66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

58
FICHAMENTO Bibliografia principal: LEFORT, Claude. Pensando o político. Ensaios sobre democracia, revolução e liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. Bibliografia complementar: LEFORT, Claude. A invenção democrática: os limites da dominação totalitária. 2a ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. 247p. REIS, Liana Maria. LEFORT, Claude. Pensando o político. Ensaios sobre democracia, revolução e liberdade. Cadernos de História, Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 61-63, jun. 1997. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/cadernoshistoria/article/view/1661/1765 . Acesso em: 1 Jun. 2011. RUBY, Christian. Introdução a filosofia política. São Paulo: Ed. da UNESP, 1998. 157p. Observações preliminares: Pensando o político (1986), de Claude Lefort, traduzido para o português em 1991, é constituído por uma coletânea de ensaios que verticaliza as ideias centrais de seu trabalho anterior, A invenção democrática (1987). São tratados temas como a democracia, a revolução, o totalitarismo e a liberdade, numa abordagem filosófica aprofundada. Trata-se de um estudo que integra filosofia política e história, em que o autor busca “pensar livremente” e compreender a complexidade dos fenômenos analisados e dos novos fatos históricos “que modificam a experiência e o pensamento dos homens”. As partes que compõem a obra, Acerca da democracia moderna, Acerca da revolução, Acerca da liberdade e Acerca da parte do irredutível, e que contém doze ensaios que tratam sobre temas da modernidade – entre eles o Terror revolucionário, os direitos do homem, a crença religiosa, a igualdade, a combinação entre liberdade individual e liberdade política, a questão da imortalidade, dentre outros –, embora tratem de temas específicos, estão interelacionadas através de um fio condutor: a procura dos sinais do político, dos sinais de repetição e da dimensão simbólica do social. Na verdade, o político é um dos símbolos do social que dão forma à sociedade ou ao regime, constituindo o objeto de estudo de Lefort. A questão-chave para o autor é o simbólico – origem da construção do político pelo social –, o que o leva a criticar o

Transcript of 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

Page 1: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

FICHAMENTO

Bibliografia principal:

LEFORT, Claude. Pensando o político. Ensaios sobre democracia, revolução e liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

Bibliografia complementar:

LEFORT, Claude. A invenção democrática: os limites da dominação totalitária. 2a ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. 247p.

REIS, Liana Maria. LEFORT, Claude. Pensando o político. Ensaios sobre democracia, revolução e liberdade. Cadernos de História, Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 61-63, jun. 1997. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/cadernoshistoria/article/view/1661/1765. Acesso em: 1 Jun. 2011.

RUBY, Christian. Introdução a filosofia política. São Paulo: Ed. da UNESP, 1998. 157p.

Observações preliminares:

Pensando o político (1986), de Claude Lefort, traduzido para o português em

1991, é constituído por uma coletânea de ensaios que verticaliza as ideias centrais de

seu trabalho anterior, A invenção democrática (1987). São tratados temas como a

democracia, a revolução, o totalitarismo e a liberdade, numa abordagem filosófica

aprofundada. Trata-se de um estudo que integra filosofia política e história, em que o

autor busca “pensar livremente” e compreender a complexidade dos fenômenos

analisados e dos novos fatos históricos “que modificam a experiência e o pensamento

dos homens”.

As partes que compõem a obra, Acerca da democracia moderna, Acerca da

revolução, Acerca da liberdade e Acerca da parte do irredutível, e que contém doze

ensaios que tratam sobre temas da modernidade – entre eles o Terror revolucionário, os

direitos do homem, a crença religiosa, a igualdade, a combinação entre liberdade

individual e liberdade política, a questão da imortalidade, dentre outros –, embora

tratem de temas específicos, estão interelacionadas através de um fio condutor: a

procura dos sinais do político, dos sinais de repetição e da dimensão simbólica do

social. Na verdade, o político é um dos símbolos do social que dão forma à sociedade

ou ao regime, constituindo o objeto de estudo de Lefort. A questão-chave para o autor é

o simbólico – origem da construção do político pelo social –, o que o leva a criticar o

Page 2: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

marxismo e romper com a Ciência Política. Para ele, não podem existir “modelos

teóricos” prontos e acabados para encaixar a realidade e a história, na medida em que a

totalidade do real vivido não pode ser totalmente compreendida. A realidade contém um

sentido próprio e na dinâmica exige a construção constante e a percepção de novos

lugares do político. Ao analisar a democracia e o totalitarismo, Lefort mantém suas

concepções desenvolvidas na “Invenção Democrática”. Ambos são fruto do advento do

Estado de Direito e do liberalismo gerado pelas revoluções dos séculos XVIII e XIX.

Instaurou-se uma nova ordem social, que criava um lugar simbólico do “poder sem

rosto”: o poder é visto agora como emanado do povo, dando a sensação de ser diluído e

vazio. No lugar do corpo do rei-intermediário entre Deus e os homens – e da hierarquia

social da velha ordem, surgiram o direito e a lei que, invadindo o imaginário político e

social, concedem à “opinião pública” o poder de legitimação. Nos regimes totalitários, a

ideia de povo-uno recriou a noção de homogeneidade perdida pela democracia, para

legitimar o poder dos dirigentes e partidos únicos. O Estado de Direito gerou a

revolução contínua, permanente e secular da invenção democrática, cujo processo não

se pode parar. É, portanto, essa contínua “invenção” da democracia, da liberdade e da

igualdade que possibilita pensar a questão do imaginário político, através do qual os

homens orientam sua conduta diante do poder. Os imaginários políticos construídos

historicamente no decorrer da história que servem aos movimentos sociais de resistência

popular, bem como o exercício da dominação política. Servem para a discussão da

análise comparativa entre a democracia e o totalitarismo;

O estudo de Claude Lefort, ao deslocar o político da esfera tradicionalmente

aceita de sua atuação (aparelho estatal, partidos políticos, etc.) e ao abordar sua

dimensão simbólica, permite uma compreensão mais ampla e complexa dos conflitos de

classes em qualquer realidade histórica. O que em particular me acrescentou muito, e

enriqueceu sobremaneira a minha compreensão acerca da democracia e da liberdade,

bem como me pós em contato com pensadores importantes do século XIX como Quinet,

Michelet e Tocqueville, e ainda logrou uma ampliação da interpretação apoiada na

filosofia política e da história das ideias.

Assim, penso que no presente momento, mais do que nunca, torna-se necessário

pensar a incessante invenção democrática que, com base no direito e na lei, cria a

dimensão simbólica, que remete os homens ao espaço de luta contra a dominação e

opressão rumo ao desenvolvimento e construção de sociedades mais democráticas. Fica

assim, a possibilidade de usar este simbólico para a conquista efetiva da democracia

Page 3: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

participativa, criando novos canais políticos de reivindicação com efetivo poder de

pressão e, ao mesmo tempo, pensarmos nos limites históricos do poder e da própria

democracia, particularmente na sociedade brasileira.

PRIMEIRA PARTE – ACERCA DA DEMOCRACIA MODERNA

A Questão da Democracia

Lefort afirma a importância da filosofia política como aporte analítico para se

pensar a política, de modo à repensar e, conseqüentemente, restituir sentido à ideia de

liberdade, bem como da democracia. Segundo o autor, a filosofia política “jamais teve

outro impulso senão o desejo de se libertar da servidão para com as crenças coletivas,

conquistar a liberdade de pensar a liberdade na sociedade; a filosofia política sempre

teve em vista a diferenciação, da essência, entre regime livre e despotismo [...].” Assim,

Lefort afirma ser a democracia uma nova forma de tirania.

Nesse sentido o autor tece uma crítica ao trato cientifico-metodológico das

ciências políticas e da sociologia política, apontando que suas interpretações

desconsideram a constituição da efetividade do político. Segundo o autor, “politólogos e

sociólogos descortinam, nesse modo de aparecer do político, a condição que define seu

objeto e sua postura de conhecimento, sem interrogar a forma de sociedade na qual se

apresenta e se vê legitimada a clivagem entre diversos setores da realidade.” (p.25)

Citando Léo Strauss, Lefort afirma a ciência política realizando a castração do

pensamento político, colocando que a ciência política, na sua objetivação que tipifica os

elementos e as estruturas sociais, numa construção ficcional do sujeito – que o

neutraliza em prol de um estatuto social –, rompe com a tradição filosófica e “perde-se o

sentido da diferença entre as formas de sociedade.” (p.27) A partir da analise e

caracterização do totalitarismo alemão é que Lefort estabelece como pensar o político –

político como traços mais característicos que formam a sociedade, ao qual se opera a

condensação entre as esferas de poder, a esfera da lei e do saber –, e assim, como pensar

a democracia. Para tal o autor recorre a Tocqueville para pensar a democracia, já que

ele, Tocqueville via a democracia como uma forma de sociedade, e a tinha como uma

grande mutação histórica de dinâmica irreversível. Assim é colocada que é

importantíssima a sua intuição de uma sociedade defrontada com a contradição geral

que manifesta a desaparição de um fundamento da ordem social. (p.29) ver apologia e

limites de Tocqueville expostos por Lefort (ver p.30-31). Lefort analisa que a

Page 4: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

democracia revela-se assim a sociedade histórica por excelência, sociedade que, por sua

forma, acolhe e preserva a indeterminação. (p.31) Recolocando ao centro da reflexão o

que foi ignorado pela perda do sentido do político, numa matriz teológico-política,

Lefort retorna a monarquia para uma análise da democracia em sua singularidade. Ver

democracia em oposição ao poder corporificado do príncipe (p.32-33). Para ele a

democracia implica em transformação de ampla ressonância, por exemplo: o fenômeno

de desincorporação que é acompanhado de uma desintrincação entre a esfera do poder,

da lei e do conhecimento. Portanto, em toda a extensão do social opera-se uma dialética

de exteriorização de cada esfera de atividade, como das relações entre as classes,

relações de espoliação e de dominação, o que diz respeito a uma nova constituição

simbólica do social. Assim, a legitimação do conflito, puramente político, contém o

principio que legitima o conflito social sob todas as suas formas. Ver (p.34). A

instabilidade do paradoxo da democracia é também expressa pelo sufrágio universal, ao

qual segundo ele, nesse ato, “a substancia é substituída pelo numero” (p.34), ao qual as

solidariedades são destituídas em prol, e na efetivação do indivíduo. Dito tudo isso,

Lefort afirma sobre a democracia, “que as instituições democráticas foram

constantemente utilizadas para limitar a uma minoria os meios de acesso ao poder, ao

conhecimento e ao gozo de direitos.” (p.34) Bem como a posição de um poder anônimo

favoreceu a expansão do poderio estatal.

Portanto, afirma o autor, que na democracia os fundamentos da ordem política

(legitimidade, direito, poder, etc.) não são estáveis e não constituem assim, de modo que

a possibilidade de um desregramento da lógica democrática continua em aberto. Diz

Lefort: “O essencial, a meu ver, é que a democracia institui-se e se mantém pela

dissolução dos marcos de referência da certeza. A democracia inaugura uma história na

qual os homens estão a prova de uma indeterminação ultima quanto ao fundamento do

Poder, da Lei e do Saber, e quanto ao fundamento da relação de um como outro, sob

todos os registros da vida social.” (p.34)

Os Direitos do Homem e o Estado-Providência

Lefort inicia problematizando os direitos do homem, se eles fazem referencia a

natureza do homem? E se eles não resultariam de uma visão teológica da história? A

partir disso, ele propõe entender “qual é o sentido da mutação ocorrida na representação

do individuo e da sociedade.” Para tal ele indaga: “[...] os direitos do homem apenas

serviram para mascarar as relações estabelecidas na sociedade burguesa ou, então,

Page 5: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

tornaram possível e até mesmo suscitaram reivindicações e lutas que contribuíram para

emergência da democracia?” (p.38)

Claro que o autor não deixa de lembrar que todas essas questões unicamente

concernem á formação e as transformações das sociedades ocidentais, constatando que

na maior parte do mundo a ideia e aplicação dos direitos do homem de fato continuam

desconhecida.

Seu objeto de dialogo e discussão é o texto de François Ost e seus colaboradores,

que discute “os limites do poder explicativo e mobilizatório dessa categoria (de direitos

do homem) no quadro das transformações atuais”, buscando entender “até que ponto

essa noção pode [...] ser entendida sem desnaturar-se, ou mesmo negar-se.” (p.38) Sobre

os aportes filosóficos e políticos, essa discussão se apóia em dois pontos: 1. adverte-se

que “as mutações que afetam a noção de direitos do homem conduzem em definitivo a

recolocar a questão filosófica de seu fundamento antropológico”; 2. pergunta-se “em

que medida o novo fundamento historicista pode vir a substituir o fundamento

naturalista original sem dissolver a própria categoria de direitos do homem.” (p.39)

Assim, retomando a problematização inicial, Lefort coloca a necessidade de

compreensão do significado que revestiu no passado a instituição dos direitos do

homem e sobre a natureza das transformações do Estado. E dessa maneira, o autor

crítica a afirmação do texto em questão, que nas sociedades ocidentais o “modelo do

Estado de direito liberal opõem-se hoje ao modelo do Estado-Providência.” (p.39)

Segundo ele: “[...] podemos duvidar da validade da hipótese, pois deixa de lado a

natureza do sistema político, o qual não se reduz à gestão das necessidades ou das

supostas necessidades da população. E podemos, não menos, duvidar da validade da

representação que se atém ao antigo modelo de Estado, definido como Estado de direito,

liberal.” (p.39)

Construindo sua argumentação crítica, o autor coloca que: O Estado liberal se

fez, em princípio, como guardião das liberdades civis; mas, na prática, assegurou a

proteção dos interesses dominantes, com uma constância que somente a longa luta das

massas mobilizadas pela conquista de seus direitos pôde abalar. (p.40) Assim, segundo

Lefort o Estado liberal não pode ser simplesmente concebido com um Estado cuja

função teria sido a de garantir os direitos dos indivíduos e dos cidadãos, deixando à

sociedade civil uma plena autonomia. “A um só tempo, o Estado é distinto da sociedade

civil, é moldado por ela, e molda-a.” (p.40) Nessa afirmação analítica do Estado liberal,

Lefort utiliza-se de Guizot que supera Benjamin Constant, que em sua análise da prática

Page 6: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

liberal, colocando que “a soberania do direito [...], simultaneamente, procura forjar um

poder forte que será a emanação da elite burguesa e o agente de sua transformação de

aristocracia potencial em aristocracia de fato [...]”. (p.40) Entretanto, Lefort expõe os

limites dos pensamentos de Constant e Guizot, já que ambos eram liberais que

concebiam a democracia apenas como forma de governo, não possuindo uma

compreensão histórica na qual as causas e efeitos não são localizáveis na esfera

convencional definida como “governo”. (p.41)

Tocqueville já previa a possibilidade de um Estado democrático liberal se

efetivar despótico e opressor das liberdades – “a sujeição dos indivíduos a um Estado

todo-poderoso e conceber a perda das liberdades sob a fachada da liberdade.” (p.42)

Tomando o livro A Democracia na América, coloca que segundo Tocqueville, o

isolamento dos cidadãos resultará no surgimento de um poder “imenso e tutelar” que se

encarregaria (unicamente) de assegurar o gozo dos indivíduos e cuidar de seus destinos,

“um poder empenhado em cobrir a superfície interna da sociedade com uma rede de

pequenas regras complicadas, minuciosas e uniformes deixando claro que esse poder

absoluto não tiraniza, mas intimida, constrange, extingue, entorpece.” Vendo essa

possibilidade “se estabelecendo à sombra da soberania do povo”. (p.41) Nesse

encadeamento Lefort relaciona o Estado-Providência ao poder tutelar de Tocqueville a

luz do enigma da democracia (paradoxo da democracia), afirmando sob as

ambiguidades da democracia, ao se estabelecer a igualdade de condições, essa se

desdobraria em duas ações complementares: 1. a afirmação do individuo; 2. a

emergência (surgimento) de uma força anônima ou soberana.

Tomando à concepção democrática de liberdade (p.43), numa consciência aguda

da natureza social do homem, Tocqueville “percebe que o mesmo processo que induz à

independência, induz a uma nova submissão do individuo.” (p.43), e o surgimento desse

poder impessoal e opressor (das liberdades) se torna e permanece como democrático por

mostrar ser o poder de ninguém, e assim esse sistema vive dessa contradição com uma

enorme eficácia. Em harmonia com esse pensamento ele aponta a incompatibilidade

entre Estado-Providência e Estado-guardião, pois o primeiro conserva a ambigüidade da

democracia, e se traduz na separação entre potencia administrativa e a autoridade

política. [citar 1 p.46]

Lefort, na sua interpretação do significado dos direitos do homem e da

democracia, não reduz os direitos do homem aos direitos individuais, bem como não vê

na democracia apenas uma relação entre Estado e Individuo. Segundo ele, [citar 2 p.47]

Page 7: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

Para o autor a formulação dos direitos do homem, no fim do século XVIII

inspira-se numa reivindicação de liberdade que põe em ruínas a representação de um

poder situado acima da sociedade (rei, senhor, etc.). Assim, esses direitos do homem

marcam uma desintrincação do direito e do poder, portanto o direito e poder não podem

mais se condensar no mesmo pólo. E em complemento – afirmando o paradoxo da

democracia –, os direitos do individuo à liberdade, propriedade e segurança seriam pois

assegurados pelo Estado (o que é refutado por Lefort, ao qual compreende ser da alçada

do próprio interesse do cidadão, o que o dá potencia, virtude e um grande poder

regulador.

No exame dos direitos individuais ele constata que esses possuem um alcance

político. Colocando a crítica de Marx a esse respeito e à criticando, Lefort afirma que

“os direitos do homem atestam e, ao mesmo tempo, suscitam uma nova rede de relações

entre homens.” (p.50)

Assim Lefort mais uma vez reafirma sua tese principal: “a democracia só

triunfou instituindo uma separação entre a sociedade civil, lugar das opiniões sem

poder, e o Estão laico liberal, lugar do poder sem opiniões. Em prol desse sistema, o

estado sempre ganharia força, sob a fachada da neutralidade, e a sociedade civil

enfraquecer-se-ia sem cessar, não deixando de ser o estrondoso teatro de opiniões que,

por serem apenas opiniões de indivíduos, neutralizam-se.” (p.52)

Segundo o autor, a originalidade da política da democracia se dá num duplo

fenômeno: 1. um poder destinado doravante a permanecer em busca de seu fundamento;

2. uma sociedade acolhendo o conflito de opiniões e o debate dos direitos. Do qual isso

resulta uma transformação ao qual o poder deve doravante obter sua legitimidade

enraizando-se nas opiniões. Assim o processo democrático possui mais de um sentido,

devendo demarcar ao mesmo tempo uma nova tirania da opinião, uma nova licença das

opiniões – chamadas a neutralizarem-se –, em uma nova liberdade – ao qual com efeito

deve minar preconceitos e modificar o sentido geral do que é ou não socialmente

aceitável, exigível ou legítimo. (p.52-53)

Para o autor, reconhecer um espaço púbico sempre em gestação, cuja essência

embaralha as fronteiras aceitas ente o político e o não-político, leva-nos a percebermos

que a distinção entre sociedade civil e estado não dá conta inteiramente do que advém

com a formação da democracia, ao qual condiciona a negação de uma pura divisão.

Desse modo, Lefort coloca que “assim como o estado não pode fechar-se em si mesmo

para tornar-se o grande órgão que comanda todos os movimentos do corpo social, assim

Page 8: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

também os detentores da autoridade política permanecem obrigados a repor em causa o

princípio da conduta dos assuntos públicos.” (p.54) E admitindo que os novos direitos

surgiram e surgem graças ao exercício das liberdades políticas, coloca que os mesmos

contribuem para recrudescer a potência regradora do estado. No que concerne, as

modificações na legislação, para além da maioria da opinião pública, uma das condições

de êxito da reivindicação reside na convicção partilhada de que um novo direito está

conforme à exigência de liberdade que atestam os direitos já em vigor. (p.54)

Buscando a cerne, Lefort analisa sobre os direitos do homem que a concepção

naturalista do direito mascarou o extraordinário acontecimento que constituía uma

declaração que era uma autodeclaração. Portanto, a ideia dos direitos do homem recusa

a definição de um poder detentor do direito, a noção de uma legitimidade cujo

fundamento está fora do alcance do homem e, ao mesmo tempo, a representação de um

mundo organizado no interior do qual os indivíduos encontram-se naturalmente

classificados. Isso segundo o autor, nos lega a universalidade do princípio que traz o

direito para a interrogação do direito. (p.56) “O que distingue a democracia ter

inaugurado uma história na qual foi abolido o lugar do referente de onde a lei ganhava

sua transcendência, o que não torna, por isso, a lei imanente à ordem do mundo, e, ao

mesmo tempo, não confunde seu reino com o do poder. Faz com que a lei, sempre

redutível ao artifício humano, só dote de sentido a ação dos homens com a condição de

que eles assim o queiram, de que eles assim a apreendam, com razão de sua existência e

condição de sua possibilidade para cada um de julgar e ser julgado.” (p.57) Segundo

Lefort, a democracia convida-nos a substituir a noção de um regime regulado por leis,

de um poder legítimo, pela noção de um regime fundado na legitimidade de um debate

sobre o legítimo e o ilegítimo – debate necessariamente sem fiador e sem termo. Para

ele, tanto a inspiração dos direitos do homem quanto a difusão dos direitos em nossa

época atestam para esse debate.

Tendo por ponto de partida essa noção democrática referida acima, Lefort trava

uma discussão sobre a democracia contemporânea e seus limites e avanços, numa

relação entre pobreza e direitos, democracia e processo, representação e leis, etc. bem

como afirma que o avanço internacional de pobres, minorias e excluídos, tem gerado

uma demanda de novos direitos que são assegurados e que em contrapartida fortalecem

o estado, o que se passa em silêncio e ao qual se tem visto uma constatação à esse

movimento. (p.61)

Page 9: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

Em conclusão o autor coloca que a questão política é a da sobrevivência e

alargamento do espaço público, e que isso está no cerne da democracia. Segundo ele

“não há instituição que por natureza baste para garantir a existência de um espaço

público no qual se propaga o questionamento do direito. Mas, reciprocamente, esse

espaço supõe que lhe seja devolvida a imagem de sua própria legitimidade a partir de

uma cena organizada por instituições distintas e na qual se movem os atores

encarregados de uma responsabilidade política.” (p.62)

Hannah Arendt e a Questão do Político

Citando a resistência francesa, sobretudo a esquerda francesa, ao pensamento de

Arendt, Lefort tenta repor sua importância sobre a crítica do estado. Arendt tendo como

eixo motivacional de seu pensamento a vitória do nazismo em 1933, e sendo aluna de

Husserl e discípula de Jaspers e Heidegger, é destacada como a escritora que designo de

maneira mais rigorosa o laço entre o pensar e o acontecimento. (p.65) Para Lefort, ela

“nunca se cansou de contrapor a tarefa de compreender tanto à grande teoria que, por

uma outra via, sempre procura fixar o singular sobre o reino do princípio, quanto ás

explicações do historiador que consistem no encadeamento de relações causais.” (p.66)

Ao qual compreender para ela significa primordialmente apoiar-se numa compreensão

pré-crítica no senso comum. Ao qual porém, nessa compreensão o desconhecido é

apenas vislumbrado. Assim, Arendt diz que o senso comum vê o totalitarismo como

uma tirania, ao passo que se trata de algo completamente diferente. Para ela

compreender é aceitar o tempo em que vivemos, tentar reconciliar-se com o tempo e

compreender a si mesmo. Lefort coloca que a maior parte da obra dela esteve ligada à

sua experiência e à sua interpretação do fenômeno totalitário e, embora não tenha

deixado explícita a articulação de sua concepção da política e da história com a análise

do fenômeno totalitário, tal articulação é sim rigorosa. Assim, a autora define o

autoritarismo (ver p.67). E constata que essa plena (rigorosa) afirmação da política traz

consigo, no seu reverso, uma negação: a criação do novo homem transforma-se em um

atentado contra o que sempre constituiu a dignidade da condição humana, isso para

além de suprimir a validade das leis positivas e suas garantias e bem como para além da

mística do Um. (p.67) Lefort coloca que não se trata absolutamente da política, da vida

pública, da lei, da ação, da fala, nem da revolução; para ele essas referências foram

destruídas para que se pudesse realizar o projeto de dominação total, ao qual ele

Page 10: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

constata: se não existe fronteira entre a política e a não-política, a própria política

desaparece. Para Lefort o que se dá – o que se surge – é algo que se poderia chamar de

social como vasta organização, rede de muitas relações de dependência, cujo

funcionamento é comandado por um aparelho dominante. (p.68) Outros aspectos

também são destacados, para o autor a ideia lei é destituída e não apenas violada; o ideal

de ação é uma impostura, pois o que se chama de ação não é ação quando não há atores,

não há iniciativas, apenas uma decisão do chefe. O ideal da fala se torna uma impostura,

pois o que se chama fala não é fala, não há diálogo e sim apenas a função de ouvir e

transmitir. A própria ideia de revolução desvanece, pois “não é a faculdade de começar,

própria às revoluções, mas sim ao inverso, o triunfo de uma ideologia que contenha

resposta a toda questão.” (p.69)

A política concebida por Arendt, se dá analiticamente em momentos

privilegiados como as cidades gregas, revolução americana e francesa. A cerca da

Grécia, segundo a autora instala-se um “espaço”, surge um espaço onde à distância dos

assuntos privados próprio do oikos, os homens reconhecem-se como iguais, discutem e

decidem em comum. Para ela o poder exerce-se aí numa relação entre os homens que é

uma troca de falas, em vista de decisões que concernem a todos, condicionando um

mundo comum dado à multiplicidade de perspectivas. Nesse espaço público, o acesso e

a visibilidade faz com que os homens se apreendam como iguais, numa estreita relação

entre igualdade e visibilidade, o que se contrapõe a circunscrição de um órgão ou de um

indivíduo, o que resulta na subtração da visibilidade e, consequentemente, da subtração

do poder – assim numa também estreita relação de desigualdade e invisibilidade. Lefort

coloca que a igualdade em Arendt não é um fim em si, sendo pois, uma invenção que os

eleva para além do oikos e os encaminha para o mundo comum.

Lefort expõe as chaves analíticas da autora, ao qual se configuram em oposições,

ação e trabalho, ordem pública e ordem privada, ordem da política e ordem da vida

social, poder e violência, unidade e pluralidade, vida contemplativa e vida ativa.

Segundo Arendt a filosofia teve origem em Platão com o desconhecimento ou com a

denegação da política, ou seja, “a liberdade que se encontrava na ação, no cerne da

cidade democrática, no debate, na manifestação, foi rejeitada pela filosofia.” (p.70) Tal

constituição, pela força dessa tradição, é encontrada até mesmo em Marx, isto é, se

configurando na projeção na história e na sociedade a ideia de uma lógica e de uma

verdade que provém, em específico, do esquecimento do que significa a ação. A ideia

da política articula-se sobre uma ótica teatral na modernidade, o desenvolvimento

Page 11: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

técnico e a evolução social material instituiu uma rede geral de dependência, mais

complexa em todos os níveis, o que resulta na expansão social e na degradação da

política – que para Arendt só foi interrompida pela Revolução Francesa e Americana,

entretanto, ambas não produziram efeitos duradouros. Ela conclui que infelizmente

somos constrangidos a confundir igualdade política com igualdade social (p.71), e

igualdade só pode ser política, ou seja, é insensata a ideia que os indivíduos são iguais

por nascimento. Lefort afirma que para Arendt e Burke, é forçoso assinalar que só são

reais os direitos dos cidadãos, e os direitos do homem são uma ficção. (p.71)

Numa alusão ao crescente papel do Estado na gestão do social, Arendt conjuga

este fato como resultante do desmoronamento do espaço público e da perda do estatuto

do político, o que aproxima-se com o totalitarismo e o que concerne a despolitização,

atomização, individualismo. Para ela a filosofia política da burguesia (que dirige o

Estado) foi sempre totalitária. E numa apologia ao aporte da filosofia política, Lefort

coloca que: “a filosofia política sempre acreditara em uma identidade da política, do

econômico, e da sociedade no bojo da qual as instituições políticas seriam apenas uma

fachada para os interesses privados.” (p.72) A crítica de Lefort a Arendt está justamente

na ideia de que a igualdade só seja política, ao qual ele coloca que ela esvazia todo

sentido de luta na afirmação dos direitos, que se efetivou numa constituição da

liberdade desdobrando-se no ideal de reconhecimento. Bem como coloca como ingênuo

a ideia de igualdade política das vozes, o que é devidamente exposto na desigualdade de

poderes que observamos no presente. Sua crítica se acentua ao constatar que sua ideia

de política parece impor algo de radial, ao qual coloca em cheque a existência ou não da

política.

Em conclusão, Lefort sintetiza Arendt da seguinte maneira: “Arendt sugere que

a política, tal como entende, se deixa de se encarnar no real, não mais será política, e,

por outro lado, deixa supor que, em consonâncias com o pensamento de Heidegger,

quanto mais se adensa a sombra do totalitarismo, melhores condições teremos para

decifrar seus traços.” (p.74) Do ponto de vista político, o juízo crítico a cerca da

modernidade é o juízo crítico a cerca da democracia.

SEGUNDA PARTE – A CERCA DA REVOLUÇÃO

O Terror Revolucionário

Um discurso de Robespierre

Page 12: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

No exame do discurso de Roberpierre de 11 germinal do ano II de 31 de março

de 1794, tido como ponto chave no momento revolucionário francês, Lefort destaca que

ele (o discurso) se distingue por seu estilo, tom e composição – pela estratégia que se

percebe nos efeitos da retórica. Ao qual Roberpierre não se empenha em demonstrar a

culpa de Danton e de seus amigos: nenhuma palavra é proferida nesse sentido;

tampouco em convencer a Assembléia da necessidade de manter o terror. Sua

habilidade consiste em deslocar o assunto em debate. A um só tempo, Roberpierre

impõe-se como senhor absoluto e dissipa o lugar do senhor absoluto, os artifícios da fala

são multiplicados para chegar à anulação de toda a fala. Em síntese, o discurso de

Robeerpierre não faz do terror assunto, exerce-o; representa um grande momento do

terror em ato, fala-o. Ele ao iniciar seu discurso, já com uma Assembléia anteriormente

insuflada por discurso ao qual defendia a palavra de defesa à Danton e os seus, assinala

a turbulência da casa e questiona se alguns homens são hoje superiores a pátria. Assim o

assunto do debate inicial é deslocado, ele ignora o assunto manifesto, para convidar a

descobrir o que está em causa, e emitindo dessa maneira uma suspeita que atinge toda

Assembléia. (p.81) E indaga, por que o que foi recusado a alguns seria concedido a

outros? Portanto Robespierre assinala a Assembléia que ela está a ponto de fazer

distinção ente indivíduos. Qualificando os acusados como hipócritas ambiciosos, diz

Robespierre: “se fizermos tantos sacrifícios heróicos, entre os quais devemos citar os

atos de uma dolorosa severidade [...] apenas para retornar ao jugo de alguns intrigantes

que tenha a pretensão de dominar.” Ele assim descarta a ideia de que os acusados teriam

prestado serviços à República. Entretanto, em seu discurso, é apenas de viés que seus

adversários são atingidos. Para Lefort, o seu propósito não está em discutir a fundo o

caso dos acusados, o que ele quer é tornar a Assembléia sensível à imagem que ela tem

de Danton, através dele, do indivíduo excepcional; sensível à atração que exerce o nome

de Danton, um nome. E firme em seu propósito Robespierre diz que “não queremos

privilégios; não, absolutamente não queremos ídolos.” Numa alusão a um princípio

universal de igualdade ele assim sugere que Danton seria de fato um ídolo do povo e

desperta ao mesmo tempo o temor de combatê-lo, acrescentando: “veremos, nesse dia,

se a Convenção saberá derrubar um pretenso ídolo a muito tempo putrefato, ou se, em

sua queda, ele esmagará a Convenção e o povo francês.” Para Lefort a virtude do

discurso terrorista está precisamente em abolir uma articulação passível de contradição

e simular uma conclusão que não deixa nenhuma escolha. (p.83)

Page 13: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

Segundo Lefort, nesse discurso “a Convenção confundi-se com nação, e o que

ela decide, ela o faz soberanamente com a vontade popular; os Comitês confundem-se

com a Convenção, da qual são apenas a emanação; igualmente, a justiça nacional

procede da Convenção; em conseqüência, toda suspeita dirigida contra os Comitês e a

justiça atinge a própria Convenção, toda suspeita dessa natureza está dirigida e

destinada a despedaçar a Convenção.” (p.84) Em suma, tudo se deduz do princípio de

uma identidade entre o povo, a Assembléia, os Comitês, e a justiça, ele proíbe toda

questão sobre a legitimidade e a pertinência das decisões tomadas. Para o autor,

Robespierre, através do deslizamento do impessoal ao vós, do vós ao nós, depois

novamente ao impessoal, ele deixa pairar uma ameaça difusa sobre seu auditório.

Portanto, o inimigo já não está no exterior suscitando o temor, ele está no interior, nos

bancos da Assembléia, está entre aqueles a quem a fala é dirigida. Assim diz o orador:

“eu digo que todo aquele que estremeça nesse momento é culpado; pois a inocência

jamais receia a vigilância pública.” Para Lefort é a figura do senhor absoluto que aí

aparece. O entreolhar gera entre a Assembléia a separação entre culpado e o inocente, e

assim evocando a vigilância. E se utilizando do mecanismo de deslocamento do

discurso, ele coloca que sua vida não lhe pertence, sua vida pertence a pátria. Agora,

numa alusão ao futuro, Robespierre coloca que “sem dúvida, agora é que nos será

preciso alguma coragem e grandeza de alma [...], as almas vulgares ou os homens

culpados sempre temem ver a queda de seus semelhantes, porque, já na tendo perante si

uma barreira de culpados, ficam mais expostos ao clarão da verdade; mas se existem

almas vulgares, algumas são heróicas nesta Assembléia, pois é esta quem dirige os

destinos da Terra e aniquila as facções.” (p.87) E acrescenta: “o número de culpados

não é tão grande; o patriotismo, a Convenção Nacional souberam distinguir entre erro e

crime, fraqueza e conspiração. Vê-se bem que a opinião pública, que a Convenção

Nacional [...] não golpeiam sem discernimento.” (p.87)

Por conseguinte, afirmar Lefort, não imputamos o terrorismo apenas a

Robespierre; em síntese conclusiva diz: “de qualquer maneira, permanece a intervenção

ocorrida em 11 germinal, que, diferentemente de muitos fatos, sujeitos a controvérsias

intermináveis, permite surpreender alguns mecanismos da operação terrorista, operação

que converteu os princípios universalistas de liberdade e de igualdade em princípios de

morte, faz com que surja, a partir da difusão do medo, uma vontade coletiva, mascara a

posição de poder sob a aparência de heroísmo democrático.” (p.89)

Page 14: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

O Terror Fala

Abrindo essa outra reflexão, Lefort pergunta: Por que o terror revolucionário

suscitou um debate historiográfico e político tão duradouro? Segundo ele, primeiro há

uma imprecisão sobre seu inicio e termino, e ainda, sendo para uns o terror uma

invenção – distante do real –, bem como, um período que não teria nada de singular na

história do mundo, e para outros seria um manifesto fascinante.

Em resposta a questão o autor afirma que a razão se efetiva pelo terror colocar

um problema particular, que tem duas razões: 1º. O terror combinou-se com a busca da

liberdade; 2º. Sua ação não se dissocia da operação da fala. (p.91)

Sobre o discurso do terror, Lefort expõe o discurso de Saint-Just, que precede

por mais de um mês o discurso de Robespierre. Diz Saint-Just em nome dos Comitês da

Salvação à convenção: “Acerca da necessidade de deter as pessoas reconhecidas como

culpadas” (p.91), bem como alertando que “vossa moderação patricida deixa triunfar

todos os inimigos de vosso governo.” (p.92) E assim, Lefort analisa que há no discurso

de Saint-Just a contradição do terror revolucionário, a do terror aliado à liberdade. Sua

conjunção sugere que o terror é muito mais que um instrumento; o terror revolucionário

é a um só tempo a ditadura da justiça e o gládio da lei – “o terror não figura então como

um meio, está impresso na liberdade, como esta, para Saint-Just, impresso na virtude.”

(p.94) Para Lefort a consciência dessa visão apareceu já na Revolução por Thuriot,

Jacques Roux e Camille Desmoulins.

O Dizível e o Indizível

O autor afirma que no discurso terrorista, o dizível traz consigo o vestígio de um

indizível, colocando que a formula de Robespierre “despotismo da liberdade, ou sua

declaração mais acabada: eu sou escravo da liberdade, já dão a entender algo que não

poderia ser dito.” (p.99) E em análise desse discurso, percebe que havia entre a

sociedade uma resistência a implantação da democracia, e que realizou-se quase que a

passagem da vida ao aniquilamento, devia-se recriar o povo a quem se quer restituir a

liberdade. “O que faz como que o dizível perca a consistência é a ideia do povo

encarregando a convenção da tarefa de recriá-lo. Ideia duplamente absurda: o povo pede

para sua deputação que engendre a si próprio, e essa deputação faz parte dele mesmo.

Ou melhor, triplamente absurda, pois se é verdade que o povo esmaga a si próprio,

como ele poderia querer que se queira restituir-lhe a liberdade – uma liberdade, além do

mais, que jamais conheceu?” (p.101) Lefort entende que o terror revolucionário se

Page 15: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

distingue do terror dos tiranos, por que supostamente detém o principio de distinção

entre bem e mal, ao passo que o terror dos tiranos é entregue à arbitrariedade do

príncipe; mas que esse constrói um terror adverso, em simetria consigo mesmo. Em

síntese, Lefort entende que “separar virtude e o crime, o povo e seus inimigos não é o

meio de instituição da republica; separar é o meio de tornar visível, o concebível social,

ou melhor, o ato gerador da visão e do conhecimento. Nesse sentido, o terror contém,

logo no inicio, a ameaça do interminável.” (p.106)

O Termo do Indeterminável

O autor tratando do momento final do terror e de deposição de Robespierre,

coloca que se tentou um reexame da maneira pela qual eram combinados o exercício do

terror e a busca de uma posição do poder, e essa tentativa por Robespierre, em suma, de

modo paradoxal tornou inviável o terror, destruindo assim o que restava da unidade do

terrorismo. (ver p.109)

Pensando a Revolução na Revolução Francesa

Citando Tocqueville, Lefort expõe o modelo histórico analítico proposto por

François Furet para pensar a Revolução Francesa, esse modelo que se dá em crítica a

outros modelos históricos que são denominados por ele como história acontecimental.

Furet, para pensar a Revolução Francesa propõe o caminho da reflexão política, da

redescoberta da análise do político. “Sua intenção atesta um retorno às fontes do

pensamento político clássico: pretende pôr em evidência um esquema ou um conjunto

de esquemas de ações e de representações que comandam, ao mesmo tempo, a mise en

forme e mise en scèng de uma sociedade e, simultaneamente, sua dinâmica.” (p.115) O

poder, o objeto central de reflexão política, na sua posição e representação do poder,

vem como na sua figuração de seu lugar, são para Furet constitutivas do espaço social,

de sua forma e de sua dinâmica; isso para além de suas funções reais e das modalidades

efetivas de seu exercício, um estatuto simbólico reconhece no poder, que Revolução só

é inteligível com a condição de escrutar a mudança desse estatuto, ou seja, o

“deslocamento do lugar do poder.” (p.115)

Lefort analisando os princípios de seu pensamento, coloca que Furet não

compreende como significativas as oposições de classe, para ele os atores sociais não

vêem sua conduta estritamente determinada pela condição material, nem mesmo pelas

Page 16: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

relação que instituem entre eles, definindo-os uns frente aos outros; para Furet tais

contradições, são por eles decifradas no quadro da situação comum que compõe seu

pertencimento a uma mesma sociedade, situação que não é por si mesma dissociável de

um sistema geral de representação. Dessa relação geral implica a divisão entre poder e

conjunto social; assim o poder fornece à sociedade a referência a partir da qual esta se

faz virtualmente visível para si mesma, a partir da qual as articulações sociais múltiplas

se tornam decifráveis num espaço comum, e simultaneamente, a partir da qual as

condições de fato aparecem no registro real e do legítimo. Assim, não apenas a

autoridade política é então subvertida, mas também a validade das condições de

existência, comportamentos, crenças e normas até o pormenor da vida social. Dentro

disso, a revolução não nasce sob efeito de conflito interno entre oprimidos e opressores,

e sim se dá no momento em que é anulada sua eficácia simbólica. (p.116-117) Nesse

trato analítico, que diz respeito à ordem da ação e à ordem da representação – sem uma

dissociação –, a análise política está combinada com o estudo dos comportamentos e

das instituições e com o estudo do discurso e das ideias que veiculam a busca do

sistema no bojo do qual se ordenam ou da lógica que os anima. Portanto, a natureza

política da Revolução se desvela aos sinais da elaboração imaginária em virtude da qual

as relações sociais dever ser agenciadas, subtraídas a toda determinação, submetidas à

vontade e ao discernimento dos homens, e, por outro lado, os sinais de uma nova

experiência de mundo, intelectual, moral, religiosa e metafísica.

Nesse modelo ao qual a cultura adere a análise do político, “não podemos

decifrar a ideologia sem que simultaneamente relacionemos as novas representações da

história e da sociedade, do poder do povo, do complô dos inimigos do povo, do cidadão

e do suspeito, da igualdade e do privilégio com uma nova exigência do pensar.” (p.118)

– “Trata-se de uma análise que não circunscrever o político às fronteiras das relações de

poder, mas tampouco às fronteiras do social, é uma análise metassociológica.” (p.118)

Furet, segundo Lefort, denuncia a ilusão da herança e da fundação: “A Revolução

Francesa não é apenas República. Também é uma promessa indefinida de igualdade e

uma forma privilegiada de mudança. Basta que nela se veja, não uma instituição de

Nação, mas uma matriz da história universal que assim revela sua dinâmica e poder de

fascinação.” (p.119)

Sob essa análise realizada acima, Lefort destrincha a oposição base que Furet faz

ente Michelet e Tocqueville. (p.121-122)

Page 17: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

Lefort critica Furet lamentando que ele não tenha pesquisado bem de perto a

ruptura, efetuada no decorrer da segunda metade do século XIX, com a concepção de

história. Não apenas Tocqueville, mas também Benjamin Constant, Chateuaubriand, e,

em perspectivas bem diferentes, Thierry e Guizot, Michelet e Quinet, Lerouxe e

Proudhon já havendo percebido uma distância entre o discurso e a prática dos atores e

interrogam, para além dos dados manifestos, a subversão na sociedade e na cultura, cujo

sentido lhes parece ser, a um só tempo, político, filosófico e religioso. Segundo o autor,

considerando a obra de Michelet e de alguns de seus contemporâneos, somos induzidos

a nos perguntar se, paradoxalmente, não é a emergência de uma história de inspiração

positiva (na qual incluímos os trabalhos marxistas, pois constituem uma eminente

versão que selou, mascarando-o em parte, o mito das origens e da identidade da nação

ou identidade revolucionária. O qual se revelaria por um retorno às fontes do

pensamento moderno da história.

Reconstituindo a interpretação de Furet, Lefort aponta que seu pondo de partida

é a crítica da historiografia que veio a ser dominante no fim do século XIX e que

encontrou uma racionalização e uma canonização nos trabalhos marxistas que

combinam uma explicação e uma narrativa. A explicação fundamenta-se na análise da

Revolução e em seu balanço. A narrativa trata dos acontecimentos que se

desenvolveram de 1789 ou 1787 até termidor ou até 17 Brumário. A explicação é

induzida pela narrativa, no sentido em que o historiador apropria-se da imagem

apresentada pelos atores de um corte absoluto entre passado e futuro, entre o Antigo

Regime e a nova França. Segundo Furet essa “miscigenação de gêneros” reside na

confusão de dois objetos irredutíveis: mescla-se a Revolução enquanto processo

histórico, conjunto de causas e consequências, com a Revolução enquanto modalidade

de mudança, como dinâmica particular da ação coletiva. Para ele tal confusão resulta da

adesão a um postulado cuja realidade jamais é posta em questão: o da necessidade

histórica que dissolve a singularidade do acontecimento. (p.123) Assim, existe não só a

coincidência entre necessidade histórica e ação e o sentido global que lhe foi conferido

pelos atores – romper com o passo e fundar uma nova história. Consequentemente, tudo

que parece exceder o rumo considerado previsível – normal – na Revolução será

imputado a acidentes e nunca deverá modificar o seu sentido: o exagero do Terror será

devido à guerra, esta será devida ao complô dos inimigos do povo, etc. Esse postulado

diz respeito à ilusão de retrospectiva clássica da consciência da história segundo Furet –

a Revolução marca uma ruptura absoluta na história da França, ao qual ver-se-á o novo

Page 18: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

surgir do antigo e o ao mesmo tempo, conter por inteiro o princípio do futuro. Assim,

portanto é introduzido o conceito de “revolução burguesa”, que compreende e se efetiva

no nascimento do capitalismo, no nascimento da burguesia e no nascimento de um

conjunto de valores tidos por consubstanciais à burguesia; que suplanta o modelo do

Antigo Regime, realiza a destruição do modo de produção feudal, possui um agente

perfeitamente adaptado à sua obra, e fala a linguagem exigida pelas tarefas do tempo.

(p.120)

Furet em sua crítica afirma que a análise da história do ponto de vista do modo

de produção só é pertinente, quando abrange um longo período, aplicada a um curto

período é incapaz de fornecer a prova da mudança estrutural entre a França de Luís XVI

e a de Napoleão. “Se se pretende restringir-se a ela, se se pretende descobrir na

Revolução uma mutação na economia, que coincide com uma vitória da burguesia sobre

a nobreza, estar-se-á condenado a ignorar a expansão econômica caracterizada pelo

século XVIII, a instalação do capitalismo nos poros da sociedade senhorial, o papel

desempenhado por uma fração de nobres nessa expansão, em especial no que concerne à

indústria. Preso à imagem do feudalismo, mesclam-se os traços do regime feudal com

os do regime senhorial, sem se preocupar com o vínculo entre a espoliação dos

camponeses e uma nova economia.” (p.125) Ao qual Furet estabelece que enquanto se

estiver cego a tudo que marca uma continuidade entre o período pré e o período pós-

revolucionário, não se indagará o por que a fragmentação da propriedade, precipitada

pela Revolução, foi favorável ao desenvolvimento do capitalismo na França ou se, ao

contrário, não foi um entrave. Bem como continuará a desconhecer a vitalidade de uma

parte da nobreza tanto na vida econômica quanto em sua participação na emergência de

uma nova cultura – centrada no iluminismo –, sua heterogeneidade, e conflito entre

antigos e novos nobres.

Ainda tecendo a crítica, Furet crítica a análise da dinâmica revolucionária,

afirmando que o marxismo faz da burguesia o sujeito histórico sem se preocupar em

definir o modo de participação dos diferentes grupos burgueses na Revolução. Para ele,

depara-se com o fato de que existem diversas revoluções na Revolução, particularmente

uma revolução camponesa e uma revolução do “povinho” urbano, ao qual evidencia

uma multiplicidade e uma contradição dos interesses que é desconsiderada.

Criticando Furet por não realizar um estudo da gênese da burguesia, Furet expõe

sua leitura da Revolução: ela estabelece os fundamentos da sociedade burguesa,

entretanto ele retira da burguesia a posição de ator central da quebra do Antigo Regime

Page 19: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

e a imposição de um novo modelo de sociedade. Isso porque para ele não se tem uma

autonomia da burguesia sobre as outras classes nos acontecimentos, bem como o novo

modelo não resulta de um projeto histórico burguês, e ainda questiona: “Com

poderíamos julgar [...] que a Revolução é obra da burguesia se os princípios que ela

defendera mais tarde já estão estabelecidos em 1790, quando a Revolução está apenas

em sua primeira fase?”

A partir daí, Lefort analisa a utilização de Tocqueville por Furet como via de

interpretação: 1º Revolução da crença na Revolução; 2º duplo proveito de sua obra: do

dito e do não dito; 3º crítica interna a obra em superação de seus limites. Furet

compreende que Tocqueville percebeu os sinais de uma ruptura, de um contínuo

processo de fortalecimento do Estado (Centralização Administrativa) e de um processo

de democratização da sociedade (através de igualdade de condições), caracterizado por

Furet como “revolução-processo” A crítica de Furet se estabelece nas lacunas na

informação histórica de Tocqueville, na sua idealização da nobreza tradicional, no seu

desconhecimento do papel desempenhado pelo Estado monárquico na distribuição de

riquezas e na constituição de uma nova elite diligente. Entretanto, Lefort afirma que

Furet não reconhece a sutileza do raciocínio de Tocqueville que compreendeu o Antigo

Regime como sistema, conjunto, unidade interna orgânica, por constituir como objeto

de análise o fato revolucionário enquanto tal; e por descobrir uma revolução que

caminha antes da revolução e prossegue para além de seu término (revolução

democrática, depois, poder de Estado); assim ele recusa a aparência da Revolução como

destruição-advento, ao passo que o próprio Furet reconhece: “a aparição na cena

histórica de uma modalidade de prática e ideologia da ação social, que não está escrita

em nada que a precedeu.” (FURET, Apud LEFORT, p.129)

Nessa interpretação de Furet, Lefort compreende duas dificuldades: 1. Furet se

atribui como tarefa pensar o que existe de exorbitante (“excesso”) na Revolução. 2.

Pensar a Revolução na modalidade prática e na modalidade ideológica sob o signo da

invenção social-histórica e sob o signo da emergência de um novo imaginário da

história e da sociedade. Em desdobramento aos pontos acima há uma apologia a

concepção de Furet sobre o legado da Revolução – invenção da cultura democrática –, e

sobre as excepcionalidades da sociedade civil frente o Estado na Revolução, e ainda a

sua definição de Revolução. (p.130) e que apesar de uma formulação ambígua que não

distingue a dinâmica da inovação social da dinâmica ideológica, Furet sugere assim, e

segundo Lefort, suscita o momento da descoberta do político, ao qual se difunde a

Page 20: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

questão do fundamento do poder e da ordem social; assim toda a questão sobre os

fundamentos da verdade, da legitimidade, da realidade; ao qual se forma a sensibilidade

e o espírito democrático moderno, constituindo e instituindo uma nova experiência

social; em que surge a dimensão histórica da ação que é investida de uma interrogação

de alcance universal. A crítica de Lefort à Furet é que ele apesar de vislumbrar o

político, ele não avança sobre esse ponto. [citar p.131]

Furet analisa a relação entre poder e o povo, ao qual o indivíduo é o portador de

seus fins. Ele analisa que no povo está contida a (insensata) afirmação da unidade, da

identidade e da ideologia revolucionária. O povo representa a legitimidade, a verdade e

a criatividade da história. A qual não concebe divisões internas (o inimigo é sempre

externo). [citar p.133] Por conseguinte Lefort analisa a ideia de poder e complô,

afirmando que ambas estão ligadas de uma dupla maneira. (p.134) Como exemplo cita a

rivalidade Brissot e Robespierre sobre o debate da guerra. O autor percebe que Furet

entende que a ideologia revolucionária que se faz emergir pelo povo, nação, igualdade,

justiça, verdade, etc, só tem existência efetiva em virtude da fala. Assim o poder está

(pertence) aos porta-vozes. Poder que paradoxalmente é instável e indeterminado, que

só é indicado pela obra contínua de sua enunciação – que se liga ao exercício do poder e

que se dirige ao povo em nome do povo, e que se dá em uma contínua competição

política. Ao qual a opinião tem duas atribuições, e se estreita na relação entre poder e

opinião, essa pode ser privada ou do povo, ao qual se estabelece sua legitimidade e,

consequentemente seu poder. (p.136) Nesse contexto descrito Lefort analisa a

proximidade e convergência do pensamento de Furet e Cochin (p.137) O autor pergunta

então: A essa luz o que é o Jacobinismo? Seu pensamento tomaria anoção de indivíduo

abstrato e o transforma em cidadão, a opinião unânime gera a representação do povo-

um, portanto, o poder que se dissimula na fala para acoplar-se com a opinião converte-

se em poder político.

Por fim em crítica os pensamento de Furet da emergência da Revolução no bojo

do Antigo Regime, ao qual o novo surge do Antigo sob singular forma política que

descreve a Revolução em ruptura om o passado; Lefort afirma que estão obscurecidas à

sua interpretação: “a nova irrigação do tecido social por meio das associações que se

comprometem com o problema da vida política e da cultura; a descompartimentação

dos espaços privados circunscritos até então aos limites das corporações; a difusão dos

métodos críticos de conhecimento e de discussão; a instauração de um intercâmbio ou

de uma comunicação entre ideias que sustentam a opinião.” (p.139) Em sua defesa o

Page 21: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

autor se utiliza do próprio Furet na defesa, colocando que seu propósito era pensar a

revolução na Revolução Francesa e que a revolução é feita com o ímpeto da ideologia.

E ainda acrescenta, os pensamentos de Tocqueville e Quinet ajuizando a Revolução

como “o culto do impossível” e “a fé no impossível”: a negação do suposto real é

constitutiva da história da sociedade moderna. (p.140)

Edgar Quinet: A Revolução Malograda

De Buchez a Michelet

Leofort destaca a crítica de Michelet ao terror, que em sua violência criou em

seu interior milhões de inimigos da Revolução e no exterior retirou as simpatias dos

povos, e desse modo criou terríveis obstáculos, ao passo que acabou vencido por esses

obstáculos. Sua crítica se estende aos que tomam o terror como salvacionista e admira

os seus agentes (típica da esquerda revolucionária), em destaque Buchez e Roux. Essa

critica é pois, esses autores entendem a Revolução como a realização da história da

França, advinda da monarquia (antes de sua concepção), tomando o espírito

revolucionário como espírito do catolicismo, o que justificaria o terror. Há pois, um

elogio ao trabalho de unificação do território e do corpo social pelos reis. Ao passo que

há uma posição deteriorante da Reforma (individualismo, egoísmo), bem como não

concebe haver nenhum valor de fundação no 1º período da Revolução, tomando a

Declaração dos Direitos do Homem como êxito do individualismo, bem como esta

como prolongamento do trabalho critico negativo dos filósofos de século XVIII. Em

contrapartida, o verdadeiro impulso revolucionário começa com a tomada de

consciência da salvação pública (p.142), ao qual o terror é “inelutável”, pois pretendia

salvar a comunidade contra o perigo de sua dissolução. Há apenas uma crítica de

Buchez e Roux aos terroristas: não terem sabido justificar publicamente suas ações em

nome de um principio de salvação. Segundo Lefort, “o que mais espanta nessa

construção é a tese segunda a qual a história se desenvolva inexoravelmente na mesma

direção, os homens tendo ou não consciência do objetivo.” (p.143)

Retornando a Michelet, analisa que sua interpretação contradiz, inteiramente a

interpretação de Buchez: no pensar a relação entre governo revolucionário e monarquia;

associar o terror À ideia de salvação publica, e interrogar o significado religioso da

Revolução Francesa. Assim Michelet concebe na doutrina da salvação pública uma

degeneração da justiça. Em síntese há no térreo uma política superficial, pois lhe faltava

Page 22: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

a revolução religiosa, a revolução social, onde teria encontrado apoio, força e

profundidade; há uma esterilidade intelectual – razão do fracasso. Portanto, para

Michelet existe uma terrível aristocracia nos novos democratas, já que a noção política

de autoridade parece ressurgir a partir do âmago do Antigo Regime. Lefort entende que

a doutrina de salvação se combina, para Michelet, com a insensata ideia segundo a qual

é preciso operar, no corpo social, para salva-lo – numa explicação do terror que não se

dá por meio das circunstancias.

A Interpretação de Edgar Quinet

Para Lefort é Quinet que vai mais além na crítica do terror em seu trabalho La

Revolution, ao qual apresenta a Revolução Francesa com uma revolução malograda, se

opondo a Michelet sob a positividade da Revolução. Para Quinet a Revolução

transformou-se em seu contrario, a servidão ressurgiu devido a impotência para fundar a

liberdade, e ele tenta então compreender as causas de seu fracasso. Para Quinet houve

uma inversão no sentido da Revolução em direção ao despotismo que se deu por almas

servis que engendravam almas ainda mais servis, sob um povo composto de burgueses

bem comportados e cidadãos covardes, alicerçados sob uma cultura da ordem como

tradição, ao qual se definem ordem como: obediência a um senhor e paz em meio à

arbitrariedade. (p.149) Sua interpretação do terror é político-teológica, e assim para ele,

o problema da liberdade confunde-se com o problema do poder.

Um Substituto para a Revolução Religiosa

Para Quinet o recuo dos revolucionários diante da tarefa da revolução religiosa

dexou-os diante de um vazio espiritual. Desse modo, o terror parece um substituto para

ação, sendo que somente a ação teria permitido unir os atores revolucionários em torno

de uma mesma fé e lhes deu o conhecimento do passado e do futuro. (p.150) O terror

não como exceção ou extrema audácia, para Quinet é um sinal de uma fraqueza face a

dificuldade. (p.151) O não rompimento como o catolicismo pela Revolução é visto pelo

autor como gerador do vazio da Revolução. E conclui que houve uma incapacidade de

perceber a profunda solidariedade entre principio monárquico e o principio teológico.

(p.152)

A Teoria do Terror

Page 23: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

Quinet destaca o choque de dois elementos inconciliáveis: a França antiga e

França nova; e isso impelia as almas a fúria. Segundo ele Roberpierre, Saint-Just,

Billaud-Varenne pretendiam transformar em estado permanente o que havia sido um

acidente, o desespero e a fraqueza em principio de governo, fizeram da fúria um frio

instrumento de reinado e de salvação. (p.154) A razão para tal, estaria em uma nação

corrompida, envelhecida na escravidão; assim o meio disposto foi forçar os franceses a

serem livres por meios semelhantes aos aplicados por políticos da Antiguidade em

circunstâncias análogas. Através de um desprezo ao individuo a revolução é elevada

acima dos homens, tornando-se uma entidade em si e para si. Transparecendo assim a

ficção de uma bondade original do homem (Rousseau) que implica na busca de sua

oposição, “a vontade dos malévolos”, o que como busca da justiça, estabelece a

frequência da conspiração das coisas. (p.155)

A Derrisão do Terror

Para Quinet, no duplo registro do político e religioso, o terror dá igualmente

sinal da incapacidade para romper como o passado, portanto os revolucionários tiveram

medo da Revolução e a idolatraram. E apontando o significado do terror ser aplicado à

regeneração do povo, ele compara o terror hebraico ao terror francês, e concluí que

existe uma incompatibilidade entre revolução religiosa e tolerância. Lefort destaca a

inspiração maquiaveliana de Quinet, evidenciando sua perspectiva analítica central: a

liberdade. Por fim em comparação entre o terror revolucionário e o terror despótico,

Quinet conclui que os terroristas franceses desconheceram a verdadeira índole do terror,

destacando sua incapacidade, em oposição apologética dos despóticos, de se manterem

uma impassibilidade frente suas ações – visão deduzida a autodestruição do terrorismo.

A Ignorância e o Desprezo Pelo Povo

Lefort destaca que um argumento destacado por Michelet, comparece também

em Quinet com mais força: que os revolucionários que teimavam em salvar o povo e

forçaram-no a ser livre, são estranhos ao povo; “segundo o qual eles teriam

sistematizado as fúrias do povo; agora, mais vale considerar que pretendiam contê-las,

ao mesmo tempo que delas tiravam proveito, a fim de subtrai-las por um programa

policiado, solene, de dominação.” (p.159-160) Para Quinet uma idealização guiada pela

vontade terrível de negar a existência dos homens que efetivamente compõem o povo

com o fito de falar e agir em seu nome. Lefort em apologia a análise de Quinet destaca

Page 24: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

que “tanto quanto a história, tanto quanto a França, o povo não deve ser divinizado; ao

inverso, a verdade sobre a história, sobre a nação, sobre o povo, requer um trabalho de

desmistificação. Somente isso, em definitivo nos põe a altura de desvendar a origem do

terror e o poderio das crenças que continuaram a alimentar sua justificação.” (p.161)

A Revolução Enquanto Princípio e Enquanto Indivíduo

Lefort trabalha com Joseph Ferrari e sua obra “Maquiavel, juiz das revoluções

de nosso tempo”, destacando a peculiaridade de seu pensamento (e daí seu ilhamento e

esquecimento) frente a Revolução, que segundo ele ainda estava em andamento.

Notadamente um maquiaveliano, narra uma evolução histórica até o momento (século

XIX), fazendo apologia a um governo que apreenda o povo. Ao qual destaca que

segundo Ferrari, “os que detêm o conhecimento do princípio, a ciência da história, são,

a seu ver, aqueles que não aceitam concluir, mais sem interrogar: ‘as ideias da

democracia ainda estão confusas, não obtém adesão das massas, são muito mais

aspirações que dogmas’.” (p.166)

Ferrari descobre na obra de Maquiavel os princípios da história de seu tempo, e

no renascimento italiano o berço da revolução moderna. Por trás da Revolução perfila-

se o nascimento do cristianismo e a Reforma constitui o primeiro momento da ruptura

entre o Antigo e o Novo. (p.167) Segundo Lefort, sua obra se destaca no conjunto dos

panfletos políticos e das tentativas anteriores de reconstituição histórica. Ele não se

contenta com o tomar de empréstimo a Maquiavel algumas fórmulas surpreendentes, ele

elabora uma interpretação, por vezes minuciosa da obra de Maquiavel com o intuito de

descobrir, sob o sentido manifesto, o sentido latente. Compreende-lo só é possível com

a condição de interrogar o tempo do Renascimento, momento em que se delineia na

sociedade e na cultura o projeto de liberação do modelo teológico-político que se

formara sob a dupla autoridade do imperador e do Papa. A Itália do Renascimento é o

lugar privilegiado onde se exercem todos os conflitos que em seguida abalarão o mundo

– conflitos de classe, conflitos políticos, conflito de valores, etc. (p.168) Maquiavel

torna-se o pensador político do tempo de Ferrari. Lefort analisa que para Ferrari,

Revolução é o príncipe moderno; destacando que Gramsci mais tarde identificará o

príncipe como o partido revolucionário, dando a missão de converter, nos termos do

realismo político, as aspirações do proletariado (missão que o herói maquiaveliano

realiza em proveito da burguesia. Ferrari, diferentemente de Gramsci, referindo-se com

Page 25: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

abundancias as obras de Maquiavel, empenha-se em nos fazer reconhecer, na própria

Revolução, o soberano onisciente, que sabe como utilizar de todos os meios para atingir

seu fim. (p.169-170) Ferrari destaca Napoleão, segundo ele, o mesmo sabe governar,

fazer-se amado e temido pelo povo, forjar um exército leal, atacar seus inimigos

inteiros, rodear-se de bons conselheiros e preservar toda a liberdade de decisão. No

entanto sua situação é de tal ordem que se defronta com a maior dificuldade que um

príncipe pode deparar-se: surge em meio a um povo habituado ao principado, mas que

súbito, tornou-se livre. A Republica, que é o próprio interesse da nova liberdade, é

quem lhe confere a autoridade quase regia. Napoleão avançará combatendo, a um só

tempo, a antiga monarquia e a nova republica, para Ferrari ele combate o poder régio

pelas leis da Revolução e, combate a Revolução pela forma da monarquia. (p.171) Mas

há uma contradição que o devora: a religião, que o dilacera entre a nova religião (a da

pátria) e antiga (a dos reis). O que Maquiavel ensinava, ele, Napoleão, hesita em

executar: em vez de exterminar as dinastias, devastar os reinos de seus inimigos, deixa-

os de pé, atiça por toda parte o ódio da rebelião. Assim, quando lhe falta a fortuna das

armas, forma-se contra ele uma coalizão universal: “é uma guerra republicana e

monárquica, democrática e regia contra o homem que não é nem republicano nem

tirano”. (p.171) Qual é afinal o senhor absoluto, pergunta agora Ferrari, o príncipe

abstrato pelo qual são sacrificadas tão grandiosa vitimas? É a Revolução; todas as vezes,

segundo o preceito de Maquiavel, que um instrumento se tornou odioso, ela o destrói

para que os povos fiquem estupefatos e satisfeitos. O príncipe verdadeiro senhor, está

fora desse campo que estala um teatro no qual os executantes são destroçados.

Lefort analisa que Ferrari, a despeito da sua obstinação em desqualificar a visão

maquiaveliana da história, não hesita sequer em contrapô-la à visão de Dante. Ao passo

que Dante, se bem o compreendemos, ignorou sua época, “Maquiavel identifica-se [...]

com a grande rebelião; ele só compreende as republicas e os senhores [...].” Em crítica,

percebe que Maquiavel não concebeu se não a ação do indivíduo. Assim, ele teria se

detido na definição das alternativas dadas aos atores, como se ele dispusessem de uma

soberana liberdade de agir, independente das tramas em função das quais as posições

deles é determinada. Lefort percebe que essa observação vai ainda mais longe quando

Ferrari denuncia a ilusão de um súdito que se emancipasse não apenas dos

constrangimentos de uma dada situação, mas também dos que são impostos por sua

própria natureza. (p.173)

Page 26: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

Claude Lefot argumenta que por objeto traçado a priore, Ferrari extrai do

pensamento de Maquiavel unicamente o que convêm a seu próprio propósito: uma

teoria da ação, que pretende derrubar mas também paradoxalmente, restabelecer,

transpondo-a para outro registro. Denunciando a ficção do indivíduo como senhor

absoluto da ação, a fim de se apoderar dessa ideia de domínio absoluto e, então, associa-

la à Revolução. Para Ferrari é a Revolução é que fala através de Maquiavel e a sua

revelia, e é designada sob a máscara do indivíduo. Ela é que detém o poder de

manipular homens e coisas. Apta a endossar todos os papeis, combina, conforme as

circunstancias, o ponto de vista do príncipe com o do conspirador. (p.174)

A seu ver a distinção entre republica e monarquia continua não tendo pertinência

no quadro da teoria de Maquiavel; apenas o homem enquanto florentino, segundo crê,

prefere a primeira em detrimento da segunda. Desse modo não se permite compreender

que é em razão de uma reflexão sobre a natureza da sociedade que Maquiavel pode

julgar, em certas circunstancias, mais venturoso o papel desempenhado por um príncipe

do que o papel desempenhado por uma republica; que, segundo ele, lá onde a classe

dominante atinge a maior corrupção, os efeitos das desigualdades apenas podem ser

contidos por uma autoridade regia ou quase regia; porém, que é em razão da mesma

reflexão que a republica continua, a seu ver sendo o melhor regime pois somente ela,

quando as condições são favoráveis, permite mobilizar as energias populares. (p.175)

Ferrari nada diz sobre a necessidade do príncipe de encontrar um fundamento no povo,

nem sobre as oportunidades de aliança entre o desejo de dominação do príncipe e o

desejo de liberdade do povo. Ele toma por uma retrograda utopia o modelo da

republica romana. O autor, para Lefort, se impede dessa maneira de apreciar a audácia

de uma análise que põe em descrédito as noções de concórdia, de estabilidade, de bom

governo; o que faz o conflito social, das insurreições da plebe, da reivindicação da

liberdade a mola propulsora da grandeza de Roma; que anula assim o lugar

tradicionalmente atribuído ao legislador, é precisamente o lugar de um indivíduo tido

como o detentor do saber político; por fim, que desvela a virtude de um poder

contestado, destinado à busca incessante de sua legitimidade.

Em conclusão, Lefort em apologia a Ferrari, coloca que a descrição de uma

Revolução Francesa permanentemente em recomeço e à descrição de uma revolução

italiana permanentemente em impedimento, por si só lança luz sobre a modernidade

desse teórico da revolução como grande indivíduo.

Page 27: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

Releitura do Manifesto Comunista

Lefort discute a atualidade da obra de Marx, incitando a reinterpretá-lo fora do

dogmatismo marxista, destacando que na obra de Marx os conceitos e seus significados

não são fixos, ao qual ele ainda estava em pleno exercício da interrogação e

interpretação ao construí-la. Segundo Lefort, “a obra de Marx [...] dá ao leitor [...] o

poder de explorar, de levantar objeções, de duvidar, de volta-se para si mesmo ainda

quando está inteiramente entregue a conhecê-la.” (p.181) Numa breve análise de Marx e

“O Manifesto Comunista”, Lefort afirma ser em clássico e ressalta a importância de sua

releitura.

Para Lefort Marx tinha duas conclusões: a primeira, o comunismo é

universalmente reconhecido como força; a segunda, é tempo de os comunistas exporem

abertamente à face do mundo inteiro sua maneira de ver, seus objetivos e suas

tendências. (p.183) O Manifesto apresenta-se como uma pura exposição; as proposições

teóricas dos comunistas não residem de maneira alguma em ideias e princípios

inventados ou descobertos por tal ou qual reformador do mundo. É apenas a expressão

geral das relações afetivas de uma luta de classes que existe, de um movimento histórico

que se opera de fronte a nossos olhos. Marx não expõe a teoria dos comunistas, os

próprios comunistas não se expõem, é o mundo, é a história que se expõe através dele,

através deles – uma exposição dos objetivos do movimento histórico que opera assim

uma tendência histórica e consciente do real. (p.184) Marx dispensa de reivindicar para

os comunistas a direção das forças revolucionarias a formação de um partido que

pretenda ter o monopólio do poder político, para ele os comunistas só estão destinados a

exercer uma espécie de poder espiritual. Marx mantém uma preciosa diferença entre

teoria e prática. O assunto dos comunistas é a teoria. Mas por princípio o proletariado

não poderia encontrar na pratica nada que se furte à teoria, pois a pratica contém a teoria

como sua própria expressão. (p.185) O proletariado não pode dar nascimento a uma

sociedade que não esteja com conformidade com a sua natureza. Assim, a evidência do

comunismo não comporta a descrição do que advirá, mas a descrição do mundo que

surge defronte a nossos olhos não deixa nenhuma dúvida quanto ao sentido de sua

gestação e quanto a seu resultado. Em resumo, os comunistas não inventam nada,

mostram apenas como as conseqüências surgem das premissas. Conclamam à

revolução. A fala revolucionária é natural, assim como o é a ação revolucionária; estão

igualmente pressas a uma história natural – um processo cuja lei de desenvolvimento

Page 28: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

pode ser conhecida, mas seu conhecimento faz parte do próprio processo. (p.186-187)

Para Lefort, Marx deixa claro que será substituída a velha sociedade burguesa, “uma

associação na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição do livre

desenvolvimento de todos”, seu conceito de associação não leva a si afigurar indivíduos

que apreendam como tais, isto é, reivindiquem o direito de ser cada um singular; desse

modo, para Lefort, tal sociedade exclui toda representação de si mesma; não se poderia

dizê-la, ela não poderia nomear-se, livre e justa. (p.188-189) O papel que a burguesia

desempenha para Marx, é um papel eminentemente revolucionário. Sob seu efeito os

homens perdem seus vínculos com o solo, com a nação; suas relações tornam-se

universais; a produção material, assim como a produção intelectual acham-se reduzidas

a um mesmo denominador, realizando, por conseguinte, um desencantamento, que está

unido à inelutável experiência da realidade e, por se encontrar sem vínculos familiares,

nacionais, religiosos, é proletariado pode encontrar, apenas na exigência de luta contra a

ameaça de morte o caminho o caminho da revolução e do comunismo. Lefort analisa

que diferentemente de O Capital, o Manifesto não fundamenta o poderio do proletariado

no desenvolvimento da sociedade burguesa, na função que ele exerce na grande

indústria. Marx mostra a sociedade burguesa fazendo “jorrar por encanto, meios de

produção e de troca”, e depois, sem transição, retoma sua linguagem estritamente

determinista, para fazer do embate entre forças produtivas e relações de produção a

condição de existência e de supremacia da burguesia. Lefort coloca que é preciso muita

credulidade nesse antagonismo, pois há força e fraqueza na burguesia no mesmo

discurso. A História parece ser completamente abarcada com um único olhar, a verdade

é ouvida por uma só frase onde são mesclados termos de filosofia, de economia, de

política e de moral.

TERCEIRA PARTE – ACERCA DA LIBERDADE

Reversibilidade: liberdade política e liberdade do indivíduo

Toqueville analisando os homens de letras do século XVIII, os economistas e

fisiocratas, reconhece neles um temperamento revolucionário e democrático que é

anterior a Revolução Francesa, mesmo reconhecendo neles uma indiferença pelas

liberdades políticas e uma sólida vinculação às liberdades econômicas. Lefort destaca

que o liberalismo político formulado por Tocqueville não possui a mesma essência que

o liberalismo econômico. Citando Benjamin Constant e Madame de Staël, o autor

Page 29: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

coloca que Toqueville distingue a dinâmica do Estado Moderno das novas

características do despotismo. E utilizando-se dos economistas do século XVIII,

percebe nele um projeto de um poder absoluto que combina-se com um projeto de

conhecimento e de produção, tanto do conjunto social quanto dos indivíduos. O caráter

do poder desse Estado é impessoal, sendo o produto e o representante de todos os e deve

fazer com que o direito de cada um se curve à vontade de todos, numa irrupção de um

tipo inédito de dominação. Assim a faculdade de transformação dos homens que se

vinculam ao poder mostra-se ligada, paradoxalmente, ao modo de engendramento do

poder no próprio bojo da sociedade – poder social –, sendo o poder que a sociedade

exerce sobre si mesma ilimitado, uma vez que a sociedade desconhece tudo que esteja

fora de sua órbita própria; produto da sociedade, as fronteiras das experiências pessoais

lhe são desconhecidas, pois apresenta-se como o agente de todos. (p.198-199)

Lefort analisa, que “por trás da fachada da impessoalidade opera-se uma cisão

inédita entre esse todo, condensado no órgão de poder, e cada um – cada indivíduo, que,

por ser definido como igual ao outro, perde sua identidade própria.” (p.199)

Tocqueville não percebe como ameaça as revoluções e as anarquias, mas sim o

gosto pela tranqüilidade publica e o amor descomedido pela ordem – lembrando que

Tocqueville não manifesta nenhuma simpatia pelos revolucionários, e apresenta uma

prudente reserva a liberdade de imprensa, das associações civis e políticas, bem como o

sufrágio universal na América. Em apologia ao modelo, destaca a democracia, que por

gerar uma agitação em incessante recomeço, introduz essa dinâmica a seu governo e a

sociedade civil. “A democracia não dá ao povo um governo mais hábil, mas faz o que o

governo mais hábil é impotente para criar: difunde por todo corpo social uma inquieta

atividade, uma força superabundante, uma energia que sem ela, jamais existiriam, e, por

menos favoráveis que sejam as circunstancias, recebem maravilhas.” (p.201)

Tocqueville defende um poder que, munido da força de representar a vontade de

todos, venha a subordinar os direitos de cada qual a uma concepção de bem público e de

direção justa que deve ser impressa na sociedade, que não é uma auto-regulação natural

dos interesses. Para ele, os cidadãos se descobrem, cada qual cidadão entre cidadãos,

igualmente comprometidos com o exercício ou com o controle da autoridade pública. A

noção de liberdade individual para ele adveio historicamente e, ao mesmo tempo, é

justa. Seria em vão contrapor-lhe que, antes do advento da democracia, existiam

homens dotados com senso de sua independência; O individuo surge na democracia.

Convertida em direito, a independência individual deixa de ser o privilégio de poucos,

Page 30: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

exercida ao preço da sujeição de outros, para vir a ser incondicionada, vincula-se ao

homem enquanto tal, revelar sua vocação. Isso significa dizer que a liberdade política,

que também adveio historicamente, não poderia vir ser reduzida a um sistema de

instituições destinado à proteção da liberdade individual; a liberdade política torna-se,

por sua vez, incondicionada; ele revela a essência do político. Contudo, quando

afirmamos que os homens se descobrem na democracia como indivíduos e como

cidadãos, também é preciso compreender que nada é suscetível de materializar a

liberdade, por mais importantes que sejam as instituições que a sustentam. (p.202)

A acomodação dita anteriormente é ligada a nova ciência política, que é mais

que filosofia que ciência, já que demonstra as ameaças a liberdade, não para afastá-las,

mas sim para que se aceite e busque, com riscos, o meio de conjurar outros risco – toda

a análise da liberdade de imprensa, das associações civis, dos partidos políticos e do

sufrágio universal é regida por essa grandiosa preocupação.

“Liberdade individual, liberdade política – se estão sempre juntas no pensamento

de Tocqueville, não é apenas por combinarem-se com ventura sustentando-se

reciprocamente, mas porque a liberdade não é localizável, não atributo da existência ou

da coexistência humana: desta é constitutiva e não se separa.” (p.203)

Em comparação a Benjamin Constant se avalia a originalidade e audácia de

Tocqueville, para Lefort, sem dúvida, ele partilha com Constant do mesmo ódio à

arbitrariedade; sua concepção da liberdade está igualmente desvinculada da teoria do

liberalismo econômico. Lefort expõe a concepção de Benjamin Constant (p.203-204), e

a distingue de Tocqueville, pois ele vai além e percebe que os aspectos da dinâmica

democrática em todos os domínios revela o vazio escavado pelo retraimento de cada um

para sua própria esfera – um vazio no qual o poder social vem a apreciar-se.

Inconsistente torna-se pois a representação do indivíduo quando se pretende extraí-la da

representação do político. Ou mais vale dizer, a problemática do indivíduo transforma-

se inteiramente em função de uma nova noção do político. Lefort destaca que, em

Tocqueville, o leitor não pode deixar de perceber na democracia uma forma de

sociedade cuja singularidade é indicada com particular precisão face a essa outra forma

apresentada pela sociedade aristocrática. Ele não confunde tudo, evidentemente, mas

sugere que tudo se sustenta na espessura da sociedade e que uma lesão do tecido

democrático em um ponto arisca rasga-lo de lado a lado. (p.206)

O poder social é tido como noção de um poder difuso, invisível, igualmente

interior e exterior aos indivíduos, igualmente gerado e experimentado por eles,

Page 31: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

igualmente imaginário e real, imprimindo-se a um só tempo no governo, na

administração e na opinião. Ao combater a arbitrariedade, percebe que o mal não está

apenas em que ao violar o direito de um indivíduo, mal está no ofuscamento dos

homens face à imagem da sociedade confundida com o poder. Quando um indivíduo já

não se sente afetado pela presença de outro significa que a relação entre eles se

desvanece, a existência individual se torna acidental face a potência substancial da

sociedade. Todos concebem o governo sob a imagem de um poder único, simples,

providencial e criador. “Quer fale, pois da nova liberdade ou da nova servidão do

indivíduo Tocqueville, a vê sendo exercida no bojo de uma forma de sociedade política

– sem nunca, aliás, deixar que a instituição dessa forma de sociedade seja dissociada, a

seu ver, da instituição do indivíduo.” (p.207)

Sua visão ainda denuncia os partidários resolutos da ordem, que desejam

reforçar o poder governamental, pelo temor da anarquia e da revolução. Contrapondo a

ideia de Saint-Simon que a liberdade seria o objetivo de toda associação humana: esta é

regida por um “objetivo de atividade”. A liberdade só se define, a cada momento, em

função desse objetivo, e que a liberdade é apenas a faculdade de se entregar a seu

alcance. (p.208) Tocqueville na sua concepção afirma que os indivíduos deixam de estar

na posição dos termos principais de uma associação que só se justificaria por lhes

conferir as garantias de sua independência; os contratos e as formas não encontram sua

única razão de ser na explicação e na estabilização dessas garantias; a virtude dos

contratos e das formas está em manter e em tornar sensíveis os marcos da diferenciação

e da articulação das relações sociais, marcos que tendem a destruir a crença em um

direito absoluto da sociedade; o governo saído do sufrágio universal não se beneficia

das vantagens da competência porém, vale bem mais pelo faz fazer do que pelo que faz.

Tocqueville demonstra a partir do caso americano que abandona a ilusão de um domínio

de sua organização; quando as opiniões e as atividades dos homens furtam-se à coerção

estatal. Em vez de trocar a noção de soberania do indivíduo pela noção de soberania da

sociedade, desvenda a ficção que esta última noção encobre: ficção de um indivíduo

coletivo, de um grande ser ao qual seria possível dar uma definição, delimitar os

contornos, perceber o conteúdo, fixar o objetivo. E essa ficção, mostra-a indissociável

da imagem do poder onipotente. Pois continua a ter a mesma essência despótica. (p.208-

209)

Para além das formulas que trazem a marca das teorias clássicas, reconhece-se

em Tcqueville um novo pensamento a cerca do indivíduo, pensamento que se combina

Page 32: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

com a crítica de uma conjunção nova entre o poder e a ciência e com a crítica a um ideal

de total visibilidade da sociedade. Sua maneira de abordar a liberdade dos indivíduos, o

que existe de irredutível em cada qual, vai par com a valorização de uma sociedade

política que se institui por uma sensibilidade nova ao desconhecido e ao impassível de

domínio. E, simultaneamente, a tendência dessa sociedade proíbe – ao menos em quanto

não sofre uma reviravolta em conseqüência das ameaças que ela provoca – uma visão

plena do ser social em que cada uma estaria incluído. (p209) Tocqueville é crítico da

vasta e magnífica imagem do povo e a vê como alienação que acompanha a visão do

povo, da sociedade e do poder. Suas afirmações sobre a visão justa de liberdade que

coincide com reconhecimento recíproco dos semelhantes, e o sentimento de pertencer

não apenas a uma mesma sociedade, mas também a uma mesma humanidade, permite

pensar que o sentido novo de semelhante, de sociedade, de humanidade só pode ser

conciliado à liberdade com a condição de manter em xeque a representação de sua

efetivação no real; tal efetivação provocaria a cisão entre o reino da opinião, o reino do

poder, o reino da ciência e, homens que lhe estão submetidos. Por isso, a verdade acerca

da independência do indivíduo não está em que ele seja uma unidade indivisível, mas

sim que o indivíduo oferece o eminente símbolo da singularidade. (p.211)

Contra o grande poder citado nas páginas 208-209, ele expressa que nos séculos

democráticos em que ingressamos os homens tem naturalmente o gosto pela

independência; Tocqueville, bem otimista, tem a convicção de que “cada nova geração”

encontrará “novas armas para lutar em favor da liberdade dos homens” na luta para o

desmoronamento de uma autoridade incondicionada.

Lefort expõe os limites de Tocqueville ao destacar que ele não avalia o alcance

do extraordinário acontecimento que marca o surgimento da democracia moderna: a

formação de um poder privado da virtude de encarnar-se e privado dos fundamentos

últimos da legitimidade; assim como a instauração de uma relação com a lei e com o

saber liberada da relação com o poder, assim ele não percebe uma volta a uma ordem

teológico-política, que sobre o ideal de liberdade na sociedade moderna e o indivíduo

moderno se institui por da provação de uma dissolução dos marcos de referencia

últimos da certeza; que sob o efeito dessa dissolução, inaugura-se uma aventura –

continuamente ameaçada pelas resistências que suscita – na qual os fundamentos do

poder, os fundamentos do direito, os fundamentos do conhecimento são postos em

questão. Lefort afirma que as mudanças que se demarcam no modo de instituição do

social não são menos sensíveis do que no modo de instituição do indivíduo. A

Page 33: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

indefinição não se circunscreve aos limites do político; concerne todas as relações que o

indivíduo mantém com o mundo, com outros, consigo mesmo. Significa o indicio de um

novo mundo e existência do indivíduo nos horizontes da democracia. O indivíduo não

apenas surge comprometido com o domínio de seu destino; assim como também está

despojado da segurança da sua identidade. (p.212)

Para Lefort deve-se rejeitar a alternativa formulada por Tocqueville, ao menos

evitar colocá-la em termos absolutos, que o indivíduo aparece pela plena afirmação de si

ou desaparece inteiramente, em conseqüência de sua fraqueza e de seu isolamento,

devorado pela opinião, pelo poder social; ou seja, destaca o reducionismo de

Tocqueville. (p.214)

Em conclusão Lefort questiona por que, por fim, contrapor, quando deveria se

pensar juntas, a verdade da associação e a verdade do isolamento? E constata que da

apologia do individualismo à apologia da democracia de massa, tudo se passa se se

estivesse inevitavelmente remetido, há quase dois séculos, de uma denegação a outra.

(p.215)

Da Igualdade à Liberdade

Fragmentos de interpretação: A Democracia na América

A igualdade de condições surgiu para Tocqueville no exame da sociedade

americana, como o fato gerador do qual cada fato particular parecia descender; de

caráter providencial, universal e duradouro. Para ele a igualdade de condições é apenas

um fato gerador, e que, por conseguinte, “exerce uma influência prodigiosa, enquanto

primeiro fato, sobre o andamento da sociedade, sobre o espírito público, sobre as leis, o

governo e não menos, sobre a sociedade civil; pode-se considerar que a revolução

democrática não se reduz a esse primeiro fato, mas abarca com ele todas as suas

conseqüências. (p.218) Para ele, na América as perturbações da história são eliminadas;

diferentemente da Europa – em função do Antigo Regime e dos efeitos da Revolução.

Para o autor vê-se nos EUA os resultados da revolução democrática que se opera entre

nós, sem ter conhecido a própria revolução: “A América é o único país onde se pode

assistir ao desenvolvimento natural e tranqüilo de uma sociedade, e onde foi possível

indicar com precisão a influência exercida pelo ponto de partida sobre o futuro dos

Estados.” (p.218) As Colônias Inglesa, todas, desde o princípio, pareciam destinadas a

proporcionar o desenvolvimento da liberdade, não a liberdade aristocrática da mãe-

Page 34: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

pátria, mas a liberdade burguesa e democrática, cujo modelo completo ainda não havia

sido absolutamente apresentado pela história. A Nova Inglaterra, verdadeiro ponto de

partida, faz compreender segundo Tocqueville, que o ponto de partida não é somente

um fato social, mas também um fato moral e político, isso pela condição social dos

imigrantes - singular fenômeno de uma sociedade na qual não existem nem grandes

senhores, nem povo, nem pobres, nem ricos –, pioneiros puritanos que realizaram a

combinação entre o espírito de religião e o espírito de liberdade. “o puritanismo, afirma

ele, não era apenas uma doutrina religiosa; confundia-se também em diversos pontos

com as mais absolutas teorias democráticas e republicanas.” (p.220) Nesse corpo de leis

formado pela Nova Inglaterra – intervenção do povo nos assuntos públicos, voto

desvinculado de impostos, responsabilidade dos agentes do poder, julgamento através

de juizes –, ele reconhece princípios geradores destinados a receber uma aplicação e

desenvolvimentos que até então, nenhuma nação da Europa ousara dar.

A crítica a igualdade de condições como geradoras, é vista por Lefort ligada a

sua ideia, e essa ideia não se separa da ideia de liberdade, no ponto de partida. Ele

analisa criticamente que Tocqueville empenha-se em determinar a causa primeira, como

se ela devesse ser distinguida do ponto de partida, como se uma, sociológica, cindisse

da outra, histórica. Não hesita em deduzir do estado social (igualdade de condições) as

conseqüências políticas, entendamos: em deduzir desse estado social, atribuído como

função da causa, um estado político ou, mais precisamente, uma alternativa política

definida com conseqüência. Uma outra crítica é que nada autoriza, pois, a deduzir da

igualdade de condições uma igualdade em todos os pontos. Bem como a sua

ambigüidade sobre a emergência e consolidação da republica na França. E ainda, Lefort

coloca que tudo se passa com se após ter cedido a um primeiro movimento do pensar

que o levava a reconhecer a vocação política da democracia, Tocqueville mudasse de

direção para anulá-lo, restringindo a democracia ao registro da igualdade de condições.

Tocqueville considera que o estado social anglo-americano se presta quase que com a

mesma facilidade a soberania absoluta de todos ou o poder absoluto de um só. O poder

absoluto surge côo destino da democracia, ao passo que a liberdade está ligada à

contingência de uma situação. Devido a oportunidade de condições – uma fundação sem

revolução, fundadores virtuosos, etc. – em suma, é que os americanos são subtraídos ao

destino que os esperava. A separação entra a causa primeira, sociológica, e o ponto de

partida, histórico, torna a interpretação paradoxal; pois o caso americano mostra-se

impuro, já que o rumo da revolução democrática parece ter sido desviado em razão de

Page 35: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

causas particulares – circunstâncias, origem, luzes, costumes. Segundo Lefort o que

Tocqueville pretende descobrir na democracia americana é o que não aparece: o laço

entre igualdade e poder absoluto. Ao passo que o que aparece: o laço entre a igualdade e

liberdade, é tomado como efeito da pré-história dos americanos (o passado dos

imigrantes) ou das condições de seu estabelecimento, em suma, não se libera ao olhar

nos limites do estado social e do mundo político. (p.221-223) Lefort pergunta: é

possível liberta-se desse paradoxo? Tomando a pista na introdução do autor, pensa ele

que em comparação dos modelos EUA e da Europa Tocqueville, pretende avançar

preceitos, e é possível supor que esses preceitos lançam luz sobre a lógica interna da

democracia e, ao mesmo tempo, sobre a natureza dos corretivos que permitem evitar os

males. Em resumo: o pensamento de Tocqueville esta em que o que foi obra da

oportunidade nos EUA, poderia ser convertido, para os europeus, em obra da ciência.

(p.225) Segundo o autor, nesse movimento, ao explorá-las começamos a vislumbrar

uma questão que comanda o pensamento de Tocqueville e afeta as oposições que

encontramos em nosso caminho: oposição entre a Europa e América, entre a democracia

selvagem e a democracia pacifica, entre a lógica da revolução democrática e os

acidentes entre estado social e mundo político, entre instinto e ciência, entre povo e

dirigentes. Essa questão incide sobre a liberdade e a relação que mantém com a

igualdade. E que interessa-nos os sinais da indeterminação de um pensar que aceita a

provação do enigma da democracia – esse pensar que contribui para o formular. (p.226-

227)

A segunda parte do segundo volume que confronta o amor pela igualdade com o

amor pela liberdade e se empenha em mostrar por que o primeir5o é mais ardente e

duradouro que o segundo. Constatando que na formulação de Tocqueville a igualdade

de condições é inferior à igualdade em apenas um grau, já que em sua forma completa a

igualdade é política e se confunde com a liberdade. Bem como a ideia que liberdade e

igualdade são duas coisas desiguais e que uma pode se estabelecer sem a outra e vice-

versa, Analisa que na dissociação entre liberdade e igualdade, a perspectiva histórica,

feita para esclarecê-la, obscurece; ele não desvela o fenômeno que Tocqueville busca

conceber: o aparecimento pela primeira vez na história de um fato social que é gerador

de todos os fatos particulares. Em suma, a perspectiva só é aberta para que nós

reconheçamos que a liberdade pode reinar sem a igualdade, a igualdade sem a liberdade.

Porém, ela se apaga diante da afirmação segundo a qual a liberdade não está “presa” à

História. Tampouco se vê vinculada a um estado social e também não escreve-se no

Page 36: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

tempo. Numa análise de método, Lefort compreende que ao passar em silencio pelo

caráter histórico da igualdade, Tocqueville elude o problema colocado pela história da

liberdade. Ao mostrar que diferentemente da igualdade, arraigada em estado social, a

liberdade não se vincula a nenhum estado social particular, ele toca por assim dizer

obliquamente em suas raízes históricas, porém sem enfrentar a dificuldade. É, desse

modo, que ele se expõe a uma nova objeção que se fundamenta em seus próprios

princípios pois, desde que a igualdade não é mais definida como fato histórico

universal, não se vê o que o impede de demarca-la em estados sociais diferentes e dizer

que ela “se vincula a eles”, tanto quanto a liberdade. (p.228-229) Ressaltando as três

proposições que atribuímos a Tocqueville. A primeira estabelece que a igualdade em

sua forma completa confunde-se com a liberdade. A segunda, que a igualdade se

circunscreve, em um estado social determinado, historicamente delimitado, à

democracia moderna, cujo traço distintivo ela manifesta. A terceira, que a liberdade

transcende a ordem do social e histórico. Postas a nu, essas proposições se chocam. O

estatuto da liberdade coloca um problema que não é menos difícil que o da igualdade.

Somos até mesmo tentados a pensar que o primeiro problema comanda o segundo, pois

com ele acha-se posto em causa o sentido da história passada e futura, e não apenas a

avaliação objetiva da mudança social. (p.230)

Percorrendo o capítulo faz-se a demonstração de que os homens preferem, em

democracia, a igualdade em detrimento da liberdade. Isso porque, em primeiro lugar, o

gosto que um povo toma parece moldado pelo estado social, a igualdade está

profundamente impressa em sua vida. Em contrapartida a liberdade, mesmo quando

usufrui, não lhe é natural, isto é, não faz parte de seu ser social: trata-se de um bem. Em

segundo lugar, a liberdade mostra-se quase invisível, unicamente seus excessos são

visíveis; a liberdade é um bem ideal e que só se torna um bem material quando decai ao

plano de uma ordem social. Em contrapartida, a igualdade é visível para o maior

número de pessoas e unicamente seus excessos são visíveis – o desamor dos indivíduos

com respeito à coisa pública. Em terceiro lugar, a liberdade política não exalta a paixão

das massas: ela proporciona de quando em quando, a um certo número de cidadãos,

sublimes prazeres. Para gozá-los, é preciso comprá-la ao preço de alguns sacrifícios, ela

só é ganha com muitos esforços. Em contrapartida, os atrativos da igualdade estão ao

alcance de todos, para saboreá-los basta viver. Entendamos finalmente que a liberdade

nos remete ao pólo do sujeito, da vontade, do ato e a igualdade ao pólo da Natureza.

(p.230-231)

Page 37: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

Lefort refuta inteiramente as afirmações acima: questionando a igualdade como

sentido restrito da igualdade de condições e como um estado social estabelecido. Para

ele a igualdade aparece como estado no qual os direitos são sedimentados. Seu

progresso depende de uma série de lutas, seria em vão pretender pois considera-la como

um fato de natureza. O processo de igualação não é o de uma simples dês-diferenciação,

é o processo de destruição das posições que ocupam os cidadãos que dominam na

sociedade, que detêm poderio, honras e riquezas. Não se poderia dizer que a igualdade

está impressa na vida social, assim como a liberdade, também a igualdade se mostra

conquistada e se define como um bem. Portanto para Lefort, essa formulação de

Tocqueville que a igualdade era pois um fato antigo quando a liberdade era algo novo,

resulta na ideia que dizer que os homens são iguais significa dizer que doravante estão

nivelados; dizer que amam a igualdade significa dizer que doravante amam a servidão

ou o poder, sob os traços de um senhor absoluto. Assim, a problemática social da

democracia se apaga diante de uma problemática política. (p.233) Tocqueville no fim

do capítulo retoma o ponto de partida: por certo, a liberdade e a igualdade permanecem

dissociadas. No entanto, a primeira é reinscrita na natureza democrática e seu fracasso

parece ser resultado da perversão da segunda. Suas considerações incidem sobre o

individualismo e sua análise do individualismo apenas põe em evidência o processo de

separação, de isolamento, de privatização dos indivíduos, que se efetua inteiramente em

prejuízo da sociedade. Essa análise é um prolongamento por meio de uma nova via, da

crítica do igualitarismo democrático; à margem da sociedade nivelada se sobrepõe à

imagem da sociedade despedaçada. O fato da decomposição social – processo de

atomização dos indivíduos – é que Tocqueville toma como essencial. Seu argumento

permanece centrado em uma grande oposição entre o fenômeno da associação (típico da

aristocracia) e o fenômeno da dissociação (típico da democracia), até o ponto em que

deixa aparecer a função da liberdade como remédio aos males engendrados pela

igualdade. Segundo ele a liberdade diz respeito a uma arte que tende a recobrar vida ao

corpo social, a refazer os liames do tecido que se esgarça, a contrariar o movimento

centrífugo dos elementos que só vêem beneficiar o despotismo. Assim, a ciência da

associação, dita ciência-mãe, tende a se confundir com a ciência da liberdade. Lefort

verifica a frente, que Tocqueville revira pelo avesso seu argumento acima, quando vem

comparar a virtude das associações formadas na sociedade civil com a virtude das

grandes associações que mobilizam os homens para os objetivos políticos. Seu quadro

da democracia se transforma; as grandes associações políticas, os partidos, já não

Page 38: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

aparecem como artifício, à disposição das elites, suscetível de atenuar os inconvenientes

do individualismo, mas sim respondem às aspirações do grande número, ao desejar de

participar na direção dos assuntos públicos. Para Lefort, descobrimos agora que não

mais se trata de suscitar a iniciativa, trata-se de não se opor a seu livre desenvolvimento.

Reviravolta da perspectiva, esse último argumento está fundamentado na convicção que

os homens têm uma inclinação natural para a liberdade e que a ameaça que esta faz

pairar sobre a ordem pública não poderia ser evitada. É preciso, ao contrário, assumir os

maiores riscos para fazer frente à ameaça que comporta uma liberdade comprimida,

suscetível ou bem de explodir na anarquia, ou de se estender diante do despotismo.

(p.235-236) Assim ele sugere que a democracia dá nascimento a duas tendências: uma

propícia ao isolamento dos indivíduos, a outra ao intercâmbio e a iniciativa incomum. O

que revela a ambigüidade de sua interpretação.

No percurso de Tocqueville o objetivo explicitamente proposto está em mostrar

a influência que exerce as ideias e os sentimentos democráticos sobre a sociedade

política ou sobre o governo das sociedades humanas. Prosseguindo com sua

interpretação ambígua, Tocqueville coloca que a igualdade que torna os homens

independentes entre si faz com que contraiam o hábito e o gosto de perseguirem suas

ações particulares apenas sua vontade. Essa completa independência de que gozam

ininterruptamente, face a face a seus iguais e na vida privada, permite-lhes considerar

com o olho descontente toda autoridade e lhe sugere imediatamente a ideia e o amor

pela liberdade política, e que os dirige para as instituições livres. (p.237-238)

Lefort analisa que em Tocqueville a igualdade ainda é apresentada como fato

primeiro, porém, está tão imediatamente ligada a seu efeito, a liberdade, que esta é

reconduzida ao pólo da natureza (social), ancorada no instinto. E questiona: como ainda

poder considerar que a liberdade é trazida de fora para uma sociedade igualitária? Como

ainda poder considerar que a desventura da Europa vem do fato de a igualdade aí ser

demasiado antiga e a liberdade completamente nova? E conclui criticamente ser

impossível afinal, conservar a ideia de que as duas se toquem e se confundam apenas

em um ponto extremo: mostram-se consubstanciais. A tendência à liberdade não se

desvencilha da tendência à igualdade. (p.238) A mudança que o autor faz quanto a

interpretação, é segundo Lefort, uma mudança de representação. Tocqueville não mais

se preocupa em chamar a atenção para o processo de fragmentação, de deslocamento da

sociedade, é porque o vazio social lhe parece uma ficção. Na anarquia ele vê a menor

das ameaças, pois está persuadido de que ela só poderá ser, na pior das hipóteses,

Page 39: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

episódica – o mal está no despótico. Sua convicção dominante parece-nos ao contrário,

estar em que a democracia tende a fornecer à sociedade uma tal plenitude, uma tal

solidez que a variedade das ideias, dos sentimentos, dos comportamentos, o livre jogo

das iniciativas, o próprio desejo do novo serão apagados. (p.239-240)

Outro ponto de virada destacado por Lefort é quando Tocqueville põe no centro

de sua argumentação os temas de um poder único e central e de uma legislação

uniforme. Ali a representação da igualdade adquire um novo estatuto. Segundo

Tocqueville a medida que as condições se igualam em um povo, os indivíduos parecem

menores e a sociedade parece maior, ou seja, cada cidadão, tornando-se semelhante a

todos os outros, perde-se na multidão e não se percebe nada mais além da vasta imagem

do próprio povo. (p.241) Assim, para Lefort a escrita resvala para sugerir que a

identidade de cada um se apaga diante de uma identidade coletiva, sob o efeito da

similitude. A imagem do povo destaca-se dos indivíduos, deixa-se ver para cada um

deles, de um ponto de vista impessoal. E retoma Tocqueville: isso naturalmente

proporciona aos homens dos tempos democráticos uma opinião muito elevada dos

privilégios da sociedade e uma ideia muito modesta dos direitos do indivíduo. A

substituição do povo por sociedade é um sinal de um desdobramento do processo cuja

origem se acha na igualdade. Temos assim por um lado a imagem do povo-Um, por

outro lado uma cisão de onde surgem a pura multiplicidade dos indivíduos. Que gera

uma luz dupla que é lançada sobre o poder: há um tempo ele pode encarnar o povo,

nele, como já nos fora sugerido, condensa-se a opinião comum; ele exerce, de acordo

com uma fórmula presente no primeiro volume, a tirania da maioria, e ele representa a

sociedade algo de indefinível, mas é o único a ter substância e força, de tal modo que,

representando-a, aparece aos olhos de todos como esse ser imenso que se ergue

soberano em meio ao rebaixamento universal. (p.241)

A noção de potência intermediaria se obscurece e se apaga. A ideia de um direito

inerente a alguns indivíduos desaparece rapidamente do espírito dos homens; a ideia do

direito todo-poderoso e, por assim dizer, único da sociedade vem tomar seu lugar. Nesse

contexto o termo (poder social) começa a ser objeto de um emprego sistemático. Parece

ser o indicio de uma nova concepção que não permite circunscrever a esfera do político

a distancia da esfera do social. (p.242) Sua inversão se mostra: a igualdade não mais

libera o espetáculo da dispersão dos indivíduos outrora membros de um corpo (ou de

múltiplos corpos), indivíduos iguais, como unidades independentes, pelo fato de

nenhum ser por princípio inferior ou superior. A igualdade, por um lado, designa

Page 40: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

similitude, e seu efeito é a ilusão (inscrita no real) de uma identidade coletiva,

denominada povo. Dir-se-ia então que Tocqueville reconheceu a virtude da igualdade

com momento da emergência da liberdade apenas para melhor neutralizar essa

representação. Dessa maneira a independência que engendra a igualdade e gera uma

ambigüidade: independência e fraqueza. Logo se vê que ambas se prestam ao

desenvolvimento do poder. Numa relação de necessidade de uma ajuda externa do

poder coletivo (fraqueza) e comum dependência (independência). E conclui Lefort que,

o argumento parece amarrado: nada resta da declaração, por nós sublinhada, proferida

no primeiro capítulos – os homens que vivem nesses tempos marcham, pois, sobre uma

encosta natural que os dirige para instituições livre. A encosta natural parece agora

precipitá-los no jugo do poder, ao mesmo tempo que faz com que fujam de toda

dependência de ordem pessoal. Por uma via imprevista é assim restabelecida, no fim do

capitulo, uma das mais importantes tese da segunda parte: a independência individual e

as liberdades locais sempre serão produto da arte. (p.242-243)

Realizando uma síntese desse percurso descrito acima, ao final das páginas 243 e

início da 240 se conclui que a opressão exercida sobre o signo da soberania do povo é

menos degradante, e que a verdade decisiva parece precisamente ser que o novo

despotismo adquire sua forma mais acabada quando se combina a imagem do poder,

representante da sociedade, com a imagem do povo, que só mantém relação consigo

mesmo. Seria injusto concluirmos que a democracia tutelar é viável e o instinto de

independência, entregue a si mesmo, desemboca em um estado de servidão, pois a

liberdade não pode de modo prolongado encobrir a servidão. Tocqueville ao final de sua

analise reconhece isso, e aponta na democracia uma forma dos indivíduos se

desvencilharem desse poder despótico, afirmando que impedirão algum despotismo

possa se estabelecer e fornecerão novas armas a cada nova geração que queira lutar em

favor da liberdade dos homens. (p.245) O que nos retornar ao seu objetivo nesse livro:

mostra que houve um tempo em que o esforço dos homens tendia a recrudescer e a

fortificar o poder social, e que, no presente em que atingiu uma enorme força, a tarefa

consiste em lhe impor limites, fazer com que os direitos dos particulares prevaleçam e

sejam protegidos, sustentar a independência do indivíduo. (p.245)

Lefort conclui que, como todo grande pensador Tocqueville nos instrui por meio

de suas próprias contradições e talvez porque esteja cego a questão posta por um devir

histórico da liberdade, que ele é capaz de ler da melhor maneira possível, na sociedade

moderna, os traços que não sabem demarcar os pensadores burgueses democratas ou os

Page 41: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

pensadores socialistas, seus contemporâneos. Um século e meio, ou quase, depois dele,

ainda estamos diante do enigma da democracia e sua obra ajuda-nos a decifrá-la.

QUARTA PARTE – ACERCA DO IRREDUTÍVEL

Permanência do Teológico-Político?

No século XVI são demarcados os primeiros sinais de uma reflexão moderna

sobre a religião e politique, quando então nasce uma sensibilidade nova à questão dos

fundamentos da ordem civil. Em inícios do século XIX, institui-se um debate de uma

ampliação muito diferente em conseqüência da Revolução Francesa. Nesse período

houve uma disposição a conceber o Estado como uma entidade independente, a fazer da

política uma realidade sui generis, a relegar a religião ao domínio das crenças privadas.

O que Hegel, já em 1817 refutava (p.250). Criticas do mesmo teor multiplicar-se-ão um

pouco mais tarde na França, a partir de premissas diferentes sob a inspiração de um

humanismo ou de um socialismo impregnado de uma nova religiosidade. Lefort coloca

que a concepção de política que se impôs no presente possui também antigas raízes. Sua

origem parece se confundir com a origem do espírito burguês – espírito de uma

burguesia que veio a ser politicamente dominante. Seguramente, um fato é que as

instituições políticas se cindiram a muito tempo das instituições religiosas; outro fato é

o retraimento das crenças religiosas para a esfera privada. Observa-se esse fenômeno

mesmo lá onde o catolicismo continua sendo uma religião dominante. Sua formulação

acerca da questão parte de uma análise do sentido das palavras que estão em estreita

relação com o sentido que damos às palavras. Religioso, que está de acordo que crenças,

atitudes, representações, que sujeitos ciosos não remetem a um dogma, que não

implicam fidelidade a uma igreja, mas sim uma sensibilidade religiosa e conserva um

conteúdo bastante precioso, que remete a fenômenos históricos e culturalmente

determinados e não ao religioso em geral. Politique revela uma ambigüidade que nos

posiciona frente ao objeto. O fato de se escolher entre dizer o político ou a política, quer

se trate de circunscrever uma ordem de relações sociais inteligíveis por si mesmas, as

relações de força, ou conceber um conjunto de funções sociais cuja articulação

necessária assinala a coerência de um sistema, quer se trate de distinguir o nível

superestrutura, montada em relações de produção, onde a dominação de classe é

traduzida pela transmutação em instituições, práticas, representações supostamente

comprometidas como interesse geral, etc. A operação de conhecimento que se relaciona

Page 42: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

com o objeto, posto como “real” ou como “ideal”, faz com que ele surja separado de

outros objetos definidos ou definíveis. O critério do que é politique constitui o critério

do que é non-politique: econômico, social, jurídico, estético, ou religioso. Isso evidencia

o domínio que se constituiu como sendo do conhecimento exato da ciência do

particular, que se põe no dever de busca as articulações entre o que concerne a outra

realidade ou a um outro sistema. (p.252-253)

Lefort defende a filosofia política para pensar o político; pensar os princípios

geradores da sociedade, ou melhor, das diversas formas de sociedade. Pois aos olhos do

filosofo o político não se mostra localizável na sociedade, é por uma razão muito

simples: a própria noção de sociedade já contém a referencia de uma definição política;

essa simples razão faz com que o espaço nomeado sociedade não seja concebível em si,

pelo contrario, seu esquema diretor, o modo singular de sua instituição, é que torna

pensáveis a articulação de suas dimensões e as relações que se estabelecem em seu bojo

entre classes, grupos, indivíduos, assim como entre práticas, crenças, representações.

Afirmando que, faltando essa referencia primordial a um modo de instituição do social,

a princípios geradores, a um esquema diretor, que comandam uma figuração não apenas

espacial, mas também temporal de uma sociedade, cedendo à ficção positivista: não se

saberia como evitar por a sociedade antes da sociedade, colocando como elementos o

que apenas é apreensível a partir de uma experiência já social. Por isso, ao se separar ao

que pertence à ordem do econômico, da política (no sentido dado pela ciência moderna),

do jurídico, do religioso, afim de demarcar os sinais de sistemas específicos, esquecer-

se-ia de que apenas alcançamos uma tal distinção analítica porque possuímos dentro de

nós a ideia de uma dimensionalidade originária do social e que ela se dá com a

dimensionalidade de sua forma originaria, de sua forma política. (p.254) o filosofo não

está necessariamente em busca do inapreensível objeto que seria a totalidade, mas busca

em um regime, em uma forma de sociedade, um principio de interiorização que dê conta

de um modo singular de diferenciação e de relacionamento das classes, dos grupos, ou

das condições, e simultaneamente, de um modo singular de discriminação dos

referenciais em função dos quais se ordena a experiência da coexistência – referenciais

econômicos, jurídicos, estéticos, religiosos, etc. Uma sociedade só advêm para si, por

meio do arranjo de suas relações, ao instituir as condições de inteligibilidade dessas

relações e ao conferir, através de uma miríade de sinais, uma quase-representação de si

mesma. Essa experiência de coexistência não se desprende de uma experiência do

mundo do visível e do invisível, em todos os registros. (p.255)

Page 43: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

Pesquisando a diferença entre filosofia entre ciência política, relata que a ciência

política encontra problemas que trazem a marca da investigação filosófica; afirmando o

teórico que analisa a política em termos de relações de força, não pode deixar de se

perguntar por que e como tais relações podem se estabilizar em uma dada configuração,

de tal modo que a força dominante não mais se exerça de maneira manifesta; não pode

deixar de buscar por que e como as relações se furtam ao conhecimento dos atores; por

que e como passam por legitimas ou conformes à natureza das coisas. Em aparência seu

problema é então, justamente, dar conta de um processo de interiorização da dominação.

Porém, resolve-o buscando fora das fronteiras da política a origem e a natureza desse

processo, recorrendo aos mecanismos da representação, tal como os demarca na esfera

do direito, da religião, ou do conhecimento técnico-científico. (p.256) Apontando os

limites da abordagem da ciência política descreve que ela nos confina a uma concepção

artificialista; ela se desenvolve por meio de um jogo de articulações cujos termos foram

previamente separados, e vêm agarrar-se a algo tido como portador de sua própria

determinação. O conhecimento encontra sua garantia na definição de modelos de

funcionamento; exerce-se conforme um ideal de objetividade que põe o sujeito a

soberana distancia do social. A exterioridade do sujeito conhecedor se combina

necessariamente com a exterioridade do social a ele mesmo. Em contrapartida, o que

Lefort louca, é que o pensar que se apropria da questão da instituição do social

confronta-se simultaneamente com a questão de sua própria instituição. Esse pensar não

poderia se ater a uma comparação entre estruturas e sistemas, desde que é sensível a

uma elaboração da coexistência que faz do sentido um produto dos referenciais do

verdadeiro e do falso, do justo e do injusto, do imaginário e do real, desde que instaura

os horizontes de uma experiência das relações do homem com o homem e com o

mundo. Esse pensar procura dar conta de si mesmo no momento que procura dar conta

do que pensa. Para ele não parece que haja uma diferença radical entre as existências da

filosofia política, e as da filosofia da história, já que se faz portanto o exercício do

pensar. (p.258)

Retornando ao ponto central da análise, a separação entre religioso e político na

sociologia ou na ciência política. O político e o religioso são postos como duas ordens

de praticas e relações separadas; o problema está em compreender como eles se

articulam ou se desarticulam, no exame de uma história empírica. Lefort reconhece

termos da análise objetiva, a pertinência de uma distinção que tem valor em si.

Entretanto, percebe que o acontecimento da separação também não demonstra nada por

Page 44: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

ele mesmo, seu significado é estabelecido em referencia a uma lei do desenvolvimento

histórico ou da dinâmica das estruturas sócias. Sobre o quadro da filosofia política,

quando pensa sob o nome de polítique os princípios geradores de uma sociedade, ele

inclui os fenômenos religiosos, de imediato em sua reflexão. Tem em mente a ideia de

que não se poderia separar entre o que diz respeito à elaboração de uma forma política e

o que diz respeito a uma elaboração de uma forma religiosa, não no sentido conferido

pelas ciências sociais, mas sim no sentido em que um e outro comandam por meio de

suas próprias articulações, um acesso ao mundo. O que não impede de conceber que

existem em toda sociedade a virtualidade de um conflito entre os dois princípios, bem

como que se possa afirmar, no mundo moderno o imperativo de uma plena distinção

entre os domínios regidos por esses dois princípios. Assim, realiza-se, em certo sentido,

seu próprio desígnio; está em parte a ele ligado a medida que encontra as condições de

sua emancipação no momento em que os homens alcançam a possibilidade de ter

influencia sobre a própria história. Entretanto, não se pode concluir que o religioso deva

ser apagado, ou confinar-se aos limites da opinião privada. Sem duvida a nova

legitimação da diferença entre opiniões também contém um significado simbólico; mas

aparentemente, nos limites de um sistema político que garante a todo o indivíduo o

direito que garante de se beneficiar do respeito que deve testemunhar aos outros. (p.258-

259)

A filosofia, acerca da religião, não almeja conserva-la pelo simples motivo de

que não haveria crenças úteis à manutenção da ordem política estabelecida. Ela

descobre na religião um modo de figuração, de dramatização das relações que os

homens estabelecem com o que excede o tempo empírico, espaço no qual se travam

suas próprias relações. O trabalho do pensar filosófico, a despeito de sua pretensão o

Saber absoluto, a substituição da imagem pelo conceito deixa intacta, para o filosofo a

experiência de uma alteridade na linguagem, a de um desdobramento, entre uma criação

e um desvelamento, entre atividade e passividade, entre expressão e impressão do

sentido contido na religião. (p.260) Lucidamente, Lefort analisa que o filosofo tem em

mente não apenas a ideia de que a sociedade que se esquecer de seu fundamento

religioso viverá na ilusão de uma pura imanência a si mesma e apagará imediatamente o

lugar da filosofia mas também ele pressente que a filosofia está à religião por meio de

uma aventura da qual ela não possui a chave principal. Assim, ao se recursar a admitir o

fato histórico da separação entre o religioso e o político, a despeito da aparência. Ele se

contrapõe àqueles que crêem no estabelecimento, por não terem a justa noção do que é

Page 45: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

político. Porem ao fazê-lo está arriscando a negar que a aparência tenha bastante

consistência para se afigurar uma nova pratica, para se inscrever de certa maneira na

realidade do poder e do Estado; tendo em mente a ideia que é impossível dissociar a

posição do poder de sua representação, pois confere ao poder um estatuto simbólico, o

problema que deverá ser colocado está em apreciar a mudança que contém a

representação de um poder sem fundamento religioso. Do contrário, a crítica filosófica

não teria importância, limitando-se à condenação de uma opinião errônea, adverte

Lefort. (p.261)

Lefort assinala a vantagem para pensar a democracia na contemporaneidade em

relação ao século XIX. A democracia moderna atesta uma nova determinação-figuração

do lugar do poder, por esse traço distintivo é que se designa o político; diferença entre

ciência política e filosofia política, mostrando que uma tratava-se de circunscrever uma

ordem de fatos particulares no social, ao passo que para ao outra, a tarefa estaria em

pensar o principio da instituição do social. (p.260) Numa reflexão sobre o poder que

precisamente não atinge algo de particular, toca em uma primeira divisão constitutiva

do espaço Sociedade. Com efeito, que este se ordene como o mesmo implica a

referência a um lugar a partir do qual ele se deixa ver, ler, nomear. O poder mostra ser

esse pólo simbólico, manifesta uma exterioridade da sociedade a si mesma, garanti-lhe

uma quase-reflexão sobre si mesma (essa exterioridade devemos evidentemente evitar

projeta-la no real; então não mais faria sentido para a sociedade). Sob todas as suas

formas, sempre é para o mesmo enigma que o poder remete: enigma de uma articulação

entre interior-exterior, de uma divisão instituindo um espaço comum, de uma ruptura

que simultaneamente é um relacionamento, de um movimento de exteriorização do

social que vai de par com um movimento de interiorização do social. A democracia é o

único regime no que se alinhou uma representação do poder que o atesta como um lugar

vazio, mantendo-o assim separado do simbólico e do real. Isso em virtude de um

discurso que faz sobressair que o poder não pertence a ninguém; que o exerce não o

detém, ou melhor: não o encarna; esse exercício exige uma competição que se renova

periodicamente, e a autoridade que dele se encarrega se faz e se refaz em conseqüência

da manifestação da vontade popular. (p.262) Não se deve confundir a ideia de que o

poder não pertence a ninguém com a ideia de que ele designa um lugar vazio. A

primeira pode ser formulada por atores políticos, a outra não. A referência a um lugar

vazio furta-se à fala; não existe nele materialização do Outro, nem a materialização do

Um; o poder tem então a função de encarnador. Ele não se desprende do trabalho da

Page 46: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

divisão no qual se institui a sociedade, e esta simultaneamente, só se refere a si mesma,

à prova de uma divisão interna, que se mostra, não de fato, mas geradora de sua

constituição. Privado da dupla referência ao outro e ao Um, o poder não poderia

condensar em si mesmo o principio da lei e o principio do saber. (p.263) Analisando os

processos que regem a instauração do poder democrático, da autoridade no encargo de

exercê-lo que exige uma institucionalização do conflito e, no momento da manifestação

da vontade popular, uma quase dissolução das relações sociais. Dois fenômenos da

articulação entre a ideia de poder como pura instancia simbólica e a ideia de uma

sociedade como sendo isenta de uma unidade substancial. A institucionalização do

conflito não está à disposição do poder; ao contrario, o poder se mostra em sua

dependência, pois diz respeito a uma elaboração jurídica, campo particular da política,

da competição e do exercício da autoridade publica. Efetivando o laço entre a

legitimidade do poder e a legitimidade do conflito constitutivo da política, contém as

condições que concernem à vida social em seu conjunto: a liberdade de opinião, de

expressão, de associação, garantia de circulação das pessoas e das ideias. Por isso, a

esse respeito a ideia de uma cisão tão frequentemente evocada, entre as esferas do

Estado e da sociedade civil parece obscurecer ao invés de esclarecer os traços do

fenômeno democrático. Impede que se demarque uma configuração geral das relações

sociais na qual a diversidade e as oposições se tornam sensíveis. O que alude apenas que

tenha por efeito instituir uma cena na qual o conflito se representa aos olhos de todos

irredutível, legitimo. Percebe-se aí a vocação da sociedade para a divisão. Nisso Lefort

coloca o problema do sufrágio universal, ele analisa que a referência ultima à identidade

do povo, ao sujeito instituinte, mostra que está encobrindo a enigmática arbitragem do

número. A representação da política é engendrada na própria instituição da democracia.

Na democracia moderna, onde se perfila um lugar vazio não existe conjunção possível

entre o poder o poder, a lei e o saber. O ser do social se furta, ou melhor, se dá sobre a

forma de um questionamento interminável. Os marcos de referência últimos da certeza

são dissolvidos ao passo que nasce uma sensibilidade nova ao desconhecido da História,

à gestação da humanidade em toda a variedade de suas figuras. Essa separação é apenas

indicada, é operante, porém não é visível; não tem estatuto de objeto para o

reconhecimento. O que se oferece são os atributos do poder, os traços distintivos da

competição são os mecanismos que comandam a formação de uma autoridade pública, a

seleção dos dirigentes e a natureza das instituições que tem o encargo do exercício ou

do controle dessa autoridade. (p.264-265) A democracia na qual a figura do outro se

Page 47: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

encontra abolida, na qual o poder não se desprende da divisão em que é engendrado, e

assim ele permanece inapreensível (subtraído a apropriação e à representação), tal

regime não se deixa apreender em sua forma política. O que ilude numa ideia de

realidade que conteria a razão de sua própria determinação ao combinar as múltiplas

relações de fato. Lefort pergunta se filosofia política não pode assim estar presa ao

fundamento religioso pela sua convicção na ideia segundo a qual uma sociedade

humana, seja ele qual for sempre estará na impossibilidade de se ordenar em uma pura

imanência a si. (p.265-266) E demonstra os limites do pensar da filosofia política sobre

esse aspecto, ao qual ignora que a democracia moderna torna possível tal ilusão por

desagregar as antigas certezas, inaugurando uma experiência na qual a sociedade

permanece em busca de seu fundamento; bem como o erro em afirmar que a religião

elabora uma representação primordial do Um e que esta se mostra coo a condição da

união dos homens. (p.265-266) Sobre o político e o religioso é impossível negligenciar,

que a imagem da união se engendra ou se reengendra no próprio bojo da democracia

moderna. A nova posição do poder vem acompanhada de uma reelaboração simbólica,

em virtude da qual as noções do Estado, povo, nação, pátria, humanidade, adquirem um

significado igualmente novo. O único problema esta em saber se são ou não de uma

essência religiosa. Há duas interpretações, uma que afirma que o cristianismo subtrai o

homem a dominação das necessidades, liberando-o da sua imagem de finitude temporal,

inspira-lhe o senso de comunidade, de fraternidade, de obediência a princípio moral

incondicionado, ensina-lhe o valor do sacrifício e que, na falta da crença cristã não teria

mais lugar para uma ética em proveito do Estado e do patriotismo – isto em uma

sociedade que tem base nas liberdades individuais. Outra que considera que o

cristianismo implica, em seu principio mesmo, uma depreciação dos valores mundanos

e que o sentido religioso doravante se refaz em ruptura com ele, investe-se no amor da

nação e da humanidade. No primeiro caso a religião permanece a base da moralidade

social e do Estado; no segundo, essa moralidade basta a si mesma, pois ela se tornou

religiosa. Nas duas vertentes da interpretação, tudo que expressa a ideia de um

enraizamento social, de um comum pertencimento, de uma identificação a um princípio

formador da coexistência humana deve proceder do sentimento religioso. (p.267-268)

Há uma ambigüidade no exame das representações às quais é conferido um significado

religioso, que negligencia que a democracia dissocia o poder político da existência do

Estado. que torna em vão julgar que nesse fenômeno se inscreve uma nova religião.

Page 48: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

Segundo Lefort, em análise, lá onde a sociedade não é mais representável como

um corpo e não se afigura no corpo do príncipe, na verdade o povo, o Estado, a nação

adquirem uma nova força, tornam-se os maiores pólos em virtude dos quais a identidade

e a comunidade sociais ganham significado. Mas, afirmar que uma nova crença religiosa

se forma para exaltá-la, significa esquecer que essa identidade, essa comunidade

permanecem indefiníveis. Ao contrário, encontrar nessa crença o sinal de uma pura

ilusão, como foi incentivado pelo pensamento liberal, significa denegar a noção mesma

de sociedade, apagar a um tempo a questão da soberania e a questão do sentido da

instituição, sempre ligadas à questão ultima da legitimidade do que é. Significa por

exemplo, reduzir o poder – ou o Estado que se confunde abusivamente com ele – a uma

função instrumental e o povo a uma ficção que faria nada além de recobrir a eficácia de

um contrato, graças ao qual uma minoria se submeteria a um governo saído da maioria;

por fim significa postular como reais os indivíduos e as coalizões de interesses e de

opiniões. Nessa ultima perspectiva troca-se a ficção de uma unidade em si contra a

ficção de uma diversidade em si; está-se privado simultaneamente de compreender que

as aspirações que se manifestaram ao longo da história das sociedades democráticas,

sob o signo da instauração de um Estado justo ou da emancipação do povo, longe de

marca uma regressão no imaginário tinha por efeito impedir a sociedade de se petrificar

em sua ordem; restabelecer a dimensão constituinte do direito, lá onde a lei servia para

fixar o lugar do dominante e do dominado e as condições para apropriação de riquezas,

potencia e luzes. (p.270)

Lefort questiona se afastar esses dois modos de interpretação não permitirá

detectar as vias pelas quais pode ser operado um retorno ao religioso? Ele entende que

nesse caso, a análise que delineávamos deixa entrever a possibilidade de situações nas

quais a eficácia simbólica do sistema democrático é anulada. Dissipa-se a distinção do

poder como instancia simbólica e como órgão rel. A referência a um lugar vazio sede

diante da imagem insustentável de um vazio efetivo. A diferença entre opiniões, valores

e normas, tudo que dá sinal de uma fragmentação do espaço social, de uma

heterogeneidade, está à prova de um desmoronamento da legitimidade. Para ele, nessas

situações limites, efetua-se um investimento fantástico nas representações que fornecem

o indicio de uma identidade e de uma unidade social, e se anuncia a aventura totalitária.

Trata-se de uma maneira ou de outra, de dar ao poder uma realidade substancial, trazer

para sua órbita o prazer da lei e do saber; denegar a divisão do social sob todas as suas

formas; refazer a sociedade de um corpo. A vinculação com o religioso que

Page 49: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

assinalávamos, os confina na ilusão de uma restauração da unidade e da identidade

enquanto tal, que eles vêem se anunciar na união do corpo social. (p.270-271)

Não podemos negligenciar o fato de que o nascimento do cristianismo tem um

significado político. A partir do momento em se trava uma relação precisa entre um

certo tipo de instituição e um certo tipo de instituições religiosa é que se faz legível um

fundamento religioso da ordem política, tanto quanto um fundamento político da igreja,

já que então está deixa de ser confundida com a humanidade cristã para se circunscrever

em um espaço, para se ordenar sob um poder, e se imprimir em um território. Lefort

Questiona se não existia transferência de uma crença religiosa para o pensamento

filosófico no momento em que este pretende discernir a persistência do religioso no

político, e se esse pensar não traz consigo a marca de um esquema teológico-político? O

autor responde que, sua atração pelo um não está comandada, em surdina, por uma

identificação singular com o princípio da realeza do espírito. E se utiliza de Michelet

para responder tal indagação, na obra dele delineia-se um percurso no qual demarcamos

uma tensão continua entre a ideia da religião como horizonte intransponível do homem

e uma ideia do direito como fonte ultima da criação do homem pelo homem, ou melhor,

como principio de uma ultrapassagem do homem que lhe é interior – duas ideias que

comandam a primeira, um pensamento do enraizamento no solo, no tempo, pensamento

dos limites e da tradição, pensamento da identidade de si e do ser (povo, nação,

humanidade), a segunda, um pensamento do desenraizamento, da errância, de um

turbilhonamento do ser, pensamento de uma selvagem afirmação de si, na liberação de

toda autoridade, que só se sustenta na obra se realizando. (p.275) Michelet condensa a

interpretação de Guizot e a de Ballanche. Da monarquia, ele faz um agente de

nivelamento e de centralização, cuja virtude foi criar as condições da igualdade e torna a

sociedade cada vez mais homogênea. No cristianismo ele reconhece o advento de uma

criação da igualdade, da fraternidade, uma religião do amor à humanidade. A Guizort,

ele toma de empréstimo segundo a qual a velha monarquia se tornará inútil, desde que a

sociedade fora plenamente edificada; a Ballanche, toma de empréstimo a ideia segundo

a qual o espírito do cristianismo foi investido nas instituições sociais. Forma-se um

povo sob o duplo efeito de um princípio de unificação material e de um princípio de

unificação espiritual. Ele não se cansa de encontrar na monarquia sacerdotal o

fundamento da sociedade do Antigo Regime. Na ascensão de como a alma dos reis deve

ter se elevado sobre os clamores dos fiéis para ganhar seu lugar junto a Deus; e em nova

liturgia, seu próprio pensamento ganha lugar junto ao povo. Para Mechelet cria-se assim

Page 50: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

também uma Igreja. A referência monárquica se combina com a referência crítica,

fórmula do mito teológico-político da dupla natureza do rei. A qual a unidade residia até

então na ideia de encarnação religiosa ou política. Seria preciso de um Deus humano,

um Deus de carne para unir a Igreja e o Estado. Segundo Lefort, Michelet é um dos

raros pensadores de seu tempo a reconhecer a função simbólica do poder na misse en

forme das relações sociais. (p.276-278) E em contraste a interpretação de Tocqueville

(p.280), Lefort analisa que Michelet descobre o que Tocqueville negligencia; o mistério

da encarnação monárquica; para além da representação consciente de um rei de direito

divino, que restitui em seu poder algo da presença do cristo, e por essa virtude faz com

que apareça a justiça em sua pessoa, descobre a representação inconsciente de uma

sociedade que se encarna no rei, segundo um princípio carnal, mas cujo os membros são

captados pela imagem de um corpo, de tal sorte que eles protejam nesse corpo sua

própria união, seus afetos precipitam-se em uma identificação amorosa com esse corpo.

Michelet combina dois argumentos que não se sobrepõem. O primeiro consiste em

remeter a lei política do Antigo Regime à lei religiosa. O cristianismo mostra-se como

sistema formador da monarquia e o conjunto das instituições que a sustentam. (p.281) O

segundo argumento, a potência do rei não apenas desce de todas as alturas da

arbitrariedade cristã, mas também é edificada por seus súditos. Aquém dessa elaboração

surge, com efeito, que o corpo natural em virtude de sua combinação com o corpo

sobrenatural, exerce um encanto que arrebata o povo. E realiza a conjunção entre povo e

o rei – no Um. Exemplo a análise do julgamento de Luís XVI (p.284-286).

Lefort entendem que tendo postulado a antítese do Antigo Regime e da

Revolução, Michelet nem por isso se torna cego às contradições internas à Revolução.

Ao qual vê em Robespierre uma ressurreição da monarquia (esta começa com a morte

de Danton); ele racha ao meio a doutrina jacobina de salvação pública, transformando-a

em uma doutrina da razão de estado de tempo do absolutismo, e uma doutrina de

salvação edificada pelo cristianismo; denuncia tanto a Montanha quanto a Gironda

como uma arrogante elite de letrados. Em suma Michelet não deixa que se confunda

Revolução com algum de seus episódios, por um lado ele a destemporiza, e restitui-lhe

por outro lado, uma temporalidade impassível de todo domínio, descreve seu

encaminhamento de tal modo que a criação e a dissolução de ideias e homens não se

separam; e afirma a unidade de espírito da Revolução. Lefort denuncia uma fraqueza na

argumentação de Michelet: sua dedução da monarquia humana a partir da monarquia

divina, das instituições políticas a partir das instituições religiosas, procede de uma

Page 51: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

exagerada simplificação do cristianismo. Assim e assim Michelet desconsidera o

fenômeno do protestantismo, e consequentemente, o acontecimento americano. É seu

contemporâneo, Quinet, que encontra nessa conjunção entre protestantismo e a

liberdade, um preceito de importância considerável para a inteligibilidade da

democracia moderna. Que é importante por ser um indício de uma obstinação a se

circunscrever à eficácia do religioso. Lefort então destaca que diversos autores –

Michelet, Quinet, Guizot, Tocqueville – buscaram no religioso a reconstituição de um

polo de unidade graças ao qual seriam conjugadas as ameaças de uma dissolução do

social, surgidas da derrota do Antigo Regime.

O autor indaga em vez de se querer definir as relações mantidas entre o político

e o religioso para apreciar o grau de subordinação de um ao outro e, em consequência,

interrogar-se sobre a permanência ou não da sensibilidade do pensamento religioso na

sociedade moderna, não seria melhor colocar como dado primeiro, lógica e

historicamente, uma formação teológico-política; capitar nas oposições que essa

formação imediatamente implica, o princípio de uma evolução, ou se preferir, de um

trabalho simbólico que passa pela provação dos acontecimentos; detectar como alguns

esquemas de organização e de representação se mantêm, graças a deslocamentos ou

transferências, em entidades novas, da imagem do corpo e de sua duplicidade, da ideia

do Um e de uma mediação entre o visível e o invisível, entre o eterno e o temporal?

Para Lefort, assim teríamos um oportunidade melhor de indagar se a democracia é o

teatro de um novo modo de transferências ou se nela apenas permanece o fantasma do

teológico político. O que então se descobriria é uma rede de determinações, de um

esquema dinâmico imprimindo-se no jogo complexo que não operam mais entre o

teológico e o político, mas sim entre o teológico já politizado e o político já teologizado.

(p.288-289) Num trajeto histórico das monarquias europeias ocidentais e sua relação

com a Igreja (p.290-294), compreende-se que o teológico-político se libera com

desdobramento de um sistema de representações em que os termos são formados, porém

o princípio de oposição é preservado. Bem como as ideias de razão, de justiça, de

direito, que comandam o retorno aos princípios do pensamento clássico e um

movimento em direção de uma ética laica, também estão ligadas a uma elaboração

teológico-política.

E Lefort questiona concluindo: qual a conclusão nos conduz a essa breve

incursão no labirinto teológico-político? A reconhecer que, segundo seu esquema, tudo

que vai no sentido da imanência vai no sentido da transcendência, tudo que vai no

Page 52: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

sentido de uma explicitação dos contornos das relações sociais vai no sentido da

interiorização da unidade, tudo que vai no sentido da definição de entidades objetivas,

impessoais, vai no sentido de uma personalização dessas entidades. A engrenagem dos

mecanismos de encarnação assegura uma imbricação da religião e da política, mesmo

quando se crê estar lidando com práticas ou representações puramente religiosas ou

puramente profanas. E instiga em conclusão a seguinte pergunta: assim em vez de

procurar na democracia um novo episódio das transferências do religioso para o

político, não deveríamos considerar que as antigas transferências de cada registro para o

outro se efetuavam em proveito da conservação de uma forma, no presente abolida, que

doravante o teológico e o político estão desvinculados; que uma nova experiência da

instituição do social foi delineada; que a reativação do religioso se faz nos pontos de seu

fraquejar; que sua eficácia não é mais simbólica, mas imaginária, e que por fim, ela não

faz mais do que atestar uma dificuldade, sem dúvida instransponível, sem dúvida

ontológica, da democracia em se tornar legível por si mesmo; assim com atesta uma

dificuldade para o pensamento político, filosófico, de assumir sem transmutações, o

trágico da condição moderna?

Morte da Imortalidade?

Segundo o autor, imortalidade é uma questão de importância política; negar a

imortalidade, ou então, afirmá-la, é preciso para ser um verdadeiro republicano,

democrata ou socialista. Vitor Hugo e Pierre Leroux detêm, cada um a sua maneira uma

justa ideia a respeito – condição primordial para a inteligibilidade e a edificação da

sociedade futura. O primeiro se irrita como a religião da humanidade que dissolve a

identidade do indivíduo, absorve-o em vida no coletivo e o suprime depois da morte. O

segundo se diverte com as conversas tramadas entre os espíritos. Conclusão que mostra

ser tanto política quanto filosófica ou teológica, que quanto mais a liberdade se estende,

mais o homem deve responder pelo que fora; quanto mais coisas realizadas em vida

mais coisas deixadas para ser feitas no tumulo. E afirma-se que o cidadão tem toda

precisão de ser imortal. Há um debate em torno da imortalidade. Contrariamente ao que

insinua Hugo, para Leroux a imortalidade não se vincula nem a humanidade real nem a

uma humanidade ideal. Não existe separação entre visível e invisível; não existe

invisível que se circunscreva no espaço, ou então, no tempo, em uma vida futura

separada da vida presente; não há representação da imortalidade que possa estar

Page 53: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

desligada da experiência de uma presença do homem no homem através da história, de

uma iniciação à fala no uso da leitura e da escrita. Destacando a estranheza do

pensamento de Hugo, Leroux, Saint-Simon, Ballanche sobre a imortalidade, ele toma o

pensamento de Tocqueville sobre o assunto por ser mais sociológico. Ele ao comparar a

sociedade aristocrática com a sociedade democrática, vê a transformação ocorrida tanto

na concepção do tempo quanto na concepção do espaço coletivo. Que rompe com essa

transformação a noção, de um tempo imutável. (p.298-299) Ao qual a democracia o

leva ininterruptamente a si mesmo e ao cabo, ameaça confiná-lo inteiramente na solidão

de seus sentimentos. Assim segundo ele, o desejo de se evadir do mundo nasceria da

busca de bem estar, suscitada de modo cada vez mais imperioso pela democracia,

nasceria de um gozo frustrâneo dos bens materiais, nasceria de um confinamento de

cada qual em seus limites dos quais não se quer, ao que parece deixá-lo sair. E por outro

lado abriria espaço para um misticismo instalando-se à margem do ideal comum de

felicidade mundana, em busca do possível, em reação contra a voragem no real, a

aqui e agora. (p.300) Tocqueville está preocupado com a crença, na crença na

imortalidade, de como as religiões são meios simples e práticos de ensinar aos homens a

imortalidade da alma. O que para ele é proveitoso a um povo democrático. Tocqueville

diz então: “a crença em um princípio imaterial e imortal, unido por um tempo à matéria,

é tão necessária à grandeza do homem que ainda produz belos efeitos, quando não se

agrega a opinião das recompensas e das penas e quando se limita a crer que após a

morte, o princípio divino encerrado no homem, é absorvido por Deus ou vai animar

uma outra criatura.” (p.302) Tomando a imortalidade, título de um fragmento de

Minima Morália de Adorno, bem como o estudo de Phillippe Ariès, Lefort analisa a

transformação do significado e representações da morte na sociedade – no trato social

no evento de morte –, morte da ideia de morte. Afirmando que ela tem-se dissolvido

com o fenômeno na banalidade do cotidiano. Colocando em contrapartida que esse

fenômeno gera segundo Ariès, na realidade, no fundo de nós mesmos, nós nos sentimos

não mortais. Lefort indaga: denegação da morte denegação da imortalidade não seriam

em nosso tempo duas faces de um mesmo fenômeno? Como a denegação da

imortalidade, sem ser reconduzido desarrazoadamente a sua afirmação? Segundo o

autor o interdito parece enorme, incontornável. Qual é seu objetivo: o fato da

imortalidade ou algo tendo esse nome que seria o não-mortal. Nesse imbróglio entende

ele que, na verdade a negação da mortalidade não equivale à afirmação da imortalidade.

Entretanto, é sinal de um não sei o quê que se presta ao substantivo: a não-morte. Lefort

Page 54: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

volta à fórmula de Adorno: morte da imortalidade. Para ele o jogo de palavras suscita

uma inquietação. Não apenas demonstra que a crença na imortalidade desapareceu, mas

também sugere, absurdamente, que houve imortalidade. Pois o fato é que a palavra não

foi banida de nossa linguagem; nem foi suprimido o pensamento que a expira, não

cremos na imortalidade, antagonicamente, mas não apenas admitimos que antigamente

os homens faziam da imortalidade um objeto de crença, como também qualificamos

alguns homens como imortais. Para ele a imortalidade está vinculada a personagens cuja

obra ou ação não se esgotou com efeitos efêmeros, mas parece ter contribuído de uma

maneira ou de outra, para determinar o rumo da humanidade – poder de terem decidido

sobre o sentido da história. Assim não há paradoxo, assim há um paradoxo, a

imortalidade desapareceu e, no entanto, ela subsiste. (p.304-306)

Portanto conclui Lefort, não é apenas pela comunicação entre os vivos e pelo

entrelaçamento de suas percepções que o mundo se libera como mundo comum, mundo

exterior. O mundo apenas o é por surgir da fratura produzida pela morte, por trazer

consigo o vestígio em uma profundeza da visão do morto. Sua instituição não se

dissocia da instituição na qual retorna, para o homem a partir de outro homem, perdido

e nomeado, a certeza da perenidade do que é. Diante da questão da imortalidade e sua

eventual desaparição ou semidesaparição, em The Human Condition de Hannah Arendt,

distingue e opõe imortalidade e eternidade. A eternidade é reconhecida quando os

homens não concebem outro mundo a não ser o mundo em que habitam, mundo que

traz consigo a evidência de sua perenidade. Imortalidade, significa duração, vida

perpétua sobre a Terra, neste mundo tal como é desfrutada, pela natureza e pelos deuses

do olimpo. Por isso, enquanto indivíduos é que eles aspiram a participar da natureza

divina, produzindo obras, feitos, falas, que deixam uma marca imperecível. Tal certeza

da duração sem fim do mundo e dos seres superiores seria destruída com a religião

cristã, com a nova noção de um Deus transcendente, de um lugar fora do mundo onde o

homem encontraria uma pousada eterna, em vista do qual o tempo da vida terrestre não

mais contaria. Para Arendt essa destruição se anuncia na antiguidade, no nascimento da

filosofia, quando se afirma a excelência da vida contemplativa em detrimento da vida

ativa. O acontecimento parece decisivo para ela, por revelar o laço que mantinha a ideia

de imortalidade, não apenas com a ideia de vida no mundo, mas também com a ideia de

vida política. Quando o homem deixa de encontrar sua definição ao participar na cidade,

na relação entre iguais, desaparece sua esperança de imprimir algo de si na duração. A

imortalidade se deve a instauração, ao desenvolvimento do espaço político. A vida

Page 55: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

político no sentido conferido por Arendt, tal como se reconhece na cidade grega,

constitui a forma superior da condição humana. Assim, a perda do sentido da

imortalidade coincide com a perda do sentido dessa condição. Segundo Lefort o

desaparecimento do domínio público em nossa época, em certo sentido parece ser uma

consequência indireta da desvalorização do mundo terrestre pelo cristianismo. A

renúncia cristã às coisas deste mundo pode intensificar o gozo e o consumo, todas as

relações nas quais o mundo não é principalmente concebido como Koinon, como bem

comum de todos. A hipótese de Arendt, segundo a qual a noção de um tempo indefinido

sem homens ou obras humanas, mostra-se como sendo rigorosamente solidário ao

arranjo de um espaço por direito aberto a todos, destacando-se do conteúdo social e

dando a cada um uma visibilidade universal. O desdobramento do tempo acompanharia

a primeira clivagem entre o domínio privado e o domínio público. Segundo Lefort é

inútil seguir o argumento de Arendt, procurar no fundamento da crença na imortalidade

uma inquietude religiosa ou metafísica. O que ela sugere é que o homem emigra de sua

imagem, uma vez que ele aparece na cena pública, ele não mais se pertence enquanto

indivíduo, e mortaliza-se vivo, até mesmo enfrentando a morte, seja qual for a

representação de sua destinação. (p.308-309) Sua crítica esta sob a formula de Arendt,

Eternity versus Immortality, por mais sugestiva que seja, torna-se enganosa, já que leva

a ignorar a persistência e a transformação de uma ideia da imortalidade, sob o efeito da

crença em um outro mundo. Ela só retém da religião cristã a desvalorização da vida

terrestre, e a obra do cristianismo deve ser lida nos dois sentidos: a noção de uma

decadência do homem, espiando por sua condição de mortal, o pecado original,

conjuga-se com a noção da encarnação do divino homem. (p.311)

É em Florença que se elabora uma ética ativa (em oposição à vida

contemplativa), da restauração do poder do homem no mundo e do civismo. No

humanismo florentino é dupla a tentativa de elevar à imortalidade a pátria florentina e

os cidadãos que contribuíram para sua grandeza, tentativa sobre a qual se pode

legitimamente pensar que se tornou possível, na época, pela formação de um espaço

público, de uma cena política. Com o humanismo inaugura-se um sentido da História,

um sentido da diferença de tempo, um mundo antigo não é descoberto, ele não era

percebido como um mundo diferente; por isso, o que é chamado de retorno à

Antiguidade implica a sua instauração, instauração de um passado à distancia de um

presente. A experiência de separação temporal condiciona a comunicação, ou em sua

forma extrema a identificação com os Antigos, e ao mesmo tempo, uma abertura ao

Page 56: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

futuro pela ação, pelo conhecimento, pela arte, pela pedagogia, por uma criação à qual a

criação do passado confere uma legitimidade. No mesmo movimento, os humanistas

concebem-se como herdeiros e se dão uma posteridade. A dignidade da vida ativa alia-

se à dignidade da vida do cidadão, porém em geral, institui-se em função de uma nova

relação com a obra. Segundo Lefort, Hanna Arendt não parece sensível a esse

acontecimento (p.312-313) Ele afirma que, apenas a ideia de permanência não dá conta

desse pensamento que parece nascer com o humanismo: o da contemporaneidade das

obras na diferença de tempo; o de uma conjunção do que já não é comum com o que

ainda não é. E ainda, a consciência da Antiguidade como mundo diferente implica para

os humanistas uma ruptura cujos efeitos são ambíguos, já que induz à emancipação das

autoridades estabelecidas em todos os domínios da vida, a uma reivindicação da criação,

a um tomar posse do presente; o humanismo abre uma via a duas concepções de

imortalidade. A obra do humanismo se imbrica com a obra do cristianismo para

“fabricar” transcendência no mundo. Encarrega-se de um sentido político e religioso,

tanto como a noção de soberania do príncipe ou da nação que vem alicerçar-se numa

cultura erudita e na teologia. (p.314)

E sua crítica a Arendt se estende: “mas, é impressionante que a ressurreição da

Antiguidade, por novos artifícios, servindo a novos fins, só surja, para ela, sobre essa

única luz; impressiona que ela se encante com a formula de Roberspierre, a morte é o

começo da imortalidade, sem se inquietar com a postura do herói, como a nova mise em

scene da política, da cultura e da História, cuja função é fazer com que a Revolução

brilhe acima do vulgo.” (p.3315)

O humanismo desvenda uma outra noção de imortalidade que não esta sujeira à

representação da soberania, mas se libera sob o signo da conversa. Como exemplo cita

Maquiavel ao conversar com os clássicos Tito Livio, Tácito, Aristóteles, Xenofonte. Ele

a define na ausência de toda a referencia a Deus, à separação entre o céu e a terra, é

figurada a divisão entre um aqui e um além nos limites desse mundo; entre o lugar

trivial onde se habita em companhia dos vivos e o lugar da imortalidade. A experiência

que desmancha os limites do tempo, ao passo que a conversa institui, na dualidade entre

questão e resposta, entre falar e ouvir, a singularidade indissolúvel de alguém ou de algo

em um outrora e um agora. Em tal experiência não há de modo algum imortalidade que

se sobreleva, bem ao contrario uma travessia do tempo que atesta sua espessura e a

reversibilidade de seus momentos sobre a superfície do sempre mutável. Essa é a ideia

segundo a qual o que não morre se dissocia da ideia da soberania do ser imortal – ideia

Page 57: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

que se vincula, segundo dizíamos, à ideia de uma potencia acima dos homens, a ideia de

um corpo invulnerável que fornecia a todos a imagem da sobrevivência. (p.317)

Retornando a questão central, Lefort afirma que muitos sinais atestam a

persistência da visão teológica-política do corpo imortal. Destacando que a concepção

humanista da imortalidade gloriosa floresce com a emergência da burguesia. Ela

beneficia-se de novos recursos graças a uma elaboração da História nacional e da

História da humanidade e de uma legitimação do indivíduo, cujo esboço encontra-se no

século XV, ou no XVI. Permanecem plenamente visíveis os antigos vestígios do

trabalho para imprimir a nação, a instituição, o indivíduo, em tempo monumental, para

consagrar a Razão e o Direito – o Direito cujos “princípios imortais” são afinal

estabelecidos em 1789 –, para fixar na memória coletiva nomes imperecíveis, para

transmitir as gerações futuras. Bem como a função ininterrupta do discurso servindo à

produção da imortalidade. Segundo ele são incomparáveis os meios empregados,

retóricos e pedagógicos, que fazem da crença na imortalidade a garantia da perenidade,

não apenas de um regime, de uma constituição, de instituições definidas – a começar

pela instituição familiar –, mas também da civilização. E analisa que se a crença requer

tão imperiosamente ser posta em formulas, em imagens eloqüentes, é porque os homens

são possuídos pela ideia de uma dissolução do social – ameaça da qual implicitamente,

e na maioria das vezes, explicitamente, a democracia mostra ser portadora. Lefort

levanta a seguinte questão: se se quiser admitir que a imortalidade soberana mantém

uma ligação com a legitimidade ultima do corpo político e, durante séculos, com a

legitimidade monárquica, como poderia a imortalidade não se tornar frágil após o

desmoronamento da monarquia, e alem do mais, após o trágico insucesso de um poder

terrorista, que prometeu encarnar a Razão e Justiça eternas? E a responde colocando

que: a burguesia procura febrilmente dotar-se de novos títulos de legitimidade e,

simultaneamente, deixar reconhecer sua vocação para a imortalidade; mas ela não

poderá elevar-se sem sentir o vazio sob seus pés. O poder ao qual dá sua adesão – o

poder representativo – já não se incorpora à sociedade; o século no qual quer inscrever

os símbolos de sua duração também não se incorpora aos séculos interiores. (p.318-319)

E expressa que, se ainda se quer admitir por outro lado que a vinculação a seres e coisas

imperecíveis se alicerça na experiência da continuidade das gerações, costumes e

tradições, como não ficar surpreendido com o contraste entre a lembrança dessa

permanência, preocupação em estabelecer os sinais da permanência, e a visão nova de

mudança, de aceleração da produção, de circulação das mercadorias, disseminação das

Page 58: 66716798 LEFORT Claude Pensando o Politico Ensaios Sobre Democracia Revolucao e Liberdade

heranças, multiplicação das propriedades, mobilidade das condições, afinal: de turbilhão

no qual são arrebatados as posições adquiridas, os costumes e as ideias. (p.320)

Segundo ele a imagem da imortalidade gloriosa renasce preciosamente no século

XIX; e assim Lefort coloca, será porque permanecem herdeiras desse humanismo

discreto, sobre o qual dízimos que não sede ao êxtase, que se faz, mediante a provação

da conversa, pela provação pelo reconhecimento dos homens e das suas obras através do

tempo? Por um lado sem dúvida. Porém, a noção da diferença de tempo já não é a

mesma, uma vez que a própria noção de tempo mudou, já que se tornou sensível, mais

próxima, a fratura entre o antes e o depois, uma vez que, sobre o efeito dessa fratura

todo o passado da humanidade é que reemerge, vê-se convocado no presente e,

simultaneamente, dá sinais do mundo em desaparição. O passado ressurge carregado de

sentido, porém marcado pelo sinal da perda. (p.321)

Analisando os escritores do século XIX, coloca em conclusão que; o que era

ainda dizível, mais liberto de toda ênfase, tornou-se com muita freqüência, indizível.

Mas, o que é indizível nem por isso está morto, e não necessariamente é sinal de uma

degradação. Refutando assim a morte d imortalidade.