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CADERNOS ESPINOSANOS

Estudos sobre o século XVII

XVSão Paulo – 2006ISSN 1413-6651

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Cadernos Espinosanos /Estudos sobre o século XVIISão Paulo: Departamento de Filosofia da FFLCH-USP,

1996-2006.Periodicidade semestral. ISSN: 1413-6651.

Ficha Catalográfica

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Editora Responsável InstitucionalMarilena de Souza Chaui

Editora ResponsávelTessa Moura Lacerda

Comissão EditorialEduardo Baioni, Henrique Xavier, Luís César Oliva.

Conselho EditorialAtilano Domínguez (Univ. de Castilla-La Mancha), Bento Prado Júnior (UFSCar/USP), Diego Tatián (Univ. de Córdoba), Diogo PiresAurélio (Univ. Nova de Lisboa),Franklin Leopoldo e Silva (USP), Jacqueline Lagrée (Univ. de Rennes), Maria dasGraças de Souza (USP), Olgária Chain Féres Matos (USP), Paolo Cristofolini(Scuola Normale Superiore de Pisa) e Pierre-François Moreau (École NormaleSupérieure de Lyon).

Publicação do Grupo de Estudos Espinosanos e de Estudos sobre o Século XVII

CADERNOS ESPINOSANOSESTUDOS SOBRE O SÉCULOXVIIN. XV, JUL-DEZ DE 2006 –ISSN 1413-6651

Endereço para correspondência:Profa. Marilena de Souza ChauiA/C Grupo de Estudos EspinosanosDepartamento de Filosofia – USPAv. Prof. Luciano Gualberto, 31505508-900 – São Paulo-SP – BrasilTelefone: 0 xx 11 3091-3761 – Fax: 0 xx 11 3031-2431e-mail: [email protected]

Universidade de São PauloReitora: Suely VilelaVice-Reitor: Franco Maria Lajolo

FFLCH - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências HumanasDiretor: Gabriel CohnVice-Diretora: Sandra Margarida Nitrini

Departamento de FilosofiaChefe: Moacyr NovaesVice-Chefe: Caetano Ernesto PlastinoCoordenador do Programa de Pós-Graduação:Marco Antônio deÁvila Zingano

Capa: Camila MesquitaEditoração eletrônica: Pablo Enrique Abraham ZuninoTiragem: 1000 exemplares

AComissãoEditorial reserva-seodireitodeaceitar, recusarou reapresentarooriginalaoautorcomsugestõesdemudanças.

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O Grupo de Estudos Espinosanos do Departamento de Filosofiada Universidade de São Paulo, em 2004, completou 10 anos.Ao longodeste período, diversas atividades foram desenvolvidas e procurou-sefazer o registro delas para, como diz Espinosa, tentar contornar asforças do “tempo voraz que tudo abole da memória dos homens”. OsCadernos Espinosanosse inspiram nesse propósito.

Desde o número X, dedicado ao Professor Lívio Teixeira, osCadernosestão dedicados também aEstudos sobre o século XVII,seu subtítulo. O que, na verdade, expressa algo que já acontecia naprática, pois textos acerca de vários outros filósofos do período sempreestiveram presentes a cada edição.

O objetivo destesCadernoscontinua sendo publicarsemestralmente trabalhos sobre filósofos seiscentistas, constituindoum canal de expressão dos estudantes e pesquisadores deste e de outrosdepartamentos de Filosofia do país.

Porque destinados a auxiliar bibliograficamente aos queestudam o Seiscentos, tanto para os trabalhos de aproveitamento decursos, quanto para a elaboração de outros projetos de pesquisa, estesCadernostambém publicarão, regularmente, ensaios de autoresbrasileiros e traduções de textos estrangeiros, contribuindo com oacervo sobre o assunto.

Esperamos que esta iniciativa estimule os estudos sobre osfilósofos daquele período a que esta publicação é inteiramente dedicadae permita criar ou ampliar a comunicação entre os que estão envolvidoscom a pesquisa desses temas, incentivando, inclusive, outrosdepartamentos de Filosofia a colaborar conosco no desenvolvimentodeste trabalho.

Franklin Leopoldo e Silva

AAAAAPRESENTPRESENTPRESENTPRESENTPRESENTAÇÃOAÇÃOAÇÃOAÇÃOAÇÃOAAAAAPRESENTPRESENTPRESENTPRESENTPRESENTAÇÃOAÇÃOAÇÃOAÇÃOAÇÃO

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SSSSSUMÁRIOUMÁRIOUMÁRIOUMÁRIOUMÁRIOSSSSSUMÁRIOUMÁRIOUMÁRIOUMÁRIOUMÁRIO

1. A ÚLTIMA METAFÍSICA DE LEIBNIZ E A QUESTÃO DO IDEALISMO

Michel Fichant 09

2. UNIVERSALIDADE E SIMBOLIZAÇÃO EM LEIBNIZ

Franklin Leopoldo e Silva 41

3. BONDADE DIVINA E CONTINGÊNCIA EM LEIBNIZ

Luís César Oliva 59

4. LEIBNIZ: EXPRESSÃO ECARACTERÍSTICAUNIVERSAL

Tessa Moura Lacerda 87

5. AFILOSOFIA ESPINOSANA PARA ALÉM DO CORPO-MÁQUINA: O PARALELISMO

EM QUESTÃO

Ericka Marie Itokazu 111

6. DESCARTES E A“ REFLEXÃO ESPESSA” : UMA LEITURA MERLEAU -PONTIANA

DO DUALISMO CARTESIANO

Silvana de Souza Ramos 139

7. NOTÍCIAS 153

8. CONTENTS 157

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MICHEL FICHANT

A última metafísica de Leibnize a questão do idealismo*

MICHEL FICHANT**

Résumé:La question de la nature et du sens d’un “idéalisme leibnizien”

se trouve, depuis plus d’une vingtaine d’années, au centre d’un granddébat dans les études leibniziennes, principalement anglo-saxonnes.La conception la plus conséquente et la plus radicale d’un tel idéalismea été exposée par Robert Merrihew Adams (Leibniz, Determinist,Theist, Idealist, 1994): “Le principe le plus fondamental de lamétaphysique de Leibniz est que ‘il n’y a rien d’autre dans les chosesque les substances simples et, en elles, les perceptions et les appétitions’.Cela signifie que les corps, qui ne sont pas des substances simples,peuvent seulement être construits à partir des substances simples etde leurs propriétés de perception et d’appétition” (p. 217).

Ce débat en rencontre un autre, qui porte sur la reconnaissancede périodes dans la formation de la métaphysique leibnizienne et sur lepoint de vue qui permet d’en rendre compte de la façon la plus adéquate:expression constante d’un « Système de Leibniz » invariant dans sesthèses et sa structure, ou plutôt recherche ouverte où l’inventionconceptuelle ne se referme jamais sur une formule systématique unique?En effet, ceux-là même qui ont voulu reconnaître une période des“années moyennes” (Daniel Garber), où Leibniz n’aurait pas adhéré àl’idéalisme, ont généralement concédé que la dernière métaphysique,celle qui se déploie proprement selon la thèse monadologique, estbien caractérisée finalement par cette adhésion.

* Versão de uma conferência proferida na Universidade de São Paulo, em 16 deoutubro de 2006. Agradeço imensamente Tessa Lacerda por sua tradução para oportuguês.** Professor da Sorbonne (Paris 4).

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Je me propose de développer les arguments suivants :1. Du point de vue génétique, la thèse monadologique répond

bien originellement à la requête d’un fondement de la réalité des corps.2. Les développements de la métaphysique leibnizienne de la

dernière période (après 1700) ne donnent pas congé à la recherche decaractérisation d’une vraie “substance corporelle”.

3. C’est la spécificité de ce qu’il appelle l’ “Organisme” quiretient Leibniz de laisser le dernier mot à un idéalisme tel que celui qui

lui est attribué. Si idéalisme il y a, il faut l’entendre en un autre sens.

Resumo:A questão da natureza e do sentido de um “idealismo

leibniziano” encontra-se, já há vinte anos, no centro de um grandedebate nos estudos leibnizianos, principalmente anglo-saxões. Aconcepção mais conseqüente e mais radical desse idealismo foi expostapor Robert Merrihew Adams (Leibniz, Determinist, Theist, Idealist,1994): “o princípio mais fundamental da metafísica de Leibniz é quenão há nada mais nas coisas que substâncias simples e, nelas, aspercepções e as apetições” (p. 217).

Esse debate encontra um outro sobre o reconhecimento deperíodos na formação da metafísica leibniziana e sobre o ponto devista que permite dar conta desses períodos da maneira mais adequada:expressão constante de um “Sistema de Leibniz” invariável em suasteses e sua estrutura, ou, antes, pesquisa aberta na qual a invençãoconceitual não se fecha nunca em uma fórmula sistemática única? Comefeito, mesmo aqueles que quiseram reconhecer um período de “anosintermediários” (Daniel Garber), durante o qual Leibniz não teriaaderido ao idealismo, geralmente concederam que a última metafísica,aquela que se desenvolve propriamente segundo a tese monadológica,está, finalmente, bem caracterizada por essa adesão.

Proponho-me desenvolver os seguintes argumentos:1. Do ponto de vista genético, a tese monadológica responde

originariamente à exigência de um fundamento da realidade dos corpos.2. Os desenvolvimentos da metafísica leibniziana do último

período (depois de 1700) não dispensam a caracterização de umaverdadeira “substância corporal”.

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3. É a especificidade do que chama de “Organismo” que impedeLeibniz de deixar a última palavra a um idealismo tal como o que se

atribui a ele. Se há idealismo, é preciso entendê-lo em outro sentido.

* * *

Uma experiência ora bastante longa convenceu-me da estreita

complementaridade que associa as maiores apostas interpretativas,

feitas pelos grandes pensadores da história da filosofia, ao tratamento

técnico o mais rigoroso dos problemas postos pela constituição dos

textos, sua recepção, sua edição.

Os estudos leibnizianos oferecem, hoje ainda, um caso exemplar

dessa complementaridade. Estes são caracterizados pelo fato maior

de que não existe ainda uma edição das “Obras completas de Leibniz”.

O corpusdos escritos de Leibniz está imerso em uma massa de mais

de dois metros cúbicos de papéis, conservados, a maior parte, na

Biblioteca regional de Hannover, sob a forma de minutas de cartas,

notas de leitura, esboços mais ou menos elaborados, que vão desde

uma folha de papel de alguns centímetros recoberta por uma reflexão

prematura até conjuntos acabados, várias vezes recopiados, relidos e

rearranjados, prontos para uma publicação que, o mais freqüentemente,

não aconteceu. Sabe-se que, de seu incessante trabalho de escrita,

Leibniz só tornou acessível em vida por suas publicações pouquíssimos

vestígios, na maior parte das vezes sob a forma de artigos nos jornais

científicos. Daí sua advertência: “Quem só me conhece pelo que

publiquei, não me conhece”1 . Mas Leibniz providenciou para que

pudesse ser um dia mais bem conhecido que pelos seus

contemporâneos, já que quis também conservar toda essa quantidade

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de papéis. Desde a sua morte, em 14 de novembro de 1716, a história

de Leibniz — a história de seu pensamento em todos os domínios

com os quais se ocupou e, logo, também de sua concentração em

metafísica —, é a história de todas as explorações e escavações feitas

nesse legado, do qual os arqueólogos apresentaram edições diversas,

de extensão, ambição e rigor variáveis, que constituem a base acessível

dos escritos de Leibniz em nossas bibliotecas.

Essa base, da qual naturalmente emergem as contribuições

maiores das grandes coleções reunidas por Foucher de Careil, Gerhardt,

Couturat, Grua, mas também outras contribuições que se limitaram a

exumar materiais textuais mais restritos, é por natureza divergente,

uma vez que as intenções, os critérios de escolha e os preceitos de

estabelecimento dos textos estão eles mesmos sujeitos a todo tipo de

variação. Não há, portanto, para Leibniz nada de equivalente ao que

nos oferecem Adam et Tannery para Descartes, Gebhardt para

Espinosa, a Akademie Ausgabe para Kant, Colli-Montinari para

Nietzsche, Robinet para Malebranche. Mas a essa variedade da

qualidade editorial se acrescenta o fato quantitativo de que ainda hoje

a integralidade docorpusainda não foi completada pela reunião dessas

múltiplas publicações.

Como se sabe, há mais de um século, por ocasião do Congresso

Internacional de Filosofia que aconteceu em Paris em 1900, foi tomada

a decisão, pelos mais eminentes historiadores alemães e franceses da

época, de trabalhar numa edição verdadeiramente e definitivamente

integral de todas as cartas e escritos de Leibniz, sob a dupla patronagem

do Instituto de França e da Academia de Berlim. Depois que a guerra

de 1914 rompeu a cooperação para fazer dessa edição uma tarefa

exclusivamente alemã, ela prosseguiu em meio às dificuldades geradas

pelos sobressaltos e tragédias da história daAlemanha, até a queda do

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muro de Berlim. Desde esse último acontecimento, a reunificação do

país permitiu o estabelecimento de uma prática racional e coordenada

para o prosseguimento do trabalho.

A história da edição, por suas vagas sucessivas de amplitude

desigual, teve um efeito determinante na percepção que cada época

pôde ter da filosofia de Leibniz (mas também de sua matemática ou de

sua dinâmica ou de suas idéias religiosas), e, portanto, nas

interpretações que eram concebíveis em função do que poderia ser

chamado a abertura e a profundidade do campo de visão assim definido,

sobre um plano de fundo ainda virtual. Os exemplos são numerosos.

Citar-se-á o da publicação do segundo volume dosPhilosophische

Schriftende Gerhardt, que contém a correspondência com De Volder,

na qual a definição da substância pela lei de uma série teve um efeito

determinante sobre a interpretação neo-kantiana de Natorp e de

Cassirer2 . Há também exemplos inversos, quando uma hipótese de

interpretação orientou a seleção de textos até então inéditos: é porque

Couturat tinha uma idéia precisa do que era chamado em seu tempo

de álgebra da lógica, depois logística, que pôde encontrar interesse e

sentido em manuscritos que outros tinham percorrido sem nada

compreender3 .

Poder-se-ia pensar que o efeito de uma publicação integral

seria o de colocar um fim nos deslocamentos históricos desse tipo de

circularidade que une estado da edição e interpretação. Esse será talvez

o caso quando a edição estiver acabada, mas na medida em que ela é

ainda uma obra em curso, o trabalho de edição produz também, à sua

maneira, efeitos sobre o sentido, pelo próprio fato de suas escolhas

metodológicas. Estas foram principalmente duas: 1/ um princípio de

divisão em séries disjuntivas, que era uma condição para poder avançar

no estabelecimento dos textos e de sua publicação. Correspondências

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e outros escritos de natureza diferente foram separados; para cada

grupo, uma divisão temática foi adotada, de maneira que temos séries

distintas de volumes que reúnem: I.ACorrespondência geral, política

e pessoal, II. A Correspondência filosófica, III. A Correspondência

matemática e científica, IV. Os Escritos políticos, VI. Os Escritos

filosóficos, VII. Os Escritos matemáticos, VIII. Obras científicas4 . 2/

A escolha metodológica mais importante foi a de publicar todas as

peças de cada Série segundo a ordem cronológica de redação melhor

determinada ou mais provável e justificada pelas mais seguras razões

de datação. Essa escolha procedia de uma suposição da qual a inteira

força só pôde ser constatada pelos efeitos, quando a edição já estava

bastante avançada, notadamente na série dos Escritos filosóficos: é

que a prática de escritura incoativa e fragmentária de Leibniz implica

que os textos adquiram seu sentido uns em relação aos outros em sua

sucessão diacrônica, mais que em uma copresença idealmente

sincrônica. Eles são menos os elementos coordenados de um sistema

que os momentos de uma experiência de escritura pensante sempre

recomeçada (que poderia ser comparada talvez com o que revelam as

notas e os manuscritos de Husserl). Essa segunda escolha foi reforçada

e radicalizada pela decisão, tomada quando do reinício do trabalho

editorial depois da segunda guerra mundial, de apresentar, a partir de

então, sistematicamente todos os textos, quaisquer que fossem a

amplitude, a forma e o tema, reproduzindo o conjunto das variantes

genéticas do ou dos manuscritos de um mesmoopus: palavras ou

passagens rasuradas, substituições, acréscimos, são postos sob os olhos

do leitor e lhe fornecem, em princípio, a possibilidade de reconstituir

os estados da escritura desde o primeiro esboço até o estado no qual

Leibniz considerou seu texto como acabado, a menos que ele tenha

abandonado o prosseguimento do texto. Assim, foi generalizada a

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intenção cuja fecundidade tinha sido provada, em se tratando de textos

essenciais, pela admirável edição de Lestienne doDiscurso de

metafísica(1907), depois pelas edições de Clara Strack (1917) e em

seguida de André Robinet (1954) daMonadologiae dosPrincípios

da Natureza e da Graça.

Eis, aqui, pois, onde estamos hoje: a Série II, Correspondência

filosófica, comporta apenas um volume editado, que foi um dos

primeiros a ser publicado (1926); ele acabou de ser inteiramente refeito

para se adequar às normas da edição atual. Ele compreende as cartas

que se distribuem de 1663 a 16855 . A Série VI, Escritos filosóficos,

colocando à parte o sexto volume, centrado nosNovos ensaios sobre

o entendimento humano, publicado antecipadamente (1962), consta

de quatro volumes publicados. O último publicado (1999) reúne, em

um conjunto impressionante de 3000 páginas de textos e 500 páginas

de índices e tabelas diversas, todos os textos da primeira maturidade

de Leibniz, a que se ordena filosoficamente em torno doDiscurso de

metafísica, de 1677 a junho de 1690 (retorno a Hannover depois da

viagem à Itália)6 .

* * *

Essa referência ao estado da edição permite precisar a

dificuldade que comporta a referência a uma “última metafísica” de

Leibniz. Com efeito, nota-se que essa “última metafísica” tem seu

começo para além do que avançou a edição integral dos Escritos

filosóficos até seu estado atual. Enquanto conhece-se hoje tão bem

quanto é possível, através de um denso conjunto de textos, a gênese

das concepções que tomam corpo anteriormente e logo depois do

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ponto de equilíbrio doDiscurso de metafísica, o período posterior a

1690 só nos é acessível através das edições existentes, as quais nos

apresentam uma restituição forçadamente fragmentária, descontínua,

que não permite, portanto, um controle precisamente ponderado das

proposições interpretativas. E é esse justamente o caso da proposição

a respeito do idealismo atribuído a essa última metafísica.

Conhece-se há muito tempo uma “primeira filosofia de

Leibniz”, estudada na admirável tese latina de Arthur Hannequin

(1895)7, que cobre o período que se completa no momento da chegada

de Leibniz a Paris em 1672, logo depois da publicação das duas

Theoriae motusde 1671. A filosofia do chamado “jovem Leibniz”

pôde ser estudada recentemente em numerosas publicações e

colóquios, com uma grande precisão, tornada agora possível com o

avanço da edição integral. Como conseqüência, estendeu-se esse

período de juventude até o fim dos anos parisienses, em 1676, quando

Leibniz tinha trinta anos.Algumas vezes, incluiu-se mesmo o primeiro

tempo de instalação em Hannover nesse período. Como quer que seja,

reconhece-se em vista de declarações autobiográficas concordantes

de Leibniz que a maturidade de seu pensamento, satisfeito a respeito

de questões fundamentais, estabelece-se definitivamente no curso dos

primeiros anos da década de 80. ODiscurso de metafísicaé a primeira

síntese dessa maturidade, na ordem de questões metafísico-teológicas

que é a sua, aí juntando-se, na vertente da lógica, o grande estudo

inacabado dasGenerales Inquisitiones de Analysi notionum et

veritatum8 .

Por muito tempo agiu-se como se, a partir daí, tudo estivesse

posto, e como se estivesse constituído de uma vez por todas, sob a

forma de um invariável “Sistema”, um conjunto de conceitos

fundamentais, de teses principiais e de argumentos, o qual, em seguida,

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bastaria que Leibniz haurisse segundo os pontos de vista preparados

por intenções particulares ou circunstâncias exteriores, fazendo

somente com que se variasse a expressão, como espectadores girando

em torno da mesma cidade da qual têm perspectivas de visão variadas

que se reúnem na unidade de seu geometral. Com efeito, a preocupação

constante de coerência ao dar inteligibilidade a um universo ordenado,

que de fato sempre foi a preocupação de Leibniz, poderia, até certo

ponto, legitimar essa representação. Entretanto, por todo tipo de

razões, algumas das quais, ligadas ao trabalho editorial, já foram

evocadas, e que em geral dizem respeito à mudança das práticas do

ofício de historiador da filosofia, que dão agora um lugar maior à

materialidade do fato textual, esse modo de ver, que poderia ser

qualificado de idealista à sua maneira, foi, senão abandonado, em todo

caso fortemente ameaçado por uma atenção maior dedicada às

transformações múltiplas que o pensamento de Leibniz não deixa de

fabricar em seu período de maturidade.

Atransformação maior, que permite estabelecer nesse período

uma divisão identificável, é aquela que encontra sua completude na

coordenação de todos os componentes do que chamo a tese

monadológica. A tese monadológica propriamente dita, ausente do

Discurso de metafísicae da primeira fase da Correspondência com

Arnauld, começa a despontar nas discussões da segunda fase que dizem

respeito ao sentido das formas substanciais e, portanto, ao estatuto de

substancialidade dos corpos9 . Presente sob uma forma ainda pouco

nítida na primeira parte doSistema novo da natureza e da comunicação

das substâncias, publicado em 1695 (no qual os leitores

contemporâneos não a viram, para se concentrar na discussão da

correspondência entre a alma e o corpo apresentada na segunda parte

do artigo), ela é afirmada a partir do momento em que o recurso à

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própria palavra mônada, em 1696, condensa todo um trabalho de

análise e de elaboração conceitual anterior. Reduzida à sua formulação

elementar, a tese monadológica consiste na afirmação de que existem

substâncias simples, chamadas unidades verdadeiras, ou mônadas, uma

vez que existem “coisas” compostas, pois “sem o simples, não haveria

compostos” ou, ainda, porque “as multiplicidades supõem as

unidades”10. A partir daí, toda a complexidade associada à tese, e da

qual seu enunciado simplificado não dá conta, está ligada à ordenação

das soluções que serão dadas às questões da natureza dessas

substâncias simples, da natureza das coisas compostas, da relação entre

essas duas ordens, na medida em que essas questões envolvem, para

Leibniz, o conjunto da metafísica tal como ele a entende.

* * *

É desse ponto de vista que a questão do sentido e da natureza

de um idealismo leibniziano está, há mais de vinte anos agora, no

centro de um grande debate nos estudos leibnizianos, principalmente

de língua inglesa. Uma certa indeterminação de vocabulário faz com

que esse idealismo seja chamado às vezes também “fenomenalismo”

(dir-se-ia antes em francês “phénoménisme” [“fenomenismo”]).

Esse debate é característico da orientação tomada doravante

pela maior parte dos trabalhos, numerosos e, em geral, de excelente

qualidade, consagrados à filosofia de Leibniz na área anglo-saxã. A

ênfase colocada prioritariamente durante muito tempo nas

interpretações que privilegiavam a lógica e a filosofia da linguagem

foi suplantada por um interesse, antes de tudo, pela metafísica enquanto

tal. Os argumentos lógicos e o tratamento analítico de problemas não

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desapareceram, mas aparecem apenas como meios de elucidação e de

justificação entre outros, e não são mais considerados como

inteiramente determinantes do sentido da metafísica de Leibniz, como

era o caso enquanto dominava o modelo de abordagem que se apoiava

nos grandes precedentes de Bertrand Russell e de Louis Couturat.

Em sua abertura, o debate em torno do fenomenismo e do

idealismo atribuídos a Leibniz levou a maior parte dos participantes,

mas não todos, a admitir um recorte segundo o qual, durante um

período chamado de “anos intermediários”, que abrangeria as duas

décadas de 1680 e 1690, Leibniz teria defendido uma concepção

aristotélica da substância corporal, como composta de matéria e forma,

ele teria sido inclinado a isso pela preocupação prioritária de dar à

física fundamentos conceituais sólidos11.

Pôde-se conceder ou contestar a validade da interpretação

assim proposta dos anos intermediários, mesmo admitindo, em todo

caso, que a esses anos seguia-se um último período, o de uma última

metafísica que abandonaria as escolhas realistas precedentemente

justificadas pela prioridade atribuída à questão dos fundamentos da

física. Seja como conseqüência doSistema Novo(1695) e da introdução

consecutiva da palavra “mônada” como designação da substância em

sentido primeiro, seja a partir dos primeiros anos 1700, com a

formulação definitivamente completa da tese monadológica (a transição

tendo sido operada na correspondência com De Volder), Leibniz teria

abandonado essa concepção em proveito da restrição da noção de

substância às mônadas, concebidas como almas ou sujeitos análogos

às almas, recusando qualquer realidade substancial aos corpos,

remetidos ao plano de fenômenos.

A expressão mais conseqüente e mais acabada de um idealismo

leibniziano desse tipo foi exposta por Robert Merrihew Adams,

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principalmente na terceira parte de sua grande obraLeibniz.

Determinist, Theist, Idealist, Oxford University Press, 199412.

R. M. Adams cita uma passagem bem conhecida da carta de

30 de junho de 1704 a De Volder, da qual dou aqui a restituição

completa:

E inclusive, para considerar a questão com atenção,

é preciso dizer que não há nada nas coisas além das

substâncias simples e, nelas, a percepção e a apetição; a

matéria e o movimento, porém, não são substâncias ou

coisas, mas fenômenos dos que percebem e sua realidade

reside na harmonia dos que percebem consigo mesmos

(em tempos diferentes) e com os outros que percebem.13

R. M. Adams explora esse texto em termos que são, a meu

ver, hiperbólicos: “O princípio mais fundamental da metafísica de

Leibniz é que ‘não há nada nas coisas além de substâncias simples e,

nelas, as percepções e as apetições’ (GP II, 270). Isso implica que os

corpos, que não são substâncias simples, só podem ser construídos a

partir de substâncias simples e de suas propriedades de percepção e

apetição” (op. cit., p. 217).

É sempre arriscado isolar de seu contexto um enunciado

leibniziano para reconhecer nele um princípio, e mais ainda um princípio

declarado mais fundamental que os outros. Quando formula essa

proposição, Leibniz evitou atribuir a ela uma tal caracterização. Esse

seria antes para ele o lugar que o princípio de razão ocupa – mas

deixemos isso de lado. Eu observaria, antes de voltar a isso, quanto à

estrutura e ao léxico do argumento apresentado aqui:

1/ que Leibniz fala, para aí reconhecer os “fenômenos dos que

percebem”, da matéria e do movimento, mas não, como lhe atribui a

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paráfrase de Adams, de corpos. Para que essa paráfrase fosse uma

tradução conceitual correta, seria preciso que Leibniz considerasse

que matéria e movimento são os constituintes suficientes da natureza

do corpo, o que não é o caso.

2/ que Leibniz não apresenta a redução fenomênica da matéria

e do movimento (e não dos corpos enquanto tais) como uma

conseqüência extraída do princípio de que as únicas substâncias são

as substâncias simples, mas antes como uma proposição que é

complementar a esse princípio e independente dele, e que deve,

portanto, ter recebido alhures sua justificação.

As posições tomadas e presentes no debate partem, em geral,

da dificuldade que haveria em conciliar duas teses de Leibniz: essa

mencionada agora, segundo a qual os corpos seriam apenas fenômenos

das mônadas, estes compreendidos como o que aparece às mônadas

como a sujeitos que percebem, e aquela segundo a qual os corpos são

“agregados de mônadas” ou, como Leibniz sublinha ser preferível dizer,

“resultantes das mônadas”. A versão mais radical da primeira tese

consiste em reduzir toda a realidade do fenômeno apenas à realidade

objetiva, no sentido escolástico-cartesiano, isto é, em um outro

vocabulário, ao que seria identificado como conteúdo representacional

da percepção de uma mônada qualquer. Atribui-se a Leibniz, assim,

uma forma de idealismo próxima à de Berkeley. A questão é

evidentemente, então, construir uma interpretação coerente dos textos,

de resto mais numerosos, que fazem dos corpos agregados (resultantes)

de mônadas. Se se parte antes dessa segunda tese, tratar-se-á então de

compreender como um agregado de mônadas de algum modo se

fenomenaliza: concebe-se nesse caso que haja nos corpos uma realidade

outra que a da mônada que percebe, a saber, a realidade de uma

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CADERNOSESPINOSANOSXV - 2006

infinidade de outras mônadas que são os ingredientes ou os requisitos

desse corpo14. Qualquer precaução que se tome, não se pode fazer

outra coisa que propor variantes da teoria da deformação perceptiva,

segundo a qual a apreensão de multiplicidades por um espírito finito

embaralha a distinção de seus elementos na representação confusa de

um corpo contínuo e de suas propriedades sensíveis (missperception

thesis)15.

* * *

Há, entretanto, boas razões para pensar que a última metafísica

de Leibniz não se reduz a essa caracterização unilateral de um idealismo

que negaria qualquer possibilidade de legitimar, no contexto da tese

monadológica, um conceito de substância corporal propriamente dita.

Consideraremos aqui as três seguintes razões:

1/ Do ponto de vista genético, a tese monadológica provém

originariamente da busca de um fundamento para a realidade dos

corpos.

Um ponto foi suficientemente estabelecido em 1986 porAndré

Robinet16: quando o conceito de mônada encontra definitivamente

sua denominação em 1696, é para assumir o posto da operação já

tentada na época anterior através da reabilitação das formas

substanciais. ODiscurso de metafísicaapresentava uma dupla

concepção da substância: de um lado a substância individual definida

por sua noção completa (segundo o que deu lugar à chamada teoria

lógica da substância), exemplificada principalmente pelos sujeitos de

ação ou “personagens” da história do mundo (Alexandre, César, Pedro,

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MICHEL FICHANT

Judas, etc.); de outro, a forma substancial, exigida para se conceber

em que os corpos podem comportar uma realidade além da

simplesmente fenomênica. Tratando-se dessa segunda versão, André

Robinet também estabeleceu de forma indiscutível que, lido através

de todos os estratos de escritura de seus estados genéticos, o texto do

Discurso de metafísicaé atravessado por uma tensão (uma

“disjunção”) entre duas interpretações: de um lado, se os corpos são

substâncias, e uma vez que a extensão, contrariamente ao que sustenta

Descartes, não basta para constituir uma substância, então é preciso

recorrer às formas substanciais reabilitadas pela noção de força para

dar conta da identidade persistente da realidade corporal; mas, de um

outro lado, a fórmula permanece condicional e pode dar-se que os

corpos não sejam substâncias, mas somente fenômenos verdadeiros

como o arco-íris. Que seja dito entre parênteses, essa tensão ou

disjunção deveria ser suficiente para estabelecer que a possibilidade

do idealismo já estava inscrita no princípio mesmo dos anos ditos

médios e para, assim, colocar em dúvida a univocidade da adesão de

Leibniz durante esse período a um realismo aristotélico da substância

composta de matéria e forma.

Tentei, de minha parte, mostrar que é a discussão comArnauld

que levou Leibniz pouco a pouco às fórmulas que balizam o campo da

tese monadológica, totalmente ausente doDiscurso de metafísica17.

Pois, contrariamente ao que uma longa tradição de aproximações

conceituais permitiu sustentar, a substância individual doDiscurso

não é a mônada. Nem do lado da substância individual, nem do lado

da forma substancial intervém o argumento que coloca em jogo as

multiplicidades e as unidades, os compostos e os simples.

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Uma primeira fase da correspondência com Arnauld apóia-se

exclusivamente na doutrina da noção completa de substância individual.

É somente uma vez que esse debate se encerra que se abre uma nova

discussão, apoiada simultaneamente na solução proposta ao problema

da união da alma e do corpo, que ainda não é chamada de harmonia

preestabelecida, e na questão da substancialidade dos corpos. O

desenvolvimento das respostas suscitadas pelas interrogações de

Arnauld sobre o sentido da reabilitação das formas substanciais, nesse

segundo período da correspondência, permitiu produzir pouco a pouco

as condições da formulação da tese monadológica. A carta de 30 de

abril de 1687 marca, desse ponto de vista, o momento decisivo no

qual Leibniz termina por reconhecer como sua a caracterização da

substância que Arnauld tinha desvelado nos textos em que ela era

tacitamente assumida, sem ser ainda expressamente formulada: “A

substância exige uma verdadeira unidade” (GP II, 96), ou ainda,

“ … não concebo nenhuma realidade sem uma verdadeira unidade”

(97). Uma vez que a completude da noção cede o passo à unidade do

ser, a tese monadológica pode ser enunciada pela primeira vez, muito

antes do recurso à denominação mesma de “mônada”. Deixando de

lado as definições escolásticas, é preciso agora “considerar as coisas

de bem mais alto”, no nível da relação entre o uno e o múltiplo, que

uma série de formulações vai munir de suas variações:

Todo ser por agregação supõe seres dotados de

uma verdadeira unidade, porque só tem realidade a partir

da realidade dos seres de que é composto […] Se há

agregados de substâncias, é preciso também que haja

verdadeiras substâncias de que os agregados são feitos

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[…] Não há multiplicidade sem verdadeiras unidades […]

O plural supõe o singular (GP II, 96-97).

Faltam ainda, evidentemente, etapas a cumprir, mas as

condições conceituais que exigem, por assim dizer, por si mesmas o

recurso à velha palavra grega que quer dizer unidade já estão reunidas.

Se, então, a tese monadológica e, com ela, a constituição definitiva do

próprio conceito de mônada intervêm diretamente na continuidade da

discussão sobre as formas substanciais, é exatamente porque ela deve

responder à mesma questão: a de saber em que consiste a

substancialidade dos corpos, se eles são substâncias ou, pelo menos,

se comportam em si alguma coisa de substancial. É preciso acrescentar,

enfim, que, no momento em que a análise dá essa volta, ela assume

uma interpretação que se aproxima mais do sentido da versão idealista.

Pois, se é preciso reconhecer unicamente por substâncias os “Seres

completos, dotados de uma verdadeira unidade [...], todo o resto sendo

apenas fenômenos, abstrações ou relações!”, segue que os compostos,

possuindo uma unidade apenas acidental, não são propriamente

substâncias. Sem dúvida conceder-se-á

que há graus de unidade acidental, que uma

sociedade regrada tem mais unidade que uma turba

confusa, e que um corpo organizado ou uma máquina tem

mais unidade que uma sociedade, isto é, é mais adequado

concebê-los como uma única coisa, porque há mais

relações entre os ingredientes; mas, enfim, todas essas

unidades recebem seu acabamento dos pensamentos e

aparências, como as cores e outros fenômenos, que não

deixam de ser chamados de reais. […] pode-se, portanto,

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dizer desses compostos e coisas semelhantes o que

Demócrito falava tão acertadamente deles, a saber,esse

opinione, lege, nómôi.E Platão tem a mesma opinião a

respeito de tudo o que é puramente material (GP II, 101).

Notemos que aqui o corpo organizado, colocado no mesmo

plano que a máquina, não se diferencia senão por um grau das outras

formas de multiplicidade. Veremos na seqüência a importância desse

ponto.

2/ O desenvolvimento da metafísica leibniziana do último

período, mesmo situando seu início depois de 1700, não dispensa a

exigência de uma caracterização de uma verdadeira “substância

corporal”.

Coloquemo-nos agora bem perto do fim, no momento em

que Leibniz chega à expressão final de sua última metafísica. As

primeiras linhas do texto sem título, ao qual seu tradutor alemão deu

um em 1720, o universalmente conhecidoMonadologia, e as dos

Princípios da Natureza e da Graçarestituem o conteúdo essencial

dessa metafísica sob a forma mais lapidar: a mônada é uma substância

simples que entra nos compostos, e é preciso que haja mônadas, uma

vez que há compostos e que as multiplicidades supõem sempre as

unidades de que são feitas ou das quais tiram sua realidade derivada.

Assim formulada, a tese pode sem dúvida sustentar uma

interpretação idealista e fenomenista. De um lado haveria as mônadas,

substâncias simples, sem partes, cuja natureza é perceber e passar de

uma percepção a outra e a percepção é inexplicável por razões

mecânicas. De outro lado, haveria apenas agregados, que não possuem

nunca unidade intrínseca, e cuja unidade nominal é sempre relativa à

percepção, isto é, ao mesmo tempo à seqüência coerente de percepções

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de uma mônada e ao acordo das percepções das mônadas entre si. O

texto daMonadologia, lido estritamente, pode encorajar essa maneira

de ver: a substância figura nele apenas como substância “simples”,

portanto como mônada, e jamais como “substância composta”; o termo

“composto(s)” é empregado sempre como um neutro, para designar

alguma coisa que, precisamente, não chega ao nível ontológico da

substância.

É verdade que Wolff, sobre o qual se afirma, como

conseqüência de um trabalho de A. Lamarra, ser o autor da tradução

latina daMonadologiapublicada em 172118, não se incomodou por

forçar o texto para o sentido de sua própria interpretação da física do

simples e do composto, traduzindo “les composés” [“os compostos”]

por “substantiae compositae”, ao passo que ele devia se contentar em

designar sem adição como os “composita”. Mas isso talvez se dê

porque ele tinha também sob os olhos uma cópia do texto

contemporâneo àquele, osPrincípios da Natureza e da Graça, que

sugeria essa infidelidade literal, uma vez que dessa vez encontramos

as expressões “substância composta”, e mesmo “substância viva”,

assim introduzidas:

1. A substância é […] simplesou composta. A

substância simples é aquela que não possui partes.A

composta é a reunião de substâncias simples ou mônadas

[…] 3. […] cada substância simples ou Mônada distinta,

que constitui o centro de umasubstância composta(como,

por exemplo, um animal) e o princípio de sua Unicidade,

está rodeada por uma Massa composta de uma infinidade

de outras Mônadas, que constituem o corpo próprio desta

Mônada central, a qual representa, segundo as afecções

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desse corpo, como em uma espécie de centro, as coisas

que estão fora dela. […] 4. Cada Mônada, com seu corpo

particular, constitui umasubstância viva.

Em que sentido a massa que rodeia a “mônada distinta” pode

ser dita “composta de uma infinidade de outras Mônadas”, uma vez

que se admita o uso do conceito de “substância composta”? No curso

dos anos precedentes, e ao longo de todo o período que se diz ser

dominado pela tese idealista, em que se nega aos corpos a realidade

substancial, há, todavia, numerosas provas da busca constantemente

empreendida de uma caracterização, no quadro monadológico, de uma

verdadeira “substância corporal” ou “substância composta”. Deixo

de lado aqui o emprego central de “substância composta” na

correspondência com Des Bosses, que está associada à elaboração

particular doVinculum substantiale.Mas a noção de substância

composta permanece, entretanto, independente dessa doutrina, e em

textos como o dosPrincípios da Natureza e da Graçapode ser

considerada como o equivalente da doutrina da substância corporal.

Sem entrar no detalhe das provas textuais, lembrarei, entre outras

menções possíveis, um fragmento muito interessante, recentemente

publicado, para o qual proporei de bom grado a data de 1709: “A

substância composta é a Mônada considerada com seu corpo orgânico,

como um homem, um carneiro”. Ou ainda uma carta de 1711, na qual

Leibniz define a substância corporal como a que “consiste em uma

substância simples ou mônada (isto é, uma alma ou alguma coisa

análoga à alma) e no corpo orgânico que está unido a ela”19.

Donde resulta que uma cláusula inteiramente especial é

requerida para que haja propriamente substância corporal: para isso,

é preciso que, do lado do que constitui o componente físico dessa

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substância, seja preenchida uma condição especial, é preciso que se

trate de um corpo orgânico. O que é, então, para Leibniz, um corpo

que corresponde a essa característica?

3/ O Organismo é aquilo cuja consideração impede Leibniz

de deixar a última palavra a um idealismo tal como o que lhe atribuem

as variantes da interpretação anglo-saxã.

Tentei em um artigo recente20 circunscrever o momento

decisivo no qual Leibniz apodera-se da caracterização do corpo

orgânico que lhe é própria: ela se enuncia no conceito e na denominação

de “maquina da natureza”, e é precisamente em 1695, noSistema

novo, que Leibniz elabora pela primeira vez esse conceito.

Imediatamente, ele introduz uma diferença que desta vez não é mais

gradual, mas essencial, entre as máquinas da natureza e as outras

máquinas como em geral ea fortiori todas as outras formas de

multiplicidade material; em um texto escrito em 1702, ele associa

diretamente o conceito de “máquina da natureza” à publicação do

Sistema novo, evocando “a grande diferença […] que há entre as

máquinas da natureza e a arte, explicada quando foi publicado o sistema

novo noJournal des savants” 21. A grande diferença é que as máquinas

artificiais originadas de nossa engenhosidade comportam apenas um

número finito de órgãos, que, separados, não são eles mesmos

máquinas, enquanto “uma máquina natural permanece máquina ainda

nas suas menores partes, e mais ainda, ela permanece sempre essa

mesma máquina que ela foi, transformando-se apenas pelas diferentes

dobras que recebe, e tanto extensa como condensada, quando se crê

que ela se perdeu”22. No § 64 daMonadologia, isso dará:

[…] uma Máquina, construída segundo a arte

humana, não é Máquina em cada uma de suas partes. Por

exemplo, o dente de uma roda de latão tem partes ou

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fragmentos que não são mais para nós algo artificial e não

têm mais nada que identifique a Máquina para o uso da

qual está destinada a roda. Mas as Máquinas da Natureza,

isto é, os corpos vivos, são Máquinas inclusive em suas

menores partes até o infinito.

A partir de 1704, Leibniz usará o termo de sua invenção,

“Organismo”, para significar não, como em nosso uso corrente, tal

ser determinado, que designamos comoum organismo, e que nos

permite falar no plural em organismos vivos, mas o modo de ser, sempre

no singular, segundo o qual o corpo orgânico é constituído pelo

envolvimento infinito de órgãos, no qual os elementos da máquina

são sempre também máquinas, isto é, composições funcionais de

instrumentos ordenados a um fim.

É precisamente esse modo de ser que permite a um corpo

determinado adquirir um regime de substancialidade, constituindo o

que Leibniz chama também de um “animal”; só correspondem a

substâncias corporais os animais cujo corpo orgânico – máquina da

natureza – é atualizado ou realizado por uma alma ou, melhor, pela

enteléquia primitiva da substância simples que é sua mônada dominante

ou principal.

Só conto como substâncias corporais as máquinas

da natureza que possuem almas ou algo de análogo; de

outra maneira não haverá verdadeira unidade (A Jaquelot,

22 de março de 1703, GP III, 457).

Na declaração citada, na qual Robert Adams vê a fórmula do

que será “o princípio mais fundamental de (sua) metafísica”, Leibniz,

como já observei, atribui apenas à matéria e ao movimento não serem

substâncias ou coisas, mas fenômenos da percepção. Não são, pois,

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os corpos que são ditos assim, uma vez que Leibniz, precisamente,

jamais reduziu a realidade dos corpos ao movimento e à matéria. Em

uma carta de 1699 a Thomas Burnett, na qual é exposta uma

aproximação muito precisa da realidade da substância corporal segundo

sua fundação monadológica, Leibniz opera rigorosamente a distinção,

nos corpos, “entre a substância corporal e a matéria”, e “distingue a

matéria primeira da segunda”. Com essa distinção é introduzida uma

noção tradicional cuja significação dada por Leibniz precisa ser

analisada: o que é a “matéria segunda”?

A matéria segunda é um agregado ou composto

de várias substâncias corporais, como um rebanho é

composto de vários animais. Mas cada animal e cada planta

também é uma substância corporal, tendo em si o princípio

de unidade, que faz com que seja uma verdadeira

substância e não um agregado. E esse princípio de unidade

é o que se chama Alma ou então alguma coisa que tem

analogia com a alma. Mas além do princípio de unidade, a

substância corporal tem sua massa ou matéria segunda,

que é ainda um agregado de outras substâncias corporais

menores, e isso vai ao infinito (GP III, 260).

Trata-se exatamente, portanto, de estabelecer ao mesmo tempo

a realidade de uma verdadeira “substância corporal” e, por outro lado,

sua irredutibilidade à matéria (ea fortiori, à extensão à qual Descartes

identificava erroneamente a matéria). O conceito essencial que intervém

aqui é o dematéria segunda: é por ela que o corpo se apresenta, por

um dos aspectos de sua constituição, como um agregado, do qual a

composição numérica do rebanho (de ovelhas) fornece um modelo

intuitivo. Mas o próprio animal (a ovelha), que é um componente do

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agregado do rebanho, é outra coisa diferente do simples agregado do

rebanho, precisamente porque ele tem uma verdadeira unidade de

composição. Leibniz diz isso pelo menos uma vez de maneira

perfeitamente explícita: “Há, com efeito, uma grande diferença entre

um animal e um rebanho”23.

Segundo um modelo cuja proveniência aristotélica é patente,

Leibniz constitui o animal de uma Enteléquia, que “é ou alma ou alguma

coisa análoga à alma, e sempre realiza naturalmente o corpo orgânico”,

e desse próprio corpo, que, “considerado separadamente, isto é, pondo-

se à parte ou retirada a alma, não é uma substância única, mas um

agregado de várias, designando uma máquina da natureza”24.

Pode-se, pois, distinguir-se agregado de agregado: um

amontoado de pedras ou um rebanho, por exemplo, não constituem

propriamente uma matéria segunda, uma vez que não são enformados

por uma enteléquia ou por alguma coisa análoga a uma alma. Dizer

umrebanho enuncia apenas uma unidade nominal e mental, inteiramente

relacionada à unicidade do nome que exprime a reunião de vários

elementos distintos sob uma só concepção ou percepção. Tais

agregados não são evidentemente substâncias corporais, e não se

concebe que eles possam ser. E o mesmovale para as pedras que

compõem o amontoado, que tampouco são substâncias corporais. Mas

em relação à ovelha do rebanho, a análise toma um outro caminho: o

corpo dos animais constitui uma matéria segunda enformada pela alma

do animal25. Ora, a matéria segunda que entra em uma substância

corporal se caracteriza comoum agregado cujos componentes são

também substâncias corporais. Dito de outra maneira, a matéria

segunda não é diretamente um agregado de substâncias ou de mônadas,

mas um agregado composto de outras substâncias corporais cuja

implicação ao infinito funda a composição do corpo orgânico enquanto

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máquina da natureza. Temos aí uma definição da substância corporal

que poderia ser dita, segundo nosso vocabulário atual, recursiva,

repousando,via sua matéria segunda, sobre uma infinidade de

substâncias corporais que, por sua vez, por sua própria matéria

segunda, supõem uma outra infinidade de substâncias corporais, e

assim por diante.

Pode-se compreender, então, como as mônadas “concorrem”

para a máquina orgânica. E, respondendo a essa questão, responde-se

também em que sentido os corpos, como agregados, “resultam” das

mônadas, de maneira diferente de uma reunião de partes em um todo26:

o concurso das mônadas para a constituição da matéria segunda não é

direto, pois cair-se-ia nas aporias clássicas da composição de uma

extensão a partir de elementos inextensos. Esse concurso, pelo qual

as substâncias simples sustentam o que há de definitivamente real nos

agregados, é mediado pela articulação ao infinito das substâncias

corporais umas nas outras: ora, é precisamente isso que faz dessa

matéria segunda uma “máquina da natureza” naquilo que a distingue

de uma reunião qualquer em que nenhuma vida pode se atualizar, uma

vez que a vida consiste, segundo Leibniz, em percepção e apetite27.

Em toda parte em que há corpos orgânicos, cuja unidade não

é de simples justaposição, mas resulta de um envolvimento ao infinito

de órgãos, a função de unicidade da enteléquia é efetivamente realizada

na formação de uma substância corporal. O mesmo corpo pode

comportar simultaneamente duas referências distintas à esfera

monádica: enquanto multiplicidade remete às unidades plurais que ela

requer; enquanto substancial e, portanto, comportando uma unidade,

relaciona-se à mônada única que constitui a enteléquia primitiva de

sua matéria segunda, que é a de umcorpo orgânico, cujos componentes

são também outras substâncias corporais.

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É por isso que haverá também, inversamente, corpos orgânicos

em toda parte, mesmo onde permanecem imperceptíveis a nossos

sentidos. Há como que uma lei de reciprocidade que exige a correlação

constantemente e universalmente mantida entre cada mônada e o corpo,

do qual Leibniz diz de maneira feliz, antecipando um uso futuro, que

o corpo é “próprio” a ela, e sem o qual, se ela fosse separada, ela seria

“um desertor da ordem universal”28. A cada mônada seu corpo próprio

significa, então, tantas substâncias simples, quantas substâncias

corporais. Este é, no fim das contas, o princípio de adesão de Leibniz

a uma visão pan-animalculista da natureza “por onde se vê que há um

Mundo de criaturas, de viventes, deAnimais, de Enteléquias, deAlmas

na menor parte da matéria” e onde “cada porção da matéria pode ser

concebida como um jardim cheio de plantas e como um Lago cheio de

peixes. Mas cada ramo da planta, cada membro do animal, cada gota

de seus humores é também um jardim ou um lago” (Monadologia, §§

66 e 67). Essa visão, que Leibniz sustentava muito seriamente e que

era confirmada pelas pesquisas empíricas de seu tempo, não é

compatível com a redução idealista.

* * *

Há, entretanto, uma outra maneira de ser idealista diferente da

de Berkeley, a quem Leibniz tomava, alhures, por “ser desse gênero

de homens que querem se dar a conhecer por seus paradoxos”29. Em

uma Anotação célebre daCiência da Lógica, Hegel define assim o

idealismo: “A proposição que o finito é ideal constitui o Idealismo. O

Idealismo, segundo a filosofia, não consiste em nada mais que não

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reconhecer o finito como um verdadeiro Ente. Toda filosofia é

essencialmente Idealismo ou, pelo menos, o Idealismo em seu princípio,

e a questão é, então, somente, até que ponto esse princípio é

efetivamente acabado”. Algumas páginas adiante, em uma outra

Observação, ele nota ainda: “O ser representante de Leibniz, a Mônada,

é uma coisa essencialmente ideal”30.

Em linguagem leibniziana, isso seria: o que o pensamento põe

como elementos últimos da realidade, as mônadas, são efetivamente

elementos inteligíveis. É de fato um idealismo, se se entende ainda, à

maneira platônica, uma ontologia segundo a qual os constituintes

últimos do ser são elementos ideais. Mas Leibniz quis também mostrar

como esses elementos reúnem-se em um Ente verdadeiro, desde que

compõem-se como a mediação infinita da qual a estrutura recursiva

das máquinas da natureza expõe a figura sensível. Isso certamente

não é um idealismo que reduziria indiferentemente a realidade dos

corpos unicamente ao conteúdo objetivo das representações sensíveis.

O que havia em Leibniz de fidelidade constante ao aristotelismo o

dissuadiu de dar a última palavra a um idealismo filosófico que não

teria sabido dar conta, com e na realidade orgânica, da concretude

sensível do inteligível. É assim que sua filosofia cumpre, efetivamente,

o princípio do Idealismo, a ponto de Hegel poder dizer ainda que ela

“é a contradição completamente desenvolvida”31.

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Notas

1 “Qui me non nisi editis novit, non novit”, carta a Placcius, 1696,in

Leibnitii Opera omnia, ed. Dutens (1769), VI, 1, p. 65. E também:

“Scripsi innumera et de innumeris ; sed edidi pauca et de paucis”,

carta a Jacob Bernoullli, 1695,in Mathematische Schriften, ed.

Gerhardt, III, p. 61.

2 Cf. a “Probevorlesung” (1881) de Paul Natorp, “Leibniz und der

Materialismus”, publicado por H. Holzhey,Studia Leibnitiana, XVII

(1985).

3 Opuscules et fragments inédits de Leibniz, Extraits des manuscrits

de la Bibliothèque royale de Hanovre, publicado por Louis Couturat,

Paris, 1903.

4 Uma Série V está prevista para reunir as obras históricas de Leibniz,

mas ela ainda não é objeto de nenhum trabalho preparatório.

5 Esse volume é de livre acesso em:http://www.uni-muenster.de/

Leibniz/downloadbereich.html. As informações completas sobre o

estado da edição em seu conjunto se encontram no sitehttp://

www.leibniz-edition.de.

6 Leibniz,Sämtliche Schriften und Briefe- VI. Reihe Herausgegeben

von der Berlin-BrandenburgischenAkademie der Wissenschaften und

der Akademie der Wissenschaften in Göttingen -Philosophische

Schriften- Band 4: 1677–Juni 1690. Bearbeitet von Heinrich Schepers,

Martin Schneider, Gerhard Biller, Ursula Franke und Herma Kliege-

Biller, Akademie Verlag, Berlin, 1999. O conteúdo integral está

acessível na internet no mesmo endereço.

7 A versão francesa foi publicada na obra póstumaEtudes d’Histoire

des sciences et d’Histoire de la philosophie, vol. 2, Paris, 1908.

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MICHEL FICHANT

8 Originalmente publicados por Couturat,Opuscules et fragments

inédits, op. cit., p. 356-399. Excelente edição com tradução alemã e

comentários por Franz Schupp,Allgemeine Untersuchungen über die

Analyse der Begriffe und Wahrheiten, Felix Meiner Verlag, Hamburg,

1982.

9 Para mais detalhes, cf. meu ensaio “L’invention métaphysique”,in

Introduction à Leibniz.Discours de métaphysiquesuivi de

Monadologie, et autres textes. Edição estabelecida, apresentada e

anotada por Michel Fichant, Gallimard, Paris, 2004.

10 Cf. respectivamente,Princípios da natureza e da graça, art. 1, “É

preciso que em toda parte haja substâncias simples porque sem as

simples não haveria compostos”, e “não há multiplicidades sem

verdadeiras Unidades”, carta à Princesa Sophie, 31 de octobre de 1705,

in Die philosophischen Schriften, ed. Gerhardt (citado doravante GP),

VII, p. 558, fórmula já literalmente presente na carta a Arnauld de 30

de abril de 1687, GP, II, p. 97.

11 O artigo de referência aqui é o deDaniel Garber : “Leibniz and the

Foundations of Physics : The Middle Years”, emThe Natural

Philosophy of Leibniz, ed. by K. Okruhlik and J.R. Brown, Reidel,

Dordrecht, 1985.

12 Esse capítulo retoma e estende consideravelmente o artigo mais

antigo do mesmo autor “Phenomenalism and Corporeal Substance in

Leibniz”, Midwest Studies in Philosophy, 8 (1983),

13 GP, II, p. 270.

14 Essa interpretação foi exposta por Donald Rutherford em uma série

de artigos: “Phenomenalism and the Reality of Body in Leibniz’s Later

Philosophy”,Studia Leibnitiana, 22 (1990); “Leibniz Analysis of

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Multitude and Phenomena into Unities and Reality”,Journal of the

History of Philosophy, 28 (1990); “Leibniz and the Problem of Monadic

Aggregation”,Archiv für Geschichte der Philosophie, 76 (1994).

15 Sustentada, por exemplo, por Nicholas Jolley, “Leibniz and

Phenomenalism”,Studia Leibnitiana, 18 (1986).

16 Architectonique disjonctive, automates systémiques et idéalité

transcendantale selon G. W. Leibniz, Paris, Vrin, 1986.

17 “L’invention métaphysique”, op. cit., p. 81-95.

18 Cf. Antonio Lamarra, Roberto Palaia, Pietro Pimpinella.Le prime

traduzioni della “ Monadologie” di Leibniz (1720-1721). Introduzione

storico-critica, sinossi di testi, concordanze contrastive, Firenze,

Olschki, 2001.

19 Respectivamente: “Substantia composita est Monas sumta cum suo

corpore organico, ut homo, ovis” (Texto inédito publicado por Enrico

Passini em sua obraCorpo et funzione cognitivi in Leibniz, Franco

Angeli, Milano, 1996, p. 208); “Substantiam corpoream voco, quae in

substantia simplice seu monade (id est anima vel Animae analogo) et

unito ei corpore organico consistit”,a Bierling, 12 de agosto de 1711

(GP VII, p. 501).

20 “Leibniz et les machines de la nature”»,Studia Leibnitiana, 35/1

(2003) [publicado em 2005]. Uma versão preliminar desse artigo foi

publicada em português: “Leibniz e as máquinas da natureza”,Dois

Pontos, Revista dos Departamentos de Filosofia da Universidade

Federal do Paraná e da Universidade Federal de São Carlos, vol. 2,

num. 1, 2005.

21 Adição à Explicação do Sistema novo …, GP IV, p. 575.

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MICHEL FICHANT

22 Sistema novo da natureza e da comunicação das substâncias, GP

IV, p. 482.

23 “Multum enim interest inter animal et gregem”, em um opúsculo de

1702, GP IV, p. 395.

24 Ibid., p. 395-396.

25 “Assim, não digo na verdade que um pedaço de pedra seja em si

mesmo uma substância corporal animada ou dotada de um princípio

de unidade e de vida; mas antes que há em toda parte tais substâncias

e que não há nenhum pedaço da matéria no qual não haja ou animal ou

planta, ou qualquer outro corpo orgânico vivo, embora só conheçamos

plantas e animais. De sorte que uma massa de matéria não é

propriamente o que chamo de umasubstância corporal, mas um

amontoado ou um resultado (aggregatum) de uma infinidade dessas

substâncias, como um rebanho de carneiros ou um monte de larvas”,

Eclaircissement sur les Natures Plastiques et les Principes de Vie et

de Mouvement(GP VI, 550).

26 “Accurate autem loquendo materia non componitur ex unitatibus

constitutivis, sed ex iis resultat”, carta a De Volder de 30 de junho de

1704 (GP II, p. 268).

27 A vida consiste para Leibniz em “percepção e apetite”,

Animadversiones circa assertiones aliquas Theoriae medicae verae

Clar. Stahlii, § VIII (Dutens II-2, p. 137).

28 “Os corpos orgânicos não estão nunca sem almas, e […] as almas

não estão nunca separadas de qualquer corpo orgânico […] Não

admito, portanto, que haja almas inteiramente separadas, nem que

haja Espíritos criados inteiramente destacados de algum corpo […] as

criaturas que ultrapassassem ou estivessem livres da matéria estariam

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destacadas, ao mesmo tempo, da ligação universal, e seriam como

desertores da ordem geral”,Considérations sur les Principes de Vie

et sur les Natures plastiques, 1705 (GP VI, p. 545-546).

29 “Qui in Hybernia corporum realitatem impugnat, videtur nec rationes

afferre idoneas, nec mentem suam satis explicare. Suspicor esse ex eo

hominum genere, qui per Paradoxa cognosci volunt”, carta a Des

Bosses de 15 de março de 1715 (GP II, p. 492). Tradução francesa de

Christiane Frémont emL’être et la relation. Lettres de Leibniz à Des

Bosses, Paris, Vrin, 1981, p. 237.

30 A Ciência da Lógica, Doutrina do Ser, Primeira seção,

respectivamente do cap. 2, c, Anotação 2, depois do cap. 3 A, b,

Anotação.

31 Encyclopédie des sciences philosophiques, I La Science de la

Logique, § 194. Trad. Bernard Bourgeois, Paris, Vrin, 1979, p. 435.

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FRANKLIN LEOPOLDO ESILVA

Universalidade e Simbolização em Leibniz

FRANKLIN LEOPOLDO ESILVA *

* Professor titular do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP.

Resumo:A partir da concepção de um racionalismo integral, em quevigora o ideal da plena demonstrabilidade segundo o paradigmaidentitário da verdade, configura-se em Leibniz a questão dauniversalidade, que seria enunciada com mais pertinência como a dodeterminismo universal. São dois aspectos de uma mesma questão:em primeiro lugar, a universalidade no sentido arquitetônico,correspondente à totalidade; em segundo lugar, a determinaçãoabsoluta do indivíduo singular. Tanto num caso quanto no outro, aplena determinação é inalcançável para a mente humana. Mas asoperações simbólicas de determinação permitem, de alguma maneira,contornar a impossibilidade de uma visão simultânea e articulada detodos os elementos de um composto e, assim, nos encaminham nadireção de uma universalidade determinante. Os fundamentos, osprocedimentos e os riscos aí envolvidos constituem o tema desse texto.

Abstract:Based on the conception of an integral rationalism, in whichthe ideal of a full demonstrability takes place according to the identitaryparadigm of the truth, the question of universality is configured inLeibniz, which would then be more pertinently enunciated as the sub-ject of universal determinism. The following are two aspects of a singlequestion: in the first place, universality in its architectural sense, cor-responding to the totality; in the second place, the absolute determi-nation of the singular individual. In one case as well as the other,complete determination cannot be reached by the human mind. Butsymbolic determination operations allow, somehow, for the avoidance

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of the impossibility of a simultaneous and articulate vision of all of theelements of a compound and, thus, we are lead in the direction of adeterminable universality. The fundaments, procedures and risks in-

volved therein constitute the subject of this text.

* * *

“A mathesis universalisé a ciência da quantidade em geral, ou

da razão que calcula (de ratione aestimandi) que assinala os limites

dentro dos quais algo possa ocorrer. E porque toda criatura tem limites,

então pode-se dizer que, tal como a metafísica é a ciência geral das

coisas (scientia rerum generalis), assim amathesis universalisé a

ciência geral das criaturas (scientiam creaturarum generalem).”1 A

diferença que se pode estabelecer entre Leibniz e Descartes a partir de

um texto como este serve para nos introduzir na compreensão da

concepção leibniziana de universalidade. Para Descartes, aMathesis

Universalis, ao revelar os fundamentos metódicos da Matemática,

desvenda os arcanos da razão. O teor de racionalidade que se pode

esperar de qualquer conhecimento possível está de antemão ilustrado

na evidência matemática, que deve a partir daí ser entendida como

modelo universal. Descartes distingue claramente a Matemática da

Mathesis Universalis: tal distinção, entretanto, não deixa de carregar

uma ambigüidade, posto que esta instância mais profunda da

matemática nos permitirá atingir, ao fim e ao cabo, o caráter

matematizante de todo conhecimento. Poderíamos dizer, portanto,

que, embora Descartes ambicione chegar a um nível de evidência

metódica mais profundo e mais abrangente do que a aritmética e a

geometria, esta camada fundamental estaria ainda no domínio de uma

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Matemática, desde que a consideremos nas suas possibilidades mais

fundamentais de racionalidade. Afinal a ciência geral da Ordem e da

Medida não se constitui como um gênero diferente da Matemática,

vista na sua maior generalidade possível. Assim, o caráter

demonstrativo do conhecimento estará definitivamente comprometido

com um modelo de evidência que, estabelecido a partir de uma ciência

determinada, assegura, sem superar a configuração desta ciência, a

universalidade da certeza.

Leibniz julga poder apontar as limitações nesta visão cartesiana

dos fundamentos e do alcance da evidência, e isto a partir de uma

identificação da definição deMathesiscomo ciência da Ordem e da

Medida à ciência daquantidade. Essa identificação entre o sentido

geral da Matemática e a quantidade atua como um operador crítico

frente ao processo cartesiano de constituição dos fundamentos da

evidência, indicando a restrição do modelo. Desta forma fica

questionada a legitimidade da passagem da evidência matemática à

universalidade da evidência. O que a crítica de Leibniz atinge, na

verdade, é a afirmação, implícita na concepção cartesiana, da

identificação entre evidência e evidência matemática. Embora Descartes

nunca tenha dito que a noção deMathesis Universalisimplicava uma

simples extensão da evidência matemática para o domínio de todo o

conhecimento, a universalidade da Ordem e da Medida como critérios

fundamentais de inteligibilidade aparece, para Leibniz, como a

sobreposição, indevida, da Matemática ao conhecimento racional. A

Mathesis Universalis, como ciência da quantidade, não tem o alcance

geral que Descartes reivindicara. Ela não pode ser considerada

verdadeiramente como umaciência geral, mas sim como “ciência da

quantidade em geral”. Ora, poderíamos dizer que o geometrismo

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cartesiano não precisaria operar uma diferença entreciência gerale

ciência da quantidade em geraluma vez que, para Descartes, é pela

Ordem e Medida (isto é, pela quantidade) que se conhecem todas as

coisas. Basta lembrar os dois extremos do conhecimento: Deus pode

ser demonstrado, como indica a Quinta Meditação, de forma tão clara

quanto um teorema; e o mundo material somente pode ser conhecido

através de propriedades suscetíveis de serem representadas

geometricamente, como mostra a Sexta Meditação. Ocorre que Leibniz

colocará em questão precisamente esta extensão do modelo

matemático. É este o significado da identificação, feita no texto que

citamos, entre “ciência da quantidade em geral” e “ciência geral das

criaturas”.

Com isto Leibniz não põe em dúvida que a Ordem e a Medida

são critérios de conhecimento “físico” em sentido largo; mas não aceita

que tal conhecimento se estenda além deste domínio. É neste sentido

que a metafísica aparece como mais abrangente: não apenas ciência

creaturarum generalis, mas ciênciarerum generalis.

Fica impugnada, desta maneira, aMathesis Universaliscomo

fundamento da Metafísica. Pelo contrário, esta, sim, seria a verdadeira

ciência geral, conhecimento de todas as coisas e não somente daquelas

que podem ser representadas a partir do critério da quantidade.

Portanto, nos dois exemplos que mencionamos acima, Leibniz aceitaria

que a Matemática é a umtempo mediação e fundação do conhecimento

da natureza, mas não aceitaria a identificação entre demonstração

matemática e demonstração metafísica. Com isto fica prejudicada a

concepção matematizante da universalidade do conhecimento. O que

a evidência possui de universal não deve ser concebido a partir da

matemática, nem mesmo a partir daMathesis, posto que há uma ciência

mais universal do que a própriaMathesis.

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FRANKLIN LEOPOLDO ESILVA

A menção que Leibniz faz da Metafísica como ciência geral

deve nos levar então a identificá-la como esta ciência mais universal

do que aMathesis? Isto constitui um problema porque podemos

entender a pergunta de duas maneiras. Se a generalidade e a

universalidade neste caso forem entendidas como abrangência, então

certamente a Metafísica é mais geral do que aMathesis, já que, na

definição de Leibniz, esta é a ciência das criaturas e a metafísica é a

ciência das coisas, sem a restrição da criaturalidade, se entendermos

aí a palavra “coisas” como sinônimo de “objetos”. Mas se em vez da

abrangência, entendida como o leque de objetos, entendermos a

universalidade e a generalidade no nível dos fundamentos e dos

requisitos de certeza, então será legítimo indagar acerca da instância

fundamentadora da própria certeza da Metafísica. Para Descartes,

como se sabe, aMathesisfundamenta o conhecimento metafísico

porque, em que pese a diferença entre Matemática e Metafísica, a

índole matematizante do conhecimento justifica a universalidade da

Mathesis. Aquilo que fundamenta a certeza da Matemática é também

aquilo que fundamenta a certeza da Metafísica. Ora, como já vimos,

este fundamento não é entendido por Descartes como exterior ao

universo da Matemática. Trata-se da ambigüidade a que já nos

referimos: aMathesisnão se confunde com a Matemática, mas também

não pode ser colocada num outro gênero cognitivo. A solução

cartesiana não pode ser aceita por Leibniz, tendo em vista a

consideração da diferença degêneroque ele parece apontar entre a

ciência da quantidade, geralno seu gênero, e a Metafísica, que seria o

conhecimento efetivamente universal. Por outro lado, o problema de

Leibniz reencontra de certa maneira o de Descartes quando assumimos

que a generalidade da metafísica não nos isenta da tarefa de pensar as

condições de sua evidência.

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Pode-se dizer também que a leitura da comparação feita por

Leibniz entre aMathesis Universalise a Metafísica sugere três níveis

ou escalas de generalidade ou universalidade, até porque o filósofo

não deixa de empregar o termo “geral” nas duas definições:scientiam

creaturarum generalisescientia rerum generalis. A interpretação de

que para Leibniz haveria mais do que uma ciência geral a nosso ver

não se sustenta, pois não há razões que levem a ver em Leibniz o

abandono do pressuposto cartesiano da unidade da razão, que é em

última instância também o da unidade do conhecimento. Seria preciso,

portanto, compatibilizar uma visão unitária de universalidade do saber

com o que chamamos há pouco de níveis ou escalas de generalidade.

Num texto de 16862, Leibniz formula a seguinte classificação das

verdades: verdades contingentes relativas a indivíduos singulares;

verdades contingentes a que se chega por indução, observando o que

ocorre ordinariamente; verdades universais subalternas, que concernem

à regularidade dos fenômenos da natureza (leis científicas); verdades

universalíssimas, cuja validade é incondicionada. Em todos esses tipos

de verdade, a universalidade está de alguma maneira presente. Naquelas

relativas à singularidade, embora não possamos atingir inteiramente a

necessidade de que se revestem, existe uma ligação entre o indivíduo

e o universo no qual está inserido, de modo que o inteiro cálculo de

todas as relações, o que na prática é impossível para o intelecto humano,

revelaria as conexões entre o indivíduo e a totalidade, de modo a

compatibilizar o conhecimento individual com as determinações

necessárias e universais da totalidade.As proposições representativas

da generalidade indutiva revelam aquilo que ordinariamente ocorre

no universo, isto é, a ordem se torna visível pela observação continuada.

Teríamos aqui algo como uma universalidade relativa às instâncias de

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observação efetiva.A regularidade inerente às leis científicas, que não

depende do número de casos observados, nos fornece a universalidade

própria da ciência dos fenômenos, o domínio das leis científicas, que

Leibniz denomina de subalternas porque subordinadas a princípios

racionais mais elevados, como o princípio de contradição e o derazão

suficiente. O caráter subalterno destas verdades deve-se a que, embora

de validade universal no domínio do mundo criado, estão afetadas por

uma certa contingência e relatividade decorrentes da opção divina

por uma certa organização cósmica, de tal modo que não seria

contraditório conceber outras verdades (outras leis) ou mesmo a

suspensão das leis vigentes a critério dos desígnios divinos (milagre).

Finalmente, existem “certas proposições universalissimamente

verdadeiras, que jamais podem ser infringidas, nem mesmo por milagre,

não porque Deus não tenha o poder de infringi-las, mas porque Ele

mesmo, quando elegeu esta série de coisas decretou observá-las (como

propriedades específicas desta determinada série de coisas).”3 É

possível verificar, nesta tipologia de verdades, a diferença, mencionada

por Leibniz no primeiro texto que citamos, entre a universalidade do

mundo das criaturas e a universalidade absoluta, já que podemos

atribuir às leis subalternas o qualificativo de universais, embora outras

leis permaneçam de direito possíveis, como também a exceção à regra,

ainda que fruto do milagre. Pelo contrário, a verdade denominada

“universalíssima” corresponde a uma lei que não pode ser infringida

nem mesmo por Deus.Aeste tipo de verdade se vinculam as razões de

ser do próprio mundo das criaturas, numa ordem metafísica do

pensamento, pois “com estas proposições, uma vez estabelecidas, pode-

se dar razão de outras proposições contingentes, sejam universais,

sejam válidas ordinariamente, que se podem constatar neste universo.”4

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A “razão” de outras proposições contingentes encontra-se na

compreensão metafísica da estrutura do universo.Através destas razões

todas as verdades, mesmo as contingentes, são remetidas à necessidade

e à universalidade.

Esta última observação nos remete à questão da vigência, em

Leibniz, do pressuposto cartesiano da unidade da razão. Não só este

pressuposto é conservado, como também se pode dizer que a teoria

leibniziana da verdade o leva até as últimas conseqüências. “Verdadeira

é uma afirmação cujo predicado está incluído no sujeito, e assim, em

toda proposição afirmativa, necessária ou contingente, universal ou

singular, a noção do predicado de algum modo está contida na noção

do sujeito; de maneira que quem compreendesse perfeitamente ambas

as noções do modo como Deus as compreende veria assim claramente

que o predicado está incluído no sujeito.”5 O caráter analítico da

verdade implica a absoluta necessidade regendo qualquer relação entre

sujeito e predicado, de tal forma que a verdade da proposição repousa

em última análise na identidade fundamental entre os dois termos.

Como isso se aplica a toda proposição, “necessária ou contingente,

universal ou singular”, o conhecimento repousa num fundamento

universal que garante a relação analítica dos termos da proposição.

Existe, portanto uma instância de inteligibilidade fundamental que

justifica o projeto de racionalismo integral como característica do

pensamento de Leibniz: tal instância deve ser concebida como anterior

a todo e qualquer conteúdo proposicional, seja ele de caráter físico ou

metafísico. Só pode, neste sentido, ser uma instância formal, aquém

mesmo da distinção da evidência matemática, caso exemplar de

demonstrabilidade e de ligação analítica. Esta instância, para Leibniz,

é a Lógica.

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Leibniz entende que esta concepção representa um avanço em

relação a Descartes porque com ela atingimos o nível formal da

possibilidade de evidência, superando assim as limitações de uma teoria

da verdade sujeita ao âmbito de uma ciência da quantidade.Averdade

está primeiramente naforma identitáriada proposição; a partir desta

exigência temos de descobrir, por via de análise demonstrativa, a

ligação analítica, que existe em toda proposição, entre sujeito e

predicado.A identidade é a forma universal da proposição verdadeira.

Esta descoberta, entretanto, vem junto com uma incômoda

ressalva: “Porém nunca se pode chegar, por qualquer análise, às leis

universalíssimas nem às razões perfeitas das coisas singulares, pois

este conhecimento, necessariamente, é próprio somente de Deus.”6

Os dois extremos da tipologia das verdades são inacessíveis ao intelecto

humano: no caso do indivíduo singular, a sua determinação necessária

e a sua inserção na totalidade dependeriam da visão analítica de todos

os elementos e conexões existentes na realidade total; no caso das leis

universalíssimas, o completo conhecimento delas equivaleria à visão

daestrutura analítica da realidade, um tipo de conhecimento dotado

de um tal teor de racionalidade que lógica e ontologia se identificariam

perfeitamente. Naturalmente isto só pode constituir um ideal para o

conhecimento humano. É interessante refletir acerca destes dois

horizontes no sentido de compreender a relação profunda que existe

entre o universal e o particular. A impossibilidade de conhecer

perfeitamente o indivíduo deriva da impossibilidade de o intelecto

humano determiná-lo inteiramente na suasingularidade. A

compreensão da singularidade consiste na visão de todas as razões

das contingências que constituem a particularidade. Ora, a

compreensão de todas as razões suficientes que determinam o particular

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deve, no limite, vinculá-lo, por mediação de várias regras e leis

subalternas, às leis universalíssimas que em última instância explicam

o lugar de cada indivíduo na totalidade, e nos fariam ver também que

ele a expressa necessariamente. A plena racionalidade levaria a

compreender a individualidade, na sua singularidade própria, como

expressão sempre adequada do universal. Por isto podemos dizer que

o motivo pelo qual não podemos conhecer nem o indivíduo nem o

universal pleno é, no limite, o mesmo.As relações estabelecidas entre

contingência e necessidade no §13 doDiscurso de Metafísicanão

deixam dúvida quanto à possibilidade, existente de direito, ao menos,

de compreender o contingente como necessárioex hypothesicomo

um grau menor de necessidade se comparado à necessidade absoluta,

aquela que deriva diretamente do princípio de contradição. Embora a

primeira dependa de uma escolha de Deus, existencialmente explicitada

por meio de um decreto, o que permite que pensemos escolhas diversas

como possíveis e não contraditórias com as efetivamente decretadas,

ainda assim a regra de perfeição que nos impede de conceber um mundo

mais perfeito nos leva a atribuir necessidade aos decretos, e por esta

via às realidades livremente decretadas por Deus. É preciso lembrar

que o Deus leibniziano se caracteriza pela absoluta consistência entre

todos os seus predicados, o que não permite que estabeleçamos nele o

primado da vontade, como seria o caso do Deus cartesiano, nem

mesmo, creio que se possa dizer, qualquer diferença, em termos de

efetividade de ação, entre os predicados lógicos e os predicados ligados

à perfeição moral. Por isto, à integridade da estrutura lógica do mundo

criado corresponde a sua máxima perfeição, embora esta derive da

liberdade divina e não do Princípio de contradição unicamente. Como

em Deus o saber e o poder não podem ser concebidos por meio de

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FRANKLIN LEOPOLDO ESILVA

qualquer relação de subordinação, a universalidade racional recobre

tanto o aspecto lógico quanto o aspecto moral da ação criadora. Daí

a possibilidade de reconduzir a contingência à necessidade e a

particularidade individual à universalidade das leis fundamentais.

Permanece, no entanto, a impossibilidade de fato de que isto

ocorra no plano do intelecto humano. É preciso desde logo afastar

uma possível objeção ou falso problema. Esta impossibilidade não

configura uma oposição entre o intelecto humano e o intelecto divino.

Para Leibniz, a relação entre o humano e o divino no plano da

racionalidade é departicipação. Mesmo não aceitando o pressuposto

ontológico da Teoria da Reminiscência em Platão (pré-existência da

alma) Leibniz adota os resultados desta teoria, que nele passa a ter

uma base ontológica na concepção do inatismo radical conjugada com

a idéia de virtualidade. A partir disto temos condições de pensar o

intelecto humano como participante do divino, de forma tal que a

homogeneidade fundamental não impeça a diferença radical, concebida

na fronteira entre qualidade e quantidade, posto que se trata de uma

relação entre finito e infinito.Assim, não devemos entender que Deus

tem simplesmente um conhecimento mais completo do que o nosso,

mas que o seu conhecimento é de outra qualidade – qualidade esta

que deriva da possibilidade da visão simultânea de todas as relações e

assim também da simultaneidade das razões e dos seus efeitos, sejam

estes necessários ou contingentes. Desta forma Leibniz, no

cumprimento de seu projeto de racionalidade integral, concebe a

unidade da Razão de modo a incluir a razão humana no mesmo âmbito

formal da razão infinita de Deus.

No entanto, como já dissemos, esta homogeneidade

fundamental não impede as limitações do intelecto humano, que Leibniz

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CADERNOSESPINOSANOSXV - 2006

concebe positivamente como participação. E então o problema que se

coloca é o de entender como o conhecimento humano opera na sua

condição de participante limitado da racionalidade infinita; o que

significa também relacionar as limitações de fato com a completude

de direito. Para tanto um texto de 1684, “Meditações sobre o

conhecimento, a verdade e as idéias” nos instrui significativamente.

Numa hierarquia de graus de conhecimento, que tem entre

outros propósitos o de corrigir a perspectiva cartesiana sobre o mesmo

assunto7 , Leibniz distingue: o conhecimento éclaro quando possuo

os requisitos para reconhecer a coisa representada; éconfusoquando

não posso enumerar as características distintivas da coisa e assim não

posso chegar analiticamente à suanoção; o conhecimento édistinto

quando tenho condições de analisar um composto e compreender

separadamente os seus elementos de modo a chegar ànoção primitiva

que o definiria realmente. Quando a análise não atinge completamente

este objetivo tenho apenasdefinição nominal. Neste caso o

conhecimento é ditoinadequado. “Quando tudo aquilo de que se

compõe uma noção distinta é também conhecido distintamente ou

quando a análise chega até os últimos elementos, o conhecimento é

adequado, e não sei se os homens podem oferecer um exemplo perfeito

deste, embora a noção de número se aproxime bastante.”8

Se se pode legitimamente duvidar de que o conhecimento

adequado tenha sido alguma vez atingido pelo intelecto humano, isto

por outro lado não inviabiliza o conhecimento porque temos como

superaroperatoriamenteesta dificuldade. Ela deriva, como se vê, da

impossibilidade de análise completa, isto é, da consideração distinta

de todos os elementos envolvidos no conhecimento. Por que isto não

impossibilita o conhecimento? “Em geral, e especialmente numa análise

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FRANKLIN LEOPOLDO ESILVA

de maior extensão, não vemos, com efeito, a natureza total da coisa

de um modo simultâneo, mas empregamos signos no lugar das coisas

cuja explicação, ao meditar, omitimos por razão de economia, sabendo

ou crendo que a possuímos. (...) Chamo a este tipo de pensamento

cegoou tambémsimbólico(...)”9 . Os exemplos com que Leibniz ilustra

esta operação são apropriados para uma reflexão acerca dos problemas

que ela apresenta. Quando penso no quiliógono como um polígono

de mil lados iguais não penso distintamente as noções de lado, milhar

e igualdade, mas elas estão contidas na idéia de quiliógono, pois fazem

parte de sua definição. Assim, posso falar de quiliógono empregando

aspalavraslado, mil e iguais porque a estas palavras correspondem

idéias, não pensadas atualmente mas que tenho certeza de possuir,

tanto que poderia recorrer a elas se tivesse de analisar a noção de

quiliógono. Como estou tratando no caso com idéias matemáticas, a

lembrança da evidência é suficiente para a consistência daquilo em

que esta evidência entra como elemento de composição. Mas costumo

operar da mesma maneira quando falo do ouro. Ora, pode ocorrer

que não haja conhecimento distinto de todas as “notas distintivas” do

ouro, assim como peso, cor, ácido nítrico, as quais permaneceriam

confusas, ainda que se saiba que são componentes do ouro.

Há, portanto duas maneiras de se entender o conhecimento

simbólico. No exemplo matemático, as palavras empregadas

correspondem realmente a idéias distintas que a mente não focaliza

atualmente, mas nas quais poderia pensar se quisesse, pois são idéias

claras. No caso do ouro, as idéias dos elementos que o compõem

podem também ser pensadas, masconfusamente: não disponho

propriamente de um conhecimento claro de todos os componentes do

ouro, embora possa nomeá-los de alguma maneira. Isto quer dizer

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CADERNOSESPINOSANOSXV - 2006

que se pode pensar o composto de duas formas: a partir da clareza

dos elementos implícitos que não são pensadossimultaneamente; e a

partir de elementos pensados confusamente e, portanto não explicados

evidentemente em etapa anterior do conhecimento.Ambas as maneiras

de se falar do composto são, por assim dizer, tecnicamente inadequadas;

mas a segunda envolve um risco, mencionado na própria definição de

conhecimento simbólico: omitimos algumas explicações “sabendo ou

crendo” que possuímos. “E sucede sem dúvida que freqüentemente

cremos infundadamente possuir no espírito asidéiasdas coisas, quando

supomos infundadamente que já explicamos alguns termos

utilizados.”10 É desta forma que se torna perfeitamente possível falar

a respeito do que não se conhece. Podemos nomear aquilo de que não

possuímos idéia clara; na verdade, para Leibniz podemos até falar

daquilo de que não possuímos idéia alguma, porque nem sempre temos

na mente o significado da palavra que empregamos.

No entanto, a análise, se levada suficientemente longe, nos

revelaria a inconsistência do pensamento por meio da descoberta da

contradição no conjunto de elementos que fazem parte do composto.

Não vemos esta contradição se não analisamos completamente o

composto. Portanto, a verdade do conhecimento simbólico depende

da análise, e a lembrança da evidência que sustenta o conhecimento

simbólico está fundamentada nesta análise que deve ter sido feita

alguma vez. Daí o risco desupormosuma análise que realmente não

foi efetuada, já que a linguagem opera muitas vezes sem o respaldo de

significados analiticamente estabelecidos. A flutuação semântica,

característica inevitável da linguagem natural, constitui uma dificuldade

para o alcance efetivo da teoria analítica da verdade. É por isso que o

conhecimento simbólico não oferece, no plano da matemática, os

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FRANKLIN LEOPOLDO ESILVA

mesmos problemas que aparecem no plano das verdades de fato. Mas

isto nos mostra também a relevância do símbolo para o conhecimento:

é precisamente porque podemos estabelecer significados unívocos para

os símbolos matemáticos que esta ciência é verdadeiramente

demonstrativa. A certeza da matemática provém de uma eficiência

simbólica — se assim se pode dizer — que as palavras não possuem.

O caráter analítico das significações matemáticas está sempre presente

em todas as operações simbólicas. Eis a razão pela qual nem sequer se

coloca o problema da universalidade nas demonstrações desta ciência.

O princípio de contradição é fundamento direto.

A relevância do conhecimento simbólico não modifica a sua

condição epistemológica, inferior à dos conhecimentos claros e

distintos. Por isto dissemos antes que se trata de superar

operatoriamentea dificuldade de conhecer claramente os compostos.

O ideal seria a visão clara, distinta e simultânea de todos os elementos

do composto, o que seria o conhecimentointuitivo, termo que tem

em Leibniz uma acepção diferente da cartesiana, já que reúne as

virtudes do conhecimento analítico e do conhecimento direto, que

para Leibniz só é possível como identidade formal. Como a forma

intuitiva está fora do alcance do intelecto humano no caso dos

compostos — a menos que cada composto fosse sempre inteiramente

analisado, o que não é factível — Leibniz procura resgatar a

legitimidade do conhecimento simbólico, mesmo porque ele está

presente necessariamente com muita freqüência em nossa atividade

intelectual. Por isto mesmo é que cumpre estabelecer com rigor os

requisitos que deveriam tornar o conhecimento simbólico

absolutamente seguro, eliminando assim o risco, mencionado

anteriormente, da substituição da explicação analítica dos termos pela

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CADERNOSESPINOSANOSXV - 2006

crença em tê-la feito. Somente assim a universalidade do conhecimento

decorreria efetivamente do caráter analítico da verdade.

Neste sentido o projeto de umaLíngua ou Característica

Universalcorresponde em Leibniz a uma necessidade epistemológica

incontornável. O que no entanto é verdadeiramente notável é o estatuto

metafísico-teológico atribuído às possibilidades que seriam oferecidas

por uma língua perfeitamente adaptada ao conhecimento simbólico.

Também aqui — e talvez sobretudo aqui — se percebe o esforço

leibniziano para ultrapassar o significado cartesiano deMathesis

Universalis. Pois o filósofo não hesita em vincular a universalidade

das possibilidades simbólicas desta língua ao próprio Deus: “É antigo

o dito de que Deus fez tudo com peso, medida e número”11. A referência

à procura da língua adâmica e à língua da natureza — investigação da

qual, como se sabe, não estavam ausentes motivações místico-religiosas

— também nos fornece idéia da dimensão em que Leibniz pensa o

problema. Trata-se de encontrar o meio de tratar em bases unívocas

todos os conceitos, liberando-os da carga de flutuação semântica

inerente à linguagem habitual.Aparentemente o modelo é matemático

— e Leibniz insiste inclusive na vantagem de utilização do número.

Mas a atribuição ao número de uma figura “quase metafísica” mostra,

por outro lado, que o número é exemplo privilegiado por realizar

mais completamente o propósito unificador e universalizador de uma

língua fundamental. O caráter heurístico da notação aritmética e

algébrica devem ser considerados, neste sentido, sinais de que “Deus

houvera querido advertir-nos especialmente de que em nosso

entendimento se escondia um segredo muito mais importante do qual

estas ciências seriam somente sombras.”12 A organização de um léxico

e de regras de combinatória entre os símbolos ofereceria possibilidades

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de comunicação do pensamento, de juízos e de invenção dotados de

total demonstrabilidade. Desta forma a expressão permitiria uma

ponderação (o “peso” da sabedoria bíblica) que poderia ser efetuada

simultaneamente aos enunciados, de forma que o acordo acerca de

possíveis controvérsias se faria por meio do cálculo, isto é, por meio

de uma operação que utilizaria símbolos unívocos e regras

explicitamente estabelecidas. Trata-se, portanto do instrumento

privilegiado, talvez o único perfeitamente adequado, darazão

calculadora.

Vê-se porque um tal instrumento permitiria superar os riscos

do conhecimento simbólico. Não haveria qualquer elemento lexical

que não correspondesse à transparência analítica requisitada pelo

conhecimento simbólico. Neste caso, a universalidade da certeza,

derivada da evidência de todos os termos utilizados na cadeia

demonstrativa, estaria assegurada de antemão, pela própria índole dos

termos empregados. Nenhuma obscuridade subsistiria numa tal notação

de idéias. E a expressão da realidade ficaria garantida pelo pressuposto

leibniziano da identidade entre lógica e ontologia no plano das relações.

Como o conhecimento é cálculo de relações, todos os campos do

saber poderiam contar com a mesma evidência matemática, não por

terem sido “matematizados”, mas por corresponderem àsformas

fundamentais do cálculo demonstrativo. Em todos os setores do saber

auniversalidade lógicaestaria então imediatamente presente.

Trata-se de um instrumento, mas pode-se ver o quanto ele é

necessário para a realização do ideal leibniziano de um racionalismo

integral. Não é por outra razão que um tal instrumento está revestido

das características metafísicas e teológicas com que ele se apresenta

na exposição leibniziana. Apesar de todos os problemas que a

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CADERNOSESPINOSANOSXV - 2006

Característica Universal apresenta — apontados por vários

comentadores — o projeto se inscreve perfeitamente na concepção

rigorosamente formalista da universalidade da verdade. A

universalidade deve ser atingida, como diz Leibniz, “para além das

palavras”.

Notas

1 Leibniz, G.,Mathesis Universalis, in Gerhardt, Matematische

Schriften, VII, p.53, apud Cardoso, A.,Leibniz Segundo a

expressão, Lisboa: Colibri, 1992, p.32.2 Leibniz, G.,Verdades necessárias y contingentes, in Escritos

Filosóficos, org. Ezequiel de Olaso, Buenos Aires: Charcas, 1982,

p.338ss (o título foi dado pelo organizador do volume).3 Idem, ibidem, p.331.4 Idem, ibidem, p.331.5 Idem, ibidem, p.328.6 Idem, ibidem, p.332.7 Leibniz, G.,Meditaciones sobre el conocimiento, la verdad y las

ideas, in Escritos Filosoficos, ob. cit., pp.271 ss.8 Idem, ibidem, p.272-273.9 Idem, ibidem, p.273.10 Idem, ibidem, p.273.11 Leibniz, G.,Historia y Elogio de la Lengua ou Característica

Universal, in Escritos Filosóficos, ob. cit., p.165.12 Idem, ibidem, p.166.

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LUÍS CÉSAR OLIVA

Bondade Divina e Contingência em Leibniz

LUÍS CÉSAROLIVA *

* Professor do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP.

Resumo:Em sua correspondência comArnauld, Leibniz mostra comoo recurso à vontade divina é fundamental para garantir o espaço dacontingência no interior de uma metafísica que não permite aindeterminação. No entanto, ainda resta perguntar se a bondade divina,uma das perfeições incluídas na noção de Deus, não torna necessárioaquilo que Leibniz chamara de contingente. Por isso faremos um exameda concepção leibniziana de vontade divina, sobretudo a distinção entrevontade antecedente e vontade conseqüente, visando determinar atéque ponto a bondade divina (entendida como vontade perfeitíssima)implica ou não um necessitarismo universal.

Palavras-chave:Leibniz, contingência, bondade divina, vontadeantecedente, vontade conseqüente.

Abstract: In his correspondence withArnauld, Leibniz shows us howthe appeal to the divine will is fundamental to guarantee a space tocontingency in a metaphysics that does not allow indetermination.Nevertheless, we must still ask if divine goodness, one of the perfec-tions included in the notion of God, does not render necessary whatLeibniz had called contingent. This is why we will examine Leibniz’snotion of divine will, especially the distinction between antecedentand consequent will, intending to determine in which measure divinegoodness (understood as the most perfect will) implies or not a uni-versal necessitarism.

Key-words: Leibniz, contingency, divine goodness, antecedent will,consequent will.

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A alternativa de Adams

Com a Correspondência com Arnauld, Leibniz conquistou

definitivamente um lugar para a vontade divina no processo criador

(com o apelo aos decretos livres de Deus1 ) e na fundamentação de

um estoque de mundos possíveis não criados que garantam a cidadania

ontológica à contingência. Mas será que a colocação da vontade divina

no jogo basta para afastar a ameaça necessitarista?ACorrespondência

parecia sugerir que sim, entretanto resta ainda uma questão: a bondade

divina não tornaria necessário o decreto de fazer sempre o melhor,

que funda a contingência?

Comecemos pela primeira ordem de questionamentos. Fundar

o contingente na escolha divina do melhor coloca o intérprete de

Leibniz numa encruzilhada que foi bem caracterizada porAdams:De

acordo com Leibniz, este mundo, em vez de qualquer outro mundo

possível, é o real porque Deus escolhe realizar o melhor, seja o que

for, e este é o melhor dentre todos os mundos possíveis. Portanto, se

é contingente que este mundo é o real, ou bem deve ser contingente

que Deus escolha o melhor, seja o que for, ou bem deve ser contingente

que este é o melhor. Qual é o contingente?2 Note-se que a preocupação

de Adams não é apenas sobre a contingência do mundo em si mesmo,

a qual poderia ser respondida pelo fato de que há outros mundos

possíveis não auto-contraditórios. O questionamento é sobre se é

contingente o fato de este mundo ter sido criado. Logo o que está em

jogo é a contingência não do próprio mundo, mas do ato criador

enquanto tal, o que traz evidentes conseqüências para a liberdade de

Deus. Em outras palavras, Deus tem, de fato, alternativas à criação

deste mundo? É para garantir isto queAdams impõe ao menos uma de

duas possibilidades: ou é contingente que Deus escolha o melhor, seja

lá o que for, ou é contingente que este mundo seja o melhor.

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LUÍS CÉSAR OLIVA

A contingência do mundo melhor

Apesar de as duas possibilidades não serem excludentes e

Leibniz oscilar bastante em opúsculos diversos,Adams inclina-se para

a segunda e toma por base textual sobretudo o seguinte trecho:Ora,

não reconheço como necessária nenhuma proposição que não pode

ser demonstrada por uma redução àquilo cujo contrário implica

contradição. É o mesmo argumento: “Deus quer necessariamente a

obra mais digna de sua sabedoria”. Digo que ele quer, mas não

necessariamente, já que , embora esta obra seja a mais digna, isto

não é uma verdade necessária. É verdade que esta proposição “Deus

quer a obra mais digna dele” é necessária. Mas não é verdade que

ele a queira necessariamente. Pois esta proposição “esta obra é a

mais digna” não é uma verdade necessária, é uma verdade

indemonstrável, contingente, de fato.3

Se não é demonstrável que este mundo é o melhor, então é

contingente que ele seja o melhor, de modo que, ainda que fosse

necessário que Deus quisesse o melhor (hipótese que Leibniz concebe

no mesmo texto), Deus não o quereria necessariamente. Em outras

palavras, poderíamos atribuir a Leibniz a seguinte formulação: é

necessário que Deus queiracontingentemente o melhor. Esta

ambigüidade que dá verdadeiros nós na cabeça do leitor se deve à

maneira como Leibniz aplica o adjetivonecessário . Ele o aplica à

totalidade da proposição (“Deus quer o melhor”), mas não ao conteúdo

do predicado (“o melhor”). Como esta armadilha é possível? Graças à

indemonstrabilidade de que este mundo é o melhor. Tal operação

requereria uma análise infinita, não só dos elementos deste mundo,

mas de todos os infinitos mundos possíveis com os quais o melhor é

comparado. E isso nossa finitude não permite realizar.

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CADERNOSESPINOSANOSXV - 2006

Esta explicação da distinção entre verdades necessárias e

contingentes pela idéia de análise infinita está presente em vários textos

leibnizianos de diversos períodos. Tomemos um deles como exemplo:

Nisto também aparece o misterioso critério da distinção entre

verdades necessárias e contingentes, que não se compreende

facilmente sem algum conhecimento de matemática. Nas proposições

necessárias, chega-se a uma equação idêntica quando a análise é

prosseguida até um certo ponto; e isto é demonstrar uma verdade

segundo o rigor geométrico; mas nas contingentes o progresso da

análise vai ao infinito, de razão em razão, de modo que não se obtém

jamais uma demonstração acabada.4 Ora, nenhuma proposição se

enquadra melhor neste critério do que aquela que afirma que este

mundo é o melhor.

A objeção mais evidente é que esta distinção se baseia não nas

coisas mesmas, mas na nossa capacidade intelectual finita.Aresposta,

porém, é imediata:sem a consideração do infinito, sem a oposição

entre a análise finita dos necessários, que se termina nas noções

primitivas, e a análise dos contingentes, que vai ao infinito, não

haveria como escapar à alternativaou necessidade absoluta,ou o

acidental puro e simples. Donde a importância dos textos em que

Leibniz insiste em que a oposição entre os dois modelos de análise

não é relativa à nossa finitude, e que nem mesmo Deus poderia

demonstrar uma verdade contingente, corrigindo aqueles outros que

poderiam sugerir uma inexaustibilidade de fato, devida ao nosso

estatuto de mens creata.5 Nem Deus poderia percorrer uma série

infinita como a da análise de uma proposição contingente. Se o fizesse,

estaria realizando uma ação contraditória porque não pode haver o

passo final de uma análise infinita, assim como não pode haver o último

dos números. Está então garantido o caráter contingente da afirmação

de que este mundo é o melhor?

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LUÍS CÉSAR OLIVA

Talvez não. Se prosseguirmos no texto de Leibniz acima citado,

encontraremos o seguinte:nas contingentes o progresso da análise

vai ao infinito, de razão em razão, de modo que não se obtém jamais

uma demonstração acabada; todavia a razão da verdade subsiste

sempre, embora ela seja perfeitamente compreendida apenas por

Deus, único que penetra a série infinita em um só ato do espírito.6

Sem percebê-lo, Leibniz oferece uma objeção poderosa a sua própria

argumentação. É bem verdade que a demonstração do contingente é

igualmente interminável para nós ou para Deus, mas isto se dá por

causa do caráter sucessivo, temporalmente desdobrado, do processo

de análise. Mas Deus não conhece desta maneira:Apenas Deus vê,

não, bem entendido, o fim da resolução, que não existe, mas pelo

menos a ligação dos termos, quer dizer, o envolvimento do predicado

no sujeito, pois ele vê tudo o que está na série.7 O caráter intuitivo do

conhecimento divino homogeneíza os dois campos que Leibniz buscava

tornar heterogêneos com o apoio da análise infinita. Os limites são do

procedimento, seja ele executado por um ser finito ou infinito, mas só

nós estamos condenados a tal procedimento. Deus percebe que este

mundo é o melhor tão imediatamente quanto nós percebemos A=A.

Sendo assim, este critério valioso, que nos permite mapear o campo

da contingência no mundo criado, bem como no interior dos outros

mundos possíveis, é inócuo para Deus no avaliar a possibilidade da

criação. Ou, como diz Ribeiro de Moura: a contingência,

mundanamente aclimatada pelo recurso à análise infinita, na verdade

carece de sustentação metafísica.8

E o que poderia dar tal sustentação? Algo que garantisse a

Deus alternativas reais. No caso em questão, a possibilidade

metafisicamente garantida de que outros mundos fossem o melhor.

Mas quais são as alternativas para algo que se define exatamente por

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excluí-las? Sendo necessariamente um só, o melhor não oferece as

alternativas que nos permitiriam falar de “melhores possíveis”. No

limite, poderíamos dizer que perguntar se este mundo poderia não ser

o melhor é perguntar se este mundo poderia não ser este mundo, ou

se o melhor poderia não ser o melhor. Não se trata, é bom repetir, de

questionar a contingência do mundo (isto, em tese, já resultaria da

afirmação de que há outros mundos possíveis não-melhores), mas de

questionar a contingência da afirmação de que este mundo é o melhor,

o que não é possível. Sócrates poderia não ter existido. Foi portanto

um ser contingente. Mas Sócrates não poderia não ter sido Sócrates,

já que isto feriria, como no caso do melhor, o princípio de não

contradição.9 Por conseguinte, esta saída parcial de Leibniz privilegiada

por Adams não se apresenta como sólida.

A contingência da escolha

Resta-nos então o outro lado da alternativa proposta por

Adams. Se não é contingente que este mundo seja o melhor, deve

então ser contingente que Deus escolha o melhor, seja ele qual for.

Não faltam referências textuais para corroborar esta hipótese. Veja-

se, por ex.:Assim, que Deus se ame é algo necessário, como cabe

demonstrar a partir de sua própria definição. Contudo não cabe

demonstrar que Deus faça o mais perfeito, já que o contrário não

implica contradição.10 O próprio Adams reconhece que aTeodicéia

favorece esta solução, contudo o comentador prefere a outra

interpretação, baseando-se em outros escritos de Leibniz

contemporâneos à preparação daTeodicéia. De qualquer modo, não

se podem ignorar textos como:Há portanto em Deus uma liberdade,

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LUÍS CÉSAR OLIVA

isenta não somente de coação, mas também de necessidade. Refiro-

me à necessidade metafísica; pois é uma necessidade moral que o

mais sábio seja obrigado a escolher o melhor.11 Ou então como:Pode-

se dizer, em certo sentido, que é necessário que os bem aventurados

não pequem; que os demônios e os condenados pequem; que o próprio

Deus escolha o melhor; que o homem siga o partido que mais o afeta.

Mas esta necessidade não é oposta à contingência; não é ela que se

chama lógica, geométrica ou metafísica, cujo oposto implica

contradição.12 Também o trecho do parágrafo 13 doDiscurso de

Metafísicadizendo que fazer sempre o mais perfeito foi o primeiro

decreto livre de Deus parece ir na mesma direção. Se fazer o melhor

fosse constitutivo da essência divina, semelhante decreto seria

totalmente redundante.

A pedra no sapato desta interpretação reside no fato de que

Deus é o ser perfeitíssimo (logo necessário) e que uma de suas

perfeições é a suprema bondade. Como dizer que Deus é

necessariamente bom e que ao mesmo tempo fazer o melhor não

decorre necessariamente disso? Em outras palavras, para que a solução

funcione é preciso dizer que a bondade de Deus é contingente, o que

tem conseqüências teológicas muito complicadas, além de conflitar

com o argumento ontológico, ao qual Leibniz nunca chegou a renunciar

claramente.

Embora Leibniz não se pronuncie explicitamente sobre o caráter

contingente da bondade divina, nem possa fazê-lo, há indícios fortes

de que detectava isto como um problema. Na abertura doDiscurso de

Metafísica, quando discute a noção de Deus como um ser

absolutamente perfeito, é curioso que, das perfeições divinas, o autor

só apresente duas, a onipotência e a onisciência, que correspondem

analogicamente a nossa força de existir e a nossa percepção limitadas,

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mas nada fala da bondade, correspondente a nossa vontade limitada.

Esta terceira perfeição divina é explicitamente apresentada em textos

posteriores, como aMonadologia. Vejamos: 48: há em Deus a

Potência, origem de tudo; depois o Conhecimento, contendo a

particularidade das idéias; por fim a Vontade, que provoca as

mudanças ou produções segundo o princípio do melhor. É isto que

corresponde ao que constitui, nas Mônadas criadas, o sujeito ou a

base, a faculdade perceptiva e a faculdade apetitiva. Em Deus, no

entanto, estes atributos são absolutamente infinitos ou perfeitos, e,

nas mônadas criadas ou nas enteléquias, não passam de imitações

proporcionais à perfeição nelas contida.13 Ou naTeodicéia: Muitos

creram que havia aí uma relação secreta à santíssima Trindade; que

a potência se liga ao Pai, ou seja, à fonte da divindade; a sabedoria

ao Verbo eterno, que é chamado logos pelo mais sublime dos

evangelistas; e a vontade ou amor ao Espírito santo. Quase todas as

expressões ou comparações tomadas da natureza da substância

inteligente para aí tendem.14 Tanto do ponto de vista da revelação

cristã, que aproximaria os atributos divinos da Santíssima Trindade,

quanto da analogia com as faculdades humanas, a bondade se faria

necessária entre as perfeições divinas. É difícil explicar tal ausência,

no início doDiscurso, por um deslize. Leibniz tem suas razões para

trazer a bondade divina apenas nos parágrafos seguintes. Em outras

palavras, se Leibniz esboça uma prova a priori da existência de Deus

a partir das perfeições divinas, não quer contudo que a bondade divina

seja demonstrada a priori. Ele deduz diretamente da onipotência e

onisciência divinas o fato de que Deus age da maneira mais perfeita e

praticamente joga para a criação divina a responsabilidade de fundar a

prova (a posteriori) de que Deus é sumamente bom.

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LUÍS CÉSAR OLIVA

Assim, afasto-me muito da opinião dos que sustentam que

não há quaisquer regras de bondade e de perfeição na natureza das

coisas ou nas idéias que Deus tem delas, e que as obras divinas são

boas apenas pela razão formal que Deus as fez.15 As obras divinas

devem ser intrinsecamente boas e não boas apenas porque foram feitas

por Deus. A bondade própria do mundo se deixa provar pela própria

revelação bíblica, em que se diz que Deus contemplou o mundo criado

e viu que era bom, o que seria desnecessário se as coisas fossem boas

só porque Deus as fez. Além do mais, diz Leibniz,Isto é tanto mais

verdadeiro quanto é pela consideraçãodas obras que se pode

descobrir o operário. Portanto, é preciso que estas obras tragam em

si o caráter de Deus. Confesso que a opinião contrária me parece

extremamente perigosa e bastante semelhante à dos últimos

inovadores, cuja opinião é a beleza do universo e a bondade atribuída

por nós às obras de Deus não passarem de quimeras dos homens que

concebem Deus à sua maneira.16 Se tivéssemos tido no primeiro

parágrafo a versão completa da prova ontológica, como no opúsculo

O Ser perfeitíssimo existe17, o caminho natural seria passar da suprema

bondade, como perfeição divina, à bondade do mundo que resulta de

uma ação perfeita. No entanto, não é isso que ocorre. E o que chama

Leibniz de opinião perigosa dos inovadores? Não apenas que o mundo

não é bom em si, mas que é pela consideraçãodo operário que se

podem descobrir as obras. Por esta via, teríamos que a perfeição do

operário só permite a existência de uma obra perfeita, sem outra

possibilidade, o que tornaria o mundo uma criação necessária.

Havendo mostrado no artigo 2 que as regras de bondade e

perfeição não são fruto de uma vontade arbitrária, Leibniz deve mostrar

no artigo 3 doDiscursoque Deus agiu, segundo estas regras, da melhor

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CADERNOSESPINOSANOSXV - 2006

maneira. Como vimos, não fará isso colocando a contradição de uma

ação imperfeita com um Deus sumamente bom por sua própria essência.

Também não pode simplesmente deduzir sua tese a partir da onipotência

e da onisciência divinas como sugerira no artigo 1. Por isso lançará

mão de outra noção: a glória de deus. Esta pode ser compreendida em

dois sentidos (parágrafo 109 daTeodicéia): ou é a satisfação de Deus

com o conhecimento de suas próprias perfeições, e então Deus a possui

sempre, ou é o conhecimento dessas perfeições por outros seres

inteligentes, e então está vinculada à criação. Para haver glória, neste

segundo sentido, Deus deve ser necessariamente louvável por tudo

que faz. Quando Leibniz disse no fim do artigo 1quanto mais

estivermos esclarecidos e informados sobre as obras de Deus, tanto

mais dispostos estaremos a achá-las excelentes e inteiramente

satisfatórias em tudo o que possamos desejar18 , o autor referia-se à

glorificação de deus. Ora, por que louvar Deus se ele não fez o melhor

possível? Afinal, diz Leibniz, assim como um mal menor tem caráter

de bem, um bem menor tem caráter de mal. Esta imperfeição atingirá

qualquer ação de Deus, por melhor que seja, se esta não chegar à ação

ótima. Só há um ótimo, ao passo que as imperfeições desdobram-se

infinitamente. Não há nenhum grau de imperfeição que não tenha

infinitos graus de imperfeição acima ou abaixo; o que colocaria Deus

numa situação sempre “inglória” se não escolhesse o melhor possível.

Só o melhor merece a glória, do contrário ela não teria razão de ser e

o princípio de razão suficiente seria novamente infringido, bem como

as Escrituras.

No Discurso, ao que parece, é por visar a glória que Deus

escolhe o melhor. No limite, poderíamos dizer que Deus não é

considerado bom porque isto está necessariamente inscrito na sua

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essência, e sim porque obedece seu intelecto, de modo a ser digno de

glória. Mas tal desvio é inútil se não for mostrado que esta obediência

é contingente. Daí a importância, mesmo naTeodicéia, em que a

estratégia é diferente, de deixar claro que o desejo de glória não é

necessário.Não é verdade que Deus ame sua glória necessariamente,

se por isto se entende que ele é levado necessariamente a

proporcionar-se sua glória por meio das criaturas. Pois se assim fosse,

ele se proporcionaria esta glória sempre e em toda parte. O decreto

de criar é livre.19

O percurso doDiscurso parece sorrateiramente tornar

contingente a bondade divina. Mas outros textos põem sérias

dificuldades para este caminho:67 – Ademais, se Deus não tivesse

escolhido a melhor série do universo (na qual está incluído o pecado),

teria admitido algo pior que todo o pecado das criaturas, pois teria

cerceado suas próprias perfeições e, como conseqüência, também as

alheias; com efeito, a perfeição divina não deve deixar de escolher o

mais perfeito, já que o menos bom tem algo de mau. Esuprimir-se-ia

Deus, suprimir-se-iam todas as coisas, se Deus fosse afetado de

impotência, ou seu entendimento se equivocasse ou sua vontade

falhasse.20 Bertrand Russell também destacou o problema:As boas

ações de Deus são, por conseguinte, contingentes, e verdadeiras

somente dentro do mundo real. Elas são a origem da qual deriva

toda explicação dos fatos contingentes por intermédio da razão

suficiente. Elas próprias, contudo, têm sua razão suficiente na

bondade de Deus, que se deve supor metafisicamente necessária.

Leibniz não consegue explicar por que, um vez que as coisas se passam

assim, as boas ações de Deus não são também necessárias. Mas se

elas fossem necessárias, a série total de suas conseqüências também

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o seria e sua filosofia cairia assim no espinosismo.21 As colocações

de Russell pautaram amplamente a tradição anglo-americana de

comentário, sobretudo por causa da nota de rodapé apresentada neste

trecho pelo inglês para justificar que a bondade divina seja necessária:

Em parte alguma, pelo que sei, Leibniz afirma claramente que a

bondade de Deus é necessária, mas esta conclusão parece decorrer

de sua filosofia. Porque a bondade divina é uma verdade eterna que,

ao contrário de seus atos, não se refere somente ao mundo real.

Dificilmente podemos imaginar que, em outros mundos possíveis,

Deus não tivesse sido bom, ou que seja meramente contingente o fato

de ser bom. Mas se fizéssemos esta suposição, apenas adiaríamos a

dificuldade, uma vez que em seguida precisaríamos de uma razão

suficiente para a bondade de Deus. Se essa razão fosse necessária, a

bondade divina seria também necessária; se contingente, ela própria

exigiria uma razão suficiente, a respeito da qual se repetiria a mesma

dificuldade.22

É a esta nota, mais até do que aos argumentos leibnizianos,

que vários intérpretes tentaram responder. Curley comenta:Este é um

dilema bem real. Se algo segue de Deus ser um ser soberanamente

perfeito, deveria ser sua bondade. E ainda assim penso ser claro que

Leibniz sustentaria que em alguns mundos possíveis Deus não teria

sido bom – p. ex., em um no qual os inocentes fossem torturados

eternamente no inferno e os vis recompensados no céu.

Se a bondade de Deus é contingente, isto de fato conduz à

regressão ao infinito a que Russell se refere. Mas em pelo menos um

lugar Leibniz parece não apenas aceitar esta regressão, mas insistir

nela: “Se alguém me pergunta por que Deus decidiu criar Adão,

digo que é porque decidiu fazer o mais perfeito. Se me perguntam

agora por que ele decidiu fazer o mais perfeito, ou por que ele escolhe

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o mais perfeito... respondo que ele o quis livremente, isto é, por que

quis. Então ele quis porque quis querer, e assim infinitamente...”(Grua

302).23 O texto invocado por Curley apresenta uma argumentação

incomum na obra de Leibniz.Adams apresenta vários textos, referidos

tanto aos homens quanto a Deus, em que Leibniz recusa a série de

infinitas volições. A vontade se dirige a ações, não ao próprio querer.

E a razão disso é que semelhante regressão ao infinito viola o princípio

de razão suficiente. Como explicaAdams, o uso leibniziano do princípio

na prova da existência de Deus requer que não se aceite uma regressão

infinita de razões como constituindo, em si mesma, uma razão

suficiente. Ao contrário, a razão suficiente do contingente deve

encontrar-se em um ser metafisicamente necessário, Deus, cuja

natureza impeça a regressão.

Mas se é assim, parecem esgotadas todas as alternativas para

evitar a necessidade da bondade divina e, como já mostramos as

fragilidades da tese de que este mundo é apenas contingentemente o

melhor, resulta que a contingência está mesmo expulsa do real. Não

podemos, porém, fazer tal afirmação antes de verificar como o próprio

Leibniz apresenta a bondade divina, não em suas conseqüências (o

que foi nossa perspectiva até o momento), mas nela mesma.

A vontade divina

A bondade, segundo Leibniz, é a vontade absolutamente

perfeita. Mas o que é, afinal, a vontade? Vejamos a noção geral de

vontade que Leibniz apresenta naTeodicéia: no sentido geral, pode-

se dizer que a vontade consiste na inclinação a fazer algo na proporção

do bem que ele envolve.24 Tal apresentação é válida tanto para Deus,

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em que a vontade é perfeita, quanto para nós. Em primeiro lugar, é

preciso salientar o que significa dizer que a vontade é uma inclinação.

Do mesmo campo semântico do conatus, ou esforço, esta inclinação

não é a pura potência para uma ação, mas já uma ação infinitesimal.

No contexto da dinâmica, referindo-se à força ativa, Leibniz diz que

estaenvolve um conatus ou tendência à ação, de tal modo que a ação

se segue se algo não a impede.25 Leibniz, aliás, nem poderia aceitar

aceitar uma faculdade nua, desligada das tendências que a determinam:

as faculdades sem algum ato, em uma palavra, as puras potências da

Escola, também não são senão ficções, que a natureza não conhece e

que só se obtêm fazendo abstrações. Pois onde achar-se-á no mundo

uma faculdade que se encerra na só potência e não exerce nenhum

ato? Há sempre uma disposição particular à ação e a uma ação em

vez de outra. E além da disposição há uma tendência à ação, de que

há sempre uma infinidade ao mesmo tempo em cada sujeito; e estas

tendências nunca são sem algum efeito.26 Em outras palavras, a

vontade não é um poder absoluto e indiferente de escolher a partir de

representações ou inclinações exteriores a ela, e sima própria inclinação

resultante.

Isto não significa, mesmo no interior da mônada sem portas

nem janelas, que a vontade seja independente de tudo mais afora as

próprias tendências. Pelo contrário, as inclinações de que ela é o

resultado são, por sua vez, motivadas por percepções de variados

tipos e graus de distinção.Quando dizemos que uma substância

inteligente é movida pela bondade de seu objeto, não pretendemos

que este objeto seja necessariamente um ser existente fora dela, e

nos basta que ele seja concebível; pois é sua representação que age

na substância, ou melhor, a substância age sobre si mesma na medida

em que é disposta e afetada por esta representação.27

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Por outro lado, é preciso destacar que esta determinação da

vontade por razões não significa uma identificação pura e simples de

entendimento e vontade, nem uma determinação absolutamente

necessária da segunda pelo primeiro. A separação dos dois é

explicitamente defendida por Leibniz:E quanto ao paralelo entre a

relação do entendimento ao verdadeiro e da vontade ao bem, é preciso

saber que uma percepção clara e distinta de uma verdade contém

nela atualmente a afirmação desta verdade; assim o entendimento é

por ela necessitado. Mas no caso de uma percepção que se tenha do

bem, o esforço de agir segundo o juízo, que penso constituir a essência

da vontade, dela se distingue.28 Mesmo que fôssemos perfeitos e só

tivéssemos conhecimentos distintos, não haveria confusão entre

vontade e intelecto porque a volição não é um juízo, e sim uma

tendência determinada por um juízo. A percepção clara e distinta não

se distingue da afirmação da verdade, logo o próprio princípio de

identidade garante o nexo absolutamente necessário entre entendimento

e juízo. No caso da vontade, o esforço de agir, mesmo decorrendo do

juízo ou percepção distinta, não se identifica com ele. Daí que Leibniz

possa concluir, no fim do parágrafo, que a ligação entre juízo e vontade

não é tão necessária quanto se poderia pensar.

Além disso, e à diferença de Deus, não somos perfeitos, não

temos apenas conhecimentos distintos, nem seguimos sempre o juízo

do entendimento. Mesmo a possibilidade, aventada por Leibniz, de

suspendermos a ação desviando a atenção para motivos diversos dos

que mais nos inclinam no momento não garante um predomínio

absoluto do entendimento:não obrigo a vontade a seguir sempre o

juízo do entendimento porque distingo este juízo dos motivos que

vêm das percepções e inclinações insensíveis. Mas considero que a

vontade segue sempre a representação mais vantajosa, seja ela distinta

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ou confusa, do bem e do mal, a qual resulta das razões, paixões e

inclinações, ainda que ela possa também achar motivos para

suspender seu juízo. Mas é sempre por motivos que ela age.29

Por isso o domínio do voluntário, em Leibniz, vai além do

consciente, de modo que não se constitui apenas de volições, a saber,

tendências que resultam da apercepção do bem e do mal envolvidos

em um objeto, mas também de outras apetições:Há ainda esforços

que resultam das percepções insensíveis, de que não nos apercebemos,

os quais prefiro chamarapetiçõesao invés de volições (embora haja

também apetições aperceptíveis), pois apenas chamamos ações

voluntárias aquelas de que podemos nos aperceber e sobre as quais

nossa reflexão pode recair quando seguem da consideração do bem

e do mal.30 Tais apetições, sendo este o termo mais geral para o

princípio de espontaneidade contido em toda mônada, não são elas

mesmas voluntárias, já que inconscientes, mas podem, somadas entre

si ou associadas a volições, compor um esforço voluntário quando a

inclinação resultante é apercebida.Várias percepções e inclinações

concorrem para a volição perfeita, que é o resultado do seu conflito.

Há algumas imperceptíveis isoladamente, cuja soma faz uma

inquietude que nos impulsiona sem que vejamos a razão; há várias

reunidas que levam a um certo objeto, ou que dele se afastam, e

então é desejo ou temor, acompanhado também de uma inquietude,

mas que nem sempre chega ao prazer ou desprazer. Enfim, há impulsos

acompanhados efetivamente de prazer e de dor, e todas estas

percepções são ou sensações novas ou imaginações remanescentes

de alguma sensação passada (acompanhadas ou não de lembrança)

que, renovando os atrativos que estas mesmas imagens tinham nas

sensações precedentes, renovam também os impulsos antigos na

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proporção da vivacidade da imaginação. E de todos estes impulsos

resulta enfim o esforço prevalente, que faz a vontade plena.31

Assim, pode-se ver que toda a complexa hierarquia perceptiva

da doutrina leibniziana do conhecimento, indo do conhecimento

puramente obscuro até o adequado, também corresponde a uma

igualmente complexa rede afetiva, composta de inclinações, desejos,

prazeres, inquietude, etc., determinando a vontade; com a diferença

de que a separação vontade-entendimento permite que às vezes a

quantidade e a recorrência de inclinações provenientes de pequenas

percepções obscuras as torne tão ou mais efetivas que aquelas oriundas

do conhecimento distinto.

Vejamos agora como tudo isso pode aplicar-se a Deus. Como

dissemos, a bondade divina é a vontade perfeita. E como se dá esta

perfeição?A potência vai ao ser, a sabedoria ou entendimento, ao

verdadeiro, e a vontade, ao bem. E esta causa inteligente [Deus]

deve ser infinita de todas as maneiras e absolutamente perfeita em

potência, emsabedoriae embondade, já que ela vai a tudo o que é

possível.32 Este salto para a perfeição que difere as qualidades divinas

das nossas é caracterizado pela idéia de que em Deus elas se estendem

a todo o possível. Livres da nossa finitude, as perfeições divinas podem

aplicar-se a todos os objetos próprios a elas. No caso da bondade, a

vontade se dirige a todo bem possível.Esta vontade é chamada

antecedentequando é destacada e visa cada bem à parte enquanto

bem. Neste sentido, pode-se dizer que Deus tende a todo bem enquanto

bem,ad perfectionem simpliciter simplicem, para falar como a

escolástica, e isto por uma vontade antecedente. Ele tem uma séria

inclinação a santificar e salvar todos os homens, a excluir o pecado

e a impedir a danação. Pode-se mesmo dizer que esta vontade é eficaz

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por si (per se), isto é, de maneira que o efeito se seguiria se não

houvesse alguma razão mais forte que o impedisse; pois esta vontade

não vai ao último esforço (ad summum conatum), do contrário ela

não deixaria nunca de produzir seu efeito pleno, sendo Deus o senhor

de todas as coisas. O sucesso inteiro e infalível só pertence àvontade

conseqüente, como é chamada. É ela que é plena, e em relação a ela

vale a regra de que jamais se deixa de fazer o que se quer quando se

pode. Ora, esta vontade conseqüente, final e decisiva, resulta do

conflito de todas as vontades antecedentes, tanto daquelas que tendem

ao bem quanto daquelas que repelem o mal; e é doconcurso de todas

estas vontades particulares que vem a vontade total.33

Tudo que não implica auto-contradição é desejado

antecedentemente pela vontade divina bondosa, e só não se realiza

devido a incompatibilidades lógicas que limitam a vontade conseqüente

ou decretória ao grupo de possíveis que constituem o melhor. Isto

não significa, porém, que a vontade antecedente seja inócua e que a

bondade não se estenda aos bens incriados. Ao contrário, todas estas

vontades contribuirão idealmente para constituir a vontade do melhor,

assim como em nós as inclinações apercebidas (volições) e

inapercebidas (apetições) competem e conjugam-se para constituir a

vontade plena.Adiferença é que Deus perfeitíssimo não está sujeito a

inclinações provenientes de representações obscuras. A percepção

divina, integralmente adequada, identifica-se com o próprio intelecto

divino, de modo que não há aquela defasagem entre percepções

distintas e ações voluntárias tal como havia em nós. Em Deus, todos

os impulsos vêm do entendimento puro, daí que a distinção

entendimento-vontade seja muito mais sutil do que na criatura. Os

possíveis não compatíveis, distintamente percebidos, digladiam-se num

espelhamento perfeito do combate das volições de bens particulares

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que não podem constar simultaneamente do decreto final. Este

espelhamento, aliás, não deveria surpreender-nos: se o bem desejado

é ser, e o ser é o possível, qual a diferença efetiva entre os objetos do

intelecto e da vontade divina? É apenas nossa limitação que cria o

descompasso.

Seja em Deus seja em nós, todavia, não há vontade ou

inclinação sem um objeto ao qual tenda, e este objeto, como

mostramos, terá de ser um bem. O bem é constitutivo da vontade

(constando da noção geral de vontade, já apresentada) pois é o grau

de bem, mesmo aparente (no caso da criatura finita), que determinará

a tendência prevalente. Não há vontade de mal pois não se quer o

não-ser. Portanto é necessário que a bondade divina se dirija

antecedentementea todo bem, econseqüentementeao melhor, já que

este é a proporção de bem (contida na definição de vontade) quando

aplicada a Deus, ou seja, estendida a todo possível. Bondade e vontade

de Deus são idênticos. Por isso a definição de vontade torna sem sentido

a hipótese de uma vontade divina que não seja necessariamente

bondade, a não ser que pensássemos a vontade como faculdade nua, o

que já vimos Leibniz recusar. Em suma, parece não haver saída: Deus

é necessariamente bom. Logo, se a contingência tem mesmo espaço

no universo leibniziano, não será pela dupla via proposta por Adams.

O querer e o criar

Mas talvez ainda haja uma escapatória. O excerto seguinte é o

que mais longamente discorre sobre a questão:Deus não faz o melhor

necessariamente, mas porque quer. Quem me perguntasse se Deus

quer necessariamente, teria de explicar previamente a que tipo de

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necessidade se refere ou então colocar a questão mais amplamente,

perguntando, por exemplo, se Deus quer necessária ou livremente,

isto é, em virtude de sua natureza ou de sua vontade. A meu modo de

ver, Deus não pode querer voluntariamente, pois de outro modo se

daria a vontade de querer ao infinito. Mas há de se afirmar que Deus

quer o melhor devido a sua própria natureza. Logo quer

necessariamente, dir-se-á. Trata-se de uma feliz necessidade, dir-se-

á com santo Agostinho. Daí se deduzirá que as coisas existem de

modo necessário. Por quê? Porque implica contradição que não exista

o que Deus quer? Nego que esta proposição seja absolutamente

verdadeira. De outro modo tudo que Deus não quer não seria possível.

Quando em realidade continua sendo possível, embora não escolhido

por Deus. Pois é possível existir aquilo que Deus não quer que exista,

já que poderia existir por sua natureza se Deus quisesse que existisse.

Mas Deus não pode querer que exista. Apesar disso continuará sendo

possível por sua natureza, embora não seja possível com relação à

vontade divina. Pois definimos como possível por natureza o que

não implica contradição em si mesmo, ainda que sua coexistência

com Deus pudesse implicar algum tipo de contradição.34

Poderíamos dividir o texto em duas partes: antes e depois das

interrogações.Aprimeira parte é um dos locais em que Leibniz sugere

mais fortemente que a bondade é necessária a Deus. Ao explicar o

tipo de necessidade com que Deus quer o melhor, Leibniz assume a

distinção tradicional entre “por natureza” e “por vontade”, associando-

a aos adjetivos “necessário” e “livre”, para então aplicá-la à própria

vontade. Se o necessário aqui se opõe ao livre, é porque Leibniz não

está se referindo à mera necessidade moral, mas à necessidade absoluta.

Ora, ao dizer na seqüência que Deus quer o melhor por sua natureza,

está inserindo necessidade absoluta no querer divino. Mas,

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surpreendentemente, disso Leibniz não conclui que as coisas existam

necessariamente, mesmo terminando a citação dizendo que a existência

dos possíveis que não constituem o melhor seria contraditória com a

existência de Deus, o ser necessário.

Esta afirmação de possíveis não existentes não pode mesmo

levar em conta Deus como causa necessária. Do contrário, jamais

haveria possíveis em si para além do mundo criado. ATeodicéiaé

explícita sobre o assunto:Em uma palavra, quando se fala da

possibilidade de uma coisa, não se trata das causas que devem fazer

ou impedir que ela exista atualmente; do contrário mudar-se-ia a

natureza dos termos e tornar-se-ia inútil a distinção entre o possível

e o atual... Eis por que, quando se pergunta se uma coisa é possível

ou necessária, e se faz entrar em consideração o que Deus quer ou

escolhe, muda-se de questão.35 O que nos interessa aqui, no entanto,

é justamente o ponto de vista divino, é saber se Deus (a causa) tinha

ou não alternativas, considerando que a bondade lhe é necessária. Sem

alternativas, ao menos uma, a necessidade reinará e os possíveis não

existentes serão ficções.

Em resumo: como pode ser necessário que Deus queira o

melhor e ser contingente que o melhor exista? Nossa hipótese de

trabalho é que isto depende de uma ruptura entre oquerer o melhor,

que é necessário, e oquerer fazer (ou criar) o melhor, que é

contingente, como Leibniz anuncia já na primeira frase da penúltima

citação (Deus não faz o melhor necessariamente, mas porque quer).

Se os dois fossem o mesmo, tudo seria absolutamente necessário. Mas,

ao que parece, Leibniz pensa que não são. É por isso que o texto

passa a relativizar a necessidade assim que a existência entra em questão

(após as interrogações). É esta delicada transição que corresponde

àquele primeiro decreto livre de Deus, mencionado no artigo 13 do

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Discurso de Metafísica. O referido decreto não impunhaquerer o

melhor, o que seria redundante para um ser cuja bondade e sabedoria

são necessárias, e simfazer o melhor ou, segundo outros textos,

escolhê-lo. Tanto o fazer como o escolher entre possíveis distinguem-

se do puro querer bem por implicarem a idéia de criação. Não seria,

todavia, razoável duvidar da pertinência desta distinção entre “querer

algo” e “querer fazê-lo”? O que é querer algo senão querer fazê-lo? O

estranhamento aí envolvido aumenta ainda mais se levarmos em conta

a já citada definição de vontade daTeodicéia(a vontade consiste na

inclinaçãoa fazer algo na proporção do bem que ele envolve). Toda

vontade deveria ser de fazer e, por conseguinte, a solução apresentada

estaria condenada a ser descartada. Isto, é claro, se o próprio Leibniz

já não tivesse aberto uma brecha naquela definição geral, de modo a

distinguir indiretamente o querer e o querer criar. É aí que podemos

situar a passagem das vontades antecedentes para a vontade

conseqüente.

É verdade que Leibniz afirma explicitamente que a liberdade é

constitutiva da vontade divina, seja ela antecedente ou conseqüente.

Vejamos o seguinte texto daTeodicéia: ainda que Deus ame

necessariamente sua sabedoria, as ações a que sua sabedoria o conduz

não deixam de ser livres, e os objetos a que sua sabedoria não o leva

não deixam de ser possíveis. Além de que a sabedoria o conduziu a

querer a salvação de todos os homens, mas não por uma vontade

conseqüente e decretória. E esta vontade conseqüente, sendo apenas

o resultado das vontades livres antecedentes, não pode deixar de ser

também livre.36 Apesar de Leibniz reconfirmar aqui que as vontades

antecedentes são livres, também afirma que Deus ama necessariamente

sua sabedoria, ou seja, quer todos os infinitos possíveis que constituem

seu entendimento infinito. E os quer necessariamente pois, como

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dissemos, todos são bens e inexiste combate entre eles enquanto está

ausente a perspectiva de criação. Não há muito sentido, portanto, em

falar de contingência, já que não há exclusão de possíveis, sendo todos

igualmente queridos pela bondade divina. Ao contrário, quando a

existência entra em jogo, e só então, a vontade conseqüente seleciona

o melhor, sem contudo tornar impossível aquilo que foi excluído. Daí

não ser descabido pensar que as vontades antecedentes sejam vistas

como necessárias, mantendo a necessidade da bondade divina, e a

vontade conseqüente, ou seja, o decreto divino, como contingente,

garantindo a contingência da criação. É necessário a Deus ser bom,

porém não lhe é necessário ser criador, pois Deus poderia permanecer

satisfeito apenas com a contemplação de suas próprias perfeições.

Deus não carece de nada que implique criação, não precisa da

glorificação dos seres criados, que em nada aumenta Sua infinita

perfeição.

Por que então decide criar? O princípio de razão suficiente

nos impõe esta pergunta ou uma versão dela:Assentado este princípio,

a primeira pergunta que temos direito de formular será:por que há

algo em vez de nada? Pois o nada é mais simples e mais fácil que

algo.37 Todavia a pergunta não tem resposta. O primeiro decreto livre

atesta a opção divina pelo ser, pela criação, mas não revela as razões

disso. Talvez os seres criados representem maior variedade, mas quem

negará que o nada é imbatível quanto à simplicidade?

Dado o Deus perfeitíssimo, é necessário que seja bom e queira

o melhor; dado o decreto de fazer, toda a criação segue com igual

necessidade. Entretanto, como o decreto em si mesmo não é

metafisicamente necessário, seu vínculo necessário com a criação não

basta para torná-la metafisicamente necessária, mas apenas

hipoteticamente. E mais ainda, a contingência do decreto, decorrente

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do fato de não haver razões necessitantes para a criação, derrama-se

também sobre o objeto do verbo fazer, ou seja, o melhor. Se o decreto

não brota necessária e diretamente da essência divina, por que exigir

que o melhor criado brote necessária e diretamente da bondade divina?

Ele decorre apenas do decreto. Mantém-se assim a possibilidade de

outros mundos piores, necessariamente ligados a decretos possíveis

também piores. É verdade que eles são incompatíveis com o Deus

perfeitíssimo, mas já vimos que confrontá-los com as causas produtoras

não é a maneira adequada de tratar as puras possibilidades (pelo menos

na medida em que não há razões para a criação). Como o próprio

primeiro decreto não é necessário, não podemos excluir as outras

alternativas. Elas só são excluídas por necessidade hipotética, dado o

decreto.

Esta parece a resposta que vai mais longe nos porquês da

contingência e é isso que nos fez privilegiá-la. Mas no fundo ela sofre

de uma fragilidade similar à das outras. Qual é, afinal, sua base? É a

ausência de resposta à pergunta metafísica. Sem o decreto criador,

Deus continuaria querendo o melhor, que neste caso se reduziria ao

Seu próprio ser, o qual abarca todos os possíveis no intelecto, sem as

exclusões decorrentes da existência. Devido a nossa limitação

cognitiva, não podemos ver por que o ser é melhor que o nada. Mas o

fato é que deve haver uma razão para isso, sejamos ou não capazes de

apreendê-la, do contrário a validade do princípio de razão não será

irrestrita, contrariando a letra de Leibniz. Por outro lado, se há uma

razão para isso, ela certamente estará em Deus e estabelecerá um

vínculo necessário entre a essência divina (que inclui a bondade) e o

decreto de fazer o bem, o que tornaria toda a criação absolutamente

necessária. Leibniz também não pode aceitar esta opção. Ou seja, a

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questão da contingência em Leibniz, aqui tratada do ponto de vista da

bondade divina, parece mesmo condenada ao paradoxo, o qual tem

na irresolução da pergunta metafísica apenas a sua mais primitiva

manifestação.

Notas

1 Carta de Leibniz a Arnauld de 4 de julho de 1686, in Leibniz, G.W.

Discours de Metaphysique et correspondance avec Arnauld. Paris,

Vrin, 1993, pág. 115.2Adams, R. M.Leibniz´s Theories of Contingencyin Woolhouse, R.

S. (ed.)Gottfried Wilhelm Leibniz: Critical Assessments. Londres e

Nova York, Routledge, 1994, vol I, pág. 141.3 Leibniz, G. W.Textes Inédits, editados por Gaston Grua, Paris, PUF,

1948, pág. 493.4 Leibniz, G.W.Sobre a Contingênciain Recherches Générales sur

l’Analyse des Notions et des Vérités, 24 thèses métaphysiques et autres

textes logiques et métaphysiques.Introd. et notes par J.-B. Rauzy.

Paris: PUF, 1998, pág. 326.5 Ribeiro de Moura, C.A.Contingência e Infinitoin Racionalidade e

Crise: estudos sobre História da Filosofia Moderna e Contemporânea.

São Paulo-Curitiba, Discurso-Ed. UFPR, 2001, pág. 81.6 Leibniz, G. W.Recherches...,pág. 327.7 Leibniz, G. W.Sur la libertéin Recherches..., pág. 333.8 Ribeiro de Moura, C.A.Leibniz, a liberdade e os Possíveis, in Vários

autores,O filósofo e sua história. Campinas, CLE, 2003, pág. 283.

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9 Além disso, outra conseqüência perigosa para o pensamento

leibniziano segue da desconsideração de que o melhor é único: se o

melhor não for único, recairemos no meio da escala de perfeição dos

mundos, o que impossibilitaria uma escolha divina fundamentada;

caminho este que o princípio de razão não comporta. Neste espírito, o

próprio texto da Teodicéia parece nos indicar que é necessário que

este mundo seja o melhor:E como nas matemáticas, quando não há

maximum nem minimum, nada enfim de distinto, tudo é feito

igualmente; ou, quando isto não é possível, não se faz nada; pode-se

dizer o mesmo em matéria de perfeita sabedoria, que não é menos

regrada que as matemáticas, que se não há melhor (optimum) entre

todos os mundos possíveis, Deus não teria produzido nenhum.Leibniz,

G.W. Essais de Théodicée.Paris, Garnier-Flammarion, 1969, par. 8,

pág. 108.10 Leibniz, G. W.Em torno da liberdade e da necessidade.In Escritos

en torno a la libertad, el azar y el destino.Madrid, Tecnos, 1990,

pág. 7.11 Leibniz, G. W.Essais de Théodicée, par. 230, pág. 256.12 Id., par. 282, pág. 285.13 Leibniz, G. W.Monadologiain Discurso de Metafísica e outros

textos. São Paulo, Martins Fontes, 2004, pág. 139.14 Leibniz, G.W.Essais de Théodicée, par. 150, pág. 201.15 Leibniz, G. W.Discurso de Metafísica, 2, pág. 4.16 Id. Ibid.17 Leibniz, G. W.El Ser perfectísimo existein Escritos Filosóficos.

Ed. de E. Olaso; notas de E. Olaso y R. Torretti; trad. de R. Torretti,

T. Zwanck, E. Olaso. Buenos Aires: Editorial Charcas, 1982, pág.

148.18 Leibniz, G.W.Discurso de Metafísica, par.1, pág. 3.

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LUÍS CÉSAR OLIVA

19 Leibniz, G.W.Essais de Théodicée, par. 230, pág. 256.20 Leibniz, G.W.Defesa da Causa de Deus,par. 67, inEscritos

Filosoficos,pág. 545.21 Russell, B. Russell, B.A Filosofia de Leibniz (uma exposição

crítica). São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1968, pág. 40.22 Id. Ibid.23 Curley, E.The Root of Contingency.In Woolhoouse, R. op. cit. ,

pág. 204.24 Leibniz, G. W.Essais de Théodicée, par. 22, pág. 117.25 Leibniz, G. W.Exame da física de Descartesin Escritos Filosóficos,

pág. 437.26 Leibniz, G. W.Nouveaux Essais sur l´entendement humain. Paris,

Garnier-Flammarion, 1966 II, I, 2, pág.92.27 Leibniz, G. W. Notas sobre o livroDa origem do malpublicado há

pouco na Inglaterra.In Essais de Théodicée,pág. 409.28 Leibniz, G. W.Essais de Théodicée, par. 311, pág. 302.29 Leibniz, G. W.Notas sobre o livro..., pág. 399.30 Leibniz, G.W.Nouveaux Essais..., II,XXI, 5, pág. 146.31 Id., II, XXI, 39, pág. 16432 Leibniz, G. W.Essais de Théodicée, par. 7, pág. 108.33 Id., par. 22, pág. 117.34 Leibniz, G.W.Em torno da liberdade e da necessidadein Escritos

en torno a la libertad..., pág. 8.35 Leibniz, G. W.Essais de Théodicée,par. 235, pág. 258.36 Id., par. 237, pág. 259.37 Leibniz, G.W.Princípios da Natureza e da Graça fundados em

razão,par. 7 inEscritos Filosóficos,pág.601.

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CADERNOSESPINOSANOSXV - 2006

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Arnauld. Paris:Vrin, 1993.

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Escritos en torno a la libertad, el azar y el destino.Madrid:

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Escritos Filosóficos.Ed. de E. Olaso; notas de E. Olaso y R.

Torretti; trad. de R. Torretti, T. Zwanck, E. Olaso. BuenosAires:

Editorial Charcas, 1982.

Essais de Théodicée.Paris: Garnier-Flammarion, 1969.

Nouveaux Essais sur l´entendement humain. Paris, Garnier-

Flammarion, 1966

Recherches Générales sur l’Analyse des Notions et des Vérités,

24 thèses métaphysiques et autres textes logiques et

métaphysiques.Introd. et notes par J.-B. Rauzy. Paris: PUF,

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Ribeiro de Moura, C.A.Racionalidade e Crise: estudos sobre História

da Filosofia Moderna e Contemporânea.São Paulo-Curitiba:

Discurso-Ed. UFPR, 2001.

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TESSAMOURA LACERDA

Leibniz:Expressão e Característica Universal*

TESSAMOURA LACERDA**

* Este texto foi originalmente apresentado no XII Encontro daAssociação Nacionalde Pós-Graduação em Filosofia, ANPOF, realizado em Salvador, em outubro de2006 e é parte de uma pesquisa financiada pela Fapesp.** Pós-doutoranda em Filosofia no Departamento de Filosofia da FFLCH-USP.

Resumo:A crítica de Leibniz à provaa priori da existência de Deus,

retomada de Anselmo por Descartes, resume-se à observação de que,antes de admitir a existência de um ser perfeitíssimo, é preciso provara possibilidade da noção de um tal ser; e, para isso, é preciso mostrara compatibilidade entre as perfeições divinas. A prova é correta, masincompleta.

Leibniz jamais completou essa prova, com exceção de um textoescrito em 1676, porque, para isso, precisaria lançar mão de suaCaracterística universal, cujos elementos seriam os pensamentossimples que exprimiriam as formas simples ou perfeições divinas.

O projeto de criação de uma língua formal ou Característicauniversal, embora tenha permanecido inacabado, jamais foi abandonadopor Leibniz. Todavia, ao delinear o projeto, Leibniz esclarece que aCaracterística explicaria com exatidão as verdades necessárias, masnão as verdades contingentes (as quais poderiam ser admitidas comalta probabilidade, mas não com exatidão).

Ora, se fosse possível provar a compatibilidade entre asperfeições divinas, seria também necessário explicar como aincompatibilidade entre os mundos possíveis se origina dessacompatibilidade primordial; seria preciso explicar como o contingentenasce do interior do necessário.

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Nossa hipótese é que o aparente fracasso do projeto daCaracterística e a incompreensão da relação entre necessidade econtingência tem como resultado uma teoria da expressão que, contraa clareza da intuição, reserva um lugar para o confuso e obscuro.

Abstract:Leibniz’s criticism of the a priori proof of God’s existence,

taken from Anselm by Descartes, is restricted to the observation that,before the existence of a perfect being may be admitted, one mustprove the possibility of the notion of such a being, which, in turn,requires a demonstration of the compatibility between divine perfec-tions. The proof is correct, but incomplete.

Leibniz never completed this proof, except for a text writtenin 1676, since, to manage that, he would have to employ his universalCharacteristic, the elements of which would be the simple thoughtsexpressing the simple forms, or divine perfections.

The project to create a formal language, or universal Charac-teristic, was never abandoned by Leibniz, even though it was to re-main unfinished. However, in outlining the project, he clearly statesthat the Characteristic would accurately explain the necessary truths,but not the contingent truths (which could be admitted with a highdegree of probability but not with exactness).

If it were possible to prove the compatibility between divineperfections, it would also be necessary to explain how the incompat-ibility between possible worlds stems from this primordial compatibil-ity, and how the contingent originates from within the necessary.

Our hypothesis is that the apparent failure of the Characteris-tic project and the lack of understanding of the relationship betweennecessity and contingency results in a theory of expression that, inopposition to the clarity of intuition, reserves a place for the confuseand the obscure.

* * *

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TESSAMOURA LACERDA

Em uma carta de 1678, à rainha Elisabeth, discorrendo sobre a

prova cartesiana da existência de Deus, Leibniz afirma:

“ ... no momento me basta observar que o que é o

fundamento de minha característica é também da

demonstração da existência de Deus. Porque os

pensamentos simples são os elementos da característica

e as formas simples são a fonte das coisas. Ora, sustento

que todas as formas simples são compatíveis entre si. É

uma proposição de que não poderia dar a demonstração

sem explicar longamente os fundamentos de minha

característica. Mas, estando acordada, segue-se que a

natureza de Deus, que envolve todas as formas simples

tomadas absolutamente, é possível. Provamos acima que

Deus é, uma vez que seja possível. Logo existe. O que era

a demonstrar.” 1

Para completar a prova imperfeita da existência de Deus dada

por Descartes, Leibniz pretendia lançar mão de sua Característica,

ainda um projeto. Menos de uma década separam esta carta e as

“Meditações sobre o conhecimento, a verdade e as idéias”, texto em

que Leibniz desconfia da possibilidade humana de chegar ao

conhecimento dos primeiros possíveis ou atributo absolutos de Deus.

Reflete Leibniz, “certamente não me atreveria a determinar agora se

é possível levar a cabo em algum momento uma análise perfeita das

noções ou se é possível reduzir os pensamentos aosprimeiros possíveis

e noções não suscetíveis de decomposição ou (o que é o mesmo) aos

próprios atributos absolutos de Deus” 2 . Anos antes, provavelmente

em 1676, o filósofo ensaiara em um pequeno opúsculo intituladoQuod

Ens Perfectissimum existit, estabelecer essa prova com argumentos

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in forma. Mas, de acordo com a carta a Elisabeth, sabemos agora que

a Característica seria o instrumento de aperfeiçoamento da prova, seria

pela Característica que o filósofo demonstraria, através do

conhecimento das formas simples, a compatibilidade entre elas (e, logo,

a possibilidade da noção de ser perfeitíssimo) que, sem a Característica,

parece se reduzir a uma prova apenas “formal” — no mal sentido da

palavra.

Qual é a crítica que Leibniz faz à prova cartesiana da existência

de Deus?

A prova ontológica da existência de Deus, que Descartes

retoma de Anselmo, “é muito bela e engenhosa na verdade, mas há

um vazio a ser preenchido” 3 , afirma Leibniz. A prova não é um

paralogismo, como sugeriu São Tomás, e não é sem razão queAnselmo

se felicita por ter encontrado um meio de provar a existência de Deus

por sua própria noção, sem ter que recorrer aos efeitos, mas é uma

prova imperfeita, incompleta. Eis como Leibniz a resume: Deus é o

maior ou, na linguagem de Descartes, o mais perfeito dos seres — o

que, para Leibniz, significa dizer que Deus é um ser que envolve todos

os graus de ser, tem uma grandeza ou perfeição suprema. Ora, existir

é mais que não existir, ou seja, a existência acrescenta um grau à

grandeza ou perfeição, ou, segundo Descartes, a existência é uma

perfeição; portanto, segundo a definição ou a noção de Deus, Ele

existe, senão careceria desse grau de perfeição ou dessa perfeição que

é a existência. O problema dessa prova está na suposição tácita de que

essa noção de Deus, como ser totalmente perfeito, é possível. Por

isso, a partir dessa prova podemos apenas ter uma conclusão moral e

uma suposição de que, se Deus é possível, então necessariamente Ele

existe, o que é um privilégio da noção de Deus. E como podemos

presumir a possibilidade de qualquer ser até que se prove o contrário,

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TESSAMOURA LACERDA

a prova cartesiana nos leva a uma conclusão moral de importância

para a vida prática — devemos agir conforme a suposição de que

Deus existe —, mas não fornece uma certeza matemática.

Aargumentação dessa prova pressupõe que tudo o que se pode

predicar de uma noção deve ser atribuído à coisa definida. Antes de

atribuir a existência a Deus, porém, é preciso provar que a noção de

um ser que possui todas as perfeições e, portanto, dessa essência se

segue a existência, é possível. Com efeito, não basta considerar que

Deus tem uma grandeza ou uma perfeição suprema, isto é, que envolve

todos os graus de perfeição ou é o maior de todos os seres, pois também

podemos pensar em um número de todos os números, ou em um

movimento mais veloz que qualquer outro, e, no entanto, essas são

noções contraditórias — Leibniz recorre freqüentemente a esse

exemplo para mostrar a insuficiência da prova cartesiana: supondo-se

que uma roda gira com o movimento mais veloz, o que impede que se

prolongue o raio dessa roda e que, então, o ponto que tinha o

movimento mais veloz caia alguns graus em relação àquele que agora

está no extremo da roda? Eis por que também a prova cartesiana da

existência de Deus pela idéia que temos dele é criticada por Leibniz.

Segundo Descartes, há em nós a idéia de Deus porque pensamos nele

e não o faríamos se não tivéssemos a idéia de Deus; se essa idéia é a

idéia de um ser infinito e é verdadeira não poderia ser causada por

qualquer coisa menor que um ser infinito, portanto Deus é sua causa

e, logo, Ele existe. Naturalmente está em jogo a teoria de conhecimento

desses filósofos. Enquanto Descartes considera que não podemos

pensar em nada de que não tenhamos uma idéia, e nem mesmo falar

de algo sem essa condição4 , Leibniz afirma que a idéia é uma noção

possível: não temos a idéia do movimento mais veloz, porque se trata

de uma noção contraditória, e no entanto falamos e pensamos nele,

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“ freqüentemente pensamos apenas confusamente naquilo de que

falamos, e não temos consciência da idéia que existe em nossa mente

a menos que entendamos a coisa e a decomponhamos em seus

elementos de maneira suficiente” 5 . Daí a exigência de que se mostre

a possibilidade de uma essência que envolva existência ou da noção

de um ser que possui todas as perfeições em grau supremo. É claro

que a noção de Deus não é como todas as demais, porque dela

necessariamente se segue a existência, se for possível, enquanto

qualquer outra noção de que provemos a possibilidade não

necessariamente existe, tem uma existência possível. Mas não por isso

podemos nos privar de demonstrar a possibilidade da noção de Deus.

Se pensarmos a crítica do ponto de vista da teoria do

conhecimento podemos dizer, em resumo, que, para Leibniz, Descartes

se contenta com uma definição nominal de Deus, na medida em que

não mostra a possibilidade dessa noção e não chega, pois, a uma

definição real. Descartes deixaria o interlocutor no meio do caminho,

sem mostrar como ele pode dar os passos da premissa à conclusão do

argumento, “não basta que Descartes tenha invocado a experiência

e alegado o que sentia clara e distintamente nele mesmo, pois põe

um fim à demonstração sem acabá-la, a menos que mostre por que

meio outros podem chegar a uma experiência desse gênero” 6 . Este é

o problema da experiência: sempre que se recorre à experiência no

curso de uma demonstração, afirma Leibniz, deve-se indicar aos outros

a maneira de fazer essa experiência se não quisermos convencê-los

pela autoridade. Mas para um filósofo preocupado com a forma lógica,

como Leibniz, o melhor mesmo é fornecer os argumentosin forma:

“Toda demonstração rigorosa que não omite nada que seja necessário

à força do raciocínio é desse tipo (...), uma vez que a forma ou a

disposição de todo esse raciocínio é causa da evidência” 7. Diante

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TESSAMOURA LACERDA

dessa afirmação podemos supor que é possível estabelecer as prova

da existência de Deus com argumentosin forma e chegar, assim, a

uma definição real da noção do ser perfeitíssimo. Não deixa de ser

curioso que Leibniz se aplique em tantos textos a mostrar a insuficiência

do argumento cartesiano sem, no entanto, preencher explicitamente o

vazio que vê nessa argumentação. Talvez isso se explique ainda pela

teoria do conhecimento. Uma definição real, diz o filósofo8 , deve

provar a possibilidade do definido de maneira a priori, ou seja, quando

decompomos a noção em seus requisitos ou em outras noções de

possibilidade conhecida; se a análise foi levada a cabo e não surgiu

nenhuma contradição, então a noção é absolutamente possível. Eis o

papel da Característica no aperfeiçoamento da prova: os pensamentos

simples ou os números característicos exprimiriam os requisitos da

noção de Deus, ou seja, as formas simples que exprimem a essência

divina e são a fonte de tudo o que existe. As formas simples são os

elementos das coisas, os pensamentos simples, os elementos da

Característica. Nossas idéias convêm com as idéias de Deus nas mesmas

relações. Nossas idéias exprimem as idéias de Deus. Isso significa

que, se determinarmos o alfabeto dos pensamentos humanos, ou seja,

se forjarmos signos característicos que exprimam os termos simples

de nossos pensamentos, então, analogicamente poderemos, pela relação

entre esses termos, conhecer de que maneira as formas simples,

positivas e absolutas, que exprimem a essência divina, se relacionam

dando origem a uma variedade de idéias.

Mas qual é exatamente o projeto da Característica universal?

Em um dos esboços desse projeto9 , Leibniz define sua

Característica universal estabelecendo uma distância entre seu projeto

e o misticismo de uma língua adâmica e da crença de que os números

escondem grandes mistérios.ACaracterística seria a atribuição a todas

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as coisas de um número característico próprio. A Característica

leibniziana diferiria também de uma língua universal capaz de ordenar

todas as noções e matérias, permitindo que cada um lesse em sua

própria língua o que outro escreveu na dele.Aoriginalidade do projeto

de Leibniz em relação a essa língua universal capaz de harmonizar as

diferentes línguas naturais, segundo o próprio filósofo, é que sua

Característica universal envolveria ao mesmo tempo a arte de inventar

e a arte de julgar: os próprios caracteres funcionariam como os

caracteres matemáticos (que designam números na Aritmética e

grandezas na Álgebra). Leibniz descreve, então, seu percurso na

elaboração desse projeto: parte dos predicamentos, considerando que,

se há predicamentos ou noções simples, é possível criar predicamentos

complexos ou proposições e ordená-los de maneira natural, tal como

os geômetras10. A partir da consideração dos predicamentos, Leibniz

concebe a idéia de um alfabeto dos pensamentos humanos11. Propõe-

se, então, a construir uma Característica, dotada de uma gramática e

de um dicionário das ocorrências mais freqüentes, ou seja, obter os

números característicos de todas as idéias. E imagina que, fundando

um curso de filosofia e matemáticas, baseado em um novo método

indicado por ele, o projeto estaria pronto no espaço de sete anos!

Em linhas gerais, o audacioso projeto da Característica

universal consistiria em decifrar a estrutura da realidade. Se, como já

dizia Galileu, o livro do mundo está escrito em caracteres matemáticos,

então, ao decifrar os “caracteres” que exprimem a causa do mundo,

isto é, ao chegar aos nossos pensamentos simples que exprimem as

formas simples divinas, ao conhecer a maneira como as formas simples

que exprimem a essência de Deus se articulam no entendimento divino,

poderíamos efetivamente ler a realidade por meio dos caracteres

forjados em uma língua formal. Então, se fôssemos capazes de conhecer

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as formas simples, explicaríamos não só o real, mas também o possível?

Conheceríamos inteiramente a contingência e os possíveis

contingentes? O ser seria transparente, límpido? Nada haveria de

obscuro para nosso entendimento?

Se fosse esse o projeto que fracassou, podemos perguntar em

que medida houve efetivamente um fracasso. Porque, até que ponto

Leibniz acreditava que o entendimento humano pudesse, mesmo com

as limitações impostas pela nossa forma de conhecer, ou seja, por

nosso entendimento simbólico e incapaz de intuição, se igualar ao

entendimento divino? Não se tratava de um projeto destinado por

princípio ao fracasso? Era esse mesmo o projeto da Característica

universal? Leibniz o abandonou?

Textualmente Leibniz jamais afirmou que, por meio da arte

característica, o entendimento humano se igualaria ao entendimento

divino. Com efeito, ao elencar as vantagens que a Característica traria

para o conhecimento humano, Leibniz apresenta basicamente duas

aquisições decorrentes da construção dessa língua universal.Aprimeira

é acabar com as disputas entre os filósofos e a quem perguntasse “o

que faz vossa razão mais correta que a minha, que critério de verdade

vós possuís?”, responder simplesmente “Calculemos!” 12. Mas a

segunda é empregar a Característica para tudo o que depende de

conjecturas — as pesquisas de história civil e natural, a arte de examinar

os corpos naturais ou as pessoas sábias, o direito, a medicina, o

governo, etc. Nesse caso teríamos a escolha de, partindo de conjecturas,

determinar demonstrativamente o “grau de probabilidade” a partir dos

dados, ou, estabelecer uma “aproximação ao infinito”, e poderíamos,

então, “colocar na balança” prós e contras de cada decisão para escolher

“como o perfeito campeão nos jogos que misturam razão e sorte” 13.

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Dois anos antes de sua morte, em 10 de janeiro de 1714, Leibniz

escreve a Rémond:

“Se eu tivesse sido menos disperso, ou se fosse

mais jovem ou assistido por pessoas jovens e bem

dispostas, teria esperanças de apresentar um tipo de

Espécime Geral, na qual todas as verdades de razão

seriam reduzidas a uma maneira de cálculo. Isso poderia

ser ao mesmo tempo uma espécie de língua ou escritura

universal, mas infinitamente diferente de todas aquelas

que foram projetadas até hoje, pois os caracteres e as

próprias palavras dirigiriam a razão, e os erros (com

exceção dos erros de fato) seriam apenas erros de cálculo.

Seria muito difícil formar ou inventar esta Língua ou

Característica, mas muito fácil aprendê-la sem qualquer

Dicionário. Ela serviria também para estimar os graus

de verossimilhança (quando não tivéssemos dados

suficientes para chegar a verdades certas) e para ver o

que é preciso para completar [as verdades]. E essa

estimativa seria das mais importantes para o uso da vida

e para as deliberações da prática, nas quais, estimando

as probabilidades, erramos o cálculo na maioria delas.”14

De acordo com essa carta podemos afirmar que, embora

Leibniz tenha de fato abandonado o projeto da Característica universal,

esse abandono se deu não por razões teóricas, mas por impedimentos

contingentes. O que a missiva deixa claro também é que Leibniz não

pretendia reduzir as verdades contingentes ou verdades de fato a

verdades de razão, mas apenas oferecer um meio de determinar com a

máxima probabilidade possível verdades sobre as quais jamais

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poderíamos ter uma certeza matemática. Eis talvez a explicação para

o fato de Leibniz jamais ter voltado à prova cartesiana da existência

de Deus, a não ser para criticá-la. Na carta à rainha Elisabeth, de

1678, Leibniz sugeria que seria possível mostrar a compatibilidade

das perfeições divinas ou das formas primitivas que exprimem a essência

de Deus servindo-se dos mesmos fundamentos de sua Característica.

Ora, na carta a Rémond, de 1714, o filósofo deixa claríssimo que a

Característica reduziria a uma espécie de cálculo todas asverdades

de razão, em outras palavras, as verdades necessárias. Se aplicássemos

os fundamentos da Característica na prova da existência de Deus

(como, aliás, Leibniz fez em 1676, emQuod Ens Perfectissimum

existit), mostraríamos a compatibilidade das formas simples sem jamais

poder justificar como dessa compatibilidade nasce a incompatibilidade

das essências individuais. A perfeição, dizia Leibniz em 1676, é uma

qualidade simples que é positiva e absoluta, ou seja, o que uma

perfeição exprime, exprime sem limites, porque, segundo o filósofo,

uma qualidade puramente afirmativa é infinita, tem tanta grandeza

quanto é possível. Uma vez que é simples, uma perfeição é também

indefinível, ou seja, não pode ser analisada, caso contrário ou não é

uma qualidade simples única, mas um agregado de qualidades, ou, se

é única, está contida dentro de limites de maneira que seria

compreendida e definida a partir de negações, mas nesse caso não

seria puramente positiva, o que contradiz a hipótese inicial. Ora, se as

perfeições são simples, positivas e absolutas, são necessariamente

compatíveis entre si. Dessa maneira, ao aplicar os fundamentos da

arte característica à prova da existência de Deus, mostraríamos que a

distinção entre as formas simples é uma distinção apenas de razão,

cada forma é expressão da essência divina, cada uma é uma perspectiva

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dessa essência, todas exprimem o mesmo e, juntas, constituem a própria

essência de Deus. Ora, os indivíduos ou as essências individuais

resultam da relação entre essas formas simples, compatíveis entre si,

mas as essências individuais distinguem-se umas das outras por uma

distinção real. E as essências individuais possíveis não são todas

compatíveis entre si, dão origem a universos incompossíveis uns em

relação aos outros. Como explicar que a contradição nasça daquela

compatibilidade original de perfeições? E é preciso explicarisso para

dar a razão da contingência. Ou, afirmar que se trata de algo

incompreensível e, então, silenciar sobre a maneira de mostrar a

compatibilidade das formas simples, para não ser levado a afirmar

com Deleuze15 que, para Leibniz, em algum lugar do entendimento

divino, o Um se combina ao zero, ou o ser ao nada, para dar origem à

variedade de mundos possíveis. Leibniz escolhe o silêncio:

“Quando Locke declara não compreender como

a variedade das idéias é compatível com a simplicidade

de Deus, parece-me que não deve deduzir daí uma objeção

contra o padre Malebranche; pois não há sistema que

possa fazer compreender uma tal coisa. Nós não podemos

compreender o incomensurável e mil outras coisas, cuja

verdade não deixa de nos ser conhecida, e temos o direito

de empregá-las para dar a razão de outras, que dependem

delas. Algo de próximo tem lugar em todas as substâncias

simples, em que há uma variedade de afecções na unidade

da substância.” 16

Não podemos explicar como a variedade nasce da simplicidade

divina, como formas simples, absolutas e afirmativas, que são

compatíveis entre si, dão origem à incompatibilidade de mundos

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possíveis ou à incompossibilidade entre essências individuais. Entende-

se por que, depois de 1676, Leibniz jamais voltou a completar a prova

incompleta da existência de Deus deixada por Descartes, e se limitou

à crítica. Não se pode explicar, seguindo os fundamentos da arte

característica, a compatibilidade das perfeições divinas. Não se pode,

porque, assim, simplesmente reduziríamos o contingente à necessidade

ou à relação entre verdades de razão. Se nos fosse dado reduzir a

explicação da contingência à explicação das relações necessárias que

exprimem verdades eternas, seria preciso também excluir a contingência

essencial da criação de um mundo. Se fosse dado ao homem

compreender como as formas que se distinguem por uma diferença de

razão dão origem a seres realmente diferentes apenas pela consideração

de relações absolutamente necessárias (como são as relações entre

hipótese e conclusões nas ciências demonstrativas), seria preciso

admitir que a vontade divina não tem qualquer papel na criação, que

Seu entendimento por si só explica a criação, e que, portanto, a criação

é necessária, ou melhor, o mundo é necessário e a criação desnecessária.

Aceitemos que isso seja incompreensível para um entendimento

finito. O ideal leibniziano de um racionalismo integral “esbarra” na

finitude humana, criando um abismo entre a determinação racional

completa (do mundo, dos indivíduos e de Deus mesmo), para Deus, e

a indeterminação trazida pelo contingente, para o homem. Mas

poderíamos dizer que, uma vez que a impossibilidade de determinação

completa do real é uma impossibilidade de fato, não de direito, não há

nada que enfraqueça aquele racionalismo integral.Afinal, é ao homem

que é vedado o conhecimento dos dois extremos da tipologia das

verdades: como mostra F. Leopoldo e Silva17, o homem não pode

conhecer o indivíduo singular porque, para isso, precisaria ter uma

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visão analítica de todos os elementos e conexões existentes na realidade

e de que dependem a determinação necessária do indivíduo e sua

inserção na totalidade; tampouco é capaz de conhecer as leis

universalíssimas que dão a razão de ser do mundo, pois para isso

precisaria ter uma visão da estrutura analítica da realidade. Mas se o

homem não pode conhecer nem a singularidade do particular, nem o

universal, nada se furta à onisciência divina, e o racionalismo integral

da realidade permanece intacto.

Se for assim, a Característica universal poderia ser considerada

uma espécie de “paliativo”, diante da impossibilidade de um

conhecimento humano enciclopédico, ou seja, a arte característica teria

lugar de um conhecimento adequado, embora seja a expressão

simbólica de verdades. Mas se a Característica é um “paliativo” é

porque jamais se pretendeu que o entendimento humano se igualasse

ao entendimento divino, ou seja, jamais se pretendeu que os homens

chegassem a conhecimentos plenamente adequados, a não ser quando

restritos a verdades de razão ou verdades matemáticas. O contingente

continuaria com sua sombra, qualquer que fosse o ângulo da

iluminação, a obscuridade jamais deixaria de ter lugar para o

conhecimento humano.

Lebniz sempre desconfiou do conhecimento intuitivo. Se jamais

negou definitivamente a possibilidade de um conhecimento adequado,

não acreditava que esse conhecimento poderia se dar por intuição.

Conhecemos, raciocinamos, descobrimos, provamos por símbolos, em

suma, o pensamento opera com símbolos. Não pensamos

expressamente, ou explicitamente, em todas as marcas que caracterizam

uma noção. Nem poderíamos. Cada pensamento envolve o infinito, as

idéias simples “são simples apenas em aparência, são acompanhadas

de circunstâncias que têm ligação com elas, ainda que essa ligação

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não seja entendida por nós, e essas circunstâncias oferecem alguma

coisa explicável e suscetível de análise”18. Uma idéia verdadeiramente

adequada pressupõe a multiplicidade infinita de substâncias e a intuição

da totalidade desse múltiplo que se exprime em toda idéia. Talvez por

isso, sem jamais abandonar a idéia de uma Característica universal,

Leibniz abandona o projeto de um alfabeto dos pensamentos humanos

acreditando que os nomes primitivos, a partir dos quais se daria a

combinatória para a expressão e a descoberta de verdades, podem ser

postulados para a comodidade do cálculo, sem que sejam pensados

como termos últimos, atômicos “Não existe átomo (...). Segue daí

que em cada partícula do universo está contido um mundo de infinitas

criaturas (...). Não há nenhuma figura determinada nas coisas, porque

nenhuma figura pode satisfazer às infinitas impressões” 19.

Por outro lado, a Característica universal, como instrumento

de comunicação universal — que remete à preocupação de Leibniz

com a questão irênica —, não é jamais pensada como uma língua

universal isenta de ambigüidade ou uma língua filosófica que elimine a

confusio linguarumda linguagem natural celebrada como um fato

positivo por quem, como afirma Umberto Eco, “ficara sempre

fascinado pela riqueza e pluralidade das línguas naturais, a cujas

gerações e filiações dedicara tantas pesquisas” 20 . Admitindo a

impossibilidade de fato de descoberta da língua adâmica e o absurdo

da hipótese de voltar a praticá-la, Leibniz pensa a Característica como

a criação de uma linguagem científica, um instrumento de descoberta

da verdade, não como um substituto formal, artificial, da primitiva

língua dos homens.

É preciso levar em conta duas coisas em relação à Característica

universal. Em primeiro lugar, o que fundamenta a idéia de uma

linguagem científica como essa são os pensamentos cegos, isto é,

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pensamentos que manipulam símbolos sem que se faça necessário

evocar as idéias que lhes correspondem, anulando a necessidade de

uma análise exaustiva das idéias que tornaria a descoberta de verdades

praticamente inviável ou bastante demorada. Assim, a Característica

retira sua força daformado cálculo, que tem um de seus modelos na

álgebra, e não no significado dos termos, asintaxedessa linguagem é

mais importante que a semântica. A Característica permitiria a

realização de um cálculo com rigor quantitativo, embora com a

utilização de noções qualitativas: como na álgebra e na aritmética, em

que “qualquer raciocínio consiste no uso de caracteres [isto é, sinais

escritos, ou desenhados], e todo erro mental é um erro de cálculo” 21,

a Característica, diz Leibniz, seria o um cálculo feito a partir de

caracteres que substituem pensamentos primitivos e com os quais seria

possível formar caracteres de noções derivadas, das quais,

inversamente, é possível deduzir os requisitos, ou seja, definições e

valores, e as modificações deriváveis das definições. “Uma vez feito

isso”, conclui o filósofo, “quem ao raciocinar e ao escrever se servisse

dos caracteres assim descritos, ou jamais cometeria erros, ou os

reconheceria sempre por si mesmo, sejam seus ou dos outros, por

meio de exames facílimos.” 22 Suponhamos que Leibniz não tivesse

decidido abandonar a construção de um alfabeto dos pensamentos

humanos e que a Característica — embora a criação dessa linguagem

não dependa necessariamente desse alfabeto — fosse, então, produzida

a partir de símbolos que exprimissem pensamentos primitivos que estão

na origem de qualquer outro pensamento. Ainda assim, não haveria

uma adequação absoluta de um conhecimento intuitivo. Existiria sim

uma certeza matemática no raciocínio, mas nem por isso o pensamento

seria transparente para si mesmo. Se o “imenso edifício filosófico

lingüístico” de Leibniz, para usar a expressão de Umberto Eco, é

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erguido sobre o fundamento dos pensamentos cegos, Leibniz jamais

pretendeu que o conhecimento humano alcançasse a clareza da intuição

— cartesiana ou espinosana. Jamais pensou que fosse humanamente

possível esclarecer a obscuridade, iluminar com clareza meridiana o

fundo obscuro subjacente em cada pensamento distinto. Por melhor

elaborados que fossem os caracteres dessa linguagem universal, seriam

ainda e sempre caracteres, símbolos, expressivos, mas símbolos.

Todavia, e em segundo lugar, como mostra Lebrun, quando

Leibniz pensa uma homogeneidade de direito entre os sentidos e o

entendimento — pelo que é criticado por não preservar a diferença de

natureza do sensível em relação ao inteligível, relegando aquele à

função de deformar as representações do entendimento — “é porque

nenhum signo, no limite, é signo de instituição; ou melhor, é porque

desaparece a fronteira entre signos naturais e signos de instituição,

substitutos que mostram e substitutos que dissimulam a razão de sua

relação com a coisa.” 23 É por isso que o símbolo para Leibniz não

pode nunca ser totalmente equívoco, porque, na medida em que

exprime uma coisa, uma idéia, um símbolo não traduz a coisa, nem

substitui a idéia, ele é a coisa ou a idéia sob uma determinada

perspectiva. O símbolo não é um índice, sugere Lebrun, mas um perfil

da coisa: Leibniz não distingue a apresentação da coisa de uma

indicação dela por substituição e, por isso, todo conhecimento pode

ser pensado como representação, ou apresentação, porque estar

representado não é mais pensado a partir da metáfora da visão. Ser

exprimido não é nunca ser expresso ou explícito, não é jamais ser uma

cópia de um original. Se o símbolo oculta algo da coisa ou da idéia

não se trata de uma relação visível, de uma semelhança em sentido

visual, mas da lei correspondência, que exprime a coisa ou a idéia,

que a apresenta, mas de maneira analógica. Há um jogo entre o que o

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símbolo apresenta e o que esconde, ou melhor, envolve, implica, de

maneira não explícita. É isso que caracteriza a expressão leibniziana.

O que um símbolo “oculta” é precisamente a lei de correspondência, a

harmonia que mantém a analogia entre o que exprime e o exprimido;

mas é assim que ele é a expressão de alguma coisa. O símbolo é a

coisa sob determinada perspectiva. Não há como anular a sombra que

permanece sob o que é distintamente percebido, mas isso não é uma

carência do símbolo, é constitutivo dele; mais que isso, se não há

como anular as diferenças ontológicas de pontos de vista, ainda menos

poderíamos pretender anulá-las formalmente, e essa é a riqueza do

mundo leibniziano, é isso que faz a variedade do mundo. Leibniz não

rejeita o adequado, de alguma maneira a adequação permanece como

um ideal possível e o termo “adequado” nunca deixou de fazer parte

da classificação leibniziana dos tipos de conhecimento, mas é Leibniz

quem diz: “não sei se os homens podem oferecer um exemplo perfeito

deste [conhecimento adequado], embora a noção dos números se

aproxime bastante dele” 24. Imaginar que podemos emergir do fundo

obscuro e, desprezando a perspectiva inerente a cada indivíduo, chegar

a uma expressão plenamente unívoca, seria o mesmo que pensar os

homens como deuses, ou espíritos sem corpos, seria desprezar a

singularidade de cada ser individual. Mas a sabedoria, diz Leibniz,

está em variar: “Multiplicar unicamente a mesma coisa, por mais

nobre que ela seja, seria supérfluo, seria uma pobreza: ter mil Virgílios

bem encadernados na biblioteca, cantar sempre as árias da Ópera

de Cadmus e de Hermione, quebrar todas as porcelanas para não ter

senão xícaras de ouro, ter botões somente de diamante, comer apenas

perdiz, beber somente vinho da Hungria ou de Shiras; isso poderia

ser chamado de razão?” 25

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A filosofia expressiva de Leibniz, porque inclui na concepção

de expressão a analogia e a harmonia, é uma filosofia simbólica, Leibniz

jamais separa a expressão dos signos e das variações que eles trazem

— em cada expressão, o distinto e o confuso variam. Mas o símbolo

para Leibniz não é mistificador, como para Espinosa. E o obscuro é

precisamente o que faz a riqueza de um universo em que cada ponto

de vista é como um mundo inteiro, e o mundo é multiplicado por cada

uma das várias perspectivas individuais, por cada expressão singular

do todo.

Se a gênese da teoria da expressão leibniziana está em suas

reflexões sobre a Característica universal, como sugere Lamarra26,

então o que poderia ser visto como um fracasso (o fato do projeto da

Característica ter permanecido inacabado) é na verdade a origem de

uma complexa rede explicativa capaz de dar conta dos principais temas

da filosofia de Leibniz. A teoria da expressão, definida pela primeira

vez em 1678, no opúsculoO que é idéia, permite articular as reflexões

de Leibniz sobre as matemáticas, a teologia, a ontologia e a

epistemologia. E, certamente, o silêncio de Leibniz sobre a prova da

existência de Deus a partir do fim da década de 70 diz muito sobre a

maneira como o filósofo vai conceber a expressão e sobre o papel que

vai reservar, no interior da idéia de expressão, ao obscuro, ao confuso,

ao invisível.

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CADERNOSESPINOSANOSXV - 2006

Bibliografia

Deleuze, G. –Spinoza et le probleme de l’expression.Paris: Minuit,

1968.

Descartes –Oeuvres. Publiées par C.Adams e P. Tannery. 11 volumes.

Paris: Vrin, 1971.

Eco, U. –A busca da língua perfeita. Bauru: Edusc, 2001.

Lamarra, A. – “Sur l’origine de la theorie de l’expression dans la

philosophie de Leibniz”in Recherches sur le XVIIe siècle, número 5.

Lebrun, G. – “A noção de ‘semelhança’ de Descartes a Leibniz”in

Dascal, M. (org.) –Conhecimento, linguagem, ideologia. São Paulo:

Perspectiva, 1989.

Leibniz - Die philosophischen Schriften. Ed. C. I. Gerhardt, 7 vols.,

Berlin, Halle: 1949-63; reimpressão Hildesheim, 1962 (citado PS,

seguido do volume e da página).

______ -Escritos Filosoficos, Edição de Ezequiel de Olaso, Buenos

Aires, Charcas, 1982.

______ -Essais de Théodicée. Paris: Flammarion, 1969.

______ -Nouveaux Essais. Paris: GF- Flammarion, 1990.

______ -Recherches générales su l’analyse des notions et des vérités.

Introduction et notes par J.-B. Rauzy. Paris: PUF, 1998.

______ -Sämtliche Schriften und Briefe, herausgegeben von der

deutschenAkademie der Wissenschaften zu Berlin.

Leopoldo e Silva, F. – “Universalidade e simbolização em Leibniz”,

publicado neste número dosCadernos espinosanos.

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Notas

1 Leibniz – “Carta a Elisabeth, 1678”,in Die philosophischen Schriften.

Ed. C. I. Gerhardt, 7 vols., Berlin, Halle: 1949-63; reimpressão

Hildesheim, 1962 (doravante citado PS, seguido do volume e da

página) – IV, p.296.2 Leibniz – “Meditações sobre o conhecimento, a verdade e as idéias”,

PS, IV, p.425.

Tradução argentinain Escritos Filosoficos, Edição de Ezequiel de

Olaso, Buenos Aires, Charcas, 1982. – p.275.3 Leibniz –Novos Ensaios, IV, x, §7. Paris: GF- Flammarion, 1990

(citado NE, seguido de livro e artigo) – p.345.4 Cf. Descartes – A Mersenne.Oeuvres de Descartes. Publiées par C.

Adams e P. Tannery. 11 volumes. Paris: Vrin, 1971 – III, p.393.5 Leibniz – “Observações sobre parte geral dos Princípios de

Descartes”, §18. PS, IV, p. 360.

Tradução argentinain Escritos Filosoficos, Buenos Aires: Editorial

Charcas, 1982 – p.422.6 Leibniz –Quod Ens Perfectissimum existit. Sämtliche Schriften und

Briefe, herausgegeben von der deutschenAkademie der Wissenschaften

zu Berlin, VI, iii, p.578-579.

Tradução francesain Recherches générales su l’analyse des notions

et des vérités. Introduction et notes par J.-B. Rauzy. Paris: PUF, 1998.

– p. 28.7 Leibniz – “Carta a Elisabeth, 1978”, PS, IV, p.295.8 Leibniz – “Meditações sobre o conhecimento, a verdade e as idéias”,

PS, IV, p.425.

Tradução argentinain Escritos Filosoficos, Edição de Ezequiel de

Olaso, Ed. cit. – p.275.

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9 Sem título, PS, VII – p.184-189 (tradução francesain Recherches

générales sur l’analyse des notions et des vérités. Paris: PUF, 1998 –

p.63-70).10 “eu ignorava que os geômetras, quando colocam as proposições

segundo a ordem que permite demonstrá-las umas a partir das outras,

fazem exatamente o que eu desejava.” PS, VII – p.185 (tradução

francesain Recherches générales sur l’analyse des notions et des

vérités. Ed. cit. – p.65).11 “Assiduamente dedicado a essa tarefa, era inevitável que eu

chegasse a esta consideração admirável, a saber, que se pode elaborar

um alfabeto dos pensamentos humanos e que a combinação das letras

desse alfabeto, juntamente com a análise das palavras feitas com

elas, permitiriam encontrar e discernir todas as coisas.” PS, VII –

p.185 (tradução francesain Recherches générales sur l’analyse des

notions et des vérités. Ed. cit. – p.66).12 PS, VII – p.200 (tradução francesain Recherches générales sur

l’analyse des notions et des vérités. Ed. cit. – p.163). Cf. também PS,

VII – p.188 (tradução francesain Recherches générales sur l’analyse

des notions et des vérités. Ed. cit. – p.69).13 PS, VII – p.201 (tradução francesain Recherches générales sur

l’analyse des notions et des vérités. Ed. cit. – p.163).14 PS, VII, Einleitung.15 Deleuze, G. –Spinoza et le probleme de l’expression.Paris: Minuit,

1968 – p.306.16 [Zu Lockes Urteil über Malebranche], PS, VI – p.576.17 Cf. Leopoldo e Silva, F. – “Universalidade e simbolização em

Leibniz”, publicado neste número dosCadernos espinosanos– p. 49.18 Leibniz – NE, III, iv, §16. Ed. cit. – p.232-233.

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TESSAMOURA LACERDA

19 Leibniz – Opuscules et fragments inédits(ed. par L. Couturat).

Paris: Alcan, 1903 – pp. 518-23.20 Eco, U. –A busca da língua perfeita. Bauru: Edusc, 2001 – p.327.21 Leibniz citado por Eco, U. –A busca da língua perfeita. Ed. cit. –

p. 338.22 Leibniz citado por Eco, U. –A busca da língua perfeita. Ed. cit. –

p. 338.23 Lebrun, G. – “A noção de ‘semelhança’ de Descartes a Leibniz”in

Dascal, M. (org.) –Conhecimento, linguagem, ideologia. São Paulo:

Perspectiva, 1989 – p.53-54.24 Leibniz – PS, IV, p.423.25 Leibniz –Teodicéia, II, §124. Paris: Flammarion, 1969 – p.181.26 Lamarra, A. – “Sur l’origine de la theorie de l’expression dans la

philosophie de Leibniz”in Recherches sur le XVIIe siècle, número 5 –

p. 78-83.

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ERICKA MARIE ITOKAZU

A filosofia espinosana para além do corpo-máquina: o paralelismo em questão*

ERICKA MARIE ITOKAZU**

* Aredação deste artigo muito se deve à contribuição feita por outros pesquisadoresno XII Encontro daANPOF, realizado em Salvador Bahia em 2006.Acompreensãodo que seria o mecanicismo em Espinosa tornou-se fundamental, o que nos levoua discuti-lo oportunamente noIII Congresso Spinozarealizado na UnivesidadNacional de Córdoba, e que resultou na publicação do resumo da comunicaçãocomo “Spinoza y el mecanicismo en el siglo XVII: ¿una herencia cartesiana?”Desde então, as articulações internas sobre o mecanicismo foram sopesadas ereelaboradas, alguns argumentos acrescidos,e a recusa à interpretação doparalelismo em Espinosa acabou recebendo a ênfase e destaque que ora procuramosanalisar neste artigo.** Doutoranda em História da Filosofia pelo Departamento de Filosofia da USP.

Resumo:Pretendemos analisar alguns trechos daÉtica para buscarcompreender uma célebre indagação espinosana: o que pode um corpo?Tradicionalmente, é a mente que governa o corpo. Tudo o que surgecomo criação ou inovação segue-se de uma ação da mente sobre ocorpo. Não sendo este mais do que o lugar das relações necessárias,mecânicas ou, ainda pior, o lugar dos pecados, a liberdade não viriasenão da sujeição do corpo pela mente. Esta não seria ativa senão namedida em que aquele fosse passivo. Com Espinosa, esse tradicionalponto de vista é inteiramente invertido e é esta inversão que acaba pordar sentido à questão “o que pode um corpo?” Com Espinosa, corpoe mente deverão ser ativos juntos ou passivos juntos. O corpo ocupaum lugar proeminente. Será ele também capaz de criação. Será ele umdos fulcros da liberdade. Eis o trabalho que procuramos empreenderneste artigo. E, se muito já se escreveu sobre como, no século XVII,o corpo deixa de ser o lugar das doenças e pecados para tornar-se olugar das relações necessárias e mecânicas, a inovação espinosanaestá justamente em ir para além do corpo-máquina. Contudo, o alcancedesta empreita está estreitamente vinculado a certa tradição de

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comentadores que defendem o paralelismo na relação corpo e mente.A reflexão acerca do paralelismo faz-se portanto necessária paracompreender como o sentido desta indagação espinosana suscita odesvelamento de todo um horizonte que se abre, finalmente, para ocorpo e a liberdade.

Palavras-chave: corpo, corpo-máquina, mecanicismo, relação corpo/mente, singularidade.

Abstract: We intend to analyze some passages from Ethics in orderto understand a renowned Spinozian quote: what’s a body capable of?Traditionally, the mind has dominion over the body. Everything whichbecomes real through creation or innovation comes from an action ofthe mind over the body. The body being nothing more than the field ofnecessary and mechanical relations, or worse, the place of sins, free-dom would come by the subjection of the body by the mind. The mindcould not be active unless the body were passive. For Spinoza, thistraditional point of view is completely inverted, and, based on thisinversion, we can figure out the meaning of the quote: “what’s a bodycapable of?” According to Spinoza, body and mind must be active orpassive together. The body has a prominent role. It’s also capable ofcreating. It is one of the fulcrums of freedom as well. That is what weintend to discuss in the present article. And, if much has been writtenon how, in the XVII century, the body ceases to be the place of sick-ness and of sins to become the place of necessary and mechanicalrelations, the innovation in Spinoza consists precisely in going beyondthe body-machine concept. However, the reach of this undertaking isclosely linked to a certain tradition of commentators who defend par-allelism in the relation between body and mind. The reflection uponparallelism is, therefore, necessary for the understanding of how themeaning of the Spinozan quote brings forth the unfolding of a wholenew horizon, which lays open, at long last, for both body and free-dom.

Key-words: body, body-machine, mechanicism, body/mind relation,

singularity.

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ERICKA MARIE ITOKAZU

I – A geometrização do movimento e o mecanicismo

Os céus e a Terra. Infinita parece ser a distância que os separa.

E a incomensurabilidade de tal distância não se encontra em nenhuma

grandeza. O que separa os céus e a Terra não é passível de ser medido.

Pelo contrário. O Cosmo, na sua concepção clássica e medieval, era

uma unidade fechada de um Todo. Um todo finito, qualitativamente

determinado em esferas concêntricas de realidades distintas cuja

estrutura espacial revelava uma hierarquia de valor e perfeição: a

incorruptibilidade e luminosidade dos céus, a opacidade surda da

corrupção presente nos movimentos percebidos na Terra. A distância

que separa o que contemplamos nos céus do que percebemos na Terra

é incomensurável porque não há medida comum entre desiguais, entre

heterogêneos que, como tais, são legislados por leis distintas.

Um Cosmo finito e hierárquico. Eis o lugar abandonado com a

revolução científica do século XVII. Isento de diferenças, a

geometrização do espaço tornou o campo da extensão homogêneo e

uniforme para todo domínio da matéria, seja a de corpos celestes ou

terrestres, abrindo-lhes um campo isonômico de uma natureza que

até então nenhum homem percebera e jamais concebera:Du monde

clos à l’univers infini, nos dirá Alexandre Koyré. E se este universo

infinito está escrito em caracteres matemáticos, é porque nele não há

hierarquias, nem há lugar para as diferenças qualitativas. Contudo, se

abandonamos um Cosmo todo ele organizado e ordenado, como não

nos sentirmos abandonados neste universo homogêneo e infinito?

Como não nos perdermos em seus tantos labirintos indiferenciáveis,

um universo cujo centro está em toda parte, e no qual navegamos

num mar infinito sem quaisquer referências?

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Enveredar pelos meandros da infinitude exigia uma tomada de

atitude, uma nova postura frente a uma nova natureza. Exatamente

por este motivo,Alexandre Koyré afirma que esta revolução científica

realiza uma conversão: dascientia contemplativaparascientia activa,

da teoria para a práxis. Deixamos de ser espectadores para tornarmo-

nos senhores e mestres da natureza. Ler este grande livro

continuamente aberto, navegar por este universo infinito, exige

portanto a construção de instrumentos intelectuais sem os quais

vagaríamos errantes sem bússola a nos nortear na terra, sem astrolábio

a nos guiar no mar. Eis como configuram-se dois projetos inovadores

característicos do seiscentos: a geometrização do movimento e o

mecanicismo.

“o abandono da concepção clássica e medieval

do Cosmo (...) e sua substituição pela do Universo, isto

é, de um conjunto aberto e indefinidamente extenso do

Ser, unido pela identidade das leis fundamentais que o

governa, determina a fusão dafísica celestecom afísica

terrestre, e permite a esta última utilizar e aplicar a seus

problemas os métodos matemáticos hipotético-dedutivos

desenvolvidos pela primeira; implica também a

impossibilidade de estabelecer e de elaborar uma física

terrestre ou, pelo menos, uma mecânica terrestre, sem

desenvolver simultaneamente uma mecânica celeste”1

Mecanicismo e geometrização do movimento não são projetos

idênticos: que Galileu tenha aberto a senda para a geometrização do

movimento, tão fortemente defendida por Descartes em seu grande

sonho pelareductione scientiae ad geometriam, a identificação da

extensão à matéria na filosofia cartesiana muito o distancia da física-

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matemática galileana2 . Que o atomista Gassendi seja considerado

mecanicista tanto quanto Descartes, que justamente recusava a

existência dos átomos e para quem o vazio não tinha lugar; que a

física de Pascal seja defendida como mecanicista que, por sua vez,

admite o vazio... Como coadunar tantas dessemelhanças sob nomes

tais como “mecanicismo” ou “geometrização do movimento”?

O que há de comum na ousada empreita? Uma nova postura

que colapsou a tradição escolástico-aristotélica e sua autoridade no

conhecimento dos domínio da matéria. O mecanicismo, mais que um

sistema filosófico preciso, é um conjunto de novas atitudes no estudo

da natureza, uma recusa a toda finalidade e a toda diferençaqualitativa,

e o seu desafio será, portanto, o de explicá-la de um ponto de vista

quantitativo, restringindo a explicação dos fenômenos corporais

somente à relação entre corpos. Sem apelo a nada que seja externo ao

domínio da matéria, o mecanicismo acaba, finalmente, por conferir

certa autonomia ao conhecimento na esfera dos corpos. Não é por

acaso que a geometrização do movimento ergueu-se como o seu mais

excelente instrumento, porquanto torna possível “reconstruir os

fenômenos do movimento no interior do domínio de uma

inteligibilidade geométrica de tal sorte que os fenômenos, submetidos

à razão geométrica, sejam objetos passíveis de serem deduzidos sob o

modelo dosElementosde Euclides.”3

Nesta revolução científica, segundo Koyré, encontramos o

nascedouro da física moderna que tem na lei da inércia a sua lei

fundamental (seja implicitamente articulada, como na mecânica de

Galileu, seja explicitamente enunciada, como no caso da de Descartes)

que permite avançar e seguir adiante na formulação de uma mecânica

celeste em perfeita concordância com uma mecânica terrestre. E

Descartes parece ser o primeiro a perceber o alcance destes

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instrumentos intelectuais. O completo domínio e autonomia do

conhecimento dos corpos deve abarcar, além dos céus e da Terra, um

corpo de outro gênero: o corpo humano. Tanto o mecanicismo quanto

a geometrização do movimento parecem poder tornar cognoscível a

dinâmica e a estrutura do corpo humano sob as mesmas leis pelas

quais se explicam quaisquer outros fenômenos da natureza4 .

II – O corpo humano em Espinosa e Descartes: o mecanicismo

em questão

Distanciando-se da perspectiva qualitativa e do finalismo, o

corpo humano, outrora visto como antro inóspito de moléstias e

pestilências, mestre dos vícios e prisão da alma, porque compartilha

da mesma natureza de qualquer outro corpo físico, pode agora tornar-

se objeto do conhecimento a ser iluminado pela racionalidade

geométrica, assim como explicado pela dinâmica própria aos corpos

pelo seu mecanicismo. Não é por outro motivo que René Guénon5

associa a autonomia dos estudos dos corpos onde areina a quantidade

como parte do mesmo movimento moderno de desligamento da esfera

profana do sagrado.

Charles Ramond reconhece no projeto seiscentista a cuidadosa

construção mecanicista do corpo humano que afasta o finalismo,

extingue as almas vegetativa e sensitiva, porém, pergunta ele, a que

preço? A crítica de Charles Ramond vai mesmo nesta direção: após

ter mostrado “tão claramente quanto possível a separação, no homem,

de domínios distintos do corpo e do pensamento, os filósofos do XVII

[no qual estão incluídos Descartes, Espinosa, Pascal e Leibniz] só

puderam encontrar sua união, no homem, bastante obscura – todo

progresso no conhecimento docorpo humano parecendo dever ser

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pago por um recuo no conhecimento do corpohumano6 . É nesta toada

que segue Chantal Jaquet ao analisar o emblemático homem-máquina

cartesiano, tal qual fora apresentado noTratado do Homem:

Desejo que se considere que estas funções seguem,

naturalmente nesta máquina, somente da disposição de

seus órgãos, nem mais nem menos que os movimentos de

um relógio ou de outro autômato que se movimenta pelo

contrapeso de suas rodas; de tal maneira que não é

necessário, neste caso, conceber nesta máquina nenhuma

outra alma vegetativa, nem sensitiva, nem outro princípio

de movimento e de vida senão seu sangue e seus espíritos

agitados pelo calor do fogo que arde continuamente em

seu coração, e que não é de modo algum de outra natureza

que todos os fogos que são nos corpos inanimados7

Criticando o mecanicismo cartesiano, Jaquet denuncia a

redução do corpo humano à máquina que, negando-lhe toda

especificidade, torna impossível à primeira vista distinguir o corpo

de um homem do de um autômato. O animal-máquina é submetido

ao princípio de inércia como os outros corpos inanimados, de sorte

que ele não possui leis próprias. “Em suma”, conclui Chantal acerca

do mecanicismo, “Descartes e seus herdeiros explicam a vida

suprimindo-a”8.

Sem dúvida nenhuma, Espinosa é herdeiro de Descartes em

diversos aspectos, contudo, em que medida e até aonde segue a herança

cartesiana para compreender o corpo humano? Diferentemente da

maioria dos comentadores que iniciam a análise comparativa entre

Espinosa e Descartes tendo por base oTratado do Homemcartesiano

em diálogo com a parte II daÉticaespinosana, Martial Guéroult parece

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ser o primeiro e mais proeminente comentador a perceber que a

compreensão do mecanicismo de cada autor está estreitamente

vinculada à maneira como cada filósofo tratou a geometrização do

movimento. Eis porque destacou como princípio fundante das

diferenças entre Descartes e Espinosa os modelos físicos que orientam

os filósofos: o paradigma dos fluidos e do turbilhão condiciona a

identidade do corpo em Descartes àpermanência de sua massa

(relação de grandeza quanto ao volume) e, em segundo lugar, pela

manutenção damesma quantidadede movimento. Diferentemente, o

paradigma dos sólidos e do pêndulo composto condiciona em Espinosa

a identidade do corpo àproporçãoconstante de movimento e repouso

entre as partes que compõem o indivíduo.

DEFINIÇÃO.

Quando alguns corpos de mesma ou diversa

grandeza são constrangidos por outros de tal maneira

que aderem uns aos outros, ou se movem com o mesmo

ou diverso grau de rapidez, de tal maneira quecomunicam

seus movimentos uns aos outros numa proporção certa,

dizemos que esses corpos estão unidos uns aos outros e

todos em simultâneo compõem um só corpo ou Indivíduo,

que se distingue dos outros por essa união de corpos.

LEMA 5.

Se as partes componentes de um Indivíduo se

tornam maiores ou menores, mas emproporçãotal que,

como dantes, todas conservam umas com as outras a

mesma proporção de movimento e de repouso, da mesma

maneira o Indivíduo manterá a sua natureza de antes

sem nenhuma mutação de forma.9

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Guéroult pergunta-se sobre esta definição espinosana e suas

derivações na parte que se consagrou como sua “pequena física”:

“Quais idéias científicas inspiram a teoria espinosana dos corpos

compostos? O que entender por esta proporção de movimento e

repouso entre as partes que compõem o corpo? (...) Para responder

esta questão é necessário referirmo-nos às pesquisas dos

contemporâneos acerca da dinâmica dos sólidos, especialmente àquelas

que concernem ao problema dos centros de oscilação, bastante célebre

na segunda metade do XVII”10.

As considerações acerca das descobertas de Huygens,

acompanhadas de perto por Espinosa, levam Guéroult a concluir que

o modelo é o centro de oscilação em pêndulos compostos tal como

fora calculado por Huygens, e que torna possível não somente pensar

um movimento composto por vários outros movimentos simultâneos

com variações de grandeza e massa, mas também, a partir de todas

estas variantes calcular e extrair umaproporção constante. Conclui

Guéroult: “Considerando não aquantidadeimutável de movimento,

mas aproporçãoimutável de movimento e repouso imposta às suas

partes, o conjunto do universo é comparável a um gigantesco pêndulo,

cujo ritmo eterno é absolutamente invariável pelo fato de que ele não

pode ser submetido a nenhuma ação perturbadora que venha de fora.”11

Tal conclusão parece, à primeira vista, bastante razoável para

compreender, num recorte bastante preciso, a parte final da pequena

física espinosana:

Concebemos um Indivíduo que não é composto

senão de corpos que se distinguem entre si apenas pelo

movimento e repouso. (...) Se, além disso, concebermos

um terceiro gênero de Indivíduos, compostos de Indivíduos

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deste segundo gênero, da mesma maneira descobriremos

que podem ser afetados de muitas outras maneiras, sem

nenhuma mutação de sua forma. E se continuarmos assim

ao infinito, conceberemos facilmente que a natureza

inteira é um Indivíduo, cujas partes, isto é, todos os

corpos, variam de infinitas maneiras, sem nenhuma

mutação do Indivíduo inteiro.12

Qual a diferença entre as concepções de corpo em Espinosa e

Descartes? Diferença técnica, afirma-nos Guéroult: “porque Espinosa

substitui o modelo mecânico do turbilhão pelo do pêndulo”, e diferença

de espírito: “porque ampliando sem limites o campo das idéias claras

e distintas, e eliminando de fato a união substancial da mente e do

corpo, Espinosa dá conta da estrutura do corpo humano pelo

mecanicismo somente, o que Descartes reservava à explicação de todos

os outros corpos”15. O corpo humano, tal qual definido por Espinosa

como um indivíduo composto por outros indivíduos compostos, e

que juntamente a outros, forma indivíduos de segundo e terceiro

gênero, compondo assim sucessivamente ao infinito, parece finalmente

poder ser inserido na mesma malha mecanicista dos outros corpos.

Eis que se atingiria a tão desejada autonomia à totalidade do domínio

da extensão. E se o projeto seiscentista gabava-se por construir uma

mecânica celeste e uma mecânica terrestre sob as mesmas leis, Espinosa

parece ir além, inserindo, nesta mesma cadeia explicativa, também

uma mecânica humana. E a passagem do âmbito macroscópico ao

microscópico de corpos, sejam eles animados ou não, fora possível de

ser deduzida pela noção de “proporção” de movimento e repouso:

para todas as mecânicas, seu fundamento é construído por uma

racionalidade puramente geométrica.

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O mecanicismo em Espinosa, poderia reforçar a sua extrema

fidelidade ao legado cartesiano? Teria ele finalmente concretizado o

sonho dereductione scientiae ad geometriam,justamente onde

Descartes falhara? Expliquemo-nos: se o fundamento da identidade

do corpo cartesiano depende da manutenção daquantidadede

movimento determinada por certo turbilhão, assim como da

manutenção damassadeste corpo na persistência de um mesmo volume

sob a diversidade cambiante de suas figuras, como explicar a identidade

do homem desde infância à vida adulta? Para responder a este problema,

Descartes tem que lançar mão da alma ou espírito que ao informar o

corpo humano garante-lhe a identidade e a unidade. O modelo

mecanicista do corpo humano em Descartes é, portanto, “válidoapenas

para o corpo humano, por não se tratar de uma substância material,

mas de uma substância composta de matéria e espírito”14.

A geometria cartesiana e o modelo dos turbilhões não parecem

portanto ter sido capazes de explicar a identidade do homem, deixando

o corpo humano escapar ao modelo geométrico defendido nos

Princípios da Filosofia,contudo, a resposta espinosana, encontrada

na manutenção daproporçãode movimento e repouso, parece levar

adiante e mais coerentemente o projeto mecanicista em conformidade

com a geometrização do movimento, tal é o que a análise de Guéroult

nos leva a concluir dado que, afirma ele, “não há nada no corpo humano

que não seja da jurisdição das idéias claras e distintas, e o mecanicismo,

liberado dos limites onde Descartes o encerrou, põe fim ao escândalo

da união substancial”. “Espinosa destrói o privilégio do corpo humano

submetendo-o à norma comum de todos os corpos”15.

Teria este rigor mecanicista de Espinosa e a denúcia ao

escândalo da união substancial, “hipótese mais oculta que todas as

qualidades ocultas”, tornado-o vítima da crítica de Chantal Jaquet

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direcionada aos “herdeiros de Descartes”? Teria Espinosa retirado a

vida do corpo humano e com ela toda a sua especificidade, ou ainda,

pagando o altíssimo preço, teria Espinosa incorrido na paradoxal

conclusão de Charles Ramond: impulsionar o progresso do

conhecimento docorpohumano às custas do recuo do conhecimento

do corpohumano?

III – O corpo em Espinosa: o paralelismo em questão.

Que Espinosa tenha sido rigorosamente mecanicista na dedução

do corpo humano, porquanto este é unicamente explicado pela relação

entre os corpos, disso não temos dúvida. Que tenha se inspirado nas

descobertas de Huygens, também consideramos inquestionável. Porém,

perguntamos, o mecanicismo espinosano estaria restrito às conclusões

de Guéroult? E, em segundo lugar, tais conclusões não restrigem o

mecanismo do corpo humano a uma atividade cega, autorregulada e

inexpressiva? A identidade dos corpos mantida por um equilíbrio

dinâmico, tal parece ser o máximo a ser extraído do modelo do pêndulo

composto. Tornando o corpo ausente de quaisquer especificidades de

corpo humano, finalmente, perguntamos se tais questões não dependem

de um prejuízo anterior sobre o qual este mecanicismo fora concebido,

a saber, o paralelismo entre os atributos Extensão e Pensamento.

De certo modo, o termo “paralelismo” nos auxilia a não

misturar aquilo que nos é interditado mesclar, a Extensão e o

Pensamento, permitindo criar uma imagem explicativa na qual a ordem

e a conexão de ambos os atributos são como desdobramentos que

seguem paralelamente, e que como tais não se entrecruzam, embora

mantenham seus pontos, num e noutro, sempre correspondentes.

Determinadas afecções do corpo portanto corresponderiam a

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determinados afetos da mente, sem nenhum apelo à união substancial,

e mais ainda, sem incorrer no governo da mente sobre o corpo,

culminando por finalmente extinguir o império da vontade ou a

misteriosa ação da glândula pineal na ação recíproca entre corpo e

mente.

De certo modo, porque correspondentes, o atributo

Pensamento tornaria inteligível a ordem do atributo Extensão, ou seja,

em nome da racionalidade, estaríamos ao fim e ao cabo subordinando

os fenômenos de um atributo à inteligibilidade do outro. Em geral,

porque o paralelismo é uma boa imagem para seus estudos, os

comentadores de Espinosa acomodam-se com este termo leibniziano,

chegando Charles Ramond a declarar: “Espinosa proíbe pensar uma

tal união [corpo e mente], ou mesmo uma tal interação: eis porque o

termo paralelismo convém tão bem à sua filosofia,ainda que não

faça parte de seu vocabulário.”16 De certo modo, como dissemos, o

paralelismo nos auxilia a imaginar que nem a mente determina um

corpo a agir, nem o corpo determina a mente a padecer ou pensar,

porém, nós agora perguntamos, a que custo?

Linhas que correm paralelamente e que somente se

encontrariam num hipotético ponto localizado no infinito (em Deus,

substância infinitamente infinita), contudo, para nós, seus modos finitos,

construiriam uma imagem clandestina: a de que corpo e mente seriam

duas coisas quase absolutamente separadas, tal a impossível interação,

tamanha a incompreensível união. Uma vez apartados, nosso corpo e

mente parecem ter de carregar consigo o fardo de jamais poderem se

reencontrar. Não estaria este “paralelismo” travestindo o dualismo

substancial cartesiano em nova roupagem, quando, de fato, o esforço

de Espinosa encontra-se em nos fazer compreender que “mente e corpo

sãouma só e mesma coisa, ora concebido sob atributo do Pensamento,

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ora sob o atributo da Extensão”? Afirma-nos Espinosa: “a ordem e a

conexão das idéias é a mesma (idem est) que a ordem e a conexão das

coisas”. Por que tomar este “idem est” como uma correlação entre

paralelos, quando precisamente toda a argumentação é para reforçar

que sãoum só e o mesmo? “Uma só e mesma conexão de causas”17,

acrescenta Espinosa. Por que não aceitar que a ordem e conexão dos

atributos possam ser a mesma, e que isso não fere a diferença real

entre ambos? Por que não poderíamos compreender este “idem est”

como uma simultaneidade entre os atributos que certamente não podem

ser reduzidos um ao outro?

O custo parece consistir nisso: ao apartá-los indelevelmente

em duas dimensões, e não havendo nenhum apelo a qualquer ação

recíproca entre corpo e mente, só nos resta seguir forjando uma outra

ficção e, desesperadamente, procurar tecer liames que reatem tais

pontos paralelos correspondentes de coisas para as quais se decretou

nunca mais poderem se encontrar. E dissemos desesperadamente

porque há no paralelismo o risco de incorrermos num custo ainda

maior: assim separados os atributos, a ordem da Extensão é abandonada

à si mesma, não restando ao domínio da matéria senão o de ser

explicada por uma prototípica causalidade, a necessidade bruta e cega.

E muito precisaremos tentar escapar da armadilha e não abandonar o

corpo humano a esta ordem e funcionamento inexoráveis, em que

vitorioso retornaria o mecanicismo para o qual, sem nenhuma

possibilidade de refúgio numa mente legisladora, o homem seria ainda

mais máquina do que o animal-máquina cartesiano.

Apresentados alguns dos problemas do paralelismo, cumpre-

nos então primeiramente reivindicar a recusa de sua utilização como

instrumento interpretativo da filosofia espinosana, o que nos convida

a nos debruçar mais acuradamente sobre este âmbito da Extensão

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espinosana no qual está inserido corpo humano. Numa breve carta de

Espinosa, poderemos encontrar uma centelha de luz para as nossas

inquietações:

a partir da extensão tal como a concebe Descartes,

a saber, como uma massa em repouso, não só é difícil,

como dizeis, senão totalmente impossível demonstrar a

existência dos corpos. Pois a matéria em repouso

permanecerá, ao que lhe respeita, em seu repouso e não

se colocará em movimento, a não ser por uma causa

externa mais poderosa. Por este motivo, não duvidei em

dizer há tempos que os princípios cartesianos sobre as

coisas naturais são inúteis, para não dizer absurdos.18

Outras heranças à parte, Espinosa justamente recusa os

princípios sobre os quais se fundam uma física e uma medicina

cartesianas. Ora, a diferença entre Descartes e Espinosa não depende

unicamente da diversidade de modelos físicos (o pêndulo ou o

turbilhão) que inspiraram os filósofos. Muito mais profunda e

intrincada, a diferença está na definição mesma da Extensão. O que é

então conceber uma extensão confundida com a matéria inerte que, a

despeito de ser uma substância, tem como princípio primeiro do

movimento uma causa externa e transcendente? Esta concepção não

é demasiadamente diversa da Extensão de Espinosa, um atributo infinito

da única substância e cujo princípio de movimento não lhe é externo,

pelo contrário, sendo ele mesmo a coincidência da causalidade eficiente

com a imanente?

Outra questão parece ter escapado a Guéroult: analisamos a

importância da “quantidadede movimento” na física cartesiana em

contraposição à tese de Espinosa concernente à “proporçãode

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movimento e repouso”, destacando-lhes a importância dos termos

“quantidade” e “proporção” como indicadores das diferenças entre os

autores. Contudo, o que significa colocar na definição do indivíduo

não somente o movimento, mas também o repouso? Se destes dois

termos é possível extrair uma proporção comum que mui precisamente

determina a identidade de algo existente, isto não significaria que,

diferentemente do que pensara Descartes, movimento e repouso não

são opostos que se anulam? Como compreender que o Movimento e

o Repouso não são “estados” da Extensão, mas que são ambos um

mesmo modo infinito da Substância? Aliás, como afirmar algo sobre

movimento ou repouso de substância única, para a qual não há nada

externo que possa servir de fora como referência para determinar seja

o movimento, seja o repouso? Ao percorrer a obra espinosana, pouco

alento encontramos para as nossas inquietações, como o próprio autor

indica em uma de suas últimas cartas:

a matéria é mal definida por Descartes por meio

da Extensão, e que, pelo contrário, deve ser explicada

necessariamente por meio de um atributo que expresse

uma essência eterna e infinita. Talvez um dia, se tiver

vida suficiente, trate mais claramente destas coisas

convosco já que até o momento não tive a oportunidade

de ordenar nada a respeito19

O tempo de vida não permitiu a Espinosa nos deixar uma Física.

E, ainda que por ora nossas interrogações fiquem sem respostas, pelo

menos indicam a ruptura com a herança cartesiana, que não se localiza

no tronco da árvore do saber (a Física), porquanto a crítica dirige-se

ao seu fundamento, às suas mais profundas raízes: a metafísica. Tal

ruptura permite avançar na compreensão do corpo humano para além

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do corpo máquina, numa leitura despida dos prejuízos do paralelismo.

E Espinosa não se perguntará mais sobre “o que é o corpo”. Num

célebre trecho daÉtica III a questão será: o que pode um corpo?

IV – Para além do corpo-máquina

Acreditamos que Guéroult, ao explicitar o rigoroso

mecanicismo espinosano deixou à margem duas questões principais

presentes na parte II daÉtica e que gostaríamos de retomar muito

brevemente. Ao deduzir o corpo e o indivíduo, na parte conhecida

por muitos como sua “pequena física”, percebemos que não se trata

somente de explicar como se dá aproporçãode movimento e repouso,

mas de compreender o corpo constituído por uma complexidade

intercorporal marcadamenterelacional. O corpo humano é um

indivíduo composto, um complexo de relações internas e externas

com outros tantos corpos complexos. Ele é portanto definido por

uma intra-corporeidadena relação estabelecida entre os corpos

complexos que o compõem, mas também por umaextra-corporeidade,

isto é, a definição de um corpo próprio depende de sua relação com

os outros corpos.

Há porém, um segundo ponto: desta definição de indivíduo

Espinosa acresce sucessivamente composições de indivíduos de

segundo, terceiro gênero e assim até o infinito, sendo a Natureza inteira

um só indivíduo. Por esta dedução Espinosa garante não somente a

relação intercorpórea entre modos finitos, mas também a relação entre

a parte finita e o todo da Natureza. Ora, o que marca então a

individualidade? Espinosa não fala em individualidades, mas em

indivíduos que se compõem ao infinito, sendo os corpos compostos

diferenciados entre si pela proporção de movimento e repouso. Qual

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é a importância a ser aqui observada? Que com sua definição de

indivíduo, Espinosa segue justamente na direção oposta à da

individualidade, sem perder de vista a diferença entre os modos finitos

posta na proporção de movimento e repouso. Seria esta uma

diferenciação restritamente quantitativa que se perderia no todo da

Natureza? Pela definição de indivíduo pareceria que sim, não fosse

estreitamente articulada com a sétima definição introduzida naÉtica

II : a de coisa singular.

Por coisas singulares entendo coisas que são

finitas e têm existência determinada. Se vários indivíduos

concorrem para uma única ação de maneira que todos

sejam simultaneamente causa de um único efeito, nesta

medida considero-os todos como uma única coisa

singular.

Restringir o corpo à individualidade isolada seria como que

pintá-lo numa coloraçãopartes extra partes,considerando-o somente

na esfera do “ser parte da Natureza”. Sesomenteconsideramos a

manutenção da proporção de movimento e repouso, não estaríamos

aprisionando-o na trama da causalidade transitiva existente entre os

modos finitos? Entretanto, a partir da sétima definição daÉtica, a

noção de singularidade do corpo composto, Espinosa poderá introduzir

a passagem do “ser parte da Natureza” para “tomar parte na Natureza”.

Expliquemos: o corpo humano é um modo finito que exprime, de

maneira certa e determinada, a essência de Deus enquanto considerado

como coisa extensa, e, enquanto tal, é uma coisa singular existente em

ato cujas partes que o compõem concorrem parauma única e mesma

ação: a interação das partes internas do corpo humano promove

conjuntamente umaação como causacomum de um só efeito em

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suas relações com a exterioridade. Distanciando-se da lógica da finitude

imposta pela causalidade transitiva, é possível nisso perceber a presença

da causalidade eficiente e imanente que orquestra a Natureza inteira

na potência do corpo quando nele todas as partes são como

instrumentos que em uníssono constituem a causa completa de um

efeito. O corpo é agente porque é corpo singular.

Dada a unicidade substancial, de fato, não seria preciso iluminar

os desdobramentos da Extensão por “modelos físicos”, nem torná-los

inteligíveis porque correlacionados ao atributo Pensamento: a

causalidade eficiente imanente presente em ambos os atributos e o

princípio espinosano decausa sive ratiopor si só já garantem total

inteligibilidade a quaisquer dos infinitos atributos. Espinosa não precisa

defender um mecanicismo associado à geometrização do movimento,

porquanto sua ontologia é geométrica. Contudo, na ausência de uma

Física espinosana, e dados os infortúnios e riscos nas leituras acerca

da extensão em Espinosa, não poderíamos abdicar do termo

“mecanicismo”? Desta feita, não conseguiríamos ao menos afastar a

imagem do corpo humano como um autômato pêndulo autorregulável

e seguir por um caminho muito mais profícuo, ou seja, como uma

expressão singular da Natureza que se autoproduz geometricamente?

Por esta senda, muitas outras se abririam. E nosso filósofo

permanece ao lado a nos acompanhar por este caminho: o que deduz

Espinosa imediatamente após a pequena física?Aaptidão ao múltiplo

simultâneo no corpo e na mente. O que significa este “e”? A aptidão

da mente, idéia do corpo singular existente em ato, não é deduzida de

um corpo destacado do mundo, porque sua própria definição depende

de um complexo de relações internas e externas por ele estabelecidas.

A mente portanto não é a forma, nem o princípio de unidade do corpo,

pelo contrário, ela é tão complexa quanto o corpo, e sua superioridade

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estará fundada nesta capacidade de comércio com o mundo, com os

outros homens e com as outras coisas. É a partir disto, a complexidade

das relações internas e externas, que se segue a produção de um efeito

conjunto do corpo e da mente. Este “e” não nos indica portanto

nenhuma somatória, nenhuma correspondência. Muito mais forte e

enraizado na existência humana, trata-se de compreender este “e” como

uma simultaneidade, um conceito que aparece justamente na base da

construção da aptidão para o múltiplo simultâneo no corpo e na mente.

Poderemos agora seguir e compreender o que é “tomar parte na

Natureza”.

Fosse o corpo humano reduzido a um pêndulo autorregulado,

destacado do mundo e dos outros corpos, cuja potência estaria somente

na capacidade de manter sua proporção de movimento e repouso frente

às vicissitudes da vida, fosse a mente algo tão separado dele como o é

uma linha paralela à outra, e sendo ambos paralelos e correspondentes,

um atleta poderia ser um bom candidato à carreira filosófica. Não

podemos reduzir a capacidade, aptidão e potência de um corpo singular

somente à manutenção da proporção de movimento e repouso. A

aptidão é construída e ampliada quanto mais complexo tornar-se o

comércio, a comunicação deste corpo com o mundo e com a alteridade,

e, nesta comunicação, torna-se agente capaz de ser a causa de seus

efeitos. Podemos então concluir que é a partir da dinâmica

complexidade de suas relações que o corpo, imerso no mundo, pode

ser expressivamente singular. Sem estes esclarecimentos, seria

impossível compreender o primeiro escólio daÉtica III.

Com efeito, ninguém até aqui determinou o que o

Corpo pode, isto é, a ninguém até aqui a experiência

ensinou o que o Corpo pode fazer só pelas leis da natureza

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enquanto considerada apenas corpórea, e o que não pode

fazer senão determinado pela Mente. Pois até aqui

ninguém conheceu a estrutura do Corpo tão

acuradamente que pudesse explicar todas as suas funções,

para não mencionar o fato de que nos Animais são

observadas muitas coisas que de longe superam a

sagacidade humana, e que os sonâmbulos fazem no sono

muitíssimas coisas que não ousariam na vigília; o que

mostra suficientemente que o próprio Corpo, só pelas

leis de sua natureza, pode fazer muitas coisas que deixam

sua Mente admirada.20

Espinosa inverte a perspectiva da análise propondo numa

filosofia racionalista um posicionamento sobre certa supremacia da

mente e lança, para a sua época e para o futuro, um desafio: “ninguém,

até o presente, determinou o que o corpo pode”. Em geral, o escólio

é analisado como consolidação da crítica ao preconceito cartesiano

de que o corpo está sob o domínio da mente e da vontade, porém,

seria esta a força do argumento deste escólio? E são mesmo os

defensores do paralelismo que, ao restringir a análise deste escólio à

denúncia da vontade, constrangem-se em explicar quais afetos

corresponderiam às afecções de um corpo sonâmbulo. Afinal, com o

quê responderíamos ao desafio proposto, tendo como instrumentos o

mecanicismo e o paralelismo? Eis porque acreditamos que este escólio

não se apresenta somente como mais uma crítica à ação segundo a

vontade, afinal, já não foram poucas as críticas feitas ao seu império

em inúmeras passagens e para o qual é dedicado todo o final da parte

II da Ética. Qual então a novidade argumentativa? Afirma-nos

Espinosa: é-nos tão desconhecida a estrutura do corpo, que ultrapassa

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de longe a sagacidade humana, e, desta feita, quase nada se sabe sobre

o quê esta estrutura é capaz de produzir. O desafio funda-se portanto

sobre a potência do corpo.

Uma outra pergunta poderia nos advir ainda aqui: já que se

trata da potência do corpo humano, por que motivo Espinosa não

introduziu este escólio após à demonstração da sua pequena física?

Ao que respondemos: na parte II encontramos a definição da coisa

singular, ponto que já destacamos a importância, porém, é somente na

parte III que Espinosa introduz duas noções capitais: as decausa

adequada/inadequadae deatividade/passividade. Ora, é nas relações

com o universo do qual o corpo é uma parte que ele constrói para si

um universo de imagens, e é nestas relações que ele participa também

de uma trama de causas e efeitos originadas neste corpo agente. É

nesta dinâmica que a potência do corpo aumenta ou diminui nas

muitíssimas relações que estabelece consigo mesmo e com a alteridade,

e, simultaneamente, aumentando ou diminuindo a potência da mente.

O corpo não é, portanto, um projeto mecânico para a manutenção de

sua proporção de movimento e repouso, tal qual o pêndulo composto,

pelo qual suas relações se estabeleceriam neste solo em que a

“quantidade é rainha”.As interações corporais aumentam ou diminuem

a potência, o reino da quantidade acaba finalmente por revelar uma

dinâmica qualitativa. Afinal, como entenderíamos o aumento ou

diminuição de sua aptidão corporal e mental como passagem para

uma maior ou menor perfeição e realidade?

Lembremo-nos que corpo e mente são uma só e mesma coisa,

ora sob o atributo pensamento, ora sob o atributo extensão, e se não

se reduzem ou se identificam um ao outro, são aindaativos juntosou

passivos juntos. Seja enquanto causa adequada, seja enquanto causa

inadequada, produzem conjuntamente um efeito que não devemos

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traduzir por uma açãoe uma idéia correspondente, mas umaação-

idéianascida e produzida na rica experiência vivida pela complexidade

relacional simultânea experenciada pelo corpo e pela mente. “Se a

mente não tivesse aptidão para excogitar, o corpo seria inerte”, mas

também “se o corpo fosse inerte, a mente seria simultaneamente inepta

para pensar”21. Além de denunciar o império da vontade, Espinosa

está, em primeiro lugar, defendendo a potência do corpo que “apenas

pelas leis da Natureza considerada como corporal” é capaz de

“construir edifícios, pinturas, edificar um templo”, o que surpreende a

sagacidade humana. Porém, e em segundo lugar, é destacando os

grandes feitos do corpo agente, somente enquanto considerada a sua

potência, que Espinosa parece mesmo repelir que se possa dar qualquer

superioridade de um âmbito racional despido de um corpo imerso no

mundo e em suas construções, em nós ou fora de nós.

Para explicitar o que pretendemos apontar, gostaríamos de

tomar de empréstimo as palavras de outro pensador contemporâneo,

e perguntar se não haveria, no escólio analisado, o repúdio ao “monstro

no qual se desenvolveu até o absurdo a faculdade que temos de extrair

pensamentos de nossos atos em vez de identificar nossos atos com

nossos pensamentos”22?

O corpo em Espinosa é portanto, juntamente com a mente,

parte que expressa a potência da Natureza inteira. Ora, não poderíamos

reconhecer que é pelas complexas relações com os outros homens,

com o mundo e as coisas que desvelamos na potência própria do corpo

a produção de feitos surpreendentes, não somente por sua beleza e

engenhosidade, mas porque tais feitos seriam a recriação das formas

mesmas de relação com este mesmo mundo, estes mesmos homens,

estas mesmas coisas? Não poderíamos reconhecer nisto que a expressão

é, inseparavelmente, mental e corpórea? Se assim fosse, Espinosa não

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devolveria somente a vida ao corpo, mas permitiria abrir para ele a

potência de recriação do próprio mundo a partir do qual ele mesmo se

constituiu.

Notas

1 Koyré, A.Estudos de História do Pensamento Científico, Rio de

Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 182. Os grifos são de Koyré

(1a. edição francesa pela Éditions Gallimard, 1973)

2 Christiane Vilain faz uma interessante análise sobre as divergentes

concepções da geometrização do movimento no século XVII, tendo

como ponto de partida a comparação das definições de espaço,

extensão e movimento em Galileu e Descartes. Vilain, C. “Espaces

et Mondes au XVIIe siècle” inépistémologiques – philosophie,

sciences, histoire, (Cosmologie et philosophie – hommage à

Jacques Merleau-Ponty), vol. I (1-2), janvier-juin 2000, Paris- São

Paulo: Université Paris 7/Denis Diderot - Discurso Editorial.

3 Blay, M. “Infini, géometrie et mouvement au XVIIe siècle”in

épistémologiques – philosophie, sciences, histoire. Cosmologie et

philosophie – hommage à Jacques Merleau-Ponty, vol. I (1-2),

janvier-juin 2000, Université Paris 7/Discurso Editorial, Paris/São

Paulo, p. 163

4 Cf. Ramond, C.Spinoza et la pensée moderne. Constitutions de

l’objectivité,Paris: Éditions Harmattan, 1998,p. 112 e segs.

5 Cf. Guénon, R.Le Règne de la Quantité et les signes des temps,

Paris: Gallimard, 1945

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6 Ramond, C.Spinoza et la pensée moderne, Paris: L’Harmattan,

1998, p. 113. Os grifos são de Charles Ramond.

7 Traité de l’homme, A.T. VI, p. 202. Para este trecho, utilizamos a

tradução feita por Jordino Marques, emDescartes e sua concepção

de homem, São Paulo: Ed. Loyola, 1993.

8 Jaquet, C.Le corps, Paris: PUF, 2001, p. 102.

9 EII P13, grifos nossos. Para todos os trechos citados daÉtica,a

tradução utilizada foi realizada pelo Grupo de Estudos Espinosanos,

ainda não publicada.

10 Guéroult, M.Spinoza. II-L’âme, Paris: Aubier, 1974, p. 171.

11 Guéroult, M.Spinoza. II-L’âme, Paris: Aubier, 1974, p. 175.

12 E2 P13 L7 e S.

13 Guéroult, M.Spinoza. II-L’âme, Paris: Aubier, 1974, p. 178.

14 Guéroult, M.Spinoza. II-L’âme, Paris: Aubier, 1974, p. 182

15 Martial, G.Spinoza. II-L’âme, Paris: Aubier, 1974, p. 185

16 Ramond, C.Spinoza et la pensée moderne, Paris: L’Harmattan,

1998, p. 123.

17 EII P7 S

18 Ep.81, escrita a Tschirnhaus em 05 de maio 1676, p. 409

19 Ep. 83, escrita a Tschirnhaus em 15 de julho de 1676. p. 412

20 EIII P2 S

21 EIII P2 S

22 A expressão é de Antonin Artaud em sua obraO teatro e seu

duplo.

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3. ____________ :Ética demonstrada em ordem geométrica,Partes

I a III, tradução em andamento realizada pelo Grupo de Estudos

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4. GUÉNON, R.: Le Règne de la Quantité et les signes des temps,

Paris: Gallimard, 1945

5. GUÉROULT, M.: Spinoza. II-L’âme, Paris: Aubier, 1974

6. JAQUET, C. :Le corps, Paris: PUF, 2001, p. 102.

7. KOYRÉ, A.: Du monde clos à l’univers infini, Paris: Gallimard,

1973.

8. _________ .:Estudos de História do Pensamento Científico, Rio

de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 182. Os grifos são de Koyré

(1a. edição francesa pela Éditions Gallimard, 1973)

9. MARQUES, J.:Descartes e sua concepção de homem, São Paulo:

Ed. Loyola, 1993.

10. RAMOND, C.: Spinoza et la pensée moderne. Constitutions de

l’objectivité, Paris: Éditions Harmattan, 1998.

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11. VILAIN, C.: “Espaces et Mondes au XVIIe siècle” in

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- Discurso Editorial.

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SILVANA DE SOUZA RAMOS

Descartes e a“reflexão espessa”:Uma leitura merleau-pontiana do

dualismo cartesiano

SILVANA DE SOUZA RAMOS*

* Doutoranda do Departamento de Filosofia da FFLCH – USP.

Resumo:O artigo investiga os impasses do dualismo cartesiano apartir das reflexões de Merleau-Ponty acerca do papel do corpo naexperiência.

Palavras-chave: Descartes, Merleau-Ponty, corpo, consciência,experiência.

Abstract: The article investigates the impasses of cartesian dualismregarding Merleau-Ponty’s reflections on the role of the body in theexperience.

Key-words: Descartes, Merleau-Ponty, body, conscience, experience.

* * *

Em sua biografia intelectual de Descartes, Stephen Gaukroger

narra ironicamente uma anedota que circulou a partir do século XVIII

a respeito do filósofo (Gaukroger, 1999, p. 21):

Dizem que, no fim da vida, ele se fazia acompanhar

em suas viagens por uma boneca mecânica em tamanho

natural, a qual... ele mesmo havia construído, “para mostrar

que os animais são apenas máquinas e não têm alma”.

Descartes e a boneca seriam inseparáveis, e há quem diga

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que dormia com ela a seu lado, guardada num baú. Um

dia, durante uma travessia do mar da Holanda no começo

da década de 1640, enquanto Descartes dormia, conta-se

que o capitão do navio, desconfiado do conteúdo do baú,

entrou furtivamente na cabine e o abriu. Horrorizado,

descobriu a monstruosidade mecânica, retirou-a do baú,

arrastou-a pelo convés e, finalmente, conseguiu atirá-la

na água. Não nos informam se ela terá lutado para se

defender.

A anedota testemunha uma das interpretações do dualismo

cartesiano, cujo expoente máximo é o materialismo dophilosophe

iluminista La Mettrie. Segundo o autor, Descartes admitia

secretamente o materialismo ao supor que a vida do corpo pode ser

explicada unicamente por mecanismos naturais, independentemente

da intervenção da alma. Tal interpretação visava estender a idéia

cartesiana de que os animais não passam de autômatos, afirmando

que ela poderia ser aplicada aos humanos de modo a produzir uma

visão materialista da mente. Ora, no contexto do século XVIII, quando

lutava-se contra o materialismo, Descartes era alvo de críticas

sarcásticas, como a que transparece na anedota acima. Resta saber se

uma leitura atenta às preocupações e aos impasses enfrentados pelo

filósofo permite sustentar uma interpretação diversa. Neste sentido,

longe de reduzir a visão de Descartes ao materialismo, cabe mostrar

que os estudos cartesianos sobre o corpo e a consciência colocam em

xeque e até mesmo ultrapassam o dualismo. Quer dizer, o filósofo não

argumenta no sentido de privilegiar o corpo reduzindo a mente a uma

espécie de produção da matéria extensa.Ao contrário, as reflexões de

Merleau-Ponty — um dos maiores interlocutores contemporâneos de

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Descartes — podem mostrar que para Descartes o corpo humano é

mais do que um objeto na medida em que sua unidade se dá através da

união com a alma, sem que esta encerre sua expressividade.

Ora, isto permite questionar uma outra leitura recorrente de

Descartes. Trata-se da interpretação segundo a qual a subjetividade

cartesiana estaria reduzida ao isolamento docogito, a tal ponto que

não se poderia explicar como a alma se comunica com o corpo. É

certo que Merleau-Ponty admitiu esta posição em vários momentos, e

dirigiu a Descartes severas críticas em relação à impossibilidade de se

pensar, a partir do dualismo substancial, uma subjetividade encarnada.

Entretanto, como pretendemos mostrar adiante, os impasses do

pensamento cartesiano não deixaram de inquietar Merleau-Ponty. Neste

sentido, o filósofo procurou apontar, no interior do próprio pensamento

cartesiano, uma solução para os problemas que Descartes vislumbrara

ao tentar explicar a experiência de sermos simultaneamente corpo e

pensamento.

* * *

Como mostra Marilena Chaui, nas investigações merleau-

pontianas d’O Visível e o invisível, o privilégio do corpo é uma ruptura

com a tradição metafísica que lhe dera a função de suporte da

consciência, o que permitia, ao mesmo tempo, denegá-lo e dar-lhe o

estatuto de objeto da ciência. Entretanto, “Merleau-Ponty redescobre

no empreendimento filosófico passado linhas de pensamento sobre o

corpo que não ‘cabiam’ no discurso solene da metafísica, levando uma

vida clandestina nos poros do discurso explícito”(Chaui, 2002, p. 141,

nota). Neste sentido, as notas de trabalho d’O visível e o invisível

mostram seu interesse pelo Descartes anterior e posterior aocogito,

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ou seja, pelo Descartes que se vê diante dos impasses dologosdo

mundo sensível que insistem em extrapolar o dualismo substancial

para dar cidadania filosófica à reflexão espessa que Merleau-Ponty

chamou decarne. Nestes termos, numa nota de trabalho d’O Visível e

o Invisível, o filósofo afirma (Merleau-Ponty, 2000, p. 214):

A idéia cartesiana do corpo humano enquanto

humanonão encerrado, aberto enquanto governado pelo

pensamento, é, talvez, a mais profunda idéia da união da

alma com o corpo. É a alma intervindo num corpo que

não pertence aoem si(se fosseem si, seria fechado como

um corpo animal), que só pode ser corpo e vivente —

humano concluindo-se numa “visão de si” que é o

pensamento.

Ora, pode soar um tanto estranho este elogio a Descartes no

terreno mesmo em que por tantas vezes Merleau-Ponty o acusou de

impossibilitar-nos de compreender o corpo e de conseqüentemente

explicar o fenômeno que nos insere no mundo e na experiência. Estaria

Merleau-Ponty renegando o que defendera naFenomenologia da

Percepção? Lá, o filósofo argumentava contra o mecanicismo: “Só

posso compreender a função do corpo vivo realizando-a eu mesmo e

na medida em que sou um corpo que se levanta em direção ao mundo”

(Merleau-Ponty, 1999, p. 114). Em outros termos, porque sou sujeito

encarnado, por meio do corpo me abro ao mundo, me reconheço nele

e o reconheço a partir de minha encarnação. Quer dizer, é a partir de

sua própria espessura que o sujeito adentra a espessura do mundo. O

sujeito não é, portanto, umcogitoque se distingue substancialmente

do corpo, e, enquanto sujeito cognoscente, sobrevoa o mundo. Ora,

mas o dualismo cartesiano não nos condena exatamente a este passeio

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aéreo do pensamento e, neste sentido, não é completamente alheio à

espessura corpórea do sujeito? Como explicar então o inesperado

elogio de Merleau-Ponty a Descartes n’O visível e o invisível?

Vejamos o problema mais de perto. É significativo que em “As

relações entre a alma e o corpo”, último capítulo de sua primeira obra,

A estrutura do comportamento, e no último ensaio publicado em vida,

O olho e o espírito, Merleau-Ponty marque incisivamente a ruptura

de sua filosofia com a epistemologia e a mecânica de Descartes. Ao

longo de suas demais obras, é constante a retomada crítica do que

denomina a “herança cartesiana”, ou o racionalismo intelectualista (o

predomínio da consciência sobre o corpo), cuja contrapartida é o

empirismo (o predomínio das coisas sobre a consciência), ambos

rejeitados por ele. Sendo assim, naFenomenologia da percepção,

onde se lê que somente por uma visão “pré-objetiva do mundo” pode-

se distinguir o ser no mundo “de toda modalidade dares extensa,

assim como de todacogitatio” (Idem, 2000, p. 77), o resultado da

investigação fenomenológica dá ao corpo o estatuto de veículo do ser

no mundo, o que abre uma perspectiva para a compreensão da

subjetividade para além do dualismo cartesiano. Posteriormente, n’O

visível e o invisível, a reflexão sobre o corpo se adensa de modo a

corroborar no esboço de uma ontologia: “É preciso pensar a carne,

não a partir das substâncias, corpo e espírito, mas (...) como elemento,

emblema concreto de uma maneira de ser em geral” (Merleau-Ponty,

2000, p. 62). Através destas indicações, notamos o alcance anti-

cartesiano da unificação merleau-pontiana do sujeito na experiência

corpórea.Areconciliação com Descartes parece impossível. Mas será

que a crítica ao dualismo esgota o pensamento de Descartes? Não

haveria umimpensadorecalcado em sua filosofia? Dito de outro modo,

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será que Merleau-Ponty condena Descartes pelas mazelas da

modernidade, reduzindo a potência de seu pensamento àquilo que a

tradição preservou dele, quer dizer, à sua “herança”?

Sabemos que em Descartes o trajeto que vai da dúvida à certeza

passa pela desconfiança em relação aos poderes do corpo e dos

sentidos. Sendo assim, somente o pensamento pode trazer luz à

experiência. Diante da confusão fornecida pelos sentidos e pela

imaginação, a razão encontra um trajeto próprio, dissipa os fantasmas,

os equívocos e a dúvida, e impõe sua verdade; noutros termos, ao

fechar os olhos do corpo, a razão encontra a verdade clara e distinta.

Quer dizer, os olhos que vêem são os olhos do entendimento, capazes

de nos dar a representação adequada dos objetos. Mas não é só isso.

A centralidade daintuição abre caminho para a noção de corpo-

máquina, objeto a ser manipulado e dominado pelo sujeito sob o

paradigma da física mecanicista. Esta parece ser então a decisão final

de Descartes a respeito do corpo e da subjetividade: o corpo-máquina

é a contrapartida de um sujeito que se define como consciência idêntica

a si mesma e coincidente consigo mesma (capaz de possuir o mundo

pela representação), e marcada definitivamente por sua diferença com

relação ao corpo e aos objetos do mundo. Duplo movimento, portanto:

coincidência do sujeito consigo mesmo e poder da representação para

dominar o mundo sensível sem ter de se misturar com ele.

Entretanto, a nota de trabalho citada acima parece indicar uma

abertura para a experiência no interior do pensamento de Descartes.

Parece indicar uma dimensão espessa na subjetividade cartesiana. Ora,

para compreendermos tal abertura é preciso rever a posição de

Merleau-Ponty frente a Descartes e lidar com os impasses que o autor

reconhece no pensamento cartesiano, especialmente de acordo com

as formulações d’O visível e o invisível. Para isso, devemos responder

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as seguintes questões: afinal, qual a diferença, no contexto cartesiano,

entre um corpo humano e um corpo animal? Essa questão se liga a

uma outra: por que os homens que vejo atrás da janela não são

marionetes movidas por molas, ou seja, não são autômatos desprovidos

de alma?

Comecemos pela primeira questão. O corpo animal, afirma

Merleau-Ponty acerca de Descartes, é um puroem si. Quer dizer, ele

participa apenas do mundo dos objetos, ou seja, da extensão. Enquanto

tal, o mecanicismo dá conta de decifrar os operadores de seu corpo.

Desprovido de linguagem e de pensamento, o corpo animal é fechado,

quer dizer, seus comportamentos são regidos pelo paradigma da

máquina: reduzido ao corpo, ele é uma figura do autômato, é como

um artefato, e assim se dispõe ao nosso conhecimento. Carente de

pensamento, o animal não pode reverter seu olhar em direção a uma

visão de si. Seu fechamento é sua incapacidade dever-se.

De fato, no universo cartesiano, o mecanicismo deve ser

interpretado como critério capaz de explicar com clareza e distinção

os fenômenos do mundo natural. Segundo Koyré, Descartes não

pergunta pelo modo de ação que a natureza segue, mas pelo que ela

deve seguir, já que o filósofo parte de leis determinadas segundo as

quais o substrato da realidade pode ser explicado pelo espaço e pelo

movimento. Quando Descartes investiga a constituição dos corpos,

animais ou humanos, não há diferença essencial entre as máquinas,

obra dos artesãos, e os corpos vivos. Isto significa que o filósofo

submete os conhecimentos fisiológicos ao esquema mecanicista, já

que a fisiologia é uma parte da física.

De acordo com a fisiologia cartesiana, a máquina corporal é

explicada pela mudança de figura no interior da matéria extensa. Por

esta razão, a noção de espíritos animais é privilegiada dentro da

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fisiologia mecanicista. Os espíritos animais eram elementos do vitalismo

anterior a Descartes. Introduzidos no mecanicismo cartesiano, eles

são esvaziados de seus atributos tradicionais, que os tornavam seres

misteriosos em meio a uma natureza indeterminada, e assumem, com

exceção do pensamento, todas as funções anteriormente imputadas às

partes da alma. É por isso que os espíritos animais atuam de forma

decisiva na explicação do movimento corporal.A física cartesiana não

admite o vazio. Esta regra, quando aplicada à fisiologia, faz com que

os possíveis espaços sejam por assim dizer ocupados pelos espíritos

animais, espécie de matéria sutil dotada de grande agilidade. Assim,

as funções do corpo podem ser compreendidas sem que se necessite

apelar para a alma. O corpo é um autômato que se movimenta por

conta própria, como um relógio ou um moinho (Descartes in Marques,

1993, p. 200):

que se movimenta pelo contrapeso de suas molas,

de modo que não é necessário, neste caso, conceber nesta

máquina uma alma vegetativa ou sensitiva, nem outro

princípio de movimento e de vida, senão seu sangue e

seus espíritos agitados pelo calor do fogo que queima

continuamente em seu coração e que não é de natureza

diversa dos outros fogos que estão nos corpos inanimados.

Entretanto, um corpo humano não pode ser apenas isso. Um

animal, sim.Aunidade da máquina corpórea animal reside nela própria,

daí que o modelo do autômato baste para explicá-la. Mas a unidade

do corpo humano se dá por sua integração à alma. Que isto quer

dizer?

Chegamos, assim, à segunda questão. O corpo humano não é

também uma máquina, espécie de marionete movida por molas? Não

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funciona como um autômato ou um animal na medida em que seus

movimentos não dependem dos comandos anímicos, e seguem somente

as leis da extensão? Sim, todavia, um corpo humanoviventesó existe

na medida em que está unido a uma alma. E é nisto que reside a sua

abertura, segundo Merleau-Ponty. É isto que o faz umpara si, uma

visão de si. Visão de si, quer dizer, consciência que é ao mesmo tempo

abertura? Estranho paradoxo.O voltar-se para sié experiência de

abertura para o mundo. O que isto significa? Certamente, essavisão

de si não pode ser reflexividade acabada, coincidência consigo,

fechamento sobre si. Então, essavisão de sinão pode ser ocogito,

não é nele portanto que encontraremos oimpensadode Descartes.

Retomemos o problema: o corpo é, pela união com a alma,visão de si

que se abre para o mundo. Toda a questão se resume pois em explicar

que relação há entre a alma e o corpo. Estamos diante de um velho

problema: o que acontece quando Descartes é obrigado a superar o

dualismo?

A questão célebre sobre a possibilidade da unidade e da

interação entre o corpo e a alma foi colocada a Descartes pela princesa

Elisabeth, numa carta de 16 de maio de 1643. A cisão do homem em

duas substâncias realmente distintas, a extensão e o pensamento,

parecia inviabilizar a interação entre o corpo e o espírito.

Conseqüentemente, Descartes encontrava dificuldades para explicar

a experiência imediata que nos dá a certeza de nossa unidade (o que é

um homem vivo?), o que implicava dificuldades para explicar

fenômenos ulteriores como os que se referem às paixões. Descartes é

constrangido pela pergunta: o que afinal é um corpo unido a uma

alma? Sabia que não bastava restringir a certeza da união à experiência

imediata da mistura de movimentos anímicos e corporais pois explicá-

la exigia superar o dualismo e adentrar o terreno confuso da

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imaginação, da percepção e das paixões. O fato é que Descartes

investigou o problema e as formulações presentes no tratado sobreAs

paixões da almadão o testemunho de seu esforço para responder às

inquietações da princesa. Nele, o filósofo define a paixão como uma

realidade psicofísica. Sendo assim, o conceito de paixão pode nos

ajudar a encontrar um caminho para explicar os impasses do dualismo.

Descartes não despreza, lamenta ou ri das paixões humanas;

ao contrário, quer compreendê-las. Vale dizer, o filósofo anseia

encontrar as “primeiras causas” das paixões e mostrar como o espírito

pode ter um “império absoluto” sobre elas. O estudo das paixões da

alma deve seguir um método rigoroso: Descartes as estuda como um

“físico”. NosPrincípios da filosofiao filósofo anuncia que a física é a

ciência da natureza inteira por determinar os verdadeiros princípios

das coisas materiais. Ela comporta três aspectos: “o exame geral da

maneira pela qual o universo é composto, o estudo particular da terra

e de todos os corpos, e, enfim, a conhecimento da natureza das plantas,

dos animais e dos homens” (Jaquet, 2004, p. 31). A física pode obter

um conhecimento das paixões na medida em que elas são paixões na

alma mas não provém dela: elas têm uma causa física que é o corpo.

Deixando de lado a discussão sobre as paixões, como a admiração,

por exemplo, que nascem na própria alma, podemos dizer que, no

sentido estrito do termo, a paixão tem por causa, em Descartes, uma

ação do corpo. “No sentido mais preciso e mais determinado, as paixões

da alma são causadas pelo movimento dos espíritos animais (...) que

se deslocam muito rapidamente e prosseguem mecanicamente sua

agitação em circuito fechado” (Idem, p. 35). Esta formulação aparece

mais claramente no artigo 27 d’As paixões da alma, quando Descartes

afirma que “podemos defini-las por percepções, ou sentimentos, ou

emoções da alma, que referimos particularmente a ela, e que são

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causadas, mantidas e fortalecidas por algum movimento dos espíritos”

(Descartes, 2005, p. 47).

Neste contexto, que poder a alma pode ter sobre as paixões?

Ora, a alma, porque dotada de livre arbítrio e de vontade infinita,

possui um poder absoluto e direto sobre suas ações, e um poder indireto

sobre suas paixões. Sendo assim, pela vontade e pelo hábito, ela pode

adquirir um poder de governar o corpo para dissipar ou controlar os

movimentos passionais que nascem no corpo pela agitação dos

espíritos. Noutros termos, o império sobre as paixões é um império

da alma sobre o corpo: por intermédio de seu posicionamento na

glândula pineal, a alma pode reverter os processos passionais. Sabemos

que o objetivo da medicina cartesiana é o de combater a doença de

modo a prolongar a vida. A realização deste empreendimento se

reduziria ao estudo mecânico do corpo se a união não implicasse o

poder das paixões para molestá-lo. A medicina cartesiana terá então

de irmanar-se à moral já que o bem estar do corpo não depende apenas

dele. Sendo assim, a insuficiência da explicação mecanicista exige

considerar o homem do ponto de vista da encarnação, o que leva

Descartes a misturar o homem às coisas, o que pode ser explicitado se

nos ativermos a uma passagem do artigo 52 d’As paixões da alma

(Descartes, 2005, p. 68):

(...) os objetos que movem os sentidos não excitam

em nós paixões diversas na medida de todas as diversidades

que existem neles, mas somente na medida das diversas

maneiras como eles podem prejudicar ou beneficiar, ou

em geral nos ser importantes.

Apenas sua união com uma alma confere ao corpo humano

uma verdadeira unidade, capaz de perpetuar-se no tempo, mesmo

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quando ele não conserva mais qualquer parte da matéria que o

constituía inicialmente. Paralelamente, julgar que é um bem a

conservação do corpo, ou o que contribui para ela, só tem sentido

para a alma. Portanto, é unicamente através de sua união com uma

alma que o corpo adquire uma integridade que é importante conservar,

e que aquilo que o ameaça constitui um mal. Neste sentido, para

associar um determinado movimento dos espíritos animais a uma

determinada paixão, é preciso partir da união entre a alma e o corpo,

do interesse que temos em conservá-lo como um todo e

conseqüentemente do fato de que o que é um bem para ele deve ser

também um bem para nós. Portanto, apenas a experiência, sensível e

anímica simultaneamente, impossível de se reconstruira priori, está

apta a superar a dualidade entre alma e corpo e a concretizar,para

nós, a união, a integridade e a felicidade de ambos.

Voltemos então ao problema davisão de sicolocado por

Merleau-Ponty. Vimos que o centro da crítica de Merleau-Ponty a

Descartes é a insuficiência da explicação dualista: ocogito não dá

conta de meu ser no mundo, já que ele é reflexão acabada (que garante

a objetividade do mundo através da representação) e isolamento do

sujeito nocogito. A união com o corpo complexifica a investigação:

insere o homem no mundo e o sujeita à promiscuidade com os objetos

exteriores. Daí a necessidade de se colocar, a partir do próprio

Descartes, a possibilidade de se compreender o sujeito através da

encarnação. Desse modo, contrariando diversas interpretações do

pensamento cartesiano, o pensamento évisão de si, mas não somente

no modo docogito ou da intuição; ele é também reflexividade

inacabada apenas compreensível pela interação com o corpo, já que a

encarnação do sujeito subverte o dualismo e faz davisão de siuma

abertura para o mundo e para a experiência.

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2002.

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EdUERJ: Contraponto, 1999.

Guéroult, M.Descartes selon l’Ordre des Raisons(2 vol.). Paris:

Aubier, 1953.

Jaquet, C. L’unité du corps e de l’esprit. Affects, actions et passions

chez Spinoza. Paris: PUF, 2004.

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Loyola, 1993.

Merleau-Ponty, M.Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins

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_______________.O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva,

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EVENTOS

XII Encontro Nacional de Filosofia da ANPOF

Realizado em Salvador, de 23 a 26 de outubro de 2006.

Tercer Coloquio Internacional Spinoza

Realizado no Complejo Vaquerías, Valle Hermoso, Córdoba,

Argentina, nos dias 2,3 e 4 deNovembro de 2006. Organizado pelo

Centro de Investigaciones de la Facultad de Filosofía y Humanidades de

la Universidad Nacional de Córdoba.

Chantal Jacquet

A professora da Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne)

apresentou, a convite do Grupo de Estudos Espinosanos e do GT

Pensamento do Século XVII, uma conferência:Bacon e o problema do

conhecimento, no dia 21 de novembro de 2006; e um ciclo de seminários:

As relações entre corpo e mente em Espinosa e suas implicações atuais,

entre 14 e 22 de novembro de 2006.

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• Os textos devem ser inéditos e ter de preferência até 40 laudas

(30 linhas de 70 toques).

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conter o nome do autor, a instituição a que está vinculado, o

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utilizando-se o recurso automático de criação de notas de rodapé

dos programas de edição.

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normas técnicasdaABNT; podendo-se incluir, a critério do autor,

as referênciasestabelecidasde textosclássicos,porexemplo,para

aÉticade Espinosa (EI, P2), ou para osNovos ensaiosde Leibniz

(II, xxi, §25).

• As referências bibliográficas devem ser listadas no final do texto,

em ordem alfabética e obedecendo a data de publicação.

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CCCCCONTENTSONTENTSONTENTSONTENTSONTENTSCCCCCONTENTSONTENTSONTENTSONTENTSONTENTS

1. THE FINAL METAPHYSICS OFLEIBNIZ AND THE QUESTION OF THE

IDEALISM

Michel Fichant 09

2. UNIVERSALITY AND SYMBOLIZATION IN LEIBNIZ

Franklin Leopoldo e Silva 41

3. DIVINE GOODNESS AND CONTINGENCY ONLEIBNIZ

Luís César Oliva 59

4. LEIBNIZ: EXPRESSION AND UNIVERSALCHARACTERISTIC

Tessa Moura Lacerda 87

5. SPINOZA’S PHILOSOPHY BEYOND THE BODY-MACHINE: THE PARALLELISM

IN QUESTION

Ericka Marie Itokazu 111

6. DESCARTES AND THE“ DENSE REFLECTION” : A MERLEAU-PONTYAN READING

OF CARTESIAN DUALISM.Silvana de Souza Ramos 139

7. NEWS 153

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