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    CARDOSO, Irene. 68: a comemorao impossvel.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(2): 1-12, outubro de 1998.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(2): 1-12, outubro de 1998. D O S S I MAIO DE 68

    68a comemorao impossvel

    IRENE CARDOSO

    RESUMO:68, acontecimento que irrompeu simultaneamente em vrios pa-

    ses, com contornos singulares, foi marcado pelo esquecimento e pela norma-lizao da sociedade e da poltica que se seguiram sua irrupo. Retorna

    pela via da comemorao, em intervalos regulares de tempo, definidos pelo

    nico critrio da numerao decimal. Os eventos comemorativos de 68, a cada

    vez que se repetem, esvaziam o acontecimento da dramaticidade que o reves-

    tiu na sua prpria atualidade, e o que se comemora ento so as apropriaes

    ideolgicas do acontecimento, os seus aspectos assimilveis pelo presente.

    998: 30 anos de 68. O retorno do evento realiza-se pela via dacomemorao. 1978, 1988, 1998, 10 anos, 20 anos, 30 anos: emintervalos regulares de tempo, definidos pelo critrio da numera-o decimal (cf. Morin, 1988a, p. 145), 68 retorna do passado,para em seguida novamente se dissolver no tempo presente.Trinta anos depois, a procura dos sentidos de 68, a partir da atuali-

    dade, deve passar, agora, tambm pela pergunta sobre o significado desta s-rie de comemoraes. preciso estar-se atento ao destino de uma lembran-a no seio de um conjunto mvel de representaes (Duby apudLe Goff,1990, p. 474) e sobre o significado mesmo do ato de comemorar.

    Os intervalos regulares de tempo das comemoraes constituem-se

    em tempo cronolgico, homogneo, que ofusca as temporalidades histricasque circunscrevem cada um dos tempos presentes a que esto referidas asdataes da srie. Este mesmo movimento regular ritualiza o ato de comemo-rar, no sentido de uma ao repetitiva, que obscurece os sentidos histricos

    UNITERMOS:

    68,comemorao,memria,esquecimento.

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    Professora do Depar-tamento de Sociologiada FFLCH-USP

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    presentes que esto na base de cada ao comemorativa.A comemorao no apenas uma rememorao de um evento do

    passado, digno de memria. Mas um processo ativo no curso do qual semodifica um sistema de representao do passado e conseqentemente a per-cepo do presente (Garcia, 1988, p. 4). Etimologicamente, a palavra come-morao, advinda do latim, commemoratio, tem esse significado de um pro-cesso ativo e dirigido (ratio) da memria, um fazer lembrar, a partir de umaposio indicada pelo prefixo co, de conjunto, por extenso, social, coletiva.

    A comemorao como esse processo ativo e dirigido da memria co-letiva, a partir do presente, configura-se como umpoder de integraode sen-tidos, que social, de uma reconstruo de uma identidade do evento, que deveser digna de memria. Enquanto processo ativo e dirigido da memria, seleti-vo, sempre a partir do presente, e neste sentido o esquecimento no o antnimo,

    mas sim uma forma que toma a memria (Brossat et alii, 1990, p. 18.) .Por isso o esquecimento, tambm como processo ativo, constitutivo

    da comemorao e do seu poder de integrao social de sentidos e de recons-truo da identidade do evento. Para que haja a possibilidade da comemora-o, no apenas a complexidade histrica da atualidade do evento, suas con-tradies, suas ambigidades precisam ser silenciadas, como tambm ficaobscurecida aposioa partir da qual a comemorao reconstri o evento.Posio esta situada no tempo histrico do presente, lugar da construo deum certo tipo de visibilidade do passado, que ilumina alguns sentidos, conge-

    la outros ou at mesmo recusa alguns. Em outros termos, pode-se dizer que acomemorao, ou o ato de comemorar,organizao evento passado, a partir deum tempo histrico que sempre o do presente.

    Esta organizao do evento passado, como atividade de integrao,pode, no limite, reter do passado apenas o que seriam as confirmaes da suaunidade presente (Bourdieu apudLe Goff, 1990, p. 466), o que em outrostermos poderia ser entendido como a organizao daquilo que seria o menordenominador comum do passado (Bourdieu apudLe Goff, 1990, p. 466).

    Nesta linha de reflexo preciso pensar, ainda, que os momentos

    comemorativos podem se constituir em tribuna de comemoraes diversasque procuram difundir, cada uma delas, sua prpria mensagem (cf. Garcia,1988, p. 8), sua prpria reconstruo do evento passado. Estes momentospodem produzir discursos que se posicionam pr ou contra o evento em ques-to, dando origem mesmo ao que poder-se-ia chamar de contra-comemora-es, quando a idia de celebrao se apresenta como intolervel.

    Se o retorno de 68 realiza-se pela via da comemorao, em intervalosregulares de tempo, preciso perguntar: o que significa comemorar 68? O quese comemora de 68? E quais os sentidos da srie temporal de comemoraes?

    As perguntas justificam-se pelo motivo de fundamental importn-cia histrica que 68 no se constituiu, em nenhuma parte do mundo ondeirrompeu, em data oficial ou institucional das sociedades que viveram aquelaexperincia. Pelo contrrio, seja nos pases em que vigia uma democracia,

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    seja naqueles em que o regime poltico de funcionamento do Estado era aditadura, sob a forma capitalista ou a do socialismo real, 68 foi objeto derecusa violenta por parte do establishment. Em maior ou menor grau, depen-dendo das singularidades histricas das situaes dos pases em que teve lu-gar, significou pr em questo um certo tipo de ordem social, poltica e cultu-ral. 68, podendo ser considerado um acontecimento que irrompe como ruptu-ra, mas to logo se dissolve diante da fora do poder econmico, poltico, nolimite militar e da fora da prpria sociedade, com que se defronta, antescaracterizado pelo que Lefort chamou de uma desordem nova, do que pelaconstruo de uma nova ordem social, muito embora pudesse ter contido, nasua diversidade, projetos neste sentido.

    O exerccio da comparao histrica com outro acontecimento-ruptura, a Revoluo Francesa, de 1789, pode ser frutfero para a percepo

    do significado das comemoraes. Este acontecimento, que alm de ruptura tambm fundador, que inaugura, ainda, a poca das grandes comemora-es laicizadas na sociedade ocidental, configura-se como data oficial einstitucional francesa, e o que se comemora a emergncia de uma novaordem social e poltica, a Repblica, comemorao que tambm se realizaem intervalos regulares de tempo, que censura vrias dimenses do aconte-cimento-fundador, para ficar com aquelas que podem se integrar em umanoo comum da identidade nacional (cf. Le Goff, 1990, p. 462). Constru-o identitria do acontecimento atravs da comemorao e construo de

    uma identidade de nao.Considerando o evento Revoluo Francesa que pde, pela via das

    comemoraes, ser periodicamente retomado, a partir da integrao de signi-ficados comuns que constroem o Grande Acontecimento fundador de umanova ordem social e poltica, pode-se perguntar sobre o sentido do aparenteparadoxo de um acontecimento no fundador da qualquer tipo de ordem, pelocontrrio, instaurador de um questionamento da ordem, numa gama variadade intensidades, caracterizado ainda como experincia efmera, de carter noidentitria, mas complexa e contraditria, vir a se constituir em objeto de co-

    memorao na histria recente.Enfrentar este aparente paradoxo da figurao contempornea de

    68 como evento comemorativo implica, antes de mais nada, delinear algunstraos dessa histria recente da cultura contempornea.

    Este delineamento implica ainda o enfrentamento de um outro apa-rente paradoxo: o sculo XX, especialmente nos anos 30-40, caracterizadosimultaneamente por uma acelerao dos movimentos comemorativos (Ory,1988, p. 22), que se intensifica nos seus ltimos decnios e por um trao, quea percepo histrica de Hobsbawm pode sintetizar, de um presentesmo

    constante, cujo significado o de uma espcie de presente contnuo, semqualquer relao orgnica com o passado pblico da poca em que se vive.Uma ausncia de continuidade da experincia do passado, no limite a des-truio do passado mesma, ou seja dos mecanismos sociais que vinculam

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    nossa experincia (...) das geraes passadas, que se constitui num dosfenmenos mais caractersticos e lgubres do sculo XX e paradoxalmenteacompanhado por uma sede manifesta pelo passado (Hobsbawm, 1995,p. 13; 1997), que se expressa atravs dos movimentos comemorativos.

    Numa linha de reflexo semelhante, que permite pr em questo otema da memria na cultura contempornea e, portanto, indagar sobre o sen-tido que as comemoraes a tomam, convm agregar as contribuies devrias anlises que levam a aprofundar um pouco o que se poderia chamar detrao histrico de uma intensificao do tempo presente, que caracteriza anoo to bem explicitada por Hobsbawm do presentesmo.

    Esta intensificao do tempo presente corresponde na anlise queHannah Arendt faz do mundo contemporneo, especialmente no ps-SegundaGuerra, a um rompimento do fio da tradio, ao esgaramento da tradi-

    o e produo do que chama de uma lacuna entre o passado e o futuro(Arendt, 1972, p. 40), lacuna que significa a inexistncia de nenhuma con-tinuidade consciente no tempo, nem passado, nem futuro, mas to so-mente a sempiterna mudana do mundo e o ciclo biolgico das criaturas quenele vivem (Arendt, 1972, p. 31). Essa intensificao do tempo presente quesignifica carncia de temporalizao e, conseqentemente, dificuldade deperceb-lo como tempo histricoimpede tambm a construo de uma confi-gurao do passado como alteridade em relao ao presente: o passado con-verte-se numa espcie de extenso homognea do prprio presente.

    Do ponto de vista cultural, no sentido mais amplo dessa palavra,esta intensificao do tempo presente significa, no limite, a negao da hist-ria e da memria. Esta, na acepo de um modo de pensamento (Arendt,1972, p. 31), s pode ter existncia diante de referncias temporais diferentese fica impotente diante do quadro unvoco de um presente perptuo (Debord,1997, p. 175). Est negao da histria e da memria significa ainda a perdade qualquer sentido de herana, de um modo muito preciso, no o de umamemria que retira do acontecimento o que pode haver de comum para umaconfirmao do presente, mas daquela que pode traz-lo na sua singularidade

    passada, permitindopensar, ento, a diferena que instaura no presente, eformular a questo de at que ponto essa herana nos concerne ou no, a partirde uma posio que podepensar, tambm, a singularidade do nosso presente.

    Diante da situao contempornea da marginalizao da histria eda memria, simultnea acelerao das comemoraes, preciso perguntarento se estas comemoraes no vm justamente substituir a perda de senti-do da histria e da memria e do prprio acontecimento. Comemora-se por-que esse sentido est perdido, mas mais do que isso, para que continue perdi-do. O que se comemora o sentido do prprio presente. A comemorao do

    evento 68 separa-o de tudo aquilo que possa constitu-lo como uma afrontaao presente, e dele se apropria, nos seus aspectos ou dimenses assimilveis,que no produzem uma diferena em relao a esse presente, mas, pelo con-trrio, permitem construir justamente as identidades entre passado e presente,

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    produzindo nesse sentido um repouso para todo poder presente (Debord,1997, p. 177).

    importante acrescentar, ainda, nessa linha de reflexo, um outroelemento constitutivo da cultura contempornea, sem o qual no possvelcompreender o sentido que hoje tomam as comemoraes. O vazio social dahistria e da memria preenchido cada vez mais pelo poder espetacular damdia, que se acentua nas ltimas dcadas deste sculo, mas j , em intensi-dade menor, contemporneo de 68. Esse vazio preenchido ento pelo quepoder-se-ia chamar de retorno miditico (Ory, 1988, p. 22) do aconteci-mento e pode-se dizer, hoje, que as comemoraes do evento tomam a formaem grande medida desse retorno miditico.

    Se, como j se apontou, a comemorao como atividade prpria dassociedades, como processo ativo e dirigido da memria coletiva, tem o sentido

    de trazer o acontecimento do passado para o presente, na busca de uma consa-grao identitria que se realiza no presente, mas na qual o movimento presen-te-passado, passado-presente tem alguma visibilidade, o retorno do aconteci-mento pela mdia, no vazio social, agora cada vez mais acentuado, da histria eda memria, destemporaliza o acontecimento. Este passa a ter existncia nosmomentos em que o poder espetacular da mdia o coloca em cena e ao sair decena como se tivesse deixado de existir. Os intervalos regulares de tempo, decarter quantitativo e cronolgico vm substituir as datas comemorativas, queguardavam ainda, em certa medida, uma conotao qualitativa. O vazio social

    da histria e da memria d margem ento descontextualizao histrica doacontecimento pela mdia, num sentido muito preciso, de que ele no se tornaquesto. Essa descontextualizao realiza-se tanto no que se refere ao seu sen-tido, na sua prpria atualidade, s conexes de sentido com outros eventos delecontemporneos ou passados, quanto aos sentidos possveis de algum tipo dereinscrio no presente. Mais do que isso ainda: acompanhando as reflexes deWalter Benjamim sobre o significado da imprensa, nos anos 30, possvel ter amedida da acelerao dos processos que ele j detectava naquele momento, noque se refere ao modo de funcionamento da informao na cultura contempor-

    nea, que vem substituir a narrao enquanto possibilidade de experincia hist-rica, na qual a memria era condio.

    O retorno do acontecimento pela mdia faz dele informaoque nivelada a outras informaes quaisquer atravs do mecanismo dadescontextualizao. Como informao o evento passado deve adquirir a ex-presso da novidade, que pode retornar nesta condio em intervalos regula-res de tempo, dado o vazio social da histria e da memria. como novidade,ento, no sentido que lhe d Benjamim (cf. Benjamin, 1980, p. 31), de efmerae logo superada por outra pelo prprio movimento da mdia, que o evento

    posto em cena, no mais no teatro da memria, que supe o tempo comodurao, mas nosflashsdos mass mdia, cuja acelerao o torna rapidamentedescartvel. Na linguagem desses meios, caracterizada, ainda, pela brevidade,pela sntese e por uma necessidade de inteligibilidade imediata, o aconteci-

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    mento, reduzido informao, deve significar aquilo que seria o menor de-nominador comum do passado. Nessa linguagem no cabem mais as longasnarrativas memorialsticas ou reflexivas, que supem a memria como formade pensamento, sobre o evento passado, que poderiam contextualiz-lo,conduzidas por questes postas pelo presente e que ao problematizar o passa-do esto tambm problematizando, de algum modo, esse tempo presente. Maso acontecimento, reduzido dimenso de o menor denominador comum dopassado tem de aparecer, pelo contrrio, como inteiramente verossmil aopresente, assimilvel e reconhecido por ele, at o ponto mesmo em que umacultura da diferena tornou-se tambmpadropara esse presente. O queno pode ser reconhecido como familiar nesse passado torna-se extico, por-que no se pe como alteridade radical, mas se inclui na gama variada dasdiferenas padronizveis.

    Esta referncia aqui tomada no gratuita porque a questo da di-ferena consistiu numa das expresses marcantes de 68, embora no passvelde generalizao, num acontecimento que foi complexo e contraditrio. Estetrao de 68 perceptvel naquilo que se d como irrupo de um movimentode singularizaohistrica que se confronta com uma tradiotambm per-cebida como histrica, tradio esta que recobre desde o plano dos comporta-mentos individuais at os coletivos, desde a famlia at as organizaes pol-ticas. O que se colocava era a questoda diferena diante de um Outro cujaabsolutizao foi questionada, porque pde ser percebido como histrico. Este

    movimento, que teve sua expresso tambm nas formas de produo de co-nhecimento da sociedade e da cultura, atravs de profundas reformulaes naantropologia, na historiografia, reflui para o presente, quanto mais se distan-cia de 68, na forma de uma cultura de diferena, na qual se obscurece aquesto da diferena como alteridade, que pode ser historicamente constitu-da, e se consagra a diferena como variao previsvel de uma cultura padro-nizada, que pode comportar tantos estilos de vida individualizados quantosos necessrios para acomodar a vivncia contempornea sob o signo de umbem-estar individual.

    A possibilidade de compreenso de 68 fica comprometida, hoje,no apenas por ter se tornado um evento comemorativo, como sobretudo porter se configurado como evento miditico, que retorna em intervalos regularesde tempo, definidos pelo critrio da numerao decimal, que em razo destecritrio constri a vivncia de uma temporalidade social que flui homoge-neamente. Recoloca-se ento a questo anteriormente referida sobre o signifi-cado da srie temporal de 10, 20, 30 anos de 68. 1978, 1988, 1998 no cons-titui uma srie temporal homognea, a despeito da numerao decimal.

    68, se teve a caracterstica de um acontecimento que irrompe quase

    que simultaneamente em vrios pases do mundo o que lhe d um carterinternacional, mas por outro lado coloca a questo de como pde tomar estadimenso, se se realizou em pases com singularidades histricas to diver-sas, desde aquelas do capitalismo central, na Amrica do Norte e na Europa,

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    at os da periferia deste sistema, na Amrica Latina, na frica do Norte, nasia, incluindo ainda alguns pases do Leste Europeu, sob a experincia dosocialismo real, teve tambm o trao de uma dissoluo, mais ou menosrpida, que pode ser identificada como uma normalizao da sociedade, dapoltica ou da economia, que se segue imediatamente, caracterizada pela recu-sa violenta do acontecimento, como j foi apontado.

    Para ficar apenas com algumas referncias, pode-se destacar comoexpresso desta normalizao, na Frana, a vitria de De Gaulle nas eleiesgerais, a recomposio dos partidos polticos, a recomposio econmica ps-greve operria, conjunto este simbolicamente representado pelo asfalto noQuartier Latin, que recobre as pedras utilizadas para as barricadas da lutaestudantil. Nos Estados Unidos, a eleio de Nixon, que precedida pelosassassinatos de Martin Luther King e de Robert Kennedy. No Mxico, aps o

    imenso massacre na Praa das Trs Culturas, a deciso, at ento suspensa, derealizao das Olimpadas, poucos dias depois, apesar das centenas de mor-tes. Na Tchecoslovquia, a represso Primavera de Praga, com a ocupaodo pas pelas tropas do Pacto de Varsvia. No Brasil, a normalizao, viaviolenta represso, tomou a forma: do milagre econmico dos anos 70, dadistenso lenta, gradual e segura, da abertura, da anistia submetida aoveto militar, marcada pela interdio de investigao do passado, de fortesprerrogativas militares institucionais, da mais longa transio, que concorrepara o esquecimento ou diluio na memria coletiva, do terror implantado

    pela ditadura militar (cf. Cardoso, 1990, p. 113).1978, ento, os 10 anos de 68, foi marcado por esta normalizao da

    sociedade e da poltica, normalizao que significou nos contextos singularesdos pases onde irrompeu, ou o esquecimento do acontecimento, como diluiona memria, pela prpria dimenso inercial do tempo (que o daquela normali-zao), ou a imposio mesma, pela fora, do esquecimento (caracterstica dasexperincias sob o regime poltico ditatorial). Na Frana, a partir da anlise deMorin, entre 73 e 78 que se concluem alguns fechamentos significativos rela-tivos ao maio de 68: a crise do marxismo e o colapso da idia de revoluo.

    Opera-se um corte significativo entre estes anos, que expressa ainda o fracassodas duas formas surgidas em 68, as experincias comunitrias que foram que-bradas com a crise econmica e as tendncias revolucionrias que foram desin-tegradas na crise dos valores socialistas (Morin, 1988b, p. 43-44).

    No Brasil, 1978 um ano ainda de vigncia plena da ditadura, pr-anistia de 1979, no apenas caracterizado pelas ausncias de comemoraes,como ainda pela presena mnima de publicaes de anlises sobre 68, numasociedade no apenas sob censura, mas tambm submetida pela fora, quandoalgum signo de 68 ameaasse reaparecer. No Brasil de 78, 68 foi caracteriza-

    do pelo silncio ou foi objeto de contracomemorao, o que pode ser eviden-ciado pela imprensa da poca, cuja manchete mais simblica daquele momen-to, num caderno especial do jornal O Estado de S. Paulo, foi Maio de 68 APrimavera do Nada.

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    Mesmo nos pases que no se encontravam sob ditadura, as come-moraes foram muito mais discretas do que vieram a ser posteriormente em88 e agora em 98, apesar da produo j existente, neste momento, de anlisese testemunhos importantes sobre 68. Muitas dessas anlises foram at produ-zidas no calor mesmo do acontecimento e constituem hoje fonte histrica fun-damental para os estudos contemporneos. Em 1978, 68 no podia aindatransmutar-se em evento comemorativo, seja pelo seu impacto sobre oestablishmentainda relativamente recente, seja pela profunda crise de seusvalores que atingia significativa parte de seus ex-protagonistas ou testemu-nhas, pela dificuldade de decant-lo, que da resulta, processo que caracteri-zar o decnio seguinte, cuja visibilidade ser clara em 88.

    neste primeiro decnio ps-68 que se inicia um processo de dilui-o da extrema complexidade, ambigidade, de um acontecimento, que foi

    caracterizado mesmo por dimenses contraditrias, cuja visibilidade tambmse d apenas no a posteriori. Este processo de diluio que comea to logo aordem restabelecida pode ser caracterizado pelas apropriaes ideolgicasque foram feitas do acontecimento, apropriaes que tiveram em comum ofato de buscarem construir uma identidadede 68. Essas apropriaes deram-se num amplo espectro, que variou desde a insignificncia do acontecimento,o nada, at sua assimilao institucional. Como diz Morin: as ideologiascortaram, recortaram o acontecimento para que este se assemelhasse a elas.Tudo entrou na ordem, a ordem leninista, a ordem de Mao, a ordem dos parti-

    dos, a ordem das instituies, a ordem burguesa, para que maio se tornasseum acidente (...). A ordem social, poltica, ideolgica acreditava ter expulsadoeste ingrediente indigervel (Morin, 1988a, p. 152).

    Este processo de apropriao ideolgica de 68 deu origem ento auma lenta assimilao de aspectos de 68, aqueles digerveis, assimilaoque se inicia neste primeiro decnio, mas cuja visibilidade maior dar-se- apartir das comemoraes dos 20 anos de 68.

    As tentativas, por via das apropriaes ideolgicas, de construiruma identidade de 68, no tiveram o mesmo sucesso, embora tenham tido

    uma mesma funo: transformar um acontecimento que foi justamente carac-terizado por um trao no identitrio em uma unidade de significao. A suacomplexidade foi apagada e o acontecimento ressurge a partir de cada umadas apropriaes ideolgicas como uma identidade a ser preservada. Quandose afirma que as tentativas de apropriao de 68 no tiveram o mesmo suces-so, isto se refere ao fato de que a chamada crise do marxismo, dos valoressocialistas, e o colapso da idia de revoluo deixam margem ainda a umapagamento dos aspectos mais polticos e propriamente revolucionrios doacontecimento, nos seus diversos matizes. No percurso de assimilao de 68

    que se inicia neste primeiro decnio, predominaram os aspectos que no limitepuderam ser assimilados pela ordem, em qualquer dimenso que seja destaordem, embora como processo tambm no homogneo, lento e sujeito mes-mo a resistncias, que retoma aspectos do prprio acontecimento, ou ainda

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    aqueles vistos como seus desdobramentos. As reformas universitrias, osmovimentos feminista e ecolgico dos anos 70 como herdeiros de 68 , aliberao da sexualidade, a questo da subjetividade e do individualismo, anova relao entre o adulto e o jovem, a contestao da hierarquia, as expe-rincias de autogesto ou co-gesto constituem, de modos diversos, aspectosque puderam ser lentamente assimilados, processo de assimilao que, almde ser seletivo, obscurece o carter complexo e contraditrio de 68.

    Sobre este primeiro decnio, que tem como referncia 1978, talvezse possa acrescentar, ainda, um outro elemento importante, que o caracterizaespecialmente, perde intensidade em 88 e est ligado, possivelmente, quelacomplexidade que envolve 68. O profundo abalo causado pelo acontecimen-to, e sua durao efmera, entre irrupo e dissoluo, provoca nos seus ex-protagonistas e testemunhas, um sentimento nostlgico de uma perda, no qual

    difcil localizar o seu sentido. Este sentimento constri uma posio de fixa-o num passado perdido, fixao que impede a construo de umdistanciamento em relao a esse passado, para que ele se torne objeto de umacompreenso possvel.

    Estes trs movimentos que caracterizam este primeiro decnio, avia da normalizao, a via das apropriaes ideolgicas do acontecimento, eaquele sentimento de uma perda no reconhecvel, embora distintos, tm emcomum o que poder-se-ia chamar do recalquedo acontecimento.

    Os movimentos de negao do passado (normalizao), de simpli-

    ficao do passado (apropriaes ideolgicas) e de fixao no passado (osentimento de uma perda no reconhecvel) produzem o recalque de 68, atra-vs da destemporalizao desse passado e do prprio acontecimento. Talvezpor isso se possa incorporar a questo de Morin que, ao se perguntar sobrequal o efeito mais importante de maio de 68, afirma que este efeito foiantes de tudo... o recalque de maio de 68 (Morin, 1988a, p. 152).

    Este recalque de 68, que o da sua complexidade e contradies, orecalque do seu tempo histrico, acentua-se tanto mais o acontecimento recoberto pelo silncio, apenas rompido nos momentos em que sua visibilida-

    de se realiza, pela via da comemorao ou pelo seu retorno miditico. Esterecalque foi to intenso, que em 1988, nos seus 20 anos, 68 era um aconteci-mento muito pouco conhecido pelos jovens da nova gerao, a no ser poralguns signos que restaram do processo, num primeiro momento mais violen-to e depois lento de depurao dos seus significados. Estes signos que resta-ram e que so aqueles exatamente que a mdia coloca e recoloca em circulaono provocam um estranhamento em relao ao acontecimento, mas um reco-nhecimento de sentidos que so os do presente, dentro da gama, j apontada,do mais familiar ao mais extico.

    O vazio social da histria e da memria no permite v-lo comotemporalidade histrica distinta do presente, que pudesse constitu-lo, reto-mando o dizer de Hannah Arendt, como uma afronta ao presente. Nestemomento histrico caracterizado pelo que se apontou anteriormente, o

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    presentesmo, 68 no pode ser percebido como alteridade em relao a essepresente, em razo mesmo do seu recalque, que significa tambm a impossi-bilidade da memria como pensamento.

    Em 1998, 30 anos depois, intensifica-se mais ainda o modo como oacontecimento ganha visibilidade por via das comemoraes e especialmentepor meio do seu retorno miditico. Neste momento, acrescenta-se um proble-ma a mais: a possibilidade de uma memria histrica deve, hoje, se defrontarcom os efeitos que o poder espetacular miditico provocou no acontecimento68, a partir de 1988.

    30 anos depois, torna-se cada vez mais necessria uma reflexosobre o significado daquela srie temporal, no sentido, apontado, de analisaro destino do acontecimento. Reflexo que permita no apenas retomar acomplexidade de 68 e a de seu tempo histrico, mas que possibilite ainda

    iluminar os contornos dos presentes histricos que o colocam em visibilidade.Complexidade de 68 e de seu tempo histrico que pode evidente-

    mente ser enfrentada pelo saber especializado da historiografia ou das cin-cias sociais, desde que estas possam formular perguntas sobre o acontecimen-to que ultrapassem o que seria uma mera dissecao do seu cadver (Morin,1978) e possam reinscrev-lo como questo, como um dos acontecimentosfundamentais do mundo contemporneo. De qualquer modo, permanece comoproblema o fato de que muito mais difcil a sua inscrio na memria hist-rica como questoe no como informaes descontextualizadas ou apropria-

    es identitrias, cuja expresso vazia mais acabada talvez seja gerao 68.A complexidade de 68 e de seu tempo histrico passa por sentidos

    contraditrios ou ambguos, que impedem uma reconstruo identitria doacontecimento: a sua simultaneidade que lhe d um carter internacional, assingularidades histricas de cada pas em que irrompeu, a surpresa que susci-tou, a sua incongruncia em relao s teorias e doutrinas que davam conta danossa sociedade, a sua dimenso revolucionria que condensava signos deoutros momentos revolucionrios do passado, as suas orientaes revolucio-nrias distintas que representavam estratgias diversas para a revoluo, o

    seu carter apenas reivindicativo na tica de uma ampliao de benefciossociais, polticos ou econmicos , o seu carter de resistncia, a sua dimen-so de crise de civilizao, o seu carter de contestao do poder burocrti-co ou tecnocrtico, a crtica da unidimensionalidade da sociedade, o seu car-ter de crise de gerao, a sua dimenso mais existencialista, libertria ouanarquista, a sua dimenso de desdobramento do surrealismo.

    A complexidade de 68 e de seu tempo histrico passa ainda, comose pode ter uma idia aproximada a partir destas referncias, por sentidos queirrompem como inteiramente novos e por releituras e retradues de movi-

    mentos ou acontecimentos passados.O acontecimento de 68 como abertura1tendo significado a irrupo,

    no de uma identidade, mas de um questionamento dela, por vias diversas eem intensidades diferentes, questionamento este que era o de uma certa ordem

    1 O termo brecha, expres-so de Cohn-Bendit, re-tomado em 68 mesmopor Lefort, Morin eCastoriadis, no livroLa Brche (Morin &Lefort & Coudray, 1968),ainda faz sentido atual-mente.

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    CARDOSO, Irene. 68: a comemorao impossvel.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(2): 1-12, outubro de 1998.

    social, foi seguido, como se procurou mostrar, quase imediatamente por umfechamento. A busca dos sentidos de 68, a partir da atualidade, deveria colo-car como problema justamente este intervaloentre abertura e fechamento.Isto porque os sentidos que vieram para o presente, seja atravs da via dascomemoraes, seja atravs do retorno miditico, so a expresso ou do pro-cesso de normalizao que se segue ao acontecimento, ou das apropriaesideolgicas que dele foram feitas.

    A sutura da abertura, resultado desses dois movimentos, responsvelpela produo das unidades imaginrias que sobre os acontecimentos se cons-truiu, e que so postas em circulao, nos intervalos regulares de tempo, foi asutura de umafalta, que deu origem aos questionamentos, ou, se se quiser, crtica social. Falta que significava poder perceber a ordem, no como identida-de fechada de sentido, mas como dividida por sentidos, isto , histrica.

    O que se comemora hoje, ou o que vem por meio do retornomiditico, so as apropriaes ideolgicas do acontecimento reduzidas aomenor denominador comum do passado.

    Os sentidos complexos e contraditrios que irromperam na abertu-ra so impossveis de ser comemorados, no apenas porque no podem seconstituir em unidades de sentido, mas porque tambm no podem ser reco-nhecidos por um presente, no qual, do ponto de vista social, o questionamentode uma ordem, que pode ser vista como histrica, deixou de ter lugar ou, nolimite, visto como um arcasmo.

    Recebido para publicao em agosto/1998

    CARDOSO, Irene. 68: the impossible celebration.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 10(2): 1-12,october 1998.

    ABSTRACT:68, this happenning sprouted simultaneously in many countries

    with singular features, and it was remarked by the forgetfulness and the

    normalization of the society and politics which followed its irruption. It comes

    bach through celebration, in regular intervals, which are only defined by deci-

    mal criterion. Every time that the celebration of the year of 1968 occurs, it

    empties the dramatization which coverd its owm occurence in 1968, and what

    is actually celebrated are the ideological appropriations of the happening and

    the aspects which are assimilated in the present.

    UNITERMS:

    68,celebration,memory,forgetfulness.

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