75332680 HARDT Michael Gilles Deleuze Um Aprendizado Em Filosofia

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cole<;:ao TRANS

Michael Hardt

GILLES DELEUZEUrn Aprendizado

em Filosofia

Traduf(1O

Sueli Cavendish

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EDITORA 34

Distribui<;ao pela C6dice Comercio Disrribui<;ao e Casa Editorial Ltda.R. Simoes Pinto, 120 Tel. (01l) 240-8033 Sao Paulo - SP 04356-100

GILLES DELEUZEUrn Aprendizado em Filosofia

Copyright © 34 Literatura SIC Ltcla. (edi<;ao brasileira), 1996Gilles Deleuze - an apprenticeship in philosophy © Regents of the Universityof Minnesota, 1993

A FOToc6PIA DE QUALQUER FOLHA OESTE LIVRO Eo ILEGAL, E CONFIGURA UMA

APROPRIAC;:AO INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR.

Agradecimentos .Introdu.,ao: Hegel e as Funda,oes do

P6s-Estruturalismo .Nota Preliminar: 0 Primeiro Deleuze: Alguns Principios

Metodol6gicos .

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Titulo original:Gilles Deleuze - an apprenticeship in philosophy

Capa, projeto grafico e editora<;ao eletronica:Bracher & Malta Produfiio Grafica

Revisao tecnica:Luiz Orlandi

Revisao:Maria lnes Montenegro de Azevedo

CAPITULO I: A ONTOLOGIA BERGSONIANA:

o MOVIMENTO POSITIVO DO SER

1. Determina,ao e Diferen,a Eficiente .2. Multiplicidade na Passagem da Qualidade para a

Quantidade .3. A Emana,ao Positiva do Ser .4. 0 Ser do Devir e a Organiza,ao do Atual .

Nota: Deleuze e a Interpretafiio .

29

39435155

ISBN 85-7326-028-9

Tradu<;ao de' Gilles Deleuze - an apprenticeship in philosophy

1" Edic;ao - 1996

Dados Internacionais de Catalogac;ao na Publicac;ao (elP)(Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

86899395

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616467687577

CAPITULO II: A ETICA NIETZSCHIANA:

Do PODER EFICIENTE A UMA ETICA DA AFIRMA<;:AO

1. 0 Paradoxo de Inimigos .2. 0 Metodo Transcendental e a Critica Parcial .

Nota: A Selefiio de De/euze do Nietzsche "Impessoal" .3. A L6gica do Escravo e 0 Poder Eficiente .

Nota: 0 Ressurgimento da Negatividade .4. 0 Trabalho do Escravo e a Critica Insurrecional .

Nota: A Vontade de Potencia dos Trabalhadores e aSintese Social .

5. 0 Ser do Devir: A Sintese Erica da Vontade Eficiente .6. A Critica Total colno Funda,ao do Ser .

Nota: 0 Fim do Anti-hegelianismo de Deleuze .7. Pathos e Alegria: Acerca de uma Pratica do Ser

Afirmativo , .cnn - 1(44)

1. Filosofia. I. Deleuze, Gilles. II. Titulo.

III. serie.

96-0138

34 Literatura SIC Ltda.R. Hungria, 592 CEP 01455-000Sao Paulo - SP Tel./Fax (011) 210-9478 Tel. (011) 832-1041

Hardt, MichaelGilles Deleuze - urn aprendizado em filosofia I

Michael Hardt; tradUl;iio de SueJi Cavendish. -Sao Paulo: Ed. 34, 1996192 p. (Col~ii.o TRANS)

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CAPITULO IV: CONCLUSAo:

UM APRENDIZADO EM FILOSOFIA

CAPiTULO III: A PRATICA ESPINOSISTA:

AFIRMA(:Ao E ALEGRIA

1. Ontologia 1732. Mirma,ao 1763. Pritica 1794. Constitui,ao 181

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AGRADECIMENTOS

Desejo expressar 0 meu reconhecimento, com respeito e afeic;ao,a dois professores, Charles Altieri e Antonio Negri.

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Especular;ao -

1. Subsrancia e Distin,ao Real: Singularidade 1052. Atributos Expressivos e Distin,ao Formal:

Umvocidade 110Nota: A Especular;ao Ontol6gica 115

3. Os Poderes do Ser 120

Expressao Ontol6gica -4. A Interpreta,ao dos Atributos: Problemas de uma

Onrologia Materialista 124Nota: Produr;ao Especulativa e Pratica Te6rica 127

5. Combatendo os Privilegios do Pensamento 131Nota: Da Forschung Ii Darstellung 139

Poder-

6.0 Verdadeiro e 0 Adequado 1427.0 Que urn Corpo Pode Fazer............................................. 147

Prdtica -

8. No,6es Comuns: Os Agenciamenros do SerComponivel....................................................................... 152

9. A Constitui,ao da Razao 158Nota: Pratica Te6rica e Constituir;ao Pratica 163

10. A Arte da Organiza,ao: Para urn AgenciamenroPolitico 167

Obras Cltadas ..

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INTRODU<;:AO:HEGEL E AS FUNDA<;:OES DO P6S-ESTRUTURALISMO

o p6s-estruturalismo continental problematizou as funda<;6es dopensamento filos6fico e politico. Provavelmente deslumbrados peloimpaeto dessa ruptura te6rica, muitos autores americanos encamparamesse movimento como a inaugura<;ao de uma cultura p6s-filos6fica, naqual argumentos filos6ficos e juizos politicos nao admitem qualquerjustificativa, nem repousam sobre qualquer principio. Essa problema­rica, contudo, instala muito facilmente uma nova oposi<;ao que obs­CUfeee as reais possibilidades propiciadas pela tearia continental coo­tempora.nea. Tanto nas maos de seus defensores quanta nas de seusdetratores, 0 pos-estruturalismo foi incorporado a uma serie de deba­tes anglo-americanos.- entre modernistas e pos-modernistas, entresocialistas e liberais - de tal forma que desviou-se e atenuou-se a suafor<;a. A importancia do p6s-estruturalismo nao pode se apreendidaao colocar-se uma nova serie de oposi<;6es, mas somente ao se reco­nhecer as nuances e alternativas que ele propce na modernidade, natradi\=ao filos6fica, no campo contempora.neo de pra.ticas sociais. Seobservamos atentamente 0 desenvolvimento historico do pensamen­to pos-estruturalista, as complexas pressoes sociais e teoricas com quese defrontou e os instrumentos que construiu para enfrenta-las, pode­mos recuperar algo de seus poderes construtivos e criticos. 0 pos-es­truturalismo, viemos a descobrir, nao se orienta simplesmente para anega\=ao de fundamentos teoricos, mas sim para a explora\=ao de no­vas bases da investiga\=ao filosofica e poHtica; se envolve nao apenascom a rejei<;ao da tradi<;ao do discurso politico e filos6fico, mas, 0 queemais importante, com a articula\=ao das linhagens alternativas quenascem da pr6pria tradi<;ao.

As raizes do pos-estruturalismo e sua base unificadora repou­sam, em grande medida, em uma oposi\=ao geral que nao se dirige atradi\=ao filos6fica tout court, mas, especificamente, atradi\=ao hege­liana. Para a gera\=ao de pensadores continentais que chegaram ama­turidade nos anos 60, Hegel se apresentava como a figura da ordeme da autoridade que funcionava como 0 foco do antagonismo. Deleuze

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fala em nome de rada a sua corte: "0 que eu abominava acima detudo era 0 hegelianismo e a dialetica" ("Lettre a Michel Cressole"110). A fim de apreciar esse aotagonismo, devemos, cantucia, com~pr:ender que, no dominic cia teoria continental do periodo, Hegel eraU~lqUO. Como resultado de influentes interpreta<;6es de teoricos taod,ferentes quanto Kojeve, Gramsci, Sartre e Bobbio, Hegel viera a~om~n~r 0 horizo~te teo.rico COmo 0 inelutavel Centro cia especula<;aofIlosofIca, da, teona social e da pnitica politica. Em 1968 parecia a:'ran,Ols Chatelet que todo filasofo tinha que come,ar por Hegel:[Heg~l] determmava urn honzonte, uma linguagem, urn cadigo em

cUJO n~cleo amda hoje nos colocamos. Hegel, por esse fato, e 0 nos­so Platao: aquele que delimita ideolagica ou cientificamente, positivaou negatlvamente,as Pos~ibilidades tearicas da tearia" (Hege/2).Qualquer apreCla,ao do pos-estruturalismo continental tern que ado­tar esse. referenclal de urn hegelianismo generalizado como seu pontode partida.

o primeiro problema do p6s-estruturalismo e, portanto, COmo

escapar de uma funda,ao hegeliana. Para compreender a extensao desseproble~a, temos, entretanto, que reconhecer as serias restri<;6es coma~ .qualS s: defrontava tal projeto no contexto social e hist6rico espe­cl6co. Chatelet defende, de modo curiosamente dialetico que 0 ' ._. " , umco proJeto vlavel para se contrapor ao hegelianismo e 0 de tomar Hegela base negatlva da fIlosofIa. Os que negligenciam 0 passo inicial de di­nglr-se a Hegel e rejeiti-lo ativamente, ele observa, os que simplesmeotetenta~:,oltar as costas a Hegel, correm 0 risco de terminar como meras~epetl~oes, ~a problemarica hegeliaoa. "Certamente hci diversos pro­Jeto.s filosof:cos. contemporaneos que ignoram 0 hegeliaoismo... essespr?Jetos estao hdando com 0 falso significado do come,o absoluto e,alem dISSO, estao se privando de urn born ponto de apoio. Epreferivel-: como fIzer~:n Marx e N~et~sche, cOffi6;ar com Hegel do que ter­mmar com .Ie (4). 0 hegehamsmo era urn vertice tao poderoso queao teotar 19no~ci-Io e~a i?evitcivel que se fosse sugado por seu poder.Som~~te 0 antl-hegehamsmo fornecia 0 ponto de apoio negativo ne­cessano a urn projeto p6s-hegeliano ou mesmo nao-hegeliano.

Desse ponto de vista, as primeiras obras de Gilles Deleuze saoexemplaresde toda uma gera,ao de pensadores pas-estruturalistas. Emsuas pnmelras lllvestigat;oes na hist6ria da filosofia podemos obser­;ar uma concentrat;aO intensa do anti-hegelianismo generalizado daepoca. Deleuze tentou encarar Hegel e a dialetica frente a frente, como

1 Esse e0 argurnento, por exernplo, de Stephen Houlgate em Hegel, Nietzscheand the Criticism of Metaphysics. Voltarernos ao seu argurnento para considera­10 cuidadosarnente no capitulo II, "Nota: 0 Ressurgirnento da Negatividade".

Chatelet afirmara que se deve fazer, com uma refuta,ao filosafica ri­gorosa; ele incorporou 0 hegelianismo nao para salvar os seus elemen­tos vcilidos, nao para extrair "0 nucleo racional da concha mfstica" ,mas sim para articular uma crftica total e uma rejeit;ao do referencialdialetico negativo para alcant;ar uma autonomia real, urn afastamen­to tearico de toda a problematica hegeliana. Os filasolos que Deleuzeidentifica como partidarios nessa luta (Bergson, Nietzsche e Espinosa)parecem permitir-lhe sucessivos avant;os no sentido da reahza~ao desseprojeto. Muitos criticos recentes do p6s-estruturalismo frances, con­tudo, denunciaram que 0 p6s-estruturalismo nao compreendeu Hegele, com urn anti-hegelianismo facil, ignorou 0 trat;o mais poderoso deseu pensamento1. Deleuze e 0 exemplo mais importante a considerarcom respeito a essa questao, porque ele prepara 0 rnais preciso e berndelimitado ataque ao hegelianismo. Nao obstante, talvez porque esseparadigma cultural e filos6fico era tao tenaz, 0 esfort;o para arrancar­se do terreno hegeliano nao eimediatamente bem-sucedido. Vemos queDeleuze muitas vezes coloca 0 seu projeto nao apenas na linguagemtradicional do hegelianismo, mas tambem em termos dos problemastipicamente hegelianos, a determinat;ao do ser, a unidade do Uno e doMultiplo, e assim por diante. Paradoxalmente, em seu esfor,o parainstituir Hegel como a fundat;ao negativa para 0 seu pensamento, De­leuze pode parecer muito hegeliano.

Se 0 hegelianismo e 0 primeiro problema do pas-estrutUfalismo,entao 0 anti-hegelianismo logo se apresenta como 0 segundo. Em mui­tos aspectos, 0 hegelianismo e 0 mais dificil dos adversarios porquepossui essa capacidade tao extraordinaria de recuperar a oposit;ao.Muitos autores anglo-americanos, buscando desacreditar a ruptura dop6s-estruturalismo continental, deram enfase corretamente a esse di­lema. Judith Butler apresenta 0 desalio aos anti-hegelianos em termosmuito elaros: "As referencias a urn 'rompimento' com Hegel sao qua­se sempre impossiveis, ate porque Hegel fez da propria no,ao de 'rup­tUfa' urn principio central da sua dialetica" (Subjects ofDesire, 184).Pode parecer, portanto, que, desse ponto de vista, ser anti-hegeliano,mediante uma guinada dialetica, vern a ser, rnais que nunca, uma pos­tura dialetica; com efeito, pode-se argumentar que 0 esfort;o para ser

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urn "outro" para Hegel pode redundar em sec urn "outro" em Hegel.Ha de fato uma bibliogtafia ctescente que amplia essa linha de atgu­mentar;ao, afirmando que a obra de anti-hegelianos contemponineosconsiste em meras repetir;oes inconscientes dos dramas hegelianos,faltando-lhes 0 podet do sujeito hegeliano e 0 tigot e clateza da 16gi­ca hegeliana 2.

o problema da tecupeta,ao com que se depata a funda,ao anti­hegeliana do p6s-estruturalisffio ofereee uma Dutra e mais importan­te justificativa para havermos escolhido Deleuze como tema desse es­tudo. Muito embora inumeros autores tenham realizado importan­res contribuic;6es anossa crftica de Hegel, Deleuze foi quem mais pro­fundamente desvencilhou-se dos problemas do anti-hegelianismo econstruiu urn terreno alternativo para 0 pensamento - que ja nao ep6s-hegeliano e sim sepatado do problema de Hegel. Se a ptimeitajustificativa para propormos Deleuze como pensador p6s-estrutura­lista exemplar era a de que ele erepresentativo do antagonismo aohegelianismo, a nossa segunda ea de que ele eanomalo com respeitoaextensao com que conduz 0 ptojeto de se afastat de Hegel em dite­<;ao a urn terreno separado e alternativo. Ha dois elementos centraisdessa passagem que Deleuze desenvolve em diferentes registros e emdifetentes pIanos de teflexao: uma concep,ao nao-diaIetica da nega­<;ao e uma teoria constitutiva da pratica. Nao podemos compreenderesses elementos, e 0 que reafirmo, se apenas os contrapusermos asconcep<;6es hegelianas de nega<;ao e pratica. Devemos reconhecer suasnuances e coloca-Ios em urn plano alternativo. Esses dois temas, en­tao, a nega<;ao e a pratica, compreendidos em suas novas formas con-• f 'tern a unda<;ao do novo terreno que 0 p6s-estruturalismo tern para

oferecer ao pensamento filos6fico e politico, urn terreno para a inves­tiga<;ao em nossas dias.

Examinemos brevemente as linhas gerais desses dois elementoscenttais do ptojeto de Deleuze. 0 conceito de nega,ao que esta nocentro do pensamento dialetico parece colocar 0 rnais serio desafio a

2 Alem de Subjects of Desire, de ]udith Butler, e de Hegel, Nietzsche andCriticism ofMetaphysics, de Stephen Houlgate, ver Dialetic ofNihilism, de GillianRose, e History and Totality: Radical Historicism from Hegel to Foucault, de ]ohnGrumley. Para uma abordagem que de fato reconhece uma ruptura bem-sucedidada problemitica hegeliana no pensamento frances dos anos 60, ver Michael Roth:Knowing and History: Appropriations of Hegel in Twentieth-Century France.

qualquer teoria que se queira anti ou p6s-~egeliana. "~i.feren<;anao:dialetica", escreve Judith Butler, "a despelto de suas vanas forma~, eo ttabalho do negativo que petdeu a sua 'magica"'(184). 0 conceltonao-dialetico de nega<;ao que encontramos na critica total de Deleuzecertamente nao contern nenhum dos efeitos magicos da dialetica. Anega,ao dialetica e sempte ditigida pata 0 milagte da tessutrei,ao; euma nega<;ao "que suprassume de tal forma que pr~ser,va e ma~te~

o que e suprassumido e, consequentemente, sobrevlve a s_ua ~rop~la

suptassun,ao" (Phenomenology ofSpirit, § 188). A neg~,ao n~o-dla­letica e mais simples e mais absoluta. Sem nenhuma fe no alem, naeventual ressurrei<;ao, a nega<;ao se torna urn momento de extremoniilismo: em termos hegelianos, aponta para a morte do outro. Hegelconsidera essa pura morte, "0 Senhor Absoluto", como uma meraconcep<;ao abstrata da nega<;ao; no mundo contemporaneo, contudo,o carater absoluto da nega<;ao tornou-se terrivelmente concreto, e aressurrei<;ao magica implicita na nega<;ao dialetica parece tao-some~te

uma supersti<;ao. A nega<;ao nao-dialetica eabsoluta, nao n~ sentld~de que tudo que esta ptesente e negado, mas no de que aqUllo que enegado e atacado com for<;a total ~ irre~trit~. :~r urn lado, :utor~escomo De1euze prop6em esse concelto nao-dlaletIco da nega<;~o naona promo<;ao do niilismo, mas tao-somente como 0 recon~e~lme~t?de urn elemento de nosso mundo. Podemos situar essa pOSI<;ao teon­ca com rela<;ao ao campo do "criticismo nuclear", mas nao no senti­do de que armas nucleares apresentam a amea<;a da nega<;ao, n~o. nosentido de que elas colocam 0 medo universal da motte: essa e Slm­plesmente a "nega<;ao fixa" de urn referencial hege1iano, preservan­do a otdem dada. A nega,ao da bomba e nao-dialetica em sua atua­lidade, nao nos gabinetes de planejamento de Washington mas ,nastuas de Hitoshima, como urn agente da desttui,ao total. Nada ha depositivo na nega<;ao nao-dialetica, nenhuma ressurrei<;ao magica: Elae puta. POt outtO lade, com urn olho na ttadi,ao filos6fica, podemoslocalizat essa concep,ao tadical da nega,ao nas ptopostas metodo­16gicas de certos autores escolasticos tais como Ro~er Ba,.con.: .A ne­ga<;ao pura e 0 primeiro momento de uma concepc;~o.pre~cntlCa dacritica: pars destruens, pars construens. As caractenstIcas Importan­tes sao a pureza e a autonomia dos dois momentos criticos. A nega~

<;ao abre 0 terreno acria<;ao; e uma sequencia bipartite que obstrmqualquer terceiro momento sintetico. Assim, ~odem~s ao. m~~os ac_e­nar com bases s6lidas para essa negac;ao radICal e nao-dlaletlCa: sao

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tao novas quanto a far~a destrutiva da guerra cantempod.nea e taovelhas quanta a ceticismo pre-crftico dos escohisticos.

A radicalidade da nega<;ao for<;a Deleuze a se ocupar de quesraesbasicas, quest6es da natureza do ser. A crftica total de Deleuze envolveuma destrui~ao tao absoluta que torna-se necessario questionar 0 quetorna a realidade possive!. Deveriamos sublinhar que, por um lado, arejei<;ao da ontologia hegeliana nao leva Deleuze a qualquer forma depensamento deontol6gico. Embora negue qualquer estrutura pre-cons­tituida do ser ou qualquer ordem teleol6gica da existencia, Deleuze ain­da opera nos pIanos mais altos da especula<;ao ontol6gica. Mais umavez, rejeitar a ontologia hegeliana nao significa rejeitar a ontologia toutcourt. Em vez disso, Deleuze insiste em alternativas dentro da tradi­<;ao ontol6gica. Por outro lado, entretanto, devemos ter 0 cuidado desdelogo para nao confundir essa conduta com urn retorno heideggerianoaontologia, principalmente porque Deleuze aceitara somente respos­tas "superficiais" aquestao "0 que torna possivel 0 ser?" Em outraspalavras, ele nos limita a urn discurso ontologico estritamente imanentee materialista, que recusa qualquer fundamenta<;ao do ser profundaou oculta. Nada ha de velado ou negativo com respeito ao ser de De­leuze; ele se encontra plenamente expresso no mundo. 0 ser, nessesentido, e superficial, positivo e pleno. Deleuze recusa qualquer apre­ensao "intelectualista" do ser, qualquer apreensao que de alguma formasubordine 0 ser ao pensamento, que coloque 0 pensamento como a for­ma suprema do ser3. Ha numerosas contribui~oes a esse projeto de umaontologia materialista na hist6ria da filosofia - tais como as de Es­pinosa, Marx, Nietzsche e Lucrecio - enos referiremos a elas em nOSSadiscussao a fim de foroecer pontos de referencia ilustrativos. Focali­zaremos, contudo, a concep~ao constitutiva da pratica de Deleuze comouma funda<;ao da ontologia. A nega<;ao radical do pars destruens nao­dialetico destaca que nenhuma ordem pre-constituida esta disponivelpara definir a organiza<;ao do ser. A pratica fornece os termos para

3 Trararernos, em profundidade, da recusa de urna abordagern "inrelecrua­lisra" do ser e das bases para uma ontologia materialista, em terrnos da interpre­tar;ao deleuziana dos atributos em Espinosa (ver ser;6es IliA e 111.5). Nao coloco aontologia de Deleuze em confronto direto com a de Heidegger, mas acho que co­locar tal quesrao poderia ser muiro frutffero e rnerece urn estudo completo em simesmo. Aqui espero apenas indicar as linhas gerais do confronto, de modo a ofe­recer urn guia auxiliar e situar a abordagem de Deleuze.

urn pars construens material; a pratica e 0 que torna possivel a cons­titui<;ao do ser. A investiga<;ao da natureza do poder permite a Deleuzedar substancia ao discurso materialista e elevar a teoria da pratica aonivel da ontologia. A funda<;ao do ser, portanto, reside tanto em urnplano corpereo quanto mental, na dinamica complexa do comporta­mento, nas intera~oes superficiais dos corpos. Essa nao euma "pra­tica te6rica" althusseriana, mas sim uma concep<;ao mais pratica dapnitica, indepeodente de qualquer "tendencia teoricista", uma "pra­tica" que e orientada principalmente para 0 dominio ootol6gico, aoinves de para 0 dominio epistemol6gico. A unica natureza disponivelao discurso ontol6gico e uma concep<;ao absolutamente artificial danatureza, uma natureza hibrida, uma natureza produzida na praticaainda mais remota que uma segunda natureza, uma natureza ao ene­simo grau. Esse modo de encarar a ontologia etao novo quanto 0 uni­verso infinitamente plastico dos ciborgs, e tao velho quanto a tradi­~ao da filosofia materialista. 0 que importad. em nossa discussao eque os termos fundamentais tradicionais tais como necessidade, razao,natureza e ser, embora abalados em sua fixidez transcendental, aindaservem como fundamento, porque eles adquirem uma certa consistenciae substancia em nosso mundo. 0 ser, agora historicizado e materiali­zado, edelimitado por fronteiras externas da imagina<;ao contempo­ranea, do campo contemporaneo da pnitica.

Eu elaboro essas concep<;aes de nega<;ao nao-dialetica e da pra­tica constitutiva na obra de Deleuze pela leitura da evolu~ao de seupensamento, quer dizer, seguindo a progressao das questoes criticasque guiam as suas investiga~oes por periodos sucessivos. A evolu~ao

do pensamento de Deleuze se revela amedida que ele dirige sua aten­<;ao seqiiencialmeote para uma serie de fil6sofos e coloca a cada urndeles uma questao espedfica. 0 seu trabalho sobre Bergson oferece umacritica da ontologia negativa e propoe em seu lugar urn movimento ab­solutamente positivo do ser que se baseia em uma no<;ao eficiente einterna de causalidade. Ao movimento negativo da determina<;ao, eleopae 0 movimepto positivo da diferencia<;ao; a unidade dialetica doUno e do Multiplo, ele opae a multiplicidade irredutivel do devir. Aquestao da constitui<;ao ou da organiza~ao do mundo, entretanto, doser do devir, leva Deleuze a colocar essas quest6es em termos ericos.Nietzsche the permite transpor os resultados da especula<;ao ontol6­gica para urn horizonre etico, para 0 campo de for<;as,do sentido e dovalor, onde 0 movimento positivo do ser torna-se a afirma<;ao do ser.

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A tematica do poder em Nietzsche prove a passagem teorica que arti­cula a ontologia bergsoniana a uma etica da expressao ativa. Espinosacobre essa mesma passagem e a estende ate a pratica. Da mesma for­ma que Nietzsche coloca a afirma~ao da especula~ao, Espinosa poe aafirma~ao da pritica, ou da alegria, no centro da ontologia. Oeleuzeargumenta que a concep~ao de Espinosa e uma concep~aoontologicada pratica; Espinosa concebe a pratica como constitutiva do ser. Nomundo pre-crftico da filosofia pratica de Espinosa, 0 pensamento deOeleuze finalmente descobre uma autonomia real em rela~ao it pro­blematica hegeliana.

Uma li~ao a ser aprendida atraves desse projeto filos6fico e a dereal~ar as nuances que definem urn antagonismo. Uma vez que cessa­mos de obnublar a questao com oposi~6escruas, e reconhecemos, emtroca, a especificidade de urn antagonismo, podemos come~ar a pro­duzir nuances mais sutis em nossa terminologia. Por exemplo, quan­do coloco a questao das fundar;oes do pensamento p6s-estruturalista,tenciono contestar a afirma~ao de que esse pensamento eapropriada­mente caracterizado como antifundacionista. Por a questao como umaoposi~ao exclusiva e, na verdade, creditar ao inimigo demasiada for­~a, demasiado terreno te6rico. 0 pos-estruturalismo de fato critica umacerta no~ao de funda~ao, mas apenas para afirmar uma outra no~ao

que e mais adequada aos seus fins. Em oposi~ao a uma funda~aotrans­cendental encontramos uma imanente; contra uma funda~ao dada,teleol6gica, encontramos uma material e aberta4• Urn cuidado simi­lar deve nuan~ar nossa discussao da causalidade. Quando observamos

4 Alguns autores come<;aram recentemente a utilizar "funda<;ao" e "fundaM

cionismo" para se referirem a uma concep<;ao idealista da plataforma necessaria eeterna que subjaz edetermina a apresenta<;ao de desenvolvimentos epistemol6gicos,onto16gicos e, por fim, eticos; e "fundamento" para se referirem a uma concep<;aomaterialista e hist6rica do humus, ou, 0 que emais apropriado, 0 sedimento geolo­gico que forma 0 contexto de nossas imerven~6es contemporaneas. Embora isso sejasemelhante adistin~ao conceitual a que me refiro, guardo reservas quanto apro­priedade dos termos "funda<;ao" e "fundamento". As metaforas organicas evocadaspor "fundamento" trazem consigo todos os problemas de uma estrutura ou ordempredeterminada e "natural". (Ver, por exempIo, a critica de Deleuze eGuattari dasestruturas radicais em "Introduction: Rhizome", A Thousand Plateaus). Alem dis­so, no contexto especifico de nosso estudo, fundamemo (Grund) assume urn papeltao central no sistema hegeliano (ver, por exemplo, Science of Logic, 444-78) quee diffcil recuperar qualquer diferen~a que pudesse marcar em rela~ao a funda<;ao.

atentamente a crftica da causalidade de Deleuze, descobrimos naoapenas uma rejei~ao poderosa da causa final e da causa formal, mastambem uma afirma~ao igualmente poderosa da causa eficiente comocentral no seu projeto filos6fico. A ontologia de Oeleuze inspira-se natradi~ao dos argumentos causais e desenvolve no~oes da "produtivi­dade" do ser e de sua "produtibilidade", quer dizer, de suas aptidoespara produzir e ser produzido. Eu argumentei que a causalidade eficien­te oferece, de fato, uma chave para uma abordagem coerente de todoo discurso de Oeleuze sobre a diferen~a. As nuances no uso de "fun­da~ao" e "causalidade" sao talvez melhor resumidas pela distin~ao

entre ordem e organiza~ao. Pela ordem do ser, da verdade, ou da so­ciedade, entendo a estrutura imposta como necessaria e eterna desdecima, de fora da cena material das for~as; utilizo organiza~ao, por outrolado, para designar a coordena~ao e acumula~ao de encontros aciden­tais (no sentido filosofico, i.e., nao necessario) e desenvolvimentos desdebaixo, do interior do campo imanente de for~as. Em outras palavras,nao concebo a organiza~ao como urn projeto de desenvolvimento oucomo a visao projetada de uma avant-garde, mas sim como uma cria­~ao imanente ou a composi~ao de uma rela~ao de consistencia e coor­dena~ao. Nesse sentido, a organiza~ao, a composi~ao de fon;as cria­tivas, esempre uma arte.

Ao lange deste estudo n6s encontraremos problemas nao resol­vidos e proposi~oes que sao poderosamente sugestivas, mas que tal­vez nao sejam claramente e rigorosamente delimitadas. Nao nos vol­tamos para Deleuze aqui, todavia, simplesmente para encontrar a so­lu~ao para problemas teoricos contemporaneos. 0 que emais impor­tante, examinamos 0 seu pensamento para investigar as propostas deuma nova problematica de pesquisa depois da ruptura p6s-estrutura­lista, para testar a nossa firmeza em urn terreno sobre 0 qual novasbases para 0 pensamento filos6fico e polftico sejam possiveis. 0 quepedimos a Deleuze, acima de tudo, eque nos ensine as possibilidadescontemporaneas da filosofia.

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NOTA PRELIMINAR:a PRIMEIRO DELEUZE: ALGUNS PRINC!PIOSMETODOL6GICOS

Na introduc;ao a Instincts e Institutions, uma coletanea de tex­tos editada por Deleuze em 1953, vemos as linhas gerais de urn pro­jeto politico e filos6fico come,ando a ganhar forma como uma teo­ria cia instituic;:3.o. "Contniria as teorias do direito que poem 0 positi­vo fora do social (direitos naturais) e 0 social no negativo (limita,aocontratual), a teoria da institui,ao poe 0 negativo fora do social (ne­cessidades) a fim de apresentar a sociedade como essencialmente po­sitiva e inventiva (meios originais de satisfac;ao)" (ix). Essa apresen­ta<;:3.o esquematica de uma teoria cia instituic;ao ja nos fornece dais ele­mentos fundamentais do projeto de Deleuze: designa 0 atague ao "ne­gativo" como uma rafefa politica e poe como 0 objeto produtivo cen­tral da filosofia a constru,ao de uma sociedade puramente positiva einventiva. Podemos desde logo reconhecer de forma latente, aqui, umapoderosa no<;:3.o de constitui<;ao e a visada sugestiva de uma teoria ra­dicalmente democnitica. Reconhecidamente, entretanto, nesse mo­menta inicial, a utilizac;ao por Deleuze do "negativo" e do "positi­vo" e urn tanto vaga e assim a proposi\=ao pode somente fornecer aintui,ao preliminar de urn projeto. Pode-se tentar Ier 0 livro de De­leuze sobre Hume, Empiricism and Subjectivity*, com 0 seu foco naassocia\=ao e na fe, como uma tentativa inicial de voltar-se diretamentepara esse projeto politico-filos6fico1. Contudo, 0 desenvolvimentogeral do pensamento de Deleuze nao segue imediatamente essa linha;torna-se claro que Deleuze percorre urn extenso desvio ontol6gico

* Foram mantidos em ingles os titulos de obras originariamente escritas emoutras linguas sempre que assim figuram no texto de Michae! Hardt, uma vez que,nesses casos, as citalfoes referem-se aversao em ingles. (N. do E.)

1 Nao tenho a intenlfao de sugerir que 0 livro de Deleuze sobre Hume edealgum modo incidental. Decidi tomar uma fatia do corpo da obra de Deleuze queachei particularmente produtiva, mas esta nao e, de modo algum, a unica manei­ra de abordar 0 seu trabalho. Simplesmente fiz 0 possive! para fazer da obra deDeleuze a minha propria obra.

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antes de chegar a esse projeto politico positivo. Nao existe a espa<;ooem os termos para esse projeto construtivo sem primeiro conduzir­se uma ampla opera~ao destrutiva. A obra inicial de Deleuze, por­tanto, sempre roma a forma de uma critica: pars destruens, pars cons­truens. Durante esse periodo, a fio condutor do pensamento de De­leuze e urn cereD persistente e implacavel ao hegelianismo, urn ata­que ao negativo. MeSilla em seu primeiro arrigo, "Du Christ a labourgeoisie", publicado quando ele tinha apenas vinte e urn anos deidade, podemos reconhecer de pronto 0 anti-hegelianismo como afor<;a propulsora do seu pensamento: afinal de contas, a que melhorcaracteriza Hegel senao a estrita continuidade entre os pensamentoscristao e burgues? E importante estabelecer e esclarecer os termos des­se antagonismo desde 0 inicio, a fim de se ganhar uma perspectiva of­tida do sentido e trajetoria do projeto global de Deleuze. Os variosmots d'ordre proelamados par Deleuze nesse periodo - a destrui<;aodo negativo, a afirma<;ao do positivo - sao despidos de seu plenapoder e significa<;ao, quando nao estao firmemente enraizados em umcompromisso antagonfstico COm relac;ao a Hegel. Como 0 proprioDeleuze assevera na leitura de Nietzsche, a fim de obter uma com­preensao adequada de urn projeto filosofico deve-se identificar con­tra quem seus principais conceitos sao dirigidos (Nietzsche and Phi­losophy 8, 162). Este, portanto, constitui a nosso primeiro principiametodologico para ler Deleuze: Reconhecer a objet~ e as termos doantagonismo principal.

o desvio de Deleuze, entretanto, e nao somente urn ataque mastambem 0 estabelecimento de urn novo terreno: a intuic;ao inicial deurn projeto politico positivo e recuperada par meio da longa passa­gem que seguiremos - de Bergson a Nietzsche e, finalmente, a Espi­nosa. Deleuze exige uma ontologia positiva a fim de estabelecer umateoria positiva da etica e da organizac;ao social. Essa longa passagempela historia da filosofia ocidental forja urn miiltiplo edificio nos pIa­nos mais altos da meditac;ao metafisica, que sustenta e informa todaa amplitude do trabalho de Deleuze. Pode-se certamente reconhecer,mesmo nesses primeiros trabalhos, urn desejo de afastar-se da filoso­fia, de sair de sua especialidade e enveredar par outros campos: bio­logia, psicologia, arte, matematica, politica, literatura. Muitos Ieem aobra de Deleuze como uma rejei<;ao do pensamento filosofico ociden­tal e, portanto, como a proposic;ao de urn discurso pos-filosofico oupos-moderno. De fato, 0 proprio Deleuze apresenta numerosas decla-

ra<;6es para substanciar tal interpreta<;a02, Contudo, quando obser­vamos mais de perto os seus argumentos, descobrimos nao apenas queo seu pensamento esta saturado de tradic;ao filosofica ocidental, mastambem que, mesmo quando seus exemplos parecem "a-filosoficos",a coed~ncia de suas posic;6es e 0 modo de explicac;ao que as sustentapermanecem nos pIanos logico e ontologico mais altos3. Se, entao, ti­vermos que ler a obra de Deleuze como urn ataque ou uma traic;ao aoselementos da tradi<;ao metafisica ocidental, temos que compreendertal postura como uma afirmac;ao de outros elementos dessa mesma tra­di<;ao. Em outras palavras, nao podemos ler a obra de Deleuze comose estivesse "fora" ou "alem" da tradic;ao filosofica, ou mesmo como

2 Brian Massumi, em minha concepc;:ao 0 melhor leitor de Deleuze, nos for~

nece urn exemplo pertinente. Em seu prefacio a A Thousand Plateaus, Massumicertamente tern razao ao insistir na oposi<;ao de Deleuze a "filosofia do Estado".Contudo Massumi (e reconhecidamente tambem Deleuze, em certas ocasioes) ten­de a exagerar a centralidade e hegemonia da "filosofia do Estado" na hist6ria dopensamento ocidental: "Filosofia do Estado e uma outra designac;:ao para 0 pensa­mento representacional que tern caracrerizado a metaffsica ocidental desde Platao"(xi). A metaffsica ocidental nao deveria ser caracrerizada de maneira tao univoca;a rradic;:ao filos6fica contern alternativas radicais em seu interior. Como resultadodessa simplificac;:ao, tambern identificamos a tendencia a exagerar a marginalidadeda tradic;:ao oposta que e cara a Deleuze; em outras palavras, mesmo que Lucrecio,Duns Scot, Espinosa etc. formem uma "minoria", no sentido de que sao parcial­mente eclipsados pela hegemonia politico~academica contemporanea da "filosofiado Estado" (Platao, Hegel etc.), essa "minoria" constitui urn dos momentos maisaltos e centrais da metafisica ocidentaL Meu ponto de vista e 0 de que deveriamosminimizar a coerencia e 0 enorme poder dessa tradi<;ao alternariva. De qualquermodo, a oposi<;ao de Deleuze a"filosofia do Estado" nao deveria ser concebida comouma oposi<;ao afilosofia ocidental tout court, mas sim como uma afirmac;:ao de seuselementos mais poderosos e lucidos. Etalvez por causa dessa confusao que muitosnos Estados Unidos se referem a Deleuze como urn pensador "p6s-moderno".

3 Depois da apresenta<;ao de Deleuze intitulada "La methode de dramatiza­tion" (0 metodo da dramariza<;ao) dianre da Societe Fran<;aise de Philosophie, seuveneravel professor Ferdinand Alquie denunciou que, baseando-se exclusivamenreem exemplos da biologia, psicologia, e outros campos, Deleuze tinha perdido acompreensao da especificidade do discurso propriamente filosOfico. Deleuze ficouvisivelmenre ferido por essa acusac;:ao e deu uma resposta emocional e afetiva: "Asua outra reprimenda me afeta ainda mais. Porque eu acredito inteiramente na especi­ficidade da filosofia e a voce mesmo devo essa convicc;:ao" (106). 0 que Alquie parecenao ter compreendido e que embora a exemplifica<;ao de Deleuze pudesse ser "naofilosOfica", seu raciocinio e explicac;:ao sao puramente filos6ficos no senso mais estrito.

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uma efetiva via de escape daquele bloco; ao inves disso, devemos en­cara.-Ia como a afirma<;ao de uma (descontfnua, mas coerente) linhade pensamento que permaneceu suprimida e latente, mas, nao obstante,profundamenre embebida nessa mesma tradi<;ao. Deleuze nao anun­cia 0 fim da metafisica, mas, ao contra.rio, procura redescobrir 0 pla­no rnais coerente e lucido do pensamento metafisic04• Se quisessemosinsistir em sua rejei~ao de uma certa forma de investiga<;ao filos6fica,teriamos que colocar a afirma<;ao de forma paradoxal e dizer (tomandoemprestado uma frase de Althusser) que Deleuze desenvolve "umateoria nao filos6fica da filosofia". De todo modo, se no curso desseestudo nossas referencias as ressonancias entre a obra de Deleuze eoutras posi~6es na tradi~ao filos6fica parecem as vezes excessivas, eprecisamente para dar enfase anatureza propriamente filos6fica de seupensamento. Aqui, entao, temos 0 nosso segundo principio metodo­16gico: Ler Deleuze filosoficamente.

A jomada de Deleuze pela hist6ria da filosofia assume forma pe­culiar. Muito embora as monografias de Deleuze sirvam como excelentesintrodu<;6es, elas nunca fornecem urn sumario compreensivo do trabalhode urn fil6sofo; ao inves disso, Deleuze seleciona os aspectos especifi­cos do pensamento de urn fil6sofo, que fazem uma contribuic;ao posi­tiva ao seu projeto naquele ponto. Como nietzschiano ou como espi­nosista, Deleuze nao aceita todo 0 Nietzsche, ou todo 0 Espinosa. Seurn fil6sofo apresenta argumentos nos quais Deleuze poderia encontrarfalhas, ele nao os critica, mas simplesmente os deixa fora de sua dis­cussao. Poderia ser dito, entao, que Deleuze e urn leitor infiel? Certa­mente que nao. Se suas leituras sao parciais, elas sao, nao obstante, muitorigorosas e precisas, com meticuloso cuidado e sensibilidade para t6picosselecionados; aquilo que Deleuze perde em abrangencia, ele ganha emintensidade de foco. Com efeito, os primeiros trabalhos de Deleuze sao

4 Podemos observar esta questao muito daramente na rela~ao de Deleuzecom Duns Scot: "Nunca houve mais que uma proposi~ao ontol6gica: 0 Ser e uni­voco. Nunca houve mais que uma ontologia, a de Duns Scotus, que atribuiu aoser uma (mica voz. Dizemos Duns Scot porque ele sabia como elevar 0 ser univo­co ao ponto mais alto de sutileza, mesmo que acusta de abstra~ao" (Differen~e:t

repetition, 52). Do ponto de vista da univocidade do ser, Deleuze encara a hlsto­ria da omologia como sendo fundamentalmente sustemada pel?S ar?umentos d:Duns Scot, Espinosa e Nietzsche (52-61). A questao central aqUl, mals uma vez, eque Deleuze nao esta se afastando da metafisica, mas, ao contrario, reafirmandoseus pontos mais elevados.

"interven<;6es pontuais" - ele faz incis6es cirurgicas no corpus da his­t6ria da filosofia. Isso nos conduz ao nosso terceiro prindpio metodo­16gico: Reconhecer a seletividade de Deleuze.

Em cada urn dos estigios dessa jomada filos6fica, Deleuze acres­centa urn ponto especifico que se constr6i a partir de resultados anterio­res, e deles depende. Cada uma das monografias filosOficas de Deleuzee dirigida para uma questao muito especifica, e, visto como urn con­junto,o desenvolvimento dessas quest6es filos6ficas revela a evolu<;aode seu pensamento. Freqiientemente, as explica<;oes de Deleuze pare­cern incompletas, porque ele pressupoe e deixa de repetir os resultad~s

de suas pesquisas anteriores. (Por exernplo, como verernos em segUl­da muitas das argumenta<;6es de Deleuze para 0 ataque de Nietzscheadialetica permanecem obscuras a menos que nelas leiamos uma c.[i­tica bergsoniana a urn movimento ontol6gico negativo.) Por consegum­te, a obra primeira de Deleuze constr6i urn tipo de hist6ria da f~laso­

fia muito estranho, no qual os elos articuladores dependem nao dahislOriografia filos6fica real mas da evolu<;ao de seu pr6prio pensamen­to. Par evolu~aoeu nao tenciono sugerir uma progressao unilinear outeleol6gica, mas sim urn tipo de processo de agrega<;ao te6rico. Enfo­car essa progressao faz real~ar 0 movimento no pensamento de Deleuze,e 0 que emerge e 0 seu pr6prio processo de educa<;ao filos6fica, seuaprendizado em filosofia. As linhas dessa jomada educativa ajudama explicar 0 desenvolvimento contra-hist6rico Bergson-Nretzsche-Espt­nosa que guia Deleuze desde a ontologia ate a etica e a politica5. Des­sa forma podemos colocar urn ultimo principia metodol6gico: Ler 0

pensamento de Deleuze como uma evolu~ao.

5 Leitores familiarizados com a obra de Deleuze podem muito bern questio­nar a ordem da evolu~ao que proponho (Bergson-Nietzsche-Espinosa) porque 0

Bergsonism de Deleuze (1966) apareceu depois de Nietzsche and Philosoph~ (1962).Podemos verificar que num artigo da fase inicial, contudo, "La conceptIOn de ladifference chez Bergson" (1956), a maior parte da leitura de Bergson por Deleuzefoi estabelecida bern antes de ele se voltar para Nietzsche. Mais importante, veri­ficamos que a leitura deleuziana de Bergson conduz logicamente a questoes queele procura resolver no estudo de Nietzsche; em troca, a leitura de Nietzsche reve­la questoes que 0 levam a estudar Espinosa. Essa e a trajet6ria que eu procuro tra­~ar desde uma logica do ser a uma etica e finalmente a uma politic~ d~ ~er. Send~

assim, eu justificaria minha proposi~ao de uma sequencia evolucIOnana tanto abase da ordem historica das considera~6es de Deleuze sobre os autores, quanto daprogressao l6gica tra~ada por seu pensamento.

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6 Mesmo sem urn exame acurado, os fatos mais gerais da biografia de De~

leuze, particularmente das coisas que ele nao fez, marcam a sua diferen'ra em rela-

Quando observamos a obra inicial de Deleuze de uma perspectivahist6rica, como uma evolw;;ao, 0 fato mais importante e que ele escreveuseu primeiro livro quando era bastante jovem (tinha 28 anos em 1953quando Empiricism and Subjectivity apareceu) e esperou entao oitoanos ate publicar seu pr6ximo livro. Oito anos poderia nao parecerurn intervalo muito longo para alguns autores, mas para Deleuze, quedepois de 1962 publicou consistentemente urn livro a cada ano, oitoanos representam uma enorme lacuna. "E como urn buraco em mi­nha vida, urn buraco de oito anos. Isso e 0 que acho interessante nasvidas, os buracosque elas contem, as lacunas, algumas vezes drama­ticas, algumas vezes nao... Talvez seja nos buracos que 0 movimentoacontece" ("Signes et evenements", 18). Esse buraco de oito anos navida intelectual de Deleuze de fato representa urn periodo de movimen­to, uma reorientall;ao dramatica em sua abordagem filos6fica. Duran­te esse periodo, com efeito, ele migra do eixo Hume-Bergson que ca­racteriza seus primeirissimos estudos, para a identidade Nietzsche­Espinosa, que transporta sua obra amaturidade. Para ler esse buracona vida intelectual de Deleuze, devemos tentar interpretar 0 que podesignificar essa reorientall;aO, que novas possibilidades proporciona aDeleuze, e como caracteriza a evolull;ao de seu pensamento.

Esse foco na evolw;ao da educa,ao filos6fica de Deleuze explicamelhor porque escolhi, no estudo que se segue, lidar exclusivamentecom os seus primeiros escritos. Nesses trabalhos Deleuze desenvolveurn vocabulario tecnico e fundamentos conceituais que Ihe serao uteisdurante toda a trajet6ria de sua carreira. As posi,oes dos ultimos tra­balhos podem parecer obscuras, ate mesmo insustentaveis, quando naoas colocamos no contexte dessas primeiras investigall;oes. De fato, al­gumas das mais espetaculares inova,oes naquilo que se poderia cha­mar de sua obra madura - os principais textos filos6ficos indepen­dentes (Difference et repetition e The Logic ofSense), as colabora,oescom Felix Guattari, os estudos sobre cinema e os trabalhos mais re­centes sao em grande parte reelabora,oes do feixe de problemas de­senvolvidos nesse periodo formativo de pesquisa intensa e independen­teo A profunda originalidade da voz de Deleuze talvez seja devida aofato de que durante esses anos ele nao estava seguindo 0 mesmo cur­so que a maioria de sua gerall;a06. Esse e 0 periodo da pesquisa sub-

~ao a quase todas as outras grandes vozes filos6ficas francesas que emergiram emsua gera<;ao: ele nunca foi membro do Partido Comunista Frances, nao freqiien~

tou a exclusivista Ecole Normale Superieure, e nunca foi fascinado pela obra deMartin Heidegger.

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terranea de Deleuze, 0 periodo no qual ele forjou novos caminhos, forada ribalta e dos lugares comuns dos debates culturais publicos fran­ceses que, talvez, Ihe tenha permitido vir atona com urn impacto taoprofundo mais tarde. Se, de fato, como suspeitava Michel Foucault,essa diferenll;a vern a marcar verdadeiramente 0 nosso seculo, se osnossos tempos se tornam de fato deleuzianos, essa obra primeira, 0Deleuze subterraneo, portara a chave para os desenvolvimentos for­mativos que tornaram possive! esse novo paradigma.

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1. A ONTOLOGIA BERGSONIANA:o MOVIMENTO POSITIVO DO SER

Na obra de Henri Bergson, pode-se esperar encontrar uma psi­cologia ou uma fenomenologia da percep<;ao. A prindpio pode pare­eer estranho, portanto, que aquila que Deleuze ali encontra seja, prin­cipalmente, uma ontologia; uma 16gica absolutamente positiva do serenraizada no tempo. Conforme observamos, pon§m, Deleuze nao sevolta diretamente para 0 projeto positivo, mas siro 0 aborda, primei­fO, por meio de urn momento cdrieo, agressivo: "Aquila que Bergsonreprova em seus predecessores..." ("La conception de la difference chezBergson", 79). Deleuze Ie Bergson como uma polemica contra a tra­di<;ao filos6fica dominante, e as falhas de seus predecessores sao en­contradas, em sua forma mais concentrada, na 16gica de Hegel; Bergsoncritica diversos argumentos filosoficos, mas por td.s de cada urn delesDeleuze identifica Hegel ocupando uma posi<;ao extrema, exagerada.Deleuze nao afirma que eurn antagonismo direto a Hegel aquilo quemove essencialmente 0 pensamento de Bergson, mas a sua leitura deBergson conserva 0 ataque a Hegel como sua propria arma critica. Nainterpreta~aode Deleuze, Bergson nao desafia os criterios centrais doser herdados da tradi<;ao ontol6gica - simplicidade, realidade, per­fei~ao, unidade, multiplicidade e assim por diante, mas, sirn, focalizao movimento ontol6gico que e posto para tratar desses criterios. "Diffe­rence" e 0 termo bergsoniano que tern urn papel central nessa discus­sao do movimento ontologico. Deverfamos estar especialrnente aten­tos para esse ponto, porque a interpreta<;ao de Bergson por Deleuze(ja formulada desde 1956) encabe<;a urn longo discurso sobre a dife­ren~a no pensamento frances, que constitui uma pedra de toque teo­rica para 0 p6s-estruturalisrno. Encontramos, aqui, urn tratamentoparticular e rigoroso do termo. N a leitura de Doleuze, a diferen<;a deBergson nao se refere tanto a uma quididade ou a urn contraste esta­tico de qualidades no ser real; ao contrario, a diferen~a marca a dina­mica real do ser - e0 movimento que funda 0 ser. Assim, a diferen~a

em Bergson relaciona-se primeirarnente com a dimensao temporal doser, nao com a sua dimensao espacial. A tarefa essencial a que Deleuze

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se prop5e na investiga~ao do conceito da diferen~a em Bergson e, por­tanto, dupla. Primeiro, ele precisa lan~ar mao da crftica de Bergson atradi,ao ontologica para revelar a fraqueza da dialetica de Hegel, e asua logica negativa do ser como uma concep,ao falsa da diferen,a. Esseataque e dirigido contra dois momentos fundamentais da l6gica deHegel: a determina,ao do ser e a dialetica do Uno e do Multiplo. Emsegundo lugar, lendo Bergson, ele precisa elaborar 0 movimento po­sitivo do ser na diferen<;a e mostrar como esse movimento proporcio­na uma alternativa viavel para a ontologia. Eprecisamente 0 momen­to agressivo contra a logica hegeliana que prepara 0 terreno para 0 mo­mento produtivo.

A obra de Deleuze sobre Bergson, todavia, apres.enta uma com­plica<;ao - e, ao mesmo tempo, uma oportunidade para 0 estudo daevolu<;ao de seu pensamento, porque e conduzida em dois perfodosdis~intos: urn nos meados dos anos 50 e outro nos meados dos anos60. a resultado mais relevante do primeiro periodo e urn artigo inti­tulado "La conception de la difference chez Bergson", que foi publi­cado em Les etudes bergsoniennes, em 1956, mas escrito pelo menosdois anos antes e apresentado a"Association des amis de Bergson" ,em maio de 1954. Esse primeiro artigo e muito dense e contem asquestaes principais de sua leitura de Bergson. Deleuze publicou doisoutros textos sobre Bergson nesse perfodo, mas nenhum deles modi­fica substancialmente 0 artigo anterior. 0 primeiro e urn capitulo so­bre Bergson para uma coleranea editada por Merleau-Ponty, Les philo­sophes celebres (1956), e 0 segundo e uma sele,ao de textos, Memoireet vie (1957). a resultado do segundo periodo dos estudos de Deleuzesobre Bergson e Bergsonism, publicado em 1966. Esse pequeno livroretoma grande parte da argumenta<;ao apresentada no artigo inicial,porem demonstra uma mudan<;a de foco e oferece alguns acrescimosmuito interessantes ainterpreta<;ao original, acrescimos que mostrama influencia do intenso perfodo nietzschiano de Deleuze nos anos in­termediarios. Essas duas fases dos estudos sobre Bergson fornecem,portanto, uma excelente oportunidade para ler a orienta~ao do pri­meiro projeto de Deleuze, porque abarcam nao somente 0 trabalhosobre Nietzsche (1962), mas tambem 0 longo hiato entre suas publi­ca<;5es,o "buraco de oito anos" que, como Deleuze sugere, pode sero lugar de uma considenivel reorienta<;ao desse projeto.

1. DETERMINA<;AO E DIFEREN<;A EFlCIENTE

1 Hegel, aparentemente, cita, aqui, a Carta 50 de Espinosa a Jarig Jelles. Nooriginal se Ie "Quia ergo figura non aliud, quam determinatio & determinationegatio est; non poterit, ut dictum, aliud quid quam negatio, esse". Que Hegel al­tere a cita~ao para simplifid.-la em fun~ao de seus prop6sitos nao euma questaoimportante; contudo, em sua interpreta~ao ele distorce completamente seu senti­do espinosista. Para uma analise extensiva dos equivocos de Hegel na leitura do"negativismo" de Espinosa, ver Pierre Macherey, Hegel ou Spinoza, pp. 141 ss.

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A primeira leitura de Bergson feita por Deleuze e centrada em urnataque ao processo negativo de determina<;ao. 0 espectro que rondaessa questao em toda a filosofia moderna e a leitura e a critica deEspinosa feita por Hegel. Hegel toma uma frase de uma das cartas deEspinosa e, voltando-a contra Espinosa, faz dessa frase uma maximacentral de sua l6gica: "Omnis determinatio est negatio" (Science ofLogic, 113).1 Esta frase descreve, para Hegel, 0 processo de determi­na,ao e 0 estado da determinidade. A Logica come,a com 0 puro serem sua simples imediatidade; mas este ser simples nao tern qualquerqualidade, qualquer diferen,a - e vazio e equivalente ao seu oposto,o nada. Enecessario que 0 ser negue ativamente 0 nada para marcara sua diferen~a. 0 ser determinado subsume essa oposi<;ao, e essa di­feren~a entre 0 ser e 0 nada em seu proprio nllcIeo define a funda~ao

das reais diferen,as e qualidades que constituem a sua realidade. Anega,ao define esse estado de determinidade em dois sentidos: e urncontraste estatico baseado na finitude das qualidades e urn conflito di­namico baseado no antagonismo das diferen,as (ver Taylor, 233-37).No primeiro sentido, a determinidade envolve a nega<;ao porque asqualidades sao limitadas e assim contrastam, ou negam passivamen­te,o que e outro de si mesmas (no sentido em que 0 vermelho nega 0

verde, 0 amarelo etc). No segundo sentido, entretanto, ha uma nega­<;ao ativa que anima a determinidade, porque determinadas coisas es­tao em uma intera~ao causal umas com as outras. A existencia de algoea nega<;ao ativa de algo mais. Por conseguinte, mesmo 0 estado dedeterminidade eessencialmente urn movimento negativo. Tal insistenciaem urn movimento negativo de determina~ao e tambern ° nucleo dacritica de Hegel a Espinosa. Uma vez que 0 ser de Espinosa e absolu­tamente positivo, melhor dizendo, uma vez que °puro ser de Espinosanao nega ativamente 0 nada e nao prossegue por meio de urn movi-

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mento negativo, falta-Ihe a diferen,a fundamental que poderia defi­mr a sua real existencia. Aos olhas de Hegel, a ontologia de Espinosae qualquer ontologia positiva e afirmativa deve permanecer abstratae indiferente. "Pressupoe-se que a realidade assim concebida (comoperfei,ao e afirma,ao) sobreviva quando toda a nega,ao tenha sidodescartada; mas faze-Io e abolir toda a determinidade" (Science ofLogic, 112). Simplesmente a nega,ao nao pode ser passivamente "des­cartada", sustenta Hegel, mas cleve ser envolvida ativamente e real­mente negada - esse e 0 papel do processo de determina,ao. Conse­qiientemente, finalmente, inevitavelmente, porque 0 ser de Espinosanao eposto contra 0 nada como 0 seu oposto, e sim dissolve-se no nada,tal como acontece com 0 pr6prio Espinosa na imagina<;ao romanticade Hegel: "A causa de sua morte foi uma consump,ao, da qual sofre­ra durante muito tempo; isso se harmonizava com 0 seu sistema filo­sofico, segundo 0 qual toda particularidade, toda singularidade desa­parece na unidade da substancia" (Lectures on the History of Philo­sophy, 257). Essa polemica Contra Espinosa constitui urn dos mais for­tes argumentos de Hegel em favor do movimento ontol6gico cia ne­ga~ao: 0 ser naD determinado pela nega<;ao permanecera indiferente eabstrato e, finalmente, uma vez que naD eposto como diferente de seuoposto, desaparecera. no nada. Hegel insiste em que se tivermos quereconhecer a diferenr;a, a diferenr;a real que caracteriza a particularida­de e a individualidade do ser, devemos primeiro reconhecer 0 movimen­to negativo do ser; ou, ainda, devemos desaparecer, junto com Espi­nosa, no "acosmismo", na indiferenr;a da ontologia pura e positiva.

A primeira leitura de Bergson por Deleuze parece aceitar a for­mular;ao de que a determinar;ao do ser deve ser caracterizada pela ne­ga~ao~ Ao inves de desafiar tal formular;ao, Deleuze assevera que 0

propno processo de determina,ao ontologica solapa a fundamenta­,ao real do ser; ele afirma que a diferen,a constituida pelo movimen­ro negativo da determina,ao e uma no,ao falsa da diferen,a. Pot isso,o processo de determinar;ao tanto destroi a natureza substancial doser quanto fracassa na apreensao da concretude e especificidade doser real. Aqui, com a rejei~ao da determina~ao, podemos reconhecera abordagem anti-hegeliana da obra inicial de Deleuze, sua rea~ao adialetica da negar;ao. Nesse processo, contudo, 0 metodo cdtico deDeleuze assume uma fei~ao interessante. Ele nao ataca a dialetica di­retamente, mas introduz, ao inves disso, uma terceira posi~ao filos6­fica que ele localiza entre Bergson e a dialetica. Deleuze emprega esse

inimigo proximo na falha espedfica que marca sua insuficiencia eprossegue no sentido de demonstrar que Hegel, 0 inimigo fundamen­tal, leva essa falha ao seu ponto mais extremo. Nos estudos sobreBergson, Deleuze envolve 0 mecanicismo e 0 platonismo como inimi­gos proximos e, no estudo sobre Nietzsche, ele recorre a Kant. A van­tagem que h:\ em dirigir-se primeiro a esses inimigos proximos e a deque eles fornecem uma base comum sobre a qual elabora 0 ataque quepode ser subseqiientemente estendido a dialetica. De faro, amedidaque 0 pensamento de Deleuze se desenvolve, veremos uma dificulda­de cada vez maior de encontrar urn terreno comum para nos dirigir­mos a posi,ao hegeliana. Mais importante, ainda, esse metodo detriangular;ao nos mostra que mesmo nessa obra inicial Deleuze ternuma rela,ao problemarica com a oposi,ao. Eclaro que Deleuze estaatacando a dialetica como 0 inimigo fundamental, mas esse metodolhe permite adotar uma postura obliqua com rela,ao a Hegel, de talforma que ele nao tern que se colocar em oposir;ao direta.

Tal como Bergson, as mecanicistas tentam teorizar uma evolu­r;ao empirica das diferenr;as do ser, mas, ao faze-Io, 0 mecanicismo des­troi a qualidade substancial e necessaria do ser. 0 desafio bergsonianode Deleuze ao mecanicismo toma a forma de uma proposi<;ao curio­sa: para que 0 ser seja necessario, ele tern que ser indeterminado. Essadiscussao da determinar;ao ontologica gera uma analise sobre a natu­reza da diferen,a. A forma da diferen,a proposta pelo processo de de­terminar;ao, argumenta Deleuze, permanece sempre externa ao ser eassim deixa de fornecer-lhe uma funda,ao essencial e necessaria. Es­tes sao as termos que Deleuze utiliza para criticar a determina<;ao sim­ples do mecanicismo: "Bergson demonstra que a diferen~a vital e umadiferen<;:a interna. Mas, ao mesmo tempo, essa diferen<;:a interna naopode ser concebida como uma simples determinafiio: uma determina­r;ao pode ser acidental, ao menos pode sustentar 0 seu ser somente pormeio de uma causa, de uma finalidade ou de urn acaso [elle ne peuttenir son etre que d'une cause, d'une fin ou d'un hasard], e assim im­plica uma exterioridade subsistente" ("La conception de la differencechez Bergson", 92). Enquanto tenta tra,ar a evolu,ao da realidade, umadetermina,ao mecanicista do ser destroi a necessidade do ser. A dife­ren,a externa da determina,ao depende sempre de urn "outro" (comocausa, finalidade ou acaso) e assim introduz uma qualidade acidentalno ser; em outras palavras, a determina<;ao implica uma mera exte­rioridade subsistente, nao uma interioridade substancial.

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Imediatamente, entretanto, temos que considerar intrigante a ex­plicat;ao de Deleuze. Com efeito, Deleuze reverteu, aqui, os termos daproblematica ontol6gica tradicional. Ele nao questiona a maneira pelaqual 0 ser pode ganhar determinabilidade, como 0 ser pode sustentara sua diferent;a, mas sim como a diferen<;:a "pode sustentar 0 seu ser[peut tenir son etre]". Deleuze atribui a diferenc;a urn papel radical­mente novo. A diferent;a funda 0 ser; proporciona ao ser a sua neces­sidade, a sua substancialidade. Nao podemos compreender esse argu­mento da supremacia da diferen<;:a interna sobre a diferen<;:a externa amenos que reconhec;amos 0 papel ontol6gico fundamental que a dife­ren<;:a echamada a representar. Eu sugeriria que podemos compreen­der melhor a explicaC;ao de Deleuze atraves de uma referencia as con­cepc;6es escolasticas da centralidade onto16gica da causalidade e da pro­dutividade do ser2. Em muitos aspectos Deleuze Ie a ontologia de Berg­son como urn escolasticismo no qual 0 discurso sobre a causalidade esubstituido por uma discussao da diferenc;a3. Nao temos que nos afastar

2 A obra dos escoListicos (de Roger Bacon e Duns Scot a William Ockham e,muito mais tarde, Francisco Suarez) atribui importincia ontol6gica central a causa­lidade e aprodutividade do ser. 0 que considero mais importante em rela~ao a obrade Deleuze e 0 modo escohistico de reflexao ontol6gica e os criterios que estabelecepara 0 ser. 0 poder, a necessidade, a perfeir;ao, a realidade e a univocidade do sersao todos estabelecidos por argumentos causais; a essencia divina e uma capacida~

de produtiva - existe como causa primeira, a causa eficiente de tudo. (Ockhamacrescenta que Deus nao e apenas a causa eficiente mas a causa imediata de tudo.)Como explica Etienne Gilson em rela~ao a Duns Scot, nas fundar;6es da ontologiaescolastica estiio as propriedades complementares do ser: "'causalidade' e 'pro~

dutibilidade', ou as aptid6es para produzir e ser produzido" (La phiLosophie au MoyenAge, 595). No curso dessas discuss6es ontol6gicas, os escolasticos tern urn cuidadometiculoso na elaborar;ao e na observar;ao dos princfpios da causalidade. Algunsdesses princfpios mostrar-se~ao especialmente uteis para a nossa discussao: (1) urnefeito nao pode ter mais perfeir;ao ou realidade que a sua causa; (2) uma coisa naopode ser a causa necess'aria de algo fora de si mesma. Finalmente, enquanto a causaeficiente ea principal no que diz respeito as provas da existencia de Deus, os esco~

Iasticos em geralmantem os quatro generos de causa herdados de Arist6teles (material,formal, eficiente e final) como causas reais, muito embora alterem a significado dosgeneros de forma significativa. Para uma analise detalhada dos generos de causa verFrancisco Suarez, Disputaciones metafisicas, Disputaci6n X, Secci6n III.

3 Nao nos deve surpreender, naturalmente, que encontremos ressonancia esco~

listica no estudo de Deleuze sobre Bergson, dado 0 interesse deDeleuze na Escolastica(particularmente em Duns Scot) e 0 conhecimento amplo que tinha Bergson de Arist6­teles. Bergson escreveu sua tese em latim sobre 0 conceito de lugar em Arist6teles.

muito do texto para ler a afirma<;:ao de que a determinac;ao "podeapenas sustentar 0 seu ser atraves de uma causa, uma finalidade, o'uurn acaso" como urn ataque as tres concep<;:6es da causalidade que saoinadequadas a fundac;ao do ser: (1) material- uma causa puramentefisica que ocasiona urn efeito externo; (2) final- uma causa que serefere a uma finalidade ou meta na produC;ao de seu efeito; (3) acidental- uma causa que tern uma rela<;:ao completamente contingente como seu efeito. 0 que e central em cada caso e que a causa permaneceexterna a seu efeito e assim pode apenas sustentar a possibilidade doser. Para que 0 ser seja necessario, a causa ontol6gica fundamental deveser interna ao seu efeito. Essa causa interna e a causa eficiente quedesempenha 0 papel central nas fundac;6es ontol6gicas da Escolastica.Alem disso, somente a causa eficiente, em razao de sua natureza in­terna, e que pode SuStentar 0 ser como substancia, como causa sui 4.

No contexto bergsoniano, portanto, poderfamos dizer que a diferen­c;a eficiente e a diferen<;:a que e0 motor interno do ser: ela sustenta anecessidade do ser e a real substancialidade. Por meio dessa dinamicaprodutiva interna, 0 ser da diferen<;:a eficiente ecausa sui. A determi­nac;ao do mecanicismo nao pode preencher esse pape! porque econs­titufda por uma causalidade externa e material. Deveriamos sublinhar,aqui, que a argumenta<;:ao de Deleuze certamente nao e uma crftica dacausalidade tout court, mas sim uma rejei<;ao das concep<;:6es exter­nas da causa em favor de uma no<;ao interna e eficiente.

4 Em Espinosa encontramos duas importantes modificar;6es dessa relar;aoescoIastica eorre 0 ser e a causalidade: (1) Deus nao euma causa primeira sem causa,mas causa de si mesmo, causa sui; (2) somente causas eficientes sao aceitas comocausas reais. Espinosa herda a primeira mudan~a de Descartes, e Etienne Gilsonexplica c1aramente como essa modifica~ao da doutrina escoIastica nao etanto urnafastamento quanto eurn refinamento do raciocfnio escolastico que serve para in­tensificar a intima rela~ao entre causalidade e 0 ser real. "Se tudo tern uma causa,Deus tern causa; se Deus nao tern causa, nao se pode dizer que tudo tern causa econsequentemente nao se pode provar a existencia de Deus pelo principio da cau­salidade. E por isso que a prova cartesiana, ao inves de ser a prova de uma Causaprimeira que nao tern nenhuma causa, ea prova de uma causa primeira que e cau­sa de si mesma; pelo Deus Escolastico da pura a¥ao ele substitui 0 Deus que e cau­sa sui que sera mais tarde apreendido por Espinosa" (Discours de La methode, edir;aode Gilson, 327). A segunda modifica~ao que encontramos em Espinosa, a rejeir;aodas causas formal e final, e dirigida contra Descarres. Ver Etica, IP34-36 e Apen­dice I. (Para uma explicar;ao das abrevia~6es nas referencias a obra de Espinosa,ver capitulo III, nota 4).

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Depois de haver exposeo os termos de urn ataque a diferen<;aexterna da determina<;ao com a critica do mecanicismo, Deleuze em­prega Platao, urn segundo inimigo proximo, para refinar 0 ata~ue.

Deleuze reconhece que Piatao tern em comum com Betgson 0 proJetode construir uma filosofia da diferen<;a ("La conception de la differencechez Bergson", 95) mas 0 que Deleuze questiona em Platao e0 principioda finalidade. Mais uma vez, a critica focaliza a natureza externa dadiferen<;a, utilizando 0 criterio ontol6gico como medida. Em Bergson,a diferen<;a e movida par urn motor interno (que Bergson chama deintui<;ao), enquanto em Platao essa fun<;ao e preenchida apenas por umainspira<;ao externa da finalidade: a diferen<;a da coisa pode apenas serexplicada por sua destina<;ao, 0 Bern (95). Se traduz1rmos essa aflrma­<;:3.0 em urn discurso causal, podemos dizer que Platao tenta fundar 0

ser na causa final. Embora Bergson, como Platao, nao conceba as ar­ticula<;6es da realidade em termos de fun<;6es e fins, em Bergson naoha separac:;ao entre a diferen<;a e a coisa, entre a causa e 0 efeito: "Acoisa e a finalidade correspondente sao de fato uma e a mesma... Naohi mais lugar para falar sobre urn fim: Quando a diferen<;a se torna apropria coisa, nao ha mais lugar para se falar que a coisa recebe a suadiferen<;a de urn f1m" (96). Mais uma vez, a discussao da diferen<;a eperfeitamente consistente com urn argumento onto~6gico ca~sal: adiferen<;a eficiente de Bergson e contrastada com a d1feren<;a fmal dePlatao. A chave para 0 argumento gera, assim como 0 fez com 0 me­canicismo, a necessidade de a diferenc:;a vir a sustentar uma naturezasubstancial, gera a centralidade ontol6gica dessa diferen<;a. Bergsonapresenta a diferenc:;a como causa sui, sustentada par uma dinamicainterna, enquanto a diferenc:;a, em Platao, e forc:;ada a depender dosuporte externo da finalidade. Portanto, a diferenc:;a plat~nica nao ecapaz de sustentar 0 ser em sua substancialidade e necessld~de.

Essa explica<;ao das falhas do mecanicismo e do platomsmo nosfornece os meios de compreender a distinc:;ao bergsoniana que Deleuzeacha tao importante, entre "diferen<;as de natureza" e "diferenc:;as degrau". "0 que Bergson reprova essencialmente em. seus predecess~­res nao e terem eles visto as diferen<;as de natureza reals. (... ) Onde havladiferenc:;as de natureza, eles apenas reconheciam diferenc:;as de grau"(79). As vezes, parece que Deleuze e Bergson usam esses termos paradistinguir entre diferen<;as qualitativas e quantitativas, mas, dada es­pecialmente a afirmac:;ao devastadora sobre a originalidad~ dessa con­cep<;ao na historia da filosofia, essa interpreta<;ao se mostra madequada.

A1canc:;aremos uma perspectiva muito mais esclarecedora se nos refe­rirmos, mais uma vez, atradic:;ao dos argumentos escolasticos causais:"As diferen<;as de natureza" aparecem como aquelas diferen<;as queimplicam necessidades e substancia, correspondendo a causae per seescolastica; assim, "diferenc:;as de grau" sao aquelas que implicam aci­dentes, causae per accidenss. "Pensar a diferenc:;a interna como tal,como pura diferenc:;a interna chegar a urn puro conceito de diferenc:;a,elevar a diferenc:;a ao absoluto e este 0 sentido do esforc:;o de Bergson"(90). Embora 0 mecanicismo e 0 platonismo consigam, de fato, pen­sar a diferen<;a, chegam apenas a diferen<;as contingentes (per accidens);a concep<;ao de Bergson da diferenc:;a interna nos leva a reconhecer asdiferen<;as substanciais (per sej.

o hegelianismo, contudo, e 0 alvo fundamental que encontramosna base de cada uma dessas criticas; Hegel e aquele que leva a exterio­ridade da diferen<;a ao seu extremo. "Pode-se mesmo, baseando-se emalguns textos de Bergson, antecipar as objec:;6es que ele faria adialeticado tipo hegeliano, da qual ele se distancia mais que da·de Platao" (96).Poder-se-ia esperar que, tomando a critica da finalidade.plat6nica comouma introdu<;ao, Deleuze montasse urn ataque acausa final e ateleologiaem Hegel- na verdade ele ji tern as armas para este ataque asua dis­posic:;ao. Ao inves disso, ele retorna ao processo de determinac:;ao e aomovimento negativo basico da dialetica, ao momento de fundac:;ao da16gica de Hegel. "Em Bergson (... j a coisa difere de si mesma primeira,imediatamente. Segundo Hegel, a coisa difere de si mesrna porque di­fere primeiro de tudo aquilo que nao 0"(96). Em Bergson, a coisa dife­re imediatamente de si mesma; em outras palavras, a diferenc:;a da coi­sa e sustentada por uma produ<;ao interna, eficiente. 0 erfO comum domecanicismo e do platonismo e que ambos concebem a diferenc:;a comodependente de urn suporte externo; contudo, cada urn deles idenrificasuportes externos especificos (uma coisa material externa no mecanicis­mo e uma func:;ao ou finalidade em Platao), e assim a exterioridade dadiferen<;a em cada caso e limitada. A dialetica hegeliana leva a diferen­c:;a externa ao seu extrema, aexterioridade absoluta, "a contradi<;aoradical". A dialetica apresenta a coisa diferindo de uma outra ilimita-

5 Duns Scot estabelece urna divisao bisica entre causae per se que sao es­sencialrnente ordenadas e causae per accidens que sao acidentalrneme ordenadas.Ver Philosophical Writtings, p. 40.

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da, "com tudo que nao e" - isso e exterioridade absoluta. Com efei­to, se ignorarmos a questao da historiografia, Hegel parece juntar oserros do mecanicismo e do platonismo e repeti-Ios em sua forma puraao levar a diferen<;a externa ao seu extremo.

A critica bergsoniana e 6bvia quando focalizamos a causalidadeque a dialetica implica. Desde os primeiros momentos da Science ofLogic, do puro ser ao nada, ao ser determinado, a dialetica e consti­tuida por uma dinamica em que a causa e absolutamente externa aoseu efeito: essa e a essencia de uma dialetica da contradi<;ao. 0 pro­cesso de media<;ao no oposto depende necessariamente de uma cau­salidade externa. Como tal, a logica do ser em Hegel e vulnerivel auma resposta escolastica: uma concep<;ao do ser fundada em uma causaexterna nao pode sustentar a necessidade ou a substancialidade do serporque uma causa externa ao seu efeito nao pode ser necessaria; assucessivas media<;6es externas que fundam 0 ser dialetico nao podemconstituir causae per se, mas devem, ao inves disso, ser reconhecidascomo causae per accidens. Assim, em virtude da contingencia dessemovimento causal externo, 0 ser da dialetica e 0 caso extremo de uma"exterioridade subsistente". 0 nueleo de urn ataque bergsoniano aoconceito hegeliano de media<;ao dialetica e, ponanto, que esta nao podesustentar 0 ser como necessario e substancial.

A dialetica hegeliana nao s6 introduz 0 acidente no ser, como 0

fizeram 0 mecanicismo e 0 platonismo, como tambem deixa de apreen­der a concretude e singularidade do ser: "Agora, se a obje<;ao queBergson poderia levantar contra 0 platonismo era a de que este per­manecera uma concep<;ao da diferen~a que eainda externa, a obje<;aoque ele faz a uma dialetica das contradi<;6es e que esta permanece umaconcep<;ao da diferenra que e apenas abstrata" (96-97). A logica des­se ataque subsequente nao fica imediatamente clara. Como se pode de­duzir que a diferen<;a da diferen<;a dialetica e abstrata meramente dacondi<;ao de que seu suporte e absolutamente externo? Deleuze fun­damenta essa afirma<;ao citando Bergson na logica da percep<;ao ex­terna: "Dificilmente h" realidade concreta sobre a qual nao se possater ao mesmo tempo duas maneiras de ver opostas e que nao se sub­suma, por conseguinte, aos dois conceitos antagonistas... Essa com­bina<;ao (de dois conceitos contradit6rios) nao pode apresentar nemuma diversidade de grau, nem uma variedade de formas: ou e ou naoe" (96-97, citado de La Pensee et Ie Mouvant, 198,207). Mais umavez 0 argumento e melhor entendido em termos de causalidade. Pri-

meiro, Bergson afirma que uma dialetica de opostos permanece umamera "combina<;ao" de dois termos, nao uma sintese, porque os ter­mos continuam absolutamente externos entre si e assim nao podemformar uma cadeia causal coerente e necessaria. Essa aCllSa<;aO se fun­damenta, mais uma vez, no principio de causalidade: urn efeito naopode conter mais realidade ou perfei<;ao que a sua causa. 0 nucleo deurn ataque bergsoniano ao conceito hegeliano de sintese dialetica e,portanto, que 0 seu resultado deve permanecer contingente e abstrato.

Ate esse ponto, consideramos 0 ataque bergsoniano de Deleuzeao movimento ontol6gico negativo de Hegel na forma como e apre­sentado na primeira fase dos estudos de Deleuze sobre Bergson e, prin­cipalmente, no artigo "La conception de la difference chez Bergson".Deleuze atribuiu 11 diferen<;a urn papel ontologico fundamental e, en­tao, construiu uma escala para avaliar varias concep<;6es da diferen<;abaseadas em sua capacidade de preencher essa fun<;ao. Nos descobri­mos que, por causa das exigencias ontol6gicas em seu nueleo, a dis­cussao de Deleuze da diferen<;a pode ser claramente compreendida sefor continuamente referida a urn discurso ontol6gico escoIastico so­bre a causalidade. A diferen<;a interna de Bergson, aparecendo comouma causalidade eficiente, apreende diferen<;as de natureza ou diferen­<;as que sustentam a substancia em sua necessidade e realidade; a di­feren<;a externa apresentada pelos inimigos pr6ximos, °mecanicismoe 0 platonismo, e capaz apenas de portar diferen<;as de grau que naopodem sustentar 0 ser como necessario; finalmente, a dialetica he­geliana, com 0 seu movimento negativo absolutamente externo, naopode apreender quer diferen<;as de natureza quer diferen<;as de grau- 0 ser da dialetica permanece nao apenas contingente mas tambernabstrato. "Aquilo que nao porta nem graus nem nuances euma abs­tra<;ao" (97)6. 0 movimento negativo da determina<;ao dialetica, em­bora pretendendo estabelecer a base para a diferen<;a real, na verdade

6 A discussao de Deleuze estabelece impliciramenre uma divisao fundamen­tal na tradir;ao filos6fica que aparece hisroricamente como urn antagonismo cadavez mais radical entre 0 platonismo e 0 arisrotelismo. Por urn lado, Hegel herdaos enos da ontologia plat6nica e os exagera, levando-os ao extremo. Por outrolado, os escolasticos e Bergson aperfeir;oam cominuameme a 16gica do ser arisro~

telica. 0 perfil esquematico da hist6ria da filosofia aqui sugerido tern, porramo,urn eixo de Plarao a Hegel e outro eixo orientado em direr;ao inteiramente dife­rente, desde Arist6teles ate os escoIasricos e, finalmente, a Bergson.

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ignora toda a diferen<ra. Deleuze conseguiu virar de cabe<ra para bai­xo 0 argumento de Hegel em favor da detetminac;ao. Hegel prop6e 0

movimento negativo da determinac;ao na base da acusac;ao de que 0

movimento positivo em Espinosa permanece abstrato e indiferente;aqui, contudo, a base de uma argumentac;ao ontol6gica chissica, De­leuze volta a acusac;ao de abstrac;ao contra Hegel e afirma que a de­terminac;ao dialetica ignora a diferenc;a: "Substituiu-se pela diferenc;ao jogo da determinac;ao" (96).0 projeto antagonistico contra Hegele c1aramente a forc;a motriz desse argumento. Quando Deleuze sus­tenta que "nao ape~as a diferen<ra vital nao e uma determina<rao, mas,muito ao contra.rio, dada a escolha, seria a pr6pria indetermina<;ao"(92), fica muito claro "contra quem" esses conceitos sao dirigidos. Defato, a aceita<;ao do termo "indetermina<;ao" para descrever a diferenc;ade Bergson deveria ser lida principalmente comouma refutac;ao do mo­vimento negativo da dialetica. Deveriamos observar que esse artigo ini­cial e a unica ocasiao na qual Deleuze ataca diretamente a dialeticahegeliana, nos pr6prios termos dessa dialetica, e talvez por essa razaoseja a sua critica mai-s poderosa. Mais tarde, quando Deleuze volta aatacar a dialetica na segunda fase dos estudos sobre Bergson, em suaobra sobre Nietzsche ou em Difference et repetition, ele sempre visauma extrapolac;ao ou derivac;ao da dialftica.

Essa fundac;ao antagonistica direta ja levanta, contudo, urn serioproblema: a oposic;ao radical adialetica parece forc;ar-nos a Ier 0 serbergsoniano como "indeterminado" no sentido hegeliano. N6s desco­briremos mais tarde, entretanto, que as afirmac;6es de Hegel sobre osatributos do estado de ser determinado - qualidade, finitude e reali­dade sao igualmente afirmados pelo ser da diferenc;a interna de Bergson7.

7 Pode parecer, nesse ponto, que 0 real amagonismo entre Bergson e Hegelreside nao tanto nas afirmas:6es quanto aos estados do ser (determinidade e dife­rens:a), mas nos processos que objetivam alcanc;a-los (determinac;ao e diferencia­s:ao). Essa linha de raciocfnio poderia nos levar a dizer que Bergson esra adorandoos fins de Hegel mas critica seus meios. Contudo, essa tentativa de distinguir en­tre processo e estado adquirido euma distars:ao tanto de Hegel quanto de Bergson.Conforme observamos anteriormente, em Hegel, 0 estado de determinidade enaoapenas fundado par urn processo de negac;ao, mas econstitufdo pelo movimentocontinuo dessa dinamica. De forma semelhante, a diferenc;a de Bergson refere-senao a uma qiiididade esratica mas a urn movimento continuo no tempo. Tanto Hegelquanta Bergson apresentam filosofias do tempo nas quais nenhurna distinc;ao efe­tiva pode ser estabelecida entre estado e processo.

Deleuze sente a necessidade de corrigir essa impressao falsa, advertin­do-nos a nao confundir "indeterminac;ao" bergsoniana com irracio­nalidade ou abstrac;ao: "Quando [Bergson] fala sobre determinac;ao elenao nos convida a abandonar a razao, mas a chegar averdadeira ra­zao da coisa no processo de autoproduc;ao, a razao filos6fica que naoe determinac;ao e sim diferenc;a" ("Bergson" 299). N6s descobriremos,de fato, que a "indeterminac;ao" tern muito pouco a ver com a "deter­minac;ao de Hegel", mas esra na verdade relacionada a uma ideia dacriatividade e originalidade do ser real: "l'imprevisible", "0 imprevisi­vel". 0 termo de Bergson nem e consistente com 0 de Hegel, nem lhee oposto. Retornaremos as especificidades da ontologia positiva de Berg­son; e suficiente, neste momento, reconhecer a forc;a e as conseqiien­cias iniciais da fundac;ao antagonistica do argumento de Deleuze.

2. MULTIPLICIDADE NA PASSAGEM DA

QUALIDADE PARA A QUANTIDADE

Quando Deleuze retorna a Bergson, nos meados dos anos 60, paraescrever Bergsonism, ele retoma novamente muitos dos seus argumen­tos iniciais, mas a sua fundamentac;ao polemica altera-se ligeiramen­teo A analise ainda contem urn ataque ao movimento negativo da de­terminac;ao, mas agora 0 foco critico central e dirigido ao problemado Uno e do Multiplo. Essa reorientac;ao, contudo, de modo algummarca uma ruptura com a analise inicial, mas simplesmente uma pro­gressao: podemos imaginar que Deleuze tao somente prosseguiu emsua leitura da "Doutrina do Ser" na Science of Logic de Hegel, pas­sando do capitulo 2, sobre 0 ser determinado, ao capitulo 3, sobre aconstru<;ao do ser-para-si por meio da relac;ao dialftica do Uno e doMultiplo. Eainda a oposic;ao a problematica ontologica de Hegel quefornece a dinamica a exposic;ao de Deleuze sobre a posic;ao de Bergson:ecomo se Deleuze descesse rnais urn nivel para dentro da logica doser de Hegel, tendo Bergson, 0 seu Virgilio, ao seu lado.

Nao e de surpreender, por conseguinte, que quando De1euze abordao problema do Uno e do Multiplo no Bergsonism, a sua critica da so­lw;ao dialetica seja muito similar acritica inicial ao processo de deter-'mina'.;ao dialetico. "Ha muitas teorias em filosofia que combinam 0 unoeo multiplo. Elas tern em comum a caracteristica de afirmarem recons­truir 0 real com ideias gerais" (Bergsonism, 43-44). Deleuze nos da dois

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exemplos desse movimento negativo generalizante: "Dizem-nos que 0

Eu e uno (tese) e e multiplo (antitese), entao e a unidade do multiplo(sintese). Ou entao nos dizem que 0 Uno ja e multiplo, que 0 Ser passaao nao-ser e produz 0 devir" (44). Deleuze tern tres argumentos pron­tos em seu arsenal desde 0 ataque inicial adetermina<;ao. 1) A contradi<;aoe uma rna leitura da diferen<;a, que somente pode ser alcan<;ada colo­cando-se termos gerais e imprecisos que sao abstraidos da realidade.o ser em geral, 0 nao-ser em geral, 0 Uno em geral, 0 Multiplo em geral:esses termos sao por demais abrangentes, por demais abstratos paraapreender a especificidade e a singularidade da realidade; sao talhadosem moldes muito largos e aderem frouxamente a realidade, tal comodiz Bergson, "como roupas frouxas" (44).2) 0 movimento negativoda dialetica viola as rela<;6es reais do ser. "Bergson critica a dialeticapor ser urn falso movimento, quer dizer, urn movimento do conceitoabstrato, que vai de urn oposto ao outro s6 por meio de uma impreci­sao" (44). 3) Conforme constatamos anteriormente, as polemicas so­bre movimentos falsos e reais do ser tern 0 seu fundamento em argu­mentos ontologicos causais: a dialerica da contradi<;ao pode apenas impli­car causae per accidens. Finalmente, a sintese dialetica nao pode apreen­der 0 plano da realidade combinando conceitos abstratos opostos:

De que serve uma dialetica que se acredita reunificadacom 0 real, quando compensa pela inadequa<;ao de urn con­ceito que e ample demais ou por demais geral, invocandoo conceito oposto, que e nao menos amplo e geral? 0 con­creto nunca sera atingido pela combina<;ao da inadequa<;aode urn conceito com a inadequa<;ao de seu oposto. 0 sin­gular nunca sera atingido pela corre<;ao de uma generalidadecom outra generalidade. (44)

Conforme observamos, 0 principio de que urn efeito nao pode con­ter mais realidade do que a sua causa nega 0 poder da sintese dialeticade passar da abstra<;ao arealidade, da generalidade asingularidade.

Devemos nos deter urn momento, contudo, para avaliar a carac­teriza<;ao da dialerica por Deleuze. "0 Eu e uno (tese) e e multiplo (an­titese), portanto e a unidade do multiplo (sintese)" - certamente 0

tratamento dado por Hegel ao Uno e ao Multiplo e muito mais com­plexo do que isso. Estaria Deleuze simplesmente armando urn espan­talho? Urn hegeliano poderia muito bern objetar que a caracteriza<;ao

de Deleuze eapresentada de "forma impropria", uma vez que expres­sa 0 Uno e 0 Multiplo como proposi~oes:"Essa verdade deve ser apreen­dida e expressada apenas como urn devir, como urn processo, uma re­pulsao e uma atra<;ao - nao como 0 ser, que em uma proposi~ao terno carater de uma unidade esravel" (Science of Logic, 172). Essa e defato uma acusa~ao v<iJida adialetica caricaturada de Deleuze; vimos,em outras ocasioes, contudo, que a principal acusa~ao de Deleuze naoea de que a dialetica nao consegue reconhecer 0 ser em termos de umadinamica, de urn processo, mas sim que 0 movimento da dialetica e urnfalso movimento. Aventuremo-nos na complexidade do argumento deHegel, entao, a fim de apreciar a validade do ataque de Deleuze. ParaHegel, 0 movimento entre 0 Urn e 0 Multiplo representa urn nivel rna isalto de media~ao que 0 do movimento da determina<;ao e constitui umapassagem logica da qualidade aquantidade do ser. 0 ser determinado,o resultado de desenvolvimento anterior, cede lugar aunidade abstra­ta e posta do ser-para-um. Esse Urn penetra no dominio quantitativopelo processo dialetico da repulsao e atra~ao, que e simultaneamenteinterno e externo em seu complexo movimento de auto-rela<;ao:

"0 urn, enquanto relacionado infinitamente a si mes­ma - infinitamente, isto e, enquanto nega~ao de nega<;aoposta - e a media<;ao na qual ele repele de si mesmo seuproprio si enquanto seu absoluto (isto e, abstrato) ser-ou­tra (os muitos); e enquanto se relaciona negativamente a esteseu nao-ser, isto e, suprimindo-o, ele e somente rela~ao asi; 0 urn e somente este devir no qual ele nao mais e deter­minado como tendo principia, isto e, ele nao mais e postacomo urn imediato, urn ser afirmativo, e nem tampoucocomo urn resultado, como tendo restabelecido a si como 0

urn, isto e, 0 urn como igualmente imediato e excludente; 0

processo que ele e 0 poe e a contem completamente so comosuprimido". (Science of Logic, 177)

o urn infinitamente relacionado a si mesmo, uma indetermina­~ao posta, entra na rela<;ao com 0 seu outro abstrato e multiplo, seunao-ser, e pela nega~ao dessa oposi<;ao nos temos 0 devir do Urn, umaidealidade realizada.

Emuito facil aplicar as acusa<;6es de Deleuze ao movimento on­tologico negativo a essa passagem. 0 movimento inicial do Urn para 0

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seu oposto, para 0 seu nao-ser, e completamente externo e pode ape­nas implicar uma rela~ao acidental. Alem disso, esse movimento entreos termos (Hegel os chama de "absolutos") reivindica alcan~ar umasintese determinada. "0 urn [0 urn que e urn so e nao muitos] e a ideali­dade realizada, posta no urn; ele esta em a~ao de atrair pela media~ao

da repulsao; ele contem essa media~ao em si mesmo como sua determi­naqiio." (174) 0 simples fato da media,ao abstrata resulta em uma de­termina~ao real. Como vimos, do mesmo modo que Deleuze denunciaque a media~ao externa implica uma rela~ao acidental, ele tambernrecusa, a uma dialetica da contradi~ao, 0 poder de uma sintese real: a"combinac;ao" e 0 "ajuntamento" de termos abstratos nao podem terurn resultado concreto e real. A esses dois ataques podemos acrescen­tar a acusa~ao de que os pr6prios termos que Hegel utiliza sao impre­cisos. Para esse argumento, Deleuze invoca Platao e a sua met.Hora doborn cozinheiro, que tern 0 cuidado de cortar nos lugares certos, deacordo com as articulac;5es da realidade (ver 0 Bergsonism, 45 e "Berg­son", 295). 0 que falta aterminologia hegeliana e uma aten,ao rnaisacurada aespecificidade e asingularidade do ser real: Hegel aparececomo urn a,ougueiro dialetico descuidado quando comparado ao finotalento de Platao. Para chegar a uma concep,ao singular da unidade eda multiplicidade no ser real, temos que come~ar perguntando, amodaplat6nica, qual ser, que unidade, que pluralidade? "0 que Bergson exige- contra a dialetica, contra uma concepc;ao geral dos opostos (0 Urneo Multiplo) - e uma percep,ao aguda do 'que' e 'quantos' daquiloque se chama de 'nuance' ou numero potencial" (Bergsonism, 45).

o que conseguiu entao Oeleuze, nessa segunda fase do estudo sobreBergson, ao reajustar 0 foco de seu ataque, do problema da determina­,ao do Urn e do Multiplo, da discussao da qualidade para a passagemda qualidade aquantidade? Como sempre Hegel e muito claro com res­peito ao que esta em jogo na discussao. Descrevendo os defeitos daconcep~ao de rnais de urn atomista antigo, que da precedencia amul­tiplicidade, ele fornece uma analogia sugestiva: "Quando fala das rno­leculas e das particulas, a Fisica, nos atomos, sofre do principio da supre­ma exterioridade e, com isso, da suprema aconceitualidade, assim comocom a Ciencia do Estado, que parte da vontade singular dos individuos".(Science ofLogic, 167). A passagem da qualidade aquantidade revela,no fundo de urn problema ontologico, urn problema politico. A apostae muito alta. Para Hegel, estii. claro que a rela,ao entre 0 Uno e 0 Multiploe uma funda~ao (analogica) para uma teoria da organizaC;ao social, uma

base ontologica para a politica. Atacar a unidade dialetica do Uno e doMultiplo e, portanro, aracar a primazia do Estado na formac;ao da so­ciedade, insistir na pluralidade real da sociedade. Aqui comer;amos aenxergar trar;os do movimento que ocorreu durante 0 "buraco de oitoanos" de Oeleuze: a mudan,a quase imperceptivel de foco em seu ataquealogica hegeliana, do capitulo 2 ao capitulo 3 de "The Ooctrine of Being" ,traz a ontologia para a esfera da politica.

a que esse novo ataque ocasiona especificamenre e uma novaconcep,ao da multiplicidade. "A no,ao de multiplicidade nos resguardade pensar em termos de 'Uno e de Multiplo'" (Bergsonism, 43). Eaquique Deleuze consegue estabelecer sua configurac;ao triangular de ini­migos preferida, porque descobrimos que ha dois tipos de multiplici­dade. Os inimigos proximos sao G.B.R. Riemann e Albert Einstein;esses pensadores sao capazes de conceber multiplicidades, mas simples­mente multiplicidades numericas e quantitarivas que apenas conseguemapreender diferen,as de grau (32-34). Bergson, ao contrario, realizauma Multiplicidade qualitativa fundada em diferen,as de natureza. Aprimeira, a multiplicidade da exterioridade, e uma multiplicidade da"ordem"; a multiplicidade interna de Bergson e uma multiplicidadeda "organiza,ii.o" (Bergsonism, 38). A dialetica hegeliana, naturalmen­te, ocupa a terceira e mais extrema posic;ao, incapaz de pensar a mul­tiplicidade em quaisquer termos, porque nem reconhece diferenr;as denatureza nem diferenc;as de grau. A configurac;ao dos inimigos proxi­mos, entretanto, proporciona ao Bergson de Deleuze urn afastamentocom respeito ao terreno hegeliano. "Para Bergson, nao e uma ques­tao de opor 0 Multiplo ao Uno mas, ao contrario, de distinguir doistipos de multiplicidade" (39). Voltaremos a analisar esse projeto po­sitivo da mulriplicidade em seguida, mas e importante reconhecer,agora, a clareza da estrutura politica do projeto que resultou da criti­ca: Oeleuze criou uma posi,ao para defender urn pluralismo da orga­nizaC;ao contra urn pluralismo da ordem. E isso esta muito distante dafilosofia do Estado da Unidade do uno e do Multiplo de Hegel.

3. A EMANA<;:Ao POSITIVA DO SIR

Voltemo-nos, agora, do momento agressivo dirigido adialeticahegeliana, aalternativa positiva que Deleuze encontra em Bergson. astermos da alternativa ja sao dados pela critica: por meio de urn movi-

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mento positivo e interno, 0 ser deve tornar-se qualificado e concretoem sua singularidade e especificidade. Essa questao da qualidade e co­mum aos dois periodos em que Deleuze estuda Bergson, mas desde que,conforme observamos, as preocupar;oes de Deleuze mudam para a pas­sagem da qualidade para a quantidade no segundo periodo, a logicaalternativa do ser de Bergson deve tambern dirigir-se it questao da uni­dade e da multiplicidade. Podemos come<;ar a abordar a posi<;ao ten­tando situa-la em termos ontol6gicos tradicionais. Com efeito, encon­tramos realmente uma concepc;ao do puro ser em Bergson: 0 virtual ea simplicidade do ser em si mesmo, pura recorda<;ao (Ie souvenir pur).Contudo, 0 ser puro, virtual, nao e abstrato e indiferente, nem entraem rela<;ao com 0 que e urn outro de si mesmo - e real e qualificadopor urn processo interno de diferenciar;ao: "A diferenc;a nao e uma de­terminar;ao mas, nessa relac;ao essencial com a vida, uma diferencia­<;ao" ("La conception de la difference chez Bergson", 93). 0 ser dife­re de si mesmo imediatamente, internamente. Nao procura fora de siurn outro ou uma for<;a de media<;ao porque sua diferen<;a nasce deseu pr6prio nueleo, da "forr;a interna explosiva que a vida carrega emsi mesma". ("La conception de la difference chez Bergson", 93 )8. Esseelan vital que anima 0 ser, esse processo vital de diferenciar;ao, liga apura essencia aexistencia real do ser: "A virtualidade existe de tal formaque e realizada ao dissociar-se de si mesma, que eforc;ada a dissociar­se a fim de realizar-se. Diferenciar;ao e 0 movimento de uma virtua­lidade que esta se efetivando a si mesma" (93). Bergson estabelece,entao, dois conceitos do ser: 0 ser virtual e 0 ser pure e transcenden­tal na medida em que e infinito e simples; 0 ser atualizado e 0 ser realna medida em que e diferente, qualificado e limitado. Nos ja vimoscomo Deleuze focaliza 0 movimento ontol6gico como 0 locus da ori­ginalidade de Bergson. A tarefa construtiva central da leitura de Bergsonpor Deleuze e, entao, elaborar 0 movimento positivo do ser entre avirtual e 0 atual que da suporte it necessidade do ser e que faculta aoser tanto a mesmidade quanto a diferen<;a, a unidade e a multiplicidade.

8 Rerornaremos a essa "for~a interna explosiva que a vida carrega em simesma", porque essa no~ao esta confusa neste ponto. Delellze freqiienrementeinvoca a intui~ao bergsoniana nesse mesmo contexto, mas tal conceito nao escla­rece a sitlla~ao para nos. Deveriamos observar a esse respeito, conrudo, que essaobscura no~ao constitui urn ponto central no sistema de Bergson, como a dinami­ca da articula~ao do ser. E precisamente nesse ponto que a vontade de potencianietzschiana e 0 conatus espinosisra vern a participar nos estudos posteriores.

Essa discussao do movimento ontol6gico se baseia na defesa, fei­ta por Bergson, de uma diferen<;a fundamental entre tempo e espa<;o,entre durar;ao e materia. 9 0 espar;o somente e capaz de canter diferen­<;as de grau e assim s6 apresenta uma variar;ao meramente quantitati­va; a tempo contem diferenr;as de natureza e assim e 0 meio verdadeiroda substancia. "A divisao ocorre entre a durar;ao, que 'tende' de sua partea assumir au suportar todas as diferen<;as de natureza (porque edota­da do poder de variar qualitativamente de si mesma), e 0 espar;o, quenunca apresenta nada a nao ser diferen<;as de grau (uma vez que e umahomogeneidade quantitativa)" (Bergsonism, 31, modificado). A dura­<;ao e 0 dominio no qual podemos encontrar 0 movimento ontol6gicoprimario porque a dura<;ao, que e composta de diferen<;as de natureza,e capaz de diferir qualitativamente de si mesma. 0 espar;o, ou a mate­ria, que contem somente diferen<;as de grau, e 0 dominio do movimen­to modal, porque 0 espac;o nao pode diferir de si mesmo, mas sim re­petir. "Tudo 0 que Bergson diz sempre redunda no seguinte: a durar;aoeo que difere de si mesma. A materia, ao contrario, e 0 que nao diferede si mesma, 0 que repete." (" La conception de la difference chez Berg­son", 88). 0 criterio ontol6gico aqui assumido e diferir de si, diferen­<;a interna. Mais uma vez, a discussao aparece como uma simples trans­posi\=ao das fundar;6es causais do ser: substancia que e causa de si (causasui) terna-se substancia que difere de si. De fato, Deleuze caracterizaprecisamente a distin\=ao entre a"dura\=ao e a materia nos termos tradi­cionais de uma rela\=ao substancia-modo: "Dura\=ao e como uma naturanaturans, e materia como uma natura naturata" (Bergsonism, 93, mo­dificado). Por que e, entao, que a dura<;ao pode diferir de si mesma e amateria nao pode? A explica<;ao desdobra-se de nossas primeiras ob­serva<;6es sobre a diferen<;a de Bergson. A discussao da diferen<;a emBergson nao e conduzida para distinguir uma qiiididade ou urn esta­do; nao e orientada para uma localiza~aoda essencia, mas sim para aidentificar;ao de urn movimento essencial, urn processo, no tempo. Na

9 Hegel observa que em termos etimologicos 0 ser determinado (Dasein) sig­nifica ser ai, ser em urn cerro Iugar; mas, continua Hegel, a ideia de espa~o aqui eirrelevante (Science of Logic, 110). Etentador atribuir significancia aetimologiagermanica e explicat 0 tratamento de Deleuze nesta base: ser determinado ou Daseinrefere-se a espa~o e marca diferen~as de grau, enquanto 0 ser "indererminado" dadiferencia~ao refere·se ao tempo e marca diferen~as de natureza. Contudo, comoji vimos, Deleuze nao credira ao Dasein hegeliano da dialetica quer diferen~as denatureza quer diferen~as de grau: 0 ser hegeliano permanece uma abstra~ao.

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segunda fase do estudo sobte Betgson, Deleuze estende essa distin<;iioentre dura~ao e materia para os dais tipos distintos de multiplicidade:o espa<;o revela uma multiplicidade da exterioridade, uma multiplici­dade numetica de diferencia<;iio quantitativa, uma multiplicidade da or­dem; a dura<;iio pura apresenta uma multiplicidade interna, uma hete­rogeneidade de diferencia<;iio qualitativa, uma multiplicidade de orga­niza<;ao (Bergsonism, 38). Aleffi disso, Deleuze nao apenas argumentaque 0 dominio da dura<;iio fornece uma multiplicidade rnais profundaque 0 espa<;o, mas que coloca tambern uma unidade rnais profunda. Anatureza modal do espac;o, com efeito, nao cia caora de uma unidadeinerente. Para reconhecer a natureza essencial do ser como uma unida­de substancial teroos que pensar, entao, em termos de tempo: "urn tinieoTempo, uno, universal, impessoal" (78).

Agora que, com Bergson e Deleuze, adotamos uma perspectivaontol6gica firmemente enraizada na dura<;ao, precisamos ainda vercomo 0 virtual e 0 atual se comunicam. 0 argumento de Bergson emuito forte quando analisa 0 desdobrar do virtual no atual- 0 queDeleuze chama 0 processo de diferenciac;ao ou atualizac;ao. Nesse as­pecto, Bergson eurn fil6sofo da emanac;ao do ser, e as ressonanciasplatonicas sao muito fortes. Esse ejustamente 0 contexto em que De­leuze examina a passagem platonica muito cara a Bergson, na qual estecompara 0 fil6sofo ao born cozinheiro, que corta de acordo com asarticulac;oes naturais ("Bergson", 295). Reconhecer 0 contorno do sernas diferenc;as reais de natureza ea tarefa do fil6sofo, porque 0 pro­cesso de diferenciaC;ao e0 movimento basico da vida. 0 elan vital eapresentado exatamente nesses termos: "trata-se sempre de uma vir­tualidade no processo de ser atualizada, uma simplicidade no proces­so de se diferenciar, uma totalidade no processo de se dividir: proce­der 'por dissociac;ao e divisao', por 'dicotomia', ea essencia da vida"(Bergsonism, 94). 0 puro ser como virtualidade, simplicidade, totali­dade emana ou atualiza por urn processo de diferenciac;ao, urn pro­cesso que marca ou recorta sobre as linhas das diferenc;as de nature­za. E assim que a diferenciac;ao se refere aos criterios ontol6gicos dequalidade e quantidade: ser virtual, como unidade, desdobra-se e re­vela suas reais diferenc;as multiplas. Contudo, devemos ter 0 cuidadode nao exagerar as similaridades com 0 platonismo. Ha pelo menosdois aspectos que distinguem a descric;ao de Deleuze de uma atualiza­r;ao bergsoniana da emanac;ao plat6nica. Primeiro, Deleuze afirma quea atualizac;ao do "Todo virtual" nao euma degradar;ao do ser - nao

ea limita'rao ou copia do ideal no real - mas, ao contra.rio, a atuali­za<;iio de Bergson e a produ<;iio positiva da realidade e multiplicidadedo muncio: "Tem-se apenas que recolocar os termos atuais no movi­menta que as produz, ou seja, traze-los de volta para a virtualidadeatualizada neles, para ver que a diferencia~ao nunca euma negac;aomas sim uma criar;ao, e que a diferenr;a nunca enegativa e sim essen­cialmente positiva e criativa" (Bergsonism, 103). Em segundo lugar,como vimos, Deleuze argumenta que a movimento ontol6gico de Berg­son baseia-se numa produ~aodo ser absolutamente imanente e eficien­te, movida pela "for<;a interna explosiva que a vida carrega em si mes­rna". Nao hi lugar para 0 finalismo platonico como uma forr;a da or­demo Nesse contexto, portanto, podemos compreender 0 movimentoontologico de Bergson como uma emanac;ao criativa do ser livre daordem do Ideal plat6nico (105-6).

Contudo, como Deleuze deixa bern claro, se formos entender aemanar;ao do ser de Bergson corretamente, nao devemos concebe-lacomo uma diferenciar;ao no espar;o mas como uma "atualizar;ao" notempo. (Observe-se que aqui a discussiio ap6ia-se firmemente no pri­meiro significado frances de actuel como "contemporaneo".) Eaquique a teoria da memoria de Bergson entra em cena. Bergson encon­tra, no passado, 0 puro ser - "uma recordar;ao que epura, virtual,impassfvel, inativa, em si mesma" (Bergsanism, 71). 0 movimentocriativo da unidade passada para a multiplicidade presente e 0 pro­cesso de atualizar;ao. Situar no tempo a emanar;ao do ser de Bergsonpermite a Deleuze demonstrar a forr;a de sua terminologia, que revelaa diferenr;a importante entre as concepc;oes de Bergson e as outrasconcepr;5es do movimento ontologico. Essa discussao eapresentadapor uma constelar;ao enigmatica de termos que constituem uma argu­menta<;iio muito complexa. 0 objerivo geral dessa discussiio e ofere­cer uma crftica adequada da noc;ao do possive!. Deleuze assevera quee essencial que concebamos a emanac;ao do ser bergsoniana, a diferen­ciar;ao, como uma relar;ao entre 0 virtual e 0 atual, ao inves de comouma relac;ao entre 0 passivel e 0 reallO• Depois de montar esses dois

10 Essa crftica do POSSIVe! ja esta presente na primeira fase do estudo deDe!euze sobre Bergson nos anos 50, embora, nessa ocasiao, e!e fac;a apenas umadistinc;ao entre 0 possive! e 0 virtual, nao entre 0 real e 0 atual ("Bergson", 288­89). A formulac;ao completa vern na segunda fase e e repetida exatamente nosmesmos termos em "La methode de dramatisation" (78·79) e em Difference et

Il

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repetition (269-76). A critica do possivel edirigida a Descartes e assume formaligeiramente distinta em Expressionism in Philosophy: Spinoza (30-31, 38-39, 122­26). Voltaremos a essas passagens posteriormente.

11 Certamente, minha preocupac;ao nao eprovar que Deleuze foi buscar suaargumentac;ao nos escolasticos. Podemos muito bern atribuir as ressonancias es­coIasticas a Bergson e a seu interesse em Arist6teles. 0 que importa, contudo, equepodemos compreender essa questao no argumento de Deleuze mais daramente quan­do temos em mente os argumentos ecoIasticos ou outros com preocupa~oes similares.

pares (virtual-atual e possivel-real), Deleuze prossegue na observa<;aode que 0 terma transcendental de cada par relaciona-se positivamen­te com 0 ter·rno imanente do par oposto. 0 passivel Dunea ereal, em­bora possa ser atual; contudo, enquanto 0 virtual pode DaD ser atual,e nao obstante real. Em outras palavras, hi diversas possibilidades con­temporiineas (atuais), algumas das quais podem ser realizadas no fu­turo; em contraste, as virtualidades sao sempre reais (no passado, namemoria) e podem tarnar-se atualizadas no presente. Deleuze invocaProust para uma defini<;ao dos estados de virtualidade: "real sem seratual, ideal sem ser abstrato" (96). 0 ponto essencia! aqui e que avirtual ereal e 0 passivel DaD e: essa ea base de Deleuze para asseve­rar que 0 movimento do ser cleve ser compreendido em termos cia re­la<;ao virtual-atual ao inves de em termos da rela<;ao possivel-real. Paracompreender essa avalia<;ao precisamos nos referir mais uma vez aosargumentos causais cia ontologia escolastica. Urn principia de causa­lidade fundamental que tivemos a ocasiao de invocar anteriormente eo de que urn efeito nao pode ter mais realidade do que sua causa. 0movimento ontologico do virtual para 0 atual econsistente com esseprincipio, uma vez que 0 virtual etao real quanto 0 atual. A progres­sao do possivel para 0 real, contudo, eclaramente uma viola~ao des­se principio e nessa base deve ser rejeitado como urn modelo de movi­mento ontologico. Devemos observar que, embora Deleuze nao fa~a

qualquer referenda explicita aos escolasticos aqui, 0 modo de expla­na~ao e os proprios termos da discussao sao totalmente escolasticos.Virtual e0 termo escolastico para descrever 0 ideal ou 0 transcenden­tal; 0 Deus escohistico virtual nao ede modo algum abstrato ou pos­sivel, e0 ens realissimum, 0 ser mais real. Finalmente, atualiza~aoe0

meio escolastico de descrever a familiar passagem aristoteIica do vir­tual para 0 ato.l 1 Nesse contexto, 0 tratamento de Bergson torna-seate mais interessante: a "atualiza~ao" de Bergson mantem 0 signifi-

cado aristotelico e acrescenta-lhe a dimensao temporal sugerida pelotratamento frances moderno. Em Bergson, a passagem da virtualidadeao ate acontece somente na dura~ao.

o que esta em jogo para Deleuze nesse enigmatico grupo de ter­mos - ao rejeitar 0 possivel e defender "atualiza~ao" sobre "realiza­~ao" - ea propria natureza da emana~ao do ser e 0 principio que acomanda. Deleuze elabora essa avalia~ao acrescentando uma cons­tela<;ao suplementar de termos. 0 processo de realiza<;ao e guiado porduas regras: semelhan~a e limita~iio. 0 processo de atualiza~ao, ao con­tririo, e guiado pela diferen<;a e a cria<;ao. Deleuze explica que, do pon­to de vista do primeiro, 0 real econcebido como presente na imagem(par isso assemelha-se) do passive! que realiza - "ele tern simplesmenteexistencia ou realidade acrescentada a si, 0 que se traduz pela afirma­<;ao de que do ponto de vista do conceito, nao hi qualquer diferenr;aentre a possivel e a real" (Bergsonism, 97, grifo acrescentado). Alemdisso, uma vez que todas as possibilidades nao podem ser realizadas,uma vez que 0 dominio do possivel emaior que 0 dominio do real,deve haver urn processo de limitar;iio que determine quais as possibi­lidades que "passarao" para a realidade. Assim, Deleuze encontra urntipo de preformismo no par possibilidade-realidade, na medida em quea todo da realidade ji e dado au determinado no possivel; a realidadepreexiste a si mesma na "pseudo-atualidade" do possivel e somenteemana par uma limita<;ao conduzida pelas semelhan<;as (98). Portan­to, desde que nao hi qualquer diferen<;a entre 0 possivel e 0 real (doponto de vista do conceito), desde que a imagem da realidade ji e dadano possivel, a passagem da realizar;ao nao pode ser uma criar;ao.

Ao contfC:irio, para 0 virtual tornar-se atual, necessita criar seusproprios termos de atualiza<;ao. "A razao disso e simples: enquanto 0

real ea imagem e 0 retrato do possive! que realiza, 0 atual, por seu tur­no, nao se assemelha avirtualidade que incorpora" (Bergsonism, 97).A diferenra entre 0 virtual e 0 atual e 0 que requer que 0 processo deatualiza<;ao seja uma criar;iio. Sem qualquer ordem pre-formada paraditar sua forma, 0 processo de atualiza~iio do ser deve ser uma evolu­<;ao criativa, uma produ<;ao original da multiplicidade do ser atual peladiferencia<;ao. Podemos compreender parcialmente essa complexa dis­cusseio como uma critica do movimento da causa formal (possivel-real)e uma afirma~ao do movimento da causa efieiente (virtual-atual). Osmarcos da discusseio aparecem mais claramente, contudo, se colocamosa questao em termos do principio que determina a coerencia do ser, como

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uma critica da ordem e uma afirma~aoda organizaqao. Anteriormentecitamos uma distin\ao que Deleuze faz entre a "multiplicidade da or­dem" e a "multiplicidade da organiza<;iio" (38). A realiza<;iio do pos­sivel claramente propicia uma multiplicidade da ordem, uma multipli­cidade estatica, porque 0 todo do ser real e pre-dado ou pre-determi­nado na "pseudo-atualidade" do possive!. A atualiza<;iio do vittual, POtoutro lado, apresenta uma multiplicidade dinamica na qual 0 processode diferencia~ao cria 0 arranjo original ou a coerencia do ser atual: eamultiplicidade da organiza<;iio. A multiplicidade da ordem e "determi­nada" na medida em que e pre-formada e est,hica; a multiplicidade daorganizac;ao e "indeterminada" na medida em que ecriativa e original- a organiza~ao e sempre imprevisivel12. Sem 0 projeto da ordem, 0

processo criativo da organizac;ao esempre uma arte.Demonstramos que Deleuze apresenta a atualizac;ao bergsoniana

do ser como uma emanac;ao dinamica e original, como uma evoluc;aocriativa livre das restric;6es ordenadas do finalismo plat6nico (causafinal) e da realiza<;iio do possivel (causa formal). Contudo, essa for­mulac;ao sup6e uma questao importante, que tern estado presente adiscussiio 0 tempo todo: livre de qualquer ordem determinada ou pre­formismo, 0 que constitui 0 mecanismo criativo no ser de Bergson, queecapaz de formar, continuamente, urn ser novo e original, urn novoplano de composi<;iio? Qual e a base da organiza<;iio bergsoniana? Eprecisamente sobre esse ponto que se poderia montar uma contra-ofen­siva hegeliana. Se retornamos acritica de Espinosa por Hegel, pode­mos reconhecer uma pressao que tambern se aplica aposic;ao de Berg­son. Hegel finalmente caracteriza 0 movimento positivo do ser de Espi­nosa como urn emanacionismo irrecupenivel:

Na concep\ao oriental da emanaqao, 0 absoluto ealuz que ilumina a si mesma. Mas ela nao s6 ilumina a si mes-

12 Aqui podemos, finalmeme, dar semido autilizar;ao por Bergson de "de­terminado" e "indeterrninado". Postes em urn contexte hegeliano e1es tern urn sig­nificado completarnente diferente. Emretanto 0 fosso entre esses dois registros ter­mino16gicos traz atona urn assumo serio que nao rem sido adequadamente rrara~

do. Num sentido, 0 ser de Deleuze deve ser "determinado", na medida em que 0

ser e necessario, qualificado, singular e atual. No outro sentido, comudo, ° ser deDeleuze deve ser "indererrninado", na medida em que 0 ser e contingente e criativo.Alguns dos terrnos rnais apreciados por Deleuze tais como imprevisivel (imprevisible),intempestivo (intempestif) e aconrecimemo (ivenement) insistem nesse ponto.

rna, como tambem emana. Suas emanac;6es sao distancia­mentos da sua claridade nao turvada; suas subseqiientes pro­duc;6es sao menos perfeitas que as produtos precedentes, dasquais e1as derivam. 0 processo de emanac;ao etornado somen­te como urn acontecer, a devir somente como uma perda pro­gressiva. Assim, 0 ser se obscurece sempre mais e a noite, 0

negativo, e 0 termo final da serie, 0 qual nao retorna a luzprimeva". (Science of Logic, 538-39)

Everdade, obviamente, que ao movimento de Bergson, como aDde Espinosa, falta a "reHexiio-para-si" que Hegel identifica como 0

elemento em falta aqui. Conforme vimos, entretanto, Bergson insisteque "produc;oes sucessivas" nao sao "menDs perfeitas"; 0 movimen­to nao e uma "perda progressiva", mas, ao contnirio, a diferencia­c;ao constituida pelo elan vital e urn processo criativo que produz no­vas articulac;6es igualmente perfeitas. Bergson poderia muito bern res­ponder, ao modo de Espinosa, que atualidade e perfei<;iio. Contudo,o ataque hegeliano funciona como uma pressao no sentido de susten­tar essa afirmac;ao de Bergson com urn mecanismo criativo imanenre.Hegel reconhece que urn movimento ontol6gico positivo pode darconta do devir do ser (como emanac;ao), mas, pergunta ele, como padedar conta do ser do devir? Alem disso, a analogia de Hegel entre affsica e a politica retorna como urn serio desafio politico. Tanto quan­to os atomistas antigos, Deleuze e Bergson recusam 0 preformismoda multiplicidade na unidade; recusam a ordem do Estado e insistem,ao inves disso, na originalidade e liberdade da multiplicidade da orga­nizac;ao. De uma perspectiva hegeliana, isso e tao insensato quantotentar basear urn Estado nas vontades individuais dos seus cidadaos.o ataque it ordem (a ordem do finalismo, do possivel, da dialetica)cria tanto a espac;o para uma dinamica organizacional quanto a ne­cessidade desta: a organizac;ao do atual, a organizac;ao da multiplici­dade. Responder a essa questiio e a tarefa final proposta pela leiturade Bergson por Deleuze.

4. 0 SER DO DEVIR E A ORGANIZAc;:AO DO ATUAL

A questao da organizac;ao criativa coloca urn serio problema e,finalmente, e esse ponto sobre 0 qual 0 pensamento de Bergson parece

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revelar-se insuficiente para Deleuze. A necessidade da organiza<;ao atualtorna-se obviamente muito mais importante a medida que Deleuze ca­minha para a sua segunda fase do estudo de Bergson, a medida queele muda 0 foco da questao da qualidade para a passagem entre qua­lidade e quantidade. A essa altura de nossa analise vimos que Bergsonebastante eficiente ao descrever 0 movimento emanativo de uma uni­dade a uma multiplicidade, 0 processo de diferencia<;ao ou atualiza­r;ao. Mas agora descobrimos que epreciso urn movimento organiza­cional complementar na dire<;ao oposta, da multiplicidade aunidade.Infelizmente, esse movimento organizacional esta quase completamenteausente do pensamento de Bergson. Ha, nao obstante, diversos pon­tos nos quais a leitura de Deleuze sugere que poderiamos encontraruma resposta a essa lacuna de Bergson. Deleuze parece sugerir que haurn movimento convergente do atual: "0 real nao e somente 0 que secarta [se decoupe] de acordo com as articula<;ees naturais ou diferen­r;as de natureza; e tambem 0 que se recorta novamente [se recoupe]seguindo caminhos convergentes para urn mesmo ponto ideal ou vir­tual" (Bergsonism, 29). 0 que eexatamente esse processo de recou­pement ou de interse<;ao que relaciona a multiplicidade atual a umaunidade virtual? Deleuze nao trata desse ponto extensivamente. Pare­ce, contuclo, que para que essa passagem far;a sentido, nao podemosinterpretar recoupement como urn processo criativo que organiza urnnovo ponto de unidade virtual, mas simplesmente como urn processoque trar;a as linhas das articula<;oes naturais de volta ao ponto de par­tida original. Recoupement e uma maneira bergsoniana de expressaro principio escol8.stico de que 0 ser e unIvoco; podemos verificar queo ser esempre e em todo lugar dito da mesma maneira, quer dizer, por­que 0 todo da realidade pode ser novamente tra<;ado ao longo de ca­minhos convergentes para urn ponto virtual unico. Essa teoria da uni­vocidade opee-se a uma teoria da analogia do ser. 0 que nos importaaqui eque, embora a univocidade implique em uma igualdade geral eem uma comunalidade do ser, assim 0 e apenas no plano virtual13. Enecessario, contudo, urn meio de comunicar;ao entre os dois pIanos.

13 0 pape! da distin~ao formal em Duns Scot emediar a unidade e a multi­plicidade, 0 universal e 0 individual, em dois pIanos separados. Ver Gilson, La phi­losophie au Moyen Age, pp. 599 ss. Deleuze usara a concep~ao da distin~ao realem Espinosa para criticar a distin~ao formal de Duns Scot em Expressionism inPhilosophy: Spinoza, pp: 63-65.

Essa passagem sugere, 0 que de fato encontramos freqilentemente naobra de Bergson, que a unidade so aparece no plano do virtual. 0 queo argumento de Deleuze exige nesse ponto e, ao contrario, urn meca­nismo para a organiza<;ao da multiplicidade atual.

Encontramos urn outro exemplo da comunicar;ao entre 0 virtuale a atual nos dois movimentos da memoria em Bergson: a "memoria­recordar;ao", que se dilata ou se expande em urn movimento inclusi­vo voltado ao passado, e a "memoria-contrar;ao", que se concentravoltada para 0 futuro como urn processo de particulariza<;ao (Berg­sonism, 52). Em outras palavras, no alhar retrospectivo, vemos 0 uni­versal (memoria-recorda<;ao) e no olhar prospectivo vemos 0 indivi­dual (memoria-contra<;ao). 0 que seria necessario para a organiza<;aocriativa do atual seria, ao contrario, urn movimento expansive e in­clusivo orientado para 0 futuro, capaz de produzir uma nova unida­de. Contudo, Bergson einsistente com respeito as direr;6es temporaisdos movimentos. A unidade do virtual reside somente no passado enao podemos nunca realmente retroceder aquele ponto: "Nos nao pas­samos do presente para 0 passado, da percep<;ao a recorda<;ao, massim do passado para 0 presente, da recorda<;ao a percep<;ao" (63).Nesses termos, a organizar;ao do atual teria que ser urn movimento dapercepr;ao para uma nova "recordar;ao" que seria uma memoria fu­tura (uma especie de futur anterieur ou futuro perfeito no sentido gra­matical) como urn ponto comum de organizar;ao real.

Deleuze faz 0 pOSSIVel para tratar seriamente a questao da or­ganiza<;ao e da socializa<;ao nas paginas finais do Bergsonism (106­12). Em muitas de suas obras mais importantes (em seus estudos deNietzsche e Espinosa, par exemplo), Deleuze apresenta nas paginasfinais 0 seu argumento mais densa e elusivo, que aponta 0 caminhopara pesquisas futuras. Nessa ser;ao final do Bergsonism, Deleuze ten­ta explicar a capacidade humana para a criatividade, a aptidao parater sob controle 0 processo de diferencia<;ao ou atualiza<;ao e ultra­passar a "plano" ou "projeto" da natureza: "0 homem ecapaz dequeimar pianos, de ultrapassar tanto 0 seu proprio plano quanto asua propria condi<;ao, a fim de finalmente expressar a Natureza na­turante [natura naturans]" (107). A explica<;ao dessa liberdade e cria­tividade humanas, todavia, nao eimediatamente observivel. Certa­mente, a sociedade e farmada sobre a base da inteligencia humana,mas Deleuze observa que nao hi movimento direto entre a inteligen­cia e a sociedade. Ao contrario, a sociedade e urn resultado mais di-

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rete de "fatores irracionais". Deleuze identifica 0 "instinto virtual" ea "fun<;iio fabuladora" (/a (onction (abulatrice) como for<;as que le­yam acriac;ao de obrigac;6es e de deuses. Essas forc;as, contudo, naopodem dar conta dos poderes humanos da eriatividade14

Aguisa de soluc;ao, devemos voltar a analisar 0 fosso que existeentre a inteligencia humana e a socializac;ao. "0 que e que aparece nointervalo entre a inteligencia e a sociedade... ? Nao podemos respon­der: e a intuic;ao" (109). A intuic;ao ea mesma "forc;a explosiva inter­na que a vida carrega em si mesma" que identificamos anteriormentecomo a dinamica positiva do ser. Aqui, entretanto, essa noc;ao e ex­pressada rnais claramente. 0 que mais precisamente, acrescenta De­leuze, preenche esse fosso entre a inteligencia e a sociabilidade e aorigem da intui<;iio, que e a emo<;iio eriativa (110). Essa produ<;iiooriginal de soeiabilidade pela emo<;iio eriativa nos traz de volta ao planoda unidade na memoria, de Bergson, mas dessa vez e uma nova me­moria. "E 0 que e essa emoc;ao criativa, senao precisamente uma Me­moria cosmica, que atualiza todos os niveis ao mesmo tempo, que li­bera 0 homem do plano, ou do nivel a que pertenee, a fim de faze-Iourn criador, adequado a todo movimento da criac;ao?" (111, modifi­cado). Com a Memoria cosmica, Deleuze chegou a uma sociabilidadebergsoniana mistica, que esta disponivel as "almas privilegiadas" (111)e e capaz de trac;ar 0 desenho de uma sociedade aberta, uma socieda­de de criadores. A encarnac;ao da Memoria cosmica "salta de uma almaa outra, 'de vez em quando', eruzando desertos feehados" (111). 0que temos aqui soa nitidamente como urn debil eco da voz de Zara­tustra no topo das montanhas: pathos criativo, emoc;ao produtiva, umacomunidade de criadores ativos que ultrapassa 0 plano da natureza edos seres humanos. Contudo, nao importa quae sugestiva venha a seressa breve explicac;ao da teoria social bergsoniana, ela permanece, nessasec;ao final, obscura e incipiente. Alem disso, 0 restante da obra de

14 Neste ponto de sua obra Deleuze encontra na fabulaqiio bergsoniana so­mente uma explica~ao da obriga~ao e a negao:;ao da criatividade humana. Em al­guns de seus trabalhos posteriores, particularmente nos livros sobre cinema, elereinterpreta "fable-making" ou "confabulao:;ao" sob uma luz mais positiva. De fato,em recenre entrevista a Antonio Negri, Deleuze sugere que deveriamos voltar a esseconceito bergsoniano para desenvolver uma noo:;ao de constituio:;ao social: "Uto­pia nao eurn born conceito: hi na verdade uma 'confabulao:;ao' comum as pessoase aarte. Deve-se retomar a noo:;ao bergsoniana de confabulao:;ao e atribuir-lhe urnsignificado politico" ("Le devenir revolutionaire et les creations politiques", 105).

Deleuze sobre Bergson nao e suficiente para apoiar essa teoria. Comefeito, temos de nos referir ao Nietzsche de Deleuze para dar a essasafirmac;6es coerencia verdadeira e uma solida fundamentac;ao15.

Essa sec;ao final do Bergsonism e 0 argumento positivo mais no­tavel da segunda fase do estudo de Bergson, ausente da primeira, e cor­responde perfeitamente amudan<;a da problematiea da qualidade paraada passagem da qualidade para a quantidade, que observamos no ata­que a Hegel. Essa dupla mudan<;a entre os dois estudos de Bergson mostraclaramente urn aspecto do movimento que ocorre durante 0 "buracode oito anos"; de fato, Deleuze sente-se pressionado a trazer 0 onrolo­gico para 0 social e 0 etico. No Bergsonism, Deleuze consegue, ate certoponto, lidar com essa pressao. 0 que e mais importante, entretanto, eque essa reorientac;ao anuncia a necessidade de Nietzsche para Deleuze,e 0 advento do primeiro no pensamento deste ultimo. Nietzsche da aDeleuze os meios de explorar 0 verdadeiro ser do devir e a organizac;aopositiva da multiplieidade atual. Alem disso, ao mudar 0 terreno do planoda logica para 0 de valores, Nietzsche permite a Deleuze traduzir a onto­logia positiva, que ele desenvolveu por meio do estudo de Bergson, emuma etica positiva.

NOTA: DELEUZE E A INTERPRETA(:A.O

Antes de nos voltarmos para Nietzsche, tomemos urn momentopara considerar duas criticas de leitura de Bergson por Deleuze, quenos auxiliarao a esclarecer as caracteristicas da estrategia interpretativade Deleuze. No infcio denosso ensaio, observamos que as peculiari­dades da obra de Deleuze exigem que tenhamos sempre em mente umaserie de principios metodol6gieos. Urn aspeeto que terna a obra de

IS Foi precisamente esta seo:;ao final de Bergsonism que irritou a comunida­de francesa de estudiosos de Bergson. Mais adianre, na "Nota", veremos a criticade Madeleine Barthelemy-Madaule em Les etudes bergsoniennes, na qual ela fo­caliza a mesma seo:;ao e faz a objeo:;ao segundo a qual "Bergson nao eNietzsche"(120) A prop6sito da minha reconstruo:;ao da evoluo:;ao do pensamento de Bergson,poder-se-ia perguntar: por que Bergsonism nao incorporou completamenre temasnietzschianos e nao foi alem? A resposta teria de concordar com Barthelemy-Ma­daule e dizer que Bergson nao eNietzsche; porem, mesmo que a estrategia inter­pretativa de Deleuze envolva elevado grau de seletividade, e precise salientar queele nunca pretendeu expandir uma doutrina para conforma-la com outra.

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De1euze tao especial e que ele traz para cada urn de seus estudos filo­s6ficos uma questao muito especifica que focaliza e define a sua vi­sao. No caso dos estudos sobte Betgson, descobtimos que Deleuze sepreocupa principalmente em desenvolver uma critica adequada do mo­vimento onto16gico negativo da dialetica e em elaborar uma 16gicaaltemativa do movimento positivo e criativo do ser. A sele,ao impH­cita no foco preciso de Deleuze e que parece confundir alguns de seusleitores e irritar a outros. A critica de Gillian Rose ("The New Berg­sonism") e Madeleine Barthelemy-Madaule ("Lire Bergson") nos ofe­recem dois exemplos desse problema. Nessas criticas, podemos discer­nir dois metodos para ler Deleuze que dao lugar a dificuldades inter­pretativas. Em primeiro lugar, ao nao reconhecerem a seletividade deDe1euze, essas autoras confundem as posi\oes de Deleuze com aque­las dos filosofos de que ele trata, e, em segundo lugar, ao ignorar aevolu,ao do pensamento de Deleuze, confundem os diferentes proje­tos que guiam as suas varias obras. Ademais, a diversidade de pers­pectiva entre essas duas criticas servirao para ilustrar 0 deslize queresulta do fosso entre as tradi,6es anglofilas e francesas da interpre­ta,ao de Bergson.

Em todo 0 "The New Bergsonism" (capitulo 6 da Dialetic ofNih i­

lism), Rose Ie a obra de Bergson e a interpreta,ao de Deleuze como sefossem urn continuo perfeito. Ela conclui, em sua discussao sumariado Bergsonism, com uma interpreta\ao ambigua que ilustra essa con­fusao muito claramente: "Na leitura de Deleuze, Bergson produz umaNaturphilosophie que culmina no ponto em que 0 elan vital 'torna-seconsciente de si mesmo' na mem6ria do 'homem'" (Rose, 101). Parafundamentar essa asser,ao ela cita a pagina final do Bergsonism (112na edi,ao em ingles), que em parte da sustenta,ao asegunda metadede sua senten,a, mas de modo algum da sustenta,ao aprimeira. Deleuzenao apenas nao menciona a Naturphilosophie nessa passagem, masdedica-se nas paginas anteriores (106-12) a argumentar que Bergsondemonstra como podemos ir alem do plano da natureza e criar umanova natureza humana. Nesse ponto Deleuze se baseia essencialmen­te na ultima obra de Bergson, Les deux sources de la morale et de lareligion (1932). Rose extrai a ideia de Naturphilosophie nao de Deleuzemas da primeira obra de Bergson, Essai sur les donnees immediatesde la conscience (1889), que ela interpreta como sendo consistente coma obras de Comte (Rose, 98). (Portanto, para tomar as coisas aindamais confusas, temos uma leitura completamente a-hist6rica de Berg-

son, que nao consegue distinguir entre as suas primeiras e as suas 61­timas obras.) 0 ponto central aqui, entretanto, nao e se 0 pensamen­to de Bergson constitui ou nao uma Naturphilosophie; ao contrario,a questao e que este aspecto nao constitui uma parte do projeto deDeleuze, que nao e isso que Deleuze extrai de Bergson.

Encontramos urn problema similar de interpreta\ao no ensaio deMadeleine Barthelemy-Madaule, uma especialista francesa em Bergson,e e interessante que em sua leitura sao precisamente as mesmas pagi­nas do Bergsonism que causam a maior irrita\:3.o. Sua rea\ao, contu­do, vern de uma perspectiva muito diferente da de Rose, uma vez queela se fundamenta em uma leitura espiritual francesa de Bergson, aoinves de 'em uma leitura anglo-sax6nica positivista. A principal obje­,ao de Barthelemy-Madaule e a de que Deleuze tenta ler Les deuxsources como urn texto nietzschiano e anti-humanista, quando na ver­dade ali se demonstra 0 carater profundamente religioso do pensamentode Bergson: "0 processo de 'ultrapassar a condi\=ao humana' que e,de fato, a voca,ao da filosofia para Bergson, nao pode ser formuladoem termos do 'inumano' ou do 'sobre-humano'... De qualquer modo,a principal conclusao que tiramos dessa interpreta\ao e a de que Berg­son nao e Nietzsche" ("Lire Bergson" 86,120). BartheIemy-Madauleeuma leitora muito cuidadosa de Bergson e tem-se que aceitar, ate certoponto, a sua critica. Bergson, de fato, nao e Nietzsche. Para os nossospropositos, 0 esfor,o de Deleuze (talvez exagerado e malsucedido), nosentido de aproximar os dois nestas paginas, indica 0 importante efeitoque 0 periodo de estudos sobre Nietzsche teve em seu pensamento e anecessidade de ultrapassar 0 referencial bergsoniano. A principal ques­tao em jogo no conflito com BartheIemy-Madaule, contudo, e a decomo se deve interpretar um filosofo. BartheIemy-Madaule reage an­tes de tudo ao principio de sele\=ao de Deleuze: "Interpretar uma dou­trina pressupoe que se considere todos os termos do conjunto. Naome parece que seja este 0 caso aqui. Eu contestaria quanto autiliza­,ao de Bergsonismo como titulo do estudo do Sr. Deleuze"(120). 0primeiro tipo de problema na leitura de Deleuze, que encontramos emRose e Barthelemy-Madaule, resulta, portanto, de uma incapacidadede reconhecer ou aceitar a seletividade de Deleuze e, assim, de umaconfusao, tanto com respeito ao uso que ele faz das fontes, quanto a.sua rela,ao com os filosofos que analisa.

o segundo tipo de problema resulta de uma interpreta,ao erro­nea dos projetos de Deleuze, de uma incapacidade de reconhecer a sua

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evolu,ao. Esse problema surge principalmente na critica de Rose. Ecertamente estranho que Rose busque envolver a obra de Deleuze coma sua tematiza,ao getal do juridicismo e p6s-estruturalismo pela lei­tura do Bergsonism quando qualquer urn dos outros estudos do au­tor na historia cia filosofia (Kant, Hume, Nietzsche au Espinosa) terbsido mais adequado as suas finalidades. Conforme ja vimos, a inves­tiga,ao de Deleuze sobre Bergson focaliza principalmente questaesonto16gicas e, embora essa investiga~ao se aproxime cia questao eri­ca, nao propicia qualquer fundamenta<;ao salida para uma discussaocia lei. Com isso em mente, portanto, DaD cleve surpreender que Rosetivesse dificuldade em escrever diretamente sobre 0 Bergson de Deleuze.De fato, ela dedica menos de duas das vinte e uma paginas ao Berg­sonism (99- 100); estas sao introduzidas por uma leitura do Essai surles donnees immediates de fa conscience, de Bergson, em rela<;ao aComte e ao positivismo e seguidas de uma leitura de algumas se<;6esde Difference et repetition, de Deleuze, combinada com pequenos acres­cimos oriundos de Nietzsche e Duns Scot. Rose se refere repentinamenteao objetivo do novo bergsonismo de Deleuze como sendo a tentativade fundar uma "injusti<;a ontol6gica" (99, 104, 108). Ela da substan­cia a tal afirma,ao com uma cita<;ao de urn trecho de Difference etrepetition, no qual Deleuze discute a univocidade do ser em Duns Scot,Nietzsche e Espinosa: "0 Ser Univoco e distribui~ao nomadica e anar­quia coroada" (citado por Rose, 99, Deleuze, 55). 0 problema apre­sentado e muito simples: na passagem citada, Deleuze nao esta lidan­do nem com Bergson nem com a justi~a. Eu ja apontei que, no trata­mento de Bergson por Deleuze, podemos encontrar a sugestao de urnconceito do ser unfvoco, mas isso nao significa que podemos transfe­rir 0 nexo Duns Scot-Espinosa-Nietzsche diretamente para Bergson:essa e uma simples questao metodol6gica. Mais importante, entretanto,essa passagem revela a inadequa<;ao de todo 0 argumento de Rose. Eabsurdo ler a declara~ao de que 0 ser univoco e '''anarquia coroada"como uma declara~aofrontalmente polftica, ou mesmo como uma de­clara~ao com respeito ajusti~a. Tal argumento tenciona desmontar urncomplexo desenvolvimento, da ontologia it politica, e supor que tal de­senvolvimento admite uma unica solu~ao. (Aparentemente e assim queRose pode chegar ao ponto de atribuir a etica de Scot a Deleuze [107]com a cren~a, pode-se presumir, de que pode haver somente uma eti­ca que corresponde a uma concep~aounivoca do ser.) A univocidadenos fornece, no maximo, uma intui~ao da politica pelo fato de suben-

tender uma participa,ao e uma igualdade ontologicas; essa igualdadeeo que "coroa" a anarquia do ser no dizer de Deleuze (Difference etrepetition, 55). Eu reafirmo, contudo, que para trazer essa intui~ao auma verdadeira concep~aode justi~a no pensamento de Deleuze, paraavan<;armos de fato da ontologia para a politica, precisamos atraves­sar no mfnimo duas fases mais importantes. Em primeiro lugar, temosque considerar a concep~ao do poder eficiente (a for~a interna asuamanifesta,ao) desenvolvida no estudo de Nietzsche, porque tal con­cep,ao funda urn ataque it lei e ao juridicismo16 Em segundo lugar,devemos voltar-nos para 0 estudo de Espinosa, para a sua investiga­~ao das no~6es comuns, da pratica socialmente constitutiva e do di­reito, para que Deleuze possa elaborar uma alternativa positiva alei.Jus versus lex: essa e uma formula,ao bern rnais adequada da posturade Deleuze contra 0 legalismo e 0 juridicismo.

16 Uma passagem central a esse respeito ea descrir;ao de Deleuze do ataquede Calides alei em relar;ao a Nietzsche: "Tudo que separa uma forr;a daquilo queela pode fazer ele chama de lei. Lei, neste sentido, expressa 0 triunfo do fraco so­bre 0 forte. Nietzsche acrescenta: 0 triunfo da rear;ao sobre a ar;ao. Verdadeira­mente, tudo que separa uma forr;a ereativo como 0 e0 estado de uma forr;a sepa­rada do que pode fazer. Toda forr;a que vai ao limite de sua potencia e, ao contra­rio, ativa. Nao euma lei que uma forr;a va ate 0 seu limite, emesmo 0 oposto deuma lei". (Nietzsche and Philosophy, 58-59). Edesta forma que a concepr;ao deNietzsche da potencia pode ser !ida como um anrijuridicismo poderoso. Voltare­mos a essa passagem posteriormente. Para uma explicar;ao da distinr;ao entre juse lex em Espinosa, ver Antonio Negri, The Savage Anomaly, pp. 96 ss.

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II. A ETICA NIETZSCHIANA:DO POOER EFICIENTE A UMA ETICA OA AFIRMA<;:Ao

A fim de apreciar a obra de Odeuze sobre Nietzsche, temos desitua-la no contexto do desenvolvimento do proprio projeto de Oe­leuze. Nietzsche and Philosophy e 0 resultado concreto do "buracode cite anos" na vida intelectual de Deleuze, 0 mais longo intervaloem sua prolifica carreira. Segundo Deleuze, parem, tal intervalo naoeindicativa de inatividade; ao cantrario, "talvez seja nos buracos queo movimento acontece" ("Signes et evenements", 18). A obra deNietzsche, portanto, talvez nos venha fornecer uma chave para ler­mDS 0 movimento que anima os primeiros trabalhos de Deleuze. Esseestudo sabre Nietzsche ea interven~ao que cia origem as importantesdiferen,as entre as duas fases do estudo sobre Bergson que discuti­mDS no capitulo 1. Podemos resumir essa reorienta~ao dizendo que 0

dinamismo 16gico e positivo de Bergson penetrou em urn novo hori­zoote, urn campo de forc;as, no qual todas as quest6es 16gicas saopostas agora em termos de sentido e de valor. Nesse novo terreno, to­dos os tipos de novas figuras imediatamente surgem. Eo que emaisimportante, 0 nucleo da discussao 16gica de Bergson etransformadonuma analise da natureza do poder. A analise do poder fornece a basepara a passagem fundamental do estudo de Oeleuze sobre Nietzsche:dos fundamentos ontologicos do poder acria<;ao etica do ser. Final­mente, devemos referir 0 estudo sobre Nietzsche nao apenas ao tra­balho anterior sobre Bergson, mas tambern ao estudo posterior so­bre Espinosa. Oescobriremos que a constru<;ao de Oeleuze de urn ho­rizonte etico no interior da estrutura do pensamento de Nietzsche fazemergirem as quest6es que tornam posslvel (ou, na verdade, necessa­ria) a sua subsequente investiga<;ao da pratica de Espinosa.

1. 0 PARADOXO DE INIMIGOS

No estudo sobre Nietzsche, tal como no de Bergson, a analise deOdeuze e conduzida por urn antagonismo em rela<;ao a Hegel. Toda-

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via, nesse caso, a estrategia de triangula~ao de Deleuze, que discuti­mos anteriormente (sec;ao 1.1), torna-se mais complicada e mais am­bigua. Embora Nietzsche and Philosophy contenha algo da retoricaaspera contra Hegel, 0 foco da polemica ja se afasta de Hegel de modoimportante. Tal como nos estudos sobre Bergson, DeIeuze introduz ou­tros antagonistas que estao mais pr6ximos das posic;6es de Nietzschee que partilham algumas de suas preocupa,oes, a fim de manter-se auma vasta distancia de Hegel; Deleuze recusa-se a descer e a lutar nomesmo terreno de Hegel. Mais uma vez, descobrimos que Hegel her­da as falhas dos antagonistas mais pr6ximos e as leva ao extremo, comose fosse urn tipo de eleva~ao aenesima potencia.

As ambigiiidades da posi,ao de Deleuze, todavia, sao tadas aque­las relacionadas as concepc;6es de antagonismo e oposic;ao que desen­volve. Deleuze nos da indicac;6es aparentemente contraditorias sobrea melhor maneira de se escolher 0 inimigo e de se relacionar com ele.Em diversas passagens, descobrimos que ele ve 0 antagonismo funda­mental contra Hegel como urn elemento central e premente de sualeitura de Nietzsche: "Nos compreenderemos malo conjunto da obrade Nietzsche se nao observarmos 'contra quem' os seus principaisconceitos sao dirigidos. Os temas hegelianos estao presentes nessa obracomo 0 inimigo contra 0 qual ela luta" (162). "0 anti-hegelianismopercorre a obra de Nietzsche como a sua lamina cortante" (8). E, fi­nalmente, a filosofia de Nietzsche forma "uma antidialetica absolu­ta" (195). Nessas passagens, a necessidade de uma confronta,ao di­reta com Hegel e muito clara. Em outras passagens, contudo, Deleuzetenta deslocar a relac;ao com Hegel, para destruir 0 seu carater bina­rio com 0 mesmo tipo de configurac;ao triangular que encontramos nosestudos sobre Bergson:

A rela,ao de Nietzsche a Kant e como a de Marx aHegel: Nietzsche repoe a critica de pe, tal como Marx fazcom a dialetica (... ) a dialetica nasce da farma original kan­tiana da critica. Nao teria havido necessidade de por a dia­letica de volta sobre os pr6prios pes, nem de "produzir"qualquer forma de dialetica se a propria critica nao estivessede cabe,a para baixo desde 0 infeio (89).

Nesta passagem, parece que Hegel nao constitui uma preocupa­c;ao real para Nietzsche; a dialetica e urn falso problema. Em troca,

Nietzsche dirige-se a Kant como 0 seu inimigo mais proximo. Essas duasposturas formam urn paradoxo: 0 principal antagonismo de Nietzschee em rela~ao a Kant, 0 inimigo mais proximo, ou em rela~ao a Hegel,o inimigo fundamental? Deleuze tern que navegar entre Cila e Caribdis.Apresentar Nietzsche como urn anti-hegeliano radical e realmente pe­rigoso; Nietzsche aparece na posic;ao da nega~ao, da rea~ao, do ressen­liment. Alem disso, a oposi,ao absoluta parece (num esquema hegelia­no) implicar na detona~aode urn novo processo dialetico. Contudo, seao inves disso tentamos focalizar apenas urn inimigo proximo (comoKant) e nao reconhecemos 0 anti-hegelianismo como forc;a motriz funda­mental, "nao compreenderemos 0 conjunto da obra de Nietzsche" (162).

Podemos obter uma ideia preliminar do tratamento dado par De­leuze a esse problema com os inimigos, observando a sua leitura de anascimento da tragedia. Deleuze acha que esse texto primeiro apre­senta urn argumento "semidialetico", baseado na antftese Dioniso/Apolo (13) e da uma explica,ao elegante para esse problema, em ter­mos de uma evolu~ao do pensamento de Nietzsche, que resolve 0 parantinomico em duas dire<;6es: por urn lado, em dire<;ao a uma oposi­~ao mais profunda (Dioniso/Socrates ou, rnais tarde, Dioniso/Cristo)e, por outro lado, em dire<;ao a uma complementaridade (Dioniso/Ariadne) (14). No segundo par, 0 da complementaridade, 0 inimigodesapareceu completamente e a rela<;ao e a de uma afirmac;ao mutua;esse par e produtivo, mas nao pode ser auto-suficiente porque nao daa Nietzsche uma arma com a qual atacar seus inimigos. 0 primeiropar constitui de fato uma arma, mas de modo problematico. SegundoDeleuze, primeiro Nietzsche troca 0 inimigo real de Dioniso, que an­tes era ApoIo, por Socrates, mas isso demonstra ser insuficiente, por­que "Socrates e grego demais, urn tanto apoHneo demais no infcio, emvirtude de sua clareza; e urn tanto dionisiaco demais ao final" (14).Quando Socrates dernonstra ser apenas urn inimigo proximo, Nietzscheidentifica 0 inimigo fundamental em Cristo. Aqui, entretanto, com 0

Anticristo e a oposic;ao e a negac;ao que ele implica, parecemos correro risco de iniciar uma nova dialetica. Deleuze afirma que nao e este 0

caso: "A oposic;ao de Dioniso ou Zaratustra ao Cristo nao e uma oposi­~ao dialetica, mas oposic;ao apropria dialetica" (17). Que e exatamenteessa negac;ao nao-dialetica e 0 que marca a sua diferenc;a da negac;aodialetica? Nao temos ainda os meios de dar uma resposta, mas a per­gunta em si mesma estabelece 0 tom e a tarefa para a leitura de Deleuze.A resposta tera. que ser encontrada na critica total de Nietzsche; ela

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precisa ser uma negac;ao absolutamente destrutiva que nada poupa desua forc;a e nada recupera de seu inimigo; ela deve ser uma agressaoabsoluta que nao oferece perdao, nao faz prisioneiros nem saqueia mer­cadorias; ela deve marcar a morte do inimigo, sem ressurreic;ao. Estaea negac;ao radical e nao dialetica que a leitura de Nietzsche por De­leuze deve fazer.

2. a METODO TRANSCENDENTAL E A CRITICA PARCIAL

A grande contribui,aa de Kant afilasafia consiste em conceberuma Cfitica imanente que eao mesmo tempo total e positiva. Kant,entretanto, nao consegue desenvolver esse projeto, e assim 0 papel deNietzsche, de acordo com Deleuze, e corrigir os erros de Kant e salvara projelO (89). A principal falha da critica kantiana e a propria filasa­fia rranscendental. Em autras palavras, a descoberta feita par Kant deurn dominio alem do sensivel e a criac;ao de uma regiao fora das bor­das da critica, que na verdade funciona como urn refugio contra as forc;ascriticas, como uma limitac;ao dos poderes criticos. Vma critica total, aocontrario, requer uma perspectiva materialista e monista em que todoo horizonte unificado e aberto e vulneravel ainvestigac;ao desestabi­lizadora da Cfitica. Assim, e 0 proprio metodo transcendental que re­quer (au permite) gue a critica permane,a parcial. Cam as valares ide­ais protegidos e a salvo no supra-sensivel, a critica kantiana pode con­tinuar tratando das pretensoes averdade e amoralidade, sem por emrisco a verdade e a moralidade em si mesmas. Kant efetivamente con­cede imunidade aos valores estabelecidos da ordem dominante e "as­sim a critica total se torna uma poHtica de compromissos" (89). A cri­tica da razao kantiana funciona de modo a reforc;ar os valores estabe­lecidas da ardem daminante e nas tarna abedientes a ela: "Quandaparamos de obedecer a Deus, ao Estado, aos nossos pais, a razao surgee nas persuade a cantinuarmas senda doceis". (92) A propria colaca,aada plana transcendental e a canseguente parcialidade da critica, par­tanto, e 0 que permite ao kantismo ser conservador. Sob 0 manto dodesinteresse, Kant aparece como urn passivo funcionario do Estado, urnintelectual tradicional em termos gramscianos, legitimando os valoresdas paderes daminantes e protegenda-as das far,as criticas. Finalmente,a critica de Kant e par demais palida, reprimida pela "humilde reca­nhecimento dos direitos dos criticados" (89). Kant e muito gentil, muito

bern comportado e muito timido para questionar seriamente os valo­res estabelecidos fundamentais. Em troca, a critica total nao reconhe­ce qualquer restric;ao, nenhum limite ao seu poder e e por isso necessa­riamente insurrecional; a Cfitica total deve ser urn ataque fulminanteaos valores estabelecidos e aordem no poder que eles sustentam.

A Cfitica kantiana nao apenas nao consegue ser total, ela tam­pouco consegue ser positiva; na verdade, a incapacidade de ser totalobstrui a possibilidade de ser positiva. 0 momento negativo e destru­tivo da critica (pars destruens), que poe 0 horizonte total em questaoe desestabiliza previamente os poderes existentes, deve limpar a ter­rena para gue a mamenta pradutiva (pars construens) possa liberarau criar novos poderes - a destruic;ao abre 0 caminho para a cria­,aa. Assim, a dupla derrota de Kant e, de fata, apenas uma. Esta can­clusaa se desdabra diretamente da enfase de Nietzsche nas valores:"Urn das principais moveis para a obra de Nietzsche e a fata de Kantnao haver desenvolvido uma verdadeira critica em termos de valares"(1). A parcialidade da primeiro rna menlO destrutiva da critica permi­te que os valores estabelecidos essenciais sobrevivam, e assim deixa delimpar 0 terreno que e necessaria para 0 poder canstrutivo criador devalar. A "instancia ativa" (89), gue falta acritica de Kant, e precisa­mente aquela gue verdadeiramente legisla: legislar naa e legitimar aordem ou preservar valores, mas justamente 0 oposto, e criar novasvalares (91). Essa critica das valares nas far,a a cansiderar a questaado interesse e da perspectiva. Vma vez que nao podemas aceitar qual­quer ponto de vista transcendental exterior ao plano das forc;as quedeterminam e legitimam 0 conhecimento absoluto e os valores univer­sais, devemos localizar a perspectiva no plano imanente, e identificaros interesses a que ela serve. Assim, 0 unico principia possivel de umacritica tatal e a perspectivisma (90).

Esse ataque ao metodo transcendental de Kant, invocando 0 pers­pectivismo, caminha de mao dadas com 0 ataque de Nietzsche ao idea­lisma platonico. Deleuze abarda essa guestaa consideranda "a farmada questaa" gue anima a investiga,aa filasofica. A guestaa central paraa investigac;ao plat6nica, diz Deleuze, e "QuJest-ce que?": "Que ea

beleza, que e a justic;a etc.?"(76). Nietzsche, entretanto, quer alterara questao central para "Qui"?: "Quem e bela?", ou melhar, "Qualdeles (as) e bela?". Mais uma vez a faca da atague e a metada trans­cendental. "Qu'est-ce que?" e a questao transcendental por excelen­cia, que busca urn ideal que esta aeima, coma urn principia supra-sen-

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sivel organizando as varias instancias materiais. "Qui?" e uma ques­tao materialista que encara 0 movimento de fon;as reais de uma de­terminada perspectiva. Com efeito, as duas quest6es apontam para doismundos diferentes quando se intenta responde-las. Deleuze chamadmais tarde a questao materialista de "metodo de dramatiza~ao" e in­sistid. em que esta e a forma de investiga~ao principal em toda a his­taria da filosofia (com exce<;ao talvez da obra de Hegel)!. 0 metodode dramatiza~ao, por conseguinte, e uma elabora<;ao do perspectivismoenquanto parte de uma critica do interesse e do valor: "Nao e 0 bas­tante colocar a questao abstrata 'que e a verdade?' (qu'est-ce que Ievrai)"; ao inves disso devemos perguntar "quem quer a verdade (quiveut Ie vrai), quando e onde, como e quanto?" (~'La methode de dra­matisation", 95). 0 objeto do ataque na pergunta "Qu'est-ce que?" eo espa~o transcendental que ela implica e que prove urn santuario paraos valores estabelecidos, contra 0 poder destrutivo da investiga~aoeda crftica. Esse espa~o transcendental imune da critica e0 locus daordem. Podemos certamente identificar uma inspira~ao bergsoniananesse argumento. A pergunta "Qu'est-ce que?" permanece abstrataporque contem dois erros: (1) busca a essencia em uma qiiididade es­tatica ao inves de em uma dinamica do movimento (e por isso podeapenas revelar diferen<;as de grau e nao diferen<;as de natureza); (2) eassume quer uma causa formal quer uma causa final (a forma da jus­ti<;a e da verdade, do Justo e do Verdadeiro) como 0 principio or­denador da realidade. A questao "Qui?", que nos leva ao terreno davontade e do valor, necessita de uma dinamica imanente do ser, umafor<;a de diferencia<;ao interna e eficiente.

1 Este e urn exemplo no qual Deleuze parece urn tanto zeloso demais em seuataque a Hegel. "Se se considera 0 eoniunto da hist6ria da filosofia, procurar-se­ia em vao por uma filosofia que pudesse proceder pela questao 'Qu'est-ce que?'(... ) Talvez Hegel, talvez exista apenas Hegel, precisamente porque a sua dialetica,sendo uma dialetica da essencia vazia e abstrata, nao e separada do movimentoda contradi~ao" ("La methode de dramatisation", 92). Na discussao que se seguea essa apresenta~ao, Ferdinand Alquie castiga Deleuze por essa observa~ao: "La­menta a rejei~ao, urn tanto apressada demais, da questao 'Qu'est-ce que?', e naoposso aceitar que digas, intimidando·nos urn pouco, no inicio, quer dizer, que ne·nhum fil6sofo coloeou essa questao aexce~ao de Hegel" (104). Alquie. argumen­ta, com propriedade, creio, que Hegel nao pode ser singularizado tao facilmente eque muitos fil6sofos (Platao, Leibniz, Kant etc.) deram enfase aquestao "Qu'est­ce que?" em varios graus e em diversos eontextos.

NOTA: A SELEC;;Ao DE DELEUZE DO NIETZSCHE "IMPESSOAL"

Devemos ser cuidadosos com a pergunta "Qui?", todavia, por­que no Ni,tzsche de Deleuze a resposta que tal pergunta suscita nun­ca sera encontrada em urn sujeito individual ou coletivo, mas sim emuma for<;a ou vontade pre-subjetiva. As dificuldades apresentadas atradu~ao inglesa dessa passagem servem para iluminar 0 problema:Hugh Tomlinson observa que "quem" [who] nao pode funcionarcomouma tradu~ao de "qui", porque e dirigido a uma pessoa; assim, porsugestao de Deleuze, ele traduz, "qui" por "qual" [which one] (207,nota 3). Deleuze tenta explicar essa nuance posteriormente, em seuprefacio a edi~ao inglesa: "Aqui devemos nos livrar de todas as refe­rencias 'personalistas'. Aquele que [the one that] ... nao se refere a urnindividuo, a uma pessoa, mas sim a urn acontecimento, quer dizer, asfor<;as em suas varias rela<;:6es numa proposic;ao ou num fenomeno, earela<;ao genetica que determina essas for<;as (potencia)" (xi). Essa in­sistencia na natureza impessoal da pergunta "Qui?" lanc;a uma novaluz na acusac;ao de Deleuze de que a pergunta "Qu'est-ce que?" eabstrata. 0 impessoal "Qui?" nao e rnais concreto porque localizasujeitos ou agentes espedficos, mas porque opera no terreno materia­lista de uma causalidade eficiente.

Emuitas vezes dificil ler Nietzsche sem adotar referencias per­sonalistas. Nao apenas porque ha uma longa tradi<;ao que 0 Ie dessaforma, mas tambern porque nao seria dificil citar diversas passagensnas quais nao temos outra alternativa senao ler Nietzsche de forma"personalista". Aqui temos urn exemplo muito claro da seletividadede Deleuze. Com efeito, Deleuze traz, para a leitura de Nietzsche, umaabordagem bergsoniana, de modo a interpreta-lo em termos l6gicos,quer dizer, como uma l6gica cia vontade e do valor que anima 0 cam­po de for<;as pre-subjetivas. Sempre que perguntarmos "Qui?" esta­remos focalizando uma certa vontade de potencia como resposta (ef.53). A pesquisa de Deleuze passa de uma lagica bergsoniana do serpara uma 16gica nietzschiana da vontade. Esclarece-se, portanto, comoa sele<;ao de Deleuze ajusta-se ao alcance de seu projeto. A estrategiainterpretativa "impessoal" tambern pode ser tamada como uma sele­~ao polftica. De fato, a leitura de Deleuze causou uma impressao taoprofunda nos estudos sobre Nietzsche, em parte porgue consegue va­lorizar ao maximo 0 pensamento de Nietzsche, evitando ou diluindo,ao mesmo tempo, a forc;a dos argumentos sobre 0 seu individualismo

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e reacionarismo politico, quase todos centrados em torno de uma se­le~ao e interpreta~ao "personalista". 0 meu ponto de vista, ent~etan­to, e que, embora essa sele\=ao possa ser necessaria a Deleuze, e !usta­mente esse aspecto "impessoal" que marca 0 limite do desenvolvlmen­to, por Deleuze, dos veios eticos e politicos em Nietzsche.

3. A L6GICA DO ESCRAVO E 0 PODER EFICIENTE

Ate agora consideramos os ataques nietzschianos de Deleuze aosinimigos proximos, Kant e Piatao. 0 ataque nietzschiano diretamen­te endere~ado a Hegel, 0 inimigo fundamental, aparece em sua formabergsoniana. Como nos trabalhos sobre Bergson, a acusa~ao inicial deDeleuze adialetica e, rnais uma vez, a de que esta e dirigida por urnmovimento negativo que nao pode chegar a uma concep\=ao concre~a

e singular do ser. A contradi~ao e a oposi~ao podem apenas p~oduzlrresultados abstratos (157) e somente levar a uma determma~ao abs­trata do ser, cega as suas nuances sutis, as suas singularidades: ~'O serda logica hegeliana e urn mero ser do 'pensamento', puro e vazlO, qu~se afirma passando para 0 seu proprio oposto. Mas este ser nunca fmdiferente do seu oposto, nunca teve de passar para aquilo que ja era.o ser hegeliano e 0 nada pum e simples" (183). 0 nucleo desse ata­que e que 0 ser hegeliano e abstrato e nao difere realmente de seuoposto. Deleuze, contudo, nao fornece aqui qualquer fundamento s~bs­tancial para essas afirma\=oes e assim elas podem soar urn tanto vazlas,a menos que dentro delas leiamos a critica da determina~ao,de Bergson.Vimos que Bergson argumenta que a diferenc;a somente e concebldacomo oposic;ao atraves de uma abstrac;ao de diferenc;as reais,' por um~visao imprecisa da realidade; a diferenc;a real nao se encammha radl­calmente para a oposiC;ao. Alem disso, °movimento qu~ esse ser he­geliano implica, "passando para 0 seu oposto", e urn movm~ento com­pletamente externo e, portanto, falso, que nunca chega mats per;o.deuma afirmaC;ao real e concreta. Portanto, 0 movimento ontologlcohegeliano permanece abstrato e acidental. Com efeito, 0 Nietzsche deDeleuze pressupoe essa analise bergsoniana do carater abstrato do mo­vimento ontologico negativo da determinaC;ao.

Uma vez que aceitemos que os argumentos bergsonianos funcio­nam como a base para essa discussao, nao nos deve surpreende~,entao, que Deleuze encontre uma alternativa em Nietzsche: "Substl-

tui 0 elemento especulativo da negac;ao, oposic;ao ou contradir;ao, peloelemento pritico da difference" (9). Esta e uma afirma~ao que lembraBergson, exceto pelo fato de podermos observar que os termos doconfhro tornaram-se mais concretos - agora 0 "elemento especula­tivo" e contrastado ao "elemento pratico". Na verdade, 0 advento deNietzsche no pensamento de Deleuze transforma a cena teorica berg­soniana com uma contribuir;ao muito importante. Nao temos maiscategorias puramente logicas (diferenr;a interna vs. diferenr;a externae movimento ontologico negativo vs. positivo), mas agora a logica eapresentada em termos de volir;ao e valor (negar;ao vs. afirmar;ao einterioridade vs. exterioridade). Essa mudan~a em rela~ao ao horizon­te de for~as marca a mesma tendencia do pensamento de Deleuze, queobservamos anteriormente na segunda fase dos estudos sobre Bergson.A transposir;ao para 0 terreno dos valores marca 0 inicio de nossa tra­jetoria, da ontologia aetica e apolitica.

A complexidade desse novo terreno e a importancia da transfor­mar;ao de Nietzsche tornam-se evidentes quando Deleuze aborda a po­lemica de Nietzsche contra a logica do escravo e, atraves dessa abor­dagem, desenvolve urn novo ataque adialetica hegeliana: "Nietzscheapresenta a dialetica como a especula~ao da plebe, como a maneirade pensar do escravo: 0 pensamento abstrato da contradir;ao prevalece,entao, sobre 0 sentimento concreto da diferen~a positiva" (10). Sobreesse novo terreno nos temos personae dramciticas representando os doismetodos filosoficos: 0 escravo da especula\=ao abstrata versus 0 senhordo pathos e da pratica concretos. Penetramos agora, entretanto, numapassagem bastante dificil e devemos ter 0 cuidado de reconhecer, des­de 0 inicio, 0 foco espedfico e 0 conteudo polemico do argumento deDeleuze. Sem duvida, Deleuze esra lendo On the Genealogy ofMoralscomo urn ataque aspero contra Hegel, mas contra que Hegel? Uma vezque lidamos com 0 senhor e 0 escravo, parece obvio que 0 alvo deDeleuze e a Phenomenology of Spirit, ou talvez a versao populariza­da por Kojeve dessa obra. Contudo, se a pomos como foco, 0 ataquede Deleuze parece urn tanto desorientado. Nurn estudo muito inteli­gente e cuidadoso do Nietzsche and Philosophy, Jean Wahl registraos defeitos desse ataque: "Nao haven., na Phenomenology of Spirit,algo mais profundo, capaz de resistir acritica nietzschiana?" (364).Wahl sem duvida tern razao ao observar que 0 Nietzsche de Deleuzenao enfrenta diretamente 0 argumento central de Hegel na Phenome­nology; mas isso deveria nos indicar que talvez tenhamos interpreta-

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do erroneamente 0 alvo principal. Epreciso entao refinar 0 primeiroprindpio metodologico que apresentamos na "Nota Preliminar": enecessario reconhecer nao apenas "contra quem" a polemica e dirigida,mas tambem contra qual argumento espedfico.

Obtemos uma perspectiva mais adequada do ataque nietzschianoapresentado aqui se 0 lermos como uma continuac;ao da polemica con­tra a Science of Logic de Hegel. Com efeito, Deleuze tomou a ofensi­va 16gica desenvolvida por Bergson e acrescentou a questao da vonta­de _ "Quem quer urn movimento ontol6gico negativo?". Este e 0 me­todo da dramatiza<;ao: lendo Bergson, Deleuze faz a pergunta plat6­nica "Que e a l6gica negativa do ser?"; mas agora, com Nietzsche, elepode tornar a discussao mais concreta dramatizando a investigac;aoem termos da vontade. Devemos ter 0 cuidado de estar atentos, noentanto, para 0 fato de que a pergunta "Qui?" nao encontra a suaresposta num individuo, num grupo, ou mesmo, numa classe social;ao contrario, "Qui?" nos leva a identificar urn tipo de forc;a, ou umaqualidade espedfica da vontade. Nessa dramatizac;ao, portanto, 0 es­cravo e a persona que joga a vontade para urn movimento negativo.Nietzsche apresenta 0 silogismo do escravo como a falsa tentativa dechegar aauto-afirmac;ao. Mais uma vez, embora estejamos lidando como problema da auto-afirmac;ao, a discussao nada tern a ver com 0 su­jeito da consciencia, mas sim, e estritamente, com uma logica da ava­liac;ao dramatizada em termos de duas personae. a escravo represen­ta a logica negativa da avaliac;ao: "Tu es mau; portanto eu sou born".o silogismo do senhor e 0 inverso: "Eu sou born, portanto tu es mau"(119). Deleuze remete brilhantemente essa questao de volta aquestaodo movimento logico ao focalizar a func;ao diferente do "partanto"nos dois casos. No silogismo do senhor a primeira clausula e indepen­dente, e por isso porta a afirmac;ao essencial e positiva; "portanto" me­ramente introduz urn correlato negativo. A logica do senhor manifesta­se, na descric;ao de Deleuze, como urn tipo de causalidade eficiente daavaliac;ao - 0 efeito e completamente interno acausa e se apresentapor uma emanac;ao logica. "Portanto" marca a necessidade de urnmovimento interno. No silogismo do escravo, entretanto, 0 "portan­to" tern urn papel completamente diferente; tenta reverter a primeiraclausula negativa para chegar a uma conclusao positiva. A logica doescravo tenta operar urn movimento completamente externo, utilizandoo operador logico "portanto" para relacionar as duas clausulas opos­tas. Se tentarmos colocar essa logica em termos causais, concluimos

que 0 "portanto" do escravo pode apenas demarcar uma causa peraccidens. Alem disso, a segunda clausula do escravo nao pode ser umaafirma<;ao real porque 0 efeito ("Eu sou bom") nao pode conter maisperfei<;ao ou realidade que a sua causa ("Tu es mau"). "Este e 0 es­tranho silogismo do escravo: ele necessita de duas nega<;6es a fim deproduzir uma aparencia de afirma<;ao" (121). Deleuze claramente seinspira, mais uma vez, nas acusac;6es 16gicas bergsonianas contra 0

movimento negativo da dialetica. A afirmac;ao do escravo, como adeterminac;ao da dialetica, e urn falso movimento que produz, simples­mente, uma "exterioridade subsistente."

Enquanto esse primeiro ataque nietzschiano alogica do escravobusca retrospectivamente em Bergson a sua func;ao (desde que agoraa vontade e a for<;a entram no jogo), Deleuze tambem e capaz de de­senvolver uma acusac;ao posterior e mais poderosa dirigindo-se, pros­pectivamente, a Espinosa. A negac;ao assume uma forma diferente nocampo de forc;as: a segunda nega<;ao do silogismo do escravo (conti­da no "portanto") e uma nega<;ao puramente logica, enquanto a pri­meira negac;ao ("Tu es mau") e uma avaliaqao negativa. Deleuze ex­plica que 0 valor negativo dado ao outro, da perspectiva do escravo,nao eatribuido simplesmente porque 0 outro e forte, mas porque 0

outro nao refreia a sua for<;a. Eai que Deleuze localiza 0 paralogismoprimario do escravo: a negac;ao avaliativa inicial e baseada na "fic<;aode uma for<;a separada daquilo que pode fazer" (123). A 16gica doescravo nega a for<;a do forte nao pela oposic;ao de uma outra forc;a,mas pela "ficc;ao" de dividi-Ia em duas partes. Essa divisao ficticia criao espa<;o para a imputa<;ao do mal: nao e mau ser forte, mas e maupor a for<;a em a<;ao. A nega<;ao avaliativa do escravo e baseada numafalsa concep<;ao da natureza do poder. a escravo sustenta que a po­tencia euma capacidade exterior OU transcendente ao campo de for­<;as, que pode ou nao se manifestar em a<;ao. Essa separac;ao da po­tencia em duas partes permite a criac;ao de uma relac;ao causal "fictl­cia": "A manifestac;ao e transformada em urn efeito que se refere aforc;acomo se esta fosse uma causa distinta e separada" (123). a escravoestabelece uma relac;ao na qual a forc;:a aparece como uma causa me­ram'ente formal - a forc;:a representa uma manifestac;:ao possivel 2. 0

2 Nesse contexto nietzschiano, Deleuze apresenta 0 argumento como se £os­se parte de urn ataque apropria causalidade; mas niio ediflcil trazer tal questiio devolta ano~iio da causa interna desenvolvida anteriormente na se~iio sobre Bergson.

I,70 Michael Hardt Gilles Deleuze - Urn Aprendizado em Filosofia 71

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i:i senhor de Nietzsche, entretanto, insiste em que a potencia existe 50­

mente en acte e naG pode sec separada de sua manifesta~ao: "A fort;aconcreta e aquela que vai ate as ultimas conseqiiencias, as bordas ciapotencia ou do desejo" (53). 0 senhor coneebe uma rela~ao interna enecessaria entre a for<;a e a sua manifesta<;ao.

Qual 0 raciocinio por mis dessa afirma<;ao de Deleuze? Por que16gica e a potencia do escravo simplesmente uma "fiq:ao", e a poten­cia do senhor mais real ou concreta? Obviamente isso naG pode serlido como uma simples observa<;ao empirica, porgue Nietzsche seriao primeiro a dizer que a potencia do escravo emuito real, e, na ver­dade, eesta a concep<;ao que mais prevalece na hist6ria, a tal pontoque "0 forte tern sempre que ser defendido contra 0 fraco" (58). Paracompreender esse argumento, temos que traze-Ia mais uma vez devolta ao plano ontol6gic03. Conforme observamos anteriormente, nasontologias escohisticas, a essencia do ser ea sua "produtividade" e asua "produtibilidade", ou, em termos espinosistas, a potencia ea es­sencia do ser (J~tica, IP34). Por conseguinte, a concep<;ao do escravoe uma "ficc;ao" precisamente porque introduz uma qualidade aci­dental na potencia do ser, ao estabelecer uma relac;ao causal externa.A 16gica do senhor proporciona uma concepc;ao mais substancial depotencia na medida em que poe 0 efeito, a manifestac;ao, dentro dacausa, quer dizer, dentro do ser. Essa avaliac;ao econseqiiencia deuma concepc;ao materialista do ser, e William Ockham, urn dos ma-

De fato, 0 argumento se torna mais claro se 0 interpretamos como uma afirma~ao

da causa interna ao inves de como urn ataque acausalidade tout court. Eu argu­mentaria, em acrescimo, que toda a polemica de Nietzsche contra a causalidadepoderia ser lida produtivamente como uma polemica contra a causa externa e umaafirma~ao da causa interna. Para urn exemplo do argumento de Nietzsche, ver Twi­light of Idols, "The Four Great Errors," pp. 47-54.

3 Com essa proposi~ao polemica de poder eficiente, Deleuze esta participandode uma longa tradi~ao filos6fica. A fonte fundamental pode talvez set encontradana distin~ao de Arist6teles entre 0 ser potencial e 0 ser atual na Metafisica, Livre5. Contudo, esse atgumento pode ser encontrado sob varias formas em toda a tradi­~ao materialista, de Ockham a Marx. De fato, a distin~ao de Espinosa entre po­testas e potentia, que tern urn papel central na leitura de Antonio Negri, corre­laciona-se muito de perto com 0 tratamento de Nietzsche da potencia do escravoe da potencia do senhor. Para uma explica~aodessa distin~ao na interpreta~ao deEspinosa por Negri, ver meu prefacio a The Savage Anomaly, "The Anatomy ofPower," pp. xi-xvi.

terialistas mais rigorosos da tradic;ao ocidental, expressa esse pontoclaramente:

A distin<;ao entre ente em potencia [ens in potentia] eente em ate [ens in actu] (... ) nao significa que algo que naoesta no universo, mas que pode existir no universo, e ver­dadeiramente urn ser, ou que algo mais que esta no univer­so e tambem urn ser. Ao contrario, quando Arist6teles divideo "ser" em potencialidade e atualidade (... ) ole tern em menteque 0 nome "ser" e predicado de algo atraves do verba "e",numa proposic;ao que simplesmente afirma urn fato em re­lac;ao a uma coisa e nao e equivalente a uma proposic;aocontendo 0 modo da possibilidade (... ) Assim, Arist6tolesdeclara, no mesmo lugar, que "0 ser e divisivel em potenciale atual, como 0 sao 0 conhecimento e 0 repouso"; mas nadaeconhecer ou repousar a menos que se esteja, atualmente,conhecendo ou repousando. (Philosophical Writings, 92).

Essa percep<;ao de Ockham nos leva diretamente ao nucleo dadistinc;ao nietzschiana de Deleuze entre potencia do senhor e poten­cia do escravo. Dizer que "0 nome 'ser' e predicado de algo por meiodo verbo 'e''' e dizer que a potencia do ser esta necessaria e eficiente­mente ligada asua manifestac;ao, que a forc;a do ser e inseparavel da­quilo "que ele pode fazer". A concepc;ao de potencia do escravo e uma"ficc;ao" porque deixa de reconhecer a real natureza substancial doser, e tenta manter a separac;ao entre 0 potencial e 0 atual por umano<;ao de possibilidade. A potencia do escravo e real e certamenteexiste, mas nao pode existir como uma expressao real da substancia.A concepc;ao de potencia do senhor revela 0 ser em sua arual produ­tividade; em outras palavras, expressa a essencia do ser como a po­tencia atual e eficiente (e nao meramente possivel ou formal) do ser.Ao estruturar a discussao nesses termos, podemos observar que 0 ar­gumento de Nietzsche tern aver nao com a quantidade de potenciamas com a sua qualidade. "Aquilo que Nietzsche chama de fraco ouservil nao e0 que e menos forte, mas sim aquilo que, qualquer queseja a sua for<;a, eseparado do que pode fazer" (61). Toda a discus­sao sobre 0 poder tern pouco a ver com a forc;a ou a capacidade, esim com a relac;ao entre a essencia e a manifestac;ao, entre 0 poder eaquilo que pode fazer. A contribuic;ao de Nietzsche para esse discur-

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so sobre 0 poder e uma avalia,ao - ele classifica de nobre a potenciaque einterna asua manifestat;ao4•

Tal analise da natureza da potencia ja e bastante sugestiva deuma erica. Deleuze extrai as implicac;6es politicas e eticas dos dais ti­pas de potencia com uma comparac;ao interessante entre Nietzsche eCalicles:

Calicles se esfon;a por distinguir natureza e lei. Tudaque separa uma for,a daquilo que ela pode fazer ele chamade lei. A lei, nesse sentido, expressa 0 trjunfo do fraco SO~

bre 0 forte. Nietzsche acrescenta: 0 trjunfo cia reac;ao sabrea ac;ao. De fato, tudo 0 que separa uma forc;a ereativo, comoreativo e 0 estado de uma for,a separada daquilo que podefazer. Tocla forc;a que vai ate 0 limite de sua potencia e, aocontnhio, ativa. Nao euma lei que rada forc;a va ate 0 seulimite; e, ao contd.rio, 0 oposto de uma lei (58-59).

Esta passagem apresenta urn terrena que emuito proximo da­quele dos escritos polfticos de Espinosa. Primeiro, Espinosa afirma:potencia; virtude; direito, e em seguida contrapoe jux a lex. Tal for­mula~ao ajusta-se a Espinosa como uma extensao de sua etica e comoa fun~ao para uma poHtica democd.tica viavel. Contudo, nesse pon­to de nossa leitura deleuziana de Nietzsche, nao temos ainda os ele­mentos praticos e construtivos necessarios para elaborar essa baseetica e poHtica. Temos uma teoria substancial do poder que pode nosauxiliar como uma ofensiva ao juridismo (baseado na concep~ao depotencia que ole implica), mas nao ternos ainda qualquer alternativapositiva para complementar essa ofensiva. Para conquistar essa alter­nativa, teremos de esperar ate que possamos elaborar uma concep­~ao da pratica etica. Por enquanto, entao, podemos apenas ler a ana­lise nietzschiana da potencia como sugestiva de uma etica e de umapolitica futuras.

Fizemos urn razoavel progresso ao dar corpo a logica e ao valorda distin,ao de Nietzsche entre a potencia do senhor e a potencia do

4 Essa avalia~ao das duas naturezas do poder e urn elemento que muito apro­xima 0 Nietzsche deleuziano de Espinosa: "Por virtude e potencia [potentia] enten­do a mesma coisa" (Etica,IVD8).

escravo. Contudo, fica bastante claro que 0 senhor e 0 escravo de Hegelnao trilham diretamente esse mesmo terreno. 0 escravo de Hegel estainteressado em consciencia e independencia; por demais preocupadocom a sua morte e por demais envolvido com 0 seu trabalho paracolocar a questao do valors. Evidentemente, a discussao anterior naose referia aPhenomenology. Deleuze nolo dirige 0 ataque nietzschianocontra 0 senhor e 0 escravo de Hegel, mas, sim, contra uma extra­pola,ao da Science of Logic de Hegel. Nao fazemos rnais a pergunta"Que e a logica dialetica do ser?" e sim "Quem quer essa logica"? Essae a linha de raciocinio que nos encaminha para a avalia~ao do senhore do escravo,e para as duas concep~6esde poder. Assim, Deleuze con­duz uma critica de segunda ordem de Hegel que se constroi sobre a16gica bergsoniana e avan,a ate a politica de Espinosa. Devemos ob­servar que a tatica de Deleuze para promover 0 ataque a Hegel mu­dou ligeiramente. Mesmo que a retorica tenha se intensificado, a po­lemica nao mais se aplica diretamente ao argumento de Hegel; dirige­se a uma deriva,ao de Hegel, a uma implica,ao de sua dialetica. Essanova tatica concede a Deleuze maior autonomia em rela~ao a termi­nologia hegeliana e, na verdade, transporta a dialetica para 0 terrenode Deleuze (neste caso, do sentido e do valor) de modo que ele pode,ali, presidir 0 combate.

NOTA: 0 RESSURGIMENTO DA NEGATIVIDADE

Urn parentese sobre a resposta de Steven Houlgate as acusa,oesde Deleuze contra a 16gica do escravo, em Hegel, Nietzsche and theCriticism of Metaphysics, pode nos auxiliar a caracterizar a impor­tancia dos argumentos ate aqui apresentados. 0 projeto de Houlgatee 0 de defender Hegel contra as recentes acusa~6es assestadas pelosnietzschianos franceses (Deleuze em particular) e, como urn bornhegeliano, voltar a ofensiva, demonstrando que nao apenas eHegelinvulneravel as criticas nietzschianas, como ele de fate completa 0 pro-

5 Mario Tronti observa que 0 que falta precisamente na dialetica senhor-es­cravo de Hegel e a questao do valor. :E par isso que Marx precisa combinar umacrftica de Hegel com uma crftica de Ricardo para chegar a sua no~ao de valor dotrabalho (Operai e capitale, 133-43).

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jeta nietzschiano melhor do que 0 proprio Nietzsche. Houlgate fazdais contra-ataques centrais ao nietzschianismo de Deleuze, 0 qual:(1) deixa de observar que a logica negativa de Hegel e necessaria paraa determinac;ao; (2) e a sua concep<;ao do eu nao preenche os requisi­tos para alcanc;ar uma interioridade verdadeira. Dada nossa leiturada evolw;ao da obra de Deleuze, e do desenvolvimenta de seu proje­to, deveria estar bern claro que estes dais pontos sao completamentefora de proposita. Houlgate explica:

A dialetica de Hegel nao e, na verdade, baseada emuma negac;ao externa inicial das diferen<;as espedficas en­tre as coisas e, parranta, naG constitui urn vao para urnmuncio abstrato de conceitos ficcionais, como Deleuze afir­rna (... ) De acordo com a Science of Logic, de Hegel, umacoisa cleve ser em si mesma, a negac;ao de alga mais (... ) seepara ter uma determinada caracterfstica (... ) qualquer queseja. A no<;ao de algo real ou especifico que nao e negati­vamente determinado, ou mediado, eprecisamente aquilaque a filosofia dialetica demonstra ser uma impossibilida­de. Contudo, Deleuze nao consegue compreender 0 pontode vista de Hegel. (7)

"Omnis determinatio est negatio." Houlgate nos lembra que, sequeremos determina~ao,devemos ter nega~ao. Deleuze nos mostrou,em seus estudos sobre Bergson, que concorda com este ponto - masnao eDeleuze quem quer a determina~ao. Vimos que 0 movimentonegativo da determina<;ao que funda 0 ser hegeliano e, por defini<;ao,urn movimento completamente externo. Mais do que isso, quandoconsideramos esse movimento dentro de urn esquema causal, desco­brimos que esta funda~ao externa e abstrata, que nao pode adequa­damente sustentar 0 ser enquanto subsrancia, como causa sui. Devemosadmitir que Deleuze nao repete esse argumento em Nietzsche and Phi­losophy; como registramos, ele toma 0 ponto de vista bergsonianocomo pressuposto e constroi sobre ele. Contudo, retornamOs tantasvezes a esse argumento ate agora que nos parece comico quando Houl­gate afirma que, tal como Nietzsche, Deleuze nao esta suficientemen­te familiarizado com Hegel, 0 logico, doctor subtilis: "Quais sao asconseqiiencias do fracasso de Deleuze em apreciar 0 ponto de vista 16­gico urn tanto rarefeito de Hegel?" (8). Jean Wahl chega mais perto

da verdade quando observa que Deleuze as vezes cai em exagero re­torico quando se entrega ao seu odio desenfreado por Hegel 6.

A segunda acusa~aode Houlgate demonstra uma confusao similarem rela<;ao ao projeta de Deleuze. Ele Ie a critica nietzschiana de Deleuzecomo se esta fosse uma empreitada reformista, satisfeita por criticar osmeios de Hegel, nao os seus fins. Assim, tal como Houlgate presumeque Deleuze busca a determina~ao, que implica na nega~ao,ele pressup6etambern, como urn outro objetivo, a interioridade da consciencia de sique igualmente demonstra necessitar de uma nega~ao: "Deleuze assimdescarta a possibilidade de que a verdadeira e concreta egoidade devaser compreendida em termos da nega~aode, ou media~aopor, urn outro"(7). E mais ainda: "Ao contrario de Hegel, Deleuze nao acredita que aconsciencia-de-si genuina requeira a consciencia do reconhecimento desi mesmo do outro" (8). Houlgate esta supondo que 0 projeto de Deleuzeeo de refinar ou completar os argumentos de Hegel; Deleuze, ao contra­rio, nao quer ter nada a ver com a consciencia-de-si e com 0 eu que elaproduz (cE. Nietzsche and Philosophy, 39, 41-42,80). Tanto quantoNietzsche, ele a ve como urn doen~a, como urn ressentiment causadopelo reflexo de uma for<;a que retorna sobre si mesma. Aquilo que De­leuze procura, ao inves disso, e uma exterioridade produtiva baseadana afirma<;ao (36). Podemos compreender esse ponto com maior cla­reza se tivermos em mente as implica~6esdos dois tipos de potencia emNietzsche. Finalmente, Houlgate nos mostra uma razao pela qual De­leuze poderia ter escolhido nao dirigir-se diretamente ao senhor e aoescravO da Phenomenology de Hegel: toda a constru~ao se orienta nosentido de promover a doen~a da interioridade e da consciencia-de-si.

4. 0 TRABALHO DO ESCRAVO E A CR1TICA INSURRECIONAL

Sera verdadeiro, como afirma Jean Wahl, que ha algo rnais ricoe mais profundo na analise de Hegel da dialerica senhor-escravo que

6 "Hi certamente no autor urn tipo de ressentimento com respeito a filosofiahegeliana que as vezes the permite escrever passagens penetrantes, mas algumas vezes,tambem, amea~a desorienta-lo" ("Nietzsche et la philosophie", 353). Wahl certa­mente tern razao ao apontar esse perigo. A defesa de Deleuze baseia-se em seu de­senvolvimento de uma oposi~ao nao~dialetica, que nao seria urn ressentiment, mas

pura agressao.

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escapa da crftica nietzschiana? au, ao contnirio, Deleuze ja nos for­neceu as armas para urn ataque nietzschiano adequado? Tentemosverificar 0 desafio nietzschiano de Deleuze, trazendo-o para 0 proprioterreno de Hegel. a escravo de Hegel nao raciocina, "0 senhor e mau;portanto eu sou born"; ao inves disso, podemos colocar 0 silogismodo escravo de Hegel como: "Eu temo a morte e sou fon;ado a traba­lhar; portanto, eu sou consciencia de mim por mim mesmo, indepen­dente". A logica deste silogismo toma duas rotas - urn caminho im­plfcito em relac;ao ao senhor e urn caminho explicito em relac;ao aoobjeto do trabalho do escravo, caminhos que estao articulados comouma progressao para descrever a educac;ao do escravo.

o caminho implicito se funda na confrontac;ao do escravo coma morte, "0 Senhor absoluto". Nesse encontro, 0 escravo experimentaa negac;ao de tudo que e solido e estavel em seu ser: "Mas esse puromovimento universal, 0 fluidificar-se absoluto de todo 0 subsistir e aessencia simples da consciencia-de-si, a negatividade absoluta, puro'ser­para-si que e implfcito nessa consciencia" (Phenomenology, § 194).Numa primeira observac;ao, 0 processo implicito parece desenvolvera seguinte logica: a consciencia-de-si inicial do escravo, urn simples ser­para-si, e negada na morte e depois e ressuscitada como uma afirma­c;ao da vida e como urn puro ser-para-si. Contudo, nao podemos com­preender a logica dessa passagem a menos que observemos que esse"fluidificar-se absoluto de todo 0 subsistir", nao e, propriamente fa­lando, uma negac;ao absoluta ou total, porque preserva a "naturezaessencial" da consciencia sob assedio. A mone do eSCravo nao servi­ria aos propositos de Hegel: ele quer destruir tudo 0 que e inessencialno escra_vo, e parar no lim~ar da essencia. Essa agressao parcial, essaconten,aa da far,a destrutlva da nega,ao dialetica, ea que permite aconservac;ao - e a negac;ao "que suprassume de tal forma que pre­serva e mantem 0 que e suprassumida" (§ 188).

Ora, presumindo que aceitemos que e a oposic;ao (embora par­cial) amorte que afirma a vida do escravo, ja podemos nos aventurara dar uma resposta bergsoniana a esse processo implicito. Se a dife­renc;a que anima a vida esua oposic;ao amorte, quer dizer, se a dife­renc;a da vida e absolutamente externa, entao a vida aparece como me­ramente insubstancial, como urn resultado do acaso e da sorte uma"exterioridade subsistente". Alem disso, quando pomos a mor~e emgeral como uma contradic;ao da vida em geral, estamos lidando comtermos por demais abstratos e imprecisos para chegar asingularidade

e concretude da diferen,a que define a vida e a subjetividade reais. Comefeito, estamos vestindo a vida em roupas frouxas. A vida e a morteem sua oposic;ao abstrata sao indiferentes. Por isso, a afirmac;ao da vidaque 0 escravo alcanc;a "em princfpio", atraves da confrontac;ao coma morte, pode ser apenas abstrata e oca.

Hegel, entretanto, fornece imediatamente uma resposta a essedesafio: "Esse momento do puro ser-para-si e tambem explicito parao escravo, pois, no senhor, ele existe como seu objeto. Alias, sua cons­ciencia nao es6 esta dissoluc;ao de todas as coisas meramenteestaveisem principia; no seu servir ela realmente se efetua" (§ 194). Aqui 0

escravo nao rnais encara 0 "Senhor absoluto", a morte abstrata, masse defronta cam urn senhor particular e e far,ado a trabalhar. Essa ne­gaC;ao explicita assume duas formas que estao interligadas nUID mo­vimento progressivo: uma negac;ao formal na relac;ao do escravo como senhor, e uma negaC;ao efetiva na relac;ao do escravo com 0 seu tra­balho. No senhor, 0 escravo e confrontado por uma consciencia-de-siindependente que onega. Contudo, 0 escravo nao pode ganhar reco­nhecimento do senhor, e assim essa forma de oposic;ao pode apenasproparcionar-Ihe "0 come,o da sabedaria". A segunda rela,aa explicitarevela a essencia natural do escravo, permitindo-Ihe tornar-se "cons­ciente do que ele verdadeiramente e" (§ 195).0 escrava sai de si mes­mo ao incorporar a coisa como objeto de seu trabalho; ele se perdeau se nega a si mesmo e se encontra na coisa; finalmente, ele recuperaa essencia natural de si mesmo atraves da sua negaC;ao ou transforma­,ao da caisa. Atraves desse trabalha far,ada, partanta, 0 escravo negaurn outro especifico (0 aspecto de si mesma que dele exilou-se) elabo­rando-o ou transformando-o, do mesmo modo que 0 senhor nega 0

objeto de seu desejo consumindo-o. A diferenc;a principal entre essasduas nega,oes (0 deseja do senhar eo trabalha da escrava) repausasabre a fata de que 0 objeta do desejo do senhar aparece cama urnoutro dependente e transit6rio e assim s6 pode fornecer uma satisfa­c;ao passageira; 0 objeto do trabalho do escravo, contudo, resiste asuanegac;ao, e aparece, assim, como permanente e independente: "0 tra­balha (... ) edeseja refreado, desvanecer contida" (§ 195). 0 desejo dasenhor, como a morte, e par demais profunda, em sua negac;ao, paraas prop6sitas de Hegel: e a destrui,ao total do autro e 0 fim da rela­,aa. 0 trabalha, contuda, como a quase-marte que Hegel poe no medo,e uma negac;ao "dialetica" au parcial que permite a"natureza essen­cial" do outro sobreviver e, assim, perpetuar a relac;ao. Podemos en-

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tender todo eS,se complexo processo, desde arela~ao inicial implicitaate a rela<;ao final explicita, como a educa<;ao progressiva do escravo.o primeiro momento, 0 da confronta<;:ao do escravo com a morte, dis­solve a fixidez de sua vida e faz voltar a sua aten<;ao para 0 universal(Charles Taylor, Hegel, 155). Esse temor educativo prepara 0 escra­vo para 0 seu trabalho. Assim preparado, 0 escravo e capaz, no segundomomento explfcito do trabalho, de alcan<;:ar a sua verdadeira auto­realiza<;:ao: ele se torna "consciente daquilo que verdadeiramente e".

Devemos dedicar alguns momentos, aqui, ao esclarecimento dostermos de nossa leitura dessa passagem. Ha muita controversia e am­bigiiidade com respeito ao nivel de abstra<;ao e ao registro do argu­mento de Hegel, que 0 torna passivel de uma variedade de interpreta­<;oes. Nao est:3. claro, exatamente, onde deveriamos procurar, a tim delocalizarmos 0 senhor e 0 escravo - em individuos reais? nas classessociais? no movimento logico do Espirito? 0 que esta obscuro e anatureza dos conteudos que deveriamos atribuir aos agentes do dra­ma. Deveriamos ler a dialetica senhor-escravo em termos personalistasou, ao contra.rio, como urn drama impessoal e 16gico do ser? Urn hege­liano poderia objetar de pronto ante a forma dessas perguntas, insis­tindo que a analise de Hegel incorpora os diferentes registros e efeti­vamente os integra no movimento do ser historico. 0 espirito, que esempre corporificado, e simultaneamente 0 sujeito individual, 0 sujeitosocio-historico e a essencia do ser; assim, 0 argumento de Hegel es­conega confortavelmente entre referencias pessoais e impessoais e entreo microcosmo e 0 macrocosmo. Sobre essa base, muitos interpretes in­vocam uma leitura personalista para colocar a rela<;:ao senhor-escra­vo como a afirma<;:ao de uma etica liberal de mutuo respeito, que en­globa os registros pessoais e os formais: "Os homens procuram 0 re­conhecimento de seus semelhantes e dele necessitam" (Taylor, 152)7.Contudo, quando voltamos ao argumento, fica claro que a hip6tesepersonalista apresenta certas dificuldades para uma leitura consisten­te do texto. 0 termo do senhor apresenta dificuldades porque, de fato,s6 pode ajustar-se adequadamente a urn molde personalizado duran­te breves se<;oes cia analise. Na metade implicita da passagem, 0 se-

7 A leitura de Kojeve etalvez a mais pura versiio de uma interpreta~iio per­sonalista do confronto entre 0 senhor e 0 escravo: "Urn individuowhumano se poefrente a Erente a urn individuo-humano" (Introduction to the Reading ofHegel, 10).

nhor move-se ate 0 limite maximo do seu papel: "0 senhor absolutoe a morte". 15so ja nos deveria indicar que 0 senhor nao pode ser lidoem termos pessoais. Mais adiante no texto, contudo, 0 escravo des­cobre 0 seu outro no objeto de seu trabalho, e atraves de sua intera­<;:13.0 com esse objeto 0 escravo obtem 0 necessario conhecimento de simesmo. Se lermos essa se<;:ao como a necessidade humana de obter re­conhecimento de outro ser humano, como poderia 0 escravo encon­trar satisfa<;ao na rela<;ao com 0 objeto de seu trabalho? 0 escravooperante obtem uma imagem refletida de si proprio pela coisa, masnunca 0 reconhecimento de urn ser humane ou de urn outro pessoa1.Na verdade, so podemos manter a coed~ncia da passagem se nao atri­buirmos quaisquer conteudos pessoais ao papel do senhor e 0 inter­pretarmos como urn papellogico e impessoal ou como urn "outro"objetivo. Todavia, permanece 0 problema: se devemos ler 0 drama doescravo em termos pessoais ou impessoais, como 0 desenvolvimentode uma consciencia pessoal e humana (individual ou coletiva) em urnmundo objetivo, ou como urn desenvolvimento puramente l6gico. Emtroca, vamos explorar eSsas duas possibilidades.

Se lermos 0 texto de uma perspectiva estritamente 16gica, 0 dra­ma senhor-escravo ilustra 0 confhto entre duas formas de nega<;:ao.A nega<;ao do senhor e 0 vilao do drama porque destr6i totalmenteseu objeto e termina com a rela<;:ao (0 senhor, em seu desejo/con­sump<;ao, causa a morre do outro); em contraste, a nega<;:ao do escra­vo e 0 heroi porque opera uma destrui<;ao parcial e perpetua 0 seuobjeto (0 escravo em seu trabalho). A nega<;ao do senhor nao retema sua potencia mas ataca com toda a for<;a, enquanto a nega<;ao doescravo e 0 modelo da conten<;ao: "desejo refreado, desvanecer con­tido". Eaqui que 0 Nietzsche de Deleuze pode entrar finalmente nadiscussao. A nega<;ao do senhor e simplesmente fon;a destrutiva con­duzida ate a sua conclusao 16gica, uma for<;a inseparavel de sua ma­nifesta<;ao. A nega<;ao do escravo e for<;a "refreada", quer dizer, re­primida em sua expressao completa. Esta ea "fic<;ao" que esta naessencia da potencia do escravo. Nietzsche reconhece que essa nega­~ao do escravo e 0 momento refletido cia consciencia-de-si, a inte­rioriza<;ao da for<;a: "Qualquer que seja 0 motivo pelo qual uma for­<;a e falsificada, privada de suas condi<;6es de opera<;ao e separadadaquilo que pode fazer, ela volta-se para dentro, volta-se contra simesma" (Nietzsche and Philosophy, 127-28). lsso e perfeitamentecoerente com 0 argumento hegeliano. A essencia do escravo que emer-

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ge vitoriosamente da dialetica e a essencia universal do ser: pura cons­ciencia-de-si. A interioridade e a essencia do ser hegeliano: aqui po­demos ohservar Hegel e Nietzsche no mesmo terreno, marchando emdire~oes precisamente opostas. Ambos buscam localizar a essencia nomovimento do ser, mas Hegel descobre uma for~a refletida para den­tro de si mesma (consciencia-de-si ou interioridade) e Nietzsche pro­poe uma for~a que emerge inexoravelmente para fora de si mesma (avontade de potencia ou a exterioridade). A discussao volta-se maisuma vez para a natureza do poder. Se, nos dois casas, a essencia doser e potencia, elas sao duas concep,oes diferentes de potencia. Anossa expressao e desajeitada mas a distin<;ao e clara: de urn lado, hao poder separado daquilo que pode fazer, 0 reflexo hegeliano, 0 ensin potentia de Ockham, ou 0 potestas de Espinosa; do outro lade, h"a potencia interna a sua manifesta~ao, 0 ens in actu de Ockham e apotentia de Espinosa. Vimos que urn argumento escolastico modifi­cado esta adisposi,ao de Deleuze para defender a concep,ao de po­der "eficiente" em termos 16gicos. Aqui, entretanto, Deleuze segue 0

argumento de Nietzsche e mostra uma serie de efeitos praticos nega­tivos que sao conseqiiencia dessa vit6ria escravizada da interiorida­de, como a dor, a culpa e 0 pecado (Nietzsche and Philosophy, 128­31). Mais uma vez podemos ver por que Deleuze podia optar por naodirigir-se diretamente a dialetica senhor-escravo de Hegel, porquetoda a discussao e conduzida para a consciencia-de-si, para a inte­rioridade, uma condi~ao antitetica aalegria e a afirma~ao.

Alem disso, nos mesmos termos logicos e de maneira perfeitamentecoerente, a "educa~ao" do escravo revela urn metodo cdtico de nega­~oes parciais. 0 primeiro momento da critica e a confrontac;ao muitoproxima do escravo com a morte, ou 0 seu medo da morte; esse mo­mento e 0 pars destruens, mas e urn pars destruens limitado na medidaem que a "natureza essencial" do escravo e poupada. Essa confronta­~ao tern como objetivo livrar 0 escravo da fixidez de suas condi~oes

previamente estaveis e permitir-Ihe operar 0 segundo momenta da cri­tica, 0 pars construens, atraves do trabalho do escravo. 0 segundo mo­mento, contudo, nao e propriamente urn pars construens. Ele nao erealmente produtivo, mas, ao contrario, revelador; 0 escravo nao e criadoou substancialmente transformado nesse segundo momento, ao contra­rio, "torna-se consciente daquilo que ele verdadeiramente e" (195). 0termo de Charles Taylor para esse momenta do trabalho - uma "ne­ga,ao fixa" - e adequado porque demonstra que nao ha aqui qual-

quer progressao. Colocada nesses termos 16gicos, podemos finalmentetirar proveito da afirma~ao de Deleuze citada anteriormente, de que saoprecisamente os erros da critica kantiana que levam adialetica hege­liana. Como a Cfitica kantiana, a dialetica critica descrita pela educa­~ao do escravo nao enem total nem positiva. A parcialidade de seumomenta destrutivo poupa precisamente aquilo que toma 0 lugar dacriac;ao no momento produtivo, a "natureza essencial" do escravo. Con­tudo, ao passo que Kant "parece haver confundido a positividade dacritica com urn humilde reconhecimento dos direitos dos criticados"(Nietzsche and Philosophy, 89), essa critica do escravo hegeliana fazdo criticado 0 herai do drama. 0 triunfo dessa critica dialetica e que anatureza esseneial do escravo sobrevive e e revelada em sua pura for­ma, numa configurac;ao estavel de negac;oes parciais e "fixas". Somen­te a nega~ao ativa do senhor, 0 ataque incontido, a morte do adversa­rio, pode conduzir a uma critica total e, assim, aoportunidade para umacria~ao original e positiva: "A destrui~aocomo a destrui~ao ativa dohomem que quer perecer e ser superado anuncia 0 criador" (178). Asdiferenc;as entre esses dois tipos de poder estao, assim, diretamente re­lacionadas aos dois tipos de critica. A potencia do senhor de Nietzsche,na qual a for~a einterna asua manifesta<;ao, nao conhece qualquerlimirc;ao e assim opera uma critica total; por outro lado, quando 0 podere separado daquilo que pode fazer, 0 pars destruens que inicia a cr[ticapode ser apenas parcial.

Tudo isso descobrimos lendo 0 argumento de Hegel como se 0

escravo fosse uma forc;a impessoal atuando numa posi~ao logica. Con­tudo, se tivermos de dar enfase ajornada didatica do escravo como 0

desenvolvimento de uma consciencia-de-si em particular, como 0 fazHegel, parece que teremos que atribuir ao escravo alguns conteudospessoais gerais. 0 que e, exatamente, a '''natureza essencial" do escravoque sobrevive ao ataque furioso das for~as criticas e emerge vitoriosodesse desevolvimento? Hegel quer nos fazer crer que a essencia do es­cravo esem conteudo enquanto pura consciencia-de-si, que essa es­sencia nao eparticular ao escravo, mas ea essencia mesma do ser. Acoerencia do argumento de Hegel, entretanto, se baseia na rela¢o di­ferencial entre 0 escravo e 0 seu senhor. 0 movimento que define erevela a essencia nao pode desenvolver-se com urn ator qualquer, por­que edependente de uma posi<;ao especifica na rela<;ao. Nos vemos,naturalmente, que 0 senhor nao concretiza esse movimento. Vma vezque a logica do drama ativa a posic;ao do escravo nessa rela~ao, a es-

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sencia do escravo tern que envolver a sua servida08. 0 primeiro mo­mento da cri'tica (0 medo da morte, a rela<;ao com 0 senhor) torna 0

escravo mais decidido em sua atividade, e 0 segundo momento (tra­balho) ea sua pura expressao. Eprecisamente 0 trabalho do escravoque sobrevive e epurificado atraves da educa<;ao critica. 0 texto es­clarece, contudo, que 0 trabalho do escravo nao pode ser considera­do como energia criativa ou for<;a produtiva; ao contd.rio, 0 trabalhodo escravo efundamental mente 0 seu pape! numa rela,ao "fixa".

A tradi<;ao do pensamento marxista tern desenvolvido interpre­ta<;6es por demais variadas que (direta ou indiretamente) exaltam essaproposi,ao hege!iana: 0 trabalhador ocupa uma posi,ao proeminen­te porque 0 seu trabalho expressa a essencia humana. Assim, a histo­ria da luta dos trabalhadores torna-se urn drama educativo que agri­de, "fluidificando", 0 caniter inessencial do trabalhador com a fina­lidade de afirmar a natureza essencial do trabalho. 0 trabalhador eliberado amedida que 0 trabalho se afirma com a sua essencia. Essaea "dignidade" stakhanovista do trabalhador. Marx nao teni qual­quer participac;ao nisso: deixemos aos chefes a glorifica<;ao das exce­lencias do trabalho. 0 que esta em questao, aqui, nao ea descri<;aoda existencia do trabalhador numa rela<;ao, mas a proposic;ao de queesse papel constitui a essencia do trabalhador. Marx faz uma aprecia­,ao perfeitamente analoga em re!a,ao ao Estado: "Hegel nao deve serresponsabilizado porque ele descreve a existencia do Estado moder­no tal como e, mas porque ele toma 0 que existe como sendo a es­sencia do Estado" ("Critique of Hegel's Philosophy of Right", 63).E nesse ponto que podemos observar a aproxima,ao de Deleuze,Nietzsche e Marx uns com os outros, nesse ataque incontido aessen­cia dos valores estabelecidos. Os dois ultimos concebem a essencia realnao como trabalho, mas como forc;a: a vontade de potencia, 0 traba­lho vivo, a cria,a09. Mas a fim de liberar tal for,a, de abrir espa,opara 0 pars construens, a forc;a construtiva e transformadora, eles de-

8 Posso imaginar urn argumento atraves do qual Hegel pudesse ser defendi­do contra a acusar;ao de que os conteudos do escravo estao sendo atribuidos aes­sencia aqui, mas a leitura dessa passagem como uma afirmal;ao do trabalho en­quanto essencia e tao difundida na tradir;ao hegeliana que creio ser valido consi­derar esse ponto.

9 Nietzsche e Marx se encontram precisamente em uma proposir;ao espino­sista: A essencia do ser epotencia (t:.tica, IP34). Pode-se muito bern objetar, nesse

vem elaborar uma cri'tica radical e total, urn pars destruens ilimita­do, atacando a essencia dos valores estabelecidos. Se 0 trabalhadortern que alcan<;ar urn ponto de afirma<;ao genufna, de autovaloriza<;ao,o ataque tern que ser dirigido a "essencia", aos valores que definemo trabalhador enquanto tal contra a servidao, contra 0 trabalho10.

Nesse contexto, Nietzsche aparece na posi<;ao do trabalhismo mar­xista: "Para lutar contra 0 capital, a c1asse trabalhadora deve lutarconta si mesma enquanto ecapital (... ) Luta dos trabalhadores con­tra 0 trabalho, luta do trabalhador contra si mesmo enquanto traba­lhador" (Tronti, 260). 0 trabalhador atacando 0 trabalho, atacandoa si mesmo enquanto trabalhador, euma bela maneira de compreen­der: "0 homem que quer perecer e ser superado" de Nietzsche. Aoatacar a si mesmo ele esta atacando a rela<;ao que foi posta como asua essencia - somente apos essa "essencia" haver sido destrufda, elepode ser verdadeiramente capaz de criar. A critica parcial hegelianapode ser no maximo reformista, preservando a essencia daquilo queataca - ela "suprassume de tal forma que preserva e mantem 0 queesuprassumido" (Phenomenology, §188). Uma critica total eneces­sariamente uma crftica insurrecional. Somente a destruic;ao radical cia

ponto, que em meu argumento Nietzsche e Marx nao atacam a essencia per se,mas substituem uma essencia por outra. Isso everdade. Eu reafirmaria que, tal comoos argumentos de Nietzsche contra a causalidade deveriam ser lidos como argu­mentos contra a causalidade externa em favor de causa interna, 0 ataque aessen­cia e 0 ataque a uma forma externa de essencia. A vontade de pod~ncia e a essen­cia do ser. Com efeito, acusar;6es de "essencialismo" sao neutralizadas no contex­to de Marx e Nietzsche. Everdade que cada urn confia em uma nor;ao de essencia,mas em ambos os casos euma essencia historica, material e viva, uma essencia su­perficial que nada tern a ver com as estruturas ideais e transcendentais que sao usual­mente 0 centro dos argumentos "essencialistas".

10 A "recusa do trabalho" nao era s6 urn slogan, mas tambem uma das cate­gorias analiticas centrais do marxismo italiano nos anos sessenta e setenta. Tal comoMarx descobriu a rna is-valia como 0 termo geral que envolve as varias formas deexplorac;ao (renda, lucco etc.), a "recusa dotrabalho" eotermo geral que compreendeas varias formas de resistencia pcoletaria, seja ela construtiva ou destrutiva, indivi­dual ou coletiva: emigrar;ao, exodo em massa, paralisar;ao do trabalho, greves or­ganizadas, sabotagem etc. Deveriamos ter muito claro, entretanto, que a recusa dotrabalho nao ea negar;ao da produtividade ou da criatividade; ao contrario, ea recusade uma relar;ao de explorar;ao. Em termos da tradir;ao, ea afirmar;ao da forr;a pro­dutiva do proletariado e a negar;ao das relar;6es capitalistas de produr;ao.

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"essencia" estabelecida pode permitir a cria~ao genuina. 0 Nietzschede Deleuze parece 0 profeta daquilo que Lenin chama de "a arte dainsurrei~ao"ll.

NOTA: A VONTADE DE POTENCIA DOS TRABALHADORES E A

SfNTESE SOCIAL

Sera 0 Nietzsche and Philosophy urn hino prematuro aos traba­Ihadores de 68? Pela leitura de Deleuze, descobrimos uma confluen­cia surpreendentemente forte entre Nietzsche e Marx (e mesmo Lenin)em termos do poder, da radicalidade e da criatividade da critica pra­tica. Contudo, nao estamos preparados aqui para enfrentar a questaoNietzsche-Marx em toda a sua complexidade. Nesta "Nota", desejoapenas mencionar a questao, urn tanto indiretamente, considerandoos argumentos nietzschianos de Deleuze em termos do Vogliamo tutto(Queremos tudo) de Nanni Balestrini, urn bela e simples romance ita­liano que reconta a hist6ria de urn trabalhador da FIAT no final dosanos 60 e 0 seu envolvimento na formac;ao do movimento politicoPotere operaio (poder dos Trabalhadores)12 0 que me interessa ini­cialmente nessa compara~ao e0 ataque radical a no~ao estabelecidade essencia como uma pre-condi~ao para a mudanc;a e a cria~ao. Emtermos nietzschianos, Deleuze freqiientemente expressa isso como sen­do 0 ataque sobre 0 "homem", ou como urn momento no esfor~o para

11 Com respeito ao tema do ataque aessencia e a alegria da destrui<;ao, asconexoes entre Nietzsche e Lenin sao profundas. Para uma explica<;ao do trata­mento por Lenin cia frase "a arte da insurrei<;ao", ver Antonio Negri, La fabbricadella strategia, pp. 68 ss.

12 Ha sem duvida uma ampla variedade de vers6es do que foi 68, e do quedeveria ter sido. A razao pela qual entendo que a Vogliamo tutto serve melhor aosnossos propositos aqui, eque ele da expressao direta aos deseios dos trabalhado­res em a<;ao melhor que qualquer outra fonte que eu tenha encontrado. De todomodo, mesmo se tivermos de sustentar que essa versao eexemplar dos eventos de68, eu nao afirmaria que erepresentativa. Tambem lembraria que tal como eumaleitura particular de Nietzsche que estamos seguindo, leitura definida pela sele<;aode Deleuze, e tambern uma interpreta<;ao particular de Marx, aquela do operaismo(trabalhismo) italiano, como foi expressada por autores como Mario Tronti eAntonio Negri. Deleuze encontra ressonancias da obra de Tronti em seu estudode Foucault; ver Foucault, p.144, nota 28 e p. 150, nota 45.

ir alem do homem, para criar novos termos e valores para a existen­cia humana (Nietzsche and Philosophy, 64-65; e tambem Foucault,131-134). Essa e a mesma no<;ao expressa pela "recusa do trabalho"dos trabalhadores, urn ataque contra a essencia estabelecida destes, demodo a poder criar novos termos de existencia. Note-se que a recusados trabalhadores nao eapenas uma recusa a trabalhar, mas urna re­cusa do trabalho, quer dizer, uma recusa de uma especifica rela~ao deproduc;ao existente. Em outras palavras, 0 ataque dos trabalhadoresao trabalho, 0 seu violento pars destruens, e direcionado precisamen­te asua propria essencia.

Na primeira parte do Vogliamo tutto, a protagonista nao podeainda colocar 0 seu desejo nesses termos politicos; nao obstante, 0 queodeia acima de tudo e justamente aquilo que define a sua existenciasocial e aquilo que se Ihe apresenta como a sua essencia. Assim, naopode compreender por que alguem quereria celebrar 0 dia do traba­lho em Primeiro de Maio: "Que piada celebrar 0 dia do trabalho (... )Eu nunca entendi par que 0 trabalho tinha que ser celebrado" (74).Os trabalhadores que aceitam 0 valor estabelecido do trabalho pare­cern, a ele, fechados e bloqueados em rela<;ao aquilo que podem fazer,e ejustamente essa aceitac;ao dos valores estabelecidos como essenciaque os faz perigosos: "Gente grossa e obtusa, sem nem urn pouquinhode imaginac;ao perigosa. Nao sao fascistas, sao so obtusos. Aqueles lado PCI (Partido Comunista Italiano) eram s6 pao e trabalho. Eu eraurn 'qualunquista' [sem ideologia, sem valor] mas, ao menos, recupera­vel. Mas des aceitavam 0 trabalho completamente e para eles 0 traba­Iho era tudo" (85-86). Aqueles que aceiram "pao e trabalho" como asua essencia de trabalhadores sao incapazes de imaginar, incapazes decriar. 0 perigo que apresentam e aguele de uma estase for<;ada, de urnamortecimento dos poderes criativos, e uma perpetuac;ao da essenciaestabelecida. Nesse contexto, urn "qualunquista" ja significa uma posi­~ao mais avanc;ada. A falta de valores, de crenc;as, abre urn espac;o noqual a imaginac;ao e a criac;ao podem atuar. A partir dessa posic;ao, apartir do reconhecimento do seu antagonismo em relaC;ao ao trabalhocomo uma rela<;ao de prodw;ao, 0 protagonista come,a urn ataque cadavez rnais politizado ao proprio trabalho. Ate esse ponto nos situamosainda no terreno do Nietzsche de Deleuze, com a critica total dos va­lores estabelecidos. Temos aqui 0 exemplo em desenvolvimento dotrabalhador atacando 0 trabalho e, p0rtanto, atacando a si proprio en­quanto trabalhadar - uma bela instancia do "homem que quer pere-

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cer" nietzschiano, a destruic;ao ativa e liberadora que deve ser distin­guida da passividade do "ultimo homem", 0 PCIsista que aceita com­pletamente 0 trabalho (Nietzsche and Philosophy, 174).

o protagonista do Vogliamo tutto, entretanto, somente ganhapotencia real para levar adiante 0 seu projeto destrutivo quando elecomec;a a reconhecer a sua comunalidade com os outros trabalhado­res. A voz da narrativa assume uma dimensao cada vez mais ampla,mudando da primeira pessoa do singular para a primeira pessoa doplural amedida que a massa de trabalhadores come<;a a perceber aquiloque pode fazer e aquilo em que pode se transformar: "Todas as coi­sas e as riquezas que produzimos sao nossas (... ) Queremos !Udo. Todaa riqueza, todo 0 poder e nenhum trabalho" (128). A expansao da ex­pressao coletiva e proporcional aexpressao da vontade. Eprecisamentea riqueza da coletividade que fornece a base para a radiealidade vio­lenta da critica: "0 que comec;ou a surgir foi 0 desejo de {utar, naopor causa do trabalho, nao porque os chefes eram maus, mas porqueeIes existiam. 0 que comec;ou a surgir foi a demanda imperiosa pelopoder, em outras palavras" (128). 0 reconhecimento dos desejos co­letivos caminha de maos dadas com 0 desenvolvimento e a expansaoda pratica coletiva. As greves dos trabalhadores crescem ate urn pon­to em que ultrapassam os muros das fabricas em demonstrac;oes de ruae em conflitos violentos que envolvem grandes areas da cidade. Final­mente, essa expressao coletiva destrutiva, esse momento de intensaviolencia, abre a possibilidade para a alegria e a criac;ao subsequen­tes: "Mas agora a coisa que os impulsionava mais que a raiva era aalegria. A alegria de ser finalmente forte. De descobrir que essas de­mandas e que essa luta eram as demandas de todos, que era a luta detodos" (171). Esse e 0 climax do romance, 0 ponto onde a luta se trans­forma de urn pars destruens movido peIo 6dio contra os chefes e 0 tra­balho num pars construens da alegria dos trabalhadores ao experi­mentarem 0 seu poder. Nesse ponto focal, a luta e convertida de ne­gac;ao em afirmac;ao. Essa e a hora da "meia-noite", a transmutac;aode Nietzsche (Nietzsche and Philosophy, 171-175). 0 ataque dos tra­balhadores asua propria essencia enquanto trabalhadores chega a urnponto em que eles sao capazes de "ir alem", de descobrir urn terrenode cria<;ao e alegria para alem do "trabalhador".

Eu gostaria de destacar dois elementos dessa transmuta<;ao dostrabalhadores. 0 primeiro e que a totalidade do movimento cdtico estaarticulada ao movimento de amplia<;ao da coletividade. 0 reconheci-

mento que fazem os trabalhadores da sua comunalidade e a sua ex­pressao numa ac;ao coletiva assume a forma de uma sintese espacialou social, compondo urn corpo do desejo expansivo e coerente: amedi­da que 0 corpo de trabalhadores se expande, crescem a sua potencia ea sua vontade. A sintese envolvida na coletividade dos trabalhadorese urn eterno retorno da vontade, nao no tempo, mas no espac;o, 0 re­torno cia vontade lateralmente, atraves da massa de trabalhadores. Seriaexpressarmo-nos de maneira muito pobre dizer que os trabalhadoressao poderosos porque se aglutinam - isso implicaria urn calculo desacrificio pessoal para obter 0 bern coletivo extrinseco. Ao inves dis­so, a potencia do trabalhador e a sua alegria se baseiam precisamenteno fato de que eles desejam e agem juntos. Os trabalhadores formamurn conjunto poderoso. 0 segundo elemento que eu gostaria de des­tacar e que a transmutac;ao acontece pela pratica dos trabalhadores.Justamente quando os trabalhadores "atualizam" a sua critica, quan­do eles passam aac;ao nas fabricas e nas ruas, eles alcanc;am 0 momentoconstrutivo de alegria e criaC;ao. A "atualizac;ao" dos trabalhadores ea prcitica da alegria. Esses dois elementos nos fornecem as termos parao restante de nosso estudo sobre 0 Nietzsche de Deleuze: como e queNietzsche concebe uma sintese real de forc;as, e como essas forc;as semanifestam em termos da pratica?

5.0 SER DO DEVIR: A SINTESE ETICA DA VONTADE EFICIENTE

Quando DeIeuze aborda a questao de uma sintese nietzschiana,ele volta mais uma vez a afirma<;ao da multiplicidade e ao ataque adialetica. "Hegel queria ridicularizar 0 pluralismo" (Nietzsche andPhilosophy, 4): a dialetica do Uno e do Multiplo estabelece uma fal­sa imagem da multiplicidade que e facilmente recuperavel na unida­de do Urn. Tratamos dessa acusa<;ao com razoavel profundidade nasegunda fase do estudo sobre Bergson (se<;ao 1.3). Como vimos, 0

mais potente ataque bergsoniano adialetica, nesse aspecto, e a cons­tru<;ao de uma multiplicidade verdadeira, de diferen<;as de natureza.Encontramos esse mesmo atague no Nietzsche de Deleuze: "0 plu­ralismo as vezes parece ser dialetico mas e 0 seu inimigo mais feroz,seu unico inimigo profundo" (8). 0 pluralismo ou a multiplicidade etao perigoso para a dialetica precisamente porgue e irredutivel auni­dade. Pela analise da obra de Bergson, Deleuze traz a tona a irredu-

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tibilidade e a eminencia da multiplicidade em termo logicos e claros;mas, coofocme vimos, nesse contexto Deleuze apenas consegue colo­car 0 momento complementar da organiza,ao do Multiplo em termosmuito debeis. Na verdade, parece que a irredutibilidade da multipli­cidade proibe qualquer ideia de organiza,ao. Nos argumentamos quea incapacidade de prover uma no,ao adequada de organiza,ao e 0 quetarna 0 Bergson de Deleuze extremamente vulned.vel a urn contra­ataque hegeliano. Enesse ponto que Nietzsche proporciona a Deleuzeurn enorme avanc;o.

"0 jogo tern dois momentos que sao os de urn lance de dados- os dados que sao lan,ados e os dados que caem" (25). Os dois mo­mentos do lance de clados constituem os elementos basicos cia alter­nativa de Nietzsche para a dialetica do Uno e do Multiplo. 0 primei­ro momento do jogo e 0 mais facil de compreender. 0 lance de da­dos corresponde aafirma,ao do acaso e da multiplicidade precisamen­te porgue ea recusa do controle: exatamente como vimos nos estu­dos sobre Bergson, esta nao e a multiplicidade da ordem; nao ha nadaformado por antecipa,ao na possibilidade desse momento - e 0 in­determinado, 0 irnprevisivel. Essa ea evoluc;ao (ou emanac;ao) criati­va do ser de Bergson, e em termos nietzschianos esse e0 clevir do ser:pura multiplicidade. 0 momento da queda dos dados, entretanto, emais obscure e complexo: "as clados lanc;ados 56 uma vez sao a afir­mac;ao do acaso, a combinac;ao que eles formam na queda e a afir­mac;ao cia necessidade. A necessidade e afirmada atraves do acaso, nomesmo sentido em que 0 ser e afirmado no devir e a unidade e afir­mada na multiplicidade" (26). A queda dos dados nao e meramenteuma confirma,ao da necessidade da realidade multipia e dada; issoseria simplesmente urn determinismo, que arriscaria negar ao inves deafirmar 0 primeiro momento do jogo. Ao contnirio, a queda dosdados e urn momento de organiza<;ao da unidade - nao e a revela­<;ao passiva, mas a cria<;ao ativa do ser. Para compreender essa for­mula,ao temos que relacionar a metafora do lance de dados ao eter­no retorno:

as dados que caem afirmam necessariamente 0 mlme­ro ou 0 destino que traz de volta os dados. (...) 0 eternoretorno e 0 segundo momento, 0 resultado do lance de da­dos, a afirma<;ao da necessidade, 0 numero que une todasas partes do acaso. Mas e tambem 0 retorno do primeiro

momenta, a repeti<;ao do lance de dados, a reprodu<;ao e areafirma,ao do proprio acaso. (27-28, grifos meus).

A metafora do lance de dados e reconhecidamente urn tanto for,a­da nesse ponto, mas devemos compreender 0 segundo momento comourn momento de organiza<;ao que constr6i a unidade, que constitui 0

ser pela uniao de "todas as partes do acaso" criadas no primeiro mo­menta - nao segundo uma ordem antecipada, mas numa organiza­~ao original. 0 retorno dos dados e uma afirma,ao do lance de da­dos, vista que conjuga os elementos originais do acaso num todo coe­rente. Nao apenas 0 primeiro momento (da multiplicidade e do devir)implica 0 segundo momento (da unidade do ser), mas esse segundo mo­mento etambern 0 retorno do primeiro: os dois momentos implicamurn ao outro como uma serie perpetua de destrui<;ao e reconstitui<;ao,como urn momento centrifugo e urn momento centripeto, como ema­

na<;ao e constitui<;ao.Qual e a l6gica da sfntese ou da constitui<;ao do ser no eterno re­

torno? Nao podemos mais colocar essa questao em urn plano puramentel6gico; Nietzsche transformou a terreno, de modo que s6 podemos con­siderar tais quest6es ontol6gicas em termos de for<;a e de valor:

A sintese e a das for,as, de sua diferen~a e de sua re­produ<;ao; 0 eterno retorno e a sintese que tern como seuprincipio a vontade de potencia. Nao deveriamos nos sur-

d I " d"Q * - tpreen er com a pa avra vonta e; uem senao a von a-de, e capaz de servir como 0 principia de uma sintese de £or­ps, ao determinar a rela,ao da for,a com as for~as? (50).

Vimos desde 0 principia que a vontade e a dinamica que mavimentae anima 0 horizonte da for<;a e da valor: a 16gica da sintese, entaa, e al6gica da vontade. A vontade de potencia e 0 principio da sintese quemarca 0 ser do devir, a unidade da multiplicidade e a necessidade doacasa. Como, entretanto, a vontade fornece uma funda<;ao para a ser?Nao nos afastamos tanto do horizonte escolastico do qual nos apropria-

* No original which one. Entretanto, seguimos aqui a tradw;ao de EdmundoF. Dias e Ruth J. Dais, de Nietzsche et fa philosophie. Cf. Gilles Deleuze, Nietzscheand Philosophy, Rio de Janeiro, Editora Rio, 1976. p. 41. (N. da T.)

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mos tao substancialmente momentos antes. Com efeito, a vontade depotencia e 0 principio do eterno retorno, dado que faz 0 pape! de umacausa primaria, definindo a necessidade e a subsrancialidade do ser. 0terreno de Nietzsche, contudo, logo transforma essa questao logicalontol6gica numa etica. 0 eterno retorno da vontade euma etica porser uma "ontologia seletiva" (72)13. Eseletiva porque nem toda von­tade retorna: a negaC;ao vern somente uma vez; Somente a afirmac;aoretorna. 0 eterno retorno e a selec;ao da vontade afirmativa enquantoser. 0 ser nao e dado em Nietzsche; 0 ser precisa ser querido. Nessesentido, a etica vern antes da ontologia em Nietzsche. A vontade eticae a vontade que retorna; a vontade etica e a vontade que quer 0 ser. Enesse sentido que 0 eterno retorno euma sfntese temporal de forc;as:ele requer que a vontade de potencia queira a unidade no tempo. Deleuzeformula a selec;ao etica do eterno retorno COmo uma regra pnitica paraa vontade: "0 que quer que tu quiseres, queira-o de tal forma que tam­bern queiras 0 seu eterno retorno" (68). Devemos observar aqui, en­tretanto, que quando lemos a regra de Deleuze para 0 eterno retorno,devemos ter 0 cuidado de nao dar enfase apalavra "tambem". Esse "tam­bern" pode ser muito enganoso, visto que 0 eterno retorno nao esta se­parado_da vo~tade,mas the e interior. "Como 0 eterno retorno operaa selec;ao aqUl? E 0 pensamento do eterno retorno que seleciona. Eletorna 0 querer algo completo" (69). A vontade etica e inteira, internaao seu retorno: "Faz sempre 0 que tu quiseres" (Nietzsche and Philo­sophy, 69, citado de Thus Spoke Zarathustra, 191). 0 principio do eter­no retorno enquanto ser e a vontade eficiente enquanto vontade etica.

Podemos agora trac;ar uma bela trajet6ria com essa ideia funda­mental de eficiencia e internalidade: da centralidade logica da diferen<;aeficiente (a diferenc;a interna acoisa), para a centralidade ontol6gicado poder eficiente (a forc;a interna asua manifestac;ao), e em seguidapara a centralidade etica da vontade eficiente, 0 principio do eternoretorno. Vma l6gica escolastica percorre essas series como urn fio con­dutor, fornecendo-Ihe uma fundac;ao materialista e metaffsica: a natu­reza interna da causa em relac;ao ao seu efeito e que sustenta a neces­sidade, a substancialidade, a singularidade e a univocidade do ser. E

13 Pierre Klossowski desenvolve essa ideia de uma ontologia se1etiva ao lon­go de diferentes linhas em sua espetacular analise, Nietzsche et Ie cercle vicieux.Ver, em particular, 0 capitulo intitulado "Le cerde Yicieux en tant que doctrineselective",pp.177-249.

dessa forma que podemos compreender 0 eterno retorno da vomadeeficiente como 0 pilar etico de uma filosofia nietzschiana do ser. Per­guntavamo-nos, anteriormente, em nossa analise da obra de Deleuzesobre Bergson (sec;ao 1.3) como uma filosofia da "indeterminac;ao"pode ser ao mesmo tempo uma filosofia do ser, como podemos ter aomesmo tempo 0 devir e 0 ser. Aqui obtemos uma resposta nietzschiana.o lance dos dados (0 momento do devir; da indetermina<;ao) e segui­do pela queda dos dados (a sele<;ao do ser), que por sua vez leva a urnnovo lance de dados. A sele<;ao ontologica nao nega a indetermina­<;ao do lance dos dados mas 0 refor<;a, 0 afirma, do mesmo modo quea eterno retorno euma afirmac;ao da vontade.

Finalmente, 0 pure ser eatingido, em Nietzsche, como urn estagioaperfei<;oado, uma finalidade, e e apresentado na persona de Ariadne.o amor de Ariadne por Dioniso ea afirmac;ao do eterno retorno; e adupla afirmac;a.o, a elevac;ao do ser do devir asua alta potencia. Dionisoe 0 deus da afirmac;ao, mas enecessario recorrer a Ariadne para afir­mar a afirmac;ao mesma: "Eterna afirmac;ao do ser, eternamente soutua afirma<;ao" (187, citado de Ditirambos dionis{acos). A afirma<;aode Dioniso marca 0 ser do devir; por conseguinte, amedida que Ariadnetoma Dioniso como 0 objeto de sua afirmac;ao, ela marca a pura afirma­<;ao do ser. A afirma<;ao de Ariadne e uma dupla afirma<;ao ("0 'sim'que responde ao 'sim'" ["Mystere d'Ariane", 15]), ou, rnais apropria­damente, e uma afirmac;ao espiralada e infinita, uma afirmac;ao ele­vada ao enesimo poder. A criac;ao, por Ariadne, do puro ser, e urn atoetico, urn ato de amor.

6. A CRITICA TOTAL COMO FUNDA<;Ao DO SER

Nesse terreno etico da vontade eficiente e afirmativa, Deleuzepropce de novo 0 drama da critica total uma ultima vez, agora emtermos de avaliac;ao - "transmutac;ao". Dessa vez, Deleuze apresentaa critica atraves de uma combinac;ao de termos kantianos e escolasticosreformados. Com efeito, a transmutac;ao passa do kantismo para 0

escolasticismo, dado que passa de uma crftica do conhecimento parauma fundac;ao do ser14 . Encontramos aqui, do mesmo modo, 0 ata-

14 Jean Wahl admira a formula<;ao da yontade para 0 nada de Deleuze, comoo ratio cognoscendi da vontade de potencia em geral e a afirma<;ao do eterno re~

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que final de Deleuze a dialetica hegeliana, muito embora de formadistante e indireta. Como ja vimas, 0 ponto de vista cia critica, livrede sua instancia transcendental, ea vontade de potencia. Agora 0 mo­menta antag6nico, 0 pars destruens cia critica, edesempenhado peloniilismo. Deleuze explica que 0 niilismo ea ratio cognoscendi cia von­tade de potencia: "0 que sabemos de fato sobre a vontade de poten­cia e sofrimento e tortura" (173, grifo meu). Deleuze explicou em pro­fundi dade que 0 niilismo, como urn projeto de interioridade e cons­ciencia, echeio de dor e sofrimento; cantudo, esse meSilla niilismo eque revela "rodos os valores conhecidos ou conheciveis ate 0 presen­te" (172). Nos ganhamos conhecimento de nos mesmos e de nOSsaatualidade pelo sofrimento de uma vontade de potencia negativa. Talcomo Kant nos ensinou, todavia, h<i alga para alem desse conhecimen­to: "lmaginamos a vontade de potencia de uma forma diferente da­quela em que a conhecemos. (Assim, 0 pensamento do eterno retornovai alem de todas as leis de nosso conhecimento.)" (172-73).0 pro­prio niilismo e0 que nos transporta alem da interioridade, alem dosofrimento: a potencia do negativo nessa critica nao opera uma "ne­ga~ao fixa" hegeliana; ao contnirio, eSSe niilismo "completado" e umavontade ativa em dire~ao ao nada - "destrui~ao de si, destrui~ao ati­va" (174). 0 niilismo completado e destrui,ao de si mesmo em doissentidos: completude significa que 0 niilismo se derrota a si mesmo paraque 0 ato final da vontade de potencia negativa seja extinguir-se a simesma; e, tambern, a completude do niilismo e 0 fim do "homem"como interioridade construida - eo suicidio do "ultimo homem".

No limite dessa destrui~ao, ameia-noite, 0 ponto focal, proces­sa-se uma transforma~ao,uma conversao do conhecimento em cria~ao,

da nega,ao selvagem em afirma,ao absoluta, e de interioridade dolo­rosa em exterioridade feliz: "0 legislador substitui 0 'erudito', a cria­~2io substitui a proprio conhecimento e a afirma~ao substitui todas asnega,oes" (173). A afirma,ao, 0 pars construens da vontade de poten-

tomo como sua ratio essendi, mas ele a acha urn tanto impropria para 0 contextonietzschiano: "Mas nao eessa exposifao do pensamento de Nietzsche talvez exa­geradamente escolastica na aparencia?" ("Nietzsche et la philosophie", 378). Wahlcertamente tern razao ao observar que Deleuze esra introduzindo urn pensamentoexterno ao pensamento de Nietzsche, mas, como espero ja ter demonsrrado, a re­ferencia aos escolasticos pode ajudar a iluminar a base ontol6gica do pensamentode Nietzsche (na analise do poder, da vontade e da causalidade).

cia e "a alegria desconhecida,.a felicidade desconhecida, 0 Deus desco­nhecido" (173) que esta para alem da ratio cognoscendi. Com a com­pletude ativa do niilismo e a transmuta<;a.o para a afirma<;ao e a cria­<;ao, liquidamos finalmente a negatividade, a interioridade e a conscienciaenquanto tal. A exterioridade e a condi<;ao para a funda<;ao do ser: aratio essendi da vontade de potencia, explica Deleuze, ea afirma<;ao.Esses termos permitem a Deleuze reformular uma afirma<;ao de Zara­tustra em uma etica ontol6gica: "Amo aquele que faz uso do niilismocomo a ratio cognoscendi da vontade de potencia, mas que encontrana vontade de potencia uma ratio essendi em que 0 homem evencidoe, porranto, 0 niilismo derrotado" (174). 0 ser tern primazia sobre 0

conhecimento. Como Ariadne, Zaratustra ama 0 ser, a cria<;ao e a afir­ma,ao do ser. A exterioridade, a afirma,ao, a vontade de potencia efi­ciente: essa e a ratio que sustenta 0 ser, e e isso que Zaratustra ama.

NOTA: 0 FIM DO ANTI-HEGELIANISMO DE DELEUZE

Nos observamos desde 0 inicio deste capitulo que urn dos obje­tivos centrais do estudo de Deleuze sobre Nietzsche e 0 de constituiruma alternativa a oposi<;ao dialetica que seja uma "oposi<;ao apro­pria dialetica" (17). Ejustamente a capacidade que tern a dialetica derecuperar a oposi<;a.o que e freqiientemente utilizada para criticar osanti-hegelianos contemporaneos tal como Deleuze. Judith Butler poefor,osamente a questiio de uma oposi,ao ao hegelianismo em Subjectsof Desire: "0 que constitui 0 ultimo estagio do pos-hegelianismo en­quanto urn estagio definitivamente alem da dialetica? Essas posi,oessao ainda perseguidas pela dialetica, mesmo quando afirmam the se­rem profundamente opostas? Qual a natureza dessa 'oposi<;ao', e seraela, porventura, uma forma que 0 proprio Hegel ja antecipara?"(176). Butler responde a essas perguntas de modo estritamente he­geliano: "Referencias a uma 'ruptura' com Hegel sao quase sempreimpossiveis, ate porque Hegel fez da propria no,ao de 'ruptura' 0

principio central da dialetica" (183-84). Dessa perspectiva, a propriaoposi<;ao e essencialmente dialetica, portanto a "oposi<;ao a propriadialetica" pode apenas significar urn ro£or,o ou uma repeti,ao da dia­letica. Em outras palavras, qualquer esfor<;o para ser urn "outro"'parao hegelianismo pode ser efetivamente recuperado como urn "outro"dentro do hegelianismo.

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Ao longo de nossa leitura do Nietzsche de Deleuze exploramosdais pontos que poderiam constituir respostas adequadas aproposi­,ao de Butler. A elabora,ao que faz Deleuze da critica total nos for­neee uma resposta direta ao mostrar que existem dais generos de opo­si~ao. A oposi'.;a.o dialetica eurn ataque restrito e parcial que procu­fa "preservar e manter" 0 seu inimigo; eurn tipo de guerra de baixaintensidade, que pode ser prolongada indefinidamente numa "nega­<;ao fixa". Com efeito, a dialetica rcuba e reformula a essencia de seupredecessor mediante uma crftica parcial. Assim, a "ruptura" que eo objetivo central da dialetica pode ser apenas uma ruptura parcial,preservando a continuidade que caracteriza 0 prefixQ "pas". A opo­si\=ao nao dialetica, entretanto, eaquela que opera uma completa fUp­tura com 0 seu oponente mediante urn ataque irrefreado e selvagem.a resultado dessa profunda oposi,ao e uma separa,iio que proibe arecuperac;ao das relac;6es. Seria urn erro, entao, chamar essa posic;aonietzschiana de "pos-hegeliana", como se houvesse se construido so­bre 0 hegelianismo, reformando-o ou completando-o. 0 argumentode Deleuze e0 de que a critica total de Nietzsche e uma postura "pos­kantiana" - corrigindo os erros kantianos para realizar as metas doproprio projero original de Kant. A critica de Kant permite a preser­vac;ao dos valores estabelecidos, enquanto essencia, no plano transcen­dental. Tal exce,ao e resultado da incompletude de Kant e e esse 0

eno fundamental que Nietzsche corrige. Na critica dialetica de Hegel,todavia, os valores estabelecidos postos como essencia sao apresen­tados como os protagonistas centrais do drama critico. Eimpossivelconceber a critica total nietzschiana e 0 seu irrestrito pars destruenscomo uma reforma dessa posic;ao - ela somente pode aparecer comouma ruptura profunda. Nesse ponto, podemos compreender clara­mente a razao do cuidado de Deleuze em situar a relac;ao quanta aosinimigos proximos e fundamentais. a Nietzsche de Deleuze pode pa­recer "pos-kantiano" , mas e apenas "anti-hegeliano": a diferenc;a estientre reforma e ruptura. Posta em termos historiogra.ficos, a afirma­,ao hegeliana de Butler e a de que somente ha linhas continuas na his­toria da filosofia, reformadas em maior ou menor extensao comodiferenc;as de grau. Deleuze, ao contrario, insiste em que a historia dafilosofia contem descontinuidades reais, verdadeiras diferen,as de na­tureza e que a descontinuidade e a unica maneira de colocar a rela­,ao Hegel-Nietzsche: "Nao h:i qualquer compromisso possivel entreHegel e Nietzsche" (195).

Deleuze nos oferece, contudo, uma segunda resposta. Enquan­to acompanhamos a evoluc;ao do pensamento de Deleuze, vimos 0

terreno sobre 0 qual ele pode dirigir-se ao hegelianismo encolher-secontinuamente, e vimos 0 seu ataque adialetica tornar-se cada vezmais indireto. 0 ataque bergsoniano ao Uno e ao Multiplo, e 0 ata­que nietzschiano arelac;ao senhor-escravo, sao conduzidos em pianoscompletamente afastados do discurso de Hegel. A estrategia de De­leuze de desenvolver uma oposic;ao total adialetica eacompanhadapor uma outra estrategia: afastar-se da dialetica, esquecer a dialetica.Alcan,amos 0 fim do anti-hegelianismo de Deleuze. Embora a reto­rica contra a dialetica venha a ressurgir, na abertura de Difference etrepetition, por exemplo, esomente para repetir os mesmos argumen­tos desenvolvidos nesses primeiros estudos, nao para desenvolvernovos argumentos. 0 desenvolvimento de uma oposic;ao total adia­letica parece ter sido uma cura intelectual para Deleuze: esse desen­volvimento exorcizou Hegel e criou urn plano autonomo para 0 pen­samento, urn plano que nao e mais hegeliano, mas que, muito sim­plesmente, esqueceu a dialetica.

7. PATHOS E ALEGRIA: ACERCA DE

UMA PRATICA DO SER AFIRMATIVO

Vma filosofia da alegria e necessariamente uma filosofia da pra­tica. Em toda a leitura do Nietzsche de Deleuze ficamos com a im­pressao de que a pratica desempenha urn papel fundamental, mas ostermos nunca sao expressos claramente. Eevidente, por outro lado,aquilo que 0 Nietzsche de Deleuze nao e: nao e uma investigac;ao daconsciencia; nao e somente a reforma do entendimento ou uma cor­rec;ao do intelecto; resumindo, nao e a constrUl;ao de uma interio­ridade, mas a criac;ao da exterioridade pela afIrmac;ao. A exterioridadedo pensamento e da vontade, contudo, nao constitui ainda uma ca­racteriza,ao adequada, porque a afirma,ao de Nietzsche e tamberncorporea. Temos uma ultima passagem a empreender em nossa leitu­ra do Nietzsche de Deleuze: da vontade ao apetite e ao desejo, daexterioridade aprcitica.

A elabora,iio de Deleuze da exterioridade nietzschiana redes­cobre uma proposic;ao de Espinosa: "A vontade de potencia se mani­festa como urn poder de ser afetado [pouvoir d'etre affecte]" (62, mo-

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dificado)15. Espinosa concebe uma rela~ao positiva entre 0 poder quetern urn corpo de ser afetado e 0 seu poder de agir (ver se~ao II!.?):"Quanta mais diversas as maneiras pelas quais urn carpo podia serafetado, mais for~a ele tinha" (62). Dois aspectos dessa concep~ao

espinosisra interessam a Deleuze nO contexte cia obra de Nietzsche.Primeiro, esse poder de ser afetado nunea lida com uma possibilida­de, mas e sempre efetivado em rela\oes com outros carpos. Em se­gundo lugar, esse poder define a receptividade de urn carpo nao comopassividade, mas como "uma afetividade, uma sensibilidade, uma sen­sa~ao" (62). 0 que essa no~ao proporciona a Deleuze e urn meio decalocar a experiencia interior como uma modalidade cia exterioridadecorporea. A receptividade de urn corpo esta fortemente ligada asuaexpressao externa ativa: a afetividade eurn atributo cia potencia docorpo. Em Nietzsche, como em Espinosa, entao, 0 pathos nao envol­ve urn carpo "sofrendo" paix6es; ao contrario, 0 pathos envolve asafee<;6es que marcam a atividade de urn corpo, a cria~ao que ealegria.

Para chegar a uma concep~ao pratica da alegria, contudo, essesenso pujante da potencia da afetividade dos corpos deve ser acom­panhado de uma elabora~ao da atividade dos corpos na pratica. Defato a ultima se~ao do Nietzsche and Philosophy aborda esse problema:

o ensinamento pratico de Nietzsche e 0 de que a di­feren~a e feliz; que a multiplicidade, 0 devir e 0 acaso saoobjetos adequados da alegria por e1es mesmoS e que somentea alegria retorna... Nunca, desde Lucrecio, 0 empreendimen­to critico que caracteriza a filosofia tinha side levado taolonge (com exce~ao de Espinosa). Lucrecio expoe as per­tuba~6es da alma e aqueles que delas necessitam para esta­belecer a sua potencia - Espinosa exp6e a tristeza, todasas causas da tristeza e todos aqueles que fundaram 0 seupoder no nueleo dessa tristeza - Nietzsche exp6e 0 ressen­timento, a rna consciencia e 0 poder do negativo que lhesserve de principio (190).

15 Hugh Tomlinson traduz "pouvoir d'etre affecte" por "capacidade de serafetado". "Capacidade" e uma escolha muito pobre porque 0 "pouvoir d'etreaffecte" nao implica uma possibilidade, mas, ao contrario, esempre real.

A historia das filosofias praticas da alegria (Lucrecio, Espinosa,Nietzsche) e muito sugestiva. Contudo, no Nietzsche de Deleuze hadois elementos que bloqueiam 0 desenvolvimento da contenda praticacontra as paix6es tristes: elementos que nos fazem avan~ar ate 0 es­tudo de Espinosa. Em primeiro lugar, a leitura "impessoal" que fazDeleuze de Nietzsche bloqueia 0 desenvolvimento de uma reoria daprcitica porque limita nossa concepyao dos agentes no entrejogo de for­~as. Tinhamos observado que quando Deleuze faz a pergunta "Qui?"ele evita todas as referencias "personalistas", e se concentra, ao invesdisso, numa vontade de potencia espeeffica. Nesse ponto, todavia, pre­cisamos nos concentrar nao apenas na vontade, mas tambem no ape­tite e no desej o16. as atributos de urn agente pratico tern que ser dealgum modo "personalistas" - para uma teoria da pratica nao neces­sitamos de uma teoria individualista, mas necessitamos, sim, de urnagente corporeo e desejante. Espinosa eexemplar com respeito a esseassunto, quando ele define 0 agente da pratica, 0 "Individuo", comourn corpo ou urn grupo de corpos reconhecidos por seu movimen­to comum, seu comportamento comum, seu desejo comum (Etica,IIP13Def). Urn agente corporeo como 0 de Espinosa pode liderar umaluta contra as paix6es tristes e descobrir uma pratica da alegria. Emsegundo lugar, 0 estudo de Deleuze sobre Nietzsche nao conseguechegar a uma teoria da prcitica porque nao alcan~a uma concep~ao deuma sintese espacial ou social. A sintese nietzschiana, 0 eterno retorno,e uma sfntese temporal que projeta a vontade de potencia no tempo.Espinosa nos mostrara, todavia, que uma pratica da alegria se realizano plano da socialidade: as no~6es comuns de Espinosa, por exernplo,fornecem os termos para uma coletividade expansiva, para a cria~ao

da sociedade, e assim constituem uma arma poderosa contra as pai­xoes tristes. A se~ao final do Nietzsche and Philosophy ja lan~a, por­tanto, urn olhar prospectivo aproxima passagem na evolu~ao de De­leuze: da afirma~ao nietzschiana apea.tica espinosista.

16 Utilizo "vontade", "aperite", e "desejo", aqui, de acordo com suas defi­ni~6es espinosistas. Vontade econatus com respeito amente, e apetite econatuscom respeito amente e ao corpo. Deseio eapetite ligado aconsciencia do aperite.VeT Elica, IIIP9E.

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III. A PRATICA ESPINOSISTA:AFIRMA<;:Ao E ALEGRIA

E impassivel reconhecer, imediatamente, que a leitura que fazDeleuze de Espinosa possui uma qualidade distinta do seu ttatamen­to de outras fil6sofos. H" uma cetta modestia e precaw;ao que naoidentificamos em nenhum outro Jugar. Devemos nos lembrar, natu­ralmente, que Deleuze apresentou 0 Expressionism in Philosophy: Spi­noza como a porc;ao historica de sua tese de doutoramento, mas estefato pode apenas fornecer uma explica<;ao parcial para a mudan<;a detom. Como ja vimos, Deleuze freqiientemente apresenta as suas inves­tiga<;6es na hist6ria cia filosofia em uma forma de extrema simplici­dade, como a elabora<;ao de uma ideia unica: a positividade ontol6gi­ca em Bergson, a afirma<;ao etica em Nietzsche. Esses estudos tomama forma de j6ias bern lapidadas. Eles colocam a ideia essencial da qualtoda a doutrina filos6fica decorre. Em compara<;ao, a obra de Deleuzesobre Espinosa e bastante imperfeita; sobram-Ihe insights pouco de­senvolvidos e problemas pendentes. Precisamente por essa razao, eurntrabalho mais aberto e, ao mesma tempo, urn trabalho que emeno·sacessivel a urn grande publico1. a Expressionism in Philosophy: Spi­noza aparece como urn conjunto de anota<;6es de trabalho que naoapresenta uma interpretar;;ao acabada, mas, sim, prop6e uma serie deestrategias interpretativas no processo de desenvolvimento. Por con­seguinte, as passagens te6ricas que se seguirao aqui serao necessaria­mente complexas e muiras vezes elfpticas:

1 Embora esse trabalho tenha tido urn publico leitor muito menor que 0 dosoutros estudos de Deleuze na hist6ria da filosofia, sua interpreta~ao de Espinosarevolucionou os escudos sobre 0 fil6sofo. Junto com a leitura de Louis Althusser(desenvolvida por Pierre Macherey e Etienne Ba:libar), 0 trabalho de Deleuze e ainfluencia mais importante que surge entre os espinosistas franceses nos ultimostrinta anos. A tradi~ao francesa e muito rica. Aparte Deleuze e os althusserianos,algumas das figuras mais importances do seculo xx que integram essa tradi~ao

sao Ferdinand Alquie, Sylvain Zac e Martial Gueroult. Teremos ampla oportuni­dade de nos referirmos as suas leituras no decorrer de nosso escudo.

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Foi com Espinosa que eu trabalhei mais seriamente se­gundo as normas da historia da filosofia - mas foi Espi­nosa, mais do que qualquer outro, que me deu a sensacs:aode uma rajada de vento que nos empurra pelas costas a cadavez que 0 lemos, a vassoura de uma bruxa em que ele nosfaz montar. Ainda nao comecs:amos a compreender Espinosae eu nao mais que os outros. (Dialogues, 15)

Espinosa permanece urn enigma.Nossa tarefa e discernir como a leitura de Espinosa contribui para

o desenvolvimento e a evolU';ao do projeto de Deleuze. Voltemos aosnossos prindpios metodol6gicos do inicio. N6s apresentamos, comouma hip6tese preliminar, e a confirmamos nos dois primeiros capitu­los, que ha uma evolucs:ao no pensamento inicial de Deleuze. Suas mo­nografias historicas aproximam-se da obra de filosofos individuais deacordo com as demandas de seu proprio projeto intolectual. Com Berg­son, Deleuze desenvolve uma ontologia. Com Nietzsche ele poe essaontologia em movimento para constituir uma etica. Com Espinosa da­remos urn passo mais largo nessa evolucs:ao, em direcs:ao a politica,construindo uma nova ramificacs:ao na estrutura de urn ontologia berg­soniana e de uma etica nietzschiana. Urn aspecto particular e impor­tante da evolucs:ao de Deleuze e que esta nao envolve a troca de umaperspectiva teorica por outra, mas, sim, e urn processo de acumulacs:aoe constituics:ao. Em outras palavras, cada passo, cada novo terreno deinvestigac;ao e uma construcs:ao que nunca abandona ou nega, mas, aoinves disso, repropoe os termos de seu predecessor. Deleuze leva a suabagagem com ele. A etica nietzschiana e a ontologia bergsoniana trans­portada para 0 campo do valor; a politica espinosista e a ontologiabergsoniana e a etica nietzschiana transportadas para 0 campo da pra.­tica. A ontologia e inerente aetica, que por sua vez einerente apoli­tica. A politica de Espinosa e uma politica ontoI6gica uma vez que,atraves de uma analise substancial do poder e uma elaborac;ao con­ceitual da pra.tica, os prindpios que animam 0 ser sao aqueles mes­mos que animam uma etica e uma constituir;ao pdtica da organiza­c;ao politica.

No estudo de Espinosa, contudo, Deleuze nao ultrapassa imedia­tamente os seus resultados anteriores; ao inves disso, ele volta algunspassos para preparat 0 saito afrente. Com efeito, no Espinosa de Deleu­ze podemos encontrar urn sumario de toda a evolur;ao. Na primeira

metade de seu estudo, correspondendo grosseiramente asua leitura dosdois primeiros volumes da Etica, encontramos a reelaboracs:ao do ter­reno que ele considera em seu estudo sobre Bergson (a plenitude doser, a positividade da diferenc;a, 0 problema da emanac;ao etc.); na se­gunda metade da leitura de Deleuze, tratando-se dos livtos restantesda Etica, encontramos uma reelaboracs:ao e uma extensao do terrenonietzschiano (a afirmac;ao do ser, a etica do poder e da atividade etc.).Bergson e Nietzsche ganham vida em Espinosa, pontificando comopredecessores fundamentais. Na historia da filosofia invertida de De­leuze, Espinosa parece poder olhar para tris ever que ole tambern naoesta sozinho no topo da montanha2.

o nosso foco nessa evolucs:ao deleuziana nos permite reconheceruma outra tese que eimportante no contexto dos estudos de Espinosa.Por todo 0 Expressionism in Philosophy: Spinoza, podemos observarque Deleuze trata 0 sistema espinosista como dais momentos distin­tos, como duas perspectivas de pensamento, uma especulativa e a outrapratica. Essa distincs:ao entre a especulacs:ao e a pra.tica, que permaneceimplfcita na obra de Deleuze, e tanto uma afirmacs:ao teorica quantouma estrategia interpretativa. Em outras palavras, embora Deleuze noloreake essa distinr;ao, podemos ver que ela constitui, claramente, urndesafio aos comentarios tradicionais sobre 0 pensamento de Espinosa.Por exemplo, Ferdinand Alquie, urn dos leitares mais agudos, man­tern que, diferentemente de Descartes, Espinosa nao e urn "fil6sofo dometodo" que parte do ponto de vista humano para construir umaperspectiva divina, mas, sim, urn "fiI6sofo do sistema" partindo dire­tarnente do ponto de vista de Deus: a Etica e, principalmente, urn tex­to sistematico em vez de metodol6gico (Nature et verite, 34). Deleuze,todavia, apresenta a Etica como urn texto duplo que se desenvolve apartir das ~uas perspectivas identificadas por Alquie: 0 primeiro mo­mento da Etica, especulativo e analitico, prossegue numa direr;ao cen­trffuga, de Deus acoisa, a fim de descobrir e expressar os prindpios

2 Nietzsche reconheceu que tinha uma companhia espiritual em Espinosa.Ele escreveu ao seu amigo Franz Overbeck: "Fico absolutamente estupefato, ab­solutamente encantado. Tenho urn precursor, e que precursor! Eu mal conheciaEspinosa: foi por 'instinto' que justamente agora me voltei para ele. (... ) A minhasolidao, que tal como as montanhas muito altas, sempre me fizera respirar comdificuldade e 0 sangue ferver, agora ao menos euma doislidao" [twosomeness](Cartao-postal a Overbeck, 30 de julho, 1881, em The Portable Nietzsche, 92).

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que animam 0 sistema do ser; 0 segundo momento da Etica, pnitico esintetico, move-se numa direc;ao centripeta da coisa para Deus, for­jando urn metodo etico e uma linha de conduta politica. Os dois mo­mentos estao fundamentalmente articulados: 0 momento da pesqui­sa, a Forschung, prepara 0 terreno para 0 momenta da apresentac;aoe da pnitica, a Darstellung. Os dois momentos cobrem 0 mesmo ter­reno do ser, mas de diferentes perspectivas. Vma das importantes con­seqiiencias do reconhecimento desses dois momentos do pensamentode Espinosa, cooforme veremos, e que ha nuances substanciais nosconceitos principais de Espinosa (universal, absoluto, adequado, ne­cessario, racional etc.) quer sejam considerados de uma perspectiva oude outra. Ao ler as obras anteriores de Deleuze, nos insistimos aexaus­tao sobre a importancia de seu procedimento critico: pars destruens,pars construens. Aqui nos defrontamos com urn procedimento simi­lar; porem, 0 momento da oposic;ao, do antagonismo, da destruic;ao,mudou. Nos ainda encontramos uma oposic;ao deleuziana no Expres­sionism in Philosophy: Spinoza (a Descartes, a Leibniz, aos escolasticosetc.), mas essa oposi,ao nao rnais desempenha urn papel fundamental.Ao inves de urn momenta destrutivo seguido de urn momento cons­trutivo, 0 Espinosa de Deleuze apresenta uma investigac;ao especula­tiva e logica seguida de uma constituic;ao etica e pratica: Forschungseguida de Darstellung. as dois momentos, entao, a especulac;ao e apratica, estao fundamentalmente articulados, ernbora permanec;am au­tonomos e distintos cada urn com 0 seu proprio metodo e espiritovivificador. "A sensac;ao de alegria aparece como a sensac;ao propria­mente etica; ela e, para a pratica, aquilo que a afirmac;ao e, ela pro­pria, para a especula,ao. (...) Uma filosofia de pura afirma,ao, a Eti­ca e tambern uma filosofia da alegria correspondendo a tal afirma,ao"(Expressionism in Philosophy: Spinoza, 272, modificado). A afirma­,ao da especula,ao e a alegria da pratica sao os dois fios que se entre­la,am para formar 0 desenho geral da Etica.

Podemos sentir continuamente, na leitura deleuziana da Etica, atendencia de urn movimento que passa do primeiro momento para 0

segundo, da especula,ao it pratica, da afirma,ao it alegria. 0 catalisadorque perrnite a Deleuze fazer essa passagem e a analise espinosista dopoder. No dominio ontologico, a investigac;ao da estrutura de poderocupa uma posic;ao privilegiada, porque a essencia do ser e sua dina­mica causal produtiva. Causa sui e a coluna essencial que sustenta 0

ser, na medida em que 0 ser e definido em sua potencia de existir e

produzir. Todas as discussoes sobre 0 poder, a produtividade e a cau­salidade em Deleuze, tal como em Espinosa, nos levam de volta a essafundac;ao ontologica. Aanalise do poder, entretanto, e nao apenas urnelemento que nos traz de volta aos primeiros prindpios, etambern apassagem que favorece a discussao que nos permite avanc;ar no novoterreno. No estudo sabre Nietzsche, descobrimos que, aa identificara distinc;ao dentra da pader entre a ativa e 0 reativo, eramos capazesde transformar a discussao ontologica numa etica. Nesse estudo so­bre Espinosa, a mesma passagem pelo poder ganha uma fun,ao rnaisrica e mais extensiva. Aqui encontramos todo urn sistema de distin­,6es dentro do poder: entre a espontaneidade e a afetividade, entreac;oes e paixoes, entre alegria e tristeza. Essa analise estabelece os ter­mos para uma conversao real em meio acontinuidade da estruturatearica. A investigac;ao do poder canstitui 0 fim da especulac;ao e 0

comec;o da pratica: ela chega na hora da meia-noite, como uma trans­mutac;ao nietzschiana. 0 poder ea conexao crucial, 0 ponto de pas­sagem da especula,ao it pratica. A elabora<;ao dessa passagem forma­ra 0 piv6 de nosso estudo. Tal como as Teses sobre Feuerbach e Aideologia alema constituem, segundo se diz, urn rompimento no pen­samento de Marx, tambern a analise do poder funciona como urn pontode conversao em Espinosa: e0 momento no qual suspendemos 0 es­forc;o de pensar 0 mundo para comec;ar a cria-lo.

ESPECULA<;:AO -

1. SUBSTANCIA E DISTINCAo REAL: SINGULARIDADE

A abertura da Etica enoravel. Sao precisamente essas passagensiniciais que inspiraram tantos leitores, com espanto e irritac;ao, comadmiraC;ao e condenac;ao, a declarar que a Etica eurn texto impossi­vel e incompreensivel- como epossivel embarcar em urn projeto par­tindo da ideia de Deus, do absoluto? Essa abertura notavel, contudo,nao parece problematica a Deleuze. Ao contd.rio, ele parece estar emperfeita harmonia com 0 passo inicial de Espinosa: juntamente comMerleau-Ponty, ele ve 0 pensamento do seculo XVII, de modo geral,como "uma maneira inocente de comec;ar 0 processo do pensamentoa partir do infinito" (Expressionism in Philosophy: Spinoza, 28, mo-

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dificado). Comec;ar com 0 infinito nao e impossivel mas, ao contra­rio, bastante natural para Deleuze. Devemos ter 0 cuidado, entretan­to, de nao confundir essa inocencia - infinito nao significa indefini­do; a substancia infinita nao e indeterminada. Esse e 0 desafio quefornece uma chave preliminar para a analise de Deleuze e que, segun­do ele, orienta e domina 0 primeiro livro da Etica: que tipo de distin­c;ao ha no infinito, na natureza absolutamente infinita de Deus? De­vemos observar de pronto uma ressonancia bergsoniana nessa proble­matica. As conex6es entre 0 bergsonismo e 0 espinosismo sao bernconhecidas e, embora nao encontremos referencias diretas no textopodemos estar certos de que Deleuze e sensivel aos trac;os comuns a~duas filosofias3 Todavia, Deleuze articula as duas doutrinas de for­ma rara e complexa. Com efeito, ele utiliza a abertura da Etica comouma releitura de Bergson: apresenta as provas da existencia de Deus eda singularidade da substancia como uma meditac;ao extensiva sobrea natureza positiva da diferen<;a e sobre a funda<;ao real do ser.

Para abordar a questao das distinc;6es em Espinosa devemos, na­turalmente, tomar'a posic;ao de Descartes como ponto de partida.Deleuze observa as tres distin<;6es do ser na filosofia cartesiana: (1) umadistin<;ao real entre duas substancias, (2) uma distin<;ao modal entreuma subsrancia e 0 modo que ela implica, e (3) uma distinc;ao concei­tual (distinction de raison) entre a substancia e urn atributo (29). 0primeiro erro nesse sistema de distinc;6es, de urn ponto de vista espi­nosista, e a proposic;ao do ntimero na definic;ao da substancia. Ao afir­mar a existencia de duas subsrancias, Descartes apresenta a distinc;aoreal como uma distinc;ao numerica. De acordo com Deleuze, Espinosadesafia essa ideia cartesiana a partir de dois angulos na abertura daEtica: em primeiro lugar, ele argumenta que uma distinc;ao numericanunca e real (Etica, IPI-PS) e, em seguida, que uma distin<;ao real nunca

,3 ,Em uma carta a Leon Brunschvicg, Bergson escreveu: "Pode-se dizer quetodo fdosofo rem duas fi10sofias: a sua propria e a de Espinosa" (Ecrits et paroles,587)., Uma analise aguda dos temas Comuns nos dois filosofos eapresentada porSylvam Zac em "Les themes spinozistes dans 1a phi10sophie de Bergson". Ver tam­bern Rose-Marie Mosse-Bastide, "Bergson et Spinoza", que se inspira fortememenos,cursos de Bergson no College de France. 0 terna rnais significativo, que Deleuzede,cl~e, nao tratar, tamo em Bergson quanto em Espinosa, e0 da religiao e 0 domlStlClsmo. Tanto Zac quanto Mosse-Bastide considerarn este urn aspecto funda~

memal da rela~ao Espinosa-Bergson.

e numerica (P9-P11)4. Em outras palavras, enquanto as interpreta<;6estradicionais geralmente identificam a substancia em Espinosa com 0

numero urn ou com 0 infinito, Deleuze insiste que a subsrancia e com­pletamente removida do dominio do mundo. A primeira demonstra­c;ao de Espinosa, a de que uma distinc;ao numerica nunca e real, re­pousa sobre a defini<;ao da causalidade interna da substancia (P6C).o ntimero nao pode ter uma natureza substancial, porque 0 numeroenvolve uma limitac;ao e, assim, requer uma causa externa: "Em tudoaquilo, de cuja natureza podem existir varios individuos, deve haver(... ) uma causa externa para poder existir" (PSE2). Pela defini<;ao dasubstiincia (D3) sabemos que esta nao pode envolver uma causa ex­terna. Vma distinc;ao numerica nao pode, portanto, pertencer asubs­tancia; ou, em outras palavras, uma distinc;ao numerica nao pode seruma distinc;ao real. Partindo de P9, contudo, Espinosa procede ate 0

argumento inverso, que e realmente 0 mais fundamental: tendo de­monstrado que cada atributo corresponde amesma substancia (i.e., adistinc;ao numerica nao e rea!), ele continua a demonstrar que a subs­tancia envolve todos os atributos (i.e., a distinc;ao real nao enumeri­ca). Esta segunda prova consiste em duas partes. Espinosa prop6e, emprimeiro lugar, que quanto mais realidade uma coisa tiver, mais atri­butos ela devera ter (P9), e, em segundo lugar, que quanta mais atri­butos uma coisa tiver, mais existencia tera (PIlE). Os dois pontoscobrem essencialmente 0 mesmo terreno e, juntos, servem para fazerda defini<;ao de Deus (D6) uma defini<;ao real: urn ser absolutamenteinfinito (Deus, ens realissimum) consiste numa infinidade absoluta deatributos. Deus e ao meSillO tempo tinico e absoluto. Seria urn absur­do sustentar, nesse ponto, que estamos lidando com urn dominio nume­rico no qual as duas extremidades, 0 uno e 0 infinito, sao reunidas. Asubsrancia de Espinosa e colocada fora do ntimero; a distinc;ao real naoe numerica.

Por que, entretanto, esse complexo desenvolvimento 16gico dadistinc;ao real pareee fundamental a Deleuze? Devemos ter eonscien­cia de que Espinosa nao usa 0 termo "distinc;ao real" quando diseute

4 Utilizaremos a nota~ao abreviada convencional para nos referirmos as obrasde Espinosa: A para axiorna, C para corolario, D para demonstra~ao, Def paradefini~ao, P para proposi~aoe E para escolio. Algarismos romanos sao usados paraaludir as cinco partes da t,tica, e algarismos arabicos para denotar proposi~ao ouescolio, Assirn, a Etica IP8E2 refere-se a Etica, Parte I, proposi~ao 8, escolio 2.

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a substancia, embora certamente esteja familiarizado com 0 seu usona filosofia cartesiana e escolastica. Deleuze introduz esse termo por­que ele serve para realpr a rela<;ao fundamental entre 0 ser e a dife­ren<;a: esse tratamento for<;ado e tendencioso da distin<;ao real deve­ria chamar nossa aten<;ao para a cancep<;ao original da diferen<;a emDoleuze. A distin<;ao real de Descartes erelacional (ha uma distin<;aoentre x e y); ou, mais explicitamente, tal distin~ao propce urn concei­to da diferen<;a que einteiramente fundado na nega<;ao (x ediferentede y). 0 desafio de Espinosa e oliminar 0 aspecto relacional ou nega­tivo da distin<;ao real. Em vez de colocar a distin<;ao real como uma"distinc;ao entre" ou uma "diferenc;a de", Espinosa quer identificar adistin~ao real em si propria (ha uma distin~ao em X; ou melhor, X ediferente)5. Mais uma vez, temos de ser sensiveis as ressonancias berg­sonianas aqui: "Dissociada de qualquer distin~ao numerica, a distin­c;ao real e transportada para 0 absoluto. Ela se torna capaz de expres­sar a diferenc;a no ser e, consequentemente, ocasiona a reestruturac;aode outras distin<;oes" (Expressionism in Philosophy: Spinoza, 39, mo­dificado). Essa afirma<;ao guarda uma semolhan<;a extraordinaria comuma passagem do primeiro ensaio de Deleuze sobre Bergson: "Pensara diferenc;a interna como tal, como pura diferenc;a interna, chegar aurn conceito puro de diferenc;a, elevando a diferenc;a ao absoluto - eeste 0 sentido do esfor<;o de Bergson" ("La conception de la differencechez Bergson", 90). 0 que encontramos de comurn aqui e0 solo on­tol6gico da diferen<;a e 0 papel central da diferen<;a na funda<;ao doser. Tanto em Bergson quanto em Espinosa, a caracteristica essencialda diferenc;a e, por urn lado, a sua causalidade interna, e, por outro, asua imersao no absoluto. Como ja afirmei muitas vezes, a leitura deDeleuze da diferen<;a bergsoniana depende intensamente de uma can­cepc;ao do ser que e produtiva, de uma dinamica causal eficiente e in-

5 Eu utilizo "diferen~a" e "distin~ao" como se fassem intercambiaveis, aqui,porque eles parecem preencher 0 mesma papel no pensamento de Deleuze. Pode­riamos nos perguntar, contudo, se uma nuance impartante poderia ser discernidaentre os dois termos. Pode ser, de fato, que 0 uso comum de "diferen~a" impliqueuma causa outra au externa e, portamo, "distin~ao" seria urn termo mais adequadopara definir a singularidade do ser. Devemos ter em mente, ecerto, os dois con­textos separados: a utiliza~ao por Bergson da diferen~a deriva principalmente ciabiologia e do mecanicismo, enquanto a considera~ao de distin~6es em Espinosadeve ser ligada, primeiro, a Descartes e, em seguida, aos escolasticos.

terna que possa ser remontada atradic;ao materialista e a escolastica.Essa concepc;ao assume a sua maior significac;ao em Espinosa: "A on­telogia de Espinosa e dominada pelas noc;oes de uma causa de si, emsi e par si" (Expressionism in Philosophy: Spinoza, 162). Essa dina­mica causal interna e 0 que anima a distinc;ao real do ser. Essa e a di­ferenc;a absolutamente positiva que tanto sustenta 0 ser em si quantofornece a base para todas as diferenc;as que caracterizam 0 ser verda­deiro. Nessa proporc;ao, ha uma correspondencia positiva entre a di­feren<;a de natureza de Bergson e a distin<;ao real de Espinosa: "Nonopposita sed diversa ea f6rmula de uma nova l6gica. A distin<;ao realsurgiu para abrir caminho a uma nova concepc;ao do negativo, livreda oposi<;ao e da priva<;ao" (Expressionism in Philosophy: Spinoza,60). Em ambos os casos, uma concep<;ao especial da diferen<;a toma 0

lugar da oposi<;ao: euma diferen<;a que ecompletamente positiva, quenem se refere a uma causa externa nem a uma mediac;ao externa ­pura diferenc;a, diferenc;a em si mesma, diferenc;a elevada ao absolute.

Devemos refletir urn momento sobre esse ponto, uma vez que 0

seu sentido nao e imediatamente evidente. 0 que pode significar umadistin~ao que nao e numerica? Em outras palavras, como pode algoser diferente quando eabsolutamente infinito e indivisivel? 0 que euma diferenc;a que nolo envolve qualquer outro? Como podemos con­ceber 0 absoluto sem a nega<;ao? As enormes dificuldades colocadaspor essas questoes apontam para a tarefa ambiciosa da abertura daEtica: "Espinosa precisava de todos os recursos de uma construc;aoconceitual original para apresentar 0 poder e a realidade de uma in­finitude positiva" (Expressionism in Philosophy: Spinoza, 28). Confor­temo-nos aqui com 0 principio espinosista da singularidade do ser.Como uma primeira aproximac;ao, poderiamos dizer que a singulari­dade e a uniao do monismo com a positividade absoluta do panteismo:a substancia unica infunde diretamente e anima 0 mundo inteiro. 0problema com essa definic;ao e que ela deixa em aberto uffi.a i~t~rpre­

tac;ao idealista da substancia, e permite a confusao entre 0 mfImto e 0

indefinido. Em outras palavras, de uma perspectiva idealista, a subs­dncia absoluta poderia ser lida como uma indeterminac;ao, e 0 pan­teismo poderia ser lido como acosmismo. A leitura de Deleuze, con­tudo, elimina essa possibilidade. 0 ser esingular nolo apenas porquee unico e absolutamente infinito mas, 0 que e mais importante, por­que e notdvel. Essa ea abertura impossivel da Etica. 0 ser singular,enquanto substancia, nao e"distinto de" ou "diferente de" qualquer

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coisa fora de si mesmo; se fosse, n6s teriamos de concebe-lo, em par­te, atraves de uma outra coisa, e assim nao seria substancia. Entretanto,o ser nao e indiferente. Aqui podemos come<;ar a apreciar a radicalidadeda definic;ao de Espinosa da substancia: "Entendo POt substancia aquiloque e em si e por si concebido, i.e., aquilo cujo conceito nao requer 0

conceito de uma outra coisa, do qual devesse ser formado" (03). Adistin<;ao do ser nasce de dentro. Causa sui significa que 0 ser tanto einfinito quanto definido: 0 ser e notavel. A primeira tarefa da distin­<;ao real e, assim, definir 0 ser como singular, reconhecer a sua dife­ren<;a sem referencia a, ou dependencia de qualquer Outra coisa. Adistin<;ao realmente nao numerica define a singularidade do ser, namedida em que 0 ser e absolutamente infinito e indivisivel, ao mesmotempo em que e distinto e determinando. A singularidade, em Deleuze,nada tern a ver com a individualidade ou a particularidade. E, em vezdisso, 0 correlato da causalidade eficiente e da diferen<;a interna: 0

singular e notavel porque e diferente em si mesmo.

2. ATRIBUTOS EXPRESSIVOS E DISTIN(:Ao FORMAL:UNIVOCIDADE

A essa altura, parece que podemos identificar a leitura que De­leuze faz da virtualidade bergsoniana com sua leitura da substanciaespinosista, dado que ambas propoem concep<;oes do ser animadaspor uma diferen<;a absolutamente positiva e interna6. Todavia, umavez que propomos esse terreno comum da singularidade do ser, a con­cep<;ao dos atributos, de Espinosa, desponta como uma ruptura reale uma profunda contribui<;ao. N6s verificamos, ate 0 momento, que

. 6 Uma vez que pomos a tese comum da singularidade do ser em Bergson e~spmosa, temos que reconhecer 0 que eComumente considerado uma diferen~aImponante: "Enquanto a filosofia de Espinosa euma filosofia da necessidade afilosofia de Bergson euma filosofia da contingencia" (Zac, "Les themes spinoziste;",126). Qualquer estudante de historia da filosofia apontaria, junto com Zac, queEspinosa eurn "determinista absoluto", enquanto Bergson constr6i uma ontolo­gia baseada na "novidade imprevisivel". Tenho fortes suspeitas, coutudo, quantoa essa oposi~ao rradicional. Na obra de De1euze, como na de Espinosa, descobri­mos que as distin~6es convencionais entre necessidade e contingencia, entre deter­mina~ao e criatividade, sao efetivamente subvertidas.

a distin~ao real nao e uma distin~ao numerica, ou, em termos bergso­nianos, que uma diferen~a de natureza nao e uma diferen<;a de grau;agora, com a teoria dos atributos de Espinosa, Deleuze estendera esseargurnento para alem de Bergson, para mostrar que a distin<;ao real etambern uma distinc;ao formal. Pela investigac;ao da distinc;ao formaldos atributos, Deleuze chega a urn segundo principio espinosista daontologia: 0 principio da univocidade do ser. A fim de apreender aunivocidade do ser, ternos que come~ar com uma investiga<;ao de suavocalidade, de sua expressividade. as atributos espinosistas, na lei­tura de Deleuze, sao as expressoes do ser. Tradicionalmente, 0 pro­blema dos atributos de Deus est:! fortemente associado aquele dosnomes divinos. Espinosa transforma essa tradi~ao ao conceder ao atri­buto urn pape! ativo na expressao divina: "0 atributo nao e mais atri­buido, mas sim, num cetto sentido, 'atributivo'. Cada atributo expres­sa uma essencia, e a atribui asubstancia" (45). A questao dos nomesdivinos torna-se uma problematica da expressao divina.

Deleuze organiza uma simples progressao de paradigmas teo16­gicos para situar a teoria dos atributos expressivos de Espinosa. Asteologias negativas em geral afirmam que Deus e a causa do mundo,mas negam que a essencia do mundo e a essencia de Deus. Em outraspalavras, embora 0 mundo seja uma expressao divina, a essencia di­vina sempre ultrapassa ou transcende a essencia de sua expressao: "0que oculta tambem expressa, mas 0 que expressa ainda oculta" (53).Assim, Deus, enquanto essencia OU substancia, pode apenas ser defi­nido negativamente, como uma fonte de expressao eminente, trans­cendente e oculta. 0 Deus da teologia negativa e expressivo, mas guar­da uma certa reserva essencial. As teologias positivas, ao contnirio,afirmam que Deus tanto e causa quanto e essencia do mundo. Entre­tanto, ha entre essas teorias importantes distin<;oes quanto amaneirapela qual afirmam a positividade de Deus. Deleuze acha que e extre­mamente importante distinguir teologias expressivas de teologiasanal6gicas. Na tradi<;ao tomista, por exemplo, as qualidades atribui­das a Deus implicam uma rela<;ao anal6gica entre Deus e as criaturasdo mundo. Essa concep<;ao tanto leva Deus a uma posi<;ao eminentequanto torna equivoca a expressao do ser. Deus e as criaturas sao di­ferentes na forma e assim nao podem ser expressados no mesma sen­tido, mas a analogia e empregada precisamente para suprimir essefosso. A analogia propoe reconciliar a identidade essencial e a dife­ren<;a formal entre Deus e as coisas. A teoria do atributo, de Espinosa,

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reverte essa formula: "Os atributos sao formas comuns a Deus, cujaessencia eles constituem, e aos modos ou criaturas que os implicamessencialmente" (47). 0 atributo de Espinosa, contrariamente as teo­rias da analogia, propoe uma comunalidade da forma e uma distin<;aode esseneias: "0 metodo de Espinosa nem e abstrato nem analogico.Eurn metodo formal baseado na comunidade" (48). Essa distin<;aoespinosista da essencia nao deveria, entretanto, ser reportada a umaconcep\ao teologica negativa. Atraves dos atributos (as expressoes),a substancia (0 agente da expressao) e absolutamente imanente nomundo dos modos (0 expressado). A distin<;ao entre a essencia doagente da expressao e a essencia do que e expressado nao nega a ima­nencia de urn no outro. 0 divino e absolutamente expressado; nadae escondido; nao ha nem reserva nem excesso. A concep\ao de Espi­nosa da singularidade do ser demonstra claramente a sua oposi\ao aesse paradigma teologico negativo: a imanencia e oposta a eminen­cia; 0 pantefsmo e oposto a transcendencia. 0 Deus de Espinosa seexpressa completamente no mundo, sem reserva. 0 monismo espino­sista se opoe a todo dualismo, tanto negativo quanto analogico. 0elemento central que permite essa expressao absoluta e a comunali­dade das formas contidas no atributo.

A distin\ao entre expressao e analogia fica mais clara quando De­leuze distingue atributos de propriedades. "Propriedades nao saO atri­butos propriamente ditos, precisamente porque nao sao expressivas"(50). As propriedades de Deus (onipotencia, onisciencia, perfei<;ao etc.)nada expressam da natureza de Deus: as propriedades sao mudas. Elasse mostram como sinais, revela\oes, mandamentos. As propriedadessao no\oes em nos imprimidas que nada nos podem fazer entendersobre a natureza, porque nao nos apresentam uma forma comum.Deleuze distingue, portanto, entre os dois sentidos da "palavra deDeus": urn que se refere ao atributo como expressao, e urn outro quese refere apropriedade como signo: "Um signa sempre se liga a umaprapriedade; sempre significa urn preceito; e sempre fundamenta a nos­sa obediencia. A expressiia sempre se relaciona a um atributo; expressauma essencia, ou seja, uma natureza no infinitivo; torna-a conhecidapara nos" (57). Mais uma vez, a expressao dos atributos pode reali­zar-se apenas atraves das formas comuns do ser. Essa concep\ao podeser observada de duas perspectivas: por urn lado, por meio dos atri­butos, Deus eabsolutamente imanente (completamente expresso) aomundo dos modos; e, por outro lado, atraves das formas comuns dos

atributos, as modos participam plenamente da substancia divina. Aimanencia e a participa\ao sao os dais lados da expressao dos atribu­tos. Eessa participa\ao que distingue entre a compreensao dada pe­los atributos expressivos e a obediencia imposta pelas propriedades ana­logas. Urn sistema de signos nada nos diz sabre 0 ser; os sinais mudose os preceitos da semiologia ocultam a ontologia. So a expressao podedescerrar 0 nosso conhecimento do serlo

Ate esse momento criticamos a teologia negativa e a teologiaanalogico-positiva sobre a base da expressao dos atributos, atraves dasformas comuns do ser. Num certo grau, a concep\ao de formas co­muns esta implfcita na distin\ao real: a singularidade do ser requer aabsoluta imanencia do divino no mundo, porgue se Deus nao fosseabsolutamente imanente, nos precisarfamos distinguir entre duas subs­tancias. Absoluta imanencia, contudo, euma condi\ao necessaria masnao suficiente para a univocidade. Os atributos nao sao apenas carac­terizados por uma forma interna comum (que decorre da imanencia),mas tambem por urn pluralidade externa. Em outras palavras, a fimde prosseguir nessa teoria de uma teologia positivo-expressiva, a co­munalidade formal, corporificada por cada atributo infinito, tern queser complementada pela distin\ao formal entre os diferentes atribu­tos. A essencia divina nao se expressa num unico atributo, mas em urnnumero infinito de atributos formalmente distintos. Para preencher esseesquema teologico positivo, Deleuze, entao, faz remontar a teoria deEspinosa sobre os atributos a Duns Scot8: "Foi sem duvida Scot quem

7 A insistencia de Deleuze na tematica da expressao constitui, em bases onro­l6gicas, uma polemica contra a semiologia. Urn sistema de signos nao reconhece 0

ser como uma dinamica produtiva; nao nos ajuda a compreender 0 ser por sua ge­nealogia causal. A "causa ausente", que sustenta grande parte do discurso estrutu­ralista e semiol6gico frances nos anos 60, nega uma funda~o onro16gica positiva.Em contrapartida, uma teoria da expressao procura tamar a causa presente, tra­zer-nos de volta a uma funda<;ao onrol6gica ao tomar clara a genealogia do ser.

8 Na rela<;iio entre Duns Scot e Espinosa, Deleuze faz uma de suas raras in­curs6es na historiografia filos6fica (63-67). Eimprovavel, de observa, que Espinosatenha lido Duns Scot diretamente; conrudo, por Juan de Prado, de quem se sabeao certo ter lido Duns Scot, Espinosa poderia ter recebido uma versao scotista daunivocidade e da distin<;ao formal. Deleuze emao estabelece a seu eixo de pensa­mento, Duns Scot-Espinosa, comra seu eixo inimigo, Suarez-Descartes. As !inhasda batalha sao a univocidade, a imanencia e a expressao (em Duns Scot e Espinosa)versus a equivocidade, a eminencia e a analogia (em Suarez e Descartes). Como

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sempre, as id6ias de Deleuze sobre a historia da filosofia sao muito sugesrivas, mas,do ponto de vista filologico ou historiografico, nao plenameme desenvolvidas. Parauma explica~ao da teoria da distin~ao formal em Duns Scot, ver Etienne Gilson,La philosophie au Moyen Age, pp. 599 ss.

levou mais longe que qualquer outro a empreitada de uma teologiapositiva. Ele denuncia de pronto a eminencia negativa dos neoplato­nicos e a pseudo-afirma,iio dos tomistas" (63). A teologia positiva deDuns Scot e caracterizada pela teoria da distinc;ao formal. Esse con­ceito fornece urn mecanismo 16gico pelo qual ele pode manter tantoas diferen,as entre os atributos quanto a comunalidade dentro de cadaatributo: os atributos sao formalmente distintos e ontologicamenteidenticos: "Ha aqui como que duas ordens, a da razao formal e a doser, com a pluralidade de uma perfeitamente de acordo com a simpli­cidade da outra" (64). A expressiio positiva dos atributos formalmentedistintos constitui, tanto para Espinosa quanto para Duns Scot, umaconcep,iio da univocidade do ser. Univocidade significa precisamen­te que a ser se expressa sempre e em todo lugar na mesma voz; em ou­tras palavras, cada urn dos atributos expressa 0 ser de uma forma di­ferente mas num mesmo sentido. Assim, a univocidade implica umadiferenc;a formal entre os atributos, mas uma comunalidade ontol6gicareal e absoluta entre os atributos.

Deleuze tern 0 cuidado de assinalar, contudo, que a teoria do serunivoco de Espinosa ultrapassa em muito a de Duns Scot, grac;as aconcep,iio espinosista da expressividade dos atributos. Em Duns Scottodos os assim chamados atributos - justi,a, bondade, sabedoria eassim por diante - siio na verdade meras propriedades. No final dascontas, Duns Scot tern muito de teologo e assim nao pode abandonaruma certa eminencia do divino: "Porque sua perspectiva teologica, istoe, 'criacionista', forc;ou-o a conceber 0 Ser univoco como urn concei­to neutralizado e indiferente" (67). Para Duns Scot, Deus, 0 criador,nao ea causa de todas as coisas no mesmo sentido em que ecausa desi. Vma vez que 0 ser univoco de Duns Scot nao e absolutamente sin­gular, ele permanece urn tanto indiferente, urn tanto inexpressivo. Adistinc;ao real de Espinosa, todavia, leva a univocidade ao nivel da afir­ma,iio. No atributo de Espinosa, a expressiio do ser ea afirma,iio doser: "Atributos sao afirmac;6es; mas a afirmac;ao em sua essencia esempre formal, real e univoca: nisso repousa sua expressividade. Afilosofia de Espinosa euma filosofia da pura afirma,iio. A afirma,iio

NOTA: A ESPECULA<;:AO ONTOLOGICA

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eo principio especulativo no qual toda a Etica se sustenta" (60). Nocontexto espinosista, Deleuze da a afirma<;ao uma defini<;ao originale precisa: e urn prindpio especulativo baseado na singularidade e univo­cidade absolutas do ser, ou, em outras palavras, na plena expressividadedo ser. E aqui, mais uma vez, podemos reconhecer uma aprecia<;ao ti­picamente bergsoniana de Espinosa: "Espinosa nos permite identifi­car aquilo que e heroico na especula,iio" (Ecrits et paroles, 587). Aafirmac;ao constitui 0 pinaculo, 0 momento her6ico de uma filosofiapura e especulativa.

Fa<;amos urn momento de pausa e consideremos cuidadosamen­te 0 terreno que estivemos investigando. Com efeito, Deleuze interpre­tou os primeiros dois grandes passos do sistema espinosista, as elabo­ra<;6es da substancia e dos atributos, como uma logica da especula­<;ao alternativa - nao em oposi<;ao aprogressao hegeliana, mas com­pletamente autonoma em rela<;ao a esta. Essa autonomia conceitualdemonstra nao apenas como Espinosa representa urn ponto decisivona evolu<;ao do trabalho de Deleuze, mas tambem como a interpreta­<;:3.0 de Deleuze constitui uma revolu<;ao nos estudos sobre Espinosa,que ha muito vinham sendo dominados, na filosofia continental, poruma leitura hegeliana. Lendo 0 estudo de Deleuze sobre Nietzsche, nosargumentamos que Deleuze estava desvinculando 0 seu proprio pen­samento do terreno dialetico atraves da teoria da crftica total. EmEspinosa, esse processo e completo. Contudo, embora nao haja qual­quer men<;ao a Hegel em todo 0 texto, podemos facilmente construiruma compara,iio com a ontologia hegeliana a fim de demonstrar aimportante autonomia conceitual que a funda<;ao espinosista de De1eu­ze inaugura. A propria interpreta,iio e critica de Hegel da ontologiaespinosista servem na verdade para realc;ar as diferen<;as do empreen­dimento de Deleuze; a partir de uma perspectiva hegeliana, seremoscapazes de reconhecer a ruptura radical representada pela leitura quefaz Deleuze, da singularidade da substiincia e da univocidade dos atri­butos em Espinosa.

o ponto crucial da questao, aqui, e a concep<;a.o hegeliana dadeterminac;a.o. Hegel afirma que nao somente a substancia espinosistae indeterminada, mas que todas as determina<;6es sao dissolvidas no

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absoluto (Science ofLogic, 536). Segundo Hegel, 0 ser absoluto e unicode Espinosa naD pode fornecer uma base para a determinac;ao au paraa diferenc;a porgue nao envolve urn Dutro au uma limitac;ao. 0 serdeterminado precisa negar e subsumir 0 seu Dutro dentro de si mes­mo a fim de alcan<;ar qualidade e realidade. A concep<;ao espinosistada singularidade euma impossibilidade logica. A defini<;ao do ser comosingular ejustamente 0 que mais irrita Hegel, e e0 ponto que ele re­eusa reconhecer: 0 espinosismo, ele afirma, e urn acosmismo. A sin­gularidade e, de fato, uma amea<;a real para Hegel, porgue 'constitui arecusa cia fundac;ao especulativa cia dialetica. Nesse contexto podemoscompreender claramente as exigencias teoricas que poderiam levarHegel a fazer esse julgamento final de Espinosa: "A causa de sua mortefoi uma consumpc;a.o, cia qual sofrera durante muira tempo; isso se har­monizava com 0 seu sistema filos6fico, segundo 0 qual toda particu­laridade, toda singularidade desaparece na unidade da substiincia"(Lectures on the History of Philosophy, 257). Quando a determina­~ao e negada, assim tambem Espinosa, 0 fil6sofo, se dissolve no nada.

A leitura que faz Oeleuze da distin<;ao real e francamente con­traditoria (mas nao oposta) a essa interpreta~ao. Como ja argumen­tamos, a distin~ao real apresenta 0 ser como diferente em si mesmo.o ser singular nao e diferente de qualquer coisa fora do ser, nem eindiferente ou abstrato: e simplesmente noravel. Seria falso, portan­to, estabelecer uma oposi~ao entre 0 ser singular e 0 determinado. Asingularidade e e nao e determina~ao. Em outras palavras, 0 ser deEspinosa, a unica substancia, e determinado no sentido de que e qua­lificado, de que e diferente. Porem, nao e determinado no sentido deser limitado. Eaqui que entra em jogo a discussao de Oeleuze sobre 0

numero. Se a substancia tivesse que ser limitada (ou ter numero) teriaque envolver uma causa externa. A substancia, ao contrario, e com­pletamente infinita, e causa de si mesma. Causa sui nao pode ser in­terpretada em nenhum sentido que seja ideal: 0 ser e a causa materiale eficiente de si mesmo, e esse ate continuo de autoprodu~ao traz comele as determina~5es reais do mundo. "Omnis determinatio est ne­gatio"? Decerto nao ha qualquer espa~o para essa equa~ao no Espinosade Deleuze - nem mesmo como urn ponto de oposi~ao. 0 ser nuncae indeterminado; ele traz consigo, imediatamente, todo 0 frescor e mate­rialidade da realidade. Eu observaria, aqui, que com essa verdadeiraautonomia conceitual em rela~ao aproblematica hegeliana, podemosreconhecer uma evolu~aosignificativa no pensamento de Deleuze. Nos

primeiros estudos sobre Bergson, observavamos algum equfvoco comrespeito a essa materia. Havia uma tendencia, em Deleuze e em Bergson,a se oporem adetermina~ao e a afirmarem a indetermina~ao em seulugar. A proposi<;ao da indetermina<;ao permitia que 0 ser nao fosserefreado ou constrangido por uma causa externa. Os dois aspectos des­sa posi~ao, a oposi~ao a determina~ao e a aceita~ao cia indetermina­~ao, demonstraram ser problematicos. De fato, ao se opor ao ritmodo processo dialetico da determina~ao,Deleuze estava aceitando 0 seuoposto (a indetermina~ao) e, assim, permanecia enclausurado no ter­reno dialetico. Entretanto, no contexto espinosista, verificamos quedetermina~ao e indeterm~na~ao sao termos igualmente inadequados.Singularidade e 0 conceito que marca a diferen~a interna, a distin~ao

real que qualifica absolutamente 0 ser infinito como real, sem 0 recursoa uma dialetica de nega~5es. 0 conceito de singularidade constitui 0

deslocamento real do horizonte tenrico hegeliano.Essa diferen~a nas duas interpreta~6esda subsrancia espinosista

continua e se desenvolve nas interpreta~6esdos atributos. A interpre­ta~ao de Hegel do atributo decorre, em grande parte, diretamente desua interpreta~ao da substancia. Vma vez gue a substancia e uma in­determina~ao infinita, 0 atributo serve para limitar a substancia, paradetermina-la (Science of Logic, 537). Hegel concebe 0 movimento teo­rico que vai da substancia ao atributo como uma imagem sombria dadialetica da determina~ao,que esta fadada ao insucesso porgue omi­te 0 jogo fundamental das nega<;6es. A leitura de Oeleuze dos atribu­tos move-se numa dire~ao bern diferente, mais uma vez baseada na suainterpreta~ao diferente da substancia. Vma vez que, em sua visao, asubstancia ja e real e qualificada, nao se coloca a questao da determi­na~ao, mas, ao contrario, segundo Deleuze, os atributos preenchern 0

papel da expressao. Pelos atributos, reconhecemos a absoluta imanen­cia ou expressividade do ser. Alem disso, as express6es infinitas e iguaisconstituem a univocidade do ser, dado que este sempre e em toda partese expressa na mesma voz.

Se a questao central na interpreta~aoda substancia e a determi­na~ao, a interpreta~ao dos atributos se centra na emana~ao. A teoriada expressao de Deleuze constitui efetivamente urn desafio aavalia­~ao de Hegel de que 0 espinosismo e uma "concep~aooriental da ema­na,iio"(Science of Logic, 538). Segundo Hegel, 0 movimento espino­sista do ser e uma serie irrecuperavel de degrada~6es: "0 processo deemana~ao e tornado apenas como urn acontecimento, 0 devir apenas

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como perda progressiva" (539). Deleuze oferece uma resposta a essacritica hegeliana na forma de uma longa analise da rela~ao entre ema­na~ao e imanencia na hist6ria da ftIosofia. Como se poderia esperar,essa historia deleuziana da filosofia desconsidera completamente a tra­di,ao hegeliana e dialetica, considerando apenas os processos ontolo­gicos positivos. Esse movimento positivo e precisamente 0 que as fi­losofias da emana~ao e da imanencia tern em comum: ambas sao ani­madas por causalidade interna. "Sua caracteristica comum e que elasnao saem de si mesmas: elas {icarn ern si rnesrnas para produzir (Ex­pressionism in Philosophy: Spinoza, 171). Uma vez que 0 ser e singu­lar, a sua produ~ao nao pode envolver nenhum outro. Nao obstante,ha uma importante diferen~a no modo pelo qual a causa emanativa ea causa imanente produzem. "Vma causa e imanente (... ) quando seuefeito e 'imanado' [irnmane] na causa, ao inves de emanar da causa.o que define uma causa imanente e que 0 seu efeito nela esta nela, semduvida, como em algo, mas nela esta e permanece" (172). A diferen­~a entre a essencia da causa imanente e a essencia do seu efeito~ por­tanto, nao pode nunca ser interpretada como uma degrada~ao: no nfveldas essencias ha uma igualdade ontol6gica absoluta entre causa e efeito.Num processo emanativo, por outro lado, a externalidade do efeitocom respeito acausa permite uma sucessiva degrada~ao na cadeiacausal e uma desigualdade de essencias.

Podemos ver elaramente nesse ponto que a ontologia de Espinosaeuma filosofia da imanencia, nao da emana~ao. A qualidade essencialcia imanencia exige urn ser univoco: "0 ser nao e apenas igual em simesmo, mas esti igualmente presente em todos os seres" (173). A ima­nencia nega toda forma de eminencia ou hierarquia no ser: 0 principioda univocidade dos atributos requer que 0 ser seja expressado igual­mente em todas as suas formas. Por conseguinte, a expressao univocae incompativel com a emana,ao. 0 que a explana,ao de Deleuze mos­tra claramente e que a ontologia de Espinosa, uma combina,ao de ima­nencia e expressao, nao e suscetivel acritica hegeliana da dispersao, a"perda progressiva" do ser. Deleuze explica essa materia com os ter­mos da filosofia medieval, citando Nicolau de Cusa: "Deus e a compli­ca~ao universal, no sentido de que nele tudo esta; e a explica~ao universal,no sentido de que ele esti em tudo" (175). A imanencia como expressaodo espinosismo apresenta, segundo Deleuze, uma versao moderna dessepar medieval, complicare-explicare. Ao mesmo tempo em que a expres­sao e urn movimento explicativo ou centrifugo, e tambem urn movimento

"complicativo" ou centripeto, recolhendo 0 ser de volta para dentra desi. A analise de Deleuze, porranto, nao apenas apresenta Espinosa comouma 16gica alternativa da especula~ao onrol6gica, mas tambem nOs daos termos para responder acrftica hegeliana de Espinosa.

Tratamos, ate agora, da leitura feita por Deleuze da introdu~ao

da Etica (grosso modo ate IP14), que apresenta de forma compactadaos princfpios cia especula~ao ontol6gica. Devemos ser muito elarosquanto il simplicidade do que vimos desenvolvendo ate 0 momento:"uma constitui~ao 16gica da subsrancia, 'composi~ao' que nada ternde fisico" (79). Essa constitui,ao logica desenvolvida na introdu<;aoil Etica consiste de dois principios: singularidade e univocidade. Po­demos formular 0 mesmo argumento de outra forma, dizendo que,na introdu,ao da Etica, Espinosa mostra que a defini,ao de Deus (06)nao e meramente uma defini~ao nominal, mas uma defini~ao real:"Essa e a unica defini~ao que se nos apresenta com uma natureza, anatureza expressiva do absoluto" (81). Com essa expressao do absolu­to enquanto singular e univoca, Espinosa consegue formular a cons­titui,ao logica da ideia de Deus. Se lemos essa terminologia teologicaem seu sentido tradicional, entretanto, ficaremos desapontados. Berg­son, por exemplo, reage a esse carater puramente 16gico da apresen­ta,ao de Espinosa: "0 Deus da primeira parte da Etica e engendradofora de toda experiencia, como seria urn circulo para urn geometraque nunca tivesse visto urn" (Citado em Mosse-Bastide, "Bergson etEspinosa", 71, do curso de Bergson no College de France, 1912).Espinosa nao esta, entretanto, construindo uma imagem ou ideia deDeus em nenhum sentido convencional. Ele esta escavando 0 ser a timde descobrir os principios verdadeiramente ontologicos da especula­~ao. Espinosa chegou simplesmente aos principios geneticos funda­mentais, a singularidade e a univocidade, que guiam a produ~ao e aconstitui,ao do ser. Nao hi nada hipotetico na apresenta,ao da Eti­ca, portanto; em vez disso, e urn desenvolvimento especulativo da se­qiiencia genetica do ser, uma "genealogia da subsrancia" (Deleuze,"Espinosa et la methode generaIe de M. Gueroult", 432). Os princi­pios que demonstram a realidade da defini,ao de Deus (06) sao osda vida da propria substancia; eles sao a constitui~ao a priori do ser(Expressionism in Philosophy: Spinoza, 81). Quando Deleuze diz queessa defini~ao e uma defini~ao genetica, ele quer dizer precisamenteque os princfpios do ser sao ativos e construtivos: desses principios 0

proprio ser se desdobra.

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Isso e tudo 0 que sabemos sobre 0 ser (sobre Deus) a essa alturacia analise: e singular e eunivoco. Hci uma polemica implicita nessaafirma~ao sabre a natureza e as limites cia especula~ao. As verdadesque podemos aprender atraves cia especula~ao sao muito poucas emuito simples. A especula'rao nao constitui 0 muncio nem constr6i 0

ser; a especula<;ao meramente nos fornece os prindpios fundamentaispelos quais 0 ser econstitufdo. Espinosa enitidamente consciente dessefato, e se nos exigirmos mais de sua especula<;ao estamos fadados anos desapontarmos, tal como Bergson com 0 seu "Deus feiro de gelo".A constituic;ao real do ser de Espinosa acontece em outro campo deatividade, numa pratica ontol6gica, que e independente do campo daespecula<;ao. Nesse ponto podemos vet claramente por que 0 pensa­menta de Espinosa nao erecupera.vel no esquema hegeliano (ou emqualquer esquema idealista). A especula<;ao onto16gica nao e produtiva;naD econstitutiva do ser. A especula~ao meramente tra~a os contornosda dinamica produtiva do ser. Logo voltaremos a nossa aten~ao paraa natureza constitutiva da pd.tica de Espinosa, mas, primeiro, devemosinvestigar urn terceiro e ultimo principio ontol6gico: 0 principio dospoderes do ser, sem 0 qual 0 pensamento de Espinosa permaneceriaespeculativo e nunca faria a conversao para uma filosofia pd.tica.

3. Os PODERES DO SER

As sementes do principio espinosista da potencia podem ser en­contradas nas provas a posteriori da existencia de Deus. Deleuze pre­para 0 seu tratamento dessas provas apresentando, primeiro, a provacartesiana a priori como referencial. A prova de Descartes e baseadanas quantidades de perfei~ao ou realidade: uma causa precisa ter, nominimo, tanta realidade quanto 0 seu efeito; a causa de uma ideiaprecisa ter, no minimo, tanta realidade formal quanto a ideia tern rea­lidade objetiva; agora possuo a ideia de um ser infinitamente perfei­to; e assim por diante. Deleuze afirma que Espinosa aproveita essa pro­va cartesiana em seu Pequeno tratado com uma modifica~aooriginal.Como Descartes, Espinosa come~a com a ideia de Deus e declara quea causa dessa ideia deve existir e conter formalmente tudo que a ideiacontem objetivamente (Pequeno tratado, 1:3). Contudo, 0 axioma carte­siano sobre as quantidades de perfei<;ao ou realidade nao e suficientepara dar suporte a essa prova. Em seu lugar Espinosa coloca urn axioma

do poder que articula a potencia de pensar com a potencia de existir eagir: "0 intelecto nao tern mais potencia de saber que tern os seusobjetos de existir e agir; a pqtencia de pensar e conhecer nao pode sermaior do que uma potencia n~~essariamentecorrelativa de existir"(Expressionism in Philosophy: Spinoza, 86, modificado). Deleuze apre­senta essa prova a priori do Pequeno tratado, porem, simplesmente,como urn ponto medio do desenvolvimento de Espinosa.

o axioma do pader atinge urn desenvolvimento maduro nas pro­vas a posteriori da Etica. Espinosa oferece tres demonstra~5es da pro­posi~ao de que Deus existe necessariamente, mas Deleuze se interessaprincipalmente pela terceira, porque nessa prova Espinosa nao tratamais da ideia de Deus ou da potencia de pensar, mas corne~a direta­mente com a potencia de existir. 0 argurnento de Espinosa se desen­volve da seguinte forma: (1) ser capaz de existir e ter potencia; (2) seriaurn absurdo dizer que seres finitos existern enquanto urn ser absolu­tarnente infinito nao existe, porque seria dizer que os seres finitos saornais poderosos; (3) portanto, ou nada existe, ou urn ser absolutamenteinfinito tambem existe; (4) uma vez que existimos, urn ser absoluta­mente infinito necessafiamente existe (IPllD3). A importancia dessaprova para nossos prop6sitos nao ea sua coerencia l6gica, mas simsua utiliza~ao da "potencia de existir" na funda~ao 16gica. Espinosafaz da potencia urn principio do ser.

A potencia ea essencia do ser que apresenta a essencia em exis­tencia. 0 nexo intimo que em Espinosa unifica a causa, a potencia, aprodu~ao e a essencia e0 nueleo dinamico que transforma 0 seu sis­tema especulativo em um projeto dinamico. "A identidade da poten­cia e da essencia significa: a potencia e sempre ate ou, no minimo,esta em ato [en acte]" (93). Deus produz enquanto existe. Muitos co­mentadores reconhecem, na concep~aode Espinosa sobre a potencia,urn naturalismo que esta em oposi~ao direta a Descartes, e que se ins­pira na obra de pensadores renascentistas tais como Giordano Bru­no. Ferdinand Alquie, por exemplo, explica que esse nexo espinosistaconstitui urn principio ativo: "A natureza de Espinosa (e) acima detudo, espontaneidade, um principio ativo de desenvolvimento" (Na­ture et verite, 9)9. Deleuze aceita essa concepc;ao do naturalismo de

9 Alquie apresenta uma defini~ao do espinosismo como a sintese da cienciae da matematica cartesianas com 0 naturalismo da Renascen<;a.

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Espinosa, mas, para ele, tal naturalismo representa apenas metade doquadro. Com efeito, Deleuze complementa a referencia ao naturalis­mo da Renascen~a com uma segunda referencia, uma referencia a urnnaturalismo moderno (Hobbes, em particular). A cancep,ao espi­nosista de poder nao e somente urn principio de a~ao, argumentaDeleuze, mas tambern, na mesma extensao, urn principio de afec~ao.

Em outras palavras, a essencia da natureza enquanto potencia impli­ca sempre uma produ~ao e uma sensibilidade: "Toda potencia trazconsigo urn correspondente e insepanivel poder de ser afetado" (93).o poder em Espinosa tern dois lados que sao sempre iguais e in­divisiveis: 0 poder de fazer e 0 poder de ser afetado, produ,ao e sen­sibilidade. Conseqiientemente, Espinosa pode acrescentar urn segun­do aspecto Ii afirma,ao de uma prova a posteriori de Deus: Deus naotern somente uma potencia absolutamente infinita de existir, Deustambern tern 0 poder de ser afetado em urn numero absolutamenteinfinito de maneiras.

Este e precisamanente 0 ponto em que, no Nietzsche and Phi­losophy, Deleuze idemificou uma liga,ao entre Espinosa e Nietzsche(62). A vontade de potencia esempre acompanhada de urn sentimen­to de potencia. Alem disso, esse pathos nietzschiano nao envolve urncorpo "sofrendo" paix6es; ao inves disso, 0 pathos assume urn papelativo, produtivo. A dupla espinosista potencia-afetividade ecoa algunsdesses elementos nietzschianos. Nosso uso do termo "sensibilidade"para temar descrever 0 poder de ser afetado pode muito bern ser en­ganoso. Vma afec~ao, na terminologia espinosista, pode ser uma a~ao

ou uma paixao, dependendo de a afec~ao resultar de uma causa ex­terna ou interna. Assim, a potencia de existir de urn modo semprecorresponde a urn poder de ser afetado, e esse poder de ser afetado "esempre preenchido, seja por afec~6es produzidas por coisas externas(chamadas de afec,oes passivas), ou por afec,oes explicadas pela pro­pria essencia do modo (chamadas afec,oes ativas)" (Expressionism inPhilosophy: Spinoza, 93, modificado). A plenitude do ser, em Espinosae em Nietzsche, significa nao somente que 0 ser esempre e em todaparte plenamente expressado sem qualquer reserva transcendental einefavel, mas tambem que 0 poder de ser afetado, que corresponde apotencia de existir, e completamente preenchido por afec~6es ativas epassivas. Essas duas distin~6es constituem nossa tentativa inicial dediscernir a estrutura interna do poder.

poder

/ ".potencia de existir = poder de ser afetado

/ ".afec~6es ativas afec~6es passivas

Podemos come~ar a perceber nesse ponto como a proposi~ao

espinosista da equivalencia entre a potencia de existir e 0 poder de serafetado pode nos conduzir a uma teoria pratica. Para entender a na­tureza do poder, temos que descobrir as estruturas internas do poder;mas quando investigamos 0 primeiro lado da equa,ao, a potencia deexistir, 0 poder aparece como espontaneidade pura. Sua estrutura eopaca para nos, e nossa analise e bloqueada. Contudo, uma vez queEspinosa propos a equivalencia entre a potencia de existir e 0 poderde ser afetado, podemos passar a investigar 0 outro lado da equa,ao.Aqui encontramos uma estrutura verdadeiramente diferenciada e urnrico terreno para a nossa analise. Quando colocamos a questao da cau­sa nesse contexto, encontramos uma distin~ao real: nosso poder de serafetado econstituido por afec~6es ativas (causadas internamente) eafec~6es passivas (causadas exrernamente). De pronto essa distin~ao

sugere as linhas gerais de urn projeto etico, e fundamentalmente pra­tico: como podemos favorecer as afec~6es ativas de modo que nossopoder de ser afetado seja preenchido em maiar propor,ao com afec,oesativas do que passivas? Nesse ponto, contudo, somos incapazes deassumir essa tarefa, porque sabemos muito pouco ainda sobre a es­trutura do podeL

Nao obstante, devemos observar que 0 principio de potencia es­pinosista apresenta-se sempre como urn principio de conversao - umaconversao da especula~ao apratica, da analise do ser aconsritui~ao

do ser. 0 poder de Espinosa entra em cena no horario da meia-noite,no momenta da transmuta~ao de Nietzsche. Essa conversao e possivelporque a analise de Espinosa da estrutura imerna do poder, destacandoa questao da dinamica causal em cada ponto, ilumina os verdadeirospassos que podemos dar no sentido de nos constituirmos e ao nossomundo atraves da pratica. Devemos ser pacientes, entretanto, e naodar urn passo muito Ii frente. Com a proposi,ao de Espinosa do prin­cipio da potencia, apenas abrimos a porta (ou, como diria Althusser,"nous avons ouvert des voies") para 0 desenvolvimento de uma pra­tica ontologica. No momento, ha mais trabalho a ser realizado para

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preparar esse terreno; devemos voltar aos tres principios ontol6gicosque identificamos - a singularidade, a univocidade e a potencia - edesenvolve-los em uma 16gica do ser plenamente especulativa.

EXPREssAo ONTOL6GICA-

4. A INTERPRETA<;:Ao DOS ATRIBUTOS:

PROBLEMAS DE UMA ONTOLOGIA MATERIALISTA

Como vimos, a teoria espinosista do atributo resolve muitos pro­blemas, mas tambern da origem a muitos outros. Vma das mais seriasdificuldades que ela coloca e a amea<;a de uma tendencia idealista ausubjetivista no pensamento de Espinosa. 0 que e mais importante paraDeleuze com relac;ao a esse assunto e manter uma interpretac;ao da on­tologia de Espinosa estritamente materialista (e n6s veremos que hamuitas tens6es envolvidas na manuten<;ao dessa posic;ao). Essa discus­sao nos auxiliara a dar consistencia ao papel que 0 materialismo de­sempenha no pensamento de Deleuze.

o materialismo nao deveria nunca ser confundido com uma sim­ples ptiotidade do COtpO so bre a mente, do fisico so bre a intelectual.Ao inves disso, 0 materialismo aparece repetidas vezes na hist6ria dafilosofia como uma correc;ao do idealismo, como uma negac;ao da prio­ridade da mente sobre 0 corpo. Espinosa corrige Descartes da mesmaforma como Marx corrige Hegel. Essa corre<;ao materialista nao e umainversao da prioridade, mas a proposic;ao de uma igualdade de princi­pio entre 0 corporeo e 0 intelectual. Deleuze deixa claro que essa re­cusa da prioridade do intelecto refor<;a e aponta para a prioridade doser sobre rados os seus atributos igualmente (pensamento, extensao etc.).Dessa perspectiva, a unica verdadeira ontologia cleve ser materialista.Qualquer privilegio do intelecto, em outras palavras, subveneria a estru­tura ontologica do sistema, de tal forma que nao apenas a materia, masa proprio ser tambt'm seria de algum modo dependente do pensamento.Deleuze acha necessario, por conseguinte, combater uma abordagemidealista do ser, nao apenas com 0 objetivo de valorizar 0 mundo ma­terial, mas principalmente com 0 de preservar a coerencia da perspec­tiva ontologica. 0 intelectual e 0 corporeo sao express6es equivalentesdo ser: esse e 0 principio fundamental de uma ontologia materialista.

No contexto do sistema espinosista, podemos identificar a ques­tao central na propria definic;ao do atributo: "Por atributo eu entendoaquila que 0 intelecto percebe da substiincia, como constituindo a es­sencia dela" (Etica, ID4, grifos meus). Urn dos problemas que imedia­tamente se apresentam e que a defini<;ao concede uma certa prioridadeao atributo do pensamento sobre outros atributos: 0 pensamento e0

meio de perceber todos os atributos da substancia, incluindo 0 propriopensamento. Diversos exemplos ilustrando a papel do atributo, taiscomoos da Carta 9 para Simon de Vries, fornecem uma explicac;ao ainda maisproblematica. Nessa carta, Espinosa oferece dois exemplos de como,nos atributos, '''uma unica e mesma coisa pode ser clesignada por doisnomes". 0 primeiro desses dois etalvez 0 mais problematico: "Digoque por Israel entendo 0 terceiro patriarca e que entendo por Jac6 0 mes­rna homem, a quem tal nome foi dado porque agarrou a calcanhar doseu irmao". A distinc;ao aqui emeramente nominal e, mais importan­te, a diferenc;a reside nao no objeto percebido mas no sujeito percipiente,nao diretamente no ser mas no intelecto.

Nos estudos de Espinosa ha uma controversia de longa data so­bre a interpreta<;ao dos atributos10. 0 nucleo da disputa envolve a po­sic;ao do atribura com respeito asubstancia, por urn lado, e com res­peito ao intelecto, por outro: e uma questao da prioridade da ratioessendi e da ratio cognoscendi. A interpretac;ao idealista ou subjetivistadefine 0 atributo principalmente como uma forma de conhecimento,e nao como uma forma do seL A apresentac;ao de Hegel, na Scienceof Logic, ea leitura seminal nessa tradic;ao11. Conforme observamosanteriormente, Hegel concebe 0 atributo como a determinac;ao ou alimita<;ao da substancia que edependente do intelecto e que "se de­senvolve fora do absoluto" (538), quer dizer, "que aparece como ex­terna e imediata frente asubstancia" (537). Martial Gueroult obser­va que ha uma contradi<;ao l6gica nessa leitura que enfraquece as fun­da<;6es da ontologia espinosista: as atributos nao podem ser depen­dentes do intelecto porque 0 intelecto eurn modo do pensamento e,

10 Martial Gueroult apresenta toda a hist6ria dessa controversia. Ver Spi­noza, vol. 1, pp. 50,428-61. Gueroult defende claramente uma interpreta~iio obje­tivista.

11 Segundo Gueroult, a interpreta~iio de Hegel e "a inspira~iiode toda umalinha de comentadores que, desde 0 inicio do seculo XIX ate hoje, continuam amanter uma interpreta~iio comum" (466). Ver tambem pp. 462-68.

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portanto, ontologicamente posterior aos atributos. "De fato, se os atri­butos tivessem que resultar da ideia que 0 inteleeto tinha da substan­cia, 0 intelecto seria anterior a eIes e, consequentemente, anterior aoatributo do qual e urn modo, 0 que e absurdo" (50). 0 proprio Hegelreconhece essa eontradic;ao, mas pareee credita-la a urn erro no siste­ma espinosista, ao inves de a uma falha de sua interpretac;ao (Scienceof Logic, 537). Contudo, a questao principal aqui em pauta, reafir­mo, nao e a contradic;ao 16gica da leitura subjetivista, mas sim a prio­ridade que ela concede ao intelecto. A questao, repito, e a importan­cia reIativa da ratio essendi e da ratio cognoscendi no sistema comourn todo. 0 que esta em jogo, em outras palavras, sao os pr6priostermos de uma ontologia materialista, uma ontologia que nao fundao ser no pensamento.

DeIeuze nos oferece uma leitura alternativa dos atributos espino­sistas - uma interpretac;ao objetivista, ontol6gica. De acordo comDeleuze, quando Espinosa apresenta 0 atributo meramente COmo umamaneira de conhecer ou de conceber, como na Carta 9, ele esta. forne­cendo apenas uma explica,ao parcial ou simplificada do verdadeiropapel do atributo (61). 0 atributo nao depende do intolecto; ao con­tra.rio, a inteIecto tern apenas urn papeI secundario no funcionamen­to dos atributos, COmo urn agente objetivo e invisiveI da representac;ao."Todos os atributos formalmente distintos sao reIacionados, peIo in­telecto, a uma substancia ontologicamente unica. Mas 0 inteIecto ape­nas reproduz objetivamente a natureza das formas que apreende." (65)Em outras palavras, a relaC;ao dos atributos asubstancia e anterior ae independente da apreensao que faz 0 intelecto dessa relac;ao; 0 inte­lecto meramente reproduz em termos objetivos ou cognitivos a rela­c;ao ontol6gica primaria. A ratio essendi e anterior aratio cognoscendi.Essa interpretac;ao objetivista consegue preservar a integridade onto­l6gica do sistema, e resolve a contradiC;ao posta ao conceder urn pa­pel fundamental ao intolecto na teoria dos atributos. Nao obstante,devemos reconhecer que nao podemos sustentar essa tese sem algumesforc;o. Retornemos, por exemplo, adefiniC;ao dos atributos: "Entendopar atributo aquila que 0 intelecta percebe da substancia, como cons­tituindo a essencia dola" (Etica 104, grifos meus). Como pode a in­terpreta,ao objetivista dar conta desse "quod intellectus de substantiapercipit" sem atribuir urn papel fundamental ao intolecto? (E devemosobservar que a referencia ao original em latim nao nos oferece qual­quer saida para esse dilema). Alem disso, mesmo que aceitemos 0 in-

telecto como secundario na fundac;ao do atributo, como devemos en­tender aquilo que Deleuze descreve como a sua "reprodw;ao objetiva"da natureza das formas que apreende? Essa "reproduc;ao" e certamenteuma concep,ao muito debil da expressao.

Deleuze nao parece se incomodar com esses problemas (ou tal­vez esteja determinado a nao se deixar desencaminhar por des) e naotrata dessa questao em profundidade. 0 que fica claro, entretanto, ea insistencia do seu esfor~o no sentido de preservar a integridade on­tologica do sistema e combater qualquer prioridade do pensamentosobre todos os outros atributos, meSillO quando esse esfon;o parecese contrapor a afirmac;6es muito claras no texto. 0 desafio aqui vaimuito alem do dominio dos estudos de Espinosa e se refere, ao invesdisso, a natureza radical do retorno aontologia, que ecentral na filo­sofia de Deleuze, e adiferenc;a que ela marca com respeito as outrasposi,6es filosoficas contemporaneas. A filosofia de Ooleuze tern queser reconhecida em sua diferen,a tanto da tradi,ao ontologica idea­lista quanto de qualquer abordagem deontologica da filosofia; em vezdisso, atraves da interpretac;ao dos atributos, Deleuze elabora as di­mens6es de uma ontologia materialista ..

NOTA: PRODU<;Ao ESPECULATIVA E PRATICA TE6RICA

Quando ampliamos a nossa perspectiva para alem das quest6esespecificas da interpreta,ao de Espinosa, podemos observar que a lei­tura objetivista de Deleuze 0 distingue como radicalmente dessintoni­zado com os movimentos inteIectuais de seu tempo, como se susten­tasse uma posic;ao te6rica precariamente minoritaria. A hegemoniaintelectual, na Franc;a dos anos 60, dos "mestres da suspeic;ao", os par­tidarios da trilogia Marx-Nietzsche-Freud12, embora numa certa me­dida anti-hegeliana, tern, nao obstante (se pudermos nos permitir umatransposic;ao para 0 terreno da controvecsia espinosista) que ser con­tada a favor de uma leitura subjetivista dos atributos. Os varios motsd'ordre que surgiram dos diferentes campos em todo 0 cenario inte­lectual frances nesse periodo insistem, todos oles, no papol fundamental

12 Ver Vincent Descombes, Modern French Philosophy, para uma analisedas linhas dominantes da filosofia francesa durante esses arros.

It

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do intelecto, da ratio cognoscendi; consideremos, por exemplo, a im­portancia do discurso amplamente difundido sobre a "visao", sobreo visto e 0 nao visto, ou antes, 0 foco sobre a "interpretac;ao" comourn campo privilegiado de invesriga~ao. A proposi~ao de Deleuze, deuma especula~ao ontol6gica objetivista em Espinosa vai de encontroa toda essa corrente de pensamento. A tendencia geral, na verdade,parece ser a de uma ataque encarnic;ado aposic;ao de Deleuze.

Para nao cair em generalizaC;ao abstrata, investiguemos brevementea leitura de Marx por Althusser como urn exemplo - talvez nao urnexemplo representativo, mas que sem dlivida foi muito influente. Urnelemento que Althusser quer focalizar, e questionar, e 0 ate de leituraem si mesmo: a leitura do Capital, de Marx, a leitura dos economistaschissicos, a leitura da sociedade capitalista. Althusser quer que identi­fiquemos, em Marx, uma revoluc;ao na teoria do conhecimento: "De­vemos refazer completamente a ideia que temos do conhecimento, de­vemos abandonar os mitos especulares da visao e da leitura imediata econceber 0 conhecimento como uma produ~ao" (Reading Capital, 24).Podemos distinguir dois elemenros nesse esfor~o de Althusser de con­ceber 0 conhecimento como produc;ao. Primeiro, temos que compreenderque h" uma distin~ao entre 0 objeto do conhecimento e 0 objero realou, para acompanhar Althusser num exemplo espinosista, que ha umadistin~ao entre a ideia de urn dtculo de fato existente (40 ss.). Comourn segundo passo, entretanto, devemos reconhecer que a imporranciadessa distinc;ao repousa sobre 0 fato de que os dois dominios existemsob diferentes condi~6es: enquanro 0 objeto real e dado, 0 objeto pen­sado e produzido numa rela~aoespedfica com a realidade. "Sem duvi­da, ha uma relac;ao entre 0 pensamento-sobre-o-real e esse real, mas euma rela~ao de conhecimento" (87). A insistencia de Althusser na im­portancia central da ratio cognoscendi e uma caracterfstica central aespeculac;ao fenomeno16gica. Antes de podermos considerar as coisasreais nelas mesmas, segundo os fenomenologistas, devemos considerarcomo essas coisas sao apresentadas anossa consciencia, ao nosso inte­lecto. Eaqui que 0 atributo espinosista reaparece no nlicleo da discus­sao: "quod intellectus de substantia percipit". A estrategia de leiturade Althusser, junto com a especulac;ao fenomenol6gica em geral, coin­cide perfeitamente com uma interpretac;ao subjetivista do atributo. Aleitura subjetivista poe urn fim ao mito da especulac;ao pura, da espe­culac;ao "especular": nao ha qualquer leitura inocente ou objetiva domundo, da sociedade, da economia polftica.

A primeira vista, a critica de Althusser, que nesse respeito e re­presentativa de urn movimento intelectual geral, parece desabar, di­reta e vigorosamente, sobre a Ieitura objetivista dos atributos que fazDeleuze. Deleuze atribui ao intelecto precisamente 0 papel "especu­lar" que Althusser denuncia: "0 intelecto somente reproduz objeti­vamente a natureza das formas que apreende" (Expressionism inPhilosophy: Spinoza, 65). Como e possivel que Deleuze mantenha ateoria de,um intelecto especular e objetivo? Como, quando roda a co­munidade filosofica francesa focaliza a natureza produtiva do conhe­cimento, pode Deleuze relegar a apreensao do intelecro a urn papelreprodutivo? Certamente nos defrontamos, aqui, com posic;oes con­flitantes. A filosofia de Deleuze nao euma fenomenologia. Contudo,quando e~aminamos 0 assunto mais de perro, observamos que emcertos aspectos a critica althusseriana nao se dirige, de fato, direta­mente ao argumento de Deleuze. Antes de tudo, Deleuze nao ignoraa centralidade da produ~ao; ao contrario. Ele atribui urn papel re­produtivo ao funcionamento do intelecto na teoria do atributo, por­que a prodw;:ao primaria esra em outro lugar. Vimos enfatizando, emnossa leitura das varias obras de Deleuze, que a sua ontologia se fun­damenta na concepc;ao de que 0 ser e uma dina-mica produtiva. Noestudo sobre Bergson, relacionamos essa concepc;ao ao discurso cau­sal dos escolasticos e, em Espinosa, podemos trac;a-Ia ate 0 naturalis­rno renascentista. Foi-nos possive! resumir a ontologia de Deleuze pre­cisamente nos seguintes termos: 0 ser e produtivo em termos diretos,imediatos e absolutamente positivos. Toda a discussao da causalida­de e da diferen~a se baseia nessa funda~ao. Tendo isso em mente, po­demos interpretar a posi~ao de Deleuze sobre 0 papel reprodutivo dointelecto como sendo, principalmente, uma afirmac;ao do papel pro­dutivo do ser. Assim, podemos arriscar uma resposta deleuziana pre­liminar anossa primeira critica althusseriana: trazer a produc;ao cog­noscitiva para a centro do palco significa, em filosofia, mascarar a di­na-mica produtiva fundamental do ser, que na verdade antecede 0 in­telecto, em termas 16gicas e ontol6gicos.

A primeira respasta, cantuda, pode servir apenas parcialmentepara desviar a critica, nao para responde-lao Podemos fornecer umaexplica~ao rnais adequada da posi~ao de Deleuze se chamarmos aaten~ao para 0 dominio proprio it especula~ao. A especula~ao deDeleuze nao pretende ser uma representac;ao objetiva mas se aplicameramente a urn terreno muita especifico. A sociedade, 0 capital e a

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sua economia nao sao objetos apropriados aespeculac;ao; ao contra­rio, em Deleuze, a especulac;ao e levada a sustentar apenas questoesontologicas e, conforme ja enfatizamos, chega-se com ela a poucos esimples principios ontol6gicos. Contra a especula,ao fenomenol6gica,Deleuze propoe uma especula,ao puramente ontol6gica. 0 que po­deria significar conceber-se a especulac;ao ontologica como produc;ao?Teriamos forc;osamente que responder, em sintonia com uma onto­logia subjetivista, que a singularidade, a univocidade e a potencia naosao prindpios do ser (como objetos reais), mas sim produto denossaatividade intelectual (como objeto de nosso conhecimento). Em ou­tras palavras, terfamos que dizer que elas nao sao efetivamente prin­dpios do ser, mas sim "quod intellectus de substantia percipit". Essasubjetiviza,ao do ser solaparia 0 fundamento ontol6gico do sistemaespinosista em sua totalidade. A interpreta,ao objetivista dos atribu­tos declara simplesmente que ha certos prindpios do ser que sao an­teriores ao poder produtivo do pensamento e dele independem; essesprindpios constituem 0 campo da especulac;ao. Deleuze, entao, tentapreservar a especificidade da ontologia dentro de seu dominio espe­cifico. Aquilo que resta fora do campo da especula,ao ontol6gica etratado por Deleuze em termos empiricos - sera a fundamento daconcep,ao deleuziana da pnitica.

Essa segunda resposta deleuziana, contudo, ainda esta. em aber­to para uma crftica althusseriana ulterior. 0 reconhecimento da pro­du,ao que 0 conhecimento envolve e a sua distin,ao da realidade e,segundo Althusser, 0 fator definidor de todo materialismo: "Se nao 0

respeitamos, cairemos inevitavelmente ou no idealismo especulativoou no idealismo empirista" (Reading Capital, 87). 0 materialismo ea especula,ao fenomenol6gica de Althusser e 0 que the permite justa­mente propor 0 seu famoso conceito da pra.tica dentro da teoria, "ateoria da pratica teorica". A interpretac;ao objetivista dos atributos,ao contrario, expulsa a pratica do campo da especulac;ao. 0 pensa­mento de Deleuze aparece, por conseguinte, como urn idealismo nosdois lados desta sintese pritico-te6rica: urn idealismo especulativo eum idealismo empirista frouxamente articulados em uma filosofia. Aconcep,ao da pnitica de Deleuze nao escapa aacusa,ao de Althusser:'IE 0 bastante pronunciar a palavra prdtica, que, compreendida de umamaneira ideol6gica (empirista ou idealista) e apenas a imagem no es­pelho, a contra-conotac;ao de teoria (0 par de 'contra.rios' pratica eteoria compondo os dais termos de urn campo especular), para reve-

lar 0 que constitui a sua base" (57-58). Sob essa perspectiva, a pniti­ca de Deleuze, que pretende ser autonoma em relac;ao aespeculac;ao,e simplesmente a contrapartida especular complacente da especula,aoobjetivista e idealista em urn jogo de palavras fraudulento. Baseando­nos em um dos textos favoritos de Althusser, as Teses sabre Feuerbach,temos que avaliar a acusac;ao de que a filosofia de Deleuze nao podeter qualquer poder pratico; essa filosofia pode simplesmente tentarpensar 0 mundo, mas nao muda-lo.

Com a crftica da pnitica tocamos 0 corac;ao da materia, mas naotemos ainda contrale dos termos para investiga-la em maior profun­didade. 0 desafio de Althusser pode servir, por enquanto, como urneixo crftico para orientar a nossa discussao e para realc;ar a diferenc;amarcada pela abordagem de Deleuze. Ontolbgia pura e absoluto ma­terialismo: sao essas as posic;oes complementares que Deleuze susten­ta contra a mare dos seus contemporcineos.

5. COMBATENDO OS PRIVILEGIOS DO PENSAMENTO

Devemos agora voltar a considerar, em maior profundidade, 0

tratamento dado por Deleuze aos atributos espinosistas. 0 que estaem jogo na discussao dos atributos deve ficar claro. A interpreta,aoobjetivista dos atributos parece aberta acritica a partir de uma pers­pectiva fenomenologica, segundo a qual essa interpretac;ao implica umaconcepc;ao idealista da ontologia e assim obstrui uma pratica teorica,ou qualquer no,ao real de pritica. As inquieta,oes de Deleuze apon­tam, contudo, para uma direc;ao bern distinta. 0 perigo real, segundoele, e que seja dado ao atributo do pensamento uma prioridade sabretodos os outros atributos, que amente seja dada prioridade sobre 0

corpo. Essa concep,ao intelectualista da ontologia nao apenas destrui­ria a univocidade do ser, mas tambem subordinaria qualquer concep­c;ao material e corperea do ser ao dominio intelectual.

Essa discussao sera necessariamente complexa e em alguns pon­tos a interpreta,ao de Deleuze poderi parecer for,ada com rela,aoao texto de Espinosa, mas essa complexidade e essa tensao deveriamapenas nos indicar a importancia que essa questao assume para a fi­losofia de Deleuze, a imporrancia que existe em combater 0 privile­gio do pensamento.

Deleuze articula a sua ideia da igualdade dos atributos arraves

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de uma teotia do paralelismo ontoI6gico13. A ideia de um paralelismodos atributos naD deveria ser considerada como urn Dutro principiado ser; ao inves disso, ela esimplesmente uma extensao 16gica ou de­senvolvimento da ideia da univocidade do ser. Se falamos do ser sem­pre e em qualquer lugar cia mesma maneira, entao os atributos devemser express6es iguais. Em outras palavras, se, vista do alto, a univo­cidade aparece como a absoluta uniformidade do todo, vista de bai­xo aparece como a participa<;ao igual de radas as partes constituin­tes. Podemos identificar trl's elementos que formam a teotia do para­lelismo ontol6gico de Deleuze: autonomia, igualdade e unidade.

A autonomia dos atributos deveria ser compreendida, primeira­mente, como a rejei<;ao cia concep<;ao cartesiana do primado cia men­te sabre 0 corpo. Espinosa afirma, em oposi<;ao a Descartes, que amente nem conrrola 0 corpo oem sofre em fun<;ao dele e similarmenteo corpo nem conrrola a mente oem sofre em fun<;ao dela. Ha uma se­para<;ao real entre os atributos. Espinosa concebe a mente, portanto,como um "automato espiritual" (Treatise on the Emendation of theIntelect, 85) porque, ao pensar a mente, obedece somente as leis dopensamento (d. Expressionism in Philosophy: Spinoza, 140). 0 mes­mo, naturalmente, deve ser dito do corpo: 0 corpo e urn automato cor­poreo porque, quer em movimento quer em repouso, obedece apenasas leis da extensao. Essa concep~ao da autonomia dos atributos se ba­seia num dos principios da causalidade eficiente: se duas coisas saodiferentes, uma nao pode ser causa da outra (d. Etica IP3). Os atri­butos, portanto, constituem series independentes de causa e efeito.

A ptoposi<;ao do paralelismo, contudo, vai alem de uma meraseparar;ao entre os atributos. "A ordem e a conexao das ideias e amesma que a ordem e a conexao das coisas"(IIP7, grifo meu). A pto-

13 "Paralelismo" 003.0 eurn termo de Espinosa, mas sim introduzido pela in­terpreta<;ao de Leibniz. Muitos tern conrestado que nao eapropriado aplicar essetermo ao pensamento de Espinosa. Sylvain Zac, por exemplo, faz obje<;ao ao usodo termo "paralelismo" para descrever a rela<;ao entre os atributos de Espinosa:"Nao euma correspondencia, nem urn paralelismo entre 0 mental e 0 fisiol6gico,sequer uma correspondencia termo-a-termo ou uma correspondencia das totali­dades" (L'idee de vie, 96-97). Zac argumenta que os atributos nao sao paralelos,mas, ao contririo, substancialrnente identicos, vistos de diferemes perspectivas. Poressa razao, eirnportante que Deleuze nao afirrne uma igualdade de corresponden­cia, mas urna igualdade de principio. Dada essa nuance, nao fica claro que a obje­<;03.0 de Zac fosse adequadarnente dirigida a interpreta<;ao de Deleuze.

posir;ao de Espinosa afirma nao somente que os atributos sao auto­nomos, mas tambem que estao organizados em uma ordem paralela:"De fato, identidade de conexao significa nao somente autonomia dasseries correspondentes, mas isonomia, quer dizer, uma igualdade deptincipios entre series autonomas ou independentes" (Expressionismin Philosophy: Spinoza, 108). Um segundo componente do paralelismoe, portanto, 0 estabelecimento de uma igualdade de principios entretodos os atributos, especificamente entre os dois atributos acessiveisa n6s, 0 pensamento e a extensao. Essa e uma r~jeir;ao completa daposi~ao cartesiana: nao apenas 0 corpo eformalmente independenteda mente, como e tambern igual a mente em principio. Precisamoscompreender a igualdade de principios aqui em termos de participa­r;ao ontologica. 0 corpo e a mente participam do ser de maneira au­tonoma e igual. Mais uma vez, essa proposi~ao se desdobra diretamentedo principio da univocidade: corporeidade e pensamento sao expres­sees iguais do ser, ditas numa mesma voz.

Ja e possivel reconhecer que a igualdade nao e suficiente para ex­plicar 0 paralelismo ontologico. Os diferentes atributos nao sao ape­nas expressees iguais do ser; eles sao, de uma certa maneira, a mesmaexpressCzo. Em outras palavras, os modos dos varios atributos sao osmesmos, do ponto de vista da subsrancia.

Deus produz as coisas em todos os atributos de umas6 vez: ele as produz na mesma ordem em cada atributo, epor isso ha uma correspondencia entre os modos dos dife­rentes atributos. Mas porque os atributos sao realmentedistintos, essa correspondencia, ou identidade de ordem,exclui qualquer a<;ao causal de um sobre 0 outro. Porqueos atributos sao todos iguais, ha uma identidade de conexaoentre os modos diferindo no atributo. Porque os atributosconstituem uma unica e mesma substancia, os modos quediferem no atributo formam uma unica e mesma modifi­ca<;ao. (110)

A modifica<;ao substancial (modificatio) e a unidade dos modosque sao produzidos em paralelo nos diferentes atributos por uma unicaafecr;ao da substancia. 0 conceito da modificar;ao e, em si mesmo, ademonstra<;ao daquilo que Deleuze chama de paralelismo ontologico:os modos produzidos autonoma e igualmente nos diferentes atribu-

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tos aparecem como uma unidade, do ponto de vista da substancia, naforma da modifica<;ao substancial (ver Spinoza: Practical Philosophy).Na interpreta<;ao de Deleuze, essa teoria do paralelismo espinosistafunciona nao tanto como uma analise da organiza~aodo ser,14 mascomo uma li~ao central para a especula~ao, aquela que nos servira deguia em nosso estudo da Etica: toda proposi<;ao que fizermos com re­la~ao a urn dos atributos cleve ser feita igualmente com rela~ao ao outroatributo. Em outras palavras, cada vez que reconhecemos urn aspectoda estrutura ou do funcionamento cla mente, devemos nos perguntarcomo podemos reconhecer uma estrutura ou fun~ao paralela do cor­po e vice-versa. (Por exemplo, se tivermos que afirmar uma certa na­tureza de uma ideia verdadeira da mente, devemos afirmar tambemuma natureza paralela de um ato verdadeiro do corpo.)15

A leitura deleuziana do paralelismo ontologico e uma interpre­ta<;ao original nos estudos de Espinosa. A bela simplicidade que con­tern esta no fato de que decorre muito diretamente do principio daunivocidade. Se 0 ser e expressado, sempre e em todo lugar, na mes­rna voz, entao todos os seus atributos devem estar estruturados comoexpressces paralelas; a unidade substancial da modifica~ao,que abarcatodos os diferentes atributos, testemunha em favor da univocidade doser. Alem disso, as dificuldades que sublinhamos anteriormente, comrespeito aprioridade do pensamento na funda~ao do atributo, pare­cern ter sido resolvidas (ou ao menos deixadas para tras) pela teoriada igualdade ou do paralelismo ontologico dos atributos. Deveriamosreconhecer, nao obstante, que, enquanto a interpreta~ao de Deleuzese ajusta muito bern ao espirito geral do sistema ontol6gico de Espinosa,ela nao esta de acordo com a verdadeira afirma<;ao de Espinosa na Pro­posi~ao 7: "A ordem e a conexao das ideias e a mesma que a ordem ea conexao das coisas" (IIP7). Deleuze reconhece que aqui Espinosa nao

14 Antonio Negri poe 0 problema dos atriburos como sendo forc;osamenteurn problema de organizaC;ao (The Savage Anomaly, 53 ss.). A ordem ontologicaque eles constituem apresenta urn ser que e pre-formado, uma construc;ao ideal.Essa e a razao, observa Negri, pela qual os atributos devem retirar-se da discus­sao quando Espinosa se volta para preocupac;oes praticas e politicas. Deleuze, to­davia, ou nao toma consciencia desse problema, ou nao se preocupa com ele.

15 Veremos que, embora Deleuze proponha eloquenrememe esse paralelismoontologico, deixa de aplid.-lo plenamente em urn pomo crucial da investigaC;ao,quando a pratica emerge no terceno da constituiC;ao..

esta propondo urn paralelismo ontol6gico, mas urn paralelismo epis­temol6gico (99). Esse paralelismo nao e estabelecido igualmente en­tre os varios atributos; ele focaliza principalmente 0 atributo do pen­samento, estabelecendo a rela~ao entre uma ideia e 0 seu "objeto" ("resideata, obiectum ideae"). a problema e colocado muito claramenteno corolario dessa proposi<;ao: "A potencia de pensar de Deus e igualit sua potencia atual de agir" (P7C). Para apteciar a profundidade desseproblema, devemos ter em mente que "a~ao", na terminologia de Espi­nosa, nao se refere somente ao movimento e repouso do corpo, mas atodos os atributos igualmente (ver, por exemplo, IIID3). Essa formu­la de P7C esta, portanto, propondo uma igualdade, mas nao a igual­dade da mente e do corpo; ao contd.rio, a essencia do pensamento (apotencia de pensar) e igualada it essencia do ser (a potencia de agir).Assim, somos lan~ados de volta ao mesmo terreno problematico dainterpreta<;ao subjetivista do atributo.

Deleuze certamente reconhece a seriedade deste problema. Maisuma vez nos confrontamos com 0 que parece ser uma tendencia espi­nosista a privilegiar 0 pensamento sobre todos os outros atributos. Ateoria do paralelismo epistemol6gico, expce Deleuze, "nos for~a a con­ferir ao atributo do pensamento urn privilegio singular: esse atributodeve conter tantas ideias irredutiveis quantos sao os modos dos dife­rentes atributos; mais ainda, tantas ideias quanto ha atributos. Esseprivilegio parece em flagrante contradi~ao com todas as exigencias doparalelismo ontologico" (114). a privilegio que parece estar sendo con­cedido ao pensamento aqui vai de encontro ao perfil geral do sistemaontol6gico. Na primeira tentativa para resolver esse problema, Deleuzeexplica que, no esc6lio a essa proposi~ao, Espinosa procede do para­lelismo epistemol6gico ao paralelismo ontol6gico, generalizando 0 casodo pensamento (da ideia e de seu objeto) para todos os atributos. Dessamaneira, Deleuze propce 0 paralelismo epistemol6gico como secun­dario como urn mero "desvio" (99) para alcan<;ar 0 paralelismo on-, ,

tol6gico, a teoria mais profunda. Essa leitura, contucio, nao se encon­tra muito bern fundamentada no texto. a escolio e de alguma formasugestivo do paralelismo ontol6gico, mas certamente nao 0 afirmaclaramente. A afirmativa de apoio mais sugestiva, na verdade, e mui­to fraca: "Entendo 0 mesmo com rela<;ao aos outros atributos" (IIP7E).Nao pense que essa dificuldade deveria por em questao a proposta deDeleuze com rela~ao ao paralelismo ontol6gico - na verdade, ha su­ficiente evidencia em outras passagens da obra de Espinosa que con-

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firmam essa tese. A tarefa aqui e a de encontrar uma maneira de con­ciliar os dois paralelismos, de tal forma que eles nao se contradigamentre si; ou, melhor ainda, descobrir uma maneira de evitar 0 parale­lismo epistemologico inteiramente.

Deleuze entao mergulha numa diseussao mais profunda a fim deaplicar-se a essa tarefa. 0 objetivo imediato dessa discussao e tornara elaborar a interpreta<;ao do paralelismo epistemol6gieo proposto nalIP? A meta fundamental, entretanto, que devemos ter em mente emtodo esse complexo argumento, e eombater os privilegios do pensa­mento, e por esse meio preservar 0 fundamento ontologico do arca­bow;o filosofico. Devemos ter cuidado, inicia Deleuze, para nao eon­fundir os atributos do ser com os poderes do ser: "A distin<;ao entrepoderes e atributos tern uma importancia essencial no espinosismo"(118). Enquanto 0 ser tern uma infinidade de atributos, tern apenasduas potencias: a potencia de existir e agir, e a potencia de pensar econheeer (103). A primeira potencia, a potencia de existir, e a essen­cia formal de Deus. Todos os atributos participam igualmente nessaessencia, na potencia de existir, como express6es formalmente distin­tas. Essa e uma reafirmayao do paralelismo ontologico. A segundapotencia, entao, a potencia de pensar, e a essencia objetiva de Deus."A essencia absoluta de Deus e formal nos atributos que constituema sua natureza, e objetiva na ideia que necessariamente representa essanatureza" (120). Os mesmos atributos que sao formal mente distingui­dos em Deus, sao distinguidos objetivamente na ideia de Deus. Essaformula<;ao dos dois poderes da a Deleuze a oportunidade de comba­ter a nOyao da eminencia do pensamento sobre todos os outros atri­butos, ao subsumir a perspectiva epistemologica dentro da ontologi­ca. "0 atributo do pensamento esra para a potencia de pensar, assimcomo todos os atributos (incluindo 0 pensamento) esrao para a po­tencia de existir e agir" (122). Esse deslizamento entre poderes e atri­butos estabelece os termos para uma prioridade entre as duas poten­cias. Muito embora Deleuze tivesse afirmado anteriormente que ospoderes sao num certo sentido iguais, aqui nos descobrimos que apotencia de pensar (essencia objetiva) e dependente da potencia deexistir (esseneia formal): "0 ser objetivo nada significaria se ele mes­mo nao tivesse uma existencia formal no atributo do pensamento"(122). A defesa que faz Deleuze da prioridade da potencia ontol6giea(a potencia de existir) sobre a potencia epistemol6gica (a potencia depensar) preserva assim a igualdade entre atributos.

Finalmente, entretanto, surge ainda urn outro caso em que 0 pen­samento parece ter priviU:gio sobre os outros atributos. Na mente naoha apenas ideias que correspondem a objetos (res ideata), mas tam­bern ideias dessas ideias, e ainda outras ideias dessas ideias de ideias,e assim por diante ate 0 infinito: "De onde esse aparente privilegiofinal do atributo do pensamento, que e 0 fundamento de uma eapa­cidade da ideia de se refletir ad infinitum. Espinosa afirma por vezesque a ideia de uma ideia tern para com a ideia a mesma rela<;ao que aideia para com seu objeto" (125). Antes de entrarmos nos detalhesdeste argumento, que pode muito bern parecer tedioso e arcano, de­veriamos mais uma vez tentar esclarecer 0 que aqui esta em jogo. Di­versos analistas tern argumentado que a ideia da ideia em Espinosa eo problema da consciencia ou, antes, 0 problema da reflexao da men­te. Sylvain Zac, por exemplo, coloca 0 conceito como se segue: "Aconsciencia e a ideia de uma ideia. Esra unida a mente tal como amente estO unida ao corpo" (L'idie de vie, 128; ver tambem 121-128).Embora Deleuze nao coloque a questao nesses termos, a proposiyaode Zac deixa claro 0 perigo que representa para Deleuze esse exem­plo espinosista. A ideia da ideia, como consciencia, pareee estar cons­truindo uma interioridade na mente que, como Zac afirma, se une amente tal como a mente se une ao corpo. A principal ameaya dainterioridade, nesse caso, e a criac;ao de uma prioridade da mente so­bre 0 corpo e a subsun<;ao da dinamica do ser em urn dinamica men­tal da reflexao. Entretanto, conforme vimos diversas vezes, Deleuzenao e urn filosofo da consciencia: 0 que isso signifiea e, por urn lado,que ele mantem a prioridade da ratio essendi sobre a ratio cognos­cendi, e, por outro lado, que ele recusa qualquer subordina<;ao docorpo amente. Fica bern claro, portanto, que quando Deleuze abor­da essa questao, a sua preoeupa<;ao principal sera a de preservar aigualdade ontol6gica dos atributos. 0 problema basieo, entao, podeser colocado de maneira bern simples. Enquanto a ideia e 0 seu obje­to sao concebidos sob dois atributos separados, a ideia da ideia e aideia sao ambas eoncebidas sob 0 atributo do pensamento. Isto, en­tao, signifiea dizer que hci a mesma rela<;ao entre a ideia e 0 objetoque ha entre a ideia da ideia e a ideia? 0 argumento de que as doiscasos constituem a mesma rela<;ao parece considerar a capacidade desubsumir a relayao para todos as atributos dentro de si propria: suaprioridade como atributo da reflexao pareee dar-lhe a eapaeidade dereproduzir completamente, dentro do proprio pensamento, a dinami-

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Deleuze fica satisfeito com essa soluC;ao. Ele respondeu ao de­safio intelectualista posto pela consciencia por uma referencia aos

Desse ponto de vista, vemos a unidade de uma ideia ea ideia da ideia, na medida em que elas sao dadas em Deuscom a mesma necessidade, pela mesma potencia de pensar.Ha consegiientemeote uma so distinc;ao conceitual (distinc­tion de raison) eotre as duas ideias: a ideia de uma ideia eaforma daquela ideia, referida como tal a potencia de pen­sar. (126)

ca inter-atributo. A amea<;a de uma perspectiva idealista, uma filoso­fia cia consciencia, ainda persegue 0 sistema espinosista.

Deleuze, mais uma vez, recorre adistim;ao entre as poderes paralidar com essa dificuldade: as dais casos nao podem ser consideradosas mesmos do ponto de vista dos atributos, argumenta ele, mas so­mente quando considerados do ponto de vista dos poderes (110-11).Em outras palavras, a rela~ao nos dais casos deveria ser explicada re­ferinde-se 0 primeiro terma ao pacier formal e 0 segundo apotenciaobjetiva. 0 primeiro caso e muito simples. A res ideata, como urnmodo do ser (pertencendo a urn dos atributos), tern uma certa poten­cia de existir e e, portanto, uma expressao cia essencia formal. A ideiadesse objeto, contudo, refefe-se nao apotencia de existir mas apo­tencia de pensar, sendo portanto uma expressao cia essencia objetiva.Podemos aplicar essa mesma logica ao segundo caso porgue uma ideiaetambern urn modo do ser. Urn modo do pensamento, tal como urnmodo de qualquer atributo, pode ser referido a potencia de existir,enquanto essencia formal. Quando uma ideia e assim concebida, po­demos relacionar uma outra ideia aquela ideia, referindo-nos agoraa potencia de pensar: essa ideia da ideia e uma expressao da essenciaobjetiva. A relar;ao comum indicada por Espinosa e, entao, que emcada caso os dois termos se referem a suas duas potencias distintas: apotencia de existir e a potencia de pensar. Essa similaridade, contu­do, aponta para uma diferenr;a importante quando nos consideramosos dois casos do ponto de vista dos atributos. No primeiro caso, h:iuma diferen<;a formal entre uma ideia e 0 seu objeto porque sao mo­dos de diferentes atributos. No segundo caso, entretanto, entre a ideiada ideia e a ideia, nao ha qualquer distin<;ao formal porque ambassao modos do pensamento.

NOTA: DA FORSCHUNG A DARSTELLUNG

139Gilles Deleuze - Urn Aprendizado em Filosofia

Na se<;ao precedente analisamos diversos exemplos do esfor<;o deDeleuze para preservar a univocidade do ser sobre a base de urn para­lelismo ontologico entre os atributos. 0 inimigo em cada caso e umaleitura intelectualista da ontologia de Espinosa, que em muitos pontosparece dar urn real privilegio ao pensamento. A estrategia de Deleuze,como vimos muitas vezes em nosso estudo, e subordinar ratio cogns­cendi a ratio essendi. Os argumentos de Deleuze tern certamente umaselida funda<;ao na ontologia de Espinosa, no paralelismo ontolegicodos atributos; nao obstante, esses argumentos parecem fracos quan­do, na psicologia e na epistemologia de Espinosa, 0 problema do pri­vilegio reaparece continuamente. Em certa medida, os privilegios dopensamento e 0 problema dos atributos deveriam ser explicados comourn residuo do cartesianismo no pensamento de Espinosa, mas essaexplicac;ao nao e suficiente por si propria. A teoria dos atributos per­manece urn problema no Espinosa de Deleuze.

Alguns leitores de Espinosa, que, como De1euze, reconhecem a cen­tralidade do ser, tentaram resolver esse problema afirmando haver umaevolu<;ao no pensamento de Espinosa: Antonio Negri, por exemplo, ar­gumenta que a teoria dos atributos desaparece a medida que Espinosapassa da utopia pantelsta, que caracteriza a primeira fase de seu pensa­mento, para a desutopia constitutiva de sua maturidade. Os atributosde fato desaparecem da Etica depois da Parte II (com uma breve rea­paric;ao somente na Parte V), e Negri liga esse fato a evidencia histori-

diferentes poderes e, finalmente, a hierarquia ontologica das distin­c;5es. A distinc;ao envolvida na dinamica da consciencia nao e a dis­tin<;ao real que funda 0 ser, nem a distin<;ao formal que diferencia osatributos, mas meramente uma distinc;ao conceitual (distinction deraison). Podemos colocar essa questao c1aramente em termos berg­sonianos: a consciencia nao estabelece uma diferenc;a de natureza, massimplesmente uma diferenc;a de grau. Temos que admitir, nao obs­tante, que a capacidade da mente para a reflexao (consciencia, a ideiada ideia), de fato, da ao pensamento urn certo privilegio sobre os ou­tros atributos. a argumento de Deleuze, contudo, valendo-se dos di­ferentes poderes e distinc;5es, tenta mostrar que esse privilegio e 00­

tologicamente insignificante.

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ea de que Espinosa esbo,ou a Etica durante dois periodos distintos, de1661 a 1665 e de 1670 a 1675 (The Savage Anomaly, 48). Negri argu­menta, entao, que a transformas;ao filos6fica de Espinosa entre essesdois periodos preeipita a rejei,iio dos atributos (59). 0 argumento deNegri foi alva de uma critica severa, mas aponta, claramente, para duasquest6es que (meSilla se questionarmos sua explica~ao) precisam sertratacias: a teoria dos atributos permanece problematica no contextodo sistema espinosista, e os atributos estao relativamente ausentes ciaultima metade da Etica.

Pareee-me haver uma alternativa, au uma explicac;ao complemen­tar, disponivel na propria obra de Deleuze, para dar conta do desapa­recimento dos atributos. Poderiamos argumentar, de forma consistentecom a interpretac;ao de Deleuze, creio, que 0 pensamento eprivilegia­do na teoria dos atributos somente em termos limitados au acidentais:o pensamento e 0 principal meio da especula~ao humana, e a teoriados atributos esta ligada a urn modo de inquiri<;ao. Se nos imaginar­mos que ha algo de substaneial aeerea da prioridade do pensamentosobre os outros atributos, estamos simplesmente confundindo a for­ma de nossa pesquisa com a natureza do ser. as atributos aparecemna Etica nao como uma forma do ser, mas como urn modo de inquiri­<;ao, como uma Forschung cientifica. Marx deixa claro a distin<;ao entreForschung e Darstellung, entre 0 modo da inquiri,iio e 0 modo daapresenta,iio: "Naturalmente 0 metodo da apresenta,iio [Darstellung]deve diferir na forma do metodo da inquiri,iio [Forschung]. Este ulti­mo tern que se apropriar do material detalhadamente, para analisaras suas diferentes formas de desenvolvimento e rastrear as suas cone­xoes internas. Somente depois de realizar este trabalho pode 0 movi­mento real ser apresentado adequadamente" (Capital, vol. 1, 102).Seguindo essa logica, as duas fases do pensamento de Espinosa, queNegri propoe historicamente, podem ser identificadas com dois mo­mentos ou abordagens na obra de Espinosa16. A Forschung da Etica,

16 Dificuldades especiais sao apresentadas aminha tese com 0 reaparecimentodos atributos na Parte V da Etica. Negri sustenta que essa reaparifao e devida aofato de que Espinosa esbofou diferentes sefoes da Parte V durante periodos dis­timos, de que a Parte V contem residuos da utopia panteista da obra inicial deEspinosa (169 ss.). Minha proposta deleuziana sugere uma diferente explicafao.Eu sustentaria que 0 esfor'Yo de Espinosa na Parte V para elevar-se do segundo aoterceiro tipo de conhecimento, para elevar-se a ideia de Deus, requer urn novo mo-

o momento da especula<;ao, baseia-se na teoria dos atributos "pararastrear as conexoes internas" do ser. Ao pensamento edada uma certaprioridade nesse momento, como modelo de nossa especula~ao. "So­mente depois de realizado esse trabalho", diz Marx, "pode 0 movi­mento real ser apresentado adequadamente". 0 que significa apresentaradequadamente 0 movimento real do ser? Aqui significa apresentar 0

ser enquanto ele se produz, no processo de sua constitui<;ao. Em ou­tras palavras, somente apos 0 momento anaHtico haver trazido aluztodas as distin<;oes do terreno pode esse mesmo terreno ser atravessa­do uma segunda vez com uma postura diferente, com uma atitude pra­tica, apresentando adequadamente as "conexoes internas" eo "mo­vimento real" do ser no processo de sua propria constitui<;ao. Quan­do 0 momento da pesquisa e completado, depois da Parte II da Etica,portanto, os atributos deixam de ter urn papel e saem da discussao. Amedida que avan<;amos no sistema espinosista da retifica<;ao, em quepassamos da especula<;ao apratica, qualquer prioridade do pensamentodesapareee gradualmente. Na verdade, Deleuze apresenta uma argu­mento poderoso, 0 de que a teoria da pratica de Espinosa privilegiainicialmente 0 atributo da extensao: 0 corpo e0 modero da pr:itica.Tal afirma~aome parece, entao, uma explica~aodeleuziana consistentedas quest6es da prioridade. Em nossa pesquisa do ser, momento daespecula,iio, a mente desempenha 0 papel inieial de modelo; do mes­mo modo, na Darstellung de Espinosa, em nossa pratica do ser, 0 corpo

desempenha urn papel paralelo.De que forma Espinosa opera essa transforma,iio da Forschung

para a Darstellung, da espeeula,iio apratiea? A obra de Deleuze dei­xa claro que 0 elo ou 0 pivQ que articula esses dois momentos ea te­matica do poder. A discussao espinosista do poder transporta a fun­da,iio ontologiea desenvolvida para 0 terreno da pratiea. Esta consti­tui, conforme declaramos anteriormente, a passagem fundamental, atransmuta<;ao nietzschiana: a hora da meia-noite. A Forschung espe­culativa do poder leva asua Darstellung pratiea. Voltemos a nossa aten­~ao, portanto, para 0 desenvolvimento feito par Espinosa da te~ati­

ea do poder.

mento especulativo, um retorno ao modo anterior de pesquisa. 0 retorno da For­schung de Espinosa traz com ele todos os seus instrumentos cientificos, incluindoos atributos.

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PODER-

6. 0 VERDADEIRO E 0 ADEQUADO

A questao dos attibutos chegou a tocar a epistemologia de Espi­nosa, mas nao fez mais que arranhar a superffcie. Ate 0 momento, vi­mos tratando a rea<;ao de Deleuze contra uma leitura intelectualista ciaepistemologia de Espinosa. Essa rea<;ao baseia-se, em primeirolugar,em uma concep,ao do paralelismo ontologico que edesenvolvido atravesde uma extensao do principia de univocidade. Devemos agora voltar­nos para a exposi<;ao positiva de Deleuze cia epistemologia espinosistae, especificamente, para a proposta de Espinosa de que devemos mu­dar 0 foco de nossa aten,ao da ideia verdadeira para a ideia adequadacomo uma categoria cia especula<;ao mais coerente e uti!. Ha certamenteuma rela<;ao proxima entre verdade e ser em Espinosa, mas esse nexorevela naD 0 cad.tef intelectual do ser, mas siro 0 criteria ontol6gico ciaverdade. Nos veremos que a discussao cia adequac;ao em Espinosa trazde volta ao plano ontologico 0 debate epistemologico. 0 papel princi­pal do argumento e desempenhado por uma concep,ao ontologica dacausalidade interna, OU da produ,ao singular do ser. 0 adequado edefinido COmo sendo aquilo que envolve e expressa a sua causa.

Desde urn de seus primeiros trabalhos, The Emendation of theIntellect, Espinosa busca uma defini,ao intrinseca da ideia verdadei­ra. Tal como 0 ser verdadeiro e causa de si, e obtem a sua distinc;aode dentro de si, tambern a ideia verdadeira deve ser definida por umacausalidade interna. Segundo Espinosa, como vimos, a mente e urnautomato espiritual que produz ideias autonomamente, quer dizer, Comreferencia apenas ao atributo do pensamento. Essa base fornece a Espi­nosa os instrumentos para uma critica vigorosa da tradicional teoriada verdade como correspondencia, implicita no paralelismo episte­mologico discutido anteriormente: a ideia verdadeira e a ideia que esrade acordo com 0 seu objeto ou a ele corresponde (res ideata). A teoriada correspondencia, que meramente coloca uma concordancia formal,apresenta uma cegueira em relac;ao ao processo de prodw;ao, e assimnao consegue preencher 0 criterio inicial de Espinosa para a ideia ver­dadeira: "A concepc;ao da verdade como correspondencia nao nos daqualquer defini,ao, seja formal seja material, do verdadeiro; ela pro­poe uma definic;ao puramente nominal, uma designac;ao extrinseca"

(Expressionism in Philosophy: Spinoza, 131). Em epistemologia, a de­signac;ao extrinseca fornece uma concepc;ao fraca da verdade, do mes­mo modo que na ontologia a causa externa fornece uma definic;ao fracado ser. A definic;ao externa, conforme vimos nos estudos sobre Bergson,implica simplesmente uma "exterioridade subsistente" (ver se,ao I.1).Ja nos e posslvel observar, nessa critica da teoria da correspondencia,que uma logica ontologica fornece a funda,ao para a investiga,aoepistemologica de Espinosa.

Nesse contexto, a proposic;ao cartesiana do "claro e distinto" comocondic;ao da verdade nos fornece uma estrategia muito mais promisso­ra, porque dirige-se nao somente aforma mas tambern ao contelido daideia. Deleuze argumenta, entretanto, que a concepc;ao do claro e dis­tinto e insuficiente para uma teoria espinosista da verdade em tres as­pectos. Primeiro, embora a proposic;ao cartesiana consiga referir-se aocontelido da ideia, essa referencia perrnanece superficial como urn con­teudo "representativo" (132). 0 conteudo da ideia clara e distinta naopode ser urn contelido real porque "claro e distinto" nao reconhece oucompreende a causa eficiente daquela ideia. Nos sabemos que, uma vezque a mente e urn automato espiritual, a causa aproximada de qualquerideia e uma outra ideia, mas a superficialidade da representac;ao e pre­cisamente 0 seu afastamento dessa causa. Segundo, a forma da ideia clarae distinta tambem permanece superficial na forma de uma "conscien­cia psicologica" (132). Essa forma cartesiana nao alcan,a a forma 10­gica da ideia que explicaria a conexao e ordem das ideias umas com asoutras. A superficialidade nesse caso e devida ao afastamento da causaformal da ideia, que e precisamente 0 nosso poder de pensar. Terceiro,a concepc;ao cartesiana nao consegue colocar a unidade do conteado ea forma da ideia verdadeira; em outras palavras, Descartes nao reco­nhece 0 automato espiritual "que reproduz a realidade ao produzir ideiasna sua devida ordem" (152). Em suma, todas as criticas da estrategia'''clara e distinta" nascem do fato de que tal estrategia tenta definir averdade enquanto se refere apenas apropria ideia; a estrategia carte­siana nao lida com as causas das ideias e assim nao pode explicar 0

processo de sua prodw;ao. Mais uma vez, neste foco na causalidade ena produ,ao, podemos reconhecer a abordagem ontologica da verda­de por Espinosa. Deleuze relaciona essa crftica asua noc;ao de expres­sao: para ser expressiva, uma ideia deve explicar ou conter a sua causa."Uma ideia clara e distinta e ainda inexpressiva, e permanece inexplicada.Boa a bastante para 0 reconhecimento, mas incapaz de fornecer urn prin-

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17 Em seu Spinoza's Theory of Truth, Thomas Mark faz uma abordagemcompleta das interpretar.;6es analfticas anglo-americanas da epistemologia de Espi~

cfpio real de conhecimento" (152-53). ]ustamente em razao de seu fra­casso em expressar ou explicar a ideia verdadeira por meio de sua causa,a concep~ao cia verdade como clara e distinta nao nos da os termos pararespondermos as nossas questoes fundamentais: de oode vern a verdadeeo que pode fazer por nos - OU, como Nietzsche poderia perguntar,POt que queremos a verdade? Uma defini<;ao espinosista da verdade pre­cisa envolver a expressao cia causalidade, cia prodw;ao e do pacier.

A crftica ontol6gica cia ideia clara e distinta prepara os termospara a mudanc;a, operada por Espinosa, cia ideia verdadeira para a ideiaadequada. A principal caracteristica da concep<;ao da verdade em Espi­nosa e a relac;ao interna de uma ideia asua causa: "A ideia adequadaejustamente a ideia que expressa a sua causa" (133, modificado), Po­demos contrastar esse argumento com a tearia cartesiana em rela~ao

aos tres pontos que acabamos de apresentar. Primeiro, a ideia adequadaapresenta 0 seu contelido como a expressao de sua causa eficientept6xima (uma outra ideia). Segundo, a forma da ideia adequada e umafotma 16gica explicada por sua causa formal (0 podet de pensar): "Aideia adequada e a ideia que expressa a sua propria causa e eexplica­da por nosso poder" (151). Terceiro, 0 conteudo e a forma da ideiaadequada estao unidos no movimento que e interior ao atributo dopensamento: "0 automato espiritual, manifestado na concatena~aodasideias, e a unidade da forma l6gica e do conteudo expressivo" (153).Podemos interpretar a insistencia de Espinosa em substituir 0 claro edistinto cartesiano pela sua concep~ao de adequa~ao como uma on­tologiza<;ao da epistemologia. "A ontologia de Espinosa e dominadapelas no<;6es de uma causa de si, em si e por si" (162). A epistemolo­gia de Espinosa e tambem dominada por essa mesma enfase na cau­salidade: a verdade, como 0 ser, esingular, dado que envolve e expressaa sua propria causa. Por meio da cadeia causal expressada por umaideia adequada, atraves do movimento do verdadeiro para 0 adequa­do, a epistemologia de Espinosa assume urn cara.ter ontologico. A re­volu~ao de Espinosa na epistemalogia consiste em aplicar esses mes­mos criterios ontologicos que definem 0 ser coma singular ao domi­nio da verdade. ]untamente com Thomas Mark, urn perceptivo co­mentarista americano, Deleuze demonstra que a teoria da verdade deEspinosa euma teoria da "verdade ontoI6gica"17.

145Gilles Deleuze - Urn Aprendizado em Filosofia

Ideias adequadas sao expressivas e ideias inadequadas sao mu­das. 18 Em outras palavras, a caracterfstica distintiva de uma ideiaadequada e que ela nos diz algo acerca da estrutura e das conex6esdo ser (ou ao menos do atributo do pensamento) mediante uma ex­pressao direta de suas causas formais e eficientes. De uma perspecti­va ontol6gica, a ideia inadequada nada nos diz porque nao podemosreconhecer 0 seu lugar na estrutura produtiva do pensamento; ela naoesta situada no mecanismo dinamico-causal do automata espiritual.Urn dos aspectos importantes da ideia adequada e, entao, que parmeio da expressao de suas causas aumenta a potencia de nosso pen­samenta; quanto mais ideias adequadas tivermos, mais saberemossabre a estrutura e as conex6es do ser, e maior sera a nossa potenciade pensar. A adequa~ao e contagiosa, dando lugar a uma expressaocada vez mais acentuada. "Todas as ideias que resultam, na alma, dasideias que nela existem adequadas sao tambern adequadas" (1IP40).Espinosa, contudo, acompanha essa afirma~ao com uma avalia~ao

realista de nossa condi~ao. A grande maioria das ideias que temos sao

nosa. Mark explica que a abordagem tradicional (Joachim, Stuart Hampshire,Alisdair MacIntyre etc.) coloca Espinosa contra uma teoria da verdade como cor­respondencia e a favor de uma "teoria da coerencia" onde a verdade e definidacomo coerencia dentro do sistema ordenado que constitui a realidade. Mark ar­gumenta, contudo, que Espinosa esra melhor situado na rradir.;ao epistemologicamuito mais antiga da verdade como 0 ser: "Se desejamos ver a teoria da verdadede Espinosa em sua ambiencia historica, nao devemos contrastar a visao da cor­respondencia com a coerencia, mas sim com teorias da 'verdade do ser' ou 'verda­de das coisas': verdade ontologica" (85). De acordo com Mark, essa teoria da ver­dade ontologica situa Espinosa na tradir.;ao plat6nica alinhado a Plotino, Anselmoe Samo Agostinho. A leitura de Deleuze e consistente com a de Mark ate urn certoponto, mas 0 fator crucial e que Mark nao reconhece, como Deleuze, a relar.;aocentral entre verdade e potencia. Uma vez que a questao da verdade torna-se tam­bern uma questao de poder, a epistemologia de Espinosa tende para uma episte­mologia pratica. Portanro, a leitura de Deleuze situa a "verdade ontologica" deEspinosa nao na tradir.;ao plat6nica, mas na nietzschiana.

18 Vma ideia dada de urn drculo pode ser clara e distinta, mas permaneceinadequada a menos que expresse 0 caminho de sua propria produr.;ao. Vma ideiaadequada de urn circulo poderia, por exemplo, envolver a ideia de urn raio fixogirado em torno de urn ponto central; ela expressa sua causa. Urn exemplo maiscomplexo e importante seria a ideia de justir.;a: uma ideia adequada de justir.;a te­ria que expressar os meios pelos quais produziriamos ou construiriamos tal ideia;envolveria toda uma genealogia de icleias que resultam nessa ideia.

Michael Hardt144

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inadequadas. Nesse ponto fica 6bvio de que modo Espinosa respon­deria a questao nietzschiana colocada anteriormente: nos queremosa verdade, ou antes, a adequa~ao, a fim de aumentar 0 nosso poderde pensar. A estrategia da ideia adequada transforma a questao daverdade em urn projeto de poder. Entretanto, uma vez que a questiiodo poder eotra em discussao, esse discurso epistemol6gico logo setransforma em projeto etico. "Espinosa pergunta: como chegamos aformar e a produzir ideias adequadas, quando necessariamente temostantas inadequadas que desviam a nossa potencia enos separam da­quilo que podemos fazer?" (148, modificado). Aqui, nessa transfor­ma,ao do epistemol6gico em dire,ao ao etico, podemos observar umaaplica,ao combinada do principio da singularidade (urn ser absolu­tamente infinito como causa de si proprio, a ideia adequada envol­vendo a sua causa) e 0 principio de poder (0 ser como produtivida­de, a verdade como cria,ao); 0 principio da singularidade nos da osterIDOS para a defini~ao cia ideia adequada, e 0 principia de potenciatransforma essa defini,ao em projeto.

Antes de prosseguirmos, fa~amos pausa por urn momento parareconhecer a importancia do paralelismo ontol6gico e a sua rela,aocom 0 conceito espinosista de adequa~ao. Afirmamos anteriormenteque, se tivermos que manter a concep~ao do paralelismo ontol6gicode Deleuze, entao em principio 0 carater ou 0 movimento de urn atri­buto deve de alguma forma corresponder "quele dos outros atribu­tos, porque fundamentalmente todos eles se referem igualmente ao ca­rater ou ao movimento do ser. 0 conceito de verdade apresenta urnteste interessante para essa teoria. Seguindo a teoria cartesiana, porexemplo, serfamos for~ados a colocar, paralelamente anossa concep­~ao de uma ideia clara e distinta, ou de alguma a~ao da mente clarae distinta, alguma concep,ao de uma a,ao clara e distinta do corpo.Uma vez que a verdade cartesiana nao da conta do movimento e daprodu,ao, ela nao e facilmente aplicivel ao plano corp6reo. A ade­qua~ao de Espinosa, por outro lado, uma vez que se refere anature­za do ser mesmo e agenealogia de sua produ~ao, aplica-se a todos osatributos igualmente: tal como uma a~ao adequada da mente, umaa,ao adequada do corpo e expressiva na medida em que explica ouenvolve a sua causa. 0 adequado e aquilo que desvela a dinamicaprodutiva do ser.

7. a QUE UM CORPO PODE FAZER

Com a concep,ao de adequa,ao, Espinosa e capaz de desenvol­ver 0 quadro de referencia epistemologico ate 0 ponto de poder colo­car uma questao etica inicial, uma questao inicial de poder. Urn as­pecte dessa acidentada trilha por onde Espinosa nos conduz nos leva­ra a prosseguir desde as ideias inadequadas ate as adequadas. Pode­mos colocar facilmente esse objetivo etico como sendo, de modo ge­ral, 0 aumento de nossa potencia de pensar, au, de forma ainda maisgeneralizada, como 0 aumento de nossa potencia de existir e agir: comopodemos aumentar a nossa potencia de existir, au, em termos teolo­gicos, como podemos nos aproximar de Deus (a potencia infinita deexistir e agir)? Nesse ponto, contudo, dispondo somente de uma fun­da~ao ontol6gica, temos muito pouca ideia de como essa opera~ao epossivel; estamos muito longe ainda de poder ingressar em uma pra.­tica etica. De fato, colocar a questao etica em termos tao elevados semcontar com meios concretos e especificos de levar adiante 0 nossoobjetivo e empreendimento vazio e sem sentido.

Enecessario mais urn momento de especula~ao. Espinosa usa amente como 0 modelo principal da especula,ao; agora temos de mu­dar nossa concentra~ao para 0 corpo, da epistemologia para a fisica,porque e 0 corpo que revelara urn modelo de prarica. "Espinosa pa­rece de fato admitir que temos que passar por urn estudo empirico doscorpos a fim de conhecer as suas rela~6es, e como eles sao compos­tos" (212). Nos veremos, entretanto, na longa passagem da fisica paraa etica, que 0 criterio de adequa~ao, de expressar ou envolver a cau­sa, permanece central no desenvolvimento do argumento de Espinosa.A fisica espinosista e uma investiga<;ao empirica para tentar determi­nar as leis de intera~ao dos corpos: 0 encontro de corpos, sua compo­si,ao e decomposi,ao, sua compatibilidade (ou componibilidade) e seusconflitos. Urn corpo nao e uma unidade fixa com uma estrutura in­terna estavel ou estatica. Ao contrario, urn corpo e uma rela~ao dina­mica cuja estrutura interna e cujos limites externos estao sujeitos a mu­dan~as. Aquilo que conhecemos Como urn corpo e simplesmente umarela,ao temporariamente estavel (IIP13Def).19 Essa proposi,ao da na-

19 "Quando urn certo numero de corpos (... j sao constrangidos pela a<;aodos outros corpos a aplicar-se uns sobre os outros, ou se eles se rnovern (... ) que

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tureza dinamica dos corpos, do fluxo continuo de sua dinamica inter­na, fornece a Espinosa uma rica compreensao da intera<;ao entre oscorpos. Quando dois corpos se encontram, ha urn encontro entre duasrela<;oes dinamicas: ou eles sao indiferentes urn ao outro, ou eles saocompativeis e juntos formam uma nova rela<;ao, urn novo corpo; ou,ao inves disso, eles sao incompativeis e urn corpo decomp6e a rela<;aodo outro, destruindo-o, tal como urn veneno decompoe 0 sangue (d.Carta 32 a Henry Oldenberg). Esse universo fisico de corpos em mo­vimento e repouso, em uniao e conflito, nos propiciara 0 contexto noqual podemos investigar mais profundamente 0 funcionamento e aestrutura do poder: "A fim de realmente pensar em termos de poder,deve-se primeiro colocar a questao em rela,ao ao corpo" (257). A fl­sica de Espinosa < a pedra fundamental de sua <tica.

Deleuze e fascinado por uma passagem de urn dos primeiros es­c6lios do Livro III: "Ninguem, ate 0 momento, determinou 0 que podeo Corpo. (... ) porque ninguem veio ainda a conhecer a estrutura doCorpo de forma tao acurada que pudesse explicar todas as suas fun­,6es" (IIIP2E). A questao do poder (0 que urn corpo pode fazer) <ime­diatamente relacionada aestrutura interna do corpo. Isso delineia adire<;ao inicial de nossa investiga<;ao: para entender a natureza do po­der, devemos primeiro descobrir a estrutura interna do corpo, deve­mos decompor a unidade do corpo de acordo com as suas linhas dearticula<;ao, as suas diferen<;as de natureza. Deleuze nos lembra que ainvestiga<;ao dessa estrutura nao deve ser conduzida em termos da po­tencia de agir (espontaneidade), mas sim em termos do poder de serafetado: "A estrutura de urn corpo < a composi,ao de sua rela,ao.Aquilo que urn corpo pode fazer etanto a natureza quanto os limitesde seu poder de ser afetado" (218). 0 horizonte da afetividade, en­tao, propiciara 0 terreno para a nossa especula<;ao e revelara outrasdistin,6es dentro do corpo, distin,6es dentro do poder.

No primeiro nivel de nosso modelo de poder, descobrimos queo poder de ser afetado < preenchido por afec,6es ativas e passivas. Aimportancia dessa distin,ao < clara: quando 0 poder de ser afetado <preenchido par afec<;oes ativas, ele se relaciona diretamente com a po-

comunicam seus movimentos entre si segundo uma relar;ao constante, diremos queesses corpos estao unidos entre si e que, em conjunto, formam rados urn corpo,isto e, urn Individuo" (Etica, IIP13Def).

tencia de agir, mas quando e preenchido por afec<;6es passivas, rela­ciona-se somente com a potencia de sentir ou sofrer (puissance de patir).As afec<;6es passivas sao realmente uma marca de nossa falta de po­tencia. Mais uma vez, a l6gica essencial do argumento refere-se aex­pressao e produ<;ao: 0 ativo edistinto do passivo em sua rela<;ao coma causa. "Nosso poder de sofrer nada afirma, porque nada expressa:ele envolve somente nossa irnpotencia. Que edizer, 0 grau mais bai~

xo de nossa potencia de agir" (224, modificado). Dissemos anterior­mente que 0 poder de ser afetado demonstra a plenitude do ser namedida em que < sempre completamente preenchido por afec,6es ati­vas e passivas; entretanto 0 poder de ser afetado s6 aparece como ple­nitude do ponto de vista fisico. Do ponto de vista etico, ao contrario,o poder de ser afetado varia amplamente de acordo com a sua com­posi,ao. Quando preenchido por afec,6es passivas, < reduzido a seuminimo, e quando e preenchido por afec<;6es ativas, e elevado ao seumaximo. "De onde a importancia da questao etica. Nem mesmo sa­bemos 0 que urn eorpa pode fazer, diz Espinosa. Quer dizer: nem mes­ma sabemos de que afecfoes somos capazes, nem a extensiio de nossopoder. Como poderiamos sabe-Io por antecipa,ao?" (226). Este, en­tao, e0 primeiro passo na prepara<;ao do terreno para urn projeto eti­co: investigar quais as afec<;6es de que somos capazes, descobrir 0 queo nosso corpo pode fazer.

A teoria do conatus (ou esfor<;o*), de Espinosa, marca precisamentea interse<;ao da produ<;ao e das afec<;6es que e tao irnportante para De­leuze: "As varia<;6es do conatus enquanto determinado por essa ou poraquela afec<;ao sao as varia<;6es dinamicas da nossa potencia de agir"(231). Conatus < a instancia fisica do principio onto16gico da poten­cia. Por urn lado, e a essencia do ser na medida em que 0 ser eprodu­tivo; e 0 motor que anima 0 ser como 0 mundo. Nesse sentido, canatuse a continua<;ao, em Espinosa, do legado do naturalismo cia Renascen­<;a: 0 ser eespontaneidade, pura atividade. Por outro lado, entretanto,eanatus <tamb<m a instancia do principio ontol6gico de poder, dadoque 0 conatus e uma sensibilidade; e movido nao apenas pelas a<;6esmas tambern pelas paix6es, cia mente e do corpo (ver, por exemplo,IIIP9). Eessa rica sintese da espontaneidade e da afetividade que mar­ca a continuidade entre 0 principio ontologico de poder e 0 conatus.

* No o~iginal striving. (N. da T.)

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A essa altura 0 projeto etico requer urn momento de realismoempirico. Quando Espinosa come<;a a inventariar 0 estado de nossocorpo, de nossa potencia, ele observa que, por necessidade, 0 poderde ser afetado eem grande parte preenchido por afec<;6es passivas.Deus, ou a Natureza, ecompletamente preenchido por afec<;oes ati­vas, porque para ele nao ha causa externa. Contudo, "a for<;a pela qualurn homem persevera na existencia elimitada, e infinitamente supe­rada pela potencia das causas externas" (IVP3): it medida que a nossapotencia esuperada pela potencia da Natureza como urn todo, ame­dida que as for<;as externas sao mais poderosas do que as nossas pro­prias for<;as, seremos preenchidos por afec<;oes passivas. Agora, umavez que as afec<;oes passivas constituem amplamente a nossa existen­cia, devemos focalizar a nossa investiga<;ao nessas afec<;oes para verse podemos fazer distin<;oes significativas entre elas.

Dentro do dominio da extensao, as afec<;oes passivas sao carac­terizadas pelos encontros entre 0 nosso corpo e outros corpos - en­contros que podem parecer casuais porque nao sao causados por nos.A ordem das paixoes, entao, e a ordem dos encontros casuais, dosfortuitus occursus (238). Urn simples encontro entre dois corpos, con­tudo, coloca sob analise uma cena extremamente rica e complexa, por­que urn corpo em si mesmo nao euma unidade fixa com uma estrutu­ra estatica, mas sim uma rela<;ao dinamica cuja estrutura interna e li­mites externos sao abertos e continuamente sujeitos a mudan<;a. Comoobservamos anteriormente, aquilo que Espinosa identifica como urncorpo ou urn individuo esimplesmente urn conjunto temporariamen­te estavel de elementos coordenados (Etica, IIP13Def). Urn encontroentre dois corpos, nesse caso, sera caracterizado pela harmonia ou de­sarmonia de suas duas rela<;oes. Agora, dada essa concep<;ao dinami­ca dos corpos e de suas intera<;6es, Deleuze propoe dois casos de en­contros casuais que nos permitirao distinguir dois tipos de afec<;oes pas­sivas e, assim, descer mais urn nivel em nosso modelo de poder. Noprimeiro caso, eu encontro urn corpo cuja rela<;ao interna ecompati­vel com a rela<;ao interna do meu corpo, e assim os dois corpos juntoscomp6em uma nova rela<;ao. Podemos dizer, entao, que esse corpoexterno "esta de acordo com a minha natureza" au que e"born" au"util" para mim. Mais ainda, esse encontro produz uma afec<;ao emmim que em si mesma esta de acordo com a minha natureza ou e boapara ela: e urn encontro jubiloso, dado que aumenta a minha poten­cia de agir. 0 primeiro caso de encontro casual, entao, resulta em urn

alegre encontro passivo porque apresenta uma rela<;ao componi'vel eassim aumenta a potencia de agir. No segundo caso de encontro ca­sual, entretanto, encontro urn corpo cuja rela<;ao interna nao e com­pativel com a do meu corpo; este corpo nao esta de acordo com a minhanatureza. Ou urn corpo decompora a rela<;ao do outro ou os dois cor­pos serao decompostos. Em qualquer dos casos, 0 fato importante eque nao havera aumento de potencia, porque urn corpo nao pode ga­nhar· potencia atraves de algo que nao esta de acordo com ele. Vmavez que esse encontro resulta numa diminui<;ao de potencia, a afec<;aoproduzida por ele e a tristeza. Os encontros reais sao, naturalmente,mais complicados do que qualquer urn desses dois casos limites: podehaver graus diferentes de compatibilidade parcial e conflito parcial emurn encontro, ou, mais ainda, as afec<;6es podem se combinar de ma­neiras infinitamente variadas (a tristeza do que odeio me traz alegria,etc.). Esses dois casos, contudo, de afec<;oes passivas alegres e afec<;6espassivas tristes, nos dao os casos limites de possiveis encontros, e as­sim nos permitem colocar uma distin<;ao a mais, descrevendo urn se­gundo nivel em nosso modelo de poder.

potencia de existir = poder de ser afetado

/ "'-afec<;6es ativas afec<;6es passivas

/ "'-afec<;6es passivas afec<;6es passivas

alegres tristes

Voltemo-nos uma vez mais, por urn momento, ao realismo deEspinosa. Qual e a relativa freqiiencia de encontros alegres e encon­tros tristes? Em principio, ou rnais precisamente, em abstrato, os hu­manos concordam em natureza e assim os encontros humanos deve­riam ser pura alegria. Contudo, isso so e verdade quando 0 poder deser afetado epreenchido por afec<;6es ativas. "Uma vez que os homensestao sujeitos as paix6es, nao se pode dizer que as suas naturezas con­cordem" (IVP32). Assim, na realidade, os seres humanos concordammuito pouco uns com os outros, e, em sua grande maioria, os encon­tros casuais sao tristes.

Em cada ponto da investiga<;iio da estrutura do corpo onde re­conhecemos uma distin<;ao, tambem reconhecemos que a condi<;ao hu­mana repousa em grande parte no lado fraco da equa<;iio: 0 poder de

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ser afetado e em grande parte preenchido por afecc;oes passivas em vezde por afeq:oes ativas; e, alem disso, nossos afetos passivos sao cons­tituidos em grande parte por afecc;oes passivas tristes em vez de porafec<;oes passivas alegres. Pode-se facilmente ficar desencorajado nes­se ponto pela avalia<;ao pessimisra que faz Espinosa da condi<;ao hu­mana - mas isso seria nao compreender 0 projeto. A investigac;ao daestrutura interna do poder e a avaliac;ao realista da nossa condic;ao terno sentido de refinar a questao etica para que esta possa fornecer a basede uma pra.tica etica; 0 que pode parecer pessimismo e a perspectivapra.tica de Espinosa. Para apreciar a riqueza dessa abordagem, consi­deremos 0 mandato etico tipicamente nietzschiano: tornar-se ativo.Como e possivel que tal proposic;ao etica se transforme em uma pd.­tica etica? Em outras palavras, por meio de Nietzsche podemos reco­nhecer claramente 0 desejo, a potencia (e nesse sentido 0 bern) de nostornarmos ativos, mas nao encontramos meios de dar-lhe consequen­cia na pratica. Espinosa tambern reconhece a etica como uma ques­tao de tornar-se ativo, mas ele desce mais urn degrau em sua sonda­gem a fim de enriquecer aquela perspectiva etica: "A questao etica emEspinosa se desdobra, entao, em duas partes: como podemos chegara produzir afeCi;oes ativas? Mas antes de tudo: como podemos vir aexperimentar um maximo de paixoes alegres?" (246). Atraves da in­vestigac;ao do poder, Espinosa preparou 0 terreno para a conversaoda especulac;ao na pratica que acionara a sua etica.

PRATICA-

8. NO<;OES COMUNS: Os AGENCIAMENTOS DO SER COMPONlvEL

Atraves da investiga<;ao de Espinosa sobre a estrutura de poder,e de sua avaliac;ao realista da condic;ao humana, chegamos ao limiteda especulac;ao. A condic;ao humana se encontra principalmente noponto minimo de potencia; quando adotamos essa posic;ao, podemosadotar tambem uma posic;ao verdadeiramente etica. Esse e 0 fim daespeculac;ao e 0 comec;o da pratica; esse e 0 momento da transmutac;ao- a hora da meia-noite. A especulac;ao espinosista iluminou 0 terre­no do poder, definiu as suas estruturas primarias; agora, devemos con­verter essa dinamica especulativa num projeto pratico. Como pode-

mos efetuar essa transmutac;ao? Onde podemos encontrar 0 fmpetopara por em movimento urn projeto pratico? A primeira pista queDeleuze nos da e a de que devemos mudar nosso foco da afirmac;aopara a alegria: "A sensac;ao da alegria aparece como a sensac;ao pro­priamente etica; e para a pratica aquilo que a propria afirmac;ao e paraa especula<;ao" (272). A alegria, em outras palavras, ea afirma<;ao doser no momento de sua constituic;ao pratica; 0 aumento da potencia ea constituic;ao afirmativa do proprio ser. Nao fica imediatamente evi­dente, contudo, como a nossa pratica pode comec;ar com a alegria. Talcomo ao mandato etico de Nietzsche, "tornar-se ativo", tambem aomandato espinosista, "tornar-se alegre", falta 0 mecanismo com 0 qualiniciar urn projeto pnitico. Deleuze tenta uma outra tatica, apresen­tando 0 projeto na forma negativa, para dar-Ihe urn impulso maispratico: a primeira tarefa pratica da Etica, ele observa, e combater atristeza: "A desvalorizac;ao das paix6es tristes, e a denuncia daquelesque as cultivam e deJas dependem, formam 0 objeto pratico da filoso­fia" (270; ver tambem Spinoza: Practical Philosophy, 25-29). Nos jaobservamos, entretanto, que, na realidade, a maior parte de nossaspaixoes sao paix6es tristes, que a maioria dos encontros casuais entreos corpos sao incompatfveis e destrutivos. Como podemos dar infcioa uma pratica da alegria a partir de urn tal estado? Ao ataque atriste­za falta ainda uma chave inicial pnitica.

Deverfamos comec;ar, em troca, por urn olhar mais percucientea ffsica dos corpos de Espinosa: "Ninguem veio ainda a conhecer aestrutura [fabrica] do Corpo de forma tao acurada que pudesse expli­car todas as suas fun<;oes" (IIIP2E). 0 que Espinosa entende por es­trutura? "E urn sistema de relac;5es entre as partes de urn corpo", ex­plica Deleuze. "Ao perguntar como essas relac;6es variam de urn cor­po para outro, obtemos uma maneira de determinar diretamente assemelhanc;as entre dois corpos, por mais dispares que possam ser"(278). Nossa investiga<;ao da estrutura ou rela<;oes que constituem 0

corpo nos permite reconhecer as relac;6es comuns que existem entre 0

nosso corpo e urn outro corpo. Urn encontro entre 0 nosso corpo e esseoutro corpo sera necessariamente alegre, porque a relac;ao comum ga­rante uma compatibilidade e a oportunidade de compor uma rela<;aonova, aumentando dessa forma a nossa potencia. Eprecisamente des­sa forma que a analise dos corpos nos permite cornec;ar urn projeto pra­tico. Reconhecendo composic;6es ou relac;6es similares entre os corpos,temos 0 criterio necessario para uma primeira seleC;ao etica da alegria:

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somas capazes de favorecer encontros compativeis (paixoes alegres) eevitar encontros irncompativeis (paix5es tristes). Quando fazemos essasele~ao, estamos produzindo no<;6es comuns: "Vma 00<;3:0 comum esempre uma ideia de similaridade de composi<;ao em modes existen­tes" (275). A fotma<;ao da no<;ao comum constitui 0 primeiro passode uma pratica etica.

Essa concepc;ao cia prodw;ao de noc;6es comuns, contudo, aindanao eprecisa 0 bastante para ser pnitica. Devemos fazer uma distin­c;ao, explica Deleuze, entre noc;6es comuns que sao mais universais enoc;6es comuns que sao menos universais. As noc;6es comuns maisuniversais sao aquelas que identificam uma similaridade de urn pontode vista muito geral: elas podem envolver, em ultimo caso, aquila quee comum a todos os corpos, como a extensao, 0 movimento e 0 re­pouso. Essas no~6es comuns tao universais, contudo, sao precisamanteaquelas que nos sao menos uteis. Por outro lado, as no~6es comunsmenos universais sao aquelas que, de fato, nos apresentam imediata­mente a maior utilidade. Essas no~6es sao aquelas que representam umacomposi<;:ao similar entre dois corpos que estao diretamente de acor­do urn com 0 outro, de seus pr6prios pontos de vista locais. Tal comonos aprofundamos continuamente na estrutura interna do poder, aquitambem devemos penetrar no nivel mais baixo e mais local da comuna­lidade para iniciar nosso projeto pf<:hico. "Atraves dessas no~6es com­preendemos as concordancias entre os modos: elas vaG alem de umapercep~aoexterna de concordancias observadas ao acaso, para encon­trar na similaridade de composiC;ao uma razao interna e necessaria paraurn acordo de corpos." (276) Podemos ver, por conseguinte, especial­mente no mais espedfico dos casos, que a no<;:ao comum descobre umalogica interna, que a noc;ao comum envolve e explica a sua causa ou, ,em outras palavras, que a no~ao COmum e uma ideia adequada: "No­~6es comuns em geral sao necessariamente adequadas; em outras pa­lavras, no~6es comuns sao ideias que sao formalmente explicadas parnossa potencia de pensar e que, materialmente, expressam a ideia deDeus como a sua causa eficiente" (279). A no<;ao comum nos forneceos meios de construir para nos mesmos uma ideia adequada.

A primeira ideia adequada que podemos ter e 0 reconhecimentode algo em comum entre dois corpos; essa ideia adequada conduzimediatamente a uma outra ideia adequada - desse modo, podemoscome~ar 0 nosso projeto construtivo para nos tornarmos ativos. De­leuze, contudo, ainda nao esta satisfeito por termos apresentado esse

momento inicial em termos suficientemente praticos: "Ha, entretan­to, 0 perigo de que a no~ao comum possa parecer intervir como ummilagre, a menos que expliquemos como viemos a forma-lao (... ) Como,precisamente, formamos (no<;:6es comuns), em que circunstancias fa­voraveis? Como chegamos anossa potencia de agir?" (280-1). Quan­do consideramos a teoria espinosista das no<;6es comuns, Deleuze nosadverte, devemos ~er 0 cuidado de evitar dois erros interpretativosperigosos. 0 primeiro erro com respeito as no<;6es comuns seria "su­bestimar 0 seu sentido biol6gico em favor de seu sentido matemati­co" (281). Em outras palavras, devemos lembrar que as no<;6es comunsse referem principalmente a uma fisica dos corpos, e nao a uma logi­ca do pensamento: e melhor que as identifiquemos como emergenciasde urn terreno material hobbesiano, em vez de urn universo matema­tico cartesiano. 0 segundo erro interpretativo que podemos cometercom respeito as no~6es comuns seria "subestimar sua fun~ao praticaem favor de urn conteudo especulativo" (281). Quando as no<;6es co­muns sao introduzidas no Livro II da Etica, elas sao introduzidas pre­cisamente em sua ordem logica, do ponto de vista especulativo. Essaapresentac;ao especulativa refere-se as no~6es comuns como se passas­sem do mais universal (movimento, repouso) para 0 menos universal.A progressao pratica das no~6es comuns no Livro V e exatamente 0

oposto: nos passamos do menos universal (uma rela~ao compatfvelespecifica entre dois corpos) para 0 mais universal. No~6es comunsnao sao, prirneiramente, uma forma especulativa de analise, mas urninstrumento pratico de constituic;ao.

Aqui, para come~ar a progressao pratica, podemos admitir quepor acaso experimentamos urn encontro compativel. Podemos tradu­zir 0 famoso ponto de partida epistemol6gico do Emendation of theIntellect de Espinosa, "habemus enim ideam verum" (temos uma ideiaverdadeira, ou teroos pelo menos uma ideia verdadeira), para 0 do­minio dos corpos e das paix6es: "habemus enim affectionem passamlaetam" (temos pelo menos uma afec<;ao passiva alegre). Essa expe­riencia da alegria ea faisca que p6e em movimento a progressao eti­ca: "Quando encontramos urn corpo que esta de acordo com 0 nos­so, quando experimentamos uma afec~ao passiva alegre, somos indu­zidos a formar uma ideia daquilo que e comum aquele corpo e aonosso" (282). 0 processo se inicia com a experiencia da alegria. Esseencontro casual com um corpo compativel nos permite, ou nos induz,a reconhecer uma relac;ao comum, a formar uma no<;ao comum. Ha

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A especula<;ao mapeou 0 terreno do poder, e agora a pratica ha­bita esse terreno, dando vida a sua estrutura interna. A pratica esta

ver ou compreender a causa de urn encontro permite a Espinosa afir­mar que "uma afec<;ao, que e paixao, deixa de ser paixao.tao logo delaformamos uma ideia clara e distinta" (VP3). Esse processo de envolvera causa, entao constitui a "salto" para a a<;ao e a adequa<;ao.

As no<;6es comuns constituem para Deleuze a "ruptura ontol6­gica" do pensamento de Espinosa que marca 0 acabamento da trans­forma<;ao desde a especulac;ao ate a pratica. "As no<;6es comuns es­tao entre as descobertas fundamentais da Etica" (292; ver tambernSpinoza: Practical Philosophy, capitulo 5, em particular 114 ss.). Como estabelecimento da perspectiva pratica, Espinosa forneceu uma vi­sao radicalmente nova da ontologia. 0 ser nao pode mais ser consi­derado urn arranjo ou uma ordem dada; aqui 0 ser e 0 conjunto derela<;6es componiveis. Devemos ter em mente, porem, que 0 elementoessencial para a constitui<;ao ontologica ainda e 0 foco de Espinosa nacausalidade, na "produtividade" e "produtibilidade" do ser. A no<;aocomum e 0 canjunto de duas rela<;6es componiveis para criar umarela<;ao nova e mais potente, urn corpo novo e mais potente - essecanjunto, entretanto, nao e meramente uma composi<;ao aa acaso masuma constitui<;ao ontologica, porque 0 processo envolve a causa dentrodo seu proprio novo corpo. Somos obrigados a retroceder subitamentepara a defini<;ao que da inicio aEtica -"Per causa sui intelligo..." masagora nos a lemos comuma atitude inteiramente diferente. Causa sui,causa de si, adquiriu urn significado novo e pratico. A caracteristicaessencial da constitui<;ao antologica de Espinosa e a adequa<;ao, querdizer, a expressao da cadeia causal do ser. A estrategia pratica de for­ma<;ao das no<;6es comuns, de agenciamentos ontalogicos, tornou ainvestigac;ao ontologica urn projeto etico: tarnar-se ativo, tornar-seadequado, tornar-se a ser. A pratica espinosista come<;a a galgar a mes­rna escada que a analise da especula<;ao espinosista construira na des­cida. A pratica constitutiva define a serie produtiva: afec<;6es passivasalegres ~ noc;6es comuns ~ afec<;6es ativas.

dois processos em andamento aqui, contudo, sobre os quais Deleuzeinsiste que se fa<;a distin<;ao. No primeiro momento, lutamos para evitaras paixoes tristes que reduzem a nossa potencia de agir e de acumularpaix6es alegres. Esse esfon;o de sele<;ao de faro aumenta a nossa po­tencia, mas nunca ao ponto do devir ativo: paixoes alegres sao sem­pre 0 resultado de uma causa externa; elas sempre indicam uma ideiainadequada. "Devemos, entao, com a ajuda das paixoes alegres, for­mar a ideia daquilo que e comum a algum corpo externo e ao nosso.Porque somente essa ideia, essa no<;ao comurn, e adequada" (283). 0primeiro momento, 0 da acumulac;ao de paix6es alegres, prepara ascondi<;6es para esse saIto que nos fomeceni uma ideia adequada.

Observemos mais de perto esse segundo momento, esse "salto"da paixao alegre para a no<;ao comum. Como damos esse saIto? Comoproduzimos urn encontro adequado? Sabemos que a alegria e a expe­riencia de urn afeto que esta de acordo com a nossa natureza, de urnafeto que aumenta a nossa potencia. A mesma alegria e constituida deuma afec<;ao passiva alegre e de uma afec<;ao ativa alegre; a unica dife­ren<;a e que uma paixao alegre desponta de uma causa externa, enquantouma a<;ao alegre desponta de uma causa interna: "Quando Espinosasugere que tudo 0 que esta de acordo com a razao pode tambern delanascer, ele quer dizer que de cada alegria passiva pode despontar umaalegria ativa que dela se distingue apenas por sua causa" (274-275). Apassagem da alegria passiva para a alegria ativa implica na substitui­<;ao de uma causa externa por uma causa interna; ou, mais precisamente,implica em envolver e incluir a caUSa dentro do proprio encontro. Essalogica corporea e paralela a logica epistemologica da adequa<;ao quediscutimos anteriormente. 0 novo encontro e adequado (e ativo) por­que expressa a sua propria causa; quer dizer, expressa a rela<;ao comumentre dois corpos. Essa opera<;ao de envolver a causa, todavia, perma­nece ainda obscura ate que reconhe<;amos que uma paixao alegre nosapresenta necessariamente uma situa<;ao de comunalidade: uma paixaoalegre pode somente surgir de urn corpo extemo que e composto de umarela<;ao comurn ao nosso corpo. Quando a mente forma uma ideia darela<;ao comum partilhada por esse corpo e nosso carpo (uma no<;aocomum), a afec<;ao alegre deixa de ser passiva e se torna ativa: "E dis­tinta do sentimento passivo do inicio, mas distinta somente em sua causa:esta causa nao e mais uma ideia adequada de urn objeto que esra. deacordo conosco, mas a ideia necessariamente adequada daquilo que ecomum aquele objeto e a nos mesmos" (284). Esse processo de envol-

afec<;6es ativas

l'(no<;6es comuns) ~

afec<;6es passivas

/ "afec<;6es passivas afec<;6es passivasalegres tristes

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em ascensao, construindo as relac;oes do ser desde baixo. A for~a motrizque anima toda essa opera~ao e0 conatus: quando a fisica de Espinosaetransportada para 0 plano etico, nos nao vemos mais simples cor­pos em movimento ou em repouso, mas sim encontramos corpos in­suflados de desejo. Amedida que passamos da tristeza para a alegria,das paixoes para as a~oes, estamos descobrindo 0 caminho para 0

aumento de nossa potencia. Deverfamos sempre levar em conta queesse caminho da corre~ao corporea e espiritual nao esimplesmenteapresentado como urn vago mandato etico; quando Espinosa propoeo "devir ativo" Como uma meta, ele tambem apresenta os meios pni­ticos para alcan,a-Ia. "Ha todo urn processo de aprendizagem envol­vido nas no~oes comuns, no nosso devir ativo: nao deveriamos subes­timar a importancia que tern para 0 espinosismo 0 problema do pro­cesso didatico" (288). 0 caminho espinosista para a beatitude e urnaprendizado na potencia, uma educa~ao na virtude.

9. A CONSTITUI<;Ao DA RAZAo

A pnitica espinosista sempre come~a com 0 corpo como mode­10. Contudo, dado que as no,oes Comuns partem do dominio corpo­reo, elas tambern constroem uma teoria das ideias que eparalela ateoriados corpos. Essa epistemologia constitutiva que encontramos no co­me,o da Parte V da Etica e radicalmente diferente da epistemologiadada e pre-constituida apresentada na Parte II, e essa diferen,a e de­vida em grande parte aconversao da especula~aoapnitica, obtida noplano corporeo das Partes III e IV:

Na Parte II da Etica, Espinosa considera 0 conteudoespeculativo das no~oes comuns; ele as supoe como dadasou potencialmente dadas. (... ) Na abertura da Parte V eleanalisa a fun~ao pnitica das noc;oes comuns, supostamentedadas; essa func;ao consiste na nO\=ao comum sendo a cau­sa de uma ideia adequada de uma afec,ao, quer dizer, deuma alegria ativa. (286)

Os dois argumentos epistemologicos partilham as mesmas cate­gorias e terminologia, mas eles se aproximam da questao de perspec­tivas distintas, com diferentes atitudes. Na Parte II, no momento es-

peculativo, Espinosa delineia a ordem matematica e logica dos tresdiferentes tipos de ideias, mas na Parte V a perspectiva pratica deEspinosa poe em movimento essa ordem epistemol6gica. A no,aocomum, reconhecida agora como urn agente construtivo, como urnconjunto, e0 mecanismo pelo qual a mente passa de uma paixao parauma a,ao, de uma ideia inadequada para urn ideia adequada, da ima­gina~ao para a razao. A formac;ao das noc;oes comuns e a constitui­,ao pratica da razao.

A teoria segundo a qual a epistemologia pode ser constituida napratica repousa sobre uma no,ao da materialidade do intelecto, queimplanta com solidez 0 pensamento espinosista tanto filosoficamentena tradi~ao materialista, quanto historicamente na era da genese daindustria moderna. Uma das primeiras passagens do Emendation ofthe Intellect, que discute 0 metodo para 0 aperfei,oamento de nossasmentes, ilustra essas conexoes com clareza:

Tudo aqui se da ao mesmo modo que com as ferra­mentas corp6reas. (... ) Tal como os homens, no inicio, usan­do instrumentos naturais, puderam (nao importa quae im­perfeita e laboriosarnente) fazer certas coisas muito faceis,e depois de faze-las, fizeram outras, mais dificeis com me­nos dificuldades e mais perfei,ao, e assim, elevando-se gra­dualmente dos trabalhos mais simples ate os instrumentos,e dos instrumentos a outros objetos e instrumentos, chega­ram a poder realizar muitas coisas, e muito dificeis, compouca labuta; do meSillO modo, a intelecto, com sua poten­cia inata, constr6i instrumentos intelectuais para si com osquais forja ainda outros; constroi, pois, 0 poder de levaravante a investigac;ao, prosseguindo por etapas ate alcan­,ar 0 pinaculo da sabedoria. (Emendation of the Intellect, .30-31).

A mente forja a noc;ao comum a partir das ideias inadequadas,tal como 0 corpo forja urn martelo a partir do ferro. A no,ao comumserve de ferramenta pratica em nosso esforc;o para alcan~ar 0 pinaculoda sabedoria.

Essa perspectiva pratica e material proporciona uma nova funda­menta~ao e uma nova dinamica do movimento para 0 sistema espino­sista dos diferentes generos de conhecimento: 0 primeiro genero (ima-

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meira e a causa interna da ultima. A no~ao comum opera a transfor­ma~ao, mantendo a afec~ao enquanto envolve ou compreende a cau­sa. Aqui, no dominio epistemologico, nos deparamos com urn estru­tura correspondente da constitui~ao por agenciamento. A imagina~ao,

como a paixao alegre, e a condi~ao que nos permite come~ar 0 pro­cesso. A diferen~a central entre a imagina~ao e a razao e a contingen­cia da prirneira e a necessidade da ultima. A no~ao comum opera atransforma~ao que torna a imagina~ao permanente; e a passagem paraa razao. Por conseguinte, podernos delinear uma constru~ao episte­mol6gica paralela ao nosso anterior diagrama da estrutura das afeq:6es.Uma pratica epistemol6gica constitutiva e definida pela serie: imagi­na~ao 4 no~ao comum 4 razao.

A pedra angular da revolu,ao de Espinosa na epistemologia e asua concep,ao do papel da no,ao comum como elo de liga,ao entre aimagina~ao e a razao. Espinosa desmistifica a razao. No argumentoespeculativo da Parte II, a razao e definida por urn espirito cartesiano,Inatematico. A razao era urn sistema dado de verdade necessaria, e as­.'5im a produ~ao da razao era cornpletamente obscura. Por conseguin­\~e, 0 primeiro genero de conhecimento, a fonte de todo erro, nao po­deria assumir urn papel positivo em urn projeto para a verdade; a unicae'strategia poderia ser a sua nega~ao. Agora, no momenta prarico dop,ensarnento de Espinosa, nos encontramos uma importante distin~ao

e:ntre as diferentes formas do primeiro genero de conhecimento e umav,.loriza,ao da imagina,ao. A imagina,ao fornece uma real (emborafl,"tuante e contigente) indica,ao do estado dos corpos e das rela,6esque estao presentes. A no~ao comum intervem com a capacidade deto rnar 0 nosso imaginar permanente e necessario: 0 agenciamento naooe ga a imagina~ao, mas transporta-a, ao inves disso, para 0 plano darai~ao. A opera~ao da no~ao comurn torna claro que 0 processo dacOJ:1stitui<;ao em Espinosa de modo algum edialetico. 0 movimentoprogressivo para urn estagio ulterior nao e alcan<;ado atraves da ne­ga<; ao do estagio presente, mas sim por sua composi~ao, preservan­do- 0 com maior intensidade e substancia. Nesse contexto, contingen-

primeiro genero deconhecimento

segundo genero deconhecimento

i /(no,ao comum) ;- imagina,ao '"opiniao e revela~ao

cia e necessidade, imagina<;ao e razao nao sao pares exclusivos e opos­tos, mas sim platos articulados num continuum produtivo pelo pro­cesso de constitui,ao.

NOTA: PRATICA TE6RICA E CONSTITUI<;Ao PRATICA

Agora que articulamos os elementos basicos da concep<;ao dapratica de Deleuze Ii filosofia de Espinosa, podemos retornar a Althus­ser e reconsiderar a for~a da critica fenomenologica que colocamos an­teriormente. 0 ponto crucial da questao, da perspectiva de nosso es­tudo, e a rela~ao entre a especula~ao (ou teoria) e a pratica. Nos vi­mos que Deleuze Ie Espinosa como urn drama que se prolonga tratandoda forma dessa rela<;ao: nas primeiras se<;oes da Etica, Espinosa inves­tiga 0 ser de uma perspectiva especulativa e descobre os prindpios onto­logicos fundamentais; mais tarde, de uma perspectiva pratica, Espinosanos conduz a uma constitui<;ao real do ser em termos corpareos eepistemolagicos. Vma das mais importantes contribuic;oes da interpre­tac;ao de Deleuze e descobrir e esclarecer esses dois momentos relacio­nados no pensamento de Espinosa: a especula,ao e a pratica. Nesseponto espedfico, podemos ser tentados a dizer que as posi<;oes apre­sentadas por Althusser e Deleuze nao sao afinal de contas tao distan­tes porque, em certos aspectos, Althusser apresenta uma relac;ao similarentre a teoria e pratica.

Primeiro descobrimos que a teoria deriva da pratica: "Colocar eresolver 0 nosso problema tearico consiste, em ultima instancia, emexpressar teoricamente a 'soluc;ao', existente no estado pratico, for­necida pela pratica marxista" (For Marx, 165, modificado). Inversa­mente, a pratica e dependente da teoria. Tal afirma~ao emelhor ex­pressada por uma das citac;oes de Lenin favoritas de Althusser: "Semtearia, nao ha pratica revolucionaria" (166). Ao ler 0 Espinosa deDeleuze, nos tambem desenvolvemos uma certa rela<;ao interdepen­dente entre teoria e pratica. A especulac;ao ontologica prepara 0 ter­reno para uma pratica constitutiva; ou, antes, depois que a especula­,ao ontol6gica (como Forschung) deixou claras as distin,6es do ter­reno, esse mesmo terreno e atravessado uma segunda vez numa dire­c;ao diferente, com uma postura diferente, com uma atitude pratica(como Darstellung), apresentando as "conexoes internas" eo "movi­mento real" do ser no processo de sua propria constituic;ao. Em en-

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trevista com Michel Foucault, Deleuze nos da uma explica~ao levemen­te distinta, mas, creio, compativel, dessa rela~ao, como uma serie derevezamentos entre a teoria e a pnhica: "A pnitica eurn conjunto derevezamentos de urn ponto teorico a outro, a teoria eurn revezamen­to de uma pratica a outra. Nenhuma teoria pode se desenvolver semeventualmente encontrar uma parede, e necessaria uma pratica paraperfurar essa parede" ("Intellectuals and Power", 206). Assim, utili­zando essa imagem de revezamentos, podemos dar uma leitura de­leuziana ao insight de Lenin. "Sem teoria, nao ha pratica revolucio­naria": sem teoria nao ha terreno sobre 0 qual a pratica possa erguer­se, tal como, inversamente, sem a pratica, nao ha terreno para a teo­ria. Cada uma delas fornece as condi~6es para a existencia e 0 desen­volvimento da outra.

Quando observamos mais de perto, contudo, a concep~ao al­thusseriana da rela~ao entre teoria e pratica, descobrimos uma dife­renc;a fundamental que e freqiientemente disfarc;ada, mas sempre pre­sente, em seu trabalho. A inter-rela~ao entre teoria e pratica em AI­thusser sempre concede, em ultima instancia, uma prioridade a teo­ria; a pratica e continuamente solapada, recuperada, subsumida. Con­sideremos, por exemplo, como Althusser interpreta 0 mote de Lenin:"'Sem teoria, nao ha pnitica revolucionaria.' Generalizando: a teoriae essencial apratica" (For Marx, 166). A extensao que Althusser da aideia de Lenin envolve uma importante modifica~ao. A rela~ao entreteoria e pratica no mote de Lenin poderia ser lida como uma rela~ao

de igualdade, mas Althusser coloca a teoria como fundamental, comoa essencia da pratica. A Revoluc;ao de Outubro da a Althusser urnexemplo concreto: "A pratica do Partido Bolchevista era baseada nadialetica do Capital, na 'teoria' marxista" (175). A primazia dada aquiateoria permite a Althusser subsumir a pratica na propria teoria. Em­bora haja, naturalmente, outras formas de pratica, a analise de Al­thusser sempre tende a focalizar a "pratica teorica" como a formapolftica central, 0 arquetipo da pratica. A pnitica teorica e uma sinte­se da teoria e da pratica, mas uma sintese que sempre mantern a prio­ridade da teoria.

Mesmo quando, anos mais tarde, Althusser refere-se a essa posi­~ao como urn problema, no bojo de uma autocritica, ele nao modificasubstancialmente essa rela<;ao essencial entre teoria e pnitica. AI­thusser afirma querer corrigir 0 eno "teoricista" (Essays in Self­Criticism, 105, 128, 142) que distorcia a sua analise e, especificamen-

te, ve a necessidade de revisar a sua "teoria da pnitica teorica," querepresentava 0 ponto culminante de sua tendencia teoricista (147). En­tretanto, aqui, como sempre, Althusser emuito sutil em sua autocrf­tica. Quando parece estar modificando uma posi<;ao anterior, 0 seuargumento serve, ao inves disso, para refor<;ar essa mesma posi<;ao.Sua autocritica da teoria da pratica te6rica funciona exatamente des­se modo: "Ao superestimar teoricamente a filosofia, eu subestimei-apoliticamente, como aqueles que corretamente me acusaram de nao'tematizar' a luta de classes apontaram com presteza"(150). Temosque ler essa frase muito cuidadosamente. Althusser tern sido critica­do (corretamente) par nao haver dado suficiente importancia a lutade classes como uma for<;a da pratica politica. Aceitando essa critica,ele reformula a discussao da teoria e da pratica em termos de filoso­fia. Seu erro foi a de fazer urn juizo falso da filosofia - ao superesti­mar a filosofia teoricamente ele a subestimou politicamente. Ele ne­cessita ampliar a sua compreensao da filosofia para apreciar 0 seupoder politico e pratico. Sabre essa base, ele da uma (nova?) defini­<;ao da rela~ao teoria-pratica. Filosofia e "politica na teoria", ou, maisespecificamente, "filosofia e, em ultima instancia, a luta de classes nateoria" (150). A pratica social esra presente, mas apenas enquanto seinclui na teoria. 0 deslocamento do problema para a filosofia permi­te a Althusser subsumir a pratica na teoria rnais uma vez como urnelemento secundario e dependente.

A visao de Deleuze sobre a rela<;ao entre teoria e pratica, emcontraste, destaca que as duas atividades permanecem autonomas eiguais em principio. Em Deleuze nao ha. qualquer sintese da teoria eda pratica, nem qualquer prioridade de uma sabre a outra. Nos jademonstramos em grande profundidade que, de fato, Deleuze estabe­lece como principal condic;ao de uma filosofia materialista a critica dequalquer "tendencia teoricista", de qualquer privilegio do pensamen­to (ver sec;6es IlIA e I1I.5). Sugere, entao, como urn primeiro passo,que a teoria se relaciona Ii pratica do mesmo modo que a atividade damente se relaciona aatividade do corpo, sem qualquer rela<;ao causaldireta e sem prioridade entre as duas. "0 Corpo nao pode determi­nar a Mente a pensar e a Mente nao pode determinar 0 Corpo ao mo­vimento, ao repouso ou a outra coisa qualquer (se acaso existe outracoisa)" (Etica, I1IP2). Devemos nos lembrar, naturalmente, que naoha uma identidade entre os dais pares mente/corpo e teoria/pratica:nossa especula<;ao investiga os principios do ser tanto no dominio do

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pensamento quanto no da extensao; de forma semelhante, a consti­tuic;ao pnitica do ser envolve tanto a mente quanto 0 corpo. A rela­c;ao comum para a qual estamos apontando e a autonomia e a igual­dade dos termos em cada par. Nesse sentido, Deleuze pode imaginara rela<;ao como uma serie de revezamentos. Poderia mesmo fazer sen­tido, nesse contexto, falar de uma automato teorico e de urn automa­to pratico como express6es que igualmente nos levam de volta apo­tencia do ser.

Esses argumentos em favor da autonomia, entretanto, deveriamser lidos sobretudo com posi<;iies polemicas. Da mesma maneira quea aflrma<;ao de Espinosa sobre a autonornia dos atributos e urn ata­que contra 0 primado cartesiano do pensamento contra a estruturateorica que efetivarnente subsume 0 corpo na ord~rn da mente assimtambern a nossa afirmac;ao deleuziana da autonomia da pra.tic; e umarea<;ao a concepc;6es de urn primado da teoria que efetivamente sub­s~mem a pca.tica na teoria. Por exemplo, quando colocamos a ques­tao de urn fundamento ou causa de urn ate pra.tico, tal como a insur­rei<;ao bolchevique de 1917, nao podemos nos voltar para a razaoteorica que a determinou, tal como a utilizac;ao da dialetica por Marxno Cap~tal, .mas,. ao inves clisso, devemos procurar uma acumulac;aode deseJos, Imagma<;6es e poderes que coincidem e se tornam neces­sarios no evento; precisamos procurar, em outras palavras, as noc;6escomuns que transformam as paix6es alegres do encontro revolucio­nario em ac;6es. Mais uma vez, essa proposic;ao da autonomia relati­va ~e ~ma pratica constitutiva deveria ser lida como uma posi<;aopolemlCa, como uma tentativa de retirar a pratica da sombra da teo­ria e reconhecer toda a sua for<;a. Aquilo que Espinosa disse do cor­po, Deleuze poderia dizer: ninguem determinou ainda 0 que a praticapode fazer. A articula<;ao da fun<;ao pratica da no<;ao comum em Espi­nosa, contudo, e urn passo mais largo para a descoberta do poder dapratica social.

Finalmente, contrastando com Deleuze, Althusser permanece ex­c~ssivamente hegeliano com respeito acontinua reafirmac;ao da prio­ndade da teoria e da continua subsun<;ao da pratica no dominio tea­rico. 0 projeto central-da filosofia materialista, em suas varias mani­f~stac;6es historicas, e precisamente combater essa proposic;ao de prio­ndade, e desafiar a noc;ao de inter-relac;ao como subsunc;ao: retirar 0

corpo da sombra da mente, retirar a pratica da sombra da teoria, emtoda a sua autonomia e dignidade, tentar descobrir 0 que ela pode fazer.

Com essa concepc;ao de uma pnitica das noc;6es comuns, uma praticamaterialista da constituic;ao que se recusa a ser recuperada no movimen­to da teoria, Deleuze afastou-se completamente do terreno hegeliano.Essa pratica nao pode ser subsumida no processo de revelac;ao do es­pirito em seus estagios progressivos. A logica da constituic;ao revelauma progressao que marcha em urn ritmo diferente, que acumula osseus elementos desde baixo em formas abertas e nao teleologicas, comoestruturas originais, inesperadas e criativas. 0 movimento de umapratica hegeliana e sempre recuperado dentro da lagica da ordem,ditado do alto, enquanto uma pratica deleuziana ergue-se de baixo poruma lagica aberta da organiza<;ao.

10. A ARTE DA ORGANIZA<;:AO:

PARA UM AGENCIAMENTO POLfTICO

A poHtica surge, em Espinosa, como uma questao de corpos. "Afim de realmente pensar em termos de poder, e necessario colocar aquestao em rela<;ao ao corpo" (Expressionism in Philosophy: Spinoza,257). A introdu<;ao do principio ontolagico do poder foi a chave queabriu 0 campo da pratica espinosista para Deleuze, e a questao da po­tencia do corpo serviu como 0 seu terreno principal, como seu mode­10. Vimos que a interpreta<;ao que faz Deleuze das no<;6es comuns, emtermos da logica do agenciamento, trouxe aluz a forc;a constitutivareal da pratica espinosista. Uma afecc;ao passiva constitui uma afecc;aoativa, a imaginac;ao constitui a razao. A noc;ao comum e urn mecanis­mo ontologico que forja 0 ser a partir do clevir, a necessidade a partirdo acaso. EpeIo agenciamento ontologico que 0 encontro casual ale­gre se faz adequado; 0 encontro alegre retorna. Desde 0 comec;o Deleuzecolocou a noc;ao comum e 0 seu processo de agenciamento como par­te de urn projeto etico (devir ativo, devir adequado, devir alegre), mascomo podemos reconhecer esse processo em termos propriamente po­Hticos? 0 que e0 processo de constituic;ao politica espinosista ou, an­tes, 0 que e urn agenciamento politico?

Espinosa e capaz de colocar quest6es politicas diretamente emtermos ontologicos ao construir uma passagem peIo dominio jurfdi­co. A teoria do poder e dos corpos e aproximada da pratica politicana forma de uma teoria do direito: "Tudo 0 que urn carpo pode fazer(sua potencial e tambern seu 'direito natural'" (257). A teoria espino-

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sista do direito natural, tal como a de Hobbes, difere significativamenteda lei natural dos antigos. as antigos definiam a lei natural em ter­mos de perfei~ao; concebiam a natureza como algo orientado para osseus fins, para uma causa final. Espinosa, conforme vimos em muitasocasioes, sempre rejeita a causa final como causa eficiente: "A lei cianatureza nao mais se refere a uma perfei~ao final mas ao desejo ini­cial, ao mais forte 'apetite'" (259). Para compreender essa proposi\aode direito natural temos que reconhecer que a logica ontologica doagenciamento e da constitui~ao de Espinosa e que comanda aqui 0 ra­ciocinio: a organiza<;ao versus a ordem. A produtividade do proprioser e 0 motor que anima todo 0 discurso sobre 0 direito. Dediquemosalguns instantes para elaborar esse procedimento constitutivo, que aesta altura nos deveria ser bastante familiar.

Come\amos com uma desvaloriza\ao. Tal como vimos em ou­tros terrenos, Espinosa insiste para que comecemos 0 nosso pensa­mento polftico a partir do mais baixo nivel de nosso poder, do pontornais baixo da organiza\ao social, com urn ritorno ai principi tipica­mente maquiavelico. Da mesma maneira que ninguem nasce racional,ninguem nasce cidadao. Vma vez que nenhuma ordem e pre-determi­nada, cada elemento da sociedade espinosista deve ser constituido in­ternamente com os elementos disponiveis, pelos sujeitos constituin­tes (sejam eles ignorantes ou cultos), sobre a base das afec\oes exis­tentes (sejam estas paixoes ou a\oes). Enos sabemos que a condi\aohumana e predominantemente caracterizada por nossa fraqueza, queo poder de ser afetado e preenchido em grande parre por paix5es. Essadesvaloriza<;ao, conrudo, e tambem uma afirma<;ao de nossa liberda­de. Quando Espinosa insiste em que nosso direito natural e coexten­sivo ao nosso poder, isso significa que nenhuma ordem social podeser imposta por quaisquer elementos transcendentes, por nada forado campo imanente de for<;as, e assim qualquer concep<;ao de deverou moral deve ser secundaria e dependente da afirma\ao de nossa po­tencia. "Leis naturais verdadeiras sao normas de poder, nao regrasde dever" (268). A expressao de poder livre de qualquer ordem mo­ral e0 principio etico mais importante da sociedade. "Pressionar aomaximo aquilo que se pode fazer [aller jusqu'au bout de ce qu'onpeut] e a tarefa propriamente etica. Eaqui que a Etica toma 0 corpocomo modelo; porque cada corpo estende sua potencia 0 mais longepossivel. Num certo sentido, todo ser, a cada momento, pressiona aomaximo aquilo que pode fazer." (269) Essa formula<;ao etica nao

coloca prioritariamente a enfase na limita\ao (Ie bout) de nossa po­tencia mas coloca sim uma dinamica entre 0 limite e 0 que podemosfazer - a cada vez que atingimos urn ponto extremo, aquilo que po­demos fazer levanta-se e avan\a. A tarefa etica real~a a nossa perse­veran~a, 0 nosso conatus material move-se no mundo para expressarnossa potencia para alem dos limites dados do arranjo presente, ciaordem presente. Essa perseveran\a etica e a expressao aberta cia mul­tiplicidade. A concep\ao do direito natural de Espinosa poe, entao, aliberdade a partir da ordem, a liberdade da multiplicidade, a liberda­de da sociedade em anarquia.

A sociedade descrita pelo estado da natureza em si mesmo apre­senta, contudo, uma condi<;ao impossivel, ou, mais precisamente, nosapresenta 0 ponto minimo de nossa potencia. No estado da naturezaassim concebido, eu experimento encontros casuais com outros cor­pos que, uma vez que somos predominantemente determinados porpaixoes, tern muito pouco em comum com 0 meu. Assim, nessa con­di<;ao, nao somente 0 meu poder de ser afetado e preenchido predo­minantemente por afec~oes passivas, como tambem as afec<;oes pas­sivas sao predominantemente tristes. Tal como previamente passamosde afec\oes passivas para afec~oes ativas e da imagina\ao para a ra­zao, aqui precisamos descobrir, para aumentar 0 nosso poder, umapassagem do direito natural para a direito civil. "Poderia haver umaunica maneira de tornar 0 estado da natureza suportavel: lutando paraorganizar seus eneontros" (260-61). 0 estado civil e a estado da na­tureza tornado suportavel; ou, mais precisamente, e0 estado da na­tureza insuflado pelo projeto de aumento da nossa potencia. E, comoja vimos, 0 aumento de nossa potencia envolve a organiza~ao de rela­\oes componiveis: "Se duas pessoas concordam entre si e unem as su~s

for\as, terao mais poder conjuntamente e, conseqiientemente, ~m d~­

reito superior sobre a natureza, que cada uma delas nao possU! SOZI­

nha e, quanto mais numerosos forem os homens que tenham posto assuas for~as em comum, mais direito terao eles todos. (Political Treatise,lIB). 0 nucleo da politica espinosista e, por conseguinte, orientadopara a organiza~ao de encontros sociais de modo a encorajar rela~oes

uteis e componfveis; e "essa a arte de organizar encontros" (262). 0direito natural nao e negado na passagem para 0 direito civil, como 0

e nas concep<;oes dialeticas da sociedade, mas sim preservado e inten­sificado, do mesmo modo que a imagina<;ao e fortalecida pela razao.Nessa transforma<;ao a multiplicidade da sociedade se forja numa mul-

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tida020. A multidao permanece contingente enquanto esta sempre aber­ta ao antagonismo e ao conflito, mas, em sua dinamica de poder cres­cente, atinge urn plano de consistencia; tern a capacidade de colocar anormatividade social como direito civil. A multidiio e a multiplicidadetornada poderosa. A concep~iio de Espinosa do direito civil comple­menta, por conseguinte, a primeira no<;ao de liberdade com uma se­gunda: da liberdade da ordem para a liberdade da organiza~iio; a li­berdade da multiplicidade torna-se a liberdade da multidiio. E a regrada multidiio e a democracia: "Esse direito, que e definido pelo poderda multidiio, e geralmente chamado de urn Estado. E e absolutamen­te controlado por aquele que, por consentimento comum, dirige osneg6cios da republica. (... ) Se essa responsabilidade pertence a urn con­selho composto pela multidiio em geral, entiio 0 Estado e chamado deuma democracia" (Political Treatise, II:l?). Na passagem da liberda­de, portanto, da multiplicidade para a multidiio, Espinosa compoe eintensifica a anarquia na democracia. A democracia espinosista, 0 go­verno absoluto da multidiio atraves da igualdade de seus membrasconstituintes, e fundada na "arte de organizar encontras" (262).

Essa visao da liberdade e da organiza<;ao de encontros sociais e,com efeito, uma extensao da teoria ontol6gica das no<;6es comuns deDeleuze. No plano epistemol6gico, vimos como a no<;ao comum e0

mecanismo peIo qual a pnltica constitui uma ordem de conhecimen­to; a passagem pratica da afec<;ao passiva alegre para a afec<;ao ativa,tal como a passagem da imagina<;ao arazao, desenvolve-se atraves dano<;ao comum. Agora, a teoria do paralelismo ontol6gico nos diz quese podemos identificar uma tal passagem pra.tica no dominio do pen­samento, devemos ser capazes de reconhecer uma passagem similar daextensao. Em outras palavras, se tivermos de perseguir a interpreta­~iio de Deleuze do paralelismo de forma consistente, temos de desco­brir uma no<;ao comum corp6rea que sirva para organizar os encon­tros casuais, inadequados e predominantemente tristes dos corpossociais e torna-Ios encontros coerentes, adequados e alegres, tal como,sobre a base de ideias inadequadas (imagina~iio) a no~iio comum in­telectual constitui ideias adequadas (raziio). Levado aos seus limitesconceituais, 0 paralelismo ontol6gico significa que a constitui<;ao doconhecimento, a constitui<;ao intelectual da comunidade, deve ser igua-

20 Para uma discussao complementar da concep~ao espinosista de multidao,ver Antonio Negri, The Savage Anomaly (187-90, 194-210).

lada e complementada por uma constitui~iio corp6rea da comunida­de. Ano<;ao comum corp6rea, ao corpo social adequado, edada for­

ma material na multidao.Esses tra~os da liberdade e da democracia espinosista nos forne­

cern uma orienta<;ao politica geral, mas 0 elemento central, 0 proces­so de forrna<;ao da multidao, 0 processo de articula<;ao politica, arris­ca-se a parecer obscuro e misterioso at~ que desvende~os ~s ~eus rnec~­

nisrnos constitutivos concretes. Tal COlsa, entretanto, e 0 lImIte da ana­lise de Deleuze em seu estudo Expressionism in Philosophy: Spinoza.Com efeito, esse e0 limite de uma ~'teoria" da democracia, 0 pontonO qual a teoria encontra urn obstaculo. Somente a pratica soci~l po~e

atravessar tal obstaculo, dando corpo ao processo de orgamza<;ao

politica.

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IV. CONCLUSAo:UM APRENDIZADO EM FILOSOFIA

Navegamos pelos primeiros estudos de Deleuze, a fim de identi­ficar uma linha poderosa de desenvolvimento, uma evolm;ao progres­siva: Bergson, Nietzsche, Espinosa. Este nao e, todavia, urn mero exer­cicio na historia da filosofia. Everdade que parte de meu interesse nesseestudo foi 0 de demonstrar, atraves da obra de Deleuze, que a histo­ria cia metafisica naG esta morta, que ela contern alternativas radicaise poderosas que ainda estao muira vivas nos problemas contempora­neos que enfrentamos. Esses fi16sofos formam a base do pensamentode Deleuze, visto que fornecem 0 material para a sua propria educa­<;ao, para 0 seu aprendizado em filosofia. A obra de Deleuze, entre­tanto, nao termina com uma revalorizac;ao dessa tradic;ao alternativa:ele seleciona aquila que esta vivo e 0 transforma, tornando-o adequa­do aos seus interesses. Dessa maneira, ele tanto faz sua a hisr6ria ciafilosofia quanto a renova.

Atualmente, uma gerac;ao em emergencia vern sendo formada nopensamento de Deleuze, desenvolvendo urn interesse novo pela filoso­fia. Nesse estudo eu tentei ler a obra de Deleuze utilizando seu metodode sele<;ao e transforma<;ao com a finalidade de perseguir a minha pro­pria educa<;ao, 0 meu proprio aprendizado em filosofia. Tentei tornarmeu 0 seu trabalho. No processo, foi possfvel dar subsrancia a umaconjunto de quatro temas que coalescem em minha mente como 0 nu­cleo de seu esfor<;o: ontologia, afirma<;ao, pr::itica e constitui<;ao.

1. ONTOLOGIA

A ontologia de Deleuze e baseada nas cancep<;6es de diferen<;a esingularidade que ele descobre em Bergson e Espinosa. A diferen<;abergsoniana define, acima de tudo, 0 principio do movimento positi­vo do ser, quer dizer, 0 principio temporal da articula<;ao ontol6gicae da diferencia<;ao. Bergson nao pergunta 0 que e0 ser, mas como dese move. Esse foco no movimento ontol6gico pode ser facilmente si-

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tuado no contexto das discussoes filos6ficas tradicionais sobre a na­tureza da causalidade. A diferen~a bergsoniana deve em primeiro lu­gar ser distinguida da diferen~a dos mecanicistas, que poem uma evo­luc;ao empirica na qual cada determinac;ao e causada por urn "outro"material por meio de uma relac;ao acidental. 0 movimento ontol6gi­co dos mecanicistas repousa sobre uma concepc;ao tosca da causa ma­terial, que arrisca-se a por 0 ser como meramente contingente, comouma "exterioridade subsistente". Por outro lado, contudo, a diferen­<;a bergsoniana deve ser disringuida da diferen<;a platonica, que se fun­damenta nao em uma causa material, mas em uma causa finM. 0 mo­~imento?ntol6gico platonico eigualmente externo na medida em quee determmado por seu fim, por sua finalidade. Finalmente a diferen­<;a bergsoniana deve ser distinguida, acima de tudo, da diferen<;a he­geltana, que se fundamenta em uma concepc;ao "abstrata" de causali­dade: abstrata no sentido de que 0 movimento negativo das contradi­c;~:s po~ uma causa que e absolutamente externa a seus efeitos. Opo­slc;ao, aflrma Deleuze, e uma nOc;ao muito tosca para capturar as nuan­ces que marcam as diferenc;as reais; nao adere firmemente arealida­de, tal como roupas frouxas. A diferenc;a em Bergson, ao contnirio detodas essas versoes, edefinida por uma noc;ao de causalidade eficien­teo 0 movimento do ser e uma progressao de diferenc;as internas namedida em que a causa e sempre inerente ao seu efeito. Dessa manei­r:, 0 movimento ontol6gico e libertado de quaisquer jogos de nega­c;~es e eposto, ao inves disso, como absolutamente positivo, como umadlferenciac;ao interna.

.No co~texto espinosista, a positividade do ser ecaracterizada parsua smgulandade e sua expressao univoca. A singularidade do ser deEsptn?sa nao e definida por sua diferenc;a de urn outro, de urn nao ser,mas Slm pelo fato de que 0 ser ediferente em si mesmo. "Dissociada dequalquer distinc;ao numerica, a distinc;ao real e transportada para 0

absoluto. Essa distin<;ao torna-se capaz de expressar a diferen<;a no sere conseqiientemente produz a reestrutura\=ao de Outras distinc;oes" (Ex­pressionism in Philosophy: Spinoza, 39). 0 ser espinosista enotavel; e~lferente sem qualquer referencia externa. Em outras palavras, 0 ser esmgul~r. Mais uma vez, essa 16gica aponta para a tradic;ao de argumentoscausalS. Tal como 0 ser eCausa de si mesmo e e assim sustentado poruma estrutura causal interna, tambem e diferente em si mesmo e e as­sim sustentado por uma noc;ao de diferenc;a interna ou eficiente. A ex­pressao dessa diferenc;a interna e precisamente 0 movimento do ser. A

expressao e a abertura do ser que torna clara a sua estrutura causalinterna, sua genealogia, e assim a expressao do ser singular nao podeser senao univoca: 0 ser e expresso sempre e em todo lugar na mesmavoz. A expressao singular e univoca do ser e, no contexto espinosista,a mais alta afirma<;ao possivel do ser. E essa proposi<;ao projeta 0 nos­so pensamento no plano mais alto da especula<;ao ontol6gica.

Nao deveria haver qualquer duvida, a esse ponto, de que essa con­cep\=ao deleuziana da ontologia e radicalmente distinta das concep\=oeshegelianas e heideggerianas, particularmente com respeito asua posi­tividade e a seu materialismo. No c6digo espinosista, poderiamos di­zer que Deleuze deslocou 0 centro da especula<;ao ontol6gica do "omnisdeterminatio est negatio" para "non opposita sed diversa" - da ne­gac;ao para a diferenc;a. Essa estrategia atinge os primeiros movimen­tos da l6gica de Hegel, a progressao do puro ser para 0 ser determi­nado, e, mais importante, atinge 0 movimento de todo 0 sistema dia­letico. Em essencia, Deleuze apela para 0 mundo pre-critico de Espinosae dos escolasticos para demonstrar a fraqueza da ontologia hegeliana.o ser que necessita buscar apoio externo para a sua diferenc;a, 0 serque necessita buscar na negaC;ao a sua fundac;ao, nao e de modo al­gum urn ser. Como sabemos pelos argumentos escolasticos sobre a"produtividade" e a "produtibilidade" do ser - as suas aptidoes paraproduzir e ser produzido -, uma coisa nao pode ser a causa necessa­ria de algo fora de si mesma, e urn efeito nao pode ter mais perfeic;aoou realidade do que a sua causa (ver Etienne Gilson, La Philosophieau Moyen Age, 595). A dignidade do ser ejustamente a sua potencia,a sua produ\=ao interna, quer dizer, a genealogia causal eficiente quesurge do interior, a diferenc;a positiva que marca a sua singularidade.o ser real esingular e univoco; ediferente em si mesmo. Dessa dife­ren<;a eficiente no cora<;ao do ser flui a multiplicidade real do mundo.Comparativamente, 0 ser hegeliano nao pode dar conta nem de umaunidade real nem de uma multiplicidade real- eabstrato no sentidode que nao pode apreender nem sua potencia para produzir nem suapotencia para ser produzido.

Somente 0 materialismo pode alcanc;ar, adequadamente, essacompreensao do ser. 0 materialismo aqui deve ser entendido como umaposi<;ao polemica que combate qualquer prioridade concedida ao pen­samento sobre a materia, amente sobre 0 corpo, nao para inverter essarelac;ao e dar amateria 0 mesmo privilegio, mas sim para esta beleceruma igualdade entre os dois dominios. A ontologia de Deleuze requer

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uma perspectiva materialista porque qualquer prioridade concedidaao pensamento enfraqueceria a estrutura interna do ser. 0 materia­lismo nao e, por conseguinte, apenas uma recusa da subordinac;ao domundo corp6reo ao mundo da mente, mas tambern uma exaltac;a~ doser com respeito aos dois dominios. Deleuze recusa qualquer concep­<;ao idealista que de algum modo subordine 0 ser ao pensamento. "0ser da 16gica hegeliana", por exemplo, "f meramente 0 ser do 'pensa­mento', puro e vazio" (Nietzsche and Philosophy, 183). a ser de De­leuze antecede e compreende, logicarnente, 0 pensamento e a exten­sao. Essa prioridade l6gica, contudo, nao significa que 0 ser existe auma distancia do mundo real; nao ha separac;ao entre 0 ser e a natu­reza. Qualquer termo tal como ser-no-mundo, nao teria nenhum sen­tido na ontologia de Deleuze porque 0 ser e desde sempre atual; e sem­pre completamente expresso no corpo e no pensamento. Somente umaabordagem materialista pode dar conta, de forma adequada, tantodessa superficialidade quanto dessa plenitude.

Uma primeira li<;ao que podemos extrair da filosofia de Deleuzee, entao, que aquilo que alguns sup6em ser a linha mestra da especu­la<;ao metafisica de Platao a Hegel e a Heidegger nao detem urn mo­nop6lio sobre 0 pensamento ontol6gico. Ele recupera a coerencia deuma tradic;ao alternativa de Lucrecio e Duns Scot a Espinosa e Bergsonque e igualmente rica e variada. Com efeito, para contestar os postu­lados de uma ontologia idealista nao temos de passar radicalmente parao lado oposto e propor uma perspectiva deontol6gica, mas, ao con­trario, podemos buscar a tradic;ao ontol6gica materialista como umaalternativa. Uma das vantagens de escolher essa alternativa e que elanos permite extrair a produtividade e a produtibilidade da naturezae, por conseqiiencia, a nossa potencia de agir e 0 nosso poder de serafetado. Uma ontologia materialista e positiva e acima de tudo umaontologia da poteneia.

2. AFIRMA(:Ao

Tal como a noc;ao de uma ontologia positiva, tambern 0 conceirode afirma<;ao tern sido mal entendido e ridieularizado pela tradi<;aohegeliana. as grandes pensadores da Escola de Frankfurt, por exem­plo, conceberam a afirma<;ao como uma aceitac;ao passiva da ordemconternporanea, como urn otirnismo ingenue e irresponsavel iver, por

exemplo, Herbert Marcuse, Reason and Revolution, vii ss.). Os hege­lianos contemporaneos reforc;am essa veia critica quando dizern queas filosofias da afirma<;ao permanecem impotentes porque se priva­ram do poder da nega<;ao, perderam a "magiea" do trabalho do ne­gativo (Judith Butler, Subjects ofDesire, 183-184; vertambem 0 meu"La renaissance hegelienne americaine er l'interiorisarion du conflir" ,134-38). A afirma<;ao e, desse modo, concebida como acritica, oumeSillO anticrftica. Aqui rnais uma vez somos confrontados por umanuance ou uma alternativa que e confundida com uma oposic;ao po­larizada. Em outras palavras, a afirma<;ao de Deleuze contesta de fatoa forma hegeliana da nega<;ao e da er(tica, mas nao rejeita a nega<;aoe a critica tout court; ao contrario, essa afirmac;ao realc;a as nuancesque formam concepc;6es alternativas da negac;ao e da critica que saomais adequadas ao seu projeto.

A afirmac;ao nao e, portanto, oposta acritica. Ao contrario, e pormeio de uma critica total e consumada que se impelem as forc;as danegac;ao ate 0 seu limite. A afirmac;ao esta intimamente ligada ao an­tagonismo. A forma da cr(tiea deleuziana reatualiza 0 metodo filos6­fico escolastico: pars destruens, pars construens. A chave para essa con­cepc;ao alternativa e 0 carater absoluto e nao-dialetico do momentonegativo. Eessa a maneira pela qual Nietzsche "completa" 0 projetokantiano, segundo Deleuze. A critica kantiana deve permanecer par­cial e incompleta porque mantem 0 supra-sensivel como urn terrenoprivilegiado, protegendo-o das for<;as destrutivas da eritiea: Kant podetratar das afirmac;6es sobre a verdade e a moral sem por em risco averdade e a moral em si mesmas. A reserva transcendental protege aordem essencial de qualquer destruic;ao ou reestrururac;ao radicais.Nietzsche quer conceder as forc;as criticas urn livre reinado, quer libera­las no horizonte ilimitado para que todos os valores da ordem estabe­lecida sejam postos em risco. "Urn dos principais moveis da obra deNietzsche e 0 fato de Kant nao haver levado a cabo uma critica verda­deira porgue nao foi capaz de colocar 0 problema da critica em terrnosde valores" (Nietzsche and Philosophy, 1). A er[tiea total e sempreinsurrecional; e urn ataque irrefreado aos valores estabelecidos e aospoderes dominantes que eles sustentarn; e uma mise en cause de rodoo horizonte contemporaneo. A negac;ao que constitui 0 nudeo da crfticatotal e nao dialetica precisamente porque recusa a atitude conservadorada dialetica: nao recupera a essencia de seu inimigo, nao "preserva emantem 0 que e suprassumido" (Phenomenology ofSpirit, § 188). Nao

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ha, portanto, qualquer ressurrei~ao magica do outro dentro do mes­rna, e sim urn antagonismo puro e descompromissado. Isso nao equi­vale a dizer que tudo 0 que esta presente e negado, mas sirnplesmenteque aquilo que I' negado I' atacado com fon;a irrestrita.

A filosofia afirmativa de Deleuze nao recusa ou ignora, assim,a potencia do negativo, mas antes aponta para urn eoneeito diferenteda nega,ao - uma nega,ao que abre 0 campo da afirma,ao. A des­trui~'ao sem reservas eria 0 espa~o para as for~as eriativas livres e ori­ginais. A logiea do escravo da dialetiea tenta extrair uma afirma~ao

da suprassun,ao da nega,ao - mas nesse caso a afirma,ao ja estaprefigurada na nega,ao - I' meramente uma repeti,ao do mesmo. Alogiea do senhor, em eontrapartida, engendra uma afirma~ao verda­deira, situada em urn plano separado. Em si mesma, essa nega~ao naoenvolve qualquer preserva~ao, mas sim uma ruptura real, uma trans­muta~ao. A afirma~ao subseqiiente, entao, volta-se apenas para a suapropria poteneia. 0 arnor de Ariadne por Dioniso e talvez a expres­sao mais acabada dessa afirma,ao na obra de Nietzsche. Dioniso I' 0

deus da afirma,ao, mas somente Ariadne pode afirmar a propria afir­ma~ao: "Eterna afirma~ao do ser, eternamente sou tua afirma~ao"

(Nietzsche and Philosophy, 187). A afirma,ao de Ariadne I' uma afir­ma~ao dupla, "afirma~ao da afirma~ao mesma", "0 'sim' que respon­de ao 'sim'" ("Mystere d'Ariane", 151). Essa e uma afirma~ao espi­ralada que se alimenta de sua propria potencia, afirma~ao que retor­na: a afirma~ao elevada aenesima poteneia. A afirma~ao do ser deAriadne e urn ate etico, urn ato de amor.

Deveria estar claro que essa afirma~ao deleuziana nao e uma sim­ples aceita,ao do que existe. 0 sim do asno, 0 sim daquele que naosabe como dizer nao, e uma mera carieatura da afirma~ao. Ao eon­trario, somente aquele que sabe controlar uma nega~ao poderosa podeeoloear uma afirma~ao real. 0 nao da eritica total, a expressao de umanega~ao ineontida, e liberadora - nos torna mais leves. "Afirmar naoe se responsabilizar, assumir a earga daquilo que existe, mas desven­eilhar, libertar 0 que vive. Afirmar e desoprimir: nao sobreearregar avida com 0 peso dos altos valores, mas eriar novos valores que sao osda vida, que tornam a vida leve e ativa" (Nietzsche and Philosophy185). Afirma~ao nao e aceita~ao do ser; Deleuze manteria, ao invesdisso, que afirma~ao e na verdade a eria~ao do ser. 0 eoneeito de afir­ma~ao permite a Deleuze transportar 0 poder de sua ontologia para 0

terreno do sentido e do valor, e assim formular uma etiea do ser. Eti-

ca e aqui, precisamente, uma linha de condura, ou urn guia pnitico,para a expressao da poteneia, para a produ~ao ativa do ser.

3. PRATICA

A afirma~ao, entretanto, nao e 0 bastante para uma etica de­leuziana. Urn projeto etico nao pode permanecer no plano da especu­la~ao, mas necessita, sim, eneontrar uma avenida para adentrar nocampo da pratica. A concep,ao da alegria de Espinosa fornece a De­leuze a chave para esse novo terreno: "0 sentido da alegria aparececomo 0 sentido propriamente etieo; e e para a pra.tiea aquilo que aafirma,ao mesma I' para a especula,ao. (... ) Filosofia da afirma,aopura, a Etica I' tambern uma filosofia da alegria correspondendo a talafirma,ao" (Expressionism in Philosophy: Spinoza, 272). A afirma­,ao da especula,ao deve, portanto, ser complementada pela alegria dapratiea. E assim que a etiea realiza sua for~a eonstrutiva plena, comouma constitui~ao pratica do ser. Com efeito, a espeeula~ao afirmati­va demanda uma correspondente pratica da alegria para fazer jus assuas afirma~6es de criatividade e atividade. Por si propria, a afirma­~ao arrisca-se, em outras palavras, a parecer simplesmente aquilo queapreende e seleciona 0 ser que e; a alegria e propriamente 0 momentoque cria 0 ser do porvir.

Grande parte da obra de Deleuze trata do problema da pratica:como podemos por em movimento as for~as criativas? Como podemostornar a filosofia realmente pratiea? Deleuze encontra a chave na in­vestiga,ao do poder. A concep,ao movel e maleavel do ser que se en­contra em Bergson e Espinosa ja prepara 0 terreno para esse trabalho:a ontologia de Deleuze focaliza 0 movimento do ser, a sua genealogiade rela,6es causais, a sua "produtividade" e "produtibilidade". A te­matica do poder e da produ,ao ja ocupa, por conseguinte, uma posi­~ao essencial. Em Nietzsche, Deleuze identifica uma distin~ao entre duasqualidades de poder, a ativa e a reativa, quer dizer, potencia ligada aquiloque pode fazer e poder separado do que pode fazer. Em Espinosa essamesma distin~ao recebe uma defini~ao mais rica com respeito ao ade­quado e ao inadequado. 0 adequado I' aquilo que expressa (ou envol­ve ou compreende) a sua causa; 0 inadequado e mudo. Como 0 ativo,o adequado articula-se a frente com aquilo que pode fazer: mas tam­bern se artieula retroativamente com a sua genealogia interna de afe-

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tos, a genealogia de sua propria prodw;ao. 0 adequado do total visibi­lidade tanto aprodutividade quanto aprodutibilidade do ser. Essa e arela<;ao crucial que abre 0 campo de pacier para Deleuze: correspon­dendo apotencia do ser de agir e existir esta. 0 seu pacier de ser afetado.Essa potencia de produtibilidade proporciona 0 corredor comunicanteentre a ontologia e a pra.tica.

A importancia do poder de ser afetado e que este revela distin­<;6es dentro do pacier; a potencia de agir e existir, aD contnirio, apa­rece como pura espontaneidade, indiferenciada, e assim permaneceopaca anossa analise. Devemos cavar, entao, as distin<;6es no interiordo poder, dentro de nossa afetividade, para descobrir 0 ponto de par­tida para uma pratica etica. A investiga<;iio de Deleuze do nosso po­der de ser afetado revela duas ordens de distin<;6es: no primeiro nivel,ele caloca a distin<;ao entre afcq:6es ativas e afec<;6es passivas; e nosegundo, ele caleca a distin<;ao entre afeq:6es passivas alegres e afeq:6espassivas tristes. Como Deleuze formula cada uma dessas distin<;6esdentro de nasso poder, tambem reconhece que a condir;ao humanarepousa principalmente no lado fraco da equa<;iio: 0 poder de ser afe­tado e dominado por afec~6es passivas ao inves de ativas, e a grandemaioria de nossas afec~6es passivas sao tristes em vez de alegres. Esse"pessimismo" espinosista e precisamente 0 ponto de partida para umapnitica da alegria. Com essa avalia~ao realista de nossa condi~ao, es­tamos prontos para tomar 0 caminho ingreme para aumentar nossapotencia, para nos tornarmos alegres, para nos tornarmos ativos.

Deleuze inicia a elabora~ao da pnitica no campo dos encontroscasuais e focaliza os encontros com os corpos que se adequam anos­sa natureza, que aumentam a nossa potencia: encontros que engendrampaix6es alegres. Vma paixao alegre, desde que e uma paixao, e sem­pre 0 resultado de uma causa externa e, assim, sempre indica uma ideiainadequada; contudo, desde que ealegre, abre, nao obstante, uma ave­nida para a adequa~ao: "Devemos, portanto, com a ajuda das paixi5esalegres, desenvolver a ideia do que e comurn a urn corpo externo e aonosso proprio corpo. Pois sornente essa ideia, essa no~ao comum, eadequada" (Expressionism in Philosophy: Spinoza, 283). Paix6es ale­gres sao a pre-condi~ao da pnitica; sao a materia-prima para a cons­trm;ao da no~ao comum. Com efeito, a no~ao comum ja se encontralatente na paixao alegre, porque a alegria resulta, necessariamente, deurn encontro com urn corpo que tern uma rela~ao que e compativelou componivel com 0 nosso. A alegria do encontro e precisamente a

composi~ao de dois corpos em urn corpo novo e mais poderoso. Quan­do nossa mente forma uma ideia da rela~ao comum partilhada por essecorpo e 0 nosso corpo (uma no~ao comum), a afec~ao alegre deixa deser passiva e se torna ativa. A constru~ao da no~aoCOillum e, com efei­to, 0 envolver ou 0 compreender a causa da afec~ao e uma afec~ao queexpressa a sua causa nao e mais passiva, mas ativa. A alegria da afecc;aoativa nao e mais contingente de urn encontro casual; a alegria que ternpor suporte a no~ao comum e a alegria que retorna. Esse e0 processopratico que encarna os mandatos eticos de Deleuze: tornar-se alegre,tornar-se ativo.

A pratica da alegria traz a etica de volta a ontologia - explo­rando a produtibilidade ou componibilidade do ser. Talvez seja estaa maior vantagem da complexa e extensiva investiga~ao de Deleuzeno campo da ontologia. 0 ser euma estrutura hfbrida constituida pelapratica da alegria. Quando a no~ao comum envolve a causa de urn en­contro alegre e assim torna tal encontro adequado, est<i realizando umanova incisao no ser, construindo urn novo agenciamento de sua estru­tura. 0 que eleva esse encontro ao nivel do ser eprecisamente a suacompreensao da causa: a substancia, como nos diz Espinosa, eaquelaque ecausa de si propria. A pratica da alegria ea construc;ao de agen­ciamentos ontologicos, e por conseguinte, a constituic;:ao ativa do ser.

4. CONSTITUI<;Ao

Varios autores americanos tentaram colocar a questao geral dasconseqiiencias polfticas do pos-estruturalisrno. Tais investigac;6es con­duziram a uma ampla gama de julgamenlOs de um lado a outro doespectro politico. Na verdade, nao se deveria esperar encontrar umaresposta clara para essa questao sobre urn movimento teorico tao am­plo. Por exemplo, durante os iiltimos 150 anos, a filosofia de Hegeltem sido 0 principal suporte de uma ampla variedade de posi<;6es po­liticas, progressistas e retrogradas, muitas das quais diferem signifi­cativamente das proprias vis6es politicas de Hegel. Nao se deveria,naturalmente, procurar a posic;:ao politica que se segue necessariamen­te do corpo teorico de uma obra. Nao ha apenas urn, mas inumeroscorredores que se pode seguir para efetuar a passagem para a ac;ao.Nao sera muito frutifero, porranto, tentar uma definic;:ao geral dapolitica do pos-estruturalismo, ou mesmo da politica da filosofia de

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Deleuze. Emais apropriado e mais produtivo perguntarmo-nos: 0 quepode nos proporcionar 0 pensamento de Deleuze? Que podemos fa­zer de Deleuze? Em outras palavras, quais sao as ferramentas de uti­lidade que encontramos em sua filosofia para avan,armos em nossospr6prios projetos politicos? Imbuido desse espirito eque tentei des­cobrir em Deleuze algumas ferramentas para a constituic;ao de umademocracia radical. As distin'roes que tentei sublinhar na obra deDeleuze colocam a multiplicidade da organiza,ao contra a multipli­cldade da ordem, e os agenciamentos de potencia Ues agencements defa puissance) contra os dispositivos de poder Ues dispositifs du pou­voir). Cada uma dessas distin,6es depende de uma no,ao de consti­tui'rao que permanece latente, mas nao obstante central, no pensamen­to de Deleuze. Dessa perspectiva, Deleuze pode nos ajudar a desen­volver uma concepc;ao dinamica da sociedade democra.tica enquantoaberta, horizontal e coletiva.

Em certa medida, essa visao da democracia coincide com a doliberalismo. Talvez 0 mais importante e unico principio da teoria de­mocratica liberal seja 0 de que os fins da sociedade sao indeterminados,e assim 0 movimento da sociedade permanece aberto avontade de seusmembros constitutivos. A prioridade do direito sobre 0 bern tern porprincipio garantir que a liberdade de desenvolvimento da sociedadenao seja restringida ou fechada por urn tetas externamente determi­nado. Essa recusa polftica da te1eologia conduz diretamente a umarecusa filos6fica da ontologia, porque a ontologia carrega presumivel­mente, em si mesma, uma determinaC;ao transcendental do bern. Adeontologia, entao, ea unica posi,ao filos6fica que pode dar suportea uma sociedade democratica aberta a multiplicidade de fins. Pensa­dores liberais que raciocinam desta forma tern, com efeito, aceitadocom demasiada rapidez as afirma'roes plat6nicas e hegelianas sobre asliga'roes entre a ontologia e a te1eogia social; estao ainda por demaisamarrados a16gica das contradic;oes, e assim deixam de ver nuancesimportantes. Em outras palavras, em oposic;ao a uma visao onto16gi­ca que determina uma sociedade conservadora e fechada, eles acredi­tam que uma teoria deontol6gica enecessaria para se alcan'rar umasociedade democratica e aberta. Nao e necessario, contudo, dar-se essesalto para 0 p610 oposto, nao e necessario rejeitar-se a ontologia toutcourt, a [1m de afirmar a abertura dos fins numa sociedade. A tradi­<;ao da metafisica ocidental nao e a de uma pec;a, nao e urn bloco mono­lftico, mas, ao contrario, contem, dentro de si propria, alternativas radi-

cais. (0 fato de que a tradi,ao aparece a alguns tao pobre em alterna­tivas na verdade apenas evidencia 0 estado precario da pesquisa filo­s6fica contemporanea.) Quando Deleuze interroga Bergson, Nietzschee Espinosa, ele esta, na verdade, reafirmando e articulando uma tra­di,ao alternativa na hist6ria da metafisica ocidental que apresenta umas6lida no,ao de ontologia, mas que nao prop6e qualquer mapeamentoteleol6gico ou qualquer determina,ao de fins. Aquilo que Deleuzedesenvolve coincide com a visao liberal em sua afirma,ao da abertu­ra dos fins na sociedade democratica, mas nao recusa, por essa razao,a tradi,ao do discurso ontol6gico. 0 ser de Deleuze eaberto a inter­venc;ao das criac;oes polfticas e do devir social: essa abertura e preci­samente a "produtibilidade" do ser que Deleuze apropriou do pensa­mento eseolistico. 0 poder da sociedade, para falar em termos espi­nosistas, corresponde ao seu poder de ser afetada. A prioridade do di­reito ou do bern nao participa dessa defini,ao de abertura. 0 que eaberto, e 0 que articula 0 ontol6gico ao polftico, e a expressao do poder:o livre conflito e a composic;ao do campo de for'ras sociais.

Essa organiza,ao aberta da sociedade deve ser distinguida dasestruturas verticais da ordem. Por organizac;ao eu nao compreendo, aqui,qualquer tipo de plano ou projeto de como as rela<;oes sociais seraoestruturadas; ao contrario, por organizaC;ao eu compreendo urn pro­cesso continuo de composi<;ao e decomposi'rao por meio de encontrossociais em urn campo imanente de for'ras. 0 horizonte da sociedade eperfeitamente plano, perfeitamente horizontal, no sentido de que a or­ganizaC;ao social prossegue sem qualquer desenho pre-determinado, abase da intera'rao das for<;as imanentes, e pode, assim, em principio, serremetido, a qualquer momento, como que por for'ra das pressoes in­cansiveis da gravidade, de volra ao seu estado zero de igualdade. A or­ganiza'rao carrega em si mesma 0 poder destrutivo do ritorno ai prin­cipi, de Maquiavel. Isso nao equivale a dizer que as institui<;oes sociais(ou outras instancias da verticalidade) nao sao formadas, mas que re­cebem uma determinac;ao estritamente imanente, e assim permanecemsempre e por completo suscetfveis de reestrutura<;ao, reforma e destrui<;ao(no espfrito, por exemplo, dos "communards", que insistiam para quetoda represenra,ao fosse submetida arevoga,ao imediata). Dispositifs[dispositivos], ou desdobramentos, estruturam uma ordem social des­de cima, a partir de urn espac;o externo de transcendencia; agencements,ou agenciamentos, constituem os mecanisrnos de organiza'rao desde bai­xo, a partir de urn plano social irnanente. A horizontalidade da cons-

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titui,ao material da sociedade poe todo 0 peso na pratica como 0 mo­tor cia cria~ao social. Vma politica pd.rica de carpas sociais libera asforc;as imanentes Jas estruturas de farmas pre-determinadas, para des­cobrir seus pr6prios fins, inventar a sua propria constituic;ao. Mais umavez, descobrimos que a produtividade do ser social corresponde asuaprodutibilidade. A sociedade horizontal e 0 lugar aberto que alimentaa criac;ao e a composic;ao pra.tica, tanto quanta a destruic;ao e a decom­posi,ao. 0 modelo dessa constitui,ao e a assembleia geral, a inclusaoabsoluta e igual de todo 0 plano imanente: a democracia, como Espinosagosta de assinalar, e a forma absoluta de governo.

as processos de agenciamento social, de constituic;ao social, saoindiferentes aos limites pastas peIo individualismo; au, mais precisa­mente, as fronteiras dos carpas sociais estao sujeitas, continuamente,a mudanc;as, amedida que a pra.tica do agenciamento decompoe cer­tas rela~oes e compoe outras. Nao ha contradi~ao, portanto, entre 0

individual e 0 coletivo; a constitui~ao da sociedade repousa sobre urneixo diferente. 0 processo de agenciamento politico, a composi~ao derela~oes sociais alegres, movimenta-se em troca, entre a multiplicidadee a multidao. A ptitica deleuziana da afirma,ao e da alegria, em ou­tras palavras, e direcionada para a cria~ao de corpos sociais ou pIanosde composi~ao que sao sempre poderosos, enquanto permanecem, aomesmo tempo, abertos aos antagonismos internos, as for~as reais dadestrui~ao e da decomposi~ao. 0 arranjo polftico e certamente uma arte,dado que precisa ser continuamente renovado, continuamente rein­ventado. A multidao e reunida atraves dessa pratica como urn corposocial definido por urn conjunto de comportamentos comuns, necessi­dades e desejos. Eesta a forma pela qual Deleuze apreende a for,a vivaque na sociedade emerge continuamente das for~as mortas da ordemsocial, tal como 0 trabalho vivo de Marx que se recusa a ser sugado pelosvampiros esvoa,antes do capital. E essa qualidade do que e vivo e de­finida tanto pelo poder de agir quanto pelo poder de ser afetado: urncorpo social sem 6rgaos. A composi~ao ou a constitui~ao da multidaode modo algum nega a multiplicidade das for,as sociais mas, ao con­trario, eleva a multiplicidade a urn nivel mais alto de poder.

Tudo isso, entretanto, fica apenas como sugestao para uma po­litica democratica; ainda temos de dar corpo aos seus mecanismosconstitutivos com praticas sociais concretas. 0 que Deleuze nos pro­porciona e, na verdade, uma orienta~ao geral que pode sugerir os ca­minhos para futuras pesquisas das formas contemporaneas de agen-

ciamento social. No horizonte politico, a multiplicidade de praticassociais e de desejos se nos apresenta com as condi~oes de composi~ao

ou agenciamento. Esse e 0 campo no qual 0 processo deve set defini­do: 0 agenciamento deve ser procurado pela articula,ao de corpossociais com rela<;oes internas compativeis, com pniticas e desejos com­poniveis. Nas praticas sociais existentes, nas express6es afetivas dacultura popular, nas redes de coopera<;ao trabalhista, deveriamos pro­curar distinguir os mecanismos materiais de agrega<;ao social que po­dem constituir rela~oes adequadas, afirmativas e alegres e, por conse­guinte, agenciamentos subjetivos poderosos. Preencher a passagem damultiplicidade amultidao continua a ser, para n6s, 0 projeto centralpara uma pratica politica democratica.

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SOBRE 0 AUTOR

Michael Hardt e professor da Duke University e co-autor de La­bor ofDionysus: Communism as Critique ofthe Capitalist and SocialistState-form (University of Minnesota Press, 1990) com Antonio Negri,de quem traduziu para 0 ingles A anomalia selvagem - Poder e potenciaem Spinoza (Ed. 34, 1993, na edi<;ii.o brasileira). Etambem 0 tradu­tor de The Coming Community (University of Minnesota Press, 1993),de Giorgio Agamben.

188 Michael Hardt

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COLE<;:AO TRANSdire~ao de Eric Alliez

Para alem do mal-entendido de urn pretenso "fim da filosofia" intervindono contexto do que se admire chamar, ate em sua alteridade "tecno-cientffica", acrise da razao; contra urn cerro destino da tacefa critica que nos incitaria a esco­Iher entre ecletismo e academismo; no ponto de estranheza oode a experienciaramada intriga da acesso a novas figuras do sec e da verdade... TRANS quer dizertransv~rsalidade das ciencias exatas e anexatas, humanas e nao-humanas, trans­disciplinaridade dos problemas. Em suma, transforma~ao numa pratica cuja pri­meiro conteudo eque h3 linguagem e que a linguagem nos conduz a dimensoesheterogeneas que nao tern nada em comum com 0 processo da metafora.

A urn 56 tempo arqueol6gica e construtivista, em todo caso experimental,essa afirmac;ao das indagac;6es voltadas para uma exploraC;ao polifOnica do realleva a liberar a exigencia do conceito da hierarquia das questoes admitidas, agu­c;ando 0 trabalho do pensamento sobre as pra.ticas que articulam os campos dosaber e do poder.

Sob a responsabilidade cientifica do Colegio Internacional de Estudos Filo­sOficos Transdisciplinares, TRANS vern propor ao publico brasileiro numerosastraduc;oes, incluindo textos ineditos. Nao por urn fascinio pelo OutIO, mas por umapreocupac;ao que nao hesitariamos em qualificar de politica, se porventura se ve- .rificasse que s6 se forjam instrumentos para uma outra realidade, para uma novaexperiencia da historia e do tempo, ao arriscar-se no horizonte multiplo das no­vas formas de racionalidade.

COLE<;:AO TRANSvolumes publicados

Gilles Deleuze e Felix Guattario que e a filosofia?

Felix GuattariCaosmose - Um novo paradigma estetico

Gilles DeleuzeConversafoes

Barbara Cassin, Nicole Loraux, Catherine PeschanskiGregos, bdrbaros, estrangeiros M A cidade e seus outros

Pierre LevyAs tecnologias da inteligencia

Paul Virilioo espafo critico

Antonio NegriA anomalia selvagem M Poder e potencia em Spinoza

I

.~

Andre Parente (org.)Imagem-maquina M A era das tecnologias do virtual

Bruno Latour] amais fomos modernos

Nicole LorauxA invenfiio de Atenas

Eric AlliezA assinatura do mundo M 0 que ea filosofia de Deleuze e Guattari?

Gilles Deleuze e Felix GuattariMil platos - Capitalismo e esquizofrenia (Vols. 1, 2 e 3)

Maurice de GandillacGeneses da modernidade

Pierre ClastresCronica do indios Guayaki

Jacques RancierePoliticas da escrita

JeanMPierre FayeA raziio narrativa

Monique David-MenardA loucura na raziio pura

Jacques Ranciereo desentendimento - Politica e filosofia

Eric AlliezDa impossibilidade da fenomenologia

Michael HardtGilles Deleuze - Um aprendizado em filosofia

A sair:

Eric AlliezDeleuze filosofia virtual

Franc;ois JullienFiguras da imanencia