66 - A filha do Barba-Azul

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Um d'Os 100 Melhores Contos de Crime e Castigo da Literatura Universal.

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66 A FILHA DO BARBA·AZUL

LOUIS COUPERUS (1863-1923 - Holanda)

(Mãe, a senhora lembra que o Barba-Azul era aquele sultão muito rico que matava as suas esposas ?)

O seu nome era Fatma, e ela vivia numa das suas mansões perto de Bagdá. Ela era a filha do Barba-Azul, do primeiro casamento, e era uma mulher de beleza maravilhosa; ao redor de seu rosto branco enluarado ondulava o cabelo azul, caindo como um manto sobre os seus ombros frágeis ...

Não é sabido, em geral, que o Barba-Azul tinha uma filha. A maioria das pessoas acredita que ele foi assassinado, sem filhos, pelos irmãos da última mulher, que teriam herdado toda a sua fortuna. Se as pessoas tivessem, como eu, perpassado os arquivos secretos da história, teriam descoberto, sem grandes dificuldades, que o Barba-Azul morreu, o crânio fendido em dois, nos braços da filha, e deixando-lhe todos os seus bens.

A jovem órfã, a encantadora Fatma, amara muito ao pai, assim como ele fora muito afeiçoado a ela, ainda que ela nunca tivesse conseguido aceitar a maneira

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pela qual ele se livrava de suas muitas esposas desobedientes. Achava que o método não era gentil, não era nobre, e ainda psicologicamente monótono. Ela compreendia perfeitamente que cada nova madrasta não podia mais do que ceder à tentação da curiosidade. Não perdoava a conduta do pai, e a encarava como um ato indesculpável de sadismo.

A Fatma cacheada de azul permaneceu uma solitá-ria jovem órfã, em meio à sua incalculável riqueza e a todos os seus criados e escravos, que a circundavam qual uma corte real. As famílias de destaque de Bagdá, na corte do califa, falavam freqüentemente sobre a menina de cabelo azul, rica, jovem, que, apesar de seus incontáveis tesouros, ninguém a queria como noiva de um filho ou sobrinho. Seus cachos muito lembravam casos de horror. Permanecia então sozinha a bela Fatma, nos seus terraços de ônix, que submergiam dentre pomares de tamareiras e jardins de rosas, até lagos de cristal ... E ela vagava sozinha entre as colunas de ônix das arcadas, em retorno ao seu palácio de verão, que, pavimentado de lajes de prata e ouro, era também encimado por telhas de ouro e prata.

Até que ela não agüentou mais a solidão, e tomou-se de um amor puro pelo capataz do seu jardineiro. Era um rapaz muito bonito, vindo do interior, e a rusticidade de seu trabalho lhe dava, aos olhos de Fatma, um tanto cansada de excesso de refinamento, um charme irresistível. Tanto que ela o esposou, sem se preocupar com o que falariam dela na corte do califa, ou nos distintos círculos de Bagdá.

Fatma parecia muito feliz. Mostrava-se com o marido com toda a magnificência e elegante esplendor

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na cidade e no campo, nas gôndolas atapetadas nos lagos, em liteiras acolchoadas nas ruas, com um séquito de escravos nos bazares e até nas festividades da corte, nas quais a sua riqueza e posição permitiam-lhe acesso. Ela e seu amado Emin formavam um casal magicamente belo; ele, forte e jovem, na glória da sua nova riqueza - o tipo emergente ainda não existia naqueles dias -, ela, irradiante de amor e do brilho de jóias de inestimável valor, que cintilavam no seu turbante de gaze e nas bordas do seu manto, enquanto pérolas maravilhosamente grandes brilhavam nas suas madeixas azuis. E as famílias distintas de Bagdá começaram a sentir pena de não terem se esforçado para ganhar a filha do Barba-Azul para um filho ou sobrinho ...

De repente, contudo, espalhou-se a notícia de que Emin havia morrido ... Logo no dia anterior, todos os habitantes de Bagdá o haviam visto na mesquita, e olhem, agora ouviam ... que ele tinha morrido! Um arrepio atravessou a cidade, mas o grão-vizir e o lorde-chefe de Justiça não viram razão para tomar pé da questão, uma vez que o boato bastante plausível que corria era que Emin teria, naquele dia muito quente, comido melancia demais, e havia morrido depois de violenta cólica.

Mas o povo de Bagdá espantou-se quando, três meses após, soube que a jovem viúva de cabelo azulado estava novamente para casar, dessa vez com o tenente de sua própria guarda de segurança. Dentre tantos serviçais e atendentes, parecia que Fatma tinha uma escolha muito mais ampla a considerar que os filhos e sobrinhos das distintas famílias de Bagdá. O

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casamento ocorreu com fantástico esplendor, e o novo marido de Fatma encheu-se de glória, assim como ocorrera com Emin, agora que se via tão repenti-namente elevado de uma posição humilde para ser o marido daquela mulher transcendentalmente linda e rica.

O jovem tenente, porém - Fatma o havia feito general da sua guarda -, morreu subitamente, como foi divulgado, de uma queda de cavalo. Foi uma notícia meio vaga, além do que ninguém vira o jovem tenente-general da guarda de Fatma nem no seu cavalo, nem caindo dele, nem ninguém o havia visto no dia da sua morte, e uma violenta comoção espalhou-se pelas famílias de Bagdá e na corte do califa, porque muito bem era relembrado que Fatma tinha os cabelos azuis, assim como seu pai um dia tivera a barba azul.

A pesarosa viúva Fatma, nos seus negros véus de luto, resplandecente em diamantes negros, parecia uma Rainha da Noite, especialmente quando seus cabelos eram vislumbrados através dos véus de luto com uns tons tão sugestivamente noturnos que poderia, sem qualquer disfarce, aparecer na Flauta Mágica, de Mozart.

Contudo, ela não cantou a pesada e difícil coloratura, preferindo assumir um novo marido; desta vez, simplesmente um dos carregadores do seu palanquim. Que o jovem Ali era um sujeito magnífico, que sabia, como terceiro marido, mostrar-se no samaar adamascado como um jovem sultão, não poderia ser negado, porém, o que foi questionado pelas ilustres famílias de Bagdá na corte do califa foi se, após três meses de vida de casado, teria ele morrido de morte

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natural. O quê! Um sujeito tão forte, de boa saúde como o marido carregador de palanquim de Fatma, morrer de malária - era o que se dizia - e ser enterrado assim, tão reservadamente! Cabeças balançavam umas às outras, olhos abertos de horror, bocas se retorciam em suposições secretas, e o grão-vizir consultou-se com o lorde-chefe de Justiça se não deveriam intervir no caso de Fatma; caso em que um marido após o outro morrera e desaparecera depois de três meses de matrimônio.

Contudo, consultaram-se tão longamente que Fatma casou-se uma quarta, uma quinta e sexta vez. A quarta vez foi com um mercador persa, de Teerã, para quem uma longa vida havia sido vislumbrada das linhas da mão; a quinta vez, um dos seus gondoleiros; a sexta vez, um humilde escravo que trabalhava na mina de esmeraldas de Fatma. A cada vez, após três meses, morria o desgraçado marido, e a pesarosa viúva percorria Bagdá como a Rainha da Noite.

Então o cálice pareceu transbordar. O grão-vizir e o lorde-chefe de Justiça rumaram para a casa-de-prazeres de Fatma, mas parece que ela se retirara para outra residência. Pois ela tinha muitas: a de terraços de ônix, a com o salão de baile de madrepérola, a com torres douradas, para não falar daquela com o banheiro de ágata, a com a fonte de mercúrio, e aquela com as bibliotecas secretas, cheias de conhecimentos ocultos ... De forma que o grão-vizir e o lorde-chefe de Justiça, depois de se arrastarem de uma casa-de-prazer a outra, sem melhor sorte, finalmente encontraram Fatma em casa, na casa-de-prazer do conhecimento ...

Ela os recebeu ligeiramente aborrecida. Não estava

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como a Rainha da Noite; a viúva de cabeleira azulada de seis maridos, linda, mais parecia uma Ave do Paraíso, nos seus brancos véus transparentes, mas, no caso, uma ave ligeiramente aborrecida.

- O que desejam? - perguntou com altivez.

- Saber a causa da morte dos seus seis maridos.

- Vão começar suas investigações - perguntou Fatma - pelo meu sexto marido?

- Ascenderemos ao seu primeiro! - ameaçaram os dignitários.

- Por que não chegar ao meu último? - disse Fatma - e eu tenho apenas isso a dizer aos senhores - que eu não tenho muito a dizer. Meu sexto marido morreu ... de febre terçã ...

Os dignitários já estavam para replicar zangada-mente, mas nesse momento apareceu de repente o próprio homem das minas de esmeraldas, o sexto marido de Fatma. Parecia saudável, forte e cordial, e carregava alguns papéis debaixo do braço.

- O que é isto? - exclamaram os nobres cavalheiros.

Fatma encolheu os frágeis ombros.

- Significa apenas - condescendeu explicar - que o querido menino não está morto. Ele é apenas um tanto ignorante e, assim, para melhorar seus poderes de linguagem, eu o trouxe a esta Biblioteca Secreta, onde ele pode ler à vontade ...

- Mas - os olhos do grão-vizir repentinamente se abriram - e os seus outros cinco maridos, então, ó Fatma barba-azulada, digo, cabeleira-azulada?

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- Estão vivos - admitiu ela - assim como o meu marido-mineiro. Porém, eu enclausurei o meu marido-gondoleiro na casa-de-prazer das fontes de mercúrio para ensiná-lo a ser um tanto mais rápido na sua ocupação de marido-gondoleiro, pois ele freqüentemen-te era muito lerdo ao remar o barco matrimonial no lago do amor; e mercúrio, administrado em pequenas doses, faz o sangue fluir nas veias; o meu mercador persa ainda prolonga a sua vida, que será muito longa, na minha vila com o banheiro de ágata, porque às vezes ele cheira desagradavelmente como os seus camelos; o meu esposo palanquim, eu o tranquei na minha torre dourada, porque o patife flertava com as mulheres, e eu queria mantê-lo só para mim. Há ainda o meu tenente-general; com ele, senhores, valso todas as noites no meu salão de baile de madrepérola; ele dança gloriosamente e não seria certo que tão íntimo prazer fosse consumado na frente de todo mundo; de forma que o meu querido aguarda quietamente no salão de baile madrepérola, até que eu o destranque ... E, para falar a verdade, meu primeiro menino é o meu mais querido; os senhores sabem, o jardineiro, e, honestamente, ele também ainda está vivo, e mora perto dos terraços de ônix, de modo que eu possa facilmente alcançá-lo, sempre que sinto sua falta. Os senhores parecem surpresos, cavalheiros, mas assim é. Sabem, eu sou filha do Barba-Azul e puxei a ele, na alma e nas tranças. Ele sentia desejo por muitas esposas, eu sinto desejo por muitos maridos. Mas ele matava as esposas, sob o pretexto de que o desobedeciam. Eu nunca matei meus maridos. Eu preferi trancá-los, para civilizá-los e ter poder sobre eles. Se sou histérica, tenho também muito de feminis-

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ta; e sou uma mulher sob todos os aspectos. Que mais querem saber?

E a orgulhosa Fatma manteve-se altivamente ante os dois dignitários do Califa.

Porém estes, inesperadamente, chamaram seus servos e ordenaram:

- Prendam esta mulher ruim e levem-na ante o Conselho dos Mais Elevados.

E assim aconteceu. Fatma, a filha do Barba-Azul, foi arrastada por todas as ruas e por todas as praças de Bagdá até o conselho do Califa, que a condenou a colocar sua cabeça cacheada de azul na guilhotina.

É estranho - pensou Fatma, quando foi entregue às mãos dos carrascos -, meu pai assassinou suas esposas e foi muito censurado por isso. Eu mesma opus-me à sua conduta ... Eu, sua filha, nunca assassinei meus maridos: cuidei deles amorosamente, alimentei-os, civilizei-os, desenvolvi seus talentos, verdade seja dita que de uma maneira meio segregada, em meio a jardins de ônix, torres douradas, salões de baile de madrepérola e tudo o mais, e essa concepção de casamento, por mais que bem elaborada, também enfrenta desaprovação.

É estranho - continuaram seus pensamentos - mas eu acredito, eu tenho quase certeza, que não é possível satisfazer a opinião pública em questões de amor e casamento ... quando se tem cabelos azuis ou barba azul ...

E um tanto entristecida por esta irrefutável consta-tação filosófica, ela abaixou a cabeça cacheada de azul

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para a guilhotina ...

Tentou resolver o problema no último segundo.

Mas falhou, pois suas últimas idéias fluíram, numa corrente púrpura, pela fenda do seu pescoço.

E a cabeça de cabeleira azul da filha do Barba-Azul ficou em sangue, no chão do salão de justiça.

Após o que, os seis maridos herdaram sua fortuna.

Tradução de Fani Baratz