e
externo, empobrecimento, desemprego, quebra de direitos
trabalhistas, exclusão social, violência, doença e morte. Sob o
discurso da �modernização� estabelece-se, de fato, o �Estado
Mínimo� para as políticas sociais, e o �Estado Máximo� para o
grande capital financeiro nacional e internacional (...)
(...) O SUS representa o exemplo mais importante de
democratização do Estado, em nosso país. Reafirmamos o
SUS como garantia, a toda a população, do acesso às ações
de prevenção, promoção, assistência e reabilitação da saúde.
O texto constitucional de 1988 consagra a saúde como produto
social, portanto, resultante de um conjunto de direitos que
envolvem o emprego, o salário, a habitação, o saneamento, a
educação, o transporte, o lazer, etc. Torna-se necessária uma
nova cultura de intervenções, com fortalecimento de ações
139
intersetoriais, com participação da sociedade, parcerias e
solidariedade, que dependem, também, de soluções urgentes a
favor da redistribuição de renda, de políticas urbanas
adequadas, de geração de emprego e reforma agrária
imediata.
A construção de um novo modelo de atenção à saúde passa,
necessariamente, pela maior autonomia dos municípios, das
regiões e pela reafirmação da participação popular e o controle
social com conselhos paritários, tripartites e deliberativos para
que o SUS, cada vez mais, dê certo. (apud Nascimento, s/d)
Com esse texto, os participantes posicionaram-se, de
maneira firme, contrários à política econômica e reafirmaram os princípios
e diretrizes estabelecidos pelo Movimento Sanitário, desde os anos
setenta, tais como: o SUS como instrumento de democratização; a
compreensão da saúde como resultante de fatores sociais; autonomia
dos municípios e a participação popular. Mantiveram-se os princípios,
defendiam-se os interesses da saúde na perspectiva da construção de
valores ideológicos comprometidos com as classes subalternas. Mas o
contexto político era outro: os atores do Movimento Sanitário estavam
ocupando praticamente todos os espaços mais importantes no interior do
aparelho estatal; tinham o poder institucional e legal para provocar as
transformações do sistema de saúde, e assim o fizeram com as normas,
regras, portarias e decretos.
140
E, no entanto, a assistência estava, e ainda está, distante
de sentir os efeitos dessas transformações: o modelo continua centrado
na produção de procedimentos médicos curativos; a condição de saúde
da população pouco melhora, ao contrário, algumas doenças já
controladas ressurgem, como o cólera, a malária, a dengue, a
tuberculose; e o processo de sucateamento dos equipamentos da rede
pública se intensifica.
Na construção de um bloco hegemônico alternativo, os
atores do Movimento Sanitário privilegiaram o aparelho do Estado como
palco de luta, abrindo um franco confronto com as chamadas áreas
técnicas da economia. Praticamente todos os documentos oficiais dos
anos noventa tinham, como um dos temas, a urgente necessidade de
regulamentação do financiamento da área da saúde. Havia uma disputa
ideológica entre setores do governo, que comandavam a área
econômica, defensores do Estado Mínimo, e o Movimento Sanitário
instalado dentro do mesmo aparelho que, a todo custo, tentava, e ainda
tenta, manter os princípios da descentralização, da universalidade e da
eqüidade, dentro de uma conjuntura econômica de investimento
extremamente desfavorável, que asfixiava a capacidade de atendimento,
gerando uma profunda crise na qualidade da atenção e desmoralizando o
SUS. Sintoma desse conflito foi a saída do Ministro da Saúde Adib
Jatene, considerado como um dos ministros notáveis, que, após propor a
criação de um novo imposto para saúde, e ser duramente criticado, viu o
141
imposto denominado Contribuição Provisória sobre Movimentação
Financeira (CPMF) transformar-se pelas mãos dos magos da economia,
de um mecanismo para aumentar os recursos da saúde em a única fonte
destes e posteriormente sequer isso.
Ao privilegiar uma luta técnico-política e o aparelho de
Estado como palco, o Movimento Sanitário distanciou-se de um trabalho
junto às classes subalternas. Trabalhando em defesa daqueles
interesses, mas no interior do aparelho, encontrou dificuldades em
estabelecer alianças, em ampliar sua base de apoio social, em colocar-se
como "intelectual orgânico do proletariado para produzir
permanentemente uma fratura ideológica na massa dos intelectuais
setoriais" (Escorel, 1995, p.191). Na guerra de posições, o Movimento
Sanitário talvez tenha que voltar a se aproximar das concretas questões
cotidianas, para delas alimentar-se, sob o risco de transformar a Reforma
Sanitária em apenas um conjunto de normas e regras que pouco modifica
a realidade assistencial da população.
4.3. Institucionalizar a Reforma Psiquiátrica e desinstitucionalizar o Movimento
O Movimento da Reforma Psiquiátrica seguiu, nos anos
noventa, basicamente dois caminhos: acompanhou os passos do
Movimento Sanitário e também se instalou na máquina estatal, ocupando
142
praticamente todos os espaços disponíveis; e, por outro, através,
principalmente do Movimento da Luta Antimanicomial (MLA), fortaleceu e
ampliou alianças com segmentos da sociedade civil, especialmente com
as associações de usuários e familiares.
4.3.1. A institucionalização da Reforma Psiquiátrica
Em novembro de 1990, a Organização Pan-americana de
Saúde (OPAS) e a Organização Mundial de Saúde (OMS) realizaram em
Caracas, na Venezuela, a Conferência Regional para a Reestruturação da
Atenção Psiquiátrica, com a participação de diversas entidades, juristas,
parlamentares e delegações técnicas de diversos países. Desse encontro
resultou a Declaração de Caracas, cujo texto foi recorrentemente utilizado
nos vários encontros de Saúde Mental que foram realizados nos anos
noventa. O conteúdo repete, ainda que de forma mais vaga, os mesmos
princípios e diretrizes de outros documentos internacionais anteriores.
Em 1990, a Secretaria de Estado da Saúde, dentro de
uma série de cadernos sobre temas da saúde, publica um caderno
específico para saúde mental46, que trata, basicamente, de parâmetros e
metas referenciais para a organização de serviços e foi utilizado por
46 Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo - CADAIS - Saúde Mental - Planejamento e Organização de Serviços - Subsídios para o Planejamento Municipal e Regional.
143
muitos municípios paulistas. Este foi um dos poucos trabalhos realizados
por aquela secretaria no período posterior a 86, que na gestão Quércia
optou por priorizar investimentos em áreas de visibilidade política, tais
como estradas e edificações, do que nas áreas sociais; e na gestão
Fleury47, sua prioridade foi manter o mínimo investimento para não
comprometer as abaladas finanças estaduais, exauridas pelos excessos
de seu antecessor. No próximo capítulo detalharemos mais o processo de
desinvestimento que se abateu sobre o Estado de São Paulo nos
governos Quércia e Fleury. De qualquer modo, a incipiente política de
saúde daquelas gestões incorporou em seu discurso alguns dos
princípios da Reforma Psiquiátrica.
No contexto da municipalização, a que nos referimos
anteriormente, em que a transferência de recursos financeiros era
efetuada através da remuneração por procedimentos, a saúde mental
contava apenas com a internação e as consultas ambulatoriais como
procedimentos cadastrados. Serviços altamente complexos e modelos de
propostas assistenciais, como o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS)
e os Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) não existiam para o SUS48.
Em novembro de 1991, a Secretaria Nacional de Assistência à Saúde do
Ministério da Saúde publicou a Portaria n.º 189/91, que modificou a
47 Talvez o evento de maior visibilidade do Governo Fleury tenha sido a chacina de 111 presos no presídio do Carandiru. 48 O CAPS não existe sequer para a Secretaria de Estado da Saúde. Oficialmente seu nome é Unidade Básica de Saúde - Itapeva.
144
sistemática de remuneração das internações hospitalares, procurando
reduzir o tempo de internação49, e criou diversos procedimentos,
buscando contemplar as diferentes experiências assistenciais que
estavam sendo realizadas: NAPS/CAPS, oficinas terapêuticas, visitas
domiciliares, dentre outras. Logo a seguir, em janeiro de 1992, foi
publicada a Portaria n.º 224/92, que estabeleceu diretrizes e normas para
a assistência em saúde mental e que ainda está em vigência.
As diretrizes reafirmam os princípios do SUS da
universalidade, integralidade e regionalização e propõe: a diversidade de
métodos e técnicas; a multiprofissionalidade na prestação dos serviços; a
participação social na formulação, execução e controle das políticas de
saúde mental; e a definição dos órgãos gestores locais como
responsáveis pelo controle e avaliação dos serviços. Caracteriza a
assistência e estabelece parâmetros para o atendimento em ambulatórios
de saúde mental, define, caracteriza e estabelece normas para o
atendimento em NAPS/CAPS, e Hospital-dia. Normatiza ainda, a
assistência nos hospitais psiquiátricos, estabelecendo alguns parâmetros
assistenciais mínimos, tais como, atividades a serem desenvolvidas e o
número de profissionais por pacientes.
Essas portarias incentivaram a criação de diversas
49 A portaria estabeleceu um número máximo de diárias a serem pagas por cada Autorização de Internação Hospitalar (AIH), abrindo a possibilidade de um controle maior por parte do gestor estadual ou municipal.
145
unidades assistenciais espalhadas pelo país, muitas com o nome de
NAPS ou de CAPS, que acabaram por se transformar em sinônimos de
unidades assistenciais de vanguarda. O que nos faz pensar em duas
questões importantes: a primeira e óbvia é a de que o nome da instituição
não significa automaticamente uma adesão, tanto dos trabalhadores
quanto dos gestores, aos princípios, diretrizes e aos novos paradigmas
que aquelas experiências pioneiras colocavam, nem é a garantia de um
serviço de qualidade e de substituição aos manicômios, aliás muito pelo
contrário. A prática assistencial das instituições pode ser tão excludente e
violenta quanto o pior dos manicômios50. A segunda questão refere-se ao
fato de que muitos municípios encontraram, nos procedimentos de saúde
mental, uma oportunidade para aumentarem os recursos financeiros
repassados à saúde, devido ao seu elevado valor, comparativamente aos
outros da tabela de remuneração do SUS51. Ou seja, estavam mais
preocupados com as finanças municipais do que em implantar um modelo
de assistência em saúde mental.
Nos dois anos subseqüentes, o Ministério da Saúde
publicou novas portarias, dentre elas algumas que estabeleciam
diferenças entre hospitais psiquiátricos com diferentes remunerações da
Autorização para Internação Hospitalar (AIH). Isso obrigou os hospitais a
50 Retomaremos essa questão mais adiante, no capítulo referente ao CAPS. 51 Praticamente todas as ações em saúde (consultas médicas, de psicologia, curativos, cirurgias etc.) são remuneradas pelo SUS. Existe uma tabela que discrimina e define cada ação, estipulando um determinado valor que é pago pelo SUS ao gestor que executou a ação.
146
se adequarem às exigências contidas nas portarias. Esse processo
possibilitou aos Estados e municípios exercerem uma maior fiscalização,
controle e uma intervenção naqueles hospitais psiquiátricos privados ou
filantrópicos (muitos pilantrópicos) prestadores de serviço ao SUS, que
não apresentassem condições mínimas de funcionamento. No Estado de
São Paulo, todos os hospitais psiquiátricos foram submetidos a uma
supervisão de avaliação, que resultou no fechamento de alguns deles,
com uma redução de mais de dois mil leitos psiquiátricos52.
Em dezembro de 1992, foi realizada a 2ª Conferência
Nacional de Saúde Mental (CNSM). Precedida de etapas municipais,
regionais e estaduais, que contaram com o envolvimento direto de cerca
de vinte mil pessoas, a etapa nacional contou com a participação de
quinhentos delegados eleitos nas conferências estaduais, com
composição paritária dos dois segmentos: usuários e sociedade civil,
governo e prestadores de serviço. Contou ainda com a presença de 320
observadores credenciados, 150 participantes na condição de ouvintes,
cem convidados (sendo 15 estrangeiros), totalizando mais de mil
pessoas53 de diferentes partes do país. Eram trabalhadores, gestores
estaduais e municipais, políticos, representantes dos hospitais
psiquiátricos, representantes de entidades de saúde, associações de
52 Essa redução não ocasionou nenhum problema assistencial. O Estado de São Paulo possui um excedente de leitos psiquiátricos. Vide quadro 3 do anexo. 53 Dados constantes na apresentação do relatório da Conferência.
147
usuários e familiares de pacientes, entidades de auto-ajuda,
representantes de universidades, que discutiram ativamente os temas
propostos. A participação efetiva de usuários, em todos os fóruns,
foi responsável pelo surgimento de uma nova dinâmica de
organização do trabalho, onde os depoimentos pessoais, as
intervenções culturais e a defesa dos direitos transformaram as
relações e as trocas entre todos os participantes.
(BRASIL/MS, 1994, p.8)
Diversos pontos do relatório, aprovados na plenária final,
tiveram a defesa emocionada e firme dos usuários.
Em sintonia com o momento do país54, a 2ª CNSM
discutiu três grandes temas: crise, democracia e reforma psiquiátrica;
modelos de atenção em saúde mental; e direitos e cidadania. O relatório
final subdivide-se em três partes: marcos conceituais; atenção à saúde
mental e municipalização; e direitos e legislação.
Em sua primeira parte, o relatório aponta a atenção
integral e cidadania como conceitos direcionadores das deliberações da
Conferência.
A atenção integral deverá propor um conjunto de
dispositivos sanitários e socioculturais que partam de uma
visão integrada das várias dimensões humanas da vida do
54 Todas as etapas da conferência foram realizadas durante o processo de impeachment do Pres. Collor.
148
indivíduo, em diferentes e múltiplos âmbitos de intervenção
(educativo, assistencial e de reabilitação). (Ibid., p.13)
Reafirma os princípios da universalidade, integralidade,
eqüidade, descentralização, participação popular e municipalização,
propondo a substituição do modelo hospitalocêntrico por uma rede de
serviços, diversificada e qualificada, e a intensificação da desospitalização
através dos programas públicos de lares e pensões protegidas. Propõe,
também, a articulação com os recursos existentes na comunidade e a
necessária transformação das relações cotidianas entre
trabalhadores de saúde mental, usuários, famílias, comunidade
e serviços, em busca da desinstitucionalização, bem como da
humanização das relações no campo da saúde mental. (Ibid.,
p.16)
Chama a atenção para uma necessária construção
coletiva de práticas e saberes cotidianos, que considere: o trabalho em
equipe, outros campos de conhecimento e os saberes populares. Por fim,
destaca a relação entre cidadania, Estado e Sociedade, propondo
estimular a organização dos cidadãos em associações comunitárias,
alterações na legislação e ações no campo da informação e educação.
Em sua segunda parte, o relatório apresenta inúmeras
propostas relativas à atenção à saúde mental e municipalização. No
capítulo sobre as recomendações gerais, destacamos que o mesmo:
149
reafirmava o principio da municipalização, acrescentando a proposta de
utilização dos conceitos de território e responsabilidade55 como
dispositivos para uma ruptura com o modelo hospitalocêntrico; propõe
criar a Comissão Nacional de Reforma Psiquiátrica e fazer constar, no
calendário oficial, o dia 18 de maio como o dia nacional de luta por uma
sociedade sem manicômios. No capítulo sobre financiamento, apresenta
propostas: que asseguram no orçamento o financiamento da saúde; a
extinção de pagamentos da internação hospitalar através das AIHs; e a
criação de instrumentos para o redirecionamento dos recursos da área
hospitalar para a rede extra-hospitalar. No capítulo sobre gerenciamento,
reafirma princípios do SUS e propõe diversas ações para garantir a
transparência no gerenciamento dos serviços público e o acesso da
população a estes. No capítulo sobre vigilância, propõe, basicamente uma
parceria mais próxima com a vigilância sanitária e epidemiológica,
incluindo a saúde mental como uma área das ações daquelas. Finaliza
essa segunda parte com propostas para a capacitação dos trabalhadores
de saúde, sobre as relações no trabalho em termos de organização e
conquista de direitos, e sobre a promoção de pesquisas voltadas para a
investigação epidemiológica e sócio-antropológicas e para a avaliação da
rede de atenção em saúde mental.
A terceira parte do relatório apresenta propostas
referentes ao tema Direitos e Legislação. São cinco capítulos
55 Conceitos utilizados no programa de saúde mental de Santos.
150
abrangendo os seguintes temas: questões gerais sobre uma necessária
revisão legal; direitos civis e cidadania; direitos trabalhistas; drogas e
legislação; direitos dos usuários. Talvez tenha sido a parte do relatório na
qual os usuários participaram de forma mais ativa, especialmente na
plenária final. São mais de cem propostas aprovadas, que compõem um
amplo leque, cuja tônica central é a revisão da legislação brasileira, que
apresenta dispositivos legais conflitantes com as novas práticas de
atenção em saúde mental e da cidadania dos usuários, e a criação de
dispositivos que garantam os direitos de cidadania e de acesso aos
serviços de saúde.
Realizada em circunstâncias históricas distintas da 1ª
CNSM, cujo relatório apresentava diversas proposições de caráter
político, o texto da 2ª CNSM não foi tão contundente na crítica ao modelo
econômico nem ao momento político que se estava vivendo. Embora
aquelas questões estivessem como pano de fundo, o relatório era muito
mais extenso e específico nas questões da saúde mental, chegando ao
requinte de detalhamentos técnicos, como propostas de extinção dos
pagamentos das internações através das AIHs. A 2ª CNSM foi realizada
em um momento em que diversas experiências já estavam consolidadas e
espalhando-se pelo país56; já existia uma lei, aprovada na Câmara dos
Deputados e tramitando no Senado, e leis estaduais aprovadas ou em
56 O CAPS Luiz Cerqueira já é uma realidade consolidada e o Programa de Saúde Mental de Santos já é reconhecido internacionalmente como experiência modelar, inclusive pela Organização Pan-americana de Saúde (OPAS).
151
tramitação; já existiam dispositivos institucionais (portarias ministeriais)
que possibilitavam a implantação de novos serviços e aumentavam a
fiscalização dos hospitais; já existiam diversas associações de usuários
atuando ativamente pelo país. Ou seja, estava em curso um processo de
transformação da saúde mental no campo assistencial, no campo jurídico,
no campo institucional e no campo cultural.
Muitas das propostas apresentadas se concretizaram,
como, por exemplo, a criação de leis estaduais e municipais57 que
incorporaram as propostas apresentadas no relatório e a criação da
Comissão Nacional de Reforma Psiquiátrica58. Nesse sentido, o relatório
da 2ª CNSM apontou para a consolidação das conquistas e para onde
avançar.
A 2ª CNSM, consolidou também a conquista dos espaços
institucionais. A posição oficial do aparato estatal estava alicerçada pelas
diretrizes propostas e pelos conceitos do Movimento da Reforma
Psiquiátrica. Utilizando-se da mesma estratégia do Movimento Sanitário, a
Reforma Psiquiátrica institucionalizou-se enquanto política oficial (se é
que, pelo menos desde os anos setenta, em algum momento deixou de
sê-lo ao menos no discurso). Na guerra de posições no interior da
57 Já contam com leis aprovadas o Distrito Federal e os Estados do Rio Grande do Sul, do Paraná, de Minas Gerais, de Pernambuco, do Ceará e as cidades de Ribeirão Preto/SP, do Rio Grande /RS e Belém/PA. Estados que têm Projetos de Lei em tramitação: Santa Catarina, Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás, Bahia, Rio Grande do Norte, Paraíba, Sergipe e a cidade de Salvador/BA . 58 Criada em dezembro de 1993.
152
construção de um processo de hegemonia, o Movimento da Reforma
Psiquiátrica conquistou territórios no interior do aparelho estatal.
E, por outro lado, não se afastou de suas raízes, suas
origens. Na mesma 2ª CNSM, a presença de centenas de delegados,
usuários e familiares indicava para as novas alianças que o Movimento da
Reforma Psiquiátrica estabeleceu e fortaleceu: as associações e
organizações sociais.
4.3.2. De volta às origens...
Enquanto os encontros institucionais oficiais se tornavam
mais raros, ou em número bem menor do que em outros períodos,
marcando um certo refluxo da capacidade de organização dos setores do
Movimento da Reforma Psiquiátrica instalados no aparelho estatal, os
setores do movimento mais identificados com o Movimento da Luta
Antimanicomial (MLA) retomavam a sociedade civil e o plano cultural
como palco de lutas e conquistas. Privilegiando a articulação e a
ampliação das alianças com outros segmentos da sociedade, estenderam
o movimento para além do campo da saúde mental, incorporando
definitivamente novos atores, buscando conquistar o apoio e a
apropriação da sociedade a essa luta. Os anos noventa foram férteis em
153
encontros e eventos com a participação ativa das associações de
usuários e familiares, além de outros setores da sociedade.
Em setembro de 1993, foi realizado, em Salvador, o I
Encontro Nacional da Luta Antimanicomial. Os trabalhos desenvolveram-
se em torno de um tema comum, O Movimento Antimanicomial, Enquanto
um Movimento Social, e dos seguintes temas específicos:
• A tragédia nacional e a produção do sofrimento
• A invenção da assistência: Impasses e possibilidades na
construção das práticas antimanicomiais
• Luta antimanicomial e intervenção cultural: a cultura como
alvo e a cultura como meio.
• Legislação Psiquiátrica: a (re)construção dos direitos pela
via legal.
• A luta antimanicomial e as instituições: Autonomia,
contradições, parcerias e ambigüidades. (CRP, 1997, p.65)
O relatório59 do tema comum caracteriza o MLA como um
movimento social, plural, independente, autônomo, que deve
manter parcerias com outros movimentos sociais. (...) Como
movimento social e político ele nos aponta para alianças
59 O relatório final do Encontro compõe-se do relatório do tema comum deliberado na plenária final, dos relatórios dos temas específicos debatidos em grupos, de anexos dos encontros estaduais sobre os temas, moções aprovadas na plenária e de textos temáticos de outras entidades. Citaremos apenas os relatórios deliberados naquele Encontro Nacional.
154
possíveis, e para uma ética que deve regê-lo, que tem uma
identidade clara com a luta contra todas as formas de
opressão. (Ibid.)
Aponta, também, para um avanço do movimento de uma
posição corporativa, dos Trabalhadores de Saúde Mental, para um
movimento social mais amplo, "saindo de um caráter meramente teórico e
técnico, para uma intervenção política na sociedade" (Ibid.).
O MLA retomava uma característica do Movimento da
Reforma Psiquiátrica presente no final dos anos setenta, quando suas
intervenções privilegiavam a cena social como campo de exposição. A
questão que se colocava naquele período era sair dos muros do asilo,
incorporar as bandeiras de luta e ampliar as alianças com os setores
progressistas em organização da sociedade, sensibilizando-os para as
questões da violência institucional e da segregação, como temas de
discussão e debates no contexto daquele momento histórico. No capítulo
II, referimo-nos particularmente ao filme Em nome da Razão, como
exemplo de uma intervenção que provocou múltiplos efeitos no campo
cultural.
De todo modo, o MLA ampliou os limites de atuação das
intervenções do interior das instituições para o campo social. Extrapolou,
não apenas os muros do asilo, mas dos novos serviços, criando
dispositivos de articulação e parceria com outras instituições e outros
atores sociais. O II Congresso de Trabalhadores de Saúde Mental, de
155
Bauru, encerrou-se, em um chuvoso domingo, com uma passeata pelas
ruas da cidade. Desde então, o dia 18 de maio, Dia Nacional da Luta
Antimanicomial, é comemorado em diversos pontos do país, com eventos
que ocupam as praças e as ruas. Tradicionalmente são realizadas
atividades de caráter cultural: exposições de arte, música, dança, teatro,
filmes, debates etc. Geralmente o tom é de uma grande festa. É a loucura
ocupando os espaços públicos, mostrando sua face, convidando à
possibilidade da convivência com a diferença, reivindicando seu direito de
circular e o seu lugar, não da exclusão, mas o da inclusão. A produção
desses eventos requer um longo trabalho de articulação com outros
segmentos e setores sociais, como, por exemplo, Secretarias de Cultura,
artesãos, imprensa, escolas etc. Dessa maneira, várias pessoas,
entidades e instituições acabam se envolvendo com o evento,
sensibilizando-se com a luta e transformando-se em parceiros.
O relatório dos temas específicos do I Encontro Nacional
da Luta Antimanicomial reflete a tendência e o pensamento do MLA, nos
seguintes aspectos: o tema 01 conclui que a situação social, política e
econômica do país é produtora de sofrimento, incluso o psíquico, e
aponta para a necessidade de inserir a questão da saúde mental em
todos os Movimentos Sociais; o tema 02 apresenta uma reflexão sobre o
fazer clínico, que "deve ser pensado como ato político" (CRP, 1997, p.68),
e salienta que a invenção da assistência em saúde mental passa pela
construção de práticas que propiciem a atenção integral à saúde num
156
processo coletivo que contemple a cultura, a interdisciplinaridade, os
movimentos populares, sindicais, comunitários e legislativos; o tema 03
reafirma o MLA como um movimento de toda a sociedade e propõe ações
que possam romper com a cultura manicomial. Dentre elas, sugere
articular vários segmentos culturais na promoção de atividades
expressivas usando-se a rua com o objetivo de criar mecanismos de
troca para comprometer e envolver a sociedade; o tema 04 aponta a via
legal como um dos instrumentos de luta a serem utilizados, reafirma a
necessidade de uma revisão na legislação psiquiátrica; o tema 05 analisa
o Estado Brasileiro como historicamente marcado pelo
autoritarismo, paternalismo, populismo e clientelismo, que
responde aos interesses da classe dominante, sendo aliados
naturais. Assim as políticas públicas vigentes se colocam no
contexto do neoliberalismo latino americano, cujo objetivo é a
ampliação das relações de mercado para reprodução do
capital, em detrimento de políticas sociais e estatizadas. (CRP,
1997, p.79)
Nessa perspectiva, o MLA criticava a política ministerial
e procurava colocar-se em uma posição de independência em relação ao
aparelho estatal, sendo cuidadoso quanto à participação na política oficial
de saúde mental.
Por outro lado, o Ministério reconheceu no MLA um
importante interlocutor. A composição da Comissão Nacional de Reforma
157
Sanitária do Conselho Nacional de Saúde contempla um representante
do MLA como um segmento da sociedade, assim como representantes
dos usuários, dos hospitais etc., seguindo a mesma distribuição paritária
entre segmentos da sociedade e do governo das demais Comissões da
Saúde. De qualquer forma, essa é uma questão permanente para o
movimento, que procura manter uma característica predominantemente
de Movimento Social, ainda que muitos de seus importantes atores
tenham sido gestores de políticas municipais de saúde. Isto marca uma
importante diferença em relação a outros segmentos do Movimento da
Reforma Psiquiátrica, que aderiram ou se instalaram no aparelho de
Estado, afastando-se do cotidiano da assistência.
Em dezembro de 1993, foi realizado, na cidade de
Santos, o III Encontro Nacional de Entidades de Usuários, Familiares da
Luta Antimanicomial60, que contou com a participação de 388 pessoas,
sendo 234 usuários, 29 familiares e 125 técnicos, com representação de
nove Estados: Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais, Pernambuco, Distrito
Federal, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Santa Catarina e São Paulo.
Como resultado das discussões, foi produzida a Carta de Direitos dos
Usuários e Familiares de Serviços de Saúde Mental
A carta subdivide-se em cinco itens:
60 O I Encontro Nacional foi realizado em São Paulo, em 1991. O II Encontro realizou-se, em 1992, na cidade do Rio de Janeiro.
158
I - direitos gerais na sociedade; afirma princípios de garantia do
direito à vida plena, à assistência, à saúde mental, à livre
expressão e firma posição contra a discriminação e a
exploração do usuário.
II - características gerais dos serviços de saúde mental de
serviços complementares; aponta para o entendimento da
assistência em saúde mental abrangendo outros serviços
(jurídico, reabilitação, educação, garantia de trabalho, etc.) e
apresenta características dos serviços que, resumidamente,
devem: ser abertos, próximo à residência do usuário, ser
gratuitos e preferencialmente públicos, dispor de assistência
jurídica ao usuário, possibilitar o acesso gratuito ao transporte e
a medicação, permitir e incentivar a organização dos usuários.
III - características dos tratamentos em saúde mental; define,
especialmente, o que deve ser proibido como formas de tortura
e violência, pretensamente terapêuticas: camisa-de-força,
psicocirurgia, insulinoterapia61, esterilização involuntária, cela
forte, ECT62, amarrar, superdosagem de medicamentos.
Propõe a comunicação ao Ministério Público, em 48 horas, em
qualquer internação, clareza na informação ao usuário sobre o
serviço e o tratamento, e orientação quanto o suporte aos
61 Técnica que consiste em induzir um coma hipoglicêmico, através da aplicação de uma injeção de insulina. 62 Eletroconvulsoterapia, o conhecido eletrochoque. Trata-se de um tratamento que consiste em aplicar choques elétricos, na região das têmporas, para a indução de um estado de convulsão no paciente.
159
familiares e mecanismos de participação nas decisões e
fiscalização dos serviços.
IV - direitos dos usuários de serviços de saúde mental; propõe
basicamente o direito do usuário: ao acesso as informações
contidas no prontuário, aos meios de comunicação, ao sigilo e
inviolabilidade de correspondência, à privacidade e
individualidade, a participar das decisões nos serviços e
conselhos, a representação legal. Destaque-se que a maior
parte dos direitos propostos hoje constam de diversos
documentos oficiais63.
V - reivindicações e temas de lutas e moções; apresenta
várias propostas de encaminhamento, moções, sugestões de
diversos sentidos tais como: encaminhar ao poder Legislativo e
Judiciário proposta para considerar a aplicação do ECT crime
inafiançável; promoção de orientações a policiais, Corpo de
Bombeiros e outros técnicos em relação aos cuidados
especiais e direitos do portador de transtorno mental em crise;
denunciar municípios que não cumprirem a legislação do SUS;
revisão das políticas sobre os manicômios judiciários e o
desenvolvimento de programas alternativos entre várias outras.
(CRP, 1997, pp.136-138)
63 Manual do usuário dos serviços de saúde da Secretaria de Estado da Saúde, de 1995; Código de Defesa do Consumidor; e recentemente uma lei estadual, lei n.º 10.241 de 17/03/99, que trata dos direitos do usuários dos serviços de saúde.
160
De maneira geral, o texto da Carta de Direitos não traz
novidades em relação aos outros relatórios apresentados. É contundente
em relação a práticas terapêuticas de caráter duvidoso, tais como o ECT,
e na defesa dos direitos dos usuários. Alerta, a certa altura, quanto ao
cuidado que se deve ter quanto à linguagem utilizada por muitos
profissionais nos encontros, por vezes demasiadamente hermética e
técnica. Ou seja, reafirma, basicamente, os princípios e diretrizes
defendidos pelo Movimento da Reforma Psiquiátrica, a partir da
perspectiva de quem, historicamente, foi colocado na posição de objeto,
nos vários sentidos que essa palavra possa conter, das políticas de saúde
mental e das intervenções psiquiátricas.
Mas a grande novidade não é propriamente o texto, mas o
processo de sua elaboração. Um texto discutido e debatido pelos usuários
e familiares. O louco, destituído de sua condição de cidadão, afirma-se
como sujeito de seu tempo e escreve, literal e simbolicamente, uma
página de sua história. Os vários encontros que precederam e a própria
Carta reafirmam a identidade dos movimentos dos familiares e usuários
como um Movimento Social que vai conquistando espaço e
características próprias.
A Carta se encerra com um conhecido manifesto de
Antonin Artaud, dirigido aos diretores de manicômios, que afirma, em seu
trecho final:
161
Que tudo isso seja lembrado amanhã pela manhã, na hora da
visita, quando tentarem conversar sem dicionário com esses
homens sobre os quais, reconheçam, os senhores só tem a
superioridade da força. (Ibid., p.141)
Incisivas palavras de quem sentiu na pele os efeitos da
internação em um hospital psiquiátrico, e que servem para lembrar aquilo
que Basaglia (1977), baseando-se em Gramsci, definia como sendo o
trabalho dos funcionários do consenso, ou seja, daqueles que são
encarregados de concretizar as instituições psiquiátricas, legitimando a
violência e a segregação através do cotidiano de suas práticas.
Em novembro de 1995, realizou-se, em Belo Horizonte, o
II Encontro Nacional da Luta Antimanicomial, com a participação de mais
de mil representantes das mais diferentes regiões do país, trabalhadores
de saúde mental, usuários, familiares de vários segmentos sociais.
As discussões orientaram-se por um eixo organizativo
(história do movimento, avaliação, identidade, estrutura organizativa,
estratégias de luta, deliberações sobre eventos e representações do
movimento) e por um eixo temático ( exclusão: na cultura; no trabalho; na
assistência; no direito).
Das conclusões do relatório do eixo organizativo, no item
avaliação, destacam-se: a avaliação do avanço do MLA em nível nacional;
o cuidado com a apropriação do discurso antimanicomial por setores
162
cujas propostas são opostas às do movimento; ênfase na necessidade de
uma atuação na formação dos futuros profissionais, objetivando a
multiplicação das práticas efetivamente antimanicomiais. No item
identidade, destacam-se: reafirmação do caráter múltiplo, público,
democrático, autônomo e popular do MLA; a definição da
desinstitucionalização como eixo do movimento e não a desospitalização
e humanização; reforça a inserção do MLA no contexto social de forma
ampla e integrada com outros movimentos; e reafirma a construção de
uma política de saúde mental pública e gratuita de acordo com os
princípios do SUS. No item estratégias de luta, sublinham-se as propostas
de atuação e intervenção no âmbito social, no sentido de ampliar alianças
e no fortalecimento do movimento; propostas de ampliação da inserção do
MLA junto às instituições formadoras e participação nas instâncias de
planejamentos das políticas sociais.
O eixo temático apresenta diversos pontos para uma
análise da exclusão, em diferentes campos e propostas para cada um
deles. De maneira geral, reafirmam textos anteriores, balizando-se pela
ampliação da discussão sobre o ideário do MLA em diferentes espaços
sociais, como as escolas, universidades, mídia; pela constante discussão
sobre os princípios e conceitos técnicos e éticos que fundamentam as
práticas assistenciais. Introduz uma discussão sobre o tema trabalho em
suas múltiplas dimensões: conceito; leis trabalhistas, cooperativas,
163
capacitação. Apresenta várias propostas que apontam para uma
participação mais ativa do MLA na mudança do aparato jurídico.
O relatório focaliza dois temas que gostaríamos de
destacar e refletir: a desinstitucionalização e o tema trabalho.
Ao tratar da identidade do MLA, o relatório propõe definir
como eixo a desinstitucionalização, em oposição à desospitalização e à
humanização. Para um leitor menos afeto à área, essa poderá parecer
uma estranha posição. Tomar como eixo um conceito que se opõe à
desocupação dos leitos hospitalares e à humanização das relações de
tratamento? A desinstitucionalização64 é um conceito do referencial
teórico-prático do pensamento e da experiência italiana, que propõe uma
ruptura epistemológica ao repensar radicalmente sobre o objeto da
psiquiatria, colocando em questão sua identidade e seu estatuto.
Renuncia à busca etiológica da doença mental, colocando-a, como
afirmava Basaglia, entre parênteses para melhor conhecer as
necessidades do homem doente, o que significa uma "ruptura com a
leitura, o olhar, o conjunto de procedimentos que identificam o sujeito
internado à doença, o sofrimento a um objeto simples" (Nicácio, 1994,
p.46). A transformação proposta pelos italianos não se encerra com uma
mudança de natureza institucional, mas
64 Embora não seja uma posição teórico-técnica hegemônica no interior do MRP, tem orientado muitas das discussões sobre o caráter das práticas assistenciais, servindo como um importante balizador
164
se insere no campo da reflexão epistemológica do
conhecimento, das ideologias, do papel dos técnicos e dos
intelectuais. Partindo do encontro com a prática psiquiátrica
concreta, Basaglia vai refletir sobre os instrumentos e a
finalidade da Psiquiatria como ciência no contexto do sistema
social. (...) Neste horizonte, o projeto de desinstitucionalização
é a transformação do próprio objeto da Psiquiatria e como tal
não se identifica com a desospitalização ou com propostas de
construção de modernos serviços de assistência. A ruptura
com as instituições referidas à doença abre um caminho de
produção de saber, a busca de novos paradigmas para o
conhecimento da loucura. (Nicácio, 1994, pp.51-52)65
Trata-se portanto de criar/inventar não só novas
instituições ou modos de cuidar, mas de produzir constantemente uma
nova realidade. Usina de idéias, de concepções sobre a prática, de
reflexão crítica sobre a relação saúde/doença, de formas de sociabilidade,
de formas culturais. As transformações propostas devem transcender o
estreito campo das práticas institucionais de saúde mental e inscrever-se
na luta pela construção de um processo de transformação social.
O segundo tema referia-se ao trabalho que nesse relatório
surge com maior destaque e revela uma atualização do temário do MLA.
65 Nessa dissertação de mestrado, Nicácio relata o processo de transformação da saúde de Santos, na gestão petista. Uma importante experiência relatada por quem foi uma das principais autoras do processo.
165
Naquele momento histórico, várias experiências de cooperativas de
trabalho, em parceria com associações de usuários, estavam, e estão,
em pleno funcionamento. São dispositivos sociais para melhoria da
qualidade de vida dos usuários, pois criam a possibilidade de relações de
trabalho em que prevaleçam a eqüidade, a parceria e a solidariedade, em
contraposição ao injusto, competitivo, discriminador e alienante mundo do
trabalho.
Por fim, destacamos mais três encontros: em 1996,
realizou-se na cidade de Franco da Rocha o IV Encontro Nacional de
Usuários e Familiares dos Serviços de Saúde Mental. Também naquele
ano, foi realizado o V Encontro Mundial de Reabilitação Psicossocial, em
Roterdã, na Holanda, para o qual foram representantes de usuários e
familiares; e, em 1997, realizou-se na cidade de Porto Alegre o III
Encontro Nacional de Luta Antimanicomial.
A realização desses encontros demonstra que o MLA
estabeleceu uma rotina de reuniões e de participação em eventos que
marca sua capacidade de organização.
4.4 - Apresentando os novos paradigmas
Foi com o Movimento da Luta Antimanicomial que o
Movimento da Reforma Psiquiátrica radicalizou um processo que já se
166
insinuava ao longo dos anos. Rompendo os estreitos limites de uma
modificação na organização dos equipamentos de saúde ou de
implementação de propostas de caráter exclusivamente técnicas ou
científicas, o Movimento da Reforma Psiquiátrica foi se definindo mais
claramente como um constante processo de transformações nos campos
assistencial, cultural e conceitual.
Se fosse oportuno, neste contexto complexo,
questionar-se quanto ao principal objetivo da Reforma
Psiquiátrica, talvez fosse possível responder que seria poder
transformar as relações que a sociedade, os sujeitos e as
instituições estabeleceram com a loucura, com o louco e com a
doença mental, conduzindo tais relações no sentido da
superação do estigma, da segregação, da desqualificação dos
sujeitos ou, ainda, no sentido de estabelecer com a loucura
uma relação de coexistência, de troca, de solidariedade, de
positividade e de cuidados. (Amarante, 1997, p.165)
Nesse sentido, reafirmando o que já havíamos dito
anteriormente, o título de Reforma Psiquiátrica não faz jus, pelos
possíveis problemas que o termo possa causar, à riqueza e à
complexidade do que aqui estamos a relatar. Trata-se de uma radical
ruptura com o modelo asilar predominante, através, não só de um
questionamento de seus conceitos, fundamentos e de suas práticas
mas, principalmente, através da construção de novos paradigmas.
167
A crítica radical à psiquiatria tradicional, efetuada desde
os anos setenta, produziu uma mudança na concepção do objeto,
focado exclusivamente na doença, com uma decorrente prática centrada
quase que exclusivamente na figura do médico, para uma concepção que
supera as dicotomias saúde/doença, individual/social, entendendo a
saúde mental como um campo complexo, composto por uma rede de
fatores sociais, psicológicos, culturais e biológicos. Nessa concepção, não
se busca a preponderância de um determinado fator sobre outro, ao
contrário, trata-se de tomar o drama do existir humano em sua
complexidade. Considerando essa múltipla determinação, que leva a uma
ação terapêutica interprofissional, Costa-Rosa afirma que
o que entra no campo, a priori, não é mais a determinação
orgânica (ou qualquer outra, o que poderia ser equivalente)
mas sim a postura que procura discriminar qual é a
determinação, ou determinações dos problemas em questão.
(Costa-Rosa, 1990, p.14).
As práticas decorrentes dessa concepção orientaram-se
para uma atenção e para o desenvolvimento de cuidados centrados na
singularidade e no radical respeito à subjetividade. Essa é a dimensão da
construção do percurso do tratamento.
Lobosque (1997) caracteriza três princípios para uma
clínica antimanicomial: princípio da singularidade, retomando a questão
da relação entre particular e universal, privado e público, individual e
168
social, concebendo-a como um atributo de um coletivo que não se deixa
envolver por um ideário individualista, nem se faz amarrar por
perspectivas de unidade ou totalização; a clínica antimanicomial será
toda a
clínica que convide o sujeito a sustentar sua diferença, sem
precisar excluir-se do social ... Daí o trabalho clínico, que se
coloca, sim, caso a caso: conduzir o tratamento de forma tal
que o sujeito siga o caminho que lhe é próprio - mantendo-o,
ao mesmo tempo, cabível nos limites da cultura (Lobosque,
1997, p.23).
O segundo princípio apresentado pela autora é o do
limite: trata-se de tomar a sua construção como um problema lógico e não
como um imperativo moral, ou seja, busca-se estabelecer o traçado de
um contorno e não o processamento de uma exclusão
... questionar a exclusão não é o mesmo que incluir pura e
simplesmente. Assim 'fazer caber' o louco na cultura é também
ao mesmo tempo convidar a cultura a conviver com certa falta
de cabimento, reinventando com ela também seus limites ...
pensar, propor, sustentar formas de contrato social nas quais
não seja mortífera a presença da loucura, é algo que faz parte
de uma clínica antimanicomial (Ibid., p.23)
O terceiro princípio é o da articulação: trata-se aqui da
necessária articulação e interlocução com outras práticas e outros
169
campos e de pensamento, considerando o projeto de uma sociedade sem
manicômios. Deve-se produzir um constante trabalho de reflexão e de
crítica à sociedade em seus aspectos econômicos, políticos e sociais,
buscando articulações com demais movimentos sociais, bem como
manter-se atualizada e atenta através de uma interlocução interdisciplinar.
Uma clínica poderá dizer-se articulada quando levar em conta
as configurações da ordem pública em que se inscreve,
preocupando-se em modificá-las; quando, considerando a
dimensão de seu trabalho para cada paciente, ocupar-se das
questões públicas cuja abordagem se faz indispensável para
garantir a possibilidade mesma desse trabalho (Ibid., p.24)
Costa-Rosa (1990) irá nomear o conjunto das práticas
promovidas pelo Movimento da Reforma Psiquiátrica como Modo
Psicossocial, em oposição ao Modo Asilar predominante. Propõe o autor
que, para caracterizar a mudança de paradigma de atenção, capaz de
superar o modelo asilar, é imprescindível que a prática preencha algumas
condições, relativas a transformações radicais em quatro âmbitos:
concepção do objeto e dos meios de trabalho; concepções das formas da
organização institucional; formas do relacionamento com a clientela; e
concepção dos efeitos típicos em termos terapêuticos e éticos.
Concepção do objeto e dos meios de trabalho:
contrapondo-se à ênfase nas determinações orgânicas e sua decorrente
prática, e ao meio de trabalho que reproduz modelo da divisão de
170
trabalho correspondente a linha de montagem, o Modo Psicossocial
caracteriza-se pela transformação nas concepções do objeto,
considerando os múltiplos fatores já descritos anteriormente e na
participação e implicação do sujeito no tratamento, tendo como meio de
trabalho a equipe interprofissional que através do intercâmbio entre seus
saberes e práticas, supera radicalmente o modelo da linha de
montagem.
Concepções das formas da organização institucional:
opondo-se à organização verticalizada e a um fluxo de poder em sentido
único do Modo Asilar, o Modo Psicossocial caracteriza-se por uma
organização institucional dos dispositivos de trabalho horizontal, na qual a
participação, autogestão e interprofissionalidade são as metas radicais.
Formas do relacionamento com a clientela: enquanto o
Modo Asilar se caracteriza pela separação entre doentes e sãos, com a
instituição cumprindo uma função de depositária que interdita o diálogo, o
Modo Psicossocial propõe que a instituição, através de seus agentes,
adquira o caráter de espaços de interlocução, agenciadora de
subjetividades. E considerando a dimensão de suas ações no âmbito da
Saúde Coletiva, a instituição deve funcionar como ponto de fala e escuta
da população.
Concepção dos efeitos típicos em termos terapêuticos e
éticos: enquanto no Modo Asilar se observa uma hipertrofia nos defeitos
de tratamento, como a cronificação asilar, decorrente de um entendimento
171
do tratamento centrado na supressão ou no tamponamento dos sintomas,
no Modo Psicossocial o que se visa é ao reposicionamento subjetivo,
levando-se em conta a dimensão coletiva e sociocultural. Deverá ser
pensado na perspectiva de uma ética que se abra para a singularização.
Assim, implicação subjetiva e sociocultural, além da singularização, são
as metas radicais quanto à ética das práticas do Modo Psicossocial.
Finalizando, destacamos que, em junho de 1991,
técnicos, pesquisadores, professores e coordenadores de programas e
serviços de saúde mental e gerentes de sistemas locais de saúde
reuniram-se em Santos, em um workshop intitulado Saúde Mental e
Cidadania no Contexto dos Sistema Locais de Saúde, organizado pela
Secretaria de Higiene e Saúde da Prefeitura de Santos, pela Secretaria
de Estado da Saúde e pela Coordenação de Projetos de Saúde da
Cooperação Italiana. Nesse encontro, elaborou-se a Carta de Santos,
que sintetiza, em suas conclusões, os paradigmas do Movimento da
Reforma Psiquiátrica. Subdividindo-a em três itens, os signatários da
Carta apresentam, no primeiro, características conceituais comuns que
permeiam as novas práticas:
a) o acolhimento de pacientes graves;
b) o acompanhamento de todos os momentos do processo de
tratamento: do atendimento à crise, um conjunto de
terapêuticas que têm por objetivo a reorganização psíquica,
respeitando-se a subjetividade de cada um; práticas de
172
intermediação entre sujeito e a sociedade com o objetivo de
reinserção e participação social;
c) a observação que o tratamento é um processo longo e
complexo que deve abarcar várias dimensões do indivíduo
discriminando-se o momento e o sentido de cada intervenção;
d) a convivência com a diversidade e as contradições como
parte do processo;
e) a preocupação de procurar tratar cada caso buscando
encaminhamentos que preservem a subjetividade do indivíduo;
f) a busca de diferentes modelos para coordenar as diversas
intervenções necessárias ao resgate do exercício de cada vida
civil dos indivíduos ...
g) o situar-se como uma ponte entre unidades assistenciais e
organismos sociais que possam facilitar e promover a inserção
do indivíduo na sociedade. (Kalil, 1991, p.24)
No segundo item, propõem para as novas práticas, novos
técnicos: "A constituição da equipe de trabalho dar-se-á através de um
processo de participação coletiva onde técnicos, administrativos, teóricos,
efetuadores constituam uma espiral de conhecimentos e tecnologias
adequadas" (Ibid, p.24)
No terceiro item, solicitam o esforço por parte de gerentes
de redes locais, responsáveis pela direção de serviços e técnicos, para
173
diminuir as distâncias de formação, conhecimentos e história que os
separam.
A Carta de Santos se encerra conclamando os
Secretários municipais, coordenadores de programas e
serviços de saúde mental, trabalhadores de instituições de
ensino e pesquisa em saúde mental, profissionais, usuários e
sociedade em geral a desenvolver estratégias locais de
transformações institucionais condizentes com o aqui
acordado. Enfatizam que a reinserção social do doente mental
deve respeitar uma contratualidade social que tenha no
exercício da cidadania seu paradigma. (Ibid, pp.25-26)
Os textos citados sintetizam as principais características
do que poderíamos chamar de uma transformação paradigmática radical.
Embora ao longo dos anos encontremos inúmeras experiências
singulares que já se fundamentavam nesses conceitos, é a partir do
Movimento da Reforma Psiquiátrica que essa transformação, operada e
concretizada cotidianamente na prática das novas instituições,
conquistou uma maior visibilidade e foi contagiando e contaminado outros
operadores, outros profissionais, que foram criando e inventando outras
instituições e outras novas práticas.
174
4.5. Retomando as questões....
Os anos noventa estão se caracterizando pela
consolidação do processo democrático, ao menos no plano político. O
impeachment do presidente Collor foi uma demonstração da capacidade
de superação da sociedade diante de uma grave situação sem que
soluções de caserna, comuns na história desse país, fossem acionadas.
O vice-presidente assumiu e, posteriormente, foram realizadas novas
eleições presidenciais, para governadores, prefeitos, ou seja, a
alternância do poder foi se tornando uma rotina, embora nem sempre esta
significou uma mudança para melhor, por vezes muito pelo contrário.
Consolidou-se, também, o processo de organização e
implantação do Sistema Único de Saúde, principal bandeira de luta do
Movimento Sanitário que, como já destacamos, toma o campo do
Aparelho Estatal como palco privilegiado de sua luta. Embora as
condições de saúde da população, menos por insuficiências do sistema e
mais pelo agravamento da crise social, não tenham melhorado
substancialmente, criaram-se mecanismos de participação e controle
popular, como os Conselhos de Saúde, que buscam, entre outras ações,
democratizar as relações entre Estado e Sociedade. Infelizmente, a
capacidade de negociação contratual desses mecanismos frente à política
econômica não tem demonstrado força suficiente para influenciar e intervir
na construção de políticas sociais mais justas.
175
O processo de consolidação do Estado Democrático, que
restaurou os direitos inscritos na Constituição Cidadã (termo cunhado por
Ulisses Guimarães), não conseguiu incorporar uma parcela significativa
da população, que continuou à margem do mundo dos direitos e do
mundo maravilhoso do capitalismo globalizado. A política econômica tem
afrontado esse processo ao propor, seguindo as regras e as orientações
impostas por organismos internacionais, a redução das tarefas do
Estado, implantando o chamado Estado Mínimo, entregando suas
atribuições à lógica de uma onipresente figura denominada mercado que,
em nossa dependente economia, tem-se revelado extremamente
perversa, aumentando a acumulação de riquezas das elites,
aprofundando a mais do que injusta distribuição de renda e agravando a
crise social.
Segregação, violência e exclusão continuam, mais do que
nunca, como pautas na agenda da discussão nacional. Neste sentido, a
defesa da noção de saúde direito de todos e dever do estado cumpre um
importante papel pois implica, além de transformar a saúde como questão
nacional, como afirma Escorel (1995), uma contra-ofensiva de caráter
ideológico em defesa, não só de um direito constitucional, mas de uma
perspectiva de entendimento de uma sociedade que garanta efetivamente
os direitos básicos de acesso à saúde, ao trabalho, à educação, à
moradia, e, portanto, uma sociedade baseada em valores mais justos, na
176
qual o Estado tem o dever de cumprir o papel de regulador e de
mantenedor desses direitos.
No campo da saúde mental, essa luta irá se construir
exatamente na articulação que os novos serviços, comprometidos com o
ideário do Movimento da Reforma Psiquiátrica, estabelecerem com outros
segmentos dos Movimentos Sociais, tais como as associações de
usuários e familiares, ONGs, sindicatos etc. Ao trazer o tema da luta
antimanicomial como parte de uma luta maior contra a segregação, a
violência, a discriminação, a exclusão, produz a força de uma
disseminação ideológica propondo valores para a constituição de um
bloco histórico comprometido com valores e as causas do polo
subordinado.
O Movimento da Reforma Psiquiátrica estabeleceu,
especialmente nesses anos noventa, uma diferença em relação ao
Movimento Sanitário: ocupou espaços no aparelho estatal e manteve uma
identidade de Movimento Social, através do MLA e das associações de
usuários. Nutrindo-se das cotidianas questões que surgem no embate da
construção da transformação da assistência, o Movimento da Reforma
Psiquiátrica vai se atualizando também com as questões sociais de seu
tempo histórico, ampliando suas alianças com outros setores da
sociedade.
177
Como já havíamos afirmado no capítulo I, essas alianças
fortalecem o estabelecimento da hegemonia. Lembrando novamente
Gruppi, ao citar Gramsci: "a hegemonia se realiza enquanto descobre
mediações, ligações com outras forças sociais, enquanto encontra
vínculos também culturais e faz valer no campo cultural as próprias
posições" (apud Gruppi, 1978, p.63). É exatamente esse um dos mais
importantes eixos de luta do Movimento da Reforma Psiquiátrica, através
do MLA. Como destacamos ao longo deste capítulo, as propostas
apontam para uma participação cada vez maior no contexto cultural,
buscando conquistar mais espaços e a adesão da população.
Para Carlos Nelson Coutinho, a hegemonia "é a
capacidade de formular uma proposta a partir do ponto de vista de uma
determinada classe, mas conseguindo a adesão das demais classes se
transforme em projeto comum, superando corporativismos" (apud Escorel,
1995, p.189). Assim como o projeto da Reforma Sanitária, o Movimento
da Reforma Psiquiátrica partiu de um grupo de intelectuais, constituiu um
projeto com a perspectiva das classes trabalhadoras e populares, e vem
conseguindo superar o corporativismo inicial, transformando-se em um
projeto comum a outras classes, incorporando em sua luta a participação
ativa de outros segmentos sociais. Embora essa seja uma história
recente, o Movimento da Reforma Psiquiátrica está mais próximo de uma
posição orgânica junto ao polo subordinado, buscando transformar as
178
relações sociais, construindo um bloco histórico alternativo ao
dominante.
Nesse processo, os intelectuais cumprem importante
papel. Ao se recusarem, como afirmava Basaglia (1977), o papel de
funcionários do consenso, negando-se a cumprir o mandato social que as
instituições delegam, dialetizando no plano prático tal negação, ao
romperem com sua função de instrumentos de manutenção ideológica da
opressão, ao transformarem o cotidiano de suas práticas, os intelectuais
produzem uma fratura de caráter orgânico, possibilitando que o
Movimento da Reforma Psiquiátrica possa assumir-se como intelectual
orgânico a serviço dos interesses do polo subordinado.
A constante problematização colocada pelo Movimento da
Reforma Psiquiátrica sobre os rumos a serem tomados, alimentada pelas
questões oriundas do encontro com a prática da transformação da
assistência e, principalmente, do rico encontro com as demandas
produzidas pelas alianças com a sociedade, demonstram a preocupação
permanente de manter sua organicidade e de não se afastar da luta pela
transformação da sociedade.
Vale, aqui, lançar luzes ao outro lado. É inegável nesse
processo a existência de fortes reações contrárias que se concretizam
com as articulações e o estabelecimentos de estratégias de grupos
diretamente afetados com esse processo de transformação,
179
especialmente o grupo dos donos de hospitais psiquiátricos. Uma das
estratégias daqueles grupos econômicos é tentar modernizar seu
discurso. Em um texto apresentado na 2ª Conferência Nacional de Saúde
Mental, intitulado Programa de atenção em saúde mental, a Federação
Brasileira de Hospitais propõe uma organização da assistência em níveis
(internação, semi-internação e ambulatório), contemplando ações como
centros de convivência e hospital-dia. O mesmo texto, porém, não
consegue ocultar seu caráter conservador, ao colocar as seguintes
premissas básicas:
As desordens psíquicas, especialmente os quadros
psicóticos situam-se, primeiramente, no âmbito da medicina,
cobertos pelos atos médicos de Diagnóstico e Tratamento,
visando e possibilitando a reinserção do indivíduo na sociedade.
(...) O saber médico-científico e a intervenção terapêutica do
psiquiatra têm que ser a mola propulsora no atendimento ao
doente mental, sem descurar-se, em qualquer regime
assistencial de atendimentos básicos de terapia individual,
grupal de ressocialização. (Federação Brasileira de Hospitais,
1991)
A mesma Federação organizou sua própria associação de
familiares, a Associação de Familiares dos Doentes Mentais, que
participou dos encontros oficiais e tem tido atuações, especialmente junto
à imprensa, como defensora do hospital psiquiátrico que afirma ser a
180
única instituição que pode tratar de seus parentes. Essa iniciativa
originou-se no Rio de Janeiro e já se espalhou por várias cidades e
Estados.
Assim, o processo que aqui apresentamos contém outras
faces e outros bastidores que estabelecem uma dinâmica de avanços e
retrocessos, conquistas e perdas, inerentes a qualquer Movimento Social.
Se, como afirmamos, o bloco histórico hegemônico comporta contradições
e fraturas que possibilitam a articulação para a organização de um
processo contra-hegemônico, a construção mesma deste também
comporta suas contradições e fraturas. Reações às transformações
podem ser observadas em várias campos e frentes: dos interesses
corporativos e econômicos, como assinalamos acima com a FBH;
resistências dos trabalhadores no interior das instituições66; forte
resistência em romper com um padrão cultural criado em torno da
internação etc.
Embora presentes e exercendo influências sobre o
Movimento da Reforma Psiquiátrica, preferimos privilegiar as linhas
gerais do quadro histórico do processo de Reforma Psiquiátrica. Falamos
do Movimento em seus gestos mais largos, de maior visibilidade,
buscando dar contornos aos momentos intensos e decisivos. Procuramos
desenhar os aspectos mais salientes e relevantes de uma parte dessa
66 A esse respeito, vide o texto de COSTA, 1991.
181
história: a dos atores do Movimento, os trabalhadores, em um momento,
os usuários e familiares, em outro momento.
Vale salientar que, especialmente ao longo dos anos
noventa, diversos Estados realizam encontros, promovem discussões,
produzem práticas. Embora não estejam nomeados um a um neste
trabalho, estão presentes nas linhas com que procuramos desenhar o
Movimento da Reforma Psiquiátrica como um Movimento Social de
caráter nacional.
182
CAPÍTULO V
CONSTRUINDO NOVOS PARADIGMAS: O CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL PROF. LUIZ DA ROCHA CERQUEIRA (CAPS)
Sim, todo amor é sagrado E o fruto do trabalho é mais que sagrado
A massa que faz o pão Vale a luz do teu suor
Lembra que o sono é sagrado E alimenta de horizontes o tempo acordado de viver
Beto Guedes e Ronaldo Bastos
Neste capítulo, focaremos nossas lentes para tentar
captar alguns detalhes da concretização do movimento da Reforma
Psiquiátrica, seus gestos e ações cotidianas. Nos capítulos anteriores,
destacamos o papel desempenhado pelos intelectuais no processo de
constituição de um novo bloco histórico. Citamos Basaglia (1977) que,
baseando-se em Gramsci, ressalta a recusa ativa do papel de
funcionários do consenso que os trabalhadores de saúde mental
deveriam exercer no cotidiano de suas práticas. A partir dessa posição,
observamos que os atores do Movimento da Reforma Psiquiátrica têm
construído diversos trabalhos ao longo dos anos, formulando paradigmas,
inaugurando e consolidando um complexo processo de transformação em
diversos campos. Amarante (1999) destaca quatro campos fundamentais
desse processo:
183
1. Campo teórico-conceitual: desconstrução, reconstrução de
conceitos fundantes da psiquiatria (doença mental, alienação,
isolamento, terapêutica, cura, saúde mental, normalidade,
anormalidade) (...)
2. Campo técnico-assistencial: a partir de e simultaneamente à
reconstrução dos conceitos acima (...) a construção de uma
rede de novos serviços, (...) (de) espaços de sociabilidade, de
trocas e produção de subjetividades, substitutivos (e não
apenas alternativos) ao modelo terapêutico tradicional. (...)
3. Campo jurídico-político: revisão das legislações sanitária,
civil e penal no que diz respeito aos conceitos de 'doença
mental', 'psicopatia' e 'loucos de todo o gênero', e construção
de novas possibilidades de cidadania, trabalho e ingresso
social. (...)
4. Campo sociocultural: como conseqüência, e também
simultaneamente, de todas as demais ações listadas
anteriormente, (...) e a partir de ações no campo sociocultural,
busca-se uma transformação do imaginário social relacionado
com a loucura, a doença mental, a anormalidade e assim por
diante. (Ibid., pp. 50-51)
O trabalho desenvolvido pelo Centro de Atenção
Psicossocial Prof. Luiz da Rocha Cerqueira (CAPS) é um importante
marco referencial para as práticas que se organizaram a partir do final dos
anos oitenta. Sua história e suas ações são a exemplaridade do processo
184
de transformação assistencial do Movimento da Reforma Psiquiátrica e
contemplam os campos assinalados acima, por Amarante.
5.1. O contexto e o início
Como já destacamos, no período de 82 a 86, temos a
implantação das chamadas Ações Integradas de Saúde, que
impulsionaram o processo da Reforma Sanitária no Estado de São Paulo.
Seguindo os princípios da descentralização, hierarquização e
regionalização, iniciou-se uma reestruturação e uma reorganização dos
serviços e das ações de saúde.
Nesse contexto, a Coordenadoria de Saúde Mental (CSM)
da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo começou a implantar um
modelo de atenção em saúde mental, que contemplava os princípios
acima mencionados, com uma forte inspiração no modelo da psiquiatria
preventiva americana. Vários autores (Costa-Rosa, 1987 & Lancetti,
1989), como já afirmamos, fazem críticas ao modelo adotado.
Vale destacar que, se, por um lado, o Movimento
Sanitário e o Movimento da Reforma Psiquiátrica apresentam, como já
assinalamos, características de movimentos orgânicos, por outro, ao se
incorporarem ao aparelho estatal, a concretização e a implantação dos
princípios e diretrizes seguiu ou foi influenciada, por vezes, como no caso
185
da saúde mental em São Paulo, por modelos oferecidos pelos
organismos internacionais.
De qualquer modo, o processo implantado pela CSM
ampliou a rede de assistência extra-hospitalar, com a criação de novos
ambulatórios de saúde mental e equipes para as várias unidades básicas
de saúde, criou algumas emergências psiquiátricas em hospitais gerais,
revitalizou convênios com as universidades para reciclagem dos
profissionais da rede, instituiu supervisões técnicas e institucionais,
iniciou um processo de recuperação dos hospitais próprios. Como
também já afirmamos, embora com limitações, a CSM implementou uma
política de saúde mental.
O final da gestão do governo Montoro produziu uma
ampla reforma administrativa na Secretaria de Estado da Saúde, que
extinguiu instâncias gerenciais e criou os Escritórios Regionais de Saúde
(ERSA), dando início ao processo de municipalização das ações e
equipamentos de saúde.
Essa reforma, implementada nos últimos meses de 1986,
possibilitou a utilização da sede da extinta Divisão de Ambulatório para
uma atividade assistencial. Em função de suas características e
localização, o casarão da rua Itapeva67 era desejado e pleiteado por
67 A rua Itapeva é onde se localiza o imóvel que abriga o CAPS, a uma quadra da avenida Paulista, importante centro financeiro de São Paulo. Trata-se de um amplo casarão com cerca de 700 m2, trinta cômodos, com três pavimentos (térreo, primeiro andar e pavimento inferior), um jardim e espaço para estacionamento.
186
diversas secretarias. O empenho de um pequeno grupo de profissionais
daquele órgão foi de vital importância para que aquele espaço não fosse
destinado a uma repartição pública burocrática. Esse grupo formulou
uma proposta assistencial, visando a atender a uma parcela de usuários
que apresenta graves distúrbios psíquicos com dificuldades de
relacionamento e inserção social, que necessita de um tratamento
intensivo e diversificado, e que não encontrava, por diversos motivos, uma
adequada assistência nos equipamentos de saúde mental da rede
pública, tendo como oferta compulsória de tratamento a hospitalização. O
CAPS surgiu como uma proposta de atendimento diferenciada e como
início de uma rede de espaços intermediários "entre a hospitalização com
seus riscos de cronificação e segregação e o pleno exercício da
cidadania" (Yasui, 1989, p.52).
Inaugurado oficialmente em 12 de março de 1987, nos
últimos dias do governo Montoro e após um longo processo de
negociações e pressões, o CAPS enfrentou dificuldades de diversas
ordens: administrativas, de recursos financeiros, de recursos humanos.
Eram os reflexos da mudança de governo e da mudança de prioridades.
O processo de descentralização e de municipalização, de
todo modo importante para a implantação da Reforma Sanitária,
provocou, naquele momento, uma descontinuidade da política de saúde
mental que vinha sendo desenvolvida. Apesar de o mesmo partido
(PMDB) permanecer no poder nas duas gestões posteriores, o
187
compromisso ideológico e a orientação eram de outra ordem. Nos meses
iniciais do governo Quércia, houve um retrocesso em diversos e
importantes trabalhos que estavam sendo desenvolvidos, motivado,
principalmente, por provincianas questões políticas eleitoreiras e
administrativas locais, que ganharam destaque e se sobrepujaram aos
princípios éticos e técnicos. Desarticularam-se ações, afastaram-se
profissionais que coordenavam trabalhos, instituíram-se regras e normas
autoritárias em alguns locais68. Procurou-se, nas palavras do diretor de
um complexo hospitalar, restabelecer a ordem. A ordem da exclusão, da
mediocridade, da mesquinhez.
Paradoxalmente, foi naquele momento de refluxo que o
CAPS, alguns meses após sua inauguração, iniciou suas atividades em
regime de meio-período69. Caminhando na contramão daquele momento,
o CAPS foi acolhendo profissionais que vinham de importantes
experiências institucionais na saúde mental, tais como de projetos de
reformulação dos hospitais psiquiátricos do Juqueri e do Pinel, e de
ambulatórios de saúde mental em que se desenvolviam trabalhos junto à
comunidade. Profissionais que saíram dos seus trabalhos (alguns
compulsoriamente),
68 Como exemplo, podemos citar a ordem de serviço da Diretoria do Departamento Psiquiátrico II (Hospital do Juqueri), de 1987, proibindo os profissionais de realizarem reuniões, sem autorização prévia daquela Diretoria. Processo semelhante foi enfrentado pelos profissionais da Enfermaria de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
188
pois a reversão de prioridades e o privilégio para as questões políticas
locais desarticularam, desmobilizaram e desmotivaram a continuidade de
muitas daquelas ações.
A equipe do CAPS foi constituída, portanto, de
profissionais, em sua grande maioria, com experiência na rede pública e,
mais do que isso, com um forte desejo de transformar os modelos de
atenção em saúde mental. Participar da construção daquele trabalho,
naquele momento histórico, era participar, por um lado, de uma espécie
de núcleo de resistência a desmontagem que estava sendo empreendido
e, por outro, da construção de um lugar de possibilidades, de invenção,
de criação.
5.2. Buscando uma identidade
A entrada em cena do usuário no CAPS, em julho de
1987, deu início efetivo ao que antes era um conjunto de idéias, desejo de
construir uma nova prática, um programa de atividades, formulado por
uma equipe em fins de 1986. Na concretização das propostas através do
encontro diário com a loucura, com o drama, com a demanda do usuário,
surgiram dúvidas, incertezas. Os profissionais que, gradativamente, iam
69 O CAPS começou a atender aos usuários em julho de 1987, funcionando no período das 8 hs às 12 hs. O período vespertino era destinado a atividades internas, tais como reuniões, treinamento de funcionários, discussões dos casos etc.
189
sendo incorporados ao CAPS, trouxeram mais questões sobre a prática
cotidiana até então desenvolvida.
A rotina do primeiro ano de funcionamento do CAPS era
basicamente a seguinte: uma vez admitido na triagem, o usuário iniciava
suas atividades durante toda a manhã. Ao chegar, dirigia-se a um dos
seguintes ateliês: artesanato, pintura ou costura, de acordo com sua
escolha ou indicação. Às dez horas, era oferecido um lanche e, entre
10:30 hs e 11 hs, tinham início as atividades grupais, com a participação
de todos os usuários e variando de acordo com o dia da semana: grupo
verbal, jornal-mural, expressão corporal, música, jardinagem, passeio e
vídeo. A coordenação de cada uma dessas atividades ficava a cargo de
um ou mais técnicos que apresentassem interesse ou tivessem mais
habilidades.
O modelo que norteava essas ações era o de uma
estrutura intermediária, entendida como
uma unidade de tratamento em saúde mental que se introduz
num sistema hierarquizado de cuidados, indo da internação
hospitalar ao tratamento ambulatorial e ao suporte da
comunidade (...) É considerado (...) como uma estrutura de
passagem, na qual os pacientes permanecem durante um
determinado tempo até adquirirem condição clínica estável, de
modo a poderem continuar o tratamento em definitivo em
190
equipamentos como características ambulatoriais. (Goldberg,
1998, p.29)
Esse modelo tentava inscrever o CAPS no sistema
hierarquizado, regionalizado e integrado das ações de saúde, como uma
unidade a mais dentro dessa escala de maior a menor complexidade de
atenção à saúde mental.
A proposta desse modelo, associado às angústias que as
demandas e questões teóricas, técnicas, administrativas etc. - geradas
do encontro cotidiano corpo-a-corpo que tínhamos com a loucura -
acabava por criar uma grande insatisfação na equipe, pois não
conseguíamos produzir dispositivos que dessem conta daquele turbilhão
que vivíamos. Insatisfação por percebermos que estávamos muito aquém
das possibilidades de intervenções terapêuticas e assistenciais que a
equipe poderia construir. Quedávamo-nos hesitantes e tímidos, ante os
desafios que se apresentavam.
O modelo que procurávamos seguir mostrava-se
insuficiente para atender à demanda e à complexidade dos casos que se
apresentavam diariamente ao CAPS. Pessoalmente, à época, temia que
estivéssemos organizando nosso trabalho a partir de uma perspectiva
médica, na qual buscávamos a remissão do delírio ou a estabilização dos
sintomas mais exuberantes que os pacientes apresentavam. Ao
utilizarmos tal perspectiva, poderíamos estar concretizando uma prática
191
tão excludente e controladora como a de qualquer manicômio, pois tomar
o delírio como a manifestação sintomática de um quadro patológico, cujo
critério de cura se coloca em sua remissão, é excluir a possibilidade da
produção de sentido, é utilizar o poder do saber para fazer calar aquilo
que não se compreende e fazer prevalecer a norma. Freud, ao comentar
as memórias do presidente Schreber, a certa altura do texto, faz a
seguinte afirmação a propósito dos delírios dos paranóicos: "(...) A
formação delirante, que presumimos ser o produto patológico, é, na
realidade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de
reconstrução" (Freud, 1911, pp.95-96).
Era preciso repensar e debater as concepções que a
equipe tinha sobre os conceitos e paradigmas de saúde/doença,
tratamento, cura, normalidade/anormalidade etc. Era preciso repensar e
debater a sustentação teórico-técnica de nossas atividades. Era preciso
repensar e debater as implicações ideológicas de nossa prática. Era
preciso ousar mais, correr riscos, inventar possibilidades, criar outros
dispositivos que o modelo hierarquizado de assistência no qual
estávamos inseridos não conseguia oferecer. Com tantos imperativos a
insistir em cada um dos integrantes daquela equipe extremamente
exigente, iniciou-se, nos primeiros meses de 1989, um processo de
supervisão institucional que criou um espaço coletivo semanal,
catalisando e possibilitando que as questões cotidianas enfrentadas
pudessem circular entre todos. Pudemos, naquele espaço: desatar os
192
nós institucionais; recontar a recente história do CAPS, para dela nos
apropriarmos; explicitar e debater as questões e posições teóricas,
técnicas e políticas; refletir sobre as limitações que a nossa prática nos
impunha; marcamos as diferenças, enfrentamos as contradições.
Começávamos a fazer da diferença ponto de encontro das dúvidas, de
confronto de nossas míopes certezas e ponto de partida para a
diversificação e construção de novos paradigmas.
Vale lembrar uma discussão que realizamos sobre a porta
do CAPS. Há um forte sentido emblemático nela. Em uma das reuniões
que realizamos, uma usuária nos questionou sobre o fato de a porta do
CAPS permanecer fechada. Argumentava que ficava parecendo com
hospital. Após uns instantes de puro constrangimento, afirmamos que era
uma medida de precaução e segurança para os próprios usuários. Nova
pergunta: "- Mas não quero ficar presa aqui dentro. Por que não posso
sair e circular?". A partir dessa pergunta, vários outros usuários também
questionaram. Argumentavam que por vezes queriam sair para tomar
café, comprar um cigarro, beber um refrigerante e tinham que pedir
permissão e procurar quem tinha a chave da porta.
A equipe havia sido colocada em uma encruzilhada ética.
Manter a porta fechada era assumir que não estávamos nos livrando de
velhos e ultrapassados conceitos de segurança dos pacientes, revelando
que a lógica manicomial ainda poderia estar presente e configurada na
193
anedótica posse da chave da porta70. Após algumas reuniões, optamos,
finalmente, em manter a porta permanentemente aberta. Em um certo
sentido, jogamos a chave fora. Ao abrir espaço e acolher a reivindicação
dos usuários, aprendemos com eles a começar a construir uma
instituição que mantém as portas abertas para a rua, para a vida. E
quando se fechava71, a porta ganhava um sentido diferente: criava-se um
circuito de solidariedade, pois, certamente, havia alguém na casa
precisando de uma atenção mais próxima. A porta fechava-se como um
dispositivo de intervenção, para acolher mais intensivamente alguém, e
todos participavam desse acolhimento.
O encontro com a loucura nos impulsionava na direção de
uma posição ética que privilegiava uma atenta escuta ao acontecer
cotidiano. Havia uma tensão vital constante no ar, que nos fazia despertar
toda vez que o sono da inércia burocrática ameaçava instituir-se. Atentos
e alertas para que o CAPS não acabasse por se transformar em um
aparelho de reprodução sutil e sofisticado de dispositivos de controle e
exclusão, buscávamos construir uma identidade a partir da complexidade
que o encontro com a loucura produzia e não a partir de uma
organização formal externa ou de um modelo previamente delimitado.
70 Referimos aqui a velha piada sobre a diferença entre os loucos, os médicos e os enfermeiros: os últimos possuem a chave da porta. Mais do que uma piada, revela um clássico dispositivo institucional manicomial; não há hospital psiquiátrico que não tenha suas portas trancadas, no sentido concreto e simbólico que a frase possa ter. 71 A exceção era quando algum usuário necessitava de cuidados especiais, que contra-indicassem que a porta permanecesse aberta. De qualquer modo, havia sempre um funcionário na porta para permitir que os outros pudessem sair e entrar.
194
Nesse sentido, buscávamos uma espécie de independência em relação à
hierarquia dos equipamentos da rede e em relação ao modelo que estava
sendo implementado, mas de cuja elaboração poucos haviam participado.
E mais do que isso, lançávamo-nos nessa aventura
misteriosa que é trabalhar com a loucura, com a dimensão humana que
nos obriga a criar a cada encontro com o usuário, a estar atento a todo
momento ao inusitado , ao inesperado, ao sem sentido. Abrimos mão das
tranqüilas, paralisantes e fetichistas certezas científicas. Jurandir Freire
Costa, em uma apresentação na comemoração do segundo aniversário
do CAPS, destacava algumas das qualidades exemplares que ele
percebia em nosso trabalho, dentre elas a de que desmistificávamos o
fetiche do saber que, para ele,
é erigir de fato um saber qualquer como sendo aquilo que vai
dar a resposta última para esse enigma que é o humano. Se a
gente entende o fato da loucura usada na expressão de
Foucault como um modo de razão ou racionalidade que é
diferente do nosso, não qualquer coisa que seja superior ou
inferior como romanticamente já se quis dizer, mas como uma
forma de vida diversa ... temos que ter a humildade de nos
contentarmos, não com a busca do que seria fetichisticamente
verdadeiro, porque dogmaticamente afirmado em função de um
dado saber que sutura e plenifica totalmente nosso imaginário
195
(...) mas sim buscar o vocabulário último para uma vida mais
bela e mais feliz. (Costa, 1989)72
5.3. Mudando, transformando a partir dos detalhes do cotidiano
Prefiro ser Essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo Sobre o que é o amor
Sobre o que eu nem sei quem sou Raul Seixas
Em agosto de 1988, o CAPS começou a funcionar em
período integral. Mais do que uma ampliação no horário, iniciava-se uma
nova proposta: o CAPS tornava-se um trabalho produzido
coletivamente.
Resumidamente, podemos descrever a rotina
desenvolvida naquele período da seguinte maneira: uma vez admitido,
realizávamos com o usuário e sua família um contrato provisório que
durava o tempo necessário para que ele conhecesse o que era oferecido
e para que a equipe pudesse definir com o mesmo as atividades a serem
desenvolvidas e os horários a freqüentar. Durante a semana, o usuário
dispunha de uma sala de atividades onde podia encontrar materiais
72COSTA, J.F., 1989 (Centro de Atenção Psicossocial-CAPS, São Paulo). Comunicação pessoal.
196
diversos. A cada dia da semana existia uma programação de atividades
nas quais poderia participar: expressão corporal, jornal, jardinagem,
passeio, esportes, vídeo etc. Além disso, o próprio usuário podia propor e
organizar uma nova atividade, como, por exemplo, campeonato de
pingue-pongue, buraco, xadrez etc. De acordo com suas necessidades,
podia participar das seguintes modalidades terapêuticas com enquadre
fixo (dia, hora, número de participantes, terapeuta, etc.): atendimento
individual, grupo terapêutico verbal, grupo de terapia ocupacional,
atendimento familiar nuclear e acompanhamento medicamentoso. Além
disso, foram instituídos ateliês com monitores especializados de cerâmica,
teatro, música e marcenaria. Com isso, ampliávamos e diversificávamos
as possibilidades de intervenção e invenção terapêutica, criando
condições para favorecer que o usuário pudesse, ao seu modo e a seu
tempo, descobrir, construir algum sentido, seu sentido, sua verdade.
Nos anos de 1989 e 199073, novas avaliações do trabalho
foram realizadas e, como resultado de um amplo e longo processo de
discussão interna, houve uma nova reorganização do cotidiano
institucional: houve uma reorganização gerencial e administrativa interna
(ao menos até o ponto que tínhamos alguma autonomia), mudou-se a
natureza das atividades até então desenvolvidas, novas propostas de
trabalho foram elaboradas e incorporadas.
73 Goldbeg,1998 detalha muito bem esse processo, relatando a trajetória de diversos usuários, nos diferentes momentos, e as questões que se apresentavam a nós. Além
197
Goldberg (1998) salienta algumas pistas que orientaram
o constante redimensionamento do projeto:
1. Um projeto, como o do CAPS, que pretendia acompanhar
o cotidiano de pessoas com problemas mentais graves e
investia na possibilidade de mudar a perspectiva de vida
dessas pessoas, deveria também avalizar continuamente sua
proposta terapêutica, segundo as necessidades nascidas
dessa prática junto aos pacientes;
2. Mudanças no projeto ocorreriam mediante discussão em
fóruns internos instituídos, quando um ou mais profissionais
detectassem a insuficiência do modelo vigente para atender às
necessidades dos usuários;
3. O aparecimento de problemas no ambiente da instituição
como agressões, violência, ausência significativa de usuários
no dia-a-dia, clima tenso entre usuários ou recaídas freqüentes
deveriam ser tomados como sintomas de algum transtorno na
dinâmica do modelo;
4. Discussões sobre o desempenho geral do trabalho na
instituição deveriam ocorrer periodicamente, mesmo quando
nenhuma intercorrência fosse registrada. (Ibid., p.54)
Após diversas experiências e discussões, optamos por
uma organização institucional do trabalho, relativamente simples: uma
disso, ele o faz com a propriedade de quem sempre foi a grande liderança desse
198
diretoria técnica, três núcleos (terapêutico intensivo, projetos especiais e
ensino e pesquisa), uma seção administrativa (posteriormente também
um núcleo) e um conselho consultivo da diretoria, formado pelos
coordenadores dos núcleos e da administração. Atualmente, a
organização do trabalho do CAPS é constituída por:
Núcleo Terapêutico ou Núcleo Terapêutico Intensivo - É o
núcleo original, a partir do qual foram realizadas as modificações e
ampliações da proposta de trabalho. Constitui-se das atividades de
intervenção que descrevemos. Objetiva, fundamentalmente, o
atendimento ao usuário, em crise ou não, que necessite de uma atenção
intensiva, entendida não só pelo tempo de permanência na instituição,
mas, principalmente, pela diversidade de atividades oferecidas e pelos
diferentes campos de atuação. A estrutura é operada por uma equipe
que tem sua prática sustentada por uma trama de conceitos de uma
diversidade teórica enriquecedora.
Núcleo de Ensino e Pesquisa - Constitui-se na
organização, viabilização e operacionalização do programa de
aprimoramento para profissionais das áreas de enfermagem, psicologia e
terapia ocupacional, através do financiamento da Fundação do
Desenvolvimento Administrativo (FUNDAP); da supervisão de estágios de
cursos de graduação; da realização de investigação científica de interesse
para área; e da documentação da produção teórica-científica
trabalho, ao longo de todos esses anos.
199
desenvolvida no CAPS. A partir de 1996, esse núcleo foi
consideravelmente ampliado, com a celebração de um convênio, criando
o Projeto de Integração Docente-Assistencial (PIDA) entre a Secretaria de
Estado da Saúde e a Universidade de São Paulo, envolvendo de um lado
o CAPS e o Ambulatório de Saúde Mental Centro e, de outro, os
Departamentos de Medicina Preventiva, da Faculdade de Medicina; de
Enfermagem Materno-Infantil e Psiquiátrica da Escola de Enfermagem e o
Curso de Terapia Ocupacional.
Núcleo de Projetos Especiais - É o núcleo que mais se
desenvolveu com a criação da Associação Franco Basaglia, de que
trataremos logo mais. É a partir das demandas apresentadas pelos
usuários que começamos a elaborar estratégias para ampliação dos
vínculos, das relações, da capacidade contratual dos usuários.
Núcleo administrativo - É responsável pela organização
administrativa do CAPS e do apoio logístico para a viabilização das
atividades assistenciais.
É o Núcleo onde se observa grande expansão e uma
necessária agilidade e competência técnico-administrativa no
fluxo burocrático ampliado em conseqüência do Convênio e da
absorção dos recursos humanos e clientela do Ambulatório
Centro. (Silva, 1997, p.51)
200
Essa organização possibilitou uma melhor definição do
papel gerencial e administrativo, estabelecendo um fluxo de
encaminhamento para aqueles problemas diários que acometem toda a
instituição e que acabavam por interferir e sugar os esforços de todos da
equipe: o cano estourado, a comida atrasada, a cota de passes para
ônibus que não veio, controle de freqüência dos funcionários, compra de
materiais, manutenção da limpeza da casa, providenciar o indispensável
cafezinho etc. Os profissionais da equipe (técnicos ou não técnicos)
podiam dedicar seu tempo aos cuidados dos usuários. Para evitar uma
fragmentação do trabalho em função desse desenho organizacional,
instituímos diversas reuniões, cujo objetivo maior era criar espaços de
discussão e deliberação coletiva sobre o processo de construção
cotidiana do CAPS: reunião geral mensal (com todos os profissionais da
casa), reuniões semanais por núcleos, reuniões semanais do conselho
consultivo, reuniões semanais da equipe técnica, reuniões semanais da
equipe de apoio.
Acrescente-se a essas reuniões, acima mencionadas, a
reunião geral que realizávamos semanalmente com os usuários.
Importante espaço de discussão coletiva, para lá convergiam e de lá
saíam muitas das questões e dos temas que seriam discutidos nas outras
reuniões. A reunião geral era um termômetro das relações institucionais.
Os temas muitas vezes eram reflexo de dificuldades, indecisões ou
inseguranças da própria equipe, como o exemplo da porta que já citamos.
201
Talvez não fosse muito dizer que era uma espécie de epicentro da rotina
da casa. Praticamente todas as questões relacionadas a essa rotina
eram lá debatidas e decididas coletivamente: problemas com a
manutenção da limpeza da casa, queixa freqüente do pessoal de apoio da
manutenção que, uma vez explicitada na reunião, comprometeu a todos
em zelar e manter a higiene da casa; propostas de atividades eram
sugeridas e apresentadas; os usuários e funcionários novos que
ingressavam na casa eram lá apresentados a todos; as saídas também
eram lá comunicadas e trabalhadas; as férias eram comunicadas; festas
eram sugeridas e discutidas; enfim, a rotina da casa passava
necessariamente por um processo de discussão coletiva, que envolvia a
todos da casa: usuários, profissionais técnicos, profissionais de apoio e
estagiários. A fala de cada um era valorizada, considerada e discutida por
todos. Havia um solidário esforço em incorporar e acolher mesmo as
falas mais desconexas, de difícil compreensão ou aquelas mais
exageradamente extravagantes. Estavam todos convidados, quase que
convocados, a serem sujeitos participantes, ativos e implicados no
processo de construção cotidiana do CAPS.
A reunião geral propiciou, entre outros aspectos, uma
mudança na natureza das atividades desenvolvidas, que deixaram de ser
objeto de discussão apenas técnica e passaram a se orientar pela
discussão nesse espaço coletivo. Detalhes do cotidiano, como lavar ou
consertar uma roupa, cuidar do cabelo e da aparência, sair para passear
202
nos finais de semana, acabaram por se transformar em discussões e em
projetos. A perspectiva ética e técnica que nos colocávamos valorizava
os detalhes da rotina. Nosso fazer cotidiano tinha-os como critério de
avaliação constante.
Como exemplo dessa atenção ao detalhe, ao cuidado
cotidiano, relatamos fragmento de um texto que apresentamos em um dos
eventos do CAPS.
Dona (chamemos assim) Coralina, chega um dia na sala onde
ocorre a 'aula de argila'. Começa a bater, amassar e a moldar o
barro até que, de suas mãos, surge a figura de uma menina
com um vasto chapéu. Ao trabalhar os detalhes da figura,
começa a contar a estória da menina. Uma menina
camponesa. O chapéu a protegia do sol enquanto trabalhava
na terra. Conta do patrão, da casa da fazenda, da plantação de
café, dos bois, das vacas, das coisas do interior. Pega outro
pedaço de argila, começa a bater. Lembra-se das barrancas do
rio onde ela, menina, misturava, batia e moldava o barro
enquanto seus pés descansavam na água. De repente fica em
silêncio, mexendo no barro até que começa a delinear uma
nova forma, um cálix bento. Retoma a estória falando agora de
religiosidade, da igrejinha e seus santos, da água benta. Sua
fala é cantada. Como Cora Coralina quando recitava seus
poemas. Suas palavras são simples, diretas e, talvez por isso,
líricas (...) Nem sempre Dona Coralina vai ao ateliê de
203
cerâmica. No mais das vezes fica deitada no banco do jardim.
Mas, quando vai, existe sempre a possibilidade da poesia.
Daquele instante único que nos surpreende e ficamos como
que paralisados e, ao mesmo tempo, sentido que algo se
movimenta em nós. Algo que 'vem de forma assim tão
caudalosa'74. (Yasui, 1990, p.4)
Apesar do tom, talvez excessivamente poético e nada
científico do texto acima, o que gostaríamos de salientar é uma posição
desarmada de pré-julgamentos e preconceitos teóricos e uma constante
disponibilidade em perceber e acolher o inédito, o inusitado, o imprevisto,
o incomum. Matérias delicadas que formam a possibilidade da criação.
Dona Coralina ficava praticamente o dia todo deitada no banco do jardim.
Elizabeth Araújo Lima, terapeuta ocupacional que também trabalhava no
CAPS, fazendo referência ao texto acima, comenta que a usuária
parece presa a uma existência atemporal e a uma ausência de
sentido; está paralisada. Podemos pensar que, se há uma
parada de processo um estado-de-clínica (...) foi instalado; está
bloqueada a possibilidade de acontecimentos e a vida perdeu
seu caráter de processualidade e estagnou . Mas é no ateliê de
argila que Dona Coralina, ao criar formas e fazer poesia, deixa
passar reminiscências e marcas que imprimem no hoje uma
74Referência à música Iolanda de Pablo Milanês com versão de Chico Buarque, freqüentemente solicitada pelos usuários no grupo de música que coordenava.
204
novidade: a fala, a forma, o encontro, o olhar do outro que,
tocado, a olha de outro lugar. (Araújo Lima, 1997, p.85)
É dessa possibilidade criativa de encontro, que íamos
construindo o nosso cotidiano. E, ao construí-lo, criávamos novas
possibilidades de compreensão da loucura; novas perspectivas de olhar
para aquilo que não faz sentido. Nós nos afetávamos com os detalhes
que nos faziam refletir constantemente sobre a prática que estávamos a
concretizar, e sobre os conceitos e princípios que as norteavam.
Retomando o texto de Amarante (1999) que citamos no
início deste capítulo, o CAPS configurava-se como uma unidade que
produzia uma transformação no campo teórico-conceitual, que se refletia
imediatamente na construção de uma inovadora experiência no campo
técnico-assistencial ao se propor um trabalho que privilegiava o encontro,
o cotidiano, o detalhe das relações como critérios de uma clínica geradora
de possibilidades.
5.4. Ampliando a clínica: trabalho, moradia, lazer
A gente não quer só comida A gente quer comida, diversão e arte ...
A gente quer saída para qualquer parte... A gente não quer só comer
A gente quer comer, quer fazer amor ... A gente quer prazer para aliviar a dor
A gente não quer só dinheiro A gente quer dinheiro e felicidade...
A gente quer inteiro e não pela metade... Desejo, necessidade, vontade
Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Britto
205
O processo constante de reavaliação e mudança que
realizávamos foi-nos apontando, já em 1988, um importante limite ao
trabalho desenvolvido até então. Vários usuários nos interpelavam,
insatisfeitos em participar daquela rotina de atividades e demandando
necessidades de outra ordem. Ana Luiza Aranha e Silva, enfermeira do
CAPS, apresenta as questões mais freqüentes:
�Quando vou receber alta e vou poder trabalhar?' 'Como faço
para o patrão não perceber que me trato com psiquiatra?' 'Por
que sou demitido quando tenho uma crise?' 'Por que não
consigo fazer como vocês e trabalhar todos os dias?' (...)
Observa-se que o usuário de serviço de saúde mental que tem
demanda por trabalho necessita de um suporte diferenciado
para poder desenvolver a contento suas atividades mas, em
geral, tem dificuldade para encontrar condições postas
socialmente para esse fim, o que resulta numa situação viciosa
de impossibilidade que leva à impossibilidade e assim
sucessivamente. (Silva, 1997, p.11)
Entre 1988 e 1989, tornou-se uma das prioridades do
CAPS encontrar dispositivos que pudessem dar conta daquela demanda.
Não se podia tratá-la apenas como uma solicitação de um emprego, mas
tomá-la em sua complexidade que envolvia questões de diversas ordens.
A primeira era evitar a todo custo tomar o trabalho na perspectiva que
206
tradicionalmente se tem utilizado no campo da assistência psiquiátrica,
seja como dispositivo de Tratamento Moral com características punitivas,
tal como no raiar da psiquiatria, ou vinculado a conceitos e concepções
que o transformam em um dispositivo de adaptação social, tal como
propõem as Ciências do Comportamento75: comportamentos aprendidos e
reforçados, que transformam o trabalho em ações mecânicas e sem
sentido. Uma segunda questão tratava de repensar criticamente o
trabalho dentro de uma perspectiva social, ou seja, dentro do modo de
produção capitalista, como gerador de valor econômico e social. Nesse
sentido, uma terceira questão que se colocava era a de criar dispositivos
que possibilitassem a construção de um processo de produção material,
em que valores como solidariedade, acolhimento, tolerância, estivessem
presentes como produto das relações estabelecidas nesse processo.
Silva, utilizando-se de Saraceno, irá definir o trabalho
como um dos instrumentos de intervenção do processo de
trabalho em saúde mental que busca a ampliação do nível de
contratualidade sociais do usuário e para isso alinha-se como
uma perspectiva de superação da tradição psiquiátrica. (Ibid.,
p.46).
75 Para detalhamento dessa discussão, recomendo trabalho acima citado e BENNETON, 1991.
207
Essa definição irá partir de uma conceituação de
reabilitação76 psicossocial, que é entendida por Saraceno como
uma estratégia global, política e afetiva que engloba todas as
áreas das relações sociais do usuário individual e familiar,
inclusive e particularmente o que se refere ao seu estatuto
jurídico de incapaz. (apud Silva,1997, p.47)
Ainda com Saraceno (1996), a reabilitação psicossocial,
por ser uma estratégia global, é uma necessidade e uma exigência ética
que "deve pertencer a um grupo de profissionais que tem como prioridade
a abordagem ética do problema da saúde mental" (Saraceno, 1996, p.13).
Deve ser entendida como um processo de reconstrução, de um exercício
pleno da cidadania e de plena contratualidade nos três grandes cenários:
habitat, rede social e trabalho como valor social. O autor destaca os vários
cenários onde a reabilitação psicossocial pode se dar; no trabalho, na
casa, na ida ao supermercado. São os vários cenários da produção da
sociedade, nos quais todos nos colocamos com maior ou menor poder de
contratualidade nas relações:
É dentro destes cenários que temos o desenrolar das
cenas, das histórias, dos efeitos de todos os elementos:
dinheiro, afetos, poderes, símbolos, etc. Cada um com seu
poder de aquisição neste mundo onde, às vezes, somos mais
76 Conceito também polêmico e marcado na tradição psiquiátrica com um valor de adaptação e controle social, mas que aqui é tomado na perspectiva que os autores citados apontam: a de uma superação da tradição psiquiátrica.
208
hábeis ou menos hábeis, mais habilitados ou menos
habilitados. E há, também, a 'desabilidade' por falta de poder
contratual. (...) Muitos pacientes têm um nível de
contratualidade no seu espaço habitacional que tende a zero,
ou porque não tem casa e isso é um marco ou porque têm casa
e sua casa é um marco, ou porque têm uma capacidade de
produção social muito baixa, muito limitada, e então perdem no
nível da contratualidade. Essa é a grande troca afetiva e
material do ser humano: a habilidade do indivíduo em efetuar
suas trocas. (Saraceno, 1996, pp.15-16)
Nesse sentido, o CAPS começou a elaborar estratégias
que visavam a ampliar esse poder de contratualidade, incentivar as
possibilidades de trocas afetivas e materiais. A demanda apresentada
pelos pacientes por trabalho revelava apenas uma dimensão da tarefa
que tínhamos a construir. Existiam outras tantas demandas que, embora
não formuladas de maneira tão clara, estavam presentes, enunciadas
para ouvidos e olhos mais atentos, e que poderíamos sintetizar como
sendo demandas por moradia e lazer. Relações familiares extremamente
tensas e complexas, ou a falta mesmo de um lugar com condições
mínimas, levavam muitos usuários a pleitearem permanecer no CAPS,
mesmo encerrado o período. Alguns chegavam a pular o muro do CAPS e
dormir na varanda da casa. Isso levou a equipe a discutir várias vezes a
necessidade de se instituir um turno integral de funcionamento,
dificultado, entre outros, por questões administrativas, e a discutir uma
209
proposta de moradia para alguns usuários. Por outro lado, em diversas
reuniões gerais os usuários solicitavam da equipe e uns aos outros
companhia para passeios ou programas aos fins-de-semana. Queixavam-
se de não terem onde ir, nem com quem, e de que passavam a maior
parte do tempo dormindo. Ao longo da semana, quando compareciam ao
CAPS, era comum vê-los saindo para tomar chá em um restaurante de
comida vegetariana, ou freqüentarem a biblioteca da Federação das
Indústrias de São Paulo (FIESP), ou irem a um show no Museu de Arte de
São Paulo (MASP), ou irem passear pelo parque do Trianon77. Esse
movimento tinha, necessariamente, o CAPS como ponto de referência.
Partiam e para lá voltavam. E essa era uma das reivindicações dos
usuários, que o CAPS ficasse aberto aos fins-de-semana com atividades
de lazer, ou como uma possibilidade de referência, o que afinal acabou
acontecendo. Mesmo fechado, servia como ponto de encontro entre os
usuários que aos domingos iam, por exemplo, ao cinema.
Trabalho, moradia, lazer e cultura. Desafios para os quais
a equipe do CAPS tinha desejos, idéias, projetos, mas a burocracia
institucional da administração pública não possuía a capacidade de nos
oferecer de maneira ágil e rápida instrumentos para viabilizar muitos
daqueles projetos. Por outro lado, carecíamos de um dispositivo que
pudesse incorporar uma outra demanda que também surgia: os familiares,
77 A região onde o CAPS se localiza, praticamente na Av. Paulista, concentra muitos locais que oferecem uma grande variedade de possibilidades de diversão e cultura:
210
que se dispunham a participar mais ativamente do cotidiano da casa, não
apenas comparecendo aos atendimentos, mas contribuindo de alguma
outra forma78.
A alternativa para responder, ou procurar responder
aqueles desafios, era instituir um dispositivo no interior da rede social que
pudesse congregar e articular de forma mais ágil os vários projetos e
que, ao mesmo tempo, transcendesse os limites das propostas técnicas e
fosse mais orgânica e mais ampla na sua composição e na capacidade
de criação. Ou seja, um dispositivo que, criado a partir do CAPS, o
superasse e se tornasse uma força autônoma com a importância de uma
organização social, com a ativa participação não só de usuários e seus
familiares, mas de todos os que lutam e se interessam pela questão da
transformação da assistência e da cultura.
Nesse sentido, em abril de 1989, foi fundada a
Associação Franco Basaglia, organização não-governamental, portanto
com identidade jurídica própria, que aglutina usuários, familiares e
profissionais dos serviços de saúde mental, estudantes e, como
afirmamos acima, qualquer outra pessoa interessada na questão da
cinemas, teatros, restaurantes, museus, galerias de arte, oferecendo desde programações gratuitas até as mais sofisticadas e caras. 78 Houve uma greve na saúde, em 1990, que contou com a adesão dos trabalhadores do CAPS. Realizamos uma reunião com os usuários e seus familiares, para explicar os motivos da greve e discutir como seria a rotina com a greve. Para nossa surpresa, os familiares tomaram a iniciativa de assumirem a tarefa de organizar atividades ao longo da semana. A cada dia, um grupo de familiares ficava responsável por propor e executar alguma atividade, como passeio, ida ao cinema, passar o dia na escola de natação de um deles etc.
211
saúde mental. Ao longo desses anos, a Associação tem conseguido
desenvolver diversos projetos de caráter científico, cultural e de
sociabilidade, boa parte deles em parceira com o CAPS, através do
Núcleo de Projetos Especiais, outros tantos de forma autônoma, e tem
angariado adesões e simpatias de diversos setores da sociedade,
servindo de exemplo a outras instituições que foram se constituindo e
conquistando representatividade junto aos dispositivos criados pela
Reforma Psiquiátrica, como por exemplo, o fato de um dos representantes
dos familiares no Conselho Nacional da Reforma Psiquiátrica ser da
Associação Franco Basaglia.
A criação da Associação Franco Basaglia, ao possibilitar a
concretização de uma série de projetos, implementou o processo de
reestruturação do CAPS que descrevemos na seção anterior e
desenvolveu, especialmente, o Núcleo de Projetos Especiais.
A interface entre CAPS, Associação Franco Basaglia e
Núcleo Terapêutico, Núcleo dos Projetos Especiais foi sendo construída
em um clima de intensas discussões. Os profissionais que operavam
aqueles dispositivos eram os mesmos, o que causava situações por
vezes confusas, por vezes conflitantes. A constante tematização das
demandas, a busca por encontrar soluções e dispositivos que pudessem
ampliar o campo de intervenção, levou a equipe a um processo, que já
descrevemos, de amadurecimento teórico das noções e conceitos que
212
permeavam aquelas ações. Dessa forma, os limites e contornos entre as
distintas instâncias do CAPS foram sendo desenhados pelo mão do
tempo, pelos gestos da prática, pela cotidiana reflexão.
A primeira atividade desenvolvida pelo Núcleo de Projetos
Especiais foi o Projeto Trabalho, que teve início com a Copiadora,
seguido da Marcenaria79 e do Sabor Paulista.
Os setores de trabalho vêm estruturando e modificando a
forma de sua operacionalização no decorrer dos anos com
autonomia e não existe um modelo de gerenciamento
financeiro e organizacional de referência. Cada setor se auto-
gerencia (produção, distribuição do produto, forma de
remuneração e organização do usuário-trabalhador no posto
que ocupa dentro do setor) e tem a Associação Franco
Basaglia como referência para administrar o recurso financeiro
angariado, nos setores ou na iniciativa privada, que o repassa
ao usuário-trabalhador sob a forma de remuneração por horas
trabalhadas. Por isso prevalece o entendimento de que cada
setor de trabalho deve contar com uma coordenação que
funcione como um elemento organizador e estruturante e que
cada setor individualmente, desenvolva sua própria fórmula e
mecanismos de viabilização econômica. (Silva, 1997, p.60)
79 Sobre o trabalho na Copiadora e uma melhor descrição dos outros projetos desenvolvidos, vide SILVA, 1997. Maiores detalhes e uma análise do trabalho desenvolvido pela Marcenaria, vide MOTTA, 1997.
213
O projeto Copiadora consiste de uma atividade de
reprodução de cópias através de uma máquina, inicialmente para uso
interno, e posteriormente para a clientela externa. A Marcenaria presta
serviços de manufaturas em madeira e possui uma linha de produção
própria de brinquedos educativos e caixas para ludoterapia. O Sabor
Paulista passou por várias fases mas, sinteticamente, podemos afirmar
que se trata de um espaço para a produção e comercialização de
produtos alimentícios, de refeições a lanches.
Além das atividades acima citadas, atualmente existem
mais os seguintes setores: lava-carros, que atende à clientela interna do
CAPS, com perspectiva de ampliação; projeto mensageiro, que se trata
da contratação de um usuário-trabalhador pela Associação, para a
realização de trabalhos externos como mensageiro; lojinha, responsável
pela comercialização de produtos doados ou adquiridos, com um
funcionamento semelhante a um brechó; cesta de sanduíches, que faz da
comercialização interna da produção do Sabor Paulista.
Uma descrição detalhada de cada um dos setores do
Projeto Trabalho, um olhar mais atento aos detalhes cotidianos do
processo de elaboração, discussão, construção e execução,
demonstrariam a complexidade e o alcance de cada um deles, mas
extrapolam os limites do trabalho que aqui apresentamos. Mas vale
salientar, novamente, que cada uma dessas ações nasceu a partir da
214
percepção de necessidades ou da demanda explícita dos usuários e
concretizou-se após um longo processo de discussão coletiva.
O Núcleo de Projetos Especiais conta ainda, com os
seguintes dispositivos: grupo de projetos, espaço destinado aos usuários
encaminhados ao CAPS que buscam inserção no Projeto Trabalho, com o
objetivo de produzir reflexões e discussões sobre o tema trabalho, e
desenvolver projetos pontuais e particularizados; núcleo familiar, espaço
destinado aos familiares dos usuários para discussões, reflexões e
acolhimento; Clube do Basaglia, que se trata de um dispositivo criado em
1996, que busca uma estratégia global de inclusão e participação de
todos os interessados em discutir a temática da saúde mental,
promovendo atividades sociais e culturais, festas, cursos, encontro de
familiares etc.; projeto moradia, que existe como proposta desde 89, foi
possível concretizá-la somente em 1997, com a celebração do Convênio
PIDA, constitui-se de uma casa alugada, onde atualmente alguns
usuários residem nela, sob a orientação de um profissional da equipe. O
Núcleo contou com os seguintes dispositivos: projeto acompanhantes
terapêuticos, durou apenas um ano, e se tratava da capacitação de
estudantes e recém-formados, através de um curso de acompanhantes
terapêuticos; oficinas culturais, projeto que se desenvolveu durante quatro
anos (90/94), resultado de uma parceria da Associação Franco Basaglia,
CAPS e Secretaria da Cultura, com a contratação de especialistas em
artes (artesanato, cerâmica, música, pintura etc.) para o desenvolvimento
215
de oficinas de artes com duração limitada, com o objetivo de atender uma
determinada parcela de usuário que demandava mais um espaço para
aprendizado e convivência do que propriamente a inserção no Projeto
Trabalho.
Múltiplas ações de intervenção terapêutica; espaços
coletivos de decisão institucional; invenção de estratégias para o trabalho,
o lazer, a moradia; invenção de estratégias e dispositivos para incorporar
a participação de familiares e de outros setores da sociedade e para
repercutir e difundir valores, noções, conceitos, novos paradigmas sobre a
loucura, sobre o drama do humano; criação/invenção de estratégias e de
dispositivos para ampliar a capacidade contratual social de cada um dos
nossos usuários. São algumas características de uma instituição
complexa que conjuga cotidianamente verbos como: acolher, escutar,
olhar, cuidar, incluir, inventar, ousar. Verbos conjugados por uma equipe
sempre atenta a um acontecer qualquer, ao detalhe, a algo que possa
construir/reconstruir um caminho, uma trajetória, uma história.
5.5. CAPS: um exemplo isolado
O CAPS é uma unidade da Secretaria de Estado da
Saúde e, portanto, está submetido à política que aquela implementa ou
não. No projeto original, o CAPS Prof. Luiz da Rocha Cerqueira deveria
216
ser o primeiro de uma rede. A Secretaria de Estado da Saúde constituiu
apenas mais o CAPS Perdizes, resultado da transformação do
Ambulatório de Saúde Mental das Perdizes e do empenho dos
profissionais daquela unidade, e o Centro de Atenção Psicossocial de
Pirituba, resultado da transformação do Hospital Psiquiátrico do Pinel em
um complexo assistencial. Após oito anos de governo PMDB e quatro de
governo PSDB, mais nenhum CAPS foi constituído por aquela Secretaria.
Como atenuante do último governo, pode-se afirmar que o processo de
municipalização já estava consolidado, sendo portanto maior a
responsabilidade dos municípios na implantação de novos equipamentos.
Durante o governo Quércia e, principalmente, durante o governo Fleury, o
CAPS enfrentou mais dificuldades e encontrou mais obstáculos do que
apoio. Consolidado como um projeto importante e tendo o
reconhecimento de diversos segmentos, o CAPS surge em vários textos
oficiais como um exemplo a ser seguido e implantado em todo o Estado.
Vale ressaltar o que ocorreu com a política de saúde
mental naqueles anos. Várias equipes de saúde mental, que haviam sido
implantadas no governo Montoro, acabaram por transformar-se em
equipes maiores, muitas vezes com a contratação realizada pelas
prefeituras e se transformaram em ambulatórios de saúde mental de
atendimento regional, muito em função do aumento da demanda de
atendimento que acabavam por gerar. Geralmente se instalavam em
casas alugadas pelas próprias prefeituras. Com a aceleração do processo
217
de municipalização, que se iniciou pelas unidades básicas de saúde, o
que acabou ocorrendo foi um desinvestimento do poder público estadual
naqueles equipamentos que deveriam estar, mesmo no processo de
municipalização, ainda sob a sua responsabilidade, por se tratar de um
equipamento de atenção secundária e de caráter regional. Os problemas
eram de diversas ordens: as equipes não conseguiam completar-se;
profissionais que saíam não eram repostos; a manutenção dos locais e
equipamentos era precária, sendo transferidos para as prefeituras muitas
vezes em péssimas condições; a reposição dos medicamentos era
descontínua, quando não inexistente. Dessa maneira, muitos municípios
acabaram por assumir gradativamente toda a responsabilidade dos
ambulatórios, da manutenção dos prédios, da contratação de
profissionais, tendo de manter o atendimento regional, o que, de fato
acabava também não ocorrendo. Essa é uma realidade que se repete em
muitos ambulatórios espalhados pelas cidades do interior do Estado: a
responsabilidade do governo estadual foi empurrada para os municípios,
que tiveram de responder pelo atendimento regional. Estes, como
arcavam com a quase totalidade dos custos, acabaram por fechar ou
dificultar o acesso dos pacientes dos outros municípios, que ficaram sem
atendimento. Ou seja, a política de saúde mental implementada pelos
governos Quércia e Fleury foi desinvestir nos equipamentos, provocando
a desassistência.
218
Isso não significa dizer que não concordamos com o
processo de municipalização, ou que o Estado tenha, necessariamente,
de manter essas unidades. O que queremos apontar é a falta de
sensibilidade do poder público estadual daquelas gestões que, apesar de
manter o CAPS, não investiam nele e tampouco em outras áreas. Pelo
contrário, afastavam-se e repassavam a responsabilidade pela assistência
aos municípios em uma parceria desigual e injusta. A sensação que se
tinha à época era a de que, sem coragem ou competência para destruir o
trabalho do CAPS, a estratégia era a de manter um determinado controle
pelo manejo dos parcos recursos a ele destinado.
Comparando-se com o projeto de Santos80, o CAPS
sofreu as conseqüências da falta de apoio e de uma articulação política.
Enquanto a experiência santista era respaldada por um projeto político-
social, que a inseria em um plano articulado de ações que não se
esgotavam na saúde, embora tivesse nela um importante e fundamental
eixo, o CAPS sustentava-se apenas na capacidade que a equipe tinha de
criar e articular ações de sobrevivência.
Assim, o projeto CAPS, tido como uma instituição
exemplar, princípio de uma extensa rede, acabou por se transformar,
praticamente, em unidade única da Secretaria de Estado da Saúde.
Embora a equipe tenha sido convidada a expor e debater o trabalho
80 A política de saúde mental do Município de Santos, no governo do PT, está bem descrita em Nicácio (1994). Vale destacar que os NAPS (Núcleos de Atenção
219
desenvolvido em várias cidades do Estado e do país, foram poucas e
raras as vezes que aquela Secretaria de Estado demonstrou interesse em
estabelecer com o CAPS uma interlocução, em termos de política de
saúde. Éramos exibidos e reconhecidos como exemplo da política de
Saúde Mental do Estado e, ao mesmo tempo, excluídos das discussões
sobre a mesma política.
Ainda hoje, o projeto mais importante em saúde mental
implantado pela Secretaria de Estado da Saúde foi e continua sendo o
CAPS Prof. Luiz da Rocha Cerqueira. Menos pelo interesse institucional e
muito mais pela dedicação e pelo incansável esforço de sua equipe.
Transformado agora em um complexo Programa de
Integração Docente Assistencial, talvez o seu poder contratual e a sua
capacidade de articulação aumente, com o apoio da universidade. Mas,
ao mesmo tempo, permanecem os mesmos riscos apontados no texto de
89. Os riscos de se cristalizar as relações, ficar preso a um lugar de
fascínio diante de sua própria competência. Lugar símbolo, profissionais
símbolos, pacientes símbolos. É preciso estar sempre atento e forte, para
o risco de mudar e permanecer o mesmo. Torcemos para que os
profissionais que fazem hoje aquele cotidiano continuem a retirar desse
mesmo cotidiano o alimento que nutre esse organismo vivo, que é o
CAPS .
Psicossocial) funcionavam em período integral, como parte de uma complexa rede de dispositivos institucionais sustentada por uma efetiva política de saúde.
220
5.6. Retomando as questões...
O que acabamos de descrever demonstra que o trabalho
desenvolvido pelo CAPS abrange as múltiplas áreas; saúde, educação,
trabalho, moradia, lazer e cultura. Ou seja, abrange as mais importantes
áreas do humano, dentro de uma perspectiva de transformação, no
cotidiano, das relações sociais, operando com conceitos, valores e
noções como cidadania, solidariedade, inclusão, acolhimento,
participação, e outros mais.
... a vida cotidiana é a vida do homem inteiro; ou seja, o
homem participa na vida cotidiana como todos os aspectos de
sua individualidade, de sua personalidade. Nela, colocam-se
'em funcionamento' todos os seus sentidos, todas as suas
capacidades intelectuais, suas habilidades manipulativas, seus
sentimento, idéias, ideologias. (Heller, 1989, p.17)
Goldberg (1998), descrevendo e analisando uma grande
diversidade de casos, irá salientar a importância do cotidiano,
ressaltando-o e reconhecendo-o como instância terapêutica, a partir da
qual o trabalho do CAPS foi-se estruturando:
É preciso, portanto - se queremos reconhecer e
trabalhar com o cotidiano desses pacientes - abordá-lo como
instância construtiva, cuja estrutura de repetição não cessa de
organizar mundos de vida, ou de permitir a eles a superação
contínua de estados drásticos de dilaceração do aparelho
psíquico. Mas cumpre observar desde já que, ao
221
reconhecermos o cotidiano como instância simbólica de
reconstrução contínua para o paciente, não poderíamos reduzi-
lo a uma espécie de pano de fundo da doença, servindo-nos
dele para aferir resultados de estratégias de tratamento. Ainda
que uma das contribuições secundárias na consideração do
cotidiano possa ser esta, não se pode obliterar que o interesse
principal da estratégia terapêutica não é propriamente
investigá-lo como 'meio' conduzindo a certos 'resultados' pré-
fixados, mas conhecê-lo e talvez ampliá-lo como único espaço
simbólico que de fato resta a esses pacientes, afluindo além
disso como uma interface expressiva que lhes permite
resgatar-se culturalmente. (Goldberg, 1998, p.133)
A invenção permanente da instituição, dentro de novos
paradigmas, coloca o CAPS como exemplaridade do processo de
transformação apontado pelo Movimento da Reforma Psiquiátrica, no
campo teórico e técnico, institucional, jurídico e cultural. Ultrapassando
limites conceituais do seu projeto original, o trabalho foi se transformando
a partir do encontro cotidiano com o drama do existir humano, implicando
a equipe em uma perspectiva ética de alinhamento com o usuário. Foi
ampliando seu campo de atuação, a partir da criação de dispositivos de
incorporação de usuários e familiares e do estabelecimento de alianças
com outros setores sociais.
A vida cotidiana não está 'fora' da história, mas no 'centro'
do acontecer histórico: é a verdadeira 'essência' da substância
222
social. ... As grandes ações não cotidianas que são contadas
nos livros de história partem da vida cotidiana e a ela retornam.
Toda grande façanha histórica concreta torna-se particular e
histórica precisamente graças a seu posterior efeito na
cotidianidade. O que assimila a cotidianidade de sua época
assimila, também, com isso, o passado da humanidade,
embora tal assimilação possa não ser consciente, mas apenas
'em-si'. (Heller, 1989, p.20)
Nesse sentido, é também a exemplaridade de uma
instituição que produz, em sua prática cotidiana, ações na construção de
um bloco histórico alternativo. Ou seja, realiza concretamente estratégias
do processo de contra-hegemonia, alinhando-se na mesma perspectiva
dos Movimentos Sociais que lutam pelo processo de transformação da
sociedade.
223
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Gente olha pro céu, gente quer saber o um Gente é o lugar de se perguntar o um
Das estrelas se perguntarem se tantas são ... Gente é muito bom gente deve ser bom
Tem de se cuidar de se respeitar o bom ... Gente viva brilhando estrelas da noite
Gente quer comer gente quer ser feliz
Gente quer respirar ar pelo nariz Não meu nego não traia nunca essa força não
Essa força que mora em seu coração Gente lavando roupa amassando o pão
Gente pobre arrancando a vida com a mão No coração da mata gente quer prosseguir
Quer durar quer crescer quer luzir Gente é para brilhar não prá morrer de fome ...
Gente espelho de estrelas reflexo do esplendor... Gente espelho da vida doce mistério
Vida doce mistério Caetano Veloso
Destacamos, no capítulo anterior, a relevância do
cotidiano na construção da prática do CAPS. É o eixo em torno do qual a
instituição foi sendo constituída, modificada, transformada. É nele que o
drama da existência dos nossos usuários se desenvolve, que ocorrem os
encontros e desencontros, as aproximações e despedidas. É nele que
concretizamos a nossas ações, refletimos, mudamos, criamos,
inventamos.
Foram de singelos e persistentes passos que o CAPS foi
realizando sua grande marcha. Diariamente, no encontro com os
224
usuários, na reunião geral, nos corredores, nos atendimentos, éramos
submetidos a diversos momentos que exigiam decisões, escolhas. Aceitar
ou não um convite para um café com o usuário, no bar da esquina, podia
envolver uma multiplicidade de alternativas e implicações que faria a
diferença entre uma prática comprometida com a tradição psiquiátrica ou
psicanalítica ortodoxa, e uma prática que se pretendia construir
comprometida eticamente com o usuário. Eram gestos cotidianos que nos
faziam refletir sobre o nosso compromisso ético. Sair com o usuário,
deixá-lo pagar o café e receber dele um forte abraço dizendo que aquilo o
tinha feito ficar muito feliz, pois se sentia capaz de poder realizar algo
para nós, deixava-nos com a certeza de, ainda que sem saber muito bem
o porquê, estarmos caminhando na direção certa. Com uma certa
sensação de que algo se transformava.
Os Movimentos Sociais dos anos setenta, em sua grande
maioria, nasceram das necessidades de sobrevivência cotidianas:
transporte, moradia, saneamento básico, saúde. Foram se transformando
em temas que possibilitaram a criação de uma identificação e o
reconhecimento de interesses coletivos comuns. Na conversa com os
vizinhos, nas discussões no salão paroquial da igreja, em encontros
espontâneos nos lugares públicos, foi sendo constituído um Movimento
pautado por reivindicações vinculadas às condições de vida,
especialmente da vida urbana. Foi no cotidiano dos bairros das periferias
das grandes cidades que a organização coletiva possibilitou o surgimento
225
na cena política de novos sujeitos históricos que foram se afirmando como
essenciais interlocutores no processo de reconstrução da cidadania.
Em tempos autoritários, as condições cotidianas de vida
surgiram como campo de luta, que possibilitaram a conquista de espaços
políticos para a manifestação, articulação, reivindicação e exigências de
direitos frente ao Estado, solidificando, na sociedade civil, a noção de
participação e ação coletivas, acelerando a transição democrática.
No contexto desses movimentos, um grupo de
intelectuais, no cotidiano da vida universitária, iniciou um movimento pela
transformação das condições de saúde da população, que por seu valor
intrínseco constituiu-se em um movimento contra-hegemônico na
construção de um bloco histórico alternativo ao dominante. Teixeira &
Mendonça (1995) destacam três direcionamentos básicos das estratégias
de luta pela Reforma Sanitária: a politização da questão da saúde,
visando a aprofundar e difundir uma nova consciência sanitária; a
alteração da norma legal necessária à criação do sistema único universal
de saúde, a mudança do arcabouço e das práticas institucionais sob a
orientação dos princípios democráticos.
Nascido também a partir de uma mobilização de
intelectuais, no cotidiano de suas práticas institucionais e nas
universidades, o Movimento da Reforma Psiquiátrica buscou, como
destacamos no capítulo anterior, produzir transformações nos campos
teórico e técnico assistencial, jurídico-político e sociocultural. Desde seu
226
início, nos anos setenta, o Movimento da Reforma Psiquiátrica
apresentou-se com um temário de caráter social e estabeleceu
estratégias para ampliar os limites de sua atuação, para além dos muros
dos asilos e das universidades. Em um constante processo dialético entre
teoria e ação, foram sendo criados novos paradigmas e novas práticas
institucionais (NAPS/CAPS por exemplo), que acabaram por influenciar e
inspirar mudanças na estrutura normativa das ações de saúde (as
portarias do Ministério da Saúde). Embora uma lei nacional ainda não
esteja aprovada, a existência de diversas leis estaduais e municipais de
Reforma Psiquiátrica aprovadas e outras tantas em tramitação, demonstra
um processo em evolução de mudança do aparato jurídico em torno da
saúde mental. Finalmente, o Movimento da Luta Antimanicomial, hoje a
face mais ativa do Movimento da Reforma Psiquiátrica, tem-se
caracterizado mais claramente como um Movimento Social que congrega
diversos setores da sociedade, tais como: associações de usuários e
familiares, conselhos de profissionais, sindicatos, centrais sindicais,
parlamentares, e outros mais, formando um amplo leque de alianças e
parcerias.
Desse modo, podemos concluir que existem diversos
pontos em comum entre o Movimento Sanitário e o Movimento da
Reforma Psiquiátrica. Ambos nasceram de corporações intelectuais, a
partir de uma perspectiva das classes trabalhadoras, e estabeleceram
estratégias de alianças com setores da sociedade, buscando ampliar e
227
incorporar esses setores à sua luta. Em decisivos momentos históricos,
participaram ativamente das lutas sociais, alinhando-se sempre na
perspectiva da transformação da sociedade. Conquistaram espaços no
interior do aparelho estatal, produzindo modificações na estrutura
burocrático-institucional, tornando-a um instrumento, necessário mas
ainda insuficiente, para a transformação das condições de saúde da
população.
Enquanto o Movimento Sanitário optou por investir
prioritariamente na estratégia de ocupação estatal, o Movimento da
Reforma Psiquiátrica, ao contrário, superando os limites de um movimento
específico animado por intelectuais, foi ampliando suas alianças,
atualizando e renovando a sua luta. Amarante (1999) afirma que o
Movimento da Reforma Psiquiátrica radicaliza os princípios da Reforma
Sanitária descritos por Nelson Rodrigues dos Santos: inclusão,
solidariedade, cidadania.
Esses princípios são concretizados pela prática de
centenas de profissionais, nos diversos locais e instituições inventadas ou
transformadas; pelo trabalho de centenas de pessoas nas dezenas de
entidades nascidas a partir da mobilização proporcionada pelo Movimento
da Reforma Psiquiátrica; pelos dispositivos de trabalho criados pelas
unidades; pelos encontros com a loucura; pela possibilidade de
reconstrução da vida cotidiana de cada usuário.
228
Em tempos de globalização econômica, radicalização da
dependência internacional, o neo-liberalismo aponta para um Estado
Mínimo que, por um lado, abandona os investimentos nas áreas sociais
e, por outro, amplia e refina dispositivos de manutenção do poder
econômico, através de políticas de exclusão e controle. Há cada vez mais
concentração de renda, mais injustiça social, mais desemprego e menos
manifestações populares de protesto, menos articulações de oposição. É
comum ouvir-se a frase: -�É melhor ganhar pouco do que não ganhar
nada�. Sindicatos negociam redução de salários, em troca de estabilidade
de emprego. Capturada pela lógica econômica neo-liberal, a solidariedade
cede terreno ao individualismo. Cinismo e violência ganham destaque e
relevância. Há menos cultura popular e mais narcisismo em tempos
sombrios. Parece que nada há para além do jardim da globalização neo-
liberal.
Individualização excessiva, letargia, fascínio pelo banal
apresentado como espetáculo, a-historização do cotidiano, são alguns
dos elementos que se apresentam para a produção de nossas
subjetividades de final de milênio: desagregadas e isoladas, facilmente
controláveis e, no mais das vezes, ávidas por se incluírem no restrito e
inacessível grupo dos privilegiados.
É nesse cenário que os Movimentos Sociais, e dentre eles
o Movimento da Reforma Psiquiátrica, encontram seu grande desafio: o
de produzir e inventar espaços de encontro para a problematização do
229
cotidiano, para a formulação de novas questões; espaços para produção
de rupturas, para radicalização das contradições; espaços para
apropriação da vida.
Forjar alianças, exercer a solidariedade, articular forças.
Há um grande caminho a ser construído. Há um mundo a ser
transformado.
Para que toda gente, louca ou não, brilhe e seja feliz.
230
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243
ANEXO
Alguns números para pensar...
A seguir, apresentamos alguns dados referentes aos
equipamentos extra-hospitalares de saúde mental81.
Quadro 01 - Distribuição dos recursos orçamentários da Coordenadoria de Saúde Mental da Secretaria de Estado da Saúde
Setores % dos gastos 1983 % dos gastos 1984
% dos gastos 1985
Hosp. Próprios 54% 55% 51%
Hosp. Conveniados 38% 36% 38%
Div. de Ambulatórios 05% 06% 07%
Sede 03% 03% 04%
Total 100% 100% 100%
Fonte CSM - SES
O quadro acima demonstra que houve, entre 1983 e 1985,
uma redução de 3% dos gastos com internações psiquiátricas e um
aumento de 2% nos gastos com a rede extra-hospitalar. É importante
81 Utilizou-se como fonte o texto de TOLEDO FERRAZ, M.P. Prioridades em saúde mental , in Arquivos da CSM-SP, vol. XLIV, n.º Único, pp 11/17, jan a dez, 1984 ; dados da secretaria de Estado da Saúde; Datasus do Ministério da Saúde.
244
frisar que no período descrito a maioria dos leitos psiquiátricos do Estado
de São Paulo eram conveniados com a Secretaria de Estado da Saúde.
Quadro 02 - Implantação da Ações de Saúde Mental. Comparação entre os anos de 1983, 1985 e 1997
1983 1985 1997*
Centro Saúde
Amb. Centro Saúde
Amb. Centro
Saúde
Amb. CAPS
NAPS
G. S. Paulo 19 11 46 21 136 31 15
Interior 27 07 60 07 182 47 34
Total 46 18 106 28 318 78 49
Fonte CSM e CSI * dados preliminares e parciais de serviços implantados
O quadro acima demonstra que, no período de 1983 e
1985, houve um aumento de 230% no número de equipes de saúde
mental nos centros de saúde e de 64% no número de ambulatórios de
saúde mental.
Comparando-se o ano de 1985 com os dados preliminares
de 1997, temos um aumento de 300% em equipes de saúde mental nos
Centros de Saúde e um aumento de 278% no número de ambulatórios de
saúde mental.
245
Se somarmos os equipamentos extra-hospitalares, teremos
um aumento total, de 1983 a 1985, de 142%. De 1985 para 1997, um
aumento de 332%.
Podemos afirmar que, em 1997, há três vezes mais
unidades extra-hospitalares do que em 1985 e sete vezes mais do que
em 1983.
Quadro 03 - Comparação entre o número total de internações e o número de leitos no Est. de São Paulo, no período de 1992 a 1998.
1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998
n.º total de Internações
136.710 134.130 145.126 140.794 127.088 123.852 118.036
n.º total de leitos
33.698 31.837 30.807 27.397 25.457 23.166 22.645
Fonte: DATASUS - Ministério da Saúde
O quadro n.º 03 acima e o gráfico n.º 01 abaixo
demonstram que no período de 1992 a 1998 o número de leitos
psiquiátricos no Est. de São Paulo caiu de 33.698 para 22.645, ou seja,
uma redução de 32,8%.
Vale ressaltar que, no período de 1994 a 1998, coincide
com a avaliação de todos os hospitais psiquiátricos do Estado para o
enquadramento na Psiquiatria IV.
Entretanto, o número de internações reduziu-se apenas em
13,6 % no mesmo período. Observa-se que foi somente a partir de 1996
que o total de internações de fato começa a reduzir-se.
246
Fonte DATASUS - Ministério da Saúde
Embora hoje a rede de assistência em saúde mental conte
com mais equipamentos extra-hospitalares, com menos leitos
psiquiátricos, o número de internações continua alto.
O Movimento da Reforma Psiquiátrica está apenas
começando sua tarefa, sua longa jornada.
Gáfico nº 01 - Comparativo entre internações e leitos psiquiátricos no Estado de São Paulo.
0
20.000
40.000
60.000
80.000
100.000
120.000
140.000
160.000
1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998
n.º total de Internaçõesn.º total de leitos
247
YASUI, S. A construção da reforma psiquiátrica e o seu contexto histórico. Assis, 1999. 248 p. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Assis, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho".
RESUMO
O objetivo do presente trabalho é o de contribuir para a discussão e a
consolidação da transformação da assistência em saúde mental. A partir
de conceitos inspirados em Gramsci, pretende-se compor o cenário
político e social em que o Movimento da Reforma Psiquiátrica foi sendo
construído, desde os anos setenta até os anos noventa, estabelecendo
relações e paralelos com os Movimentos Sociais e com o Movimento da
Reforma Sanitária. Neste processo de construção cotidiana, destacam-se
os paradigmas e as rupturas que o Movimento da Reforma Psiquiátrica foi
produzindo em diversos campos: teórico, assistencial, jurídico, político e
sociocultural, o que possibilita caracterizá-lo como um Movimento Social
contra-hegemônico. Como exemplaridade desse processo, analisa-se o
Centro de Atenção Psicossocial Luiz da Rocha Cerqueira de São Paulo.
Palavras-chaves: Saúde mental; atenção psicossocial; história da
psiquiatria; reforma sanitária.
248
YASUI, S. The build of the Psychiatric Reform and its description context. Assis, 1999. 248 p. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Assis, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho".
ABSTRACT
The aim of this present work is to contribute for the discussion and
consolidation of the assistance transformation in mental health. From
some concepts inspired in Gramsci, we intend to build a political and
social scene in which the Movement of Psychiatric Reform was being built
since the seventies until nineties, stablishing relations and parallels with
the Social Movement and with the Movement of Sanitary Reform. In the
process of daily construction are detached the paradigms and the ruptures
that the Movement of Psychiatric Reform was producing in several fields:
theorical, assistencial, judicial, political and social-cultural, which makes
possible to characterize it as a contra-hegemonic Social Moviment. As an
example of this process we analyze Luiz da Rocha Cerqueira
Psychosocial Care Center in São Paulo.
Keywords: Mental health; psychosocial care; psyhiatric history; sanytary
reform.