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1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Mestrado em Urbanismo V SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO “Cidades: temporalidades em confronto” Uma perspectiva comparada da história da cidade, do projeto urbanístico e da forma urbana. SESSÃO TEMÁTICA 5: HISTÓRIA E CULTURA URBANA CIDADES: REPRESENTAÇÕES ICONOGRÁFICAS COORDENADORA: SANDRA J. PESAVENTO (PROPUR-UFRGS) DEBRET: cenas cariocas VALÉRIA ALVES ESTEVES LIMA Este trabalho pretende ser um exercício no campo da iconografia urbana, muito mais um levantamento de questões do que um parecer definitivo a respeito do que teria sido o papel de Debret como fixador da urbanidade carioca de inícios do século XIX. Fruto de uma pesquisa que apenas se inicia, este texto elencará, portanto, tópicos de uma problemática centrada na representação da cidade, mas que ultrapassa o âmbito da história urbana pela natureza mesma do trabalho com imagens. O registro de uma cena, seja qual for o ambiente em questão, traduz sobretudo uma experiência que é, ao mesmo tempo, individual e social. Aquele que registra traz consigo esta dualidade, que se encontra, igualmente, na pessoa daquele que observa. Gostos, sensibilidades, posturas e preferências são condicionados por este movimento recíproco entre o indivíduo e a sociedade, impedindo a sua leitura sem que se estabeleça claramente a linguagem deste diálogo, as bases da construção deste relacionamento. Elemento fundamental nesta busca é, igualmente, identificar o rumo próprio da imagem, sua trajetória enquanto obra de arte, expressão de uma certa sensibilidade. É considerando estas e outras questões a elas relacionadas que tratarei, neste texto, de situar a figura de Debret no cenário brasileiro, e mais especificamente carioca, levantar os condicionantes impostos pela situação sócio-política brasileira e seus reflexos na sociedade carioca e, principalmente, abordar alguns dos trabalhos deste artista, movida pela dupla intenção de compreender a gênese e o alcance destas imagens. Antes de entrar propriamente nas questões acima referidas parece-me importante mencionar que, à exceção de alguns trabalhos aparecidos nas últimas décadas, trabalhos estes que se dedicaram, sobretudo, ao estudo da arte dos viajantes estrangeiros no Brasil, a passagem de Debret e dos demais membros da Missão Artística Francesa por nosso país carece de uma abordagem mais recente. Textos de catálogos, artigos em revistas e alguns ensaios mais aprofundados é tudo com o que se pode contar para uma visão diríamos mais atualizada do assunto. Por atualizada entenda-se preocupada em inserir a discussão sobre a arte brasileira dentro de uma proposta mais abrangente, livre das amarras de um discurso marcado pela ingenuidade e superficialidade de seus temas. Entre eles, o elogio da presença estrangeira e sua benéfica ação sobre as artes no Brasil, a querela entre uma arte nacional e o elemento estrangeiro, a ação individual e pontual de alguns dos maiores expoentes da arte no país. É evidente que todos estes trabalhos

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS Faculdade de Arquitetura e Urbanismo

Mestrado em Urbanismo

V SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO “Cidades: temporalidades em confronto”

Uma perspectiva comparada da história da cidade, do projeto urbanístico e da forma urbana.

SESSÃO TEMÁTICA 5: HISTÓRIA E CULTURA URBANA

CIDADES: REPRESENTAÇÕES ICONOGRÁFICAS COORDENADORA: SANDRA J. PESAVENTO (PROPUR-UFRGS)

DEBRET: cenas cariocas

VALÉRIA ALVES ESTEVES LIMA

Este trabalho pretende ser um exercício no campo da iconografia urbana, muito mais um levantamento de questões do que um parecer definitivo a respeito do que teria sido o papel de Debret como fixador da urbanidade carioca de inícios do século XIX. Fruto de uma pesquisa que apenas se inicia, este texto elencará, portanto, tópicos de uma problemática centrada na representação da cidade, mas que ultrapassa o âmbito da história urbana pela natureza mesma do trabalho com imagens. O registro de uma cena, seja qual for o ambiente em questão, traduz sobretudo uma experiência que é, ao mesmo tempo, individual e social. Aquele que registra traz consigo esta dualidade, que se encontra, igualmente, na pessoa daquele que observa. Gostos, sensibilidades, posturas e preferências são condicionados por este movimento recíproco entre o indivíduo e a sociedade, impedindo a sua leitura sem que se estabeleça claramente a linguagem deste diálogo, as bases da construção deste relacionamento. Elemento fundamental nesta busca é, igualmente, identificar o rumo próprio da imagem, sua trajetória enquanto obra de arte, expressão de uma certa sensibilidade. É considerando estas e outras questões a elas relacionadas que tratarei, neste texto, de situar a figura de Debret no cenário brasileiro, e mais especificamente carioca, levantar os condicionantes impostos pela situação sócio-política brasileira e seus reflexos na sociedade carioca e, principalmente, abordar alguns dos trabalhos deste artista, movida pela dupla intenção de compreender a gênese e o alcance destas imagens. Antes de entrar propriamente nas questões acima referidas parece-me importante mencionar que, à exceção de alguns trabalhos aparecidos nas últimas décadas, trabalhos estes que se dedicaram, sobretudo, ao estudo da arte dos viajantes estrangeiros no Brasil, a passagem de Debret e dos demais membros da Missão Artística Francesa por nosso país carece de uma abordagem mais recente. Textos de catálogos, artigos em revistas e alguns ensaios mais aprofundados é tudo com o que se pode contar para uma visão diríamos mais atualizada do assunto. Por atualizada entenda-se preocupada em inserir a discussão sobre a arte brasileira dentro de uma proposta mais abrangente, livre das amarras de um discurso marcado pela ingenuidade e superficialidade de seus temas. Entre eles, o elogio da presença estrangeira e sua benéfica ação sobre as artes no Brasil, a querela entre uma arte nacional e o elemento estrangeiro, a ação individual e pontual de alguns dos maiores expoentes da arte no país. É evidente que todos estes trabalhos

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deram-nos condição de continuar o movimento de construção deste saber tão vasto que é a história da arte brasileira, mas ensaios como o de Rodrigo Naves1 e Mario Carelli2, apenas para citar alguns exemplos, dão uma idéia da nova dimensão que assumiram estes estudos nas últimas décadas. Percebe-se, em muitos deles, a perfeita consciência de que um determinado ramo de estudo não se esgota em si mesmo, mas constrói-se sobre vários outros saberes e em comunhão com eles. É esta multiplicidade de dados a considerar que confere às pesquisas a legitimidade de seus resultados e a confiabilidade do conhecimento produzido.

*** Quando me propuz a pesquisar as cenas urbanas de Debret, trazia na bagagem o Debret missionário, membro ativo da célebre Missão Artística Francesa, fundador e professor da Academia das Belas-Artes do Rio de Janeiro3. Não há dúvida de que era o mesmo Debret quem se debruçara na coleta de dados para posterior publicação de cenas e tipos brasileiros. Para esta atividade, porém, Debret aproximava-se com muito mais intensidade dos outros viajantes que pelo nosso país excursionaram desde o século XVI, sobretudo a partir da abertura proporcionada pela corte portuguesa, depois de sua chegada ao país em 1808. Tal aproximação implicava na necessidade de considerar, para este estudo, todas as variáveis que se aplicam ao estudo dos viajantes, sob alguns aspectos bem diferentes daquelas que havia considerado para o estudo do Debret acadêmico. É o próprio artista quem diferencia estes dois papéis, atribuindo ao de viajante a „vantagem de poder admirar a beleza do ambiente brasileiro“ e de „animados (...) com o entusiasmo dos sábios viajantes (...) ir estudar uma natureza inédita“. Ao artista missionário relacionou a „glória de propagar o conhecimento das belas artes entre um povo ainda na infância“ e a tarefa de „imprimir, nesse mundo novo, as marcas profundas e úteis, espero-o, da presença de artistas franceses“4 . Tais atividades não estão, obviamente, isoladas uma da outra, visto que será sempre a partir da perspectiva de um estrangeiro que aceita uma missão profissional, mas que vive e mantém contato com outros viajantes, que Debret vivenciará sua experiência brasileira, buscando adaptar-se à nova realidade e desempenhar, na medida do possível, sua missão civilizatória. Tratava-se, então, de civilizar um povo já aculturado, de introduzir em sua vida o gosto pelas belas-artes, elemento fundamental para seu progresso espiritual. Logo tornou-se recorrente, porém, como se pode ler na obra de Spix e Martius, viajantes alemães que estiveram no Brasil entre 1817 e 1820, dizer que „aqui só se poderiam estabelecer as belas-artes, quando as artes mecânicas, que satisfazem às primeiras necessidades, houvessem feito o preparo para aquelas, e que num povo, só depois de fundada e firmada a sua vida comercial com o estrangeiro, é que se podem despertar as aspirações de arte e a cultura artística“ 5 . A despeito desta noção e a julgar pelo texto introdutório aos volumes de sua Viagem, Debret desempenhou com afinco sua tarefa na Academia, tendo ele e seus colegas estabelecido as bases para a inevitável evolução das artes no Brasil6. No já referido ensaio de Rodrigo Naves, o autor explora a dificuldade de Debret ao tentar adequar sua postura estética ao ambiente brasileiro, profundamente distinto do cenário de onde partira. Segundo ele, os princípios estéticos do neoclassicismo, dentro dos quais Debret se formara e trabalhara, eram incompatíveis com a realidade sócio-política brasileira. Não se tratava, na verdade, de uma questão puramente estética, ou melhor, tratava-se de uma estética fundada em valores éticos. O neoclassicismo trazia uma proposta edificante, preocupada com a formação moral de um público que participava

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ativamente das mudanças revolucionárias e com o despertar de virtudes cívicas que instigassem e regulamentassem a participação na vida pública. Ora, o Rio de Janeiro daquela época nem de longe apresentava as condições básicas para uma arte fundada nestes princípios. Aquilo que por muito tempo e tão recorrentemente foi citado como fonte de progressos únicos para a antiga colônia, ou seja, a presença da corte portuguesa, foi responsável também por incômodos incontornáveis na capital do Império. Dificuldades de moradia e de higiene, somadas ao perfil absolutamente despreparado da realeza e à imaturidade do povo brasileiro para as questões da arte tornavam praticamente impossível a aplicação, em solo brasileiro, do ideário neoclássico. Para Naves, no entanto, aquilo que mais profundamente abalava esta tentativa era a existência, entre nós, de uma escravidão generalizada. No Rio de Janeiro os escravos representavam quase metade da população, em grande parte envolvidos num tipo especial de exploração escravista: os escravos de ganho. Dentro deste sistema, os escravos poderiam ser alugados a terceiros ou realizar tarefas avulsas, devendo delas prestar contar a seus donos ao final do dia. Percebe-se, portanto, que neste tipo de relação, o trabalho escravo rendia a seus senhores uma renda extra, o que indica o seu interesse em manter estas atividades sob controle. Apesar disto, era inegável que este tipo de atividade permitia aos escravos uma maior mobilidade. Carregados de mercadorias - frutas, doces, flores, objetos diversos ou simplesmente jarras de água - estes negros circulavam livremente pela cidade, podendo, inclusive, guardar para si uma pequena parte dos ganhos do dia. Neste circular experimentavam sentimentos e comportamentos certamente inacessíveis aos escravos rurais. Toda esta liberdade, porém, tinha um contraponto na realidade social, que negava aos negros quaisquer direitos. Também segundo Naves, „A propriedade de negros de ganho era tão generalizada na cidade que poucos brancos prescindiam deles. Com isso, disseminava-se também um tipo de vínculo marcado por uma dominação paradoxalmente doméstica e crua, que necessariamente embrutecia todos os envolvidos“7. É bastante compreensível, portanto, que num cenário como este, Debret tivesse que readaptar sua postura estética, procurando adequá-la ao cenário brasileiro. As aquarelas reproduzidas em sua obra sobre o Brasil dão-nos a medida deste esforço e o alcance de seus resultados. Sobretudo nas cenas urbanas, mais especificamente cariocas, o artista se esforça em captar atitudes típicas, momentos significativos da vida na cidade, que dessem aos leitores de seus livros uma noção fidedigna do que era o cotidiano na capital do império luso durante as primeiras décadas do século XIX. Na verdade, segundo suas próprias palavras, „A obra que ofereço ao público é uma descrição fiel do caráter e dos hábitos dos brasileiros em geral“8. As aquarelas selecionadas nos volumes editados, porém, não dão conta de todo este projeto. Entre as cenas urbanas predominam as do Rio de Janeiro, ainda que o artista, durante sua estada no Brasil, tenha conhecido e registrado cenas de outras províncias9. Dedicou, também, uma importante parte de seu trabalho aos índios brasileiros, baseando-se em alguns contatos pessoais e, sobretudo, nas informações obtidas através de alunos vindos de outras províncias e de viajantes estrangeiros. Algumas cenas de acontecimentos políticos e religiosos, bem como retratos, vistas panorâmicas e pranchas dedicadas ao registro de objetos, fisionomias e plantas completam o acervo iconográfico desta obra, publicada em Paris com o título de Voyage pittoresque et historique au Brésil, entre 1834 e 1839. Nela Debret assume seu papel de narrador, dando a conhecer os acontecimentos históricos dos quais fora testemunho em seus quinze anos de vida no Brasil, entre 1816 e 1831. Afirmando que as mudanças que se operaram neste período equivaliam a séculos de transformação em outros países, reconheceu que „cabia-me, pois, como testemunha estrangeira e como pintor de História,

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colher dados exatos e de primeira ordem a fim de servir a uma arte dignamente consagrada a salvar a verdade do esquecimento“ 10. Atribuindo à pintura histórica, gênero por excelência da arte acadêmica, a função de preservar a verdade, Debret mantinha seu elo com a Academia e, ao mesmo tempo, com o Institut de France, instituição à qual pertencia, dedicando-lhe sua obra sobre o Brasil11 . Uma análise um pouco mais aprofundada das aquarelas da Viagem permite-nos ver que elas são muito mais do que a expressão de um compromisso com a verdade, do que um documentário sobre a vida e os costumes do povo brasileiro. São, além de uma leitura muito específica de um período da história brasileira, a materialização de um ideário artístico. Este ideário, personificado numa figura que, como de resto todos os outros integrantes da Missão Artística Francesa, carecia de uma posição de destaque entre seus contemporâneos, foi aqui moldado e adaptado; sofreu mutilações e assumiu uma nova roupagem, típica da combinação entre a bagagem do artista e a realidade por ele encontrada. O resultado, tímido para alguns, excepcional para outros, altamente significante para ambos, permite reconhecer em Debret uma figura emblemática de um momento muito especial de nossa história, qual seja, o da busca de mecanismos de reconhecimento de uma identidade e de uma autoridade que se queria diferenciada da imagem da metrópole.

*** Jean-Baptiste Debret, nascido em Paris no ano de 1768, foi um típico artista do final do século XVIII na França: frequentou uma escola de pintura, empreendeu a imprescindível viagem de estudos à Itália, ingressou na Academia Francesa, frequentou os Salões e recebeu alguns prêmios por suas cenas históricas, relacionadas quase sempre a temas napoleônicos. Sua vinda para o Brasil se deu num momento em que, além de problemas pessoais, Debret e outros artistas ligados a Napoleão sentiam as pressões da monarquia bourbônica, novamente no poder e interessada em tirar de cena toda e qualquer lembrança do Corso. A célebre Missão chega ao Rio de Janeiro em 1816 com a incumbência de aqui organizar uma academia de artes que, seguindo o modelo francês, divulgasse entre nós o gosto pelas belas-artes, além de introduzir o ensino de alguns ofícios fundamentais ao desenvolvimento material de nosso povo. Os primeiros dez anos se passaram sem que a Academia pudesse efetivamente funcionar, a despeito dos seguidos decretos que autorizavam seu funcionamento12. Debret e Grandjean de Montigny, arquiteto da Missão, logo encontraram ocupação dentro da esfera do poder, participando ativamente das celebrações oficiais que então se realizavam e retratando figuras ilustres do Império, além de tomarem a iniciativa de abrir cursos livres de pintura e arquitetura. A instável situação política do país, somada às desavenças entre os mestres franceses e a direção portuguesa da Academia13 , adiaram o início efetivo de suas atividades para 1826. A partir daí, Debret empenhou-se em suas atividades acadêmicas, sendo o grande mentor das primeiras exposições realizadas na instituição. Durante todos estes anos, porém, Debret preocupou-se em registrar os hábitos e costumes dos brasileiros, registro este que leva a indelével marca de sua própria experiência. Suas boas relações com o governo imperial equilibravam os desacordos com os portugueses na Academia, mas não se pode descartar a idéia de que este conturbado relacionamento em muito afetou a visão que o artista teria de nosso povo. A historiografia sobre o tema põe-nos geralmente em contato com uma facção portuguesa intransigente, belicosa, desestruturada emocionalmente e sujeita a atos mesquinhos contra uma elite francesa portadora das mais altas qualidades e dos melhores costumes, superior às ofensas e perseguições lusitanas. Esta vivência está, direta ou indiretamente presente em seu trabalho, na forma como retrata hábitos e pessoas, nas opções temáticas que faz e,

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inclusive, na escolha da técnica da aquarela para retratar a sociedade brasileira. É novamente Rodrigo Naves quem observa a necessidade de encontrar uma técnica que melhor se adaptasse à realidade do país, inadaptável à excelência da pintura à óleo: „A tradição do óleo impunha um respeito que Debret considerava até certo ponto, relutando em fazê-lo adquirir a elegância e desenvoltura da tradição. Em suas pequenas dimensões, as aquarelas evitavam qualquer manifestação de grandiloquência e assim facilitavam uma representação mais eficaz da vida das ruas, com sua informalidade em tudo avessa às pompas e poses da academia. Com sua fatura mais rala, conferiam às figuras uma certa inconsistência, um ar de transitoriedade que contribuía para revelar a natureza daquelas situações, com sua precariedade e pobreza.“14 Esta observação é bastante interessante, mas há que se convir igualmente que a técnica da aquarela adequava-se melhor à proposta de trabalho de Debret do que a pintura à óleo. Por outro lado, e Naves também considera este fato, é bastante evidente que a desenvoltura do artista nas aquarelas é infinitamente maior do que nas telas pintadas no Brasil. No fundo, parece haver uma adequação do artista à técnica, que obedece à uma dupla imposição da fatura da obra e da emoção do artista. As aquarelas registram, de uma forma por vezes mais amena do que as situações exigiriam, um pouco da vida e dos costumes dos índios, dos escravos e da população branca que habitava o Brasil de então. Ainda que registre ou mencione nos textos referências de outras províncias, é no Rio de Janeiro que o artista centra seu trabalho, por razões bastante evidentes. No caso dos indígenas, reconhece que é nas florestas virgens que se poderia encontrá-los em seu estado natural, fonte perfeita, portanto, para os registros a que se propunha. Isto não significa, no entanto, que ele mesmo tenha empreendido, à maneira de muitos viajantes, incursões ao interior em busca de informações sobre os índios do Brasil. Esta discussão está fora, porém, dos propósitos deste texto. No caso das cenas cariocas, mais especificamente, considero de muita valia recorrer ao ensaio de Germaine de Stäel sobre as ficções literárias15 . Preocupada com o papel da literatura na formação moral dos cidadãos, a autora afirma que apenas as ficções ditas „naturais“ conseguiriam, ao mesmo tempo, distrair e formar, tomando como elemento fundador a verossimilhança. Neste tipo de ficção, tudo é simultaneamente inventado e imitado; nada é verdadeiro, porém, tudo é verossímil. Partindo da realidade, dos acontecimentos cotidianos, a intenção seria registrar sentimentos e não fatos, acrescentando à verdade uma espécie de efeito dramático capaz de dar a esta mesma verdade um sentido mais abrangente e, principalmente, de despertar a emoção. Neste processo, a autora enxerga uma semelhança com a arte do pintor, „qui, loin d’altérer les objets, les représente d’une manière plus sensible“16. È esta leitura sensível que Debret realiza do cotidiano carioca que orienta suas aquarelas e é desta leitura que pretendo me aproximar, selecionando, para isto, algumas das cenas que compõem sua obra sobre o Brasil.

*** A obra de Debret sobre o Brasil difere, em sua essência, do tipo de literatura que se convencionou chamar „de viagem“:

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„...condição sine qua non para que um texto seja considerado literatura de viagem é o deslocamento físico do autor pelo espaço geográfico, por tempo determinado, e a transformação do observado e do vivido em narrativa. Mas esta premissa não esgota a abrangência do gênero.(...). Suas manifestações caminham entre a crônica, a epístola, o romance, a poesia, o diário e o relato científico, acrescentado não raramente do correspondente iconográfico.“17 A Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil é, sobretudo, uma obra iconográfica. A qualidade dos textos que acompanham as litografias está muito aquém da capacidade narrativa das imagens. As descrições das pranchas carecem de regularidade; o tratamento é muito desigual entre elas e, além disto, não se pode confiar nelas enquanto fonte de informação, visto que muitos dos dados nelas contidos têm sido objeto de crítica e contestação. Parecem-me, não obstante, importante caminho a percorrer no sentido de rastrear as idéias e concepções do artista, sua postura diante da tarefa a que se propunha, tanto como artista quanto como „historiador fiel“18 . Uma das noções mais significativas que se pode extrair de seus textos é a idéia de que o Brasil era um país ainda na infância, mas que tinha todas as condições de equiparar-se às nações mais desenvolvidas do Velho Mundo. Esta noção insere-se no âmbito de uma discussão muito maior sobre as concepções detratoras a respeito do Novo Mundo, bem como sobre aqueles que se ergueram contra elas, e foge, portanto, às dimensões deste trabalho19. Vale, porém, registrar que, imbuído desta concepção e do sentimento que o ligava ao país onde viveu por mais de uma década, Debret confere a suas aquarelas um certo ar romântico, envolvido com uma temática que não está entre aquelas privilegiadas pela escola em que se formou e que requer, por conseguinte, um tratamento outro. Neste esforço por tratar diferente aquilo que assim o requisitava, Debret expõe sentimentos, idealiza ambientes e pessoas e transmite, assim, a sua visão do que era a sociedade brasileira da época. A chegada da corte portuguesa ao Brasil, em 1808, obrigara a cidade do Rio de Janeiro a transformar-se rapidamente. O novo ritmo imposto por uma população que crescia sem parar, demandando cada vez mais serviços e condições de moradia, acelerou a vida da cidade. Na condição de capital do Reino Unido, tornou-se palco das grandes cerimônias oficiais, viu crescer e tomar conta de suas ruas uma população escrava de características bem específicas, foi porta de entrada e local de permanência dos inúmeros viajantes e imigrantes estrangeiros que aqui chegaram e foi, por assim dizer, um espelho da crise do sistema colonial português. A presença da corte em terras brasileiras e o signficativo número de estrangeiros que entre nós habitavam poderiam estar a indicar um inevitável processo de cosmopolização da antiga colônia. A julgar pelas condições do Rio de Janeiro, porém, conclui-se que este processo não poderia se efetivar, entravado, sobretudo, pelo peso que o trabalho escravo continuava tendo em nossa sociedade. Na verdade, cidade e população formavam-se mutuamente; as condições da cidade impulsionavam determinados hábitos e costumes, ao mesmo tempo em que estes imprimiam nela sua marca definitiva. São estas condições que Debret nos apresenta em suas aquarelas. Suas cenas agem como flashes sobre a vida na cidade, sempre vinculadas com o princípio da verossimilhança., onde tudo é, ao mesmo tempo, real e inventado. Todas elas poderiam acontecer a qualquer momento, independentemente de teram realmente ocorrido tal como registram as imagens. Neste registro, Debret privilegia sempre o ocorrido, e não a paisagem, o meio. No centro das composições estão, geralmente, pessoas que documentam um certo hábito ou uma ação. Suas expressões também nos dizem algo de si mesmas e do próprio artista, na medida em que sugerem alegria, tristeza, abandono, melancolia ou sedução. À semelhança do que Humboldt faz

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com a natureza, Debret realiza uma leitura estético-científica da sociedade brasileira, preocupado com a descrição „fiel“ de seus costumes, ao mesmo tempo em que carrega suas cenas de um simbolismo capaz de sugerir emoções em seus interlocutores, proporcionando-lhes algo mais do que um conhecimento puramente objetivo da realidade brasileira de inícios do século XIX. Entre as aquarelas reproduzidas em sua Viagem, Debret apresenta-nos alguns panoramas da baía do Rio de Janeiro, bem como algumas vistas gerais da cidade. À beleza e exuberância da natureza carioca, registrada nos panoramas e exaustivamente descritas nos textos explicativos, Debret acrescenta, no tomo seguinte, vistas da cidade. Nelas o leitor pode reconhecer detalhes da cidade e algumas de suas principais construções. Entre elas, a Praça do Palácio, porta de entrada de todos os que desembarcavam na capital, impressiona pela sua amplitude e arquitetura. Na vista da cidade desenhada a partir do Outeiro da Glória, Debret coloca em primeiro plano os observadores de uma paisagem que se estende ao longe. Alguns deles voltam-se para o leitor, como que a fazerem as honras da cidade. Entre as cenas cariocas podemos entrever uma série de temas que tentarei, de uma forma indicativa, apresentar a seguir20. O maior número delas traz, como já mencionei, a figura do escravo, seus hábitos e atividades. São várias as referências aos trabalhos dos escravos de ganho, vendedores ambulantes de uma infinidade de mercadorias: refrescos, cestos, aves, flores, tabaco, capim, café e muitas outras. A estas atividades „leves“ somam-se aquelas que demandavam dos escravos a força corporal extraordinária que tanto se lhes atribuía: carregamentos pesados (móveis, pipas de vinho, caixas de açúcar, etc.), transporte de carruagens, corte de madeira, entre outras. Os negros ou mulatos que tinham uma posição um pouco diferenciada da grande maioria também foram contemplados por Debret: barbeiros, cirurgiões, negras livres que buscavam seu sustento trabalhando por conta própria. Em contraposição, Debret também registra a dura realidade do comércio e castigo de negros: o mercado da rua do Valongo, castigos em praça pública e negros que portam objetos que traíam sua condição de escravos fugidos. Outro conjunto de aquarelas bastante significativo retrata costumes e atividades da população branca. Cenas famosas como a do funcionário público que sai de casa com a família já renderam um sem número de referências e comentários. A intimidade de algumas casas também se encontra entre os registros de Debret: o convívio íntimo com os escravos, os hábitos alimentares, a condição feminina e as relações familiares estão entre os temas abordados. É bastante interessante notar como estas aquarelas traduzem a idéia de Debret de que o brasileiro, apesar de sua natureza boa e de sua vivacidade, „...gosta bastante do repouso, principalmente durante as horas quentes do dia, desculpando-se sem cessar com sua má saúde (...) Minha observação, repito-o, baseia-se inteiramente nas variações da atmosfera, pois é fácil de compreender que um clima continuamente quente e úmido, debilitando as forças físicas, torna o homem preguiçoso na realização de sua vontade, embora seja ele dotado de um espírito vivo e penetrante.“21 O espaço público como cenário de festividades e acontecimentos políticos encontra um bom número de exemplos entre as litografias da Viagem. O desembarque da Princesa Leopoldina, a aclamação de D. João VI, de D. Pedro I e de D. Pedro II, a aceitação provisória da Constituição de Lisboa, além do cortejo do batizado da Princesa Maria da Glória e da partida da Rainha Carlota Joaquina, colocam o povo nas ruas para participar

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destes momentos, ainda que muito mais movidos por uma admiração fundada no respeito do que por uma verdadeira identidade com os motivos destes eventos. A religiosidade e a caridade pública também estão presentes nas ruas cariocas, figurando igualmente entre os temas tratados por Debret. Pessoas que se dirigem às igrejas, pedintes, festas religiosas e cortejos fúnebres traduzem comportamentos e hábitos sociais da população carioca.

*** A obra iconográfica de Debret sobre o Rio de Janeiro distrai e informa. Distrai, pois suas aquarelas são agradáveis de se ver, seja pelas cores ou pela composição. Informam, pois o objeto de suas cenas é extraído da realidade carioca, da observação do dia-a-dia da cidade e de seus habitantes. Despertam, em paralelo, um sentido crítico que seja capaz de identificar o papel que de fato lhes cabe no âmbito maior da iconografia urbana carioca. Em meio a tantos outros trabalhos realizados na então capital do Reino, o de Debret possui entre nós uma importância bastante singular e que começa a ser redescoberta. Assim como os viajantes e estrangeiros que aqui chegaram nos séculos XVIII e XIX „redescobriram“ o país, tem-se notado um esforço bastante grande entre os estudiosos no sentido de retomar estes depoimentos, sejam eles literários ou iconográficos, numa tentativa de identificar com maior clareza o espaço que devem ocupar entre os saberes sobre o Brasil. Importa não tomá-los como fontes auto-suficientes e fidedignas de uma certa realidade, mas problematizar esta própria realidade e, por conseguinte, tudo o que se tenha produzido a partir dela. É neste sentido que, ao retomar uma parcela da obra de Debret, tenho me preocupado em vincular a minha leitura a uma discussão maior sobre a situação do Brasil, e mais especificamente do Rio de Janeiro, no início do século passado. A importância da presença estrangeira entre nós, toda uma tradição de saber que está por trás de suas viagens e produções intelectuais, há que ser avaliada em todo o seu alcance, tarefa que vem sendo lentamente realizada, mas que ainda demanda esforços consideráveis. 1 NAVES, Rodrigo. „Debret, o Neoclassicismo e a Escravidão“ , in: A Forma Difícil, ensaios sobre arte brasileira. São Paulo, Editora Ática S.A., 1996, pp. 41-129. 2 CARELLI, Mario. Jean-Baptiste Debret, um pintor de história nos trópicos. Catálogo da exposição Jean-Baptiste Debret, um pintor de história no Brasil, organizada pelos Museus Castro Maya. Rio de Janeiro, 1990. 3 Em dezembro de 1994 apresentei minha Dissertação de Mestrado junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Arte e da Cultura da Universidade Estadual de Campinas, cujo título é A Academia Imperial das Belas-Artes: um projeto político para as artes no Brasil , onde tratei a questão da vinda da Missão Artística Francesa e das primeiras décadas de funcionamento da academia carioca. 4 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Tomo I (Volume I e II), São Paulo, Livraria Martins Editora S.A., 1954, p. 5. 5 SPIX, J.B. von e C.F.P. von Martius. Viagem pelo Brasil, 1817-1820, Vol I, São Paulo, Edições Melhoramentos, p. 56. 6 Para uma bibliografia sobre a Missão Artística Francesa e a Academia das Belas-Artes do Rio de Janeiro, ver: LIMA, Valéria A.E. A Academia Imperial das Belas-Artes: um projeto político para as artes no Brasil, UNICAMP, 1994. 7 NAVES, Rodrigo, op. cit., 1996, pp. 70-71. 8 DEBRET, Jean-Baptiste, op. cit., p. 8. 9 Um exemplo são os desenhos e pinturas realizados em São Paulo, Paraná e Sante Catarina, reproduzidos em PRADO, J. F. de Almeida. Jean-Baptiste Debret, São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1973. 10 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Tomo II (Volume III), Belo Horizonte/São Paulo, Ed. Itatiaia Limitada/Ed. da Universidade de São Paulo, 1978, p.14.

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11 DEBRET, Jean-Baptiste, op. cit., Tomo I, volume I. O autor dedica a publicação aos membros da Academia das Belas Artes do Instituto de França, afirmando que a academia brasileira deve sua existência a este Instituto. 12 Sobre este assunto, ver LIMA, Valéria A.E., op. cit. 13 Desde 1820, ano seguinte à morte de Le Breton, líder da Missão e primeiro diretor da Academia carioca, assumira a direção do estabelecimento o pintor português Henrique José da Silva, aí permanecendo até 1834. 14 NAVES, Rodrigo, op. cit., p.72. 15 STÄEL, Germaine de. Essai sur les Fictions, apresentação de Michel Tournier, Paris, Éditions Ramsay, 1979. 16 STÄEL, Germaine de, op. cit., p.44. 17 LISBOA, Karen Macknow. A Nova Atlântida de Spix e Martius: natureza e civilização na Viagem pelo Brasil (1817-1820), São Paulo, Editora Hucitec/FAPESP, 1997, p. 34. 18 DEBRET, Jean-Baptiste, op. cit., Tomo I, volume I, p. 3. Historiador fiel, reuni nesta obra sobre o Brasil os documentos relativos aos resultados desta expedição pitoresca, totalmente francesa, cujo progresso acompanhei passo a passo. 19 Sobre esta discussão, ver: GERBI, Antonello. Novo Mundo: História de uma polêmica (1750-1900), São Paulo, Companhia das Letras, 1996. 20 Esta apresentação será complementada pela projeção das imagens, a ser realizada durante o Seminário. 21 DEBRET, Jean-Baptiste, op. cit., Tomo I, Volume II, p. 109.

BIBLIOGRAFIA BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos Viajantes. 3 vols, São Paulo/Salvador: Metalivros/Fundação Emilio Odebrecht, 1994. CARELLI, Mario. Jean-Baptiste Debret, um pintor de história nos trópicos. Catálogo da exposição Jean-Baptiste Debret, um pintor de história no Brasil, organizada pelos Museus Castro Maya, Rio de Janeiro, 1990. DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Tomo I (Volumes I e II), São Paulo: Livraria Martins Editora S.A., 1954, p. 5. . Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Tomo II (Volume III), Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia /EDUSP, 1978. DENIS, Ferdinand. Brasil, Belo Horizonte/ São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1980. DUQUE-ESTRADA, Luiz Gonzaga. A Arte Brasileira, introdução e notas de Tadeu Chiarelli, Campinas: Mercado de Letras, 1995. GERBI, Antonello. Novo Mundo: História de uma polêmica (1750-1900), São Paulo: Companhia das Letras, 1996. GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteção e Obediência: criadas e seus patrões no Rio de Janeiro, 1860-1910, São Paulo, Companhia das Letras, 1992. LIMA, Valéria Alves Esteves. A Academia Imperial das Belas-Artes: um projeto político para as artes no Brasil, UNICAMP, 1994. LISBOA, Karen Macknow.A Nova Atlântida de Spix e Martius: natureza e civilização na Viagem pelo Brasil (1817-1820), São Paulo, Editora Hucitec/FAPESP, 1997. MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. „Histórico da Iconografia Urbana“, in Revista USP, n.30 (junho/agosto de 1996). NAVES, Rodrigo. „Debret, o Neoclassicismo e a Escravidão“, in A Forma Difícil, ensaios sobre arte brasileira, São Paulo: Editora Ática S.A., 1996.

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