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os conceitos fundamentais da metafisica: mundo - finitude - solidão 31 . . .;; t 't -- terceiro capítulo justificação da caracterização da pergunta pelo mundo, pela finitude e pela singularização, que se movimenta no cerne do conceito, como metafísica. origem e história da palavra "metafísica" os conceitos filosóficos, os conceitos fundamentais da metafisica mostraram-se como se movimentando no ceme do conceito: como conceitos que se movimentam no ceme daconceptualidade e nos quais o todo é sempre perguntado, e como conceitos que se movimentam no ceme da conceptualidade e que sempre co-inserem conceptivamente o conceptor no interior da pergunta. por isso, determinamos o perguntar metafisico como um perguntar que se movimenta no ceme do conceito. temos constantemente equiparado - não importando o que possa dirigir nossa atenção - filosofia e metafisica, pensamento filosófico e pensamento metafisico. na filosofia, no entanto, ao lado da "metafisica", há também a "lógica", a "ética", a "estética", a "fjiqsofl,a_<1a natureza" e a "filosofia da história". com que direito apreendemos o filosofar pura e simplesmente como pensamento metafisico? por que estabelecemos para a disciplina metafisica um tal privilégio ante todas as outras? ' estas disciplinas da filosofi~ - que assim se conhecem e cuja subsistência fática não é de modo algum tão inofensiva para o destino do filosofar quanto poderia parecer - cresceram em meio ao emprego escolar da filosofia. todavia, não coltemos absolutamente o risco de privilegiar arbitrariamente uma disciplina da filosofia, a metafisica, porque agora não tratamos antes de tudo de disciplinas. o intuito de nossas considerações prévias é justamente dissipar radicalmente esta representação da metafisica como lima disciplina fixa. a metafisica é um perguntar que se movimenta no ceme do conceito. as perguntas que se movimentam no ceme do conceito são: "o que é o mun- do?", "o que é a finitude?", "o que é a singularização?". mas com que direito, então, ainda recorremos ao título "metafisica" para a denominação deste perguntar que se caracteriza por se movimentar no ceme do conceito? esta questão, de fato justa, só se deixa responder através de uma curta discussão acerca da história da palavra e de sua significação. agora, já conquistamos mesmo uma certa pré-compreensão do filosofar, em função da qual podemos trazer à tona o que nos foi legado como sendo o significado da palavra "metafisica". com isso, entretanto, não retiramos a essência da filosofia desta palavra. ao contrário, somente em razão da compreensão da filosofia entregamos a esta palavra sua significação. por que ainda utilizamos as palavras "metafisica" e "metafisico" para a designação do filosofar como um questionamento que se movimenta no cerne do conceito? de onde vem esta pa,lavra e o que ela significa originariamente? na introdução a uma preleção "sobre" a metafisica, seria compreensível e instigante adentrar de modo mais minucioso o interior da história da palavra e do que é por ela designado, das transformações de sua significação e das diversas concepções que lhe são pertinentes. nós renunciamos a um tal empreendimento por razões que já foram suficientemente debatidas. com certeza, porém, uma indicação sucinta da história da palavra não é agora apenas possível, como também imprescindível. com esta discussão do conceito e da palavra "metafisica" concluiremos as nossas considerações prévias. teremos, então, conquistado um esclarecimento genérico acerca de nosso intento e do título de nossa preleção. § 8. a palavra "meíafísica". o significado de <jlu<hká para dizer inicialmente de forma negativa, a palavra "metafisica" não é nenhuma palavra originária. por uma palavra originária entendemos aquela que se formou a partir de uma experiência humana essencial e originária como sua elocução. dizer isto, no entanto, não equivale a afirmar que esta palavra originária também precisa ter surgido em um tempo originário; ela pode ser relativamente tardia. o caráter relativamente tardio de uma palavra originária não fala contra este caráter. a expressão "metafisica", contudo, apesar de querermos designar com ela algo próprio, não é nenhuma palavra originária. ela remonta à seqüência de palavras gregas que decomposta soa assim: ile'tà 'tà <jlu<hká; ou, dito integralmente: 'tà ile'tà 'tà <jlu<hká. dei- xemos esta seqüência de palavras, que posterionnente foi coligida no termo "metafisica", inicialmente sem tradução. mantenhamos apenas: ela serve para a designação da filosofia. . il

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fim da filosofia e tarefa do pensamen to

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terceiro capítulo

justificação da caracterização da pergunta pelo mundo, pela finitude e pela singularização, que se movimenta no cerne do conceito, como

metafísica. origem e história da palavra "metafísica"

os conceitos filosóficos, os conceitos fundamentais da metafisica mostraram-se como se movimentando no ceme do conceito: como conceitos que se

movimentam no ceme daconceptualidade e nos quais o todo é sempre perguntado, e como conceitos que se movimentam no ceme da conceptualidade e que sempre co-inserem conceptivamente o conceptor no interior da pergunta.

por isso, determinamos o perguntar metafisico como um perguntar que se movimenta no ceme do conceito. temos constantemente equiparado - não

importando o que possa dirigir nossa atenção - filosofia e metafisica, pensamento filosófico e pensamento metafisico. na filosofia, no entanto, ao

lado da "metafisica", há também a "lógica", a "ética", a "estética", a "fjiqsofl,a_<1a natureza" e a "filosofia da história". com que direito

apreendemos o filosofar pura e simplesmente como pensamento metafisico? por que estabelecemos para a disciplina metafisica um tal privilégio

ante todas as outras? ' estas disciplinas da filosofi~ - que assim se conhecem e cuja subsistência

fática não é de modo algum tão inofensiva para o destino do filosofar quanto poderia parecer - cresceram em meio ao emprego escolar da filosofia. todavia, não coltemos absolutamente o risco de privilegiar arbitrariamente uma disciplina da filosofia, a metafisica, porque agora não tratamos antes de tudo de disciplinas. o intuito de nossas considerações prévias é justamente dissipar radicalmente esta representação da metafisica como lima disciplina fixa.

a metafisica é um perguntar que se movimenta no ceme do conceito. as perguntas que se movimentam no ceme do conceito são: "o que é o mun-do?", "o que é a finitude?", "o que é a singularização?".

mas com que direito, então, ainda recorremos ao título "metafisica" para a denominação deste perguntar que se caracteriza por se movimentar

no ceme do conceito? esta questão, de fato justa, só se deixa responder através de uma curta discussão acerca da história da palavra e de sua significação. agora, já conquistamos mesmo uma certa pré-compreensão do filosofar, em função da qual podemos trazer à tona o que nos foi legado como sendo o significado da palavra "metafisica". com isso, entretanto, não retiramos a essência da filosofia desta palavra. ao contrário, somente em razão da compreensão da filosofia entregamos a esta palavra sua significação.

por que ainda utilizamos as palavras "metafisica" e "metafisico" para a designação do filosofar como um questionamento que se movimenta no cerne do conceito? de onde vem esta pa,lavra e o que ela significa originariamente?

na introdução a uma preleção "sobre" a metafisica, seria compreensível e instigante adentrar de modo mais minucioso o interior da história da palavra e do que é por ela designado, das transformações de sua significação e das diversas concepções que lhe são pertinentes. nós renunciamos a um tal empreendimento por razões que já foram suficientemente debatidas. com certeza, porém, uma indicação sucinta da história da palavra não é agora apenas possível, como também imprescindível. com esta discussão do conceito e da palavra "metafisica" concluiremos as nossas considerações prévias. teremos, então, conquistado um esclarecimento genérico acerca de nosso intento e do título de nossa preleção.

§ 8. a palavra "meíafísica". o significado de <jlu<hká

para dizer inicialmente de forma negativa, a palavra "metafisica" não é nenhuma palavra originária. por uma palavra originária entendemos aquela que se formou a partir de uma experiência humana essencial e originária como sua elocução. dizer isto, no entanto, não equivale a afirmar que esta palavra originária também precisa ter surgido em um tempo originário; ela pode ser relativamente tardia. o caráter relativamente tardio de uma palavra originária não fala contra este caráter. a expressão "metafisica", contudo, apesar de querermos designar com ela algo próprio, não é nenhuma palavra originária. ela remonta à seqüência de palavras gregas que decomposta soa assim: ile'tà 'tà <jlu<hká; ou, dito integralmente: 'tà ile'tà 'tà <jlu<hká. dei-xemos esta seqüência de palavras, que posterionnente foi coligida no termo "metafisica", inicialmente sem tradução. mantenhamos apenas: ela serve para a designação da filosofia. .

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0.1.2.

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a) esclarecimento da palavra <pucrtká. a <púcrtç como vigência auto-installradora do ente na totalidade

começamos o esclarecimento do contexto, no qual se insere a palavra, com o último termo expresso: <pucrtká. no interior deste termo encontra-se a palavra <púcrtç, que traduzimos habitualmente por "natureza". esta palavra vem do latim natura - nasci: nascer, surgir, crescer. esta é, simultaneamente, a significação fundamental do grego <púcrtç, cpÚetv. <l>úcrtç significa o crescente, o crescimento, o qüe propriamente cresceu em um tal crescimento. crescimento e crescer, porém, tomamos aqui em um sentido totalmente elementar e amplo, tal como este sentido irrompe na experiência originária do homem: o crescimento não apenas das plantas e dos animais, seu surgir e perecer enquanto um mero evento isolado, mas o crescimento enquanto este acontecimento que se dá em meio a e absolutamente dominado pela mudança das estações, em meio à altemância entre dia e noite, em meio ao curso dos astros, da tempestade e do clima, em meio ao furor dos elementos. tudo isso reunido em unidade é o crescimento.

nós traduzimos agora o tenno cpúcrtç de modo mais distinto e aproximado do sentido originariamente visado não tanto através da palavra crescimento, mas sim através da expressão: "a vigência auto-instauradora do ente na totalidade". não consideramos a natureza segundo o sentido restrito de hoje em dia, como objeto da ciência natural. no entanto, também não a consideramos no sentido amplo e pré-científico ou no sentido goethiano. ao contrário, esta cpúcrtç, esta vigência do ente na totalidade, é experimentada pelo homem de-modo tão imediato quanto arrebatador. em sua lida com as coisas, ele a experimenta consigo mesmo e com seus iguais: aqueles que são com ele da mesma forma. os acontecimentos que o homem ej<.perimenta em si, geração, nascimento, infância, maturidade, velhice, morte, não são de maneira nenhuma acontecimentos no sentido restrito e atual de um evento natural especificamente biológico, eles pertencem muito mais à vigência universal do ente, que concebe conjuntamente em si o destino humano e sua história. É preciso que nos aproximemos deste conceito totalmente amplo de cpúcrtç, para que possamos compreender esta palavra segundo a significação, na qual os antigos filósofos, que são denominados equivocadamente "filósofos da natureza", a utilizaram. a cpúcrtç aponta para esta vigência total, a partir da qual transcorre o vigor do próprio homem e da qual ele não é senhor. esta vigência, contudo, o transvigora e revigora, a ele, o homem, que sobre ela já sempre se pronunciou. o que ele entende - por mais enigmático e obscuro que isso possa ser em particular - se aproxima dele, o suporta e assola como o que é: cpúcrtç, o vigente, o ente, o ente total. acentuo uma vez mais: a cpúcrtç enquanto este e,nte na totalidade não é pensada no

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sentido modemo e tardio de ríatureza, mais ou menos como o conceito contrário ao conceito de história. ao invés disso, ela é vista como mais originária do que estes dois conceitos: ela é vista em uma significação originária, que diante da natureza e da história encerra a ambos e que também contém em si de certa maneira o ente divino .

b) aóyoç como o retirar do velamento a vigência do ente na totalidade

o homem, na medida em que existe como homem, já sempre se pronunciou sobre a cpúcrtç, sobre a totalidade vigente, à qual ele mesmo pertence. e isto não pelo fato de ele falar expressamente sobre as coisas. existir como homem já significa: trazer o vigente à enunciação. À enunciação é trazida a vigência do ente vigente: sua ordenação e estatuto, a lei do ente mesmo. o enunciado é o que se tomou aberto no dizer. o dizer denomina-se em grego aÉyet v; a vigência enunciada é o aÓyoÇ. desta forma, pelience à essência do ente vigente, porque o homem existe nele, o ser enunciado de uma maneira ou de outra. aqui é importante atentar desde o princípio para isso, que ainda será visto mais exatamente a partir de algumas comprovações. na concepção elementar e originária desta relação, o que é enunciado já está necessariamente no interior da cpúcrtç. de outra forma, ele não poderia ser enunciado a panir dela. À cpúcrtç, à vigência do ente na totalidade, pertence este aóyoÇ.

para nós, a questão é: o que leva a termo este aÉyetv, este enunciar? o que acontece no aÓyoÇ? trata-se apenas do fato de o que o ente na totalidade é, ser trazido à palavra, ser formulado, vir à fala? vir à fala: o que é isto? o que arcaicamente, e não somente na filosofia posterior, mas logo que filosofaram, ou seja, desde o fundamento de sua compreensão do ser-aí, os gregos fixaram como a função fundamental do aÉyetv, do "trazer à fala", retiramos com uma clareza e distinção irrefutáveis a partir do conceito contrário, que já os antigos filósofos contrapunham ao aÉyet v. qual é o contrá. rio de aÉyel v? o "não deixar vir à fala"? como o entendiam os gregos? como o entendiam especificamente aqueles gregos que utilizam a palavra aqui realçada: cpúcrtç? quanto a esta pergunta, recebemos um esclarecimento de uma sentença do já citado heráclito: ó ãvas, o~ 'to ~av'telov Écrn 'to Év .1eacpolç, oÜ'te aÉyet o'Ü'te kpÚ1t'tet áÃÃà crt]~aívet.1 ("o senhor, cujo oráculo está em delfos, não enuncia, nem esconde, mas dá um sinal (signi-fica).") aqui fica claro: o conceito contrário ao ÃÉyet v, ao "trazer à fala",

i. h. dicls, idem, [ragm. 93.

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13.14.

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martin heidegger

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é kpÚ1t'tet v, o velar e o manter no velamento. daí segue-se necessariamente: a flmção fundamental do À.Éyet v é retirar o vigente do velamento. o conceito contrário ao ÂÉyetv é o encobrir; o conceito fundamental e a significação fundamental de ÂÉyet v é "o retirar do velamento", o desencobrir. o desencobrir, o "retirar do velamento", é o acontecimen.to que se dá no ÂÓyo,;. no ÂÓyo,;, o viger do ente é descoberto, é aberto.

para estes níveis elementarmente originários do pensamento, é o próprio Âóyo,; que é aberto; ele é na própria vigência. no entanto, se esta vigência é arrancada do velamento no ÂÓy0';, então é preciso que ela mesma busque como que se esconder. tal como fica claro a partir de um outro fragmento, o próprio heráclito nos diz ainda mais, sem apresentar esta conexão de modo expresso. ele nos diz por que, afinal, a <púcn,; é desencoberta e arrancada do velamento expressamente no ÂÉyet v. no conjunto dos fragmentos encontramos uma sentença nua e crua, que até hoje nunca foi compreendida e concebida em sua profundidade efetiva: <púcrt,; ... kpÚ1t'tecrsm <ptÂe1.2 ("a vigência das coisas possui em si mesma a tendência para se esconder.") os senhores podem ver ao mesmo tempo a conexão mais interna entre velamento e <púcrt,;, assim como entre <púcrt,; e ÂÓyo,; - tomando este ÂÓy0'; como o desencobrir.

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c) aóyo,; colijo o dizer do desvelado (<xi.. l1elÉcx). <xi.. l1elncx (verdade) como a presa, que precisa ser arrancada ao velamento

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o que significa propriamente o fato de o ÂÓyo,; ser desencobridor, retiramos de umaoutra·sentença de heráclito: lw<ppovelv <xpe'tt] jleytcr'tll, kcxl cro<pt ii <xi.. llsÉcx ÀÉyet v kcxl 1tolÚ v kcx't<x <púcn v e1tcxtov'tcx,;.3 ("o concentrar-se dos sentidos {em direção à totalidade} é o que há demais elevado dentre todas as coisas, de cujo homem é senhor; e a sabedoria {a concentração dos sentidos} 4

é dizer e fazer o desvelado enquanto desvelado em consonância com a vigência das coisas, auscultando-as.") assim, os senhores

2.idem, fragm. 123. 3.idem, fragm. 112. 4.na tradução que heideggcr apresenta aqui pard o fragmento 112 de heráelilo, o termo

o"w<jlpov€\ v ganha como correlato em alemão a expressão sich-besill1lell ali! esta expressão é vernaeularmente apresentada como um sinônimo de lembrar-se, memorizar. sich-besimlell,

porém, também diz refletir, meditar junto a si mesmo. a nossa escolha pelo "concentrar-se dos sentidos" aponta para uma tentativa de também descobrir o que há de originário na palavra: um movimento de todo o ser-ai em direção ao que se abre. o qlle é perfeito no interior deste movimento, a besollllellheit, aparece entre parênteses como "concentração dos sentidos". (n.t.)

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zer de fonna alguma através da mera correspondência entre esta palavra e nossa expressão vernacular. nosso vocábulo "verdade" tem o mesmo caráter que as palavras "beleza", "plenitude" e outras do gênero. a palavra grega à- Àf}8eta, no entanto, coltesponde aos termos "i-nocente" (un-schuld), "in-finito" (un-endlich): o que não é "culpado", o que não é finito. analogamente, àÀ'll8€a designa o que não está velado. as gregos compreendem, portanto, ao mesmo tempo algo negativo em meio à essência mais interna da verdade, o que corresponde ao prefixo "in" (1in). a a- é denominado, na linguagem científica, a-privativo. ele expressa o fato de que falta algo à palavra na qual ele se inscreve. na verdade, o ente é arrancado ao velamento. a verdade é entendida pelos gregos como uma presa, que precisa ser arrancada ao velamento em uma discussão, na qual a <púcrtç temjustamente a tendência a esconder-se. a verdade é a discussão mais intrínseca à essência humana com a totalidade do ente mesmo. esta discussão não tem nada a ver com a ocupação em demonstrar sentenças, com esta ati vidade que se empreende em uma escrivaninha.

para a cro<pía, a <púcrtç está em correlação com o ÀÓyoç, e a àÀf}8eta, com a verdade no sentido de desencobrimento. esta significação originária da expressão grega não é tão inofensiva quanto foi considerada até agora e quanto se crê que se tem o direito de prosseguir considerando. a verdade mesma é uma presa, ela não está simplesmente aí. ao contrário, como um desencobrir, ela requer por fim a inserção do ser humano como um todo. a verdade está conjuntamente enraizada no destino do ser-aí. ela mesma é algo velado,-c, comq. tal, o mais elevado. por isso, diz heráclito: àpiloví'll à<pavijç <pavep~ç kpeÍ 't'tcov.5 ("mais elevada e poderosa do que a que se encontra aberta à luz do dia é a harmonia que não se mostra {a harmonia velada}." com isto está dito: o que a <púcrtç esconde é exatamenteó' seu próprio, o que não se encontra à luz do dia. o fato de no tempo posterior, o tempo que vai até aristóteles, a função do "aóyoç ter sido cada vez mais clara e distintamente apresentada como a do àrco<paívecr8at deve-se apenas a isto. uma tal compreensão indica: o Àóyoç tem a tarefa de impelir ao mostrar-se e de trazer à abertura o à<pavlÍç, o que se esconde e não se mostra, o que é no não se mostrar.

a conceito grego de verdade supramencionado abre-nos uma conexão interna entre a vigência do ente, seu velamento e o homem; o homem que, como tal e tendo em vista que existe, arranca, no ÀÓyoç, a <púcrtç, que tende a esconder-se, ao velamento, e, assim, traz o ente até sua verdade.

5. idem, fragm. 54.

não foi para traduzir melhor e mais literalmente uma palavra grega que apontei para esta significação originária do conceito grego de verdade em ser e

tempo. umjoguete artificial com etimologias e uma construção sobre o solo de tais etimologias ainda estão mais distantes de meu intuito. ao contrário, o que está em questão não é nada menos do que uma tentativa pela primeira vez de, através da interpretação elementar do conceito antigo de verdade, tornar enfim visível a posição fundamental do homem antigo quanto à vigência do ente (a <púcrtç) e sua verdade (e, com isso, conquistar uma intelecção da essência da verdade filosófica).

justamente por causa de sua "negatividade", esta palavra antiga para verdade é uma palavra originária. ela 'toma manifesto que a verdade é um destino da finitude do homem e, para a filosofia antiga, não tem nada a ver com a sobriedade e a indiferença de proposições demonstradas. esta palavra antiga para a verdade, contudo, é tão arcaica quanto a própria filosofia. ela não precisa ser e não pode ser mais arcaica, mas também não mais nova, porque somente com o filosofar cresce a compreensão da verdade que se expressa nesta palavra filosófica originária. a surgimento supostamente posterior da palavra não é nenhuma objeção contra sua significação fundamental, senão o contrário: ele indica sua comum-pertencência mais interna com a experiência

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podem ver claramente a ligação interna entre o conceito contrário kpÚ1t'tel v e o que o ÂÓyo,; diz, <xÀllsÉcx, o desvelado. costumamos traduzir esta palavra com a nossa pálida expressão "o verdadeiro". o que há de mais elevado entre todas as coisas, de cujo homem é senhor, é dizer o desvelado, e, juntamente com isso, agir kcx't<x <púcrtv; isto é, inserir-se e apresentar-se no interior da vigência total e do destino do mundo em geral. o agir kcx'tcx <púcrt v efetiva-se de uma tal maneira que aquele que se exprime deste modo direciona a escuta para as coisas. somente agora conquistamos a conexão mais intrínseca, na qual se encontra, no interior da filosofia antiga, a palavra originária "<púcnr;": <púcn,;, a vigência d~ vigente; ÀÓyo,;, a palavra que retira esta vigência do velamento. tudo o que acontece nesta palavra é coisa da cro<picx: ou seja, dos filósofos. em outras palavras, a filosofia é a concentração dos sentidos em direção à vigência do ente, à <púcn,;, a fim de enunciá-ia no ÀÓy0';.

precisamos manter presente para nós esta conexão que tomei agora evidente: antes de tudo aquela conexão entre a <púcn,; e o ÀÓy0';. só assim poderemos entender por que, em um tempo posterior, aristóteles,justamente onde tece comentários sobre os filósofos mais antigos entre os gregos e fala deles como seus predecessores, denomina-os os <pucnol,óyol. os <pucnoÀÓyol, porém, não são nem "fisiólogos" no sentido atual da fisiologia, como uma ciência especial da biologia geral, que em contraposição à morfologia trata dos processos vitais, nem são filósofos da natureza. <l'>ucnoÀóyot é muito mais o título genuíno e originariamente próprio para a pergunta pelo ente na totalidade, o título para aqueles que se exprimem quanto à <púcn,;, quanto à vigência do ente na totalidade: que a trazem à expressão, ao ser-desencoberto (à verdade).

desta forma, vemos o que <púcn,; inicialmente significa em sua ligação com o título deveras peculiar e ainda problemático 'tcx jle'tcx 'tcx <pucnkcx. nós o vemos sem estarmos agora suficientemente preparados para delimitar exatamente o que se encontra neste título. a significação de <púcn,; está agora clarificada. ao mesmo tempo, conquistamos uma intelecção que não é menos decisiva para tudo o que segue: a intelecção do contexto no qual, para os próprios gregos, a <púcn,; se insere.

de início, entretanto, poder-se-ia tomar como óbvio que o exprimir-se quanto ao ente deve ser verdadeiro e que o concentrar-se dos sentidos deve se manter na verdade. mas isso não quer dizer, de modo nenhum, que o exprimir-se e a proposição sobre a <púcnç devem ser verdadeiros e não falsos. ao contrário, vale conceber o que diz aqui o termo "verdade" e como a verdade da <púcrt,; é entendida primevam,ente pelos gregos. só entenderemos isso se nos aproximarmos da palavra grega <x 'a. ijeletcx; o que não podemos fa-

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fundamental da cpúcrtç como tal.

d) as duas significações de cpÚatç

mantenhamos presente esta significação originária de verdade (o de-sencobrimento do ente vigente, <púcrtç) e busquemos agora apreender ainda mais incisivamente a significação de cpúcrtç. nós perseguiremos a história da significação fundamental desta palavra, para então compreendermos o que inicialmente diz <pucrtká no título lle'rà 'tà <pucrtká.

a) a ambivalência do significado/illldamental de <púcrtç: o vigente

em sua vigência. o

primeiro significado de <púcrtç: os <púcret ona (em contraposição aos 't€xvn ov'ta) como um conceito local

a significado fundamental de <púcrtç já é em si ambivalente, sem que de início esta ambivalência venha à tona com clareza. esta ambivalência, porém, faz-se notar rapidamente. <l>úcrtç, o vigente, não diz apenas o vigente mesmo, senão o vigente em sua vigência ou a vigência do vigente. apesar disto, no entanto, em conseqüência d~ instigante discussão com o vigente, este se abre em seu caráter não decidido. exatamente isto, que para a expe-

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riência imediata é o vigente na superabundância de seu vigor, reivindica para si o nome <púcnç. isto é, porém, a abóbada celeste, são os astros, é o mar, a terra, o que constantemente ameaça os homens; ao mesmo tempo, contudo, novamente, também o que protege, fomenta, suporta e alimenta, o que desde si vige de modo assim ameaçador e basilar, sem' a interferência do homem. <t>úcnç, a natureza, já é compreendida agora em um sentido estreito, mas, entretanto, ainda mais amplo e originário do que o conceito de natureza, por exemplo, nas modernas ciências naturais. <t>úcnç visa agora ao que desde si sempre já se encontra simplesmente dado e sempre está se formando e esvaecendo por si mesmo, em contraposição ante os feitos humanos, ante o que emana da 'texvti, da capacidade de trazer ao acabamento, da invenção e da produção. neste significado ao mesmo tempo acentuado e es~ treito, <púcrtç, o vigente, designa agora uma região excepcional do ente, um ente entre outros. os <pÚcret ov'tu são contrapostos ao que a 'texvll é, ao que surge por sobre a base de uil1 trazer ao acabamento, de uma produção e de uma meditação própria ao homem. mas neste sentido estreito - que ainda é, de qualquer maneira, suficientemente amplo -, a natureza é aquilo que para os gregos nem surge nem perece. e uma vez mais diz heráclito: lcÓcr~ov 'tóv8~ 'tov uinov émáv'tcov, o\l'te nç 8eÚÍv o\l'te àv8pómcov bwttlcrev, &j...).' l]v àd lcul ecr'ttv lcul ecr'tat nup áetÇcoov, án'tó~evov ~le'tpu lcul ànocr~evvú~evov ~e'tpu.6 "este cosmos (deixo a palavra intencionalmente sem tradução) é sempre o mesmo através de todas as coisas, nenhum deus o criou, nenhum dos homens. ao contrário, esta <púcrtç foi sempre, é sempre e será sempre um fogo sempi-ardente, que recrudesce segundo a medida e se extingue segundo a medida."

p) a segunda significação de <púcrtç: o vigente como tal; como a essência e a lei interna da coisa fnesma

na expressão <púcnç, contudo, está co-entendido de modo igualmente originário e essencial a vigência como tal; a vigência que deixa todo e qual-quer vigente ser o que é. <t>úcrtç não visa mais agora a uma região entre ou-tras, ou mesmo uma região do ente, mas à natureza do ente. natureza aqui significa a essência mais intrínseca, tal como quando dizemos "a natureza da coisa", e com isso não temos em mente apenas a natureza das coisas naturais, mas a natureza de todo e qualquer ente. costumamos falar sobre a natureza do espírito, da alma, sobre a natureza da obra de arte, sobre a natureza

6. idem, fragm. 30 .

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da coisa em questão. neste momento, <púcrtç não significa o próprio vigente, mas a sua vigência como tal, a essência, a lei interna de uma coisa.

o decisivo, então, não é o fato de um destes dois conceitos de <púcrtç suplantar o outro, mas o fato de eles se manterem um ao lado do outro. melhor ainda: eles não subsistem apenas um ao lado do outro. ao contrário, percebe-se cada vez mais claramente que as duas significações, que se estabelecem desde o começo - mesmo que indistintamente _ na <púcrtç, exprimem algo igualmente essencial, percebe-se que elas persistem no questionar que pergunta fundamentalmente pela vigência do ente na totalidade: que elas permanecem na filosofia.

não podemos acompanhar aqui mais de perto o processo histórico que conduz, na filosofia antiga, a uma exposição cada vez mais incisiva destas duas significações fundamentais, para assim fixar duas direções do questionar que são em si comum-pertencentes e que se requisitam incessantemente. só posso aludir ao fato de terem sido necessários alguns séculos para a formação destes dois conceitos; e isto junto a um povo que trazia no coração a paixão pelo filosofar. nós, bárbaros, ao contrário, achamos que tais coisas acontecem da noite para o dia.

§ 9. as duas significações de <pÚotç em aristóteles. a pergunta pelo ente na totalidade e a pergunta pela essencialidade (pelo ser) do ente como o duplo direcionamento da pergunta da npw'ttl <ptÀocro<ptu

lançaremos apenas um rápido olhar sobre aquele estágio do filosofar antigo, no qual este alcança o seu ponto mais elevado: sobre a situação em que se encontra o problema em aristóteles. as mudanças e os destinos do homem grego marcam os primórdios da filosofia até aristóteles. deixando tudo isto no plano de fundo, visamos apenas à subsistência nua e crua do problema.

já aludi aqui: a vigência do vigente - e este mesmo - abre-se assim que ele é arrancado ao velamento, como o ente. este ente impõe-se em toda a sua multiplicidade e plenitude, trazendo a investigação, que se insere em setores e regiões do ente, até si. isto é: em univocidade com a pergunta pela <púcrtç na totalidade já despertam determinadas orientações da pergunta; caminhos determinados do saber são percorridos; a partir do filosofar crescem filosofias singulares, que posteriormente denominamos ciências. ciências são tipos e modos do filosofar; a filosofia, inversamente, não é uma ciência. a palavra grega para ciência é emcr't1Í~t). ttücr'tucr8at diz: possuir ascensão sobre uma coisa, ser versado nela. €mcr't~~tl significa, então, dirigir-se para junto de uma coisa, ser versado nela, dominá-ia, penetrar incisivamente o

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seu conteúdo objetivo. somente em arisióteles esta palavra surge com o significado determinado de "ciência" em sentido amplo; isto é, com o significado específico para a investigação teorética nas ciências. nascem ciências que se ligam a regiões diversas: ao arco celeste, às plantas e animais e coisas do gênero. a e7ttcr't1]fl t], que em um sentido qualquer se liga à epÚo'lç, é a e7ttcr'tlÍfl t] epuo'lk1] - fisica que ainda não possui a significação estreita da fisica atual, mas que compreende também o todo das disciplinas biológicas. a erttcr't1]flt] epuo'lk1] não é apenas uma coletânea de fatos das diversas regiões. do mesmo modo e mais originariamente, ela é um concentrar-se na normatividade interna de toda esta região mesma. pergunta-se o que é a própria vida, o que é a alma, o vir-a-ser e o perecer (yÉveo'lÇ e ep80pá), o que é o acontecimento como tal, o que é o movimento, o lugar, o tempo, o que é o vazio, no qual o que está em movimento se movimenta, o que é na totalidade este ente que movimenta a si mesmo e o que é o primeiro motor. tudo isto cai sob a erttcr'tlÍllll epucrtk1]; ou seja, ainda não há nenhuma forte estruturação de quaisquer ciências singulares ede uma filosofia da natureza que lhes esteja atrelada. esta erttcr't1]flt] epucrtk1] tem por objeto tudo o que pertence à epúcrtç segundo este sentido e que os gregos designam como 'tà epuo'lká. a própria' pergunta pela epúcru; nestas ciências aponta para a pergunta mais elevada, para a' pergunta pelo primeiro molor, pelo que a totalidade da epúcrtç é em si mesma como totalidade. aristóteles designa este derradeiramente determinante nos epúcret ov'ta como o eúov, como o divino; e isto sem ainda ligar-se a uma detenninada concepção religiosa. portanto, pergunta-sepelo ente na totalidade, e, por fim, pelo divino. a e7ttcr't1]ilt] epuo'lk1] está relacionada com a colocação desta pergunta. nós herdamos do próprio aristóteles uma preleção sobre esta fisica, <l>ucrtkti àkpÓao'lç; ou, como diríamos hoje, mesmo que de maneira imprecisa, sobre a filosofia da natureza.

como fica agora a segunda significação de epúcrtç: epúcrtç no sentido de essência? a vigência deste vigente pode ser apreendida como o que determina este vigente enquanto o ente, como o que transfonna o ente em um ente. em grego, o ente é denominado através da palavra ov; aquilo que transfonna o ente em um ente é a essência do ente e seu ser. os gregos designam esta essência e este ser como oucría. É isto que significa ainda para aristóteles o termo oucría, a essência do ente: epúcrtç. com isto, temos as duas significações de epÚo'lç, tal como elas se encontram na filosofia aristotélica. em primeiro lugar, epúcrtç enquanto o ente na totalidade; em segundo lugar, epÚo'lç no sentido de oucría, da essencialidade do ente como tal. o decisivo é: estas duas direções do questionamento, que ganham vida no interior da significação una de eptcrtç, são'expressamente reunidas por aristó-

teles. não há duas disciplinas diversas. ao contrário, aristóteles designa tanto a pergunta pelo ente na totalidade quanto a pergunta pelo que o ser do ente, sua essencia, sua natureza é, como npw'tt] eptaocroepía, como filosofia primeira. este questionamento é o filosofar em primeira linha, o filosofar próprio. o filosofar próprio consiste na pergunta pela epúcrtç nesta significação dupla: a pergunta pelo ente na totalidade, e, em unidade com ela, a pergunta pelo ser. É assim que as coisas se encontram em aristóteles. no entanto, aristóteles não nos diz ao mesmo tempo nada sobre o modo como vê estas duas direções da questão em sua unidade. por conseguinte, nada nos foi legado. ele não determina em que medida justamente esta questão direcionada de modo duplo perfaz o filosofar próprio. esta pergunta está aberta e está aberta até hoje. ou melhor: hoje não chega nem mesmo a ser colocada.

retrospectivamente, apresentemos uma síntese do que vimos. nós nos achamos diante da pergunta pelo que nos dá o direito de requerer o termo "metafisica" como uma designação própria para o filosofar, se abdicamos concomitantemente da metafisica no sentido tradicional, ou seja, da metafisica como uma disciplina da filosofia. procuramos justificar inicialmente a legitimidade e o modo de utilização do teimo "metafisica" para nossas con-siderações através de uma curta orientação quanto à história desta expressão. esta orientação reconduz-nos para o interior da filosofia antiga e fornece-nos ao mesmo tempo a possibilidade de vislumbrar os primórdios da própria filosofia ocidental na tradição em que nos encontramos. em conexão com o esclarecimento da expressão principal do título 'tà lle'tà 'tà qlucrtká, vimos a epúcrtç em sua ligação com o aóyoÇ. a vigência do ente na totalidade possui em si mesma o ímpeto para esconder-se. conseqüentemente, está associada a esta vigência uma discussão característica com ela; uma discussão na qual a epÚo'lç é desvelada. agora, deixaremos de lado provisoriamente esta conexão entre a epúmç e a verdade; isto é, entre a epúcrtç e o desvelamento, tal como este último se expressa no aóyoÇ. mais tarde precisaremos retomar este ponto. o que nos interessa por enquanto é apenas o desenvolvimento dos dois significados fundamentais de epÚo'lç, do vigente em sua yigência. no termo epÚo'lç apresenta-se em primeiro lugar o próprio vigente, o ente; e, em segundo lugar, o ente tomado em sua vigência: ou seja, em seu ser. a partir de uma ligação com estes dois direcionamentos primordiais, desenvolve-se a expressão epÚo'lç nas duas significações fundamentais: epÚo'lç como epÚcrei ov'ta, o ente tal como ele se toma acessível na fisica, na investigação da natureza em sentido estrito; e epÚo'lç em sua segunda significação: epúcrtç como natureza - tal como ainda hoje utilizamos a expressão, quando falamos sobre a natureza da coisa, sobre a essência da

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coisa. <t>úcrtç no sentido do que perfaz o ser e a essência de um ente é a ouoía. a cisão entre estas duas significações de <púcrtç - o ente mesmo e o ser do ente -, a sua história e o seu desenvolvimento alcançam seu ponto mais elevado com aristóteles. aristóteles concebe em l\nidade a pergunta pelos <pÚoet ov'ta na totalidade (<púcrtç no primeiro sentido) e a pergunta pela ouoía, pelo ser do ente (<púcrtç no segundo sentido). através daí designa este questionar como n:pcí:l'tt] <ptÃooo<pía, prima philosophia, filosofia primeira, filosofia no sentido próprio. o filosofar próprio pergunta pela <púcrtç nesta dupla significação, pelo ente mesmo e pelo ser. conquanto a filosofia pergunte pelo ente mesmo, ela não transforma uma coisa qualquer em objeto, mas direciona este perguntar para o ente na totalidade. uma vez que o caráter fundamental deste ente e de seu ser é o movimento, a pergunta originária retoma ao primeiro motor, ao mais derradeiro e extremo, que é ao mesmo tempo designado como o súov, como o divino - sem que se imiscua aí um determinado significado religioso. É este o estado das coisas na filosofia aristotélica. o filosofar próprio é para aristóteles este duplo perguntar: o perguntar pelo ov kasó",ou e pelo 'tlf.lhíl'ta'tov yÉvoç, pelo ente em geral (pelo ser) e pelo próprio ente. porém, como este questionar não foi mais amplamente discutido por ele em sua conexão interna, não encontramos em suas tradições nada que torne possível vislumbrar a aparência de uma tal problemática unívoca que, neste sentido duplo, transforma a <puotç em objeto; assim como não encontramos nada acerca do modo, segundo o qual esta problemática é fundamentada a partir da essência da própria filosofia. ---'.

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tamento destas regiões da filosofia toma-se agora uma ciência, uma em()t~1l t] no sentido aristotélico. surge a bncrt'Í]ll ti i...oytk~, logo em seguida a e7n()t'Í]iltl

epu()tk'Í], até que a e7n()t'Í]llt] tj8tk~ dá forma à conclusão. assim, aparecem as três disciplinas escolares da filosofia que passa a ser concebida de modo escolar:

lógica, fisica e ética. este processo de formação escolar, e, com isto, de declínio do próprio filosofar já se instaura no tempo de platào em sua própria academia.

na tradição antiga mesma, há relatos provenientes do helenismo de que esta cisão das disciplinas tinha se tomado possível através do próprio pia tão e de que ela

tinha sido fundamentada pela primeira vez por um de seus alunos e diretor da academia, por xenócrateso esta divisão não se manteve apenas na academia de

platão através dos séculos, ela transpôs-se para o interior da escola de aristóteles, para o interior da filosofia peripatética, e foi assumida de uma e de

ou~ra pelos estóicos. a prova disto encontramos em sexto empírico: 1t1...1]v oútüt ili:v el...l...l1twç àvwtpáep8m ookot>()tv, ~vtei...É()tepov 01: 1tapà toÚtouç

oí tl1tÓvteÇ tj; epll...o()oepíaç to ilÉv n dvm epu()tkov to 01: tj8lkov to oi: i...oytkÓv: <Í:>v ouvállel ili:v i1l...át(()v e()tl. v àpxtlyóç, 1tepl. 1tol...mv ill:v

epu()tl(wv [1tepl.] 1toÂ,mv di: tj8lkrov ouk oÂ,íy(()v de Â,oylkwv olaÂ,ex8eÍç: pt]tóto:to: 01: oí m:p1 tov ::::evokpátt]v ka1 oí áno tot> nepmátou etl oi: aí à1to

trt moãç exovtext 'áí()de trt dlmpÉ()e(()ç.7 de uma forma mais plena, os filósofos que afirmam ser a tarefa da filosofia tratar do que diz respeito à fisica, à ética e à lógica criaram uma divisão; uma diferenciação que foi prefigurada por platão, que, como condutor e iniciador, tratou em muito sobre a epu()tká, assim como

s66re a tj8lká, e não menos sobre a Â,0ylká; expressamente, esta diferenciação foi introduzi da pela primeira vez pelos 'lue estavam em tomo dexenócrates e

pelos alunos de aristóteles no peripátos; ulteriormen-

te, pelos estóicos.") .

para nós, porém, não é suficiente tomar simplesmente conhecimento deste fato. o decisivo é que esta articulação escolar traça desde o princípio para o tempo subseqüente o modo de compreensão da filosofia e da pergunta filosófica, de tal forma que a filosofia no tempo pós-aristotélico - abstraindo-se de algumas poucas exceções - se toma uma questão de escola e de aprendizado. o que emerge junto ao perguntar filosófico, ou o que é conhecido a partir da antigüidade, é automaticamente subsumido em uma destas disciplinas e considerado segundo o esquema dos métodos de ques- . tionamento e demonstração.

7. sexto empírico. adverslis mathematicos. org. l. bekker. berlim, 1842, livro vii, § 16 .

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§ 11. a conversão da significação técnica de iletá na palavra "metafísica" em uma significação de conteúdo

a) a significação técnica de iletá: após (post). metafisica como termo técnico para um impasse ante a 1tp<Í:>tt] eplÂ,o()oepía

nestes séculos de declínio da filosofia antiga, no tempo que vai de 300 a.c. até o século i a.c., os escritos de aristóteles praticamente desapareceram. só pouca coisa foi publicada por ele mesmo; o resto se conservou apenas sob a forma de manuscritos, esboços de preleções e anexos. tudo exatamente como surgiu. À medida que, no primeiro século antes de cristo, os esforços em tomo deste material conjunto da filosofia aristotélica se iniciaram e se começou a querer tomá-i o acessível para a escola, as pessoas se viram diante da tarefa de reunir e ordenar em conjunto a parte subsistente dos tratados aristotélicos. neste momento era óbvio que o material em conjunto deveria ser visto sob o horizonte do que se encontrava à disposição, isto é, sob o fio condutor das três disciplinas: lógica, física e ética.

os conceitos fundamentais da metafisica: mundo - finitude - solidão 43

cimento e chegou mesmo a ser expresso. o que foi expresso é considerado isoladamente e transformado em resultado palpável, em algo passível de aplicação. a partir daí, qualquer um é capaz de aprendê-io e repeti-io. tudo o que é legado pela filosofia platônica e aristotélica, a riqueza de tratados e diálogos, é desenraizado e não é mais concebido radicalmente; e isto por mais que estejamos agora diante de uma rica presença da filosofia, com a qual os que estão por vir e os epígonos terão de se haver de alguma forma. as filosofias platônica e aristotélica sucumbiram ao destino, do qual nenhuma filosofia escapa: elas se tomaram filosofias escolares. permanece, porém, para as escolas que estão por vir, a tarefà de, uma vez que a radicalidade deste filosofar se perdeu, reunir de alguma maneira o material esparso e divergente, de modo que a filosofia venha a ser acessível para qualquer um e possa ser repetida por qualquer um. tudo o que um dia cresceu a partir dos mais diversos questionamentos - externamente sem qualquer ligação, mas tanto mais enraizados internamente - é agora desarraigado e composto em matérias segundo pontos de vista docentes e discentes. a conexão radical é suprimida através da ordenação que se perfaz no interior das matérias e das disciplinas escolares. a pergunta é: segundo que pontos de vista este rico material, que não é mais tomado em seu ceme e em sua vitalidade, é ordenado?

o ponto de vista desta ordenação escolar dá-se sem mais a partir elos temas centrais que já conhecemos. vimos que a filosofia se ocupa justamente com a <púmç. em meio ao esclarecimento da noção ele <púmç no sentielo elo subsistente-por-si-mesmo e elo que cresce e vige a partir de si mesmo, contratamos esta noção ante o ente que, em razão da produção, é através elo homem. a partir daí, conquistamos o conceito contrário à <p'Úcrtç: o conceito que abarca tudo o que diz respeito ao fazer e ao não-fazer humanos, ao homem em seu f~er, em sua postura e em sua atitude, nisto que os_gregos designam como tpoç - de onde vem a nossa expressão "ética". tpoç visa à atitude do homem, ao homem em sua atitude, em seu portar-se como um ente diverso da natureza em sentido estrito, da <p'Úmc;. com isto, temos duas regiões fundamentais que se mostram como temas centrais para a nossa consideração. uma vez que <p'Úcrtç e ~oç são tratados na filosofia, eles são expressamente manifestos e discutidos no Â.Óyoç. como o Â.Óyoç, o falar sobre as coisas, é o que há de mais primordial para tudo o que possui o caráter doutrinário, a consideração do Â.Óyoç volta ao primeiro plano.

ao tentannos enquadrar a presença conjunta da filosofia antiga em dis-ciplinas escolares, tomamos ao mesmo tempo apreensível que o modo de conhecimento não é mais aqui um filosqfar vital que se constrói a partir dos próprios problemas, mas que, ao contrário, o conhecimento é agora tratado como algo do gênero das regiões do saber nas ciências. o modo de tra-

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§ 10. a formação das disciplinas escolares -lógica, físicá, ética -como a decadência do filosofar próprio

o que aristóteles empreendeu na direção da própria filosofia foi-nos legado em preleções e tratados singulares. neles sempre encontramos novos recomeços e novas iniciati vas do filosofar próprio, mas nunca um sistema de aristóteles, como só posteriormente se forjou; da mesma forma como não há nos diálogos de platào um sistema da filosofia platônica.

aristóteles morreu em 322/321 a.c. entretanto, a filosofia já havia se tornado há muito a vítima da ambigüidade. com aristóteles, a filosofia antiga alcançou seu ponto ,mais elevado, com ele começa o seu próprio des- . censo e declínio. em platào e aristóteles, a formação escolar toma-se inevitável. como ela se efetiva? o questionamento vital perece. o próprio ser-tomado-por que pertence ao questionamento filosófico fica de fora. tudo isto com o agravante de'que o tercsido-tomado-por alcançou o conhe-

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para os que r

euniram os es

critos aristotélicos, apresentava-se a tarefa de dividir o conjunto subsistente do material legado nestas três disciplinas; disciplinas que, por sua vez, não foram jamais colocadas em questão.

se nos colocarmos no lugar destes coletores, então teremos diante de nós o material da filosofia aristotélica e as três disciplinas. agora, porém, também se encontravam entre os tratados aristotélicos aqueles nos quais a ristóteles vez por outra afirma que eles representavam a 1tp<Í:>'t't] eplÂ,o()oepía, o filosofar próprio: aqueles que perguntam pelo ente em geral e pelo ente propriamente dito. os coletores dos escritos aristotélicos não podiam inserir estes tratados em uma das três disciplinas, nas quais dividiam a filosofia escolar. em virtude da subsistência fixa das três disciplinas da filosofia, as pessoas se viram diante da impossibilidade de acolher o que aristóteles de-

signa como sendo propriamente a filosofia. no que conceme à compreensão aristotélica da própria filosofia, surgiu o impasse de que ela não pertencia a nenhuma das três disciplinas. por outro lado, tampouco se podia deixar de lado justamente o que é designado por aristóteles como sendo propriamente a filosofia. com isto, surgiu a pergunta: o que fazer com a filosofia propriamente dita no esquema das três disciplinas - um esquema que a escola não estava nem em condições de ampliar nei]j de alterar? É preciso que tenhamos absoluta clareza em relação a esta situação: o essencial da filosofia não se deixava subsumir. diante do filosofar, a filosofia escolar cai em um impasse.

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para além da geometria euclidiana. o barão von stein denominou metapolíticos as pessoas que constroem a

política prática sobre sistemas filosóficos. fala-se até mesmo de uma

metaaspirina, que ultrapassa a aspirina habitual em seu efeito.s roux fala da

metaestrutura da albumina. a metafisica mesma, porém, se insere como o título de uma disciplina entre outras. a significação técnica primeva, que deveria indicar a posição da 1tp<Ínt] q>tÀocroq>ía incompreendida, transformou-se em uma característica de conteúdo do próprio filosofar. nesta significação, ela é o título de uma disciplina que é coordenada às restantes.

para nós, a origem da palavra "metafisica" e sua história só são impor-tantes inicialmente no que conceme a este fato absolutamente essencial de que precisamos fixar a transformação da significação técnica para a signifi-cação de conteúdo e manter na memória a tese co-ligada com esta trans-formação: a tese da ordenação da metafisica, concebida segundo esta significação de conteúdo, na seqüência das disciplinas escolares. quanto à história desta disciplina mesma, não estamos em condições de apresentá-ia aqui em detalhes. sobre isto teríamos coisas demais a relatar. e, além disto, tais coisas pemlanecem no fundo inúteis, enquanto não as tivermos entendido a partir de uma problemática vital da metafisica.

§ 12. as inconveniências inerentes ao conceito tradicional de

metafisica

umaoutracilie'stão nos ocupa: com que direito, e isto diz ao mesmo tempo segundo que significação, fixamos o título "metafisica", se apesar de tudo a negamos como uma disciplina escolar? gostaríamos de conquistar a resposta a esta pergunta através da história da palavra. o que esta história trouxe como resultado? ela colocou-nos em contato com duas significações: a primordial, técnica, e a ulterior, de conteúdo. claramente, a primeira significação não pode continuar marcando a nossa ocupação. ao dizennos que a filosofia é um questionar metafisico, tomamos o tenno "metafisica" em sua segunda significação, em sua significação de conteúdo. desta feita, tomamos a metafisica como um título para a 1tp<Íyct] q>tÀocroq>ía; e isto não apenas como mero título, mas de um tal modo que esta palavra passa a expressar o que é o filosofar propriamente dito. assim, tudo parece estar na

24.cf. j. wackemagcl. voriesuligell, iiber sylltax mil besonder

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46 martin heidegger

só resta uma saída para este impasse: examinar atentamente se a filosofia autêntica não possui uma relação qualquer com o que é conhecido de modo disciplinar. de fato. nestes ensaios, encontram-se em parte perguntas similares às da preleção que conforma a fundamentação da "fisica". É perceptível que subsiste uma certa familiaridade entre as questões que aristóteles trata na "filosofia primeira" e as questões que a filosofia escolar discute na "fisica"; com a diferença, contudo, de que o que é tratado por aristóteles na "filosofia primeira" é muito mais amplo e fundamental. assim, não subsiste qualquer possibilidade de ordená-ia simplesmente no interior da "fisica", mas sim apenas a possibilidade de colocá-ia ao lado da, por detrás da "fisica": de ordená-ia segundo a "fisica". " me'tá significa em grego "por detrás de", "em seguida a". com isto, colocou-se a filosofia autêntica por detrás da "fisica": jle"tà "tà cpuq"tl<á. a filosofia autêntica é classificada de ora avante sob o título "tà jle"tà "tà cpuq"tl<á. o essencial aqui é que nos coloquemos diante da situação fatal: através desta designação, não se caracteriza a filosofia propriamente dita segundo o conteúdo, segundo sua pro-blemática particular, mas segundo um título que deveria indicar sua posição na ordenação extrínseca dos escritos: "tà jle1:à 1:à cpuq"tl<á. o que denominamos "metafisica" é uma expressão que emerge de uma perplexidade, um termo para um impasse, um termo puramente técnico que, por si só, quanto ao seu conteúdo, ainda não diz absolutamente nacla. a npánt] cpt"'ocjocpíu é "tà jle1:à "tà cpuq"tl<á.

esta ordenação dos escritos aristotélicos manteve-se através de tocla a tradição e'tr;nsp6s-"se para o interior da grande edição dos escritos aristotélicos, para o interior da edição da academia de berlim, na qual aos escritos lógicos seguem os escritos da fisica, assim como 'subseqüentêmente os da metafisica, e a estes os escritos éticos e políticos.

b) a significação de conteúdo de fle1:á: para além de (trans). metafisica como designação e interpretação de conteúdo da npw"tll cpt"'ocjocpíu: ciência do supra-sensível. metafisica como disciplina escolar

durante muito tempo, "tà fle"tà "tà cpuq"tl<á permaneceu como um termo técnico. até que um dia, não sabemos quando, como e através de quem, este termo técnico recebeu adjudicadamente uma significação de conteúdo, e a seqüência das palavras foi reunida em uma única palavra, no vocábulo latino metaphysica. me"tá sigtüfica em grego "depois", "em seguida a". exatamente como nas palavras flenévàt (seguir alguém), jle"tul<",uíet v

os conceitos fundamentais da metafisica: mundo - finitude - solidào 47

(chorar depois de alguém), jlé80ooç, método, ou seja, o caminho pelo qual . .

sigo uma coisa. me"tá, porém, ainda possui em grego uma outra significação que está

coligada à primeira. quando vou atrás de uma coisa e a persigo, me movimento simultaneamente saindo de uma coisa e indo para uma outra. isto é: mudo de algum modo radicalmente de direção. encontramos esta significação de fle"tá no sentido de "sair de uma instância para outra" na palavra grega fle"tupo'" ~ (transformação). no momento em que se sintetizou o título grego "tà fle1:à 1:à cpucjtl<á no vocábulo latino metaphysica, o tenno fle"tá teve alterada a sua significação. a partir da significação puramente locativa surgiu a significação de transformação, de "sair de uma coisa e se dirigir para outra", de "ir de um para outro lugar". tà fle"tà "tà cpucjtl<á não visa mais ao que vem em seguida às doutrinas sobre a fisica, mas ao que trata do que se lança para/ora da cpuq"tl<á e se direciona para um outro ente, para o ente em geral e para o que é verdadeiramente ente. esta mudança radical acontece no interior da filosofia propriamente dita. neste sentido. a npw"tt] cpt"'ocjocpíu é liletafisica. este apartar-se inerente à filosofia propriamente dita; este apartar-se da natureza como uma esfera particular, este apartar-se em geral de toda e qualquer esferapatiicular é um ir além cio ente particular, um transcender para este outro.

metafisica toma-se o título para o conhecimento do que se encontra para além do sensível, para a ciência e o conhecimento do supra-sensível. isto fica claro através da significação latina. a primeira significação de fle"tá, em seguida a, é dita em latim com a palavra post, a segunda significação com a palavra trans. o título técnico "metafisica" torna-se agora uma designação de conteúdo da npánll cpt"'ocjocpíu. nesta significação de conteúdo, metafisica assume agora uma interpretação e uma concepção determinadas da n:pw"tll cpt"'ocjocpíu. a atividade de ordenação na filosofia escolar - e antes de tudo seu impasse - é a causa de uma interpretação absolutamente detenninada, à qual a filosofia propriamente dita como metafisica sucumbe desde então. abstraindo-se do esclarecimento precário da história do desenvolvimento da palavra, se prestou muito pouca atenção até hoje no fato de esta transfolmação há muito nao ser tão insignificante e inofensiva quanto pode parecer. esta transformação do título não é de modo algum algo secundário. com ela decide-se algo essencial: o destino dafilosofia propriamente dita no ocidente. o questionamento da filosofia propriamente dita é apreendido na segunda significação, na significação de conteúdo; ele é impelido em uma direção determinada e para determinadas iniciativas. 9 título "metafisica" abriu o espaço para a formação de analogias, que são pensadas correspondentemente em função do conteúdo: metalógica, metageometria - a geometria que se lança

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ng vo/l grie-ehiseh, latin iind delltseh (preleções so

bre sintaxe com especial consideração do grego, do latim

e do alemão), 2@ ed., basel, 1928, segun<,la seção, p. 248.

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mais perfeita ordem, pois nos mantemos na tradição. no entanto, é nesta ar-ticulação com a tradição que está a própria dificuldade. afinal, já se retirou a significação de conteúdo da metafisica a partir de uma compreensão real e efetiva da 1tp<Í:l'tt] q>tÀocroq>ía? já se conquistou esta significação enquanto uma interpretação da 1tp<Í:rtt] q>tÀocroq>ía? ou será que a 1tp<Íyct]q>tÀocroq>ía é que foi inversamente apreendida de acordo com uma exegese relativamente casual? assim o é de fato. o desenvolvimento da segunda signiticação de metafisica indica-nos que o termo "metafisica" foi tomado como o conhecimento do supra-sensível em função desta significação de conteúdo. foi neste sentido que o título "metafisica" manteve-se na tradição e é bem provável que justamente segundo esta' significação não venhamos a conseguir apreendê-io. surge, então, muito mais intensamente para nós a tarefa de alcançar pela primeira vez a significação para o título que se encontra agora apenas presente à mão a partir de uma compreensão originária da 1tprott] q>tÀocroq>ía. em resumo: não devemos interpretar a 1tprott] q>tÀo-croq>ía a partir da metafisica, mas precisamos, ao contrário, explicitar o termo "metafisica" através de uma exegese do que se apresenta na 1tprott] q>tÀocroq>ía de aristóteles.

se estabelecemos esta exigência, ela tem por base a convicção de que ainda não se deduziu o título tradicional de conteúdo "metafísica" como co-nhecimento do supra-sensível a partir de uma compreensão originária da 1tprot1l q>tÀocroq>ía. para fundamentarmos esta convicção, precisaríamos mostrar duas coisas: em primeiro lugar, de que modo devemos conquistar uma compreensão originária da 1tprott] q>tÀocroq>ía em aristóteles; em segundo lugar, que o conceito tradicional de metafisica cai por terra ante esta compreensão.

mas só podemos mostrar o primeiro ponto se nós mesmos já tivermos desenvolvido uma problemática mais radical da filosofia propriamente dita. só assim estaremos de posse do archote com o qual é possível lançar luz sobre o interior dos fundamentos velados e ainda não levantados da 1tprott] q>tÀocroq>í.a, e, com isto, da filosofia antiga, para então decidirmos o que no fundo acontece aÍ. no entanto, só devemos chegar realmente a nos inserir em um tal filosofar através da preleção. portanto, devemos abdicar do primeiro ponto. com isto, todavia, também não podemos trazer à tona a inadequação da significação tradicional de metafisiea diante da 1tprott] q>tÀocroq>í.a, permanecendo a recusa deste título tradicional como uma mera atitude arbitrária.

de qualquer maneira, para mostrar grosso modo como esta última con-clusão é aqui improcedente, deve-se apontar para as inconveniências internas deste conceito tradicional. estas, entretanto, não se derivam senão do

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25.26.27.

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fato de o conceito não ter sido conquistado a partir da npcí.ytll <ptaocro<píu originariamente compreendida. foi muito mais a casualidade da formação da palavra que forneceu uma indicação para a interpretação da npcí.:rtll <ptao-

cro<píu. nós afinnamos três coisas no que concerne ao conceito de metafisica

que nos foi legado: 1. ele é extrínseco; 2. ele é em si confuso; 3. ele é indife-rente ao próprio problema referente ao que ele designa. o título "metafisica" foi arrastado em sua significação de conteúdo através da história da filosofia, ele foi por vezes até um pouco modificado, mas nunca foi de tal modo compreendido que ele mesmo tenha se tomado um problema com relação ao que quer designar.

a) a transformação do conceito tradicional de metafisica em algo extrínseco: o metafisico (deus. imortalidade da alma) como 11m ente simplesmente dado. por mais que mais elevado

o conceito de metafisica que nos foi legado é extríllseco. para ver isto, partimos do conceito popular de metafisica, perseguimos sua origem e mosb:amos em que medida ele nos leva para fora da filosofia; isto é, como ele é exh"ínseco. (notoriamente temos de atentar para o fato de, como um título, a metafisica ser reservada em seus primórdios justamente para o conjunto da "ontologia"; que, porém, também é ao mesmo tempo teologia.)

hoje em dia, no exercício habitual da escrita, quando se utiliza a palavra "metafisica" e o adjetivo "metafisico", este uso busca criar em tomo de si uma impressão de profundidade, de mistério, de algo que não é imediatamente acessível, disto que se encontra por detrás das coisas do cotidiano, no âmbito próprio à realidade derradeira. o que se acha para aléfu da experiência habitual dos sentidos, para além do sensível, é o supra-sensível. facilmente ligam-se ao supra-sensívéí alguns propósitos, tais como os que são designados através de nomes como "teosofia" e "ocultismo". todas estas tendências - tendências que hoje vêm se projetando de modo especialmente intenso e que gostam de se assumir como metafisica; e que fazem mesmo com que os literatos espalhem por toda parte o discurso acerca de um ressurgimento da metafisica - são apenas substitutivos considerados mais ou me- nos seriamente para a posição fundamental frente ao supra-sensível, para a conformação do supra-sensível tal como ele inicialmente se impõe no ocidente através do cristianismo, através da dogmática cristã. a própria dog- . mática cristã conquistou uma forma detenninada de sistematizar o conteúdo da crença cristã, à medida que se apoderou da filosofia antiga, especialmente de aristóteles, em uma direção determinada. a sistematização não é ne-

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nhuma ordem extrínseca, mas traz consigo uma interpretação de conteúdo. a teologia e a dogmática cristãs apoderaram-se da filosofia antiga e a reinterpretaram de uma maneira bem determinada (cristã). através da dogmática cristã, a filosofia antiga foi compactada em uma compreensão bem determinada; uma compreensão que se manteve através da renascença, do humanismo e do idealismo alemão e que só agora lentamente começamos a conceber em sua inverdade. o primeiro a conceber isto talvez tenha sido nietzsche. no interior da dogmática cristã, ou seja, no interior do estabelecimento dos princípios de uma determinada forma religiosa, tanto o homem quanto deus precisam ser tratados em um sentido excelso, de modo que estes dois - deus e o homem - não se tornem os objetos primários somente da crença, mas também da sistemática teológica: deus como o supra-sensível propriamente dito, e o homem não apenas - ou mesmo única e preponderantemente - como esta essência terrena, mas em função de seu destino eterno, de sua imortalidade. peus e a imortalidade são os dois termos para o além, para oque essencialmente está em questão nesta crença. este além transforma-se no propriamente metafisico: ele requer para si uma filosofia determinada. no começo da filosofia moderna, junto a seu fundador, descartes, vemos algo maximamente relevante. este diz expressamente em sua obra principal, meditationes de prima philosophia, "meditações sobre a filosofia autêntica", que a filosofia primeira tem por objeto a prova da existência de deus e da im011alidade da alma. no começo da filosofia moderna, a qual costumamos apresentar como uma ruptura com a filosofia de outrora, encontramos justamente acentuado e mantido o que perfazia o cerne da preocupação dafilosofia medieval.

o acolhimento da filosofia primeira de aristóteles na construção e no acabamento da dogmática teológica da idade média foi facilitado em certo sentido puramente extrínseco pelo fato de o próprio aristóteles tê-ia dividido - como já ouvimos - em duas direções fundamentais do questionamento, sem problematizar a sua unidade mesma; e isto no vi livro da metafisica, no livro em que fala da filosofia primeira. segundo esta divisão, trata-se primeiramente do ente como tal, isto é, do que advém a todo e qualquer ente, a todo e qualquer õv, na medida em que ele é um õv. pergunta-se: o que pertence a um ente, uma vez que ele é um ente, abstraindo-se totalmente do fato de ele ser este ou aquele ente? o que lhe pertence tendo em vista que ele é, de maneira geral, algo tal como um ente? esta pergunta pela essência e pela natureza do ente é feita pela filosofia primeira. ao mesmo tempo, porém, ela também coloca a pergunta pelo ente na totalidade, visto que faz a pergunta remontar ao mais elevado e derradeiro, que aristóteles também designa como o tlj..tlónu'tov yÉvoç, como o ente mais originário. aristóteles tam-

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bém denomina este ente mais originário o se tov. com relação a este divino, ele também denomina a filosofia primeira 8eoÂ.oyl1(~, conhecimento teológico: o Â.Óyoç que se encaminha para o 8eÓÇ - não no sentido de um deus da criação, mas simplesmente de um 8e tov. com isto, encontramos préconfigurada em aristóteles esta conexão característica entre a prima philosophia e a teologia. em razão desta conexão, intermediada por uma determinada interpretação oriunda da filosofia árabe, foi então facilitada na idade média a equiparação do conteúdo da crença cristã com o conteúdo filosófico dos escritos aristotélicos; e isto no momento em que ela tomou contato com aristóteles, especialmente com seus escritos metafisicos. assim acontece de o supra-sensível, o metafisico segundo o conceito habitual, ser ao mesmo tempo o que é conhecido no interior do conhecimento teológico; em um conhecimento teológico que não é teologia dafé, mas teologia da racionalidade: teologia racional.

essencial é que o objeto dafilosofia primeira (metafisica) seja um ente determinado, apesar de supra-sensível. em nossa pergunta pela compreensão medieval da metafisica não se trata agora de perguntar pelo direito de um conhecimento deste supra-sensível, nem de perguntar pela possibilidade de um conhecimento da existência de deus ou da imortalidade da alma. todas estas perguntas são epigonais. trata-se muito mais do fato primordial de que o supra-sensível, o metafisico, é uma região do ente entre outras. com isto, a metafisica passa para o interior do mesmo âmbito que outros conhecimentos do ente nas ciências e nos conhecimentos técnico-práticos, com a diferença apenas de que este ente é um ente mais elevado. ele se encontra pors06í-'e-::.;·para além, trans ... ; o que diz a tradução latina de )le'tá. o )le'tá não indica mais uma determinada atitude do pensamento e do conhecimento, uma virada ante o pensar e o perguntar cotidianos, de é apenas o sinal para o lugar e a ordem do ente que se encontram por detrás e para além do outro ente. o todo, contudo, este supra-sensível exatamente como o sensível, está de certo modo presente na mesma medida como um dado. o conhecimento de ambos movimenta-se - sem prejuízo de diferenças relativas - na mesma atitude cotidiana do conhecimento e da demonstração das coisas. por si só, o fato da prova da existência de deus - abstraindo-se completamente de sua força de demonstração - documenta esta atitude de uma tal metafisica. desaparece aqui completamente o fato de o filosofar ser uma atitudefitndamentalmente autônoma. a metafisica é nivelada e exteriorizada a partir do conhecimento cotidiano, com a diferença apenas de que se trata aí do supra-sensível, de algo que, de mais a mais, é comprovado através da revelação e da doutrina da igreja. o )le'tá, enquanto indicativo de um lugar do supra-sensível, não revela nada acerca da virada característica que o filosofar acaba por encerrar em si. de~ta forma, está dito que o metafisico

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mesmo é um ente entre outros, que o ente para o qual transcendo, projetando-me para fora do fisico, não se diferencia fundamentalmente do ente fisico senão através da diversidade que subsiste entre o sensível e o suprasensível. isto é, no entanto, uma completa incompreensão do que nos foi legado por aristóteles no mínimo como problema, tendo em vista que ele nos fala sobre o setov. É no fato de o metafisico se mostrar como um ente simplesmente dado entre outros, mesmo que mais elevado, que consiste o cárater superficial e extrínseco do conceito de metafisica.

b) a confusão inerente ao conceito tradicional de metafisica: a coligação dos tipos cindidos de estar-para-além ()le'tá): o estar-para-além próprio ao ente supra-sensível e o estar-para-além dos caracteres não-sensíveis do ser do ente

o conceito tradicional de metafisica é em si confuso. vimos que, junto à teologia, junto ao suposto conhecimento do supra-sensível, havia em aristóteles ainda um outro direcionamento da questão. À 1tpro't2j qnÀoao<pía pertencia de modo igualmente originário a pergunta pelo ov ti ov, pelo conhecimento do ente como tal. tomás de aquino também assumiu sem mais este segundo direcionamento da questão a partir ele aristóteles. o fato de isto ter acontecido levou-o naturalmente a buscar a inserção de sua colocação do problema em alguma cone!-ão com aquela de aristóteles. no direcionamento da pergunta para o ov ti ov questiona-se o que pertence a todo e qualquer ente como tal, o que é o ente e que propriedades ele em certa medida receberia, se eu o considerasse universalmente: ens communiter consideratum ou o ens in communi. o ente considerado universalmente toma-se igualmente objeto da prima philosophia. aqui se mostra então: se pergunto pelo que pertence a todo e qualquer ente como tal, eu me projeto necessariamente para além do ente singular. eu me projeto em direção às determinações universais do ente: em direção ao fato de todo e qualquer ente ser um algo, ser um e não outro, de ele ser diferente, oposto e coisas do gênero, todas estas determinações - algo, unidade, alteridade, diferencialidade, oposição - são determinações que se encontram para além de cada singular. no entanto, em seu encontrar-se para além, elas são totalmente diversas do estar para além característico de deus em relação a uma coisa qualquer. estes dois tipos fundamentalmente diversos de encontrar-se para além de são coligados em um único conceito. não se pergunta de modo algum o que significa aqui jle'tá, mas ele é abandonado sem determinação. podemos dizer de maneira mais genérica: no primeiro caso, junto ao conhecimento teológico, trata-se do conhecimento do não-sensível- do não-sensível compreendido

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2. algo é maxime intelligibile ex comparatione intelectus ad sensum a

partir da comparação do conhecimento intelectivo com o conhecimento sensível.

tomás de aquino diz: sensus sit cognitio particularium, 16 através dos sentidos

conhecemos o que é singularizado, o que está disperso; e, neste sentido, não é plenamente determinado. "intellectus ... universalia comprehendit": 17 o intelecto, ao contrário, apreende o que não é este ou aquele, esta ou aquela propriedade determinada, o que não é aqui e agora, mas o que diz respeito a todas as coisas em geral. a scientia maxime intellectualis, portanto, é aquela "quae circa principia maxime universalia versatur": 18 aquela que se liga ao que diz respeito e transpassa todo ente de maneira universal. É isto, p~rém, que aristóteles quer ver produzido em meio ao conhecimento do ov ti õv e que tomás caracteriza depois como ens qua ens, como aquilo que pertence ao ente como tal: as determinações que já sempre e necessariamente se co-apresentam no ente como tal; por exemplo, unum, multa, potentia, actus e outras do gênero. ("quae quidem slmt ens, et ea quae

. i' ,,19) e consequlllltur ens, ut linum et mu ta, potentza et actus. m suma: neste segundo sentido, o maxime intelligibife é o que designamos como categorias, o conhecimento categorial, o conhecimento das determinações mais universais dos conceitos, o conhecimento que foi herdado pela metafísica moderna como o conhecimento puramente racional do elemento categorial. digno de nota, portanto, é o seguinte: estas determinações, que dizem respeito ao ente como tal, tomás as denomina transphysica. "haec enim transplzysica inveniul1tur in via resolutionis, sicllt magis communia post minus comunia.,,20 estas são as determinações que se encontram para além do físico, para além do sensível. estas determinações mais universais do ente como tal são encontradas no interior do universal, à medida que vai se dissipando retroativamente o menos universal. tomás atribui este tipo de conhecimento ao conceito "metafísica": "metaphysica, in quantum considerat ens et quaeconsequuntw; ipsllm.,,21 É aqui que vemos o que é digno de nota! acentuo o contexto: metafísica significa, por fim, a mesma coisa que filosofia primeira e teologia. no entanto, tomás interpreta a significação específica de metafísica em um determinado sentido. de acordo com este sentido, metafísica equivale ao termo "ontologia", que só posteriormente se cunhou:

li. ibidem. 12.ibidem. 13.ibidem. 14.ibidem. 15.idem, p. 246.

16.idem, p. 245. 17.ibidem. 18.ibidem. 19.ibidem. 20.idem, p. 246. 21.ibidem.

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como um ente específico que se encontra para além dos sentidos; no segundo caso, quando tomo explícito algo assim como a unidade, a multiplicidade, a alteridade, o que não posso saborear e pesar, trata-se de um não-sensível, embora não de um supra-sensível- trata-se de um não-sensível que não é acessível através dos sentidos. não se? fala absolutamente acerca de uma diferença e de um problema entre supra-sensível e não-sensível. visto desta forma, o conceito interno da metafisica, à medida que é tomado pura e simplesmente a partir da instância do problema em aristóteles, na filosofia aristotélica, é em si confuso.

c) a ausência de problematicidade do conceito tradicional de metafisica

porque o conceito tradicional de metafisica transformou-se assim em algo de tal modo extrínseco e em si confuso, não se chega absolutamente ao ponto em que a metafisica mesma ou o ).l.e'tá no sentido próprio passam a ser um problema. dito inversamente: porque o filosofar propriamente dito enquanto o perguntar humano plenamente livre não é possível para a idade média, mas, ao contrário, são essenciais aí atitudes tot~lmente diversas; porque no fundo não há filosofia medieval, por isto a assunção da metafisica aristotélica nos dois direcionamentos descritos é de tal modo corifigurada, que não surge apenas uma dogmática da fé, mas também uma dogmática da própria filosofia primeira. neste processo característico de subsunção da filosofia antiga ao conteúdo da fé cristã, e, através dele, tal como vimos em descartes, à -filosofia moderna, uma pausa e um questionar próprio só foram alcançados pela primeira vez na filosofia moderna por kant. kant se ateve pela primeira vez realmente à tarefa e buscou no inte~i.or de um impulso para uma direção determinada transformar a metafisica mesma em pro-blema. não podemos acompanhar detalhadamente esta tendência própria ao filosofar kantiano. para compreender isto é preciso se libertar completamente da interpretação de kant, que se tomou corrente no século xix - uma interpretação propiciada em parte pelo idealismo alemão. quem quiser se ocupar mais proximamente com estas questões pode consultar meu escrito kant e o problema da metafisica.

§ 13. o conceito de metafísica em tomás de aquino como comprovação histórica para os três momentos do conceito tradicional de metafísica

o que vos apresentei de modo totalmente genérico, os três momentos do conceito tradicional de metafisica: seu caráter extrínseco, seu caráter

i.

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confuso e sua falta de problematicidade, gostaria de comprovar uma vez mais de forma sucinta, para que vós não penseis que esta é apenas uma concepção da história da metafisica - uma concepção construída a partir de um certo ponto de vista qualquer. a comprovação deve se dar através de uma breve referência ao conceito de metafisica em tomás de aquino. mesmo que não o tenha feito de modo sistemático, tomás de aquino manifestou-se reiteradamente e em diversas oportunidades sobre o conceito de metafisica - especialmente em seu comentário sobre a metafisica de aristóteles. em diversos livros deste comentário trata-se do conceito de metafisica; o lugar, porém, em que este conceito aparece mais inequívoca e caracteristicamente é a introdução à obra como um todo: o prooemium.9 aqui encontramos do início ao fim um estado de coisas notável: o fato mesmo de tomás de aquino equiparar sem mais a prima philosophia, a metaphysica e a theologia ou scientia divina, como também a denomina com freqüencia, o conhecimento do divino. a scientia divina no sentido desta teologia tem de ser cindida da sciencia sacra, daquele conhecimento que provém da revelação e está em conexão com a fé do homem em um sentido excelso. até que ponto a equiparação entre prima philosophia, metaphysica e theologia é espantosa? afirmar-se-á mesmo diretamente: esta é com certeza a opinião de aristóteles; e, com isto, está comprovado que tomás de aqllillo foi o mais puro aristotélico que jamais existiu. isto, contudo, se nos abstrairmos do fato de aristóteles não ter conhecido o termo "metafisica".

tudo parece ser assim, e, apesar disto, é de um modo totalmente diverso. isto é o que veremos ao perguntarmos como tomás fundamenta esta equiparação entre filosofia primeira, metafisica e teologia. considerada a partir do próprio tomás de aquino, esta fundamentação é de fato brilhante: um paradigma para o modo como ele e os pensadores medievais conceberam de forma transparente e aparentemente indiscutível um bem legado. para tomás de aquino, trata-se de fundamentar o porquê de urna e mesma ciência precisar ser denominada filosofia primeira, metafisica e teologia.

ele parte do fato de o conhecimento mais elevado, que agora passaremos a denominar de maneira sucinta conhecimento metafisico - o conhecimento mais elevado no sentido do conhecimento natural que o homem deve por si mesmo alcançar -, ser a scientia regulatrix: a ciência que regula todos os outros conhecimentos.jo foi por isto que descartes, em meio à mesma

9.tomás de aquino. xli, libros metaphysicon/1/l (aristoteles commentarillm), prooemillm s. thomae, opera om1lia. panna, 1652, vol. xx, p. 245.

10. idem, p. 245 .

postura, precisou retomar posteriormente à sciencia regulatrix, à phifosophia prima que a tudo regula: porque ele tem como ponto de partida a fundamentação do conjunto das ciências. uma scientia regulatrix, uma ciência que a tudo regula - pensemos no mesmo em relação à doutrina da ciência de fichte - é uma ciência, quae maxime intellectualis esty que é evidentemente a mais intelechlal. haec autem est, quae circa maxime intelligibilia versatur: 12 o conhecimento mais intelectual é aquele que se ocupa com o que é mais cognoscível. o cognoscível no sentido mais elevado não é outra coisa senão o mundus intelligibzlis; o mundo sobre o qual kant nos fala em seu escrito de mundi sensibilis atque intelligibilis forma et principiis (1770). tomás de aquino diz: maxime autem intelligibilia tripliciter accipere possumus: 13 o que é mais cognoscível pode ser triplamente diferenciado. com respeito a esta diferencialidade tripla do maxime intelligibilia, ele torna distinto o caráter triplo desta ciência. algo é cognoscível de forma maximamente elevada. isto indica, ao mesmo tempo, que ele é cognoscível de forma maximamente supra-sensível: 1. ex ordine intelligendi, a partir da ordenação e da hierarquização do conhecimento; 2. ex comparatione intellectus ad sensum, a partir da comparação do entendimento, do conhecimento intelectual, com o conhecimento sensível; e 3. ex ipsa cognitione intellectus, a partir do tipo de conhccimento do intelecto mesmo.14 o que significa isto?

1. no sentido mais elevado, algo é cognoscível ex ordine intelligendi, a partir da ordenação e da hierarquização do conhecimento. para a idade média, o conhecimento é, de modo totalmente genérico, a apreensão das coisas a partir de suas-causas. algo é conhecido no sentido mais elevado, quando retrocedo à última causa, à causa prima. como é dito através da fé, a causa primeira é deus como o criador do mundo. assim, algo émaxime intelligibife, quando apresenta em si aprima causa, a causa mais elevada. estas causas mais elevadas são o objeto do~ conhecimento propriamente dito, o tema da prima phifosophia: "dicitur autem prima philosophia, inquantum primas rerllll1 causas considerat.,,15 desta feita, a prima phifosophia é conhecimento da causa mais elevada, conhecimento de deus como criador - uma via de pensamento da qual, sob esta forma, aristóteles estava absolutamente distante.

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30.31.

58 martin heidegger

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a ontologia que considera o ôv ti õv e que posteriormente é denominada me-

taph)'sica generalis. neste sentido, metafisica é, para tomás de aquino, igual a

ontologia.

3. algo é maximamente cognoscível ex ipsa cogll'itione intellectus, a partir do tipo de conhecimento do intelecto mesmo. tomás de aquino diz: "maxime intelligibilia, quae sunt maxime a materia separata,,:22 maxima-mente cognoscível é o que está livre da matéria, isto é, o que segundo o seu conteúdo e seu modo de ser próprio é menos determinado pelo que perfaz a singularidade, a particularidade do ente. "ea vero sunt maxime a materia separata, quae non tantum a signata materia abstrahzl1lt, 'sicutformae na-turales in zliliversali acceptae, de qllibus tractat scientia naturalis', sed omnino a materia sensibili. et non solllm secllndum rationem, sicut mathe-matica, sed etiam secundllm esse. sicllt deus et intelligentiae.,,23

livres da matéria são também o espaço puro e o número puro. mas esta liberdade consiste na ratio da abstração. esta liberdade não é nada por si subsistente, não-sensível, anímico-intelectual- tal como é o caso de deus e dos anjos. estas essências anímico-intelectuais apontam para o que há de mais elevado na espécie de seu ser; e, de acordo com isto, também para o que há de mais elevadamente cognoscível. elas são aquelas coisas essentes - se é que podemos utilizar assim o título "coisa" em sentido maximamente amplo -, que existem autonomamente por si mesmas. o conhecimento deste além e deste anímico-espiritual em sentido mais elevado é o conhecimento do~róp.!"io deus, a scielltia divina, e, como tal, a teologia: "dicitur enim scientia di-0~à sive theologia, inqllantllm praedictas substantias considerat.,,24

desta forma, podemos ver como tomás de aqllino búsca reunir na ori-entação una do conceito de maxime intelligibile e em uma hábil interpretação de uma significação tripla os conceitos tradicionais e vigentes de metafisica. segundo esta interpretação, afilosofia primeira trata das primeiras causas (de primis callsis), a metajisica, do ente em geral (de ente), e a teologia, de deus (de deo). todas as três em conjunto perfazem uma ciência una, a sciencia regulatrix. não preciso mais retomar aqui ao fato de a problemática interna desta sciencia regulatrix não ter sido realmente apreendida ou mesmo grosso modo entrevista. estas três orientações da pergunta só foram mantidas juntas através de uma sistemática que se dá sobre um

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22.idem, p. 245. 23.ibidem. 24.idem, p. 246.

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32.33.34.

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caminho totalmente diverso, um caminho essencialmente determinado pela fé. dito

de outro modo, o conceito do filosofar ou da metafisica nesta plurissignificância

múltipla não está orientado pela própria problemática interna. ao contrário,

determinações disparatadas do ultrapassamento estão aqui agrupadas

firmemente.

antes de prosseguir na tematização, vou recapitular uma vez mais o que foi dito. procurei tomar claro para os senhores por que utilizamos em verdade o termo "metafisica", sem que, contudo, possamos acolhê-io em sua significação tradicional. o que faz com que este não seja o caso tem seu fundamento na incongruência internà firmada no interior do conceito tradicional de metafisica. uma plurissignificância já está inserida no conceito de filosofia primeira que se cunha na antigüidade com platão e aristóteles. vimos que aristóteles orienta o filosofar próprio em duas direções: enquanto pergunta pelo ser, a saber, tendo em vista que cada coisa que é,justamente por ser, é algo,já que ela é o um e não o outro e coisas do gênero. unidade, pluralidade, oposição, multiplicidade e coisas afins são determinações que dizem respeito a todo e qualquer ente como tal. a elaboração destas determinações é uma tarefa pertinente à.elaboração da própria filosofia. no entanto, a partir daí surge ao mesmo tempo a pergunta pelo próprio ente, que aristóteles designa como o 8úov. ainda mais claramente, ele o caracteriza em conexão com a erna't~~lt] 8eoÀoyik~. o desequilíbrio - ou seja, o problema - presente neste duplo direcionamento do filosofar não chegou a se tomar consciente para aristóteles, e, conseqüentemente, não sabemos nada sobre ele. este desequilíbrio consiste no fato de que a pergunta pelo ser da igualdade, da diversidade, da oposição, por como elas se relacionam umas com as outras e por em que medida elas pertencem à essência do ente é algo totalmente diverso da pergunta pelo fundamento último do ente.

junto à teologia, que é orientada na idade média para a revelação cristã, vê-se a incongruência, e, por conseguinte, o problema, ainda mais intensamente. a pergunta pelas categorias formais é algo diverso da pergunta por deus. uma certa uniformidade e comum-pertencência destas duas direções da questão não são conquistadas senão através da afirmação de que se trata em ambos os casos do conhecimento de algo que é de alguma forma livre da matéria, do sensível. o conceito formal de igualdade é abstrato, nele abstrai-se do sensível. deus em verdade não é abstrato, ele é justamente o contrário, o que há de mais concreto. mas ele também é livre da matéria, ele é o espírito puro. este desequilíbrio interno nas duas direções do perguntar da filosofia propriamente dita intensifica-se na idade média através do fato de o conceito aristotélico de teologia ter sido compreendido no sentido de uma concepção bem determinada de deus como a pessoa absoluta; uma concep-

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os conceitos fundamentais da metafisica: mundo - finitude - solidão 61

ção orientada pela revelação cristã. na idade média, o que se apresentava em aristóteles como um problema não expresso é exposto como verdade fixa; de modo que a ausência de problematicidade, que se apresenta em certo sentido em aristóteles, é elevada agora ao nível d~ princípio. assim, a partir de então, a subsistência conjunta da metafisica acaba por ser completamente determinada através da orientação pela teologia no sentido cristão. aqui, a teologia não se encontra mais, como em aristóteles, coordenada e em conexão com a pergunta primeiramente citada pelas determinações do ser em geral, mas toda a metafisica é expressamente subordinada ao conhecimento de deus. a partir daí, a teologia recebe seu peso próprio - o que se expressa posteriormente através do fato de a própria metafisica em kant ser compreendida como teologia. na idade média e depois da idade média não se vê nenhum verdadeiro problema neste conceito aristotélico do filosofar propriamente dito: o único problema era orientar imediatamente as diversas designações em direção a "uma ciência. É isto que tomás procura fazer no prooemium a seu comentário à metafisica de aristóteles. como ele fundamenta ponnenorizadamente esta orientação, isto é algo em que não vou mais me aprofundar.

acentuo apenas a incongruência e a dificuldade presente no que diz tomás: esta ciência que é a mais elevada e que denominamos metafisica a partir da equiparação daquelas três expressões trata das últimas causas, de deus que criou o mundo e tudo o que é, mas também, ao mesmo tempo, da-quelas det~rmin~s:ôes que dizem respeito a todo e qualquer ente, dos uni ver-safia, das categorias abstratas, e, concomitantemente, daquele ente que segundo o seu modo de ser é o mais elevado; isto é, o puro espírito absoluto. vemos, na interpretação das três expressões, que estes conceitos limÍtrofes são reunidos no vago conceito de universal: conhecimento do derradeiro (no sentido da causação), do maximamente universal (no sentido da abstração), do ente supremo e mais elevado (no sentido do modo de ser). com isto, tomás de aquino pode dizer até certo ponto de maneira correta, por mais que ele encubra completamente o problema, que a metafisica está em condições de tratar: i. de ente, ut communiter consideratum, ou seja, do ente considerado universalmente, considerado em função do que é comum a todo e qualquer ente; 2. de ente, lit principafiter intentum, do ente como o que é visado, examinado e entendido em sentido originário, ou seja, em sua relação com deus. estas são determinações que possuem igualmente o caráter do mais elevado e derradeiro, mas que são totalmente diversas em sua estrutura interna, de modo que não se busca de maneira nenhuma concebê-ias em sua unidade possível.

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precisamos ter presente para nós mesmos esta conexão do conceito medieval com o conceito antigo de metafisica e o encobrimento pleno do próprio problema, que mesmo em aristóteles só se estabelece de modo latente, se quisermos realmente compreender algo acerca da metafisica moderna, de seu desdobramento progressivo, da posição de kant e do desenvolvimento do idealismo alemão. no entanto, é importante atentar ao mesmo tempo para o fato de que, para o desenvolvimento da metafisica moderna - um desenvolvimento através do qual também a ambiência em que se encontra o problema para nós é co-determinada -, tomás e a filosofia medieval no sentido da alta escolástica só interessam em uma pequena parte. um teólogo e filósofo exerceu uma influência imediata no desenvolvimento dametafisica moderna; um teólogo e filósofo que, em função de intuitos teológicos totalmente determinados, estabeleceu para si mesmo no século xvi a tarefa de interpretar novamente a metafisica aristotélica: o jesuíta espanhol franz suarez. a importância deste teólogo e filósofo ainda está longe de ser apreciada segundo a medida que cabe a este pensador; um pensador que em argúcia e autonomia de questionamento precisa ser colocado em uma posição mais elevada do que a do próprio tomás de aquino. sua importância para o desenvolvimento e para a conformação da metafisica moderna não é apenas formal, no sentido de que a disciplina da metafisica se configurou de uma determinada forma sob esta influência; mas tão decisiva quanto este primeiro momento é a sua cunhagem dos problemas de conteúdo, tal como eles despertaram uma vez mais na filosofia moderna. ele viveu de 1548 até 1617 e trabalhou em uma renovação da escolástica - uma renovação que se vitalizou no século xvi na espanha, em parte sob a influência do humanismo. no que concerne a este empenho, a escola jesuítica de salamanca foi detenninante. suarez publicou em 1597 uma grande obra: disputationes metaphysicae, 2 volumes, salamanca. o subtítulo desta obra é característico: in quibus et universa naturafis theologia ordinate traditur, et quaestiones ad omnes duodedm aristoteles libras pertinentes, aecurate disputantur. a obra tem, portanto, uma dupla finalidade: em primeiro lugar, tratar de toda a teologia natural, ou seja, daquela que se encontra antes da revelação, em sua construção interna; e, ao mesmo tempo, discutir adequadamente todas ,as perguntas que pertencem aos 12 livros da metafisiea aristotélica. suarez chegou mesmo a ver, em contraposição à escolástica anterior, que os 12 livros de aristóteles formam um todo

§ 14. o conceito de metafísica de franz suarez e o caráter fundamental da metafísica moderna

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mas que este quadro simplesmente dado está simplesmente dado com esta constituição determinada, de modo que o "é" significa ao mesmo tempo ser-simplesmente-dado. com o "é" tem-se em vista aquele ser, pelo qual in-dagamos, ao perguntarmos se algo é. a esta pergunta sobre se! ele é, respon-demos que ele é ou que ele não é, de maneira que podemos designar esta significação do ser também como ofato-de-ser (que-é).

assim acumulam-se as significações que residem no "é" inaparente e que, de modo inaparente, já são visadas aí de maneira óbvia. no entanto continuamos a desconsiderar uma significação mais ampla e totalment~ central. ela vem à luz, ao acentuarmos a proposição "o quadro é negro" dizendo: "o quadro é negro". agora não temos em vista apenas o serde-um-modo-tal, também não o ser-simplesmente-dado do ente-que-é-deum-mo do-tal. ao contrário, temos em vista concomitantemente: isto que digo, que expresso nesta proposição, é verdadeiro. com isto, o "é" significa ao mesmo tempo o ser-verdadeiro do que é dito na proposição. se deixarmos de lado as formas mais extremas e extrínsecas do "é" e atentannos para aquelas que emergem a partir do estado de coisas interno, podemos dizer: no "é" tem-se em vista a qüididade; seja sob a forma do ser-de-tal-modo e do ser-essencial, seja sob a forma do fato-de-ser (que-é) e do ser-verdadeiro.

mesmo a significação do "é", que citamos por último, transformou-se no ponto de partida de diversas teorias sobre a cópula, o aÓyoÇ e o juízo em geral. estas teorias são particularmente dominante? hoje em dia. diz-se: em tais proposições, algo é afirmado, é afirmado o ser negro do quadro, e, assim, o "é" expre§sa pr2priamente esta afirmação. nesta afirmação é dito que isto de que se fala vale, de modo que o "é" também é interpretado como validade e como valer por. lotze desenvolveu nesta direção a teoria do juizo, seguido por windelband, rickert e lask. especialmente para riékert, esta interpretação do juízo, segundo a qual nele é expresso um "valer por", torriou-se o ponto de partida para o desenvolvimento de uma filosofia do valor. rickert diz: se no juízo é afirmado um "valer por", então isto só é possível se o "valer por" possuir um critério; tudo o que é válido precisa ser mensurado a partir do que deve ser; um dever só tem a força e a obrigatoriedade enquanto dever, se ele estiver fundado em um valor. sobre este caminho emerge a orientação da filosofia dos valores.

nenhuma das teorias apresentadas sobre o "é" e sobre o ser na proposição é justa porque todas elas são unilaterais. mas por que elas são unilaterais? porque elas não vêem, nem se dão conta da multiplicidade de significações do "é". portanto, é preciso que conquistemos a teoria verdadeira através da reunião de todas as interpretações apresentadas e através do estabelecimento de um compromisso entre elas? não! as coisas não são tão fáceis assim. trata-se de perceber algo muito mais essencial. não se tra-

ta de ver que todas estas significações, a qüididade, o fato-de-ser e o ser-ver-dadeiro, residem e podem residir no "é", mas que e porque elas todas precisam residir aí; e, em verdade, de início e na maioria das vezes, de maneira indivisível e inseparável. trata-se de compreender esta indiferença e universalidade peculiares do "é" como a essência originária e primária da cópula ou disto que se designa extrinsecamente como cópula. portanto, as coisas não se dão absolutamente de tal modo que o "é" significa inicialmente apenas copulatio (conexão de palavras), e, em seguida, as outras significações, uma por uma, vão se anexando a esta significação primordial. ao contrário, o originário e primeiro é e permanece sendo constantemente a plena multiplicidade indecomponível. É a partir desta multiplicidade que, às vezes, em determinados casos e em tendências enunciativas do discurso, apenas uma única significação - ou uma significação preponderante - é visada. através de uma redução, a pluralidade originária, mas indivisível e homogênea, do que o ser já desde o princípio significa, torna-se a cada vez uma significação determinada. esta redução não coloca de lado o todo da plural idade, entre outras coisas já compreendido, mas o instaura sim concomitantemente. se se chega quiçá a um conceito do ser, ele se liga a uma ou mais destas significações. a redução é sempre o ulterior ante o todo üi"iginário. só podemos e devemos medir agora a amplitude desta intelecção da essência multifonne da cópula a par1ir de uma perspectiva determinadaa partir de uma perspectiva que nos reconduz imediatamente para o interior do problema diretriz entrementes deixado para trás.

§ 73. retorno ao fundamento da possibilidade do todo da estrutura do

enunciado

a) indicação do ponto de conexão entre a questão que retorna e o problema do mundo enquanto problema diretriz

caracterizarei uma vez mais brevemente nosso desdobramento do problema do mundo até aqui: mundo é a abertura do ente enquanto tal na totalidade. perguntamos pelo "enquanto", para, a partir daí, adentrarmos no fenômeno do mundo. em contraposição ao estar-aberto-para ... do animal, o "enquanto" é algo distintivo disto para o que o homem está aberto. para o animal, o estar-aberto para ... implica a absorção na perturbação. este "en-quanto" é pertinente a uma ligação. a dimensão e o modo desta ligação são obscuros. de qualquer forma, porém, o "enquanto" encontra-se em conexão com o enunciado. em virtude disso, através de uma interpretação deste enunciado, buscamos esclarecer como o "enquanto" pertence à estrutura do

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enunciado. seguindo aristóteles, a interpretação do enunciado trouxe con • sigo: todas as estruturas essenciais - ka'tá'pacrtç, à7tó'pacjlç, à).. .. '18eÚel\. \j!eúÔecr8at - são reconduzidas à crÚv8ecrtÇ e à Ôtaipecrtç. esta junção cnjg~ mática de ~odos excludentes de ligação permaneceu obscur~ e enigmática para nós. e de se supor que aqui se encontra a ligação, da qual faz pane o "enquanto". mas o enunciado, tanto quanto a ka'tá'pacrtç e a à7tó'pavejlç. é sempre um enunciado sobre ... , À.óyoç 'ttvóç (platão). isto com o que, em sua forma, a à7tócravcrtç se liga é o ente. em meio ao enunciado fala-se de seu ser de uma maneira multifacetada: o que está expresso no "é". segundo aristóteles, também reside aí igualmente uma crúv8ecrtÇ. por conseguinte, exatamente como o "enquanto", o "ser" e sua multiplicidade também estão fundados nesta crúv8ecrtÇ e nesta Ôtaipecrtç enigmáticas. ou, dito de maneira mais prudente: o "ser" e o "enquanto" apontam para a mesma origem. ou ainda com um outro acento: o esclarecimento da essência do "enquanto" segue juntamente com a pergunta sobre a essência do "é ", do ser. as duas perguntas auxiliam o desdobramento do problema do mundo. já é possível elucidar agora um tal fato a partir da análise formal provisória do conceito de mundo: abertura do ente enquanto tal. este conceito implica abertura do ente enquanto ente, isto é, de acordo com o seu ser. o "enquanto", ou antes a ligação que o suporta e forma, possibil,ita a consideração de algo do gênero do ser. a pergunta sobre como as coisas se encontram em relação ao ser não se deixa colocar sem a pergunta sobre a essência do "enquanto" e vice-versa. trata-se d~ refletir sobre que questão, na discussão fática, tem o direito à prioridade segundo o ponto de vista metodolÓgico. a pergunta direta sobre o "enquanto'~'esobre a ligação que o suporta sempre nos coloca imediatamente em meio à obscuridade. somente o desvio cunhado através do À.Óyoç promoveu uma visualização da multiplicidade de estruturas (não precisamos nos ocupar aqui das razões pelas quais as coisas se dão desta forma). com isto, é oportuno prosseguir este caminho, uma vez que ele nos trouxe até a pergunta sobre o ser sob afigura da cópula. vale ter em vista agora o todo da estrutura do À.óyoç e lançar a pergunta de volta para o fimdamento de sua possibilidade (crÚv8ecrtÇ - Ôtaípecrtç); e isto sob o fio condutor do "é" que pertence à estrutura do À.Óyoç, do "é" na multiplicidade de suas significações inicialmente indiferentes.

no entanto, ainda podemos fazer a pergunta retroceder ao enunciado? ele não é algo derradeiro? mas, por outro lado, escutamos algo sobre as partes constitutivas do À.Óyoç - õvo~a. ptí~a, as assim chamadas partes do discurso. neste sentido, o À.Óyoç pode se decompor nestas partes do discurso: palavra-sujeito, palavra-predicado, cópula. certamente! todavia, esta decomposição aniquila justamente o to~o do À.Óyoç, de modo que mesmo o liame cai no vazio e deixa de p"der se mostrar como o que é: conector.

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segundo aristóteles também, ele só significa o que conecta, se é passível de ser ligado aos cruykei~eva. a questão é que nós justamente não perguntamos por pedaços singulares do À.Óyoç, mas pelo fimdamento da possibilidade de todo o À.óyoç enquanto tal. além disso, esta pergunta é levada a tenno sob o fio condutor do "é" e, portanto, o "é" é visto na totalidade da estrutura do À.óyoç. desta feita, a pergunta que remonta ao fundamento de possibilidade do À.óyoç precisa ser algo diverso de sua decomposição e de sua fragmentação em partes. esta pergunta, que se lança para trás em direção ao fundamento, precisa buscar muito mais reter enquanto um todo isto em relação ao que se estabelece a questão por seu fundamento e por sua possibilidade interna. kant foi o primeiro a ver em seu caráter próprio este tipo de questionamento que se lança para trás, este tipo de analítica; e isto mesmo que ele não tenha tido consciência da amplitude desta intelecção nos seus detalhes e em suas últimas conseqüências. É este tipo de analítica que se de-nominou mais tarde no neokantismo - ainda que trivializada em uma determinada direção - a pergunta pela origem. inquirir o À.óyoç sobre a sua origem significa mostrar o ponto desde onde ele emerge não faticamente, a cada vez em que é levado a cabo, mas segundo a possibilidade interna de sua essência, ou seja, a cada vez na totalidade. portanto, a consideração da origem e a analítica designam a pergunta que se lança para trás e coloca em questão o fundamento da possibilidade interna; ou, como também dizemos de maneira sucinta, o retorno da pergunta ao fundamento compreendido no sentido de aprofundamento. a consideração da origem não é nenhuma fundamentação no sentido de uma demonstração fática, mas uma pergunta sobre a origem da essência, um deixar emergir a partir do fundamento da essência, um aprofundamento no sentido da mostração do fundamento de possibilidade da estrutura na totalidade. fazemos a pergunta remontar ao fundamento da possibilidade interna do À.óyoç. com isto, lançamos a pergunta para o interior da dimensão de sua possibilitação interna, de sua origem essencial. desta feita, já precisamos conhecer desde o princípio esta dimensão originária. como a encontramos? É evidente que só a encontramos se considerarmos toda a estrutura do À.óyoç. É para esta estrutura que aponta a própria construção essencial interna, é sobre ela que esta construção se funda e é nela que ela está circunscrita.

perguntamos, por conseguinte: onde se encontra efetivamente o À.Óyoç? precisamos dizer: ele é uma atitude essencial do homem. deste modo, precisamos indagar o fimdamento da possibilidade interna do À.óyoç a partir da essência velada do homem. no entanto, esta indagação também não deve procurar estabelecer agora, a partir de um âmbito qualquer, uma definição da essência do homem, e, em seguida, utilizá-ia. ao contrário, é preciso deixar que esta essência se mostre para nós justamente a partir da es-

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trutura do À,óyoç corretamente compreendida e que se diga, através do retorno ao fundamento, por ela indicado, de sua possibilidade, como as coisas se encontram em relação ao homem. só sabemos o seguinte: precisamos retornar à essência do homem a partir do À,óyoç; na unidade de sua estrutura. no que concerne a esta essência mesma, ainda não se tem nada determinado. o que temos é apenas a tese: o homem é formador de mundo. assumimos esta tese como um enunciado essencial, exatamente como a tese: o animal é pobre de mundo. entretanto, esta tese sobre o homem não pode ser utilizada agora. vale sim muito mais desdobrá-ia e fundamentá-ia enquanto problema. por fim, o que chamamos deformaçào de mundo é também justamente o fundamento da possibilidade interna do À,óyoç;. se esta formação é realmente um tal fundamento, e, antes de tudo, o que ela é, ainda não sabemos. por fim, a partir da essência da formação de mundo, tornar-se-á compreensível o que aristóteles tomou como o fundamento de possibilidade do À.Óyoç; cx1toepavnkóç: a percepção em sua estranha estrutura aúvseatç;-8taípeatç; - o que aproximamos da estrutura "enquanto". se nos lembrarmos corretamente, porém, sabemos algo sobre o homem que não foi estabelecido apenas através da tese "o homem é formador de mundo". na primeira parte desta preleção, desenvolvemos uma tonalidade afetiva .fimdamental do homem, no interior da qual tivemos a oportunidade de alcançar uma visualização essencial do ser-aí do homem em geral. a questão é: será que agora, ao fazermos a pergunta remontar ao fundamento da possibilidade interna do enunciado, não somos por fim recondilzidos àquela dimensão, à qual já nos levou, por um caminho totalmente diverso e com a máxima riqueza, a interpretaçãbdo tédio enquanto tonalidade afetiva fundamental do ser-aí?

b) o ponto de partida da pergunta que se lança para trás por sobre a construçào interna essencial do enunciado: a capacidade de dizer "ou-ou ", a capacidade de retirar do velamento e de velar que mostra e expressa o ser 110 contexto da atribuição e da denegação que dizem: "não apenas ... mas também"

a tarefa concreta e mais imediata é fazer remontar a pergunta ao fun-damento de possibilidade do À.Óyoç; e isto partindo do À.Óyoç; em sua cons-trução essencial interna agora elucidada. precisamos manter antes de tudo e constantemente em vista esta construção - nos limites, é verdade, do À.Óyoç simples. o exemplo formal do À.Óyoç; simples é: a é b. no entantoassim precisamos indagar agora -, teplos com isto a construção essencial do À.Óyoç? o que estabelecemos ai é lima forma determinada do À.Óyoç; a saber:

o exemplo de uma katáepacrtç; e - como supomos - de um cxÀ, tjseÚn v; por-tanto, a forma do enunciado verdadeiro positivo. na lógica, onde quer que se trate do À,óyoç;, da proposição, do juízo, esta forma é sempre a forma exemplar em primeira linha, se não for a única forma. mas ao lado desta for-ma há ainda o enunciado verdadeiro negativo, e, mais além, o positivo falso e o negativo falso. conseqüentemente, também precisamos levar em conta estas formas. em certos limites, o mesmo acontece nas teorias correntes sobre o juízo. a questão é que justamente aqui reside o equívoco fundamental e a dificuldade fundamental de todo o problema. não podemos apresentar nem o juízo positivo verdadeiro, nem uma outra forma qualquer de juízo como sendo isoladamente uma forma preferencial do À,óyoç;, para então levarmos em conta em seguida as formas restantes como formas que se encontram ao seu lado (como formas complementares). com tudo isto, ainda permanecemos fora da dimensão do problema propriamente dito. com isto, ainda não conquistamos absolutamente o ponto correto de abordagem. mesmo em aristóteles, falta este ponto - o que repercute em seus sucesson:s e faz com que não haja nenhuma exceção no tempo subseqüente. mas aristóteles ainda estava mais próximo do problema. ele acentua expressamente o que hoje em dia não é mais nem mesmo visto na lógica: o fato de o ÀÓyoç não ser verdadeiro e falso, mas verdadeiro 011 falso, cxÀ,11seÚet v 11 \jfeú8e<j8<xl. por outro lado, também é compreensível o porquê de a colocação central do problema não ter sido empreendida por ele: a sua primeira e única preocupação era, em contraposição às teorias provisórias e superficiais de seus predecessores, mesmo de platão, a necessidade de tomar claro ao menos uma vez as estruturas do À,óyoç em geral. se se pode falar aqui em geral de "mais fácil" e "mais dificil", então uma radicalização é sempre mais fácil, uma vez que já se encontra preparada. aliás, os problemas só vêm à luz assim.

a forma positiva verdadeira do enunciado facilita - por razões que não discutiremos agora - a interpretação do À.Óyoç;. este modo de abordagem ca-racterístico da lógica, o fato de ela partir do juízo positivo verdadeiro, é em certos limites justificável. justamente por isto, entretanto, ele acaba por se tomar o causador do engano fundamental de que tudo depende simplesmente de relacionar as outras formas possíveis do enunciado - de maneira com-plementar - com a supramencionada. em ser e tempo, eu mesmo fui - ao menos na condução da interpretàção do À,óyoç - uma vítima deste engano (cf. como exceções a este engano ser e tempo, ps. 222 e 285). na interpretação que tem de ser dada agora e que não chega propriamente a suprimir o que foi anteriormente apresentado ~m ser e tempo, preciso me desviar essencial e decisivamente deste engano.

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mesmo que tenhamos atentado para as formas possíveis de modifica_ ção do À.Óyoç, o juízo positivamente verdadeiro e o positivamente falso, o juízo negativamente verdadeiro e o negativamente falso, ainda não vimos a sua construção interna de maneira central. a essência do ~óyoç consiste justamente no fato de que, nele enquanto tal, reside a possibilidade do "ali verdadeiro ou falso", do "não apenas positivo mas também negativo". exatamente a possibilidade de todos estes modos de variação, determinados em verdade de maneira rudimentar, é a essência mais interna do Âóyoç. somente quando tivermos apreendido isto teremos o lugar do salto (absprung), a partir do qual retomaremos à origem (urspnmg).36 o À.Óyoç não é um construto simplesmente dado, que tenha lugar ora nesta, ora naquela forma. ao contrário, segundo sua essência, ele é esta possibilidade para uma forma ou para a outra. dizemos: ele é um poder de ... 37 por "poder de" sempre compreendemos a possibilidade de assumir uma atitude em relação a, isto é, a possibilidade de se ligar ao ente enquanto tal. o À.Óyoç é um "poder de": ele é em si mesmo o dispor de lima ligação de si como ente enquanto tal. em contraposição a este "poder de", denominamos a possibilidade para o comportamento, para o estar-ligado de maneira absorvida e perturbada: a aptidão.

o Âóyoç ixrco<pavnkóç é o poder do "ou-ou" inerente ao acontecimento da mostração que tem lugar na retirada do velamento e no velamento sob o modo

não apenas da atribuição, mas também da denegação. nesta mostração, o "é" (ser) ganha a expressão em uma significação qualquer. o caráter de "poder"

assim orientado é a essência do À.Óyoç cx1to<pav'nkóç, nele se centra a sua constituição essencial. É a partir dele que precisamos investigar se podemos

ver uma indicação do fundamento que possibilita tal essência. o que se encontra à base deste poder do Âóyoç, o que precisa se encontrar à sua base, se ele tem de poder se essencializar do modo como ele se anuncia para nós, a

saber, como possibilidade do "oll-ou ", do retirar do velamento e do velar que mostram e que pronunciam o ser? se respondermos a estas

36.heidegger joga aqui com os termos abspnll1g c urspnll1g. estes dois termos perfazem-se a partir de variações do mesmo radical: spnmg (salto). abspl1lng significa literalmente "o salto que promove a saída de um determinado âmbito" c o termo ursprzmg (origem) diz o "salto originário". (n.t.)

36.a palavra traduzida aqui pela expressão "poder de" é a palavra vermogen. esta palavra de~signa fundamentalmente uma capacidade, um poder de empreender algo, o estar em condições de levar algo a cabo. por isto, ela recebeu nas traduções de kant, por exemplo, nas línguas latinas, a designação "faculdade", optamos por uma expressão mais neutra, que revelasse o sentido mesmo do argumento heideggerian.o. (n.t.)

perguntas, veremos como tanto aqui quanto por toda parte na filosofia este fenômeno trivial e elementar do juízo e do enunciado, um fenômeno que se acha esgarçado até a morte em todas as direções possíveis, nos reconduz com uma tacada só para uma dimensão, que não é nenhuma outra senão a da amplitude e inquietante estrangeiridade, para o interior da qual inicialmente a interpretação da tonalidade afetiva fimdamental deveria nos trazer.

antes de perseguirmos o problema agora indicado, presentifiquemos para nós ainda uma vez o contexto no qual ele se inscreve. levamos inicialmente a termo a interpretação da cópula com o auxílio do exemplo "o quadro é negro", à medida que destacamos uma significação essencial, que caracterizamos através da formulação: ser é igual a ser-verdadeiro. este ser no sentido de ser-verdadeiro sempre é concomitantemente visado em toda e qualquer proposição; quer a proposição expresse o ser no sentido do ser-simplesmente-dado ou do ser-constituído de tal e tal modo ou mesmo no sentido da constituição essencial. este ser-verdadeiro está articulado em um sentido estranho com as três significações do ser anteriormente citadas, de modo que se anuncia uma unidade característica do que é em si comum-pertencente. mais exatamente: precisamos perguntar por que esta plurissignificância da cópula subsiste e em que reside o fundamento de sua unidade. de maneira totalmente gcnérica, reconhecemos esta plurissignificância da cópula como a sua essência positiva. a essência que se cxpressa na maioria das vezes nesta estranha indiferença e universalidade e que dá ensejo ao aparecimento de teorias diversas, mas em si unilaterais. scm ver esta plurissignificância, aristóteles reconduziu a cópula mesma a uma oÚv8emç. os momentos estruturais do Âóyoç, que consideramos antes da análise do À.Óyoç, katá,<paolç e cx1tó<paolç, cx t\8Éç e 'ijieÜÕoÇ, são do mesmo modo reenviados a uma oÚv8eolÇ ou Õtaí.peolç. dissemos que esta oúv8emç à base do À.Óyoç é supostamente aquela ligação na qual se funda aquilo pelo que perguntamos: o "enquanto" e a estrutura-"enquanto". se para aristóteles, porém, também o ser, a cópula, e isto agora tomado em sua plurissignificância, está fundado em uma oÚv8eolÇ, então mostra-se aqui a possibilidade de que o "enquanto" e o "ser" tenham uma raiz comum. isto já estava insinuado através do fato de utilizarmos - efetivamente em um sentido insigne - o "enquanto" na indicação formal do conceito de mundo como abertura do ente enquanto tal na totalidade, no contexto da apreensão do ente mesmo. talvezjustamente a ligação, na qual o "enquanto" e a estrutura-"enquanto" estão enraizados, seja aquela que ao mesmo tempo possibilite considerar algo assim como o ser, de modo que, em algum sentido, a estrutura-"enquanto" e o ser estão em si em conexão. nós, certamente, só poderemos constatar que as coisas se dão deste modo se, a partir da interpre- i

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tação do Ã.óyoç até aqui, compreendermos ao mesmo tempo que este não é autônomo, mas está fundado em algo mais originário do que ele. só encontraremos esta essência originária do Àóyoç se não estabelecermos esta ou aquela qualidade, mas mantivermos em vista toda a constmçãc;> essencial do Àóyoç e lançannos a pergunta de volta para a dimensão de sua origem, isto é, para aquilo que o viabiliza segundo sua possibilidade interna. desta feita, em meio a esta consideração da essência do i,ÓyoÇ, do enunciado, também não podemos, como acontece correntemente, tomar por base nem o enunciado positivo verdadeiro enquanto o exemplo primário, nem tampouco uma outra forma qualquer do enunciado. importa ver muito mais, que a essência mais profunda do Àóyoç reside no fato de ele ser em si a possibilidade deste "ou-ou" intrínseco ao poder-ser-verdadeiro ou falso; e isto tanto sob o modo da atribuição quanto sob o modo da denegação. somente quando tivermos estabelecido a pergunta pelo fundamento de possibilidade do Àóyoç de um modo tal que perguntemos pela possibilitação de sua essência interna, a saber, pela possibilitação do poder do "ou-ou" intrínseco ao ser-verdadeiro ou falso, teremos a certeza de poder realmente aprofundar o Â,óyoç em sua estrutura essencial.

c) o ser-livre, o ser-aberto pré-lógico para o ente enquanto tal e o se manter ao encontro da obrigatoriedade como fundamento da possibilidade do enunciado

o Â.Óyoçsbb alarma do Â.Óyoç à1toepa\'tll<óç é o poder de assumir uma atitude que mostra o ente; seja esta atitude desveladora (verdadeira) ali veladora (falsa). este "poder" só é possível enquanto um tal poder sé estiver fundado em um ser-livre para o ente enquanto tal. neste ser livre funda-se o ser livre em meio à mostração atributiva e denegadora, assim como este ser livre em meio a ... pode se desdobrar enquanto um ser livre para a retirada do velamento ou para o velamento (verdade ou íàlsidade). dito de maneira sucinta, enquanto enunciado, o Àóyoç à1toepavtll<óç só é possível onde a liberdade está. apenas se a liberdade que é articulada desta forma e que, por sua parte, se revela como articuladora, se encontra à base, é possível algo assim como a adequação a ... e a ligação com ... no interior da atitude e do poder particulares que provêm desta liberdade e que consideramos agora sozinhos. somente desta forma é possível que se dê urna tal adequação e ligação no interior da mostração; e isto de tal maneira que a ligação passe a se referir a algo que se anuncia imediatamente em sua obrigatoriedade. retirada do velamento e velamento do Â,óyoç, verdade e ser-falso, verdade ou falsidade. a possibilidade de ambos só e~tá presente onde a liberdade está presente; e

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apenas onde a liberdade se faz presente há a possibilidade da obrigatoriedade. não queremos aprofilljdar senão a possibilidade e o caráter de poder do À.óyoç. se dizemos que este "poder" se funda em um ser-livre para o ente enquanto tal, então reside aí o seguinte: o À,óyoç não produz de início uma ligação com o ente enquanto tal, mas se filljda nele. de uma maneira determinada, ele sempre faz uso de um tal ente em cada uma de suas formas. como? o À.óyoç só pode mostrar o ente como ele é, e, mostrando, atribuir ao ente o que vem ao seu encontro ou denegar o que não vem ao seu encontro, se ele acima de tudo já tem a possibilidade de medir a sua mostração e a adequação de sua mostração a partir do ente. todavia, para decidir sobre a adequação ou sobre a inadequação disto que o Â.Óyoç diz de maneira mostradora; mais exatamente, para em geral poder assumir uma atitude em relação a este "ou-ou", o homem que enuncia de modo discursivo precisa ter um espaço de jogo para o ir-e-vir comparativo do "ou-ou", da verdade ou falsidade; e, em verdade, um espaço de jogo, no interior do qual já esteja manifesto o ente mesmo, sobre o qual se trata de enunciar. aí reside algo essencial: o Àóyoç ànoepavtll<óç não apenas não produz - como indicado supra - a ligação com o ente, mas ele não produz nem mesmo a abertura do ente. desta abertura, assim como daquela ligaç:üo, elc já sempre faz simplesmente uso quando se dispõe a ser o que pode ser: retirada do velamento e velamento mostradores.

mas, ao falarmos de retirada do velamento e de velamento, não dissemos que o próprio Â.Óyoç enquanto tal toma manifesto, é verdadeiro? sim, segundo a opinião genérica, que ele é o único lugar próprio da verdade? certamente, a verdade reside no À,óyoç; ou, ao menos, a possibilidade para o "ou-ou". no entanto, este seu possível ser-verdadeiro, esta retirada do velamento, não é absolutamente originário; isto é, ele não é aquele tomar manifesto e retirar do velamento, através do qual se encontra aberto para nós em geral o ente enquanto tal, através do qual ele é nele mesmo desvelado. um enunciado enquanto tal- mesmo que ele fosse verdadeiro - jamais poderia retirar primariamente do velamento o ente enquanto tal. um exemplo: ao levarmos a termo o enunciado verdadeiro "o quadro é negro", o ente "quadro" não é manifesto para nós primeiramente em seu ser-assim através desta proposição verdadeira, como se o enunciado enquanto tal estivesse em condições de abrir para nós o ente antes fechado. o enunciado - mesmo que à sua maneira mostrador - nunca nos traz em geral e primariamente para diante do ente retirado ao velamento, mas ao inverso. o quadro-negro já precisa ter se tomado manifesto para nós, enquanto este ente assim constituído, se quisermos produzir enunciados sobre ele de maneira mostradora. o Â.Óyoç ànoq>avtll<óç apenas ex-põe enunciativamente o que já está manifesto, mas

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não forma em geral em primeiro lugar a abertura do ente. no enunciado reside efetivamente um ser-verdadeiro, sim, ele é até mesmo a forma, na qual se expressam pura e simplesmente ser-verdadeiro e ser-falso e na qual eles são transmitidos e comunicados. daí não se segue absolutamente, porém, que a verdade da enunciação é a forma fundamental da verdade. É certo que para ver isto vale lançar um olhar mais profundo na essência da verdade. ainda conquistaremos este olhar no decurso das considerações por vir. se nos eximirmos desta tarefa e se permanecermos desde o princípio parados junto a uma opinião dogmática quanto ao que deve ser chamado de verdadeiro, poderemos demonstrar de fato de maneira irrefutável, como hoje sempre acontece novamente, que o juízo é o portador da verdade. se se diz desde o princípio que verdadeiro é o que possui validade; e, indo além, que só há algo válido, onde eu reconheço a validade; que reconhecimento é expressão e ato fundamental de afirmação, e que a afirmação é a forma fundamental do juízo, então a verdade enquanto validade se encontra em uma conexão com o juízo enquanto afirmação. isto não se pode absolutamente refutar. mas a questão é: a essência da verdade é validade ou será que esta caracterização da verdade como validade e "ser válido" é a forma mais extrínseca e superficial, na qual somente o entendimento humano saudável, no sentido do pensamento vulgar, pode e precisa decair? aprenderemos posteriormente a perceber que este é o caso.

enquanto enunciado, o Âóyoç à7to<pav,tkóçestá certamente no interior da possibilidade do ser-verdadeiro e do ser-falso. todavia, este modo do s~r-verdadeiro; o ser-manifesto, se funda em uma abertura, que nós, porque ela reside antes da predicação e do enunciado, designamos como abertura pré-predicativa, ou melhor, como verdade pré-lógica. o termo }'lógico" é tomado aqui em um sentido totalmente restrito, a saber, no sentido relativo ,ao Âóyoç à7to<pav-rlkÓç na forma segundo a qual ele foi interpretado. no que concerne a este Âóyoç, há uma abertura que lhe é precedente e que, em verdade, se encontra antes dele no sentido determinado de que esta abertura originária fundamenta a possibilidade do ser-verdadeiro e do ser-falso do ÂÓyoç. À medida que esta abertura lhe funda, ela se encontra antes dele.

vimos em seguida: o enunciado se expressa, mesmo que nem sempre sob esta forma lingüística, sob a forma do "é", do ser, e este ser mostra de início e na maioria das vezes uma indiferença e universalidade de sua signi-ficação. agora veio à tona: através do enunciado, o ser não é atribuído pela primeira vez a isto, sobre o que se enuncia; o ente, do qual o enunciado trata, tampouco obtém pela primeira vez o seu caráter ontológico através do "é". ao contrário, em toda a sua multiplicidade e determinação respectiva, o "é" sempre se mostra apenas coplo a éxpressão do que o ente é, do modo como :.

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ele é e de se ele é. a essência do ser em sua multiplicidade jamais pode ser em geral recolhida a partir da cópula e de suas significações. ela carece muito mais do retomo ao lugar, desde onde toda enunciação e sua cópula falam: ela carece do retorno ao ente mesmo já manifesto. porque o ser da cópula - em cada uma de suas possíveis interpretações - não é o originário, mas, não obstante, porque a cópula desempenha um papel essencial na proposição expressa e porque ela vige pura e simplesmente como o lugar da verdade, subsiste justamente aí a necessidade da destruição.

tal como foi caracterizado o poder intrínseco ao ÂÓyoç à7to<pavnkóç, este aponta conseqüentemete para uma abertura do ente enquanto tal. esta abertura reside antes de todos os enunciados. a pergunta impõe-se: esta abertura pré-lógica do ente enquanto tal é o jill1damento originário da possi-bilidade do poder já citado? será que neste fundamento se mostra o que aristóteles já suspeitava ao falar da crÚv8ecrtÇ e da Õtaípecrtç? se esta aber-tura originária do ente é mais originária do que o ÂÓyoç, mas o Âóyoç aponta para a assunção de uma atitude por parte do homem, onde está então esta abertura originária? de qualquer maneira, ela não está fora do homem, mas é ele mesmo em um sentido mais profundo, ele mesmo em sua essência. esta essência foi indicada sob a forma de tese: o homem é formador de 1111111do. onde se encontra a abertura e no que ela consiste?

neste momento, vemos ao menos o seguinte: se, de acordo com a sua possibilidade interna, o ÂÓyoç à7to<pavnkóç remonta a algo mais originário, e se este algo mais originário se acha de alguma maneira em conexão com o que chamamos de mundo e formação de mundo, então juízos e proposições não são em si primariamente formadores de mundo, mesmo que pertençam à formação de mundo. o Âóyoç é um poder caracterizado pelo "ou-ou" inerente à retirada do velamento-velamento em meio à mos tração. portanto, é preciso que um estar-aberto para o ente mesmo sobre o qual o homem enunciador a cada vezjudica já seja possível no homem enunciador mesmo antes da realização e para a realização de cada enunciado. o poder enquanto tal precisa conseqüentemente se compor com o "ou-ou" próprio à adequação ou inadequação ao ente, do qual se trata no ÂÓyoç. este estar-aberto do homem para o ente mesmo - este estar-aberto que pode se tornar objeto e tema de um enunciado - não é o ser-simplesmente-dado de um vazio largado às moscas, mas preenchível, um vazio que tem lugar no homem em contraposição às coisas e à sua determinação. ao contrário, este estar-aberto para o ente como ele é (um estar-aberto que suporta o Âóyoç) traz consigo enquanto tal a possibilidade d.e estar ligado ao ente, mostrando-o. por natureza, o estar-aberto para ... implica o lançar-se livremente ao encontro do que aí é dado enquanto ente, deixando-se ligar. a possibilida-

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de, plena de liames, de influir no ente, este ligar-se a ele em meio à assunçào de tal e tal atitude, caracteriza em geral todo poder e toda atitude em contraposição à aptidão e ao comportamento. nestes, nunca se encontra um deixar-se-atar a algo obrigatório, mas tão-somente uma desinibição do círculo pulsional através da perturbação.

se o enunciado mostrador deve ser, porém, de um modo ou de outro realizável, então a abertura pré-predicativa não precisa apenas acontecer e ter acontecido em geral constantemente. ao contrário, esta abertura prépredicativa precisa ela mesma ser um tal acontecimento. esta é a ligação preliminar com o que dá a medida ao enunciado mostrador: o ente como ele é. a dotação de medida no sentido da assunção de uma atitude que se deixa atar é transportada desde o princípio para o ente, de modo que a adequação ou inadequação é regulada a partir dele. a atitude enunciativajá precisa ter consentido em si com o que pode ser normativo para o enunciado mesmo. um tal consentimento e uma tal submissão. a algo obrigatório só é uma vez mais possível onde há liberdade. apenas onde se apresenta esta possibilidade de transposição de obrigatoriedade para algo diverso, está dado o espaço de jogo para que se decida sobre a adequação ou a inadequação da atitude cm relação ao que é obrigatório. se considerarmos a partir daqui a antiga dcfinição tradicional ele verdade: veritas est adaequatio intellectlls ad rem, ofloícüalc;, aquiescimento à medida, equiparação entre o pensamento e a coisa que é pensada, então veremos que esta definição de verdade é efetivamente correta a rrinçírio. contudo, ela também é apenas umponto de partidae não é de maneira alguma isto pelo que normalmente a tomamos: a saber, uma determinação essencial ou o resultado da determinação da essência da verdade. no que conceme à pergunta "em que se funda êin geral a possibilidade de aquiescer à medida ele algo?", ela é apenas o ponto de partida do problema. o que precisa se éncontrar à base da adaequatio é o caráter fundamental do estar-aberto. desde o princípio, o deixar-se-atar enquanto passível de assumir liames já precisa se lançar ao encontro do que deve ser conector e norma-tivo de tal ou tal modo. este lançar-se ao encon-tro que acontece em toda atitude enunciativa,fill1dando-a - ao encontro de algo que ata -, chamamos uma atitude fill1damental: o ser-livre em um sentido originário.

mas o que ata anuncia-se para a mos tração enquanto ente, um ente que sempre é ou não é de tal ou tal modo; que em geral é ou não é; que possui esta essência ou uma outra. a atihlde ftindamental, que possui o caráter do vir-ao-encontro, deixando-se. atar, precisa conseqüentemente acontecer em si de tal maneira que com ela se manifeste desde o princípio o ente enquanto tal. por outro lado, esta abertura do ente enqu~nto tal é de tal modo que a res~

pectiva atitude enunciativa, por ser um poder-de, pode se expressar tanto de acordo com o ser-assim-constituído quanto com o fato-de-ser, quanto ainda com a qüididade.

de acordo com perspectivas singulares, vem à tona cada vez mais claramente a diversidade essencial entre o estar-aberto próprio ao animal e a abertura de mundo intrínseca ao homem. o estar-aberto do homem é um vir-ao-encontro, o estar-aberto do animal é um ser-absorvido por. .. e aí um ser inserido no círculo envoltório.

d) o estar-aberto pré-lógico para o ente como uma integração (como formação antecipativa do "na totalidade ") e como desentranhamento do ser do ente. o acontecimento fundamental estrlltllrado de maneira tripla no ser-aí como a dimensão originária do enunciado

mesmo com isto, porém, ainda não esgotamos o que tem de acontecer a todo momento necessariamente nesta atitude fundamental do estar-aberto pré-predicativo para o ente. para vermos facilmente o que ainda nos falta não precisamos senão perguntar uma vez mais, totalmente sem teorias preconcebidas, pela tendência para a lllostração de um simples enunciado, buscando ao mesmo tempo o espaço de jogo, no interior do qual esta mostração necessariamente se movimenta.

como exemplo de um enunciado simples, tomaremos uma vez mais a proposição "o quadro é negro". este enunciado é "simples" no sentido da árcÀyí árcó<pavalc; de aristóteles porque não apresenta nenhuma configuração proposicional emaranhada e construída de maneira artificial. em toda esta simplicidade, contudo, e mesmo talvez justamente através dela, este ÀÓyoc; não se mostra como "simples" no sentido do que é proferido pura e simplesmente de maneira natural. pressentimos imediatamente que esta proposição já é como que preparada para a lógica e a gramática. no entanto, queremos nos libertar aqui justamente destas duas e de suas correntes. no sentido do que é dito espontaneamente de maneira natural, o enunciado anteriormente citado "o quadro encontra-se mal posicionado" já é mais simples; aó menos se não o. tomarmos tanto sob a forma de uma expressão formulada, mas no sentido do que é proferido e pensado silenciosamente por nós. a questão é: no que se refere ao nosso problema, o que devemos fazer agora com este exemplo "o quadro está mal posicionado"? neste momento, não se trata mais da estrutura do próprio ÀÓyoc; (pois expusemos esta estrutura segundo diversas direções), mas disto em que ele se funda com toda a sua estrurura enquanto um poder-de: o 'estar-aberto pré-lógico para o ente. para a caracterização deste estar-aberto, devemos experimentar algo

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mais a partir da interpretação da proposição citada. vale, portanto, direcionar o olhar para o que o enunciado enuncia: o quadro que se encontra mal posicionado. "mal posicionado" - que tipo de determinação é esta? por um acaso ela é diversa da determinação presente no exemplo pr(jcedente, ela é diversa do "ser-negro"? mal posicionado para os que estão sentados do outro lado do auditório ou mal posicionado para o professor, para o que está escrevendo e precisa sempre se dirigir uma vez mais ao quadro que não se encontra mais comodamente às suas costas. conseqüentemente, o mau po-sicionamento não é uma determinação do quadro mesmo, assim como a sua cor negra, seu comprimento e sua altura, mas uma determinação simples-mente relativa a nós, que estamos agora justamente aqui. com isto, esta determinação do quadro, o seu mau posicionamento, não é nenhuma pro-priedade assim chamada objetiva. ao contrário, ela está ligada ao sujeito.

mas o que é que esta indicação do fato de a determinação estar ligada ao sujeito pode trazer para o esclarecim,ento da abertura pré-iógica do ente? esta indicação pode possibilitar justamente a assim chamada dotação objetiva de medida por parte do ente em conexão com o Àóyoç mostrador que aí se retém. no entanto, se apontamos agora para a ligação ao sujeito, alcançamos através daí o contrário. a questão é que não se trata da referência subjetiva da propriedade "encontrar-se mal posicionado". uma tal referência talvez se apresente mesmo em meio à propriedade "negro" ou em meio à propriedade da cor - apenas em um aspecto totalmente diverso. não se trata nem da ligação da propriedade "mau posicionamento" com a coisa, nem da ligação desta'propriedade com o homem judicador e enunciador, mas da pergunta pelo que está manifesto de maneira pré-predicativa com a abertura pré-iógica do quadro que se encontra mal posicionado. nós nos deparamos com o quadro mal posicionado e só por isto podemos julgar correspondentemente. mas o que encontramos aí? o mau posicionamento. com certeza, já o constatamos e até mesmo esclarecemos porque ele subsiste. no entanto, foi justamente a sagacidade impertinente de um tal esclarecimento que nos conduziu ao eno. sem dúvida, iremos pensar: como é que procedemos de maneira extraordinariamente filosófica ao colocarmos em evidência o fato de o mau posicionamento do quadro não advir a este objeto em si, mas apenas em função daquele que lê e escreve!!! e, no entanto, mesmo este esclarecimento já é - abstraindo-se completamente do fato de ele nos desviar absolutamente do caminho da investigação - artificial. pois o mau posicionamento do quadro também é efetivamente uma propriedade deste quadro mesmo - muito mais objetiva até mesmo do que o seu ser-negro. pois o quadro não se encontra do modo como pensa esta interpretação por demais apressada: yle não está mal em relação a nós, em relação

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aos homens que se apresentam aqui faticamente. ao contrário, o quadro se encontra mal posicionado neste auditório. para vermos isto, basta nos lem-brarmos do seguinte: se não pensássemos esta sala como um auditório, mas como um espaço de dança, então este quadro se encontraria totalmente bem posicionado, fora do caminho. visto exatamente, ele não estaria bem posi-cionado, mas seria totalmente supérfluo. este quadro encontra-se mal posicionado nesta sala, que é um auditório e que pertence ao prédio da uni-versidade. o estar mal posicionado é justamente uma propriedade deste quadro mesmo. ela não lhe advém porque um ouvinte sentado à sua direita o enxerga mal. pois também aquele que está sentado diretamente diante dele precisa dizer: o quadro se encontra mal posicionado (a saber, no auditório). ele estaria mais bem posicionado lá onde, por boas razões, ele é habitualmente colocado, no meio e atrás da cátedra. mas com tudo isto não fizemos senão recolocar em seu verdadeiro lugar o esclarecimento falso desta propriedade do quadro - um esclarecimento que possui a aparência de ser eminentemente filosófico. não obstante, não deveríamos antes de tudo nos engajar em uma elucidação da natureza desta propriedade. cel1amente, não! ao contrário, deveríamos apenas concentrar o olhar no que nos é manifesto junto ao ente em meio à abertura pré-predicativa. isto sobre o que versa o enunciado, isto que só expomos expressamente de maneira enunciativa e que propriamente mostramos, é o quadro que se encontra mal posicionado. ele já está manifesto. apenas ele? não! olhamos para a cátedra, para o caderno diante de nós e coisas do gênero. muitas coisas. no entanto, para este enunciado e para o fundamento de sua possibilidade, nada disto é colocado em questão. sem dúvida alguma, porém, o que é colocado em questão é justamente o quejá está concomitantemente manifesto no mau posicionamento corretamente tomado - o auditório como um todo. a partir da abertura do auditório, experimentamos em geral o mau posicionamento do quadro. exatamente esta abertura do auditório, no interior do qual o quadro se encontra mal posicionado, não se dá absolutamente de fonna expressa no enunciado. através do enunciado "o quadro está mal posicionado" não conquistamos pela primeira vez a abertura do auditório, mas esta abertura é inversamente a condição de possibilidade para que o quadro em geral possa ser isto sobre o que produzimos um juízo. portanto, em meio a esta judicação aparentemente isolada sobre esta determinada coisa,já falamos a partir de uma abertura, que, como podemos dizer provisoriamente, não é apenas algo plural, mas sim algo na totalidade. neste sentido, deparamo-nos aqui com dojs fatos: o fato de nós, sempre, junto a todo e qualquer enunciado singular - por mais que este seja extremamente tri vial ou complicado -, falarmos a partir de um ente manifesto na to-

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talidade, e o fato mesmo deste "na totalidade" - a totalidade do auditório que já compreendemos de antemão. estes dois fatos não são uma vez mais o resultado de uma mostração através do enunciado. ao contrário, os emm-ciados só podem ser inseridos no que já está manifesto na totalidade.

assim vem à tona que, para a possibilidade de realização de um enun-ciado, não é apenas necessário que este instaure por si e a partir disto sobre o que ele judica a possibilidade de uma conexão obrigatória, nem que aquilo sobre o que o juízo é produzido seja concebido e tomado desde o princípio como um ente. ao contrário, já é igualmente necessário que todo e qualquer enunciado direcione o discurso para o interior de uma abertura na totali-dade, e, ao mesmo tempo, fale a partir de uma tal abertura.

vemos agora mais claramente que o enunciado não é nada originário e autônomo. a partir deste momento, porém, gostaríamos precisamente de saber o que caracteriza o lugar, onde ele se funda: gostaríamos de saber o que é isto que chamamos o estar-aberto pté-lógico do homem para o ente.

antes de continuarmos perguntando pelo segundo momento que acabamos de evidenciar da dimensão originária do enunciado, recapitulemos o que foi visto até aqui desta dimensão originária. questionamos a estrutura fundamental do ÀÓyoç em função de sua possibilidade interna, em função disto a partir do que o À,óyoç emerge enquanto À,óyoç. isto exige um retomo até a dimensão originária. aí deparamo-nos com algo múltiplo que, visto em sua unidade, perfaz a própria possibilitação do À,óyoç, nos reconduzindo, porém, aomesmo tellipo, para o que chamamos "formação do mundo". a primeira coisa que tivemos a oportunidade de ver sobre este caminho foi: o ÀÓyoç é um ÀÓyoç mostrador. o modo e a forma pelos quais ele toma manifesto não apontam para nenhum tomar manifesto primário e originário no sentido de que um juízo e um enunciado sempre poderiam tomar em si mesmos acessível isto sobre o que élesproduzem enunciados. ao contrário, todo ÀÓyoç só é mostrador, isto é, expositor, do que já está manifesto pré-iogicamente. mas não apenas isto; para que o À,óyoç possa fazer frente a esta função fundamental da mostração, ele precisa poder ser mostrador, ele precisa ter a possibilidade de se ajustar ao que mostra ou de perdê-lo em meio à mostração. pois a possibilidade do poder-ser-falso também lhe é pertinente. desta feita, o À.Óyoç carece em si e por si deste espaço de jogo da ajustabilidade e da inadequação. dito de maneira totalmente genérica, ele carece de antemão de algo que lhe forneça a medida para toda mensuração. para toda atitude enunciativa, urna atitude já se estende na direção disto sobre o que é enunciado. esta atitude tem o caráter do manter-se lançado ao encontro de uma obrigação. a partir daí é pos,sível, então, adequação e inadequação, adaequatio no sentido último do termo. o primeiro momento,

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que se encontra à base

do À.Óyoç, é este manter-se lançado ao encontro de uma obrigação. procuramos aproximar de nós o segundo momento através da análise concreta de um exemplo determinado: este quadro está mal posicionado. de maneira intencional, demos inicialmente importância a uma afirmação do que é visado nesta propriedade citada, a partir da perspectiva que indicamos: o que atribuímos aqui ao quadro não é apenas uma propriedade que lhe advém relativamente a nós, que o consideramos e fonnamos juízos sobre ele. ao contrário, justamente esta propriedade é pura e simplesmente objetiva: ela é uma propriedade que advém a este objeto específico enquanto tal, quando nós o vemos expressamente em sua verdadeira objetividade - uma objetividade que nosso enunciado tem em vista ao dizer: o quadro se encontra mal posicionado. como exprimimos este enunciado espontaneamente, de maneira não construti va e sem qualquer reflexão teórica; como o exprimimos a partir de nossa presença cotidiana, não ternos em vista o quadro sozinho em meio a este enunciar, mas temos em vista, sim, mesmo que não no sentido restrito do que é visto, a sala aqui enquanto auditório. de acordo com o caráter de coisa que o auditório possui enquanto tal, ele mesmo exige na sala uma colocação totalmente detelminada do quadro enquanto quadro. o decisivo desta interpretação do enunciado é o fato de não formarmos juizos em relação a um objeto isolado, mas de falarmos

neste juizo a partir da totalidade já experimentada e conhecida, que chamamos auditório.

para caracterizar mais amplamente a essência deste estar-aberto, o que podemos deduzir do fenômeno que acaba de ser posto em evidência? inicialmente poder-se-ia dizer: com certeza, não é nenhuma grande sabedoria acentuarmos que a possibilidade do enunciado está em conexão com a abertura inerente ao auditório. isto segue por si, uma vez que nunca podemos nos expressar em nossos enunciados senão sobre um objeto, e, conse-qüentemente, sempre precisamos escolhê-l o a partir dos restantes. este resto pertence justamente à multiplicidade de coisas que constantemente nos acometem.

isto é, de fato, exato - tão exato que, em face das numerosas indicações dos entes que, além do quadro, também estão simplesmente dados na sala, desconsideramos o que temos propriamente de considerar. pois não se trata aqui do seguinte: ao lado e além do quadro há ainda outras coisas simples-mente dadas, ao lado destas outras coisas há também o quadro. se só estabe-lecermos as nossas considerações do modo como na maioria das vezes acontece na lógica e na teoria do conhecimento: se tivermos objetos quaisquer sobre os quais então judicamos, objetos que investigamos enquanto tema do juízo e aos quais acrescentamos outros objetos possíveis, perdemos

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de vista o que chamamos o contexto específico. À medida que nos movi-mentamos neste plano, vale, em uma aplicação quase literal, a sentença: diante de numerosas árvores, não vemos a floresta. mais exatamente: com uma plasticidade concreta, esta sentença quer dar expressã9 a algo que vale ser tomado de maneira principia!. e nós podemos tomar mesmo a sentença em um giro mais principial e antecipativo da seguinte forma: diante de 1iluitos entes, o entendimento vulgar nào vê o 1ilundo; o mundo no qual ele precisa se manter constantemente, para poder apenas ser o que ele mesmo é, para poder lançar mão deste ou daquele ente no sentido do objeto possível da enunciação. o que expusemos anteriormente (cf. supra, p. 315) como traço característico do entendimento vulgar, aquela indiferença, na qual ele retém todo ente, que atravessa o seu caminho, esta indiferença mesma em relação ao ente é - ela mesma emaizada em uma dimensão mais profunda-concomitantemente uma razão para este não-ver o mundo.

em face da sentença "diante de numerosas árvores não vermos a floresta", porém, notamos ao mesmo tempo a grande dificuldade em que nos encontramos. pois não devemos apenas - para permanecer no interior do plano imagético - ver a floresta, mas dizer simultaneamente o que e como ela é. aí precisamos naturalmente ter cuidado para não interpretarmos o mundo segundo a analogia com a floresta. a única coisa que importa aqui é este ponto decisivo: em relação às árvores singulares e à sua aglomeração, a floresta é algo diverso. por conseguinte, ela não é apenas o que acrescentamos conceitualmente e de maneira arbitrária à soma de árvores supostamente dada sozinha: ela-não é apenas quantitativamente mais do que uma aglomeração de muitas árvores. este algo diverso não é certamente nada que também se encontraria ao lado das muitas árvores como algo simplesmente dado. ao contrário, ele é aquilo, a partir do que as muitas árvores se mostram como pertencentes a uma floresta. para retomarmos ao nosso exemplo: ainda não

compreendemos e apreendemos em geral a abertura pré-iógica do ente, se a tomamos como o estar simultaneamente manifesto de um ente múltiplo. tudo depende muito mais de vermos já na estreiteza e limitação do enunciado "o quadro está mal posicionado" como isto sobre o que se produz um enunciado, o quadro que se encontra mal posicionado, é manifesto a partir de um todo; a partir de um todo que não concebemos absolutamente enquanto tal de maneira própria e explícita. justamente este lugar, contudo, em que já sempre nos movimentamos, é o que designamos de início esquematicamente através da expressão "na totalidade". esta expressão não é nada além do que percebemos no Àóyoç como uma abertura pré-iógica do ente. podemos dizer agora de modo totalmente genérico: o estar-aberto pré-lógico para o ente, à partir do qual todo e qualquer ÀÓyoç já

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precisa falar, sempre integra desde o princípio o ente a um "na totalidade". não compreendemos por esta integração o acréscimo ulterior de algo que até então

estava faltando, mas sim aformação prévia do "na totalidade "já vigente. (além disso, no sentido artesanal do termo, o essencial emtoda integração não é a junção da parte que falta. ao contrário, a capacidade central da integração se mostra através do poder de ver e pré-formar desde o princípio a totalidade, juntar à totalidade.) toda enunciação acontece sobre a base de uma tal integração, isto é, sobre a base de uma formação prévia deste "na totalidade". segundo a sua amplitude e transparência, segundo a sua riqueza de conteúdo, este "na totalidade" é diversà e muda mais ou menos constantemente para nós na cotidianidade de nosso ser-aí, mesmo se virmos aqui se manter uma medianidade característica do "na totalidade". esta é uma questão peculiar. por conseguinte, o estar-aberto pré-iógico do homem para o ente não é apenas um manter-se previamente ao encontro da obrigatoriedade, mas, juntamente com isto, este integrar que acaba de ser caracterizado.

além disso, no entanto, esta integração, que se mantém ao encontro da obrigatoriedade, é - assimjá o vimos - um estar-aberto para o ente, de modo que este estar-aberto possibilita expressar-se sobre o ente, falar da qiiididade, do ser-tal, dofato-de-ser e do ser-verdadeiro. por conseguinte, o ser do ente tambémjá precisa ser de alguma maneira desentranhado nesta e através desta integração descrita.

com isso, dá-se o retomo à dimensão originária do ÀÓyoç àrro<pav-'ttl<Óç, uma rica conexão em si articulada. esta conexão caracteriza eviden-temente um acontecimento fundamental no ser-aí do homem, um acontecimento que fixamos através de três momentos: 1. o manter-se ao encontro da obrigatoriedade; 2. a integração; 3. o desentranhamento do ser do ente. através destes três momentos assinala-se um acontecimento fundamental uno no ser-aí do homem. É sempre apenas a partir deste acontecimento que o Àóyoç pode emergir. a questão é: como devemos tomar de forma una este acontecimento fundamental no ser-aí, este acontecimento que é caracterizado através dos três momentos?

mas este acontecimento fundamental, que deve possibilitar o Â.óyoç, ainda tem alguma mínima coisa em comum como que aristóteles evoca como a condição de possibilidade, e, conseqüentemente, como a origem do ÀÓyoç àrro<pav'ttl<óç, com a crúv8ecrtç-ôtaipemç ou com a crúv8emç que se expressa no "é" da cópula? tudo isto com o que nos deparamos não é muito mais rico e emaranhado do que o que aristóteles indica da maneira citada? certamente! mas isto não significa para nós senão que devemos tornar compreensível, em uma real interpretação, por que aristóteles, em seu primeiro ímpeto em direção a esta dimensão originária, precisou tomar a

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condição fundamental da maneira conhecida. simultaneamente, ainda permanece como digno de atenção o fato de isto a que aristóteles reconduz o 'aóyoç - a crÚv8ecrlÇ que é ao mesmo tempo Õtaípecrlç - não poder absolutamente viger como algo óbvio, apesar de seu caráter f0i1l,1al. se há razão em nossa elucidação da origem do todo da construção essencial do À.Óyoç, então precisa ser clarificado a partir dela como é possível algo assim como a crúv8ecrtÇ-õtaípecrlÇ e o que no fundo precisa ser compreendido aÍ.

dissemos, em seguida, que o que aristóteles estabelece como fundamento de possibilidade do À.Óyoç <xttoepavw(óç - a crÚv8ecrlÇ - Õ taípecrtÇ _ é aquele ligar e aquela atitude conectora, na qual emergem o "enquanto" e a estrutura-"enquanto". se é assim e se o que aristóteles vê de maneira apenas indeterminada e esvaecida pertence ao rico contexto estrutural articulado do acontecimento fundamental, que é expresso através do manter-se ao encontro da obrigatoriedade, através da integração e do desentranhamen_ to do ser do ente, então é neste acontecimento que precisa emergir a própria estrutura-"enquanto". uma vez que o "enquanto" é, porém, um momento estrutural do que chamamos mundo e mundo é tomado como a abertura do ente enquanto tal na totalidade, com aquele acontecimento fundamental (tripio) nos deparamos com o acontecimento, no interior do qual tem lugar o que chamamos formação de mundo. isto se toma ainda mais verossímil, à medida que, segundo a análise formal, o "na totalidade" se refere à estrutura do mundo - este "na totalidade", que diz respeito evidentemente à integração, nela se forma.

§ 74. formação de mundo como acontecimento fundamental no ser-aÍ. a essência como a vigência do mundo--

assim, nos aproximamos da interpretação direta e imediata do fenômeno do mundo inicialmente sob o fio condutor da caracterização que foi levada a termo através da análise formal: mundo como abertura do ente enquanto tal na totalidade. se tomarmos imediatamente esta determinação do mundo, é fácil perceber que não se fala aí absolutamente nada do enunciado e do À.Óyoç. mas por que entramos, então, em considerações sobre eles? isto não foi um desvio? em certo sentido não há dúvida de que houve aí um desvio. todavia, este foi um daqueles desvios com os quais todo filosofar se acerca do que está em quest~o para ele. por outro lado, para que percebamos que este não foi nenhum desvio no sentido de um percurso supérfluo, basta nos lembrannos de que a tradição da filosofia tratou sob o título do À.Óyoç, da ratio, da razão, o que procuramos desdobrar como o problema do mundo, mas que ela não reconheceu ,enquanto tal. até hoje, em meio a uma série de

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disfarces, o problema se mostra para nós como desconhecido. com efeito, estes termos e o que é por eles tratado foram há muito assumidos como questões extrinsecas e só muito dificilmente se está em condições de libertá-los desta camisa de força. só aprendemos com a história se antes e ao mesmo tempo a despertamos. o fato de não conseguirmos aprender mais nada da história diz apenas o seguinte: nós mesmos nos tomamos entes sem história. nenhum tempo conheceu uma tal avalanche de tradição e nenhum jamais foi tão pobre em uma herança real. aóyoç, ratio, razão, espírito: todas estas palavras são termos encobri dores do problema do mundo.

não obstante, ao mostrarmos que o Àóyoç remonta, segundo sua possi-bilidade intema, a algo mais originário, quatro pontos tomaram-se ao mesmo tempo claros: 1. o À.Óyoç não é o ponto de partida radical para o desdobramento do problema do mundo; 2. por isto, enquanto o À.Óyoç, tomado em seu sentido mais amplo - e suas modulações -, dominar a problemáticada metafisica, enquanto a metafisica for "ciência da lógica" (hegel), este problema precisará ser mantido suspenso; 3. se este modo de colocação do problema sob o fio condutor do À.Óyoç pôde, contudo, se afirmar por tanto tempo e levar a grandes obras da filosofia, então não podemos nem mesmo sonhar em afastar esta herança tradicional através de uma simples manobra; 4. ao contrário, este afastamento só acontecerá se assumirmos sobre nós o esforço de transfonnar o homem, e, com isto, a metafisica herdada, em um ser-aí mais originário, para deixar emergir novamente a partir desta transformação as antigas questões fundamentais.

no que conceme ao que acabamos de fixar uma vez mais no quarto ponto, procuramos empreendê-ia através de um duplo caminho: inicialmente, sem a orientação dada por uma determinada questão metafisica, através do despertar de uma tonalidade afetiva fundamental de nosso ser-aí; ou seja, através da transformação de nossa essência humana a cada vez em nosso próprio ser-aÍ. em seguida, sem nenhuma ligação expressa e constante com a tonalidade afetiva fundamental, mas, de qualquer modo, em uma lembrança silenciosa desta tonalidade, procuramos desdobrar uma questão metafisica sob o título do problema do mundo. isto aconteceu através de um desvio promovido por uma consideração comparativa. este desvio estendeu-se ainda mais amplamente e foi empreendido com o auxílio da tese "o animal é pobre de mundo". uma tal tese só tinha nos trazido aparentemente algo negativo, até que passamos à interpretação da tese "o homem é formador de mundo". o todo da interpretação transformou-se em um retomo a uma dimensão originária, em um acontecimento fundamental. agora afirmamos que neste acontecimento tem lugar aformação de mundo. isto que dissemos serem o os momentos fundamentais deste acontecimento, o man- 1

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ração e o desentranhamento do ser do ente, estes tr

ês elementos em seu enraizamento especificamente uno jamais encontramos em parte alguma e em sentido algumjunto aos animais: mas o que temos não é uma simples falta destes momentos citados junto ao animal. ao contrário, o animal não tem algo deste gênero em meio a e em função de uma posse totalmente determinada, em meio a e em função de seu modo de estar-aberto no sentido da perturbação.

com isto, é em tal acontecimento que temos de compreender "mundo". portanto, vale agora compreender de maneira una este acontecimento jimdamenta! e determinar a partir dele, ao mesmo tempo direta e positivamente, a partir do acontecimento da formação de mundo, a essência do mundo. esta compreensão não é, porém, a elucidação de uma coisa que se encontra diante de nós, ela não é possível como um falatório interminável sobre algo previamente dado - um falatório ao qual qualquer um se liga em qualquer lugar, por mais despréparado que esteja. ela tampouco é questãoo que no fundo é o mesmo - de uma perspicácia extraordinária, de uma intuição. toda consideração - de uma maneira ou de outra - precisa se manter eternamente afastada do que o mundo é, tendo em vista que sua essência reside no que chamamos a vigência do mundo, a vigência que é mais originária do que todo ente que venha a se impor. tanto o despeliar da tonalidade afetiva fundamental na primeira parte da preleção quanto o retorno empreendido, por fim, desde a estrutura do À.Óyoç até o interior do acontecimento fundamental servem, ambos, ao mesmo: à preparação da inserção no acontecimentoâcivigência do mundo. esta inserção e este retorno filosofantes do homem ao ser-aí nele nunca podem ser obtidos, mas só podem ser sempre preparados. o despertar é uma questão de cada homern singular, não de sua mera boa vontade ou mesmo de sua astúcia, mas de seu destino,38 do . que lhe cabe ou não lhe cabe. mas tudo o que cabe só se torna para nós algo que precisa acontecer e acontece se tivermos esperado e pudermos esperar por ele. no entanto, somente quem venera um segredo está em condições de conquistar a força de uma espera. neste sentido metafísico, esta veneração implica uma interação no todo que nos transpassa de modo dominante. somente assim chegamos à possibilidade de vir a ser transpassados expressamente de modo dominante por este "na totalidade" e pelo mundo; tão

38.heidegger joga aí com os termos geschickliclzkeit c gesclzick, que traduzimos respectivamente por "astúcia" c "destino". os dois termos provêm do verbo schicken, que significa "mandar", "enviar", "remeter". a gesclzickliclzkeit designa a habilidade de levar algo a termo de maneira rápida e em sintonia com os fins almejados, enquanto o geschick descreve a possibilidade de se deixar tomar pela necessidade' de um cnvio. (n.t.)

expressamente que temos a possibilidade de perguntar compreensivamente por

eles. com isto,já falamos da vigência do mundo e indicamos o seguinte: se nos

dispomos a tratar desta vigência do modo como lidamos com negócios, viramos ao mesmo tempo as costas para ela. no entanto, o que está concomitantemente indicado é que o desdobramento da essência não pode ser repelido para o interior de um discurso edificante. estes extravios bloqueiam constantemente a entrada no acontecimento fundamental do ser-aí; e isto de maneira tanto mais pertinaz, uma vez que nos entregamos cada vez menos e cada vez mais inseguramente ao poder do conceito e do conceber.

presentifiquemo-nos ainda uma vez o que foi dito agora em meio à passagem do enunciado para o mundo. nossa consideração conduziu-nos do À,óyoç para o mundo, mais exatamente no sentido de um retomo à abertura pré-iógica do ente. compreendemos aqui o termo "pré-iógico" no sentido totalmente determinado do que possibilita o ÂÓyoç enquanto tal segundo todas as suas dimensões. a abertura pré-iógica é um acontecimento fundamental do ser-aÍ. este acontecimento é caracterizado por algo triplo: o vir-ao-encontro da obrigatoriedade, a integração e o desentranhamento elo ser elo ente. no que diz respcito a este acontecimento fundamental em si articulado, afirmamos que aristóte!es, ao reconduzir o Àóyoç à aúv8emç e à 8wipemç, se movimentava em direção a ele, sem perceber este contexto estrutural enquanto tal. tal como ainda se mostrará, em seu caráter peculiar de ligação, este acontecimento fundamental, também é agora o que conhecemos como o lugar em que está enraizado o "enquanto" e a estrutura-"enquanto". do À,óyoç para o mundo, o mundo tomado formalmente como abertura do ente enquanto tal na totalidade. a partir daí vem à tona a pergunta: por que não partimos diretamente desta definição do mundo alcançada inicialmente de maneira formal, e, então, avançamos diretamente até a interpretação da estrutura? por que escolhemos ao invés disto o desvio pelo À.Óyoç? tivemos a 0poliunidade de constatar: a ratio, a razão, dominou a problemática conjunta da metafisica justamente em relação ao problema do mundo, que nunca foi efetivamente considerado. se em um aspecto queremos nos libertar desta tradição, isto não significa que a queremos em certa medida repelir e deixar para trás. ao contrário, toda libertação de algo só é uma autêntica libertação, se ela domina isto de que se libera, se ela o apropria. a libertação ante a tradição é a apropriação sempre renovada de suas forças uma vez mais reconhecidas. para este grande passo, que, segundo nossa convicção, a metafisica tem de dar para o tempo vindouro, não são suficientes uma arg~cia, uma perspicácia e descobertas filosóficas quaisquer, que acreditemos ter feito. se compreendemos efetiva-

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ontológica específica do ente que se encontra

contraposto a nós ou mesmo do ente que se tornou objeto teórico da ciência. para dar um exemplo concreto: quando kant pergunta, na crítica da razão pura, pela possibilidade interna da natureza no sentido do ente simplesmente dado, em ,ueio a todo o modo de colocação do problema, por mais radical que ele seja em relação ao que lhe precedeu, algo essencial e central não é concebido, a saber, que este ente material, do qual versa aqui o discurso, tem o caráter da ausência de mundo. por mais que esta seja uma determinação negativa, no que concerne à determinação metafisica da essência da natureza, ela é algo positivo. a problemática inerente à pergunta kantiana na crítica da razão pura só pode alcançar o seu fundamento metafisico se compreendermos que as assim chamadas regiões do ser não podem ser encaixadas umas ao lado das outras, umas sobre as outras ou umas atrás das outras, mas só são o que são no interior de uma vigência ou a partir de lima vigência do mundo.

este "na totalidade", porém; que constantemente nos envolve e não possui nada em comum com qualquer espécie de panteísmo, também precisa se mostrar como o que traz consigo aquela indiferença da abertura do ente; a indiferença, na qual comumente nos movimentamos. a questão é que, por mais indiferente que possa ser para nós inicialmente o respectivo modo de ser ele um ente ante outros (homem, evento), em especial no que se refere à articulação conceitual, nossa atitude fática sempre é de qualquer modo a cada vez diversa, portanto, marcada por diferença. À indiferença peculiar do saber e da compreensão corresponde uma diferença totalmente segura da atitude,do-engajamento relativo ao ente em questão. todavia, a atitude múltipla e diferente ante o ente retém-se de qualquer modo sob o pano de fundo da indiferença; o que quer dizer que tudo o que é manifesto, seja de um modo ou de outro, é justamente um ente. algo deste gênero é tudo o que está aí e é tal ou tal. ser um ente - nisto todo e qualquer ente concorda com o outro, isto é o maximamente indiferente, o maximamente corrente e universal que podemos dizer do ente. aqui não há mais nenhuma diferença. o fato de todo e qualquer ente ser tal ou tal, o modo como ele é a cada vez e se ele é ou não - tudo isto não nos diz respeito apenas em relação ao ente que nós mesmos não somos, mas também em relação ao ente que nós mesmos somos. mas o fato de todo e qualquer ente ser não diz absolutamente nada e é ao mesmo tempo desprovido de caráter de questão. com toda a certeza - algo deste gênero não nos diz nada em nossas perambulações cotidianas, e, em verdade, não pode ser nem mesmo uma pergunta séria para nós. o que resta, então, afinal, a perguntar? ou o ente é assim ou é diverso, ou ele absolutamente não é ou é. no entanto, em tudo isto, sempre nos preocupamos com o ser doente e' decidimos constantemente sobre ele.

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por que, enfim? não

podemos nos manter

simplesmente junto ao ente, junto a este ou aquele que nos conceme, oprime ou alegra ou que se coloca assim justamente no nosso caminho? o ser do ente - podemos entregá-ia aos filósofos para as suas especulações vazias, que são como bolhas de sabão.

ah, se ao menos pudéssemos: sair sem o ser! É preciso, porém, que isto seja possível. a prova indubitável de que algo deste gênero é possível é a nossa própria história - a nossa história até o instante em que nos metemos com a filosofia e passamos a ouvir falar algo sobre o ser do ente; e isto mesmo que tenhamos apenas ouvido, sem compreender algo aí. antes disto conhecíamos, buscávamos, explorávamos' e honrávamos o ente, e talvez mesmo sofrêssemos do ente, sem qualquer carecimento do ser. sim, o ente mesmo, o que efetivamente importa, nos era antes disto acessível imediatamente, sem que a menor reflexão maçante aí se interpusesse. podemos abdicar do ser do ente e nos manter apenas junto ao ente. É indiscutível que podemos assumir uma atitude em relação ao ente, sem que jamais nos preocupemos um instante com a pergunta filosófica sobre o ser do ente. todavia, segue daí que nós nunca ouvimos nada sobre o ser do ente e somente na filosofia passamos a ouvir algo neste sentido? ou não será necessário concluirmos inversamente: se a pergunta filosófica sobre o ser do ente é possível, sim, talvez até mesl110 necessária, então a filosofia não pode inventar isto pelo que ela pergunta. ela precisa de alguml11odo encontrá-ia; e encontrá-ia mesmo enquanto um tal que não pertence a um âmbito qualquer, mas ao âmbito essencial; sim, até mesmo à essencialidade de tudo o que há de essencial. mas se a filosofia em todo questionamento só pode dispor sobre e precisa se conformar com o que é primariamente um achado essencial, que o homem qua homem já sempre alcançou sem o saber, então tudo não se dá de tal modo que o ser do entejáfoi encontrado antes de toda e para além de toda filosofia, mesmo que este seja um achado tão gasto e que a sua primordial idade aponte tão distantemente para o interior do mais remoto passado, de maneira que não atentemos para esta sua primordialidade? será que escutamos falar pela primeira vez no ser do ente através da filosofia ou será que játínhamos há muito encontrado o ser do ente, em relação ao qual assumimos uma atitude e ao qual mesmo pertencemos? já não nos conformamos sempre e há muito tempo com este achado, de modo que não chegamos mais nem mesmo a atentar para ele? atentamos tão pouco para ele que, em todas as nossas atitudes em relação ao ente, no fundo desconsideramos muito mais o ser do ente; e o desconsideramos de tal forma que recaímos na opinião talve;z esdrúxula e quiçá impossível de que nos mantínhamos justamente junto ao ente e poderíamos prescindir do ser? com certeza - a indiferença mais profunda e a monocordia do entendi-

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sintetizemos novamente e de maneira ainda mais concisa a posição de nossa interpretação do fenômeno do mundo, a fim de visualizarmos a estrutura originária una deste acontecimento fundamental que se encontra à base do Àóyoç e de concebermos, em meio à compreensão desta estrutura originária deste acontecimento fundamental do ser-aí, o que se tem em vista com a tese: na essência e no fundamento de seu ser-aí, o homem é formador de mundo.

por umiªdo,j~itios a análise formal: mundo é a abertura do ente enquanto tal na totalidade. por outro lado, através do retomo empreendido a partir do ÀÓyoç, temos um acontecimento que foi caracterizado d}: modo triplo: manter-se ao encontro da obrigatoriedade, integração, desentranhamento do ser do ente. em verdade,. este acontecimento fundamental não esgota o que temos em vista com a expressão "formação de mundo", mas lhe pertence essencialmente. por conseguinte, ele precisa estar ligado em si ao mundo. a abertura do ente enquanto tal na totalidade precisa acontecer nele. este acontecimento fundamental, caracterizado de maneira tripla, deixa-se apreender em sua estrutura originária, isto é, !ia estrutura em que os momentos citados se compertencem articuladamente e em que possibilitam, na unidade de seu compertencimento, o que chamamos de abertura do ente enquanto tal na totalidade? de fato, podemos tomar este acontecimento fundamental em uma estrutura originária una, para compreendermos a partir dela os momentos singulares como comum-pertencentes a ela. no entanto, isto só é possível da seguinte maneira: precisamos levar adiante a interpretação até aqui e não simplesmente colar uns aos outros os assim chamados resultados. não podemos recompor, com o àuxílio de estruturas do ser-aí, a i

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estrutura originária do acontecimento fundamental, triplamente caracterizado, próprio ao ser-aÍ. ao contrário, precisamos conceber a unidade interna deste acontecimento fundamental e promover, com isto, para nós, pela primeira vez, justamente uma visualização da constituição fundamental do ser-aÍ.

nós vemos: a abertura pré-iógica do ente tem o caráter do "na totalida-de". em todo enunciado, quer o saibamos, quer não, das maneiras as mais diversas e variadas, sempre falamos a cada vez a partir da totalidade e em di-reção ao seu ceme. antes de tudo, este "na totalidade" não diz respeito, por exemplo, apenas ao ente, que temos justamente agora diante de nós em uma ocupação qualquer. ao contrário, todo ente a cada vez acessível, nós mesmos incluídos, é abarcado por esta totalidade. nós mesmos somos compreendidos neste "na totalidade". não no sentido de sermos um componente que lhe é pertencente e que também está aí, mas sempre a cada vez de uma maneira diversa e em possibilidades que pertencem à essência do ser-aí mesmo, seja sob a forma do despontar em meio ao ente, seja sob a forma do encontrar-se diretamente em face dele, sob a forma do seguir conjuntamente, do ser-repelido, do ser deixado vazio, do ser-retido, do ser-preenchido ou portado. estes são modos de ser circundado e transpassado pela vigência deste "na totalidade", que são independentes de uma reflexão subjetiva e de uma experiência psicológica.

pelo que foi dito, está inicialmente insinuado que este "na totalidade" não é cortado sob medida para uma esfera particular ou mesmo para um gê-nero particular do ente. bem ao inverso, este "na totalidade", o mundo, é o que permite a abertura dos múltiplos entes em seus contextos ontológicos diversos - outros homens, animais, plantas, coisas materiais, obras de arte, isto é, tudo o que conseguimos encontrar enquanto ente. mas esta multipli-cidade ou é mal compreendida ou nem mesmo é compreendida, se a tomamos como a mera pluralidade colorida, que está simplesmente dada. se nos lembrarmos apenas da esfera particular do reino animal, então já notaremos lá uma peculiar engrenagem e um peculiar acoplamento dos cÍrculos envoltórios dos animais, que estão uma vez mais incorporados de maneira peculiar ao mundo do homem. o que designamos formalmente como a multiplicidade do ente carece de condições totalmente detemiinadas para vira-ser manifesto enquanto tal- de maneira alguma esta multiplicidade carece apenas da possibilidade de diferenciar os diversos gêneros do ser, como se estes estivessem ordenados por assim dizer no vazio uns ao lado dos outros. enquanto esta vigência, o entrelaçamento das diferenças mesmas e o modo como este entrelaçamento nos oprime e suporta são a legalidade originária, a partir da qual compreendemos pela primeira vez a constituição

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mente algo desta tarefa, então esta compreensão se dá muito mais no sentido de que ela não é possível senão emfilllção de uma transformação do ser-aí mesmo. em vista desta transformação e de sua preparação, percorremos dois caminhos. na primeira parte da preleção, percorremos o caminho do despertar de uma tonalidade afetiva fundamental; na segunda parte, o caminho da consideração de um problema concreto, sem ligação com a tonalidade afetiva fundamental. os dois caminhos convergem agora; mas certamente de um modo tal quetampouco podemos impor através daí a transformação do ser-aí e obtê-ia em um sentido qualquer. continuamos sempre podendo apenas - a única coisa que a filosofia pode fazer - prepará-la.

§ 75. o "na totalidade" como o mundo e a enigmaticidade da distinção entre ser e ente

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mento vulgar não residem naquela assunção de uma atitude indiferente em relação ao ente diverso, no interior do qual ele, não obstante, se apruma e se orienta, ao contrário, a monocordia do entendimento vulgar tem o seu caráter descomunal justamente no fato de ele desconsiderar o ser do ente e só conseguir conhecer o ente. este é o principio e o fim de seu m~do de proce-der. em outras palavras, exatamente a diferença permanece vedada ao en-tendimento vulgar: a diferença que por fim e no fundo possibilita todo diferenciar e toda diferencialidade. se a essência do entendimento consiste justamente no diferenciar (desde há muito viu-se assim a sua essência kpi vet

v), então, em sua magnitude, ele mesmo só pode ser o que é em função da diferença, da qual ele acredita poder prescindir.

que tipo de diferença é esta: "ser do ente"? ser e ente. confessemos tranqüilamente: ela é obscura e não é tão simplesmente passível de ser levada a termo quanto a diferença entre branco e preto, casa e jardim. por que, nestes casos, a diferença é facilmente passível de ser levada a termo? porque ela é uma diferença entre ente e ente. de maneira totalmente formal e genérica, esta diferença é passível de ser levada a termo tanto se ela se movi-mentar na mesma esfera quanto se ela subsistir entre entes de esferas diver-sas, como, por exemplo, entre a motocicleta e o triângulo, entre deus e o númerq ,"cinco". mesmo se as diferenças no particular forem dificeis de ser determinadas, o ponto de partida imediato de tuna tal cletenninação está dado como que por si mesmo - justamente em direção ao ente que vem constante-mente ao nosso encontro, mesmo se não o apreendermos expressamente, nem o submetermos a u_ma _coesideração comparativa diferenciadora.

mas: ser e ente. aqui a dificuldade não reside na determinação do gê-nero. aqui a insegurança e aporiajá começam muito mais assim qu~buscamos conquistar o campo, a dimensão para a diferenciação. pois esta dimensão não reside no ente. ser não é efetivamente um ente entre outros. ao contrário, tudo isto em que se produziram anteriormente diferenciações, tudo isto e os âmbitos concernentes, cai agora sob o lado do ente. e o ser? não sabemos colocar o ser em parte alguma. e ainda além: se os dois são fundamentalmente diversos, então eles continuam de qualquer modo ligados um ao outro em meio à diferença: a ponte entre os dois é o "e". além disto,

enquanto um todo, esta diferença é

uma diferença totalmente obscura em sua essência. somente se suportarmos esta obscuridade, nos tomaremos sensíveis ao que há aí de problemático e estaremos em condições de desenvolver o problema central que esta diferença abriga em si. através daí compreenderemos o problema do mil11do.

a diferença entre ser e ente (ou, de maneira sucinta: o ser do ente)este é assim, aquele é, isto não é assim, isto é. segundo direções diversas,

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procuraremos fixar o caráter problemático desta diferença em nove pontos. através daí, buscamos alcançar uma base não tanto para resolver o problema, mas para ter uma oportunidade de aproximar de nós constantemente esta enigmaticidade, isto que há de mais óbvio de tudo o que há de óbvio.

1.desconsideramos constantemente esta diferença entre ser e ente, justamente onde a usamos constantemente: efetivamente a cada vez que dizemos "é"; mas, antes de tudo, em toda atitude em relação ao ente (qüididade, ser-tal e fato de ser).

1.fazemos constantemente uso desta diferença, sem saber ou poder constatar, que aplicamos aí um saber qualquer, uma regra, uma

proposição e coisas do gênero. 3.a diferença é - abstraindo-se de seu conteúdo, do aí diferenciado

enquanto tal - obscura segundo a dimensão da diferencialidade. não conseguimos colocar o ser em lull nível de comparação com o ente. daí se entende que não se representa e toma conhecimento desta diferença em geral no sentido de algo passí vel de se tomar co-

nhecimento. 4.portanto, se não apresentamos esta diferença no sentido da diferen-

ciação objetiva, então já sempre nos movimentamos no aconteci-mento da diferença. não porque nós o empreendemos, mas porque ele acontece conosco enquanto um acontecimento fundamental de

nosso ser-aÍ. 5.a diferença não acontece conosco arbitrariamente e de vez em

quando, mas desde o fundamento e constantemente. 6.pois se esta diferença não acontecesse, então não poderíamos nem

mesmo _ esquecendo a diferença - nos manter de início e na maioria das vezes junto ao ente. pois justamente para experimentar o que e como o ente sempre a cada vez é nele mesmo, enquanto o ente que ele é, já precisamos compreender, mesmo que não conceitualmente, algo do gênero da qüididade e do fato-de-ser.

7.a diferença não acontece apenas constantemente, mas a diferença já precisa ter acontecido, se quisermos experimentar um ente em seu ser-tal-e-tal. nunca experimentamos ulteriormente, depois do ente e a partir do ente,

algo sobre o ser. ao contrário, o ente, onde quer e como quer que nos aproximemos dele,já se encontra sob a luz do ser. portanto, tomada metafisicamente, a diferença encontra-se no começo do ser-aí mesmo. 8.esta diferença entre ser e ente já, sempre acontece de tal modo que o

"ser", apesar de indiferente, é a todo momento compreendido em uma articulação inexpressa no mínimo quanto à qiiididade e ao fa-

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to-de-ser. assim, o homem sempre se encontra em meio à possibi-lidade de perguntar: o que é isto? e: isto é efetivamente ou não é? o porquê de justamente a qüididade e o fato-de-ser pertencerem à es-sência originária do ser é um dos problemas mais profundos que acham seu termo nesta rubrica; um problema que certamente nunca chegou realmente a se tomar até aqui um problema, mas sempre se mostrou como uma obviedade. tal como os senhores podem ver, por exemplo, no interior dametafisica tradicional e da ontologia, foi esta que sempre orientou aí a diferença entre essentia e existentia, qüididade e fato-de-ser do ente. utiliza-se esta diferença de modo tão óbvio quanto o dia e a noite.

9.a partir de todos os oito momentos precedentes, deduzimos a uni-cidade desta diferença, e, ao mesmo tempo, a sua universalidade.

temos de ver, então, a que problemas essenciais esta diferença impele e como, na medida em que o deséntranhamento do ser do ente se encontra em conexão com o chamado acontecimentd fundamental, esta diferença é um momento essencial do mundo. em verdade, temos de ver como esta diferença é o momento central, a partir do qual o problema do mundo em geral pode ser compreendido.

assim, contra a expútativa,já dissemos coisas efetivamente significativas e variadas sobre esta diferença, sem libertá-ia de sua enigmaticidade. com tudo isto,já ultrapassamos em muito a problemática filosófica até aqui - quanto mais não seja pelo fato de termos expressamente erigido como problema esta diferença ~nquanto tal em geral. abre-se através daí um amplo campo de questionamento. nossa pergunta pelo ser do ente não diz respeito ao ente respectivo, que, segundo seu conteúdo próprio, sempre se-torna a cada vez passível de inquirição nas ciências particulares. e mais ainda: esta tematização vai além do enquadramento do que se chama correntemente de doutrina das categorias, seja no sentido tradicional, seja no sentido da sistemática das regiões do ente. pois a temática abordada centra-se justamente nas assim chamadas perguntas universais pelo ser: qüididade, ser-tal, fato-de-ser, ser-verdadeiro. por conseguinte, ela precisa buscar uma nova base de elucidação possível (cf. a preleção die grundprobleme der phiinomenologie - os problemas fundamentais da fenomenologia, semestre de verão de 1927). e, no entanto, com esta exposição do problema, encontramo-nos uma vez mais em maus lençóis. somos tentados a nos satisfazer com o estado alcançado do problema, isto é, a diluí-lo em uma questão agora passível de discussão objetiva e colocá-lo através daí retrospectivamente em conexão interna com o tratamento do problema até aqui na história da metafisica. tudo isto expressa-se no fàto de termos dado ao problema da di-

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ferença entre ser e ente um nome temático: nós o chamamos de o problema da diferença ontológica. o que o termo "diferença" diz aqui é inicialmente claro: justamente esta diferença entre ser e ente. e o que significa aí "ontológico"? antes de mais nada: o termo "lógico" denomina aquilo que pertence ao Â.óyoç - o que lhe diz respeito ou é determinado por ele. o "ontológico" aponta para o ov, já que é considerado a partir do Â.óyoç. no Â.óyoç, temos uma expressão sobre o ente. mas nem todo enunciado e opinião são ontológicos. ao contrário, só os que se expressam sobre o ente enquanto tal, e, em verdade, em relação ao que toma o ente o ente que "é" - e exatamente isto chamamos o ser do ente. o ontológico é o'que conceme ao ser do ente. a diferença ontológica é aquela diferença que concerne ao ser do ente; mais exatamente, a diferença na qual tudo o que há de ontológico se movimenta e que tudo o que há de ontológico pressupõe para a sua possibilidade interna; a diferença na qual o ser se diferencia do ente que ele ao mesmo tempo determina em sua constituição ontológica. a diferença ontológica é a diferença que suporta e conduz algo do gênero do ontológico em geral. portanto, ela não é uma diferença determinada, que pudesse e precisasse ser levada a tenno no interior do ontológico.

com esta nomeação e caracterização do que está aqui efetivamcnte em questão, o problema da diferença entre ser e ente já é impelido para o interior do enquadramento da ontologia. no entanto, isto significa que ele é alocado em uma direção do questionamento e em uma discussão que possui determinados intuitos, e, antes de tudo, que possui determinados limites, tanto no que concerne à abrangência da problemática, quanto, antes de mais nada, à sua originariedade. sem dúvida podemos dizer com certo direito que, com este problema da diferença ontológica e com sua elaboração justamente no contexto do problema do mundo, a ontologia alcança pela primeira vez a sua clara problematização. por outro lado, porém, é preciso que se note o seguinte: não se encontra escrito em parte alguma que precisa haver algo do gênero da antologia ou que a problemática da filosofia está enraizada nela. visto de maneira incisiv~: tudo já está, tudo ainda está em aristóteles, onde a diferença irrompe - ov ti ov -, em plena fluidez e indeterminação, tudo está aí aberto. assim, é, em geral, questionável, e, para mim em todo caso, foi se tomando cada vez mais questionável, se os seus sucessores chegaram efetivamente algum dia até a proximidade da intenção própria à metafisica antiga. não foi muito mais a tradição escolar que estratificou tudo, mesmo lá onde não chegamos mais nem mesmo a suspeitar uma tal estratificação? À medida que delegamos o problema da piferença entre ser e ente para a on-tologia e o denominamos assim, talvez o bloqueemos prematuramente em sua problemática. por fim, inversamente, temos de desdobrar este problema

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de maneira ainda mais radical, correndo o risco de chegarmos a um ponto em que precisaremos recusar toda ontologia.já segundo a sua idéia, como uma problemática metafisica insuficiente. mas o que devemos colocar, então, no lugar da ontologia? algo como a filosofia transcendental de kant? aqui só se mudaram o nome e as pretensões. a idéia mesma, cbntudo, manteve-se. também a filosofia transcendental precisa cair por terra. o que deve assumir, portanto, o lugar da ontologia? esta é uma questão precipitada, e, antes de tudo, extrínseca. pois através do desdobramento do problema perde-se acima de tudo o lugar, junto ao qual gostaríamos de substituir a ontologia por algo diverso. por fim, somente desta forma alcançamos plenamente o espaço aberto e saímos do enquadramento e do balizamento de disciplinas artificiais. também a ontologia e sua idéia precisam cair por terra, justamente porque a radicalização desta idéia foi um estágio necessário do desdobramento da problemática fundamental da metafisica.

mas - poder-se-ia objetar - a .ontologia movimenta-se no campo da di-ferença entre ser e ente com o intuito de trazer à luz a constituição ontológica do ente. não é uma tarefa certamente ponderada levar a termo algo deste gênero, tomando útil aí os horizontes clarificados, ao invés de se precipitar em radicalismos? conseqüentemente, poder-se-ia pleitear levar a termo pela primeira vez uma ontologia por sobre uma base agora possível; em'seguida, então, restaria oportunidade suficiente para empreender uma radicalização.

falamos da diferença ontológica como aquela diferença na qual tudo o que há de ontológico se movimenta: ser e ente. em consideração a esta dife-rença, ainda pode-mos' ir além e diferenciar de maneira correspondente: aquele questionar que se dirige para o ente nele mesmo, tal como ele. é ~ õv roç õv; a abertura assim estabelecida do ente, tal como ele é a cadavez nele mesmo, a abertuta do õv é a verdade ôntica. em contrapartida, aquele ques-tioiiamento que se dirige ao ente enquantó ~al, isto é, que só coloca questões em relação ao que perfaz o ser do ente, ov 1Í õv é a verdade ontológica. pois este questionamento faz uso expressamente da diferença entre ser e ente e não conta com o ente, mas com o ser. no entanto, como se encontram as coisas no que se refere à diferença mesma? ela é um problema para o conhecimento ontológico ou para o conhecimento ôntico? ou para nenhum dos dois, uma vez que os dois já se fundam nela? com a diferenciação, que é em si mesma clara, entre o ôntico e o ontológico - verdade ôntica e verdade ontológica -, temos efetivamente os elementos diferentes de uma diferença, mas não a própria diferença. a pergunta por esta diferença toma-se tanto mais ardente se se revela que es~a diferença não surge apenas ulteriormente através de uma diferenciação entre entes diver~os que se acham diante de

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nós, mas sempre pertence muito mais ao acontecimento fundamental, no qual

o ser-aí enquanto tal se movimenta.

§ 76. o projeto como estrutura originária do acontecimento fundamental triplamente caracterizado da formação do mundo. a vigência do mundo como a vigência do ser do ente na totalidade em

meio ao projeto do mundo, que deixa viger

então, por fim, a diferença entre ser e ente, que, em nove pontos, passamos em revista em toda a sua enigmaticidade, só foi em geral indicada provisoriamente, enquanto falamos de uma "distinção" e de uma "diferença": estes não são senão termos formais que, exatamente como o termo "ligação", convêm a todas as coisas e a cada uma delas. assim, eles não degradam inicialmente nada, mas também não concedem nada. dizemos de maneira intencional: inicialmente eles não degradam nada. pois, a partir de esclarecimentos anteriores sobre a análise formal (cr supra o que foi dito sobre o "enquanto" e sobre a "ligação"), sabemos que esta indeterminação do que foi nomeado é tomada pelo entendimento vulgar como uma conex.ão simplesmente dada no ente simplesmente dado. o mesmo acontece aqui: a "diferença ontológica" está simplesmente dada. no entanto, isto acaba de se comprovar como impossível. vimos que esta distinção não está simplesmente dada, mas que o que ela tem em vista acontece. no entanto, ao mesmo tempo mostrou-se a necessidade da transformação da postura inter-rogatÍva, que requer de nós a entrada no acontecimento fundamental. n"ós nos aproximamos deste acontecimento fundamental em meio a um retomo à dimensão originária do À.Óyoç. este acontecimento fundamental não está em si primária e unicamente ligado ao 'aóyoç. segundo a sua possibilidade, o À.Óyoç apenas se funda nele. deixando de lado a diferença em sua cunhagem terminológica e temática, ousemos o passo essencial de nos transpormos para o interior do acontecimento desta diferenciação, para o interior do espaço no qual a diferença acontece; dito de outro modo, perguntemos pela estrutura originária do acontecimento jimdamental. o acontecimento fundamental tomou-se-nos familiar através daqueles três momentos: o manter-se ao encontro do obrigatório, a integração, odesentranhamento do ser do ente. não podemos, contudo, tomar conhecimento disto como propriedades simplesmente dadas. ao contrário, eles são indicações para um ser-transposto originariamente uno para o ceme do ser-aí.

procuremos compreender um tal ser-transposto, e, em verdade, com o intuito de nos depararmos com a estrutura originária do acontecimento fun-damental, com a sua unidade originária, mesmo que não com a sua simplici-

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dade. o mais rapidamente nos fala o que foi primeiramente citado: o manter-se ao encontro do obrigatório. uma vez que assumimos uma atitude em relação ao ente e tomamos, além disso, para nós, nesta atitude _ não de maneira ulterior e acessória -, a medida do ente, nossa atituqe já é sempre dominada pela obrigatoriedade. isto se dá sem coerção, e, no entanto, encontrando um laço necessário - mas também nos desobrigando em relação a este laço e promovendo um erro quanto às medidas. nós nos regulamos pelo ente, mas jamais podemos dizer aí o que nos conecta ao ente, onde se funda, por nosso lado, uma tal possibilidade de encontrar esse laço. pois nem todo "encontrar-se em face de" encerra necessariamente uma ligação em si. e se se trata de ob-jeto (gegen-stand) - ligação sujeito-objeto, con-sciência-, então o problema decisivo - que em geral não é absolutamente colocado _ é antecipado; abstraindo-se do fato de a ob-jetividade não ser a forma única, nem a primária de ligação. como quer que se dê, porém, todo estar ligado a ... , toda atitude em relação ao ente é dominada pela obrigatoriedade. não podemos esclarecer-nos a obrigatoriedade a partir da objetividade, mas sim o lllverso.

do mesmo modo, por mais cotidiana e restrita que seja a assunção de uma atitude, sempre percebemos em toda atitude o fato de esta assunção ter lugar a cada vez a partir do qüe é na totalidade. também percebemos as duas coisas - o manter-se ao encontro do obrigatório e a integração _ em sua vigência una aí e justamente aí, onde há dissensão quanto à correspondência de um enunciado e de seu estabelecimento ou quanto à justeza de uma decisão, quanto à essencialidade de uma ação. quanto mais nos empenhamos em assumir uma atitude condizente com a coisa em questão, em falar a partir do singular, tanto mais imediata e previamente já nos movimentamos no clamor silencioso por aquele "na totalidade". toda atitude é dominada por obrigatoriedade e integração.

como devemos, porém, tomar estas duas instâncias, o manter-se ao encontro da obrigatoriedade e a integração originária, em sua unidade? ora, mas o mais difícil diz respeito àquele desentranhamento do ser do ente, que deve ser comum-pertencente com as duas instâncias supracitadas. também nos encontramos aqui com os pedaços claramente na mão: ente- sempre as-sumimos uma atitude em relação a ele; ser- constantemente o expressamos. mas e o ser do ente? falta o liame unifícador, ou melhor, a origem desta di-ferença, junto à qual, de acordo com a sua unicidade e originariedade, a di-ferenciação é anterior aos que são diferenciados, deixando estes que são diferenciados justamente emergir pela primeira vez.

perguntamos agora: qual é o caráter uno do acontecimento fundamen-tal, ao qual conduzem estes tr,és mofnentos? compreendemos a estrutura

fundamental do acontecimento assim triplamente caracterizado como projeto. puramente segundo a significação da palavra, conhecemos o que é designado deste modo a partir da experiência do ser como a projeção de medidas e planos no sentido da regulação antecipativa da conduta humana. em consideração a isto, em meio à primeira interpretação deste fenômeno, também tomei o "projeto" desta maneira e dei a esta palavra conhecida no uso natural da linguagem o traço distintivo de um termo especial. ao mesmo tempo, porém, fiz retroceder a pergunta sobre a sua possibilidade interna até a constituição ontológica do ser-aí mesmo. e também nomeei este elemento possibilitador como projeto. visto de maneira clara e rigorosa, no entanto, somente o projeto originário deve ser em geral denominado assim filosófico-terminologicamente; somente aquele acontecimento, que possibilita fundamentalmente todo projetar conhecido na atitude cotidiana. pois apenas se reservarmos este nome para este caráter único, estaremos constantemente despertos para o caráter único do fato de a essência do homem, o ser-aí nele, ser determinada pelo caráter de projeto. o projeto enquanto estrutura originária do acontecimento citado é a estrutura originária daformação de mundo. de acordo com isto, não falamos agora apenas com maior rigor termino lógico, mas também em uma problemática mais clara e radical: projeto é projeto de lilundo. o 1il11lldo vigora em e para 1li/1 deixar viger que possui o caráter do projetar. com relação à terminologia até aqui, projeto é apenas este acontecimento originário. não mais o planejar, o refletir e o compreender concretos, a cada vez fáticos. por isto, também é inadequado falar de um projetar em um sentido derivado.

até que ponto, então, assim perguntamos mais concretamente, o projeto é a estrutura originária daquele acontecimento fundamental triplamente caracterizado? por "estrutura originária" compreendemos aquilo que reúne originariamente aqueles três elementos em uma unidade articulada. no projeto, os três momentos do acontecimento fundamental não precisam apenas vir à tona ao mesmo tempo. ao contrário, eles precisam com pertencer nele à sua unidade. portanto, o projeto mesmo precisa se mostrar em sua unidade originária.

É possíve~ que seja difícil visualizar imediatamente o que temos em vista com o termo "projeto" em todo o seu polimorfismo unitário. contudo, experimentamos de chofre esta unidade de maneira distinta e mais segura: por "projeto" não se tem em vista nenhuma seqüência de ações, nenhum processo que seria composto a partir de fases singulares. ao contrário, o que se tem em vista aqui é a unidade de uma ação. no entanto, esta ação é de um tipo originariamente próprio. o que há de mais próprio a este agir e a este acontecer é o que ganha a expressão lingüisticamente no "pro-": o fato de no

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't.. projetar este acontecimento do projeto levar e continuar levando de certa maneira o projetante para longe dele. a questão é que, levado efetivamente para o ceme do projetado, ele não é nem perdido, nem largado. ao invés disto, neste ser levado pelo projeto acontece justamente uma virada peculiar do projetante para si mesmo. mas por que o projeto é uma tal virada que leva adiante? por que não um arrebatamento que conduz a algo - mesmo no sentido da absorção perturbada? por que tampouco uma virada no sentido de uma reflexão? porque este levar adiante inerente ao projetar tem o caráter da colocação em sllspenso em meio ao possivel; e, em verdade, é preciso que se note, no possível em sua possibilitação possível, a saber: em um possível real. no lugar em direção ao qual o projeto coloca em suspenso _ no possível possibilitador -, não há espaço para que o projetante se aquiete. o que é projetado no projeto impele muito mais para o possível real; isto é, o projeto liga - não ao possível e não ao real, mas à possibilitação, ou seja, ao que o possível real da possibilidade projetada requer por si da possibilidade para a sua realização.

assim, o projeto é em si o acontecimento, que deixa a obrigatoriedade enquanto tal emergir, uma vez que este acontecimento sempre pressupõe uma possibilitação. com esta ligação livre, na qual todo possibilitador se retém diante do possível real, sempre reside ao mesmo tempo uma determi-nação própria do possível mesmo. pois o possível nunca se toma mais pos-sível através da indeterminação, de modo que todo possível encontra nele lugar e abrigo. ao contrário, o possível cresce em sua possibilidade e força de possibilitaçãó- atrãves da limitação. toda e qualquer possibilidade traz consigo em si seus limites. o limite do possível, contudo, é aqui o just~men-te a cada vez real, a expansibilidade preenchível, isto é, aquele "na totalida-de" a partir do qual sempre a cada vez nossa assunção de uma atitude se coloca em relação. com isto, precisamos dizer: na unidade de sua essência, este acontecimento único do projetar coloca em suspenso em direção ao possível. esta suspensão se dá de uma tal maneira que promove o surgimen-to de um laço. e isto significa ao mesmo tempo: este acontecimento do pro-jetar é expansível até um todo, ele o retém diante de si. o projeto é, em si, integrador no sentido da/ormação antecipa:tiva de um "na totalidade" em cujo âmbito está estendida uma dimensão totalmente determinada de reali-zações possíveis. todo projeto coloca em suspenso em direção ao possível, e, juntamente com esta suspensão, traz de volta para a amplitude estendida do que é possibilitado por ele.

em si, o projeto e o projetar colocam em suspenso face a face a possí-veis liames e ligam de maneira expansiva no sentido de reter diante de uma totalidade, no interior da qual e~te ou aquele algo real pode ser concretizado .

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enquanto o real do possível projetado. esta expansão que coloca em suspenso e liga: esta expansão que acontece sobretudo no projeto, mostra, porém, ao

mesmo tempo, em si o caráter do abrir-se. mas este não é - como é fácil ver agora - nenhum mero encontrar-se rigidamente aberto para algo; nem para o possível mesmo, nem para o real. o projetar não é, evidentemente, nenhum olhar embasbacado para o possível. ele não pode ser algo deste gênero porque o possível enquanto tal, isto é, em seu ser-possível, é justamente sufocado em meio à mera consideração e ao mero debate. o possível só se essencializa em sua possibilidade se nos ligarmos a ele em sua possibilitação. o possibilitador, contudo, sempre fala enquanto possibilitador, à medida que se insere no coração do possível real- possibilitação é o esboço da realização -; e isto de tal modo que também não nos apossamos e acertamos as contas no projeto com o ente real como algo realizado da possibilidade. nem a possibilidade, nem a realidade são o objeto do projeto - o projeto não possui absolutamente nenhum objeto, mas é o abrir-se para a possibilitação. nesta possibilitação é retirada do velamento a ligação mais originária entre o possível e o real, entre possibilidade e realidade em geral enquanto tal.

o projetar enquanto este retirar do velamento a possibilitação é o próprio acontecimento daquela diferença entre ser e ente. o projeto é a irrupçào da diferença neste "entre". ele possibilita pela primeira vez os diferentes em sua diferencialidaele. o projeto desentranha o ser do ente. por isto, como podemos

dizer lançando mão de uma expressão de schelling, ele é o raio de luz39 em meio ao possível-possibilitador em geral. o olhar que se insere no raio de luz arrasta para si as trevas enquanto tais, dá a possibilidade daquele crepúsculo do cotidiano, no qual de início e na maioria das vezes vemos o ente, o dominamos, com ele sofremos e com ele nos alegramos. o raio de luz que alcança o ceme do possível faz com que o que projeta se abra abra para a dimensão do "ou-ou", do "não apenas ... mas também", do "assim" e do "ele outro modo", do "o quê", do "é" e "não é". somente à medida que esta irrupção acontece, o "sim" e "não" e o questionamento se tornam possíveis. desta folma, o projeto coloca em suspenso e desentranha a dimensão do possível em geral, que em si já está subdividido no possível do "ser-assim e ser-ele-outro-modo", da "possibilidade de ser e não-ser". de qualquer maneira, não podemos examinar aqui, o porquê de isto ser assim.

39.cf. schclling. investigações filosóficas sobre a essência da liberdade humana e os objetos com isto correia tos (/809). obra completa. drg. k.f.a. v. sehelling. stuttgart e augsburg, 1856, seção i, vol. 7, p. 361.

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o que mostramos anteriormente como caracteres singulares desentra-nha-se, agora, como entrelaçado originariamente e de maneira una na unidade da estrutura primordial que é o projeto. nele acontece o fato de deixar-viger o ser do ente na totalidade do que peifaz seu cará,ter obrigató- rio a cada vez possível. no projeto vige o mundo. '

esta estrutura originária da formação de mundo, do projeto, também indica, então, em uma unidade mais originária, isto ao que aristóteles precisou retomar na pergunta sobre a possibilidade do Àóyoç. aristóteles diz: segundo sua possibilidade, o Àóyoç se funda na unidade originária de crúv8ecrtÇ e otaípecrtÇ. com efeito, o projeto é o acontecimento que, enquanto coloca em suspenso e lança para adiante, como que separa (ot<Úpecrtç) - mas justamente aquela separação inerente ao arrebatamento - como vimos - de modo que aí acontece em si uma virada do projetado como uma virada do que ata e liga (crÚv8ecrtÇ). o projeto é aquele acontecimento originariamente simples, que - tomado lógico-formalmente - unifica em si algo contraditório: ligar e cindir. mas este projeto também é, então - enquanto formação daquela diferença entre possível e real na possibilitação, enquanto irrupção em meio à diferença entre ser e ente, mais exatamente, enquanto a eciosão deste "entre" -, aquele ligar-se, no qual o "enquanto" vem à tona. pois o "enquanto" exprime o fato de que, em geral, o ente em seu ser se tomou manifesto, que aquela diferença aconteceu. o "enquanto" é a designação para o momento estrutural daquele "entre" que irrompe originariamente. nós nunca temos primeiro algo, e, então, "ainda algo", e, então, a possibilidade jle_ tomar algo enquanto algo, mas totalmente ao inverso: algo só se oferece para nós se já nos movermos no projeto, no "en- quanto". ,_

no acontecimento do projeto forma-se mundo, isto é, no prôjetar eciode algo, algo abre-se para possibilidadese irrompe, assim, no real enquanto tal, para experimentar a si mesmo como irrupção, como realmente sendo em meio ao que agora pode ser aberto enquanto ente. o ente que chamamos ser-aí é o ente de um gênero originariamente próprio, um ente que irrompe para o ser. deste ente, dizemos que ele existe, isto é, ex-sistit; que ele é na essência de seu ser um movimento para fora de si mesmo, sem, porém, abandonar a si.

o homem é aquele não-poder-permanecer, e, no entanto, não-poderdeixar o seu lugar. de maneira projetante, o ser-aí nele o joga constantemente em possibilidades e o retém, com isto, subjugado ao real. assim jogado, o homem é, em meio à jogada, uma travessia; uma travessia como essência fundamental do acontecimento. o homem é história, ou melhor, a história é o homem. em meio à travessia, o homem ésubtraído, e, por isto,

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está essencialmente "ausente". ausente no sentido principial- nunca sim-plesmente dado, mas ausente, uma vez que ele se perfaz para além de, em meio ao passado essencial e em meio ao por-vir, au-sente e nunca simples-mente dado, mas, na ausência, um existente. transposto para o interior do possível, ele precisa ser constantemente provido do que é real. e apenas porque é assim provido e transposto, ele pode se assombrar. e somente onde há a periculosidade do assombro, há a bem-aventurança do espanto - aquele arrebatamento lúcido que é a ode de todo filosofar e que os maiores dentre os filósofos chamaram ev80ucrtacr~óç. dentre estes, o último grande friedrích nietzsche - prestou seu testemunho naquela canção de zaratustra, que ele chama o "canto Ébrio,,4o e no qual ao mesmo tempo experimenta-

mos o que é o mundo:

"ó homem! presta atençào!

que diz a meia-noite em seu bordão? 'eu

dormia, dormia ...

fui acordada de um sonho profundo: profundo é o mundo!

e mais profundo do que pensa o dia.

profundo é o seu sofrimento -

e o prazer - mais profundo que a dor do coração. o

sofrimento diz: 'passa, momento!'

mas todo prazer quer eternidade - quer profunda, profunda eternidade!'"

40. nietzsche. assimfaloll zaratl/stra, idem, vol. xiii, p. 410.