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69 6 O caráter da paisagem para Le Corbusier Na descrição de Jean-Claude Nicolas Forestier (1861–1930) sobre o Pavilhão de L’Espirit Nouveau 109 na Exposição de Artes Decorativas de 1925 pode-se confirmar o caráter da paisagem na obra de Le Corbusier: “Na frente da construção de caráter tão decidido do espírito novo alguns arbustos e, quando muito, algumas flores haviam sido de propósito, dispostos muito irregularmente sobre os gramados que a cercavam. Dentro do próprio edifício, uma peça, cuja face mais larga era completamente aberta sobre a fachada, estava reservada para um jardim dentro do apartamento. Os locais destinados à terra e às plantas eram largas jardineiras colocadas contra as paredes. Sem ordem aparente, lado a lado, viam-se ali plantadas árvores rústicas e algumas flores.” 110 Imagem 27: Pavilhão de L’Espirit Nouveau (1925) 109 Trata-se de uma célula construída do “edifício-vila”, que constituía um protesto contra o programa da Exposição e propunha soluções para a crise eminente das grandes cidades, através do diorama da cidade de três milhões de habitantes e o diorama do plano “Voisin” para o centro de Paris. 110 “Les jardins modernes de l’Exposition dês arts décoratifes”, Gazette illustrée dês amateurs de jardins, 1925 – Ver DANTEC, Jean-Pierre le. “O Eclipse Moderno do Jardim”, In Nos jardins de Burle Marx. Editora Perspectiva. São Paulo, 1996. p. 104

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O caráter da paisagem para Le Corbusier

Na descrição de Jean-Claude Nicolas Forestier (1861–1930) sobre o Pavilhão de

L’Espirit Nouveau109 na Exposição de Artes Decorativas de 1925 pode-se

confirmar o caráter da paisagem na obra de Le Corbusier:

“Na frente da construção de caráter tão decidido do espírito novo alguns

arbustos e, quando muito, algumas flores haviam sido de propósito,

dispostos muito irregularmente sobre os gramados que a cercavam. Dentro

do próprio edifício, uma peça, cuja face mais larga era completamente

aberta sobre a fachada, estava reservada para um jardim dentro do

apartamento. Os locais destinados à terra e às plantas eram largas

jardineiras colocadas contra as paredes. Sem ordem aparente, lado a lado,

viam-se ali plantadas árvores rústicas e algumas flores.”110

Imagem 27: Pavilhão de L’Espirit Nouveau (1925)

109 Trata-se de uma célula construída do “edifício-vila”, que constituía um protesto contra o programa da Exposição e propunha soluções para a crise eminente das grandes cidades, através do diorama da cidade de três milhões de habitantes e o diorama do plano “Voisin” para o centro de Paris. 110 “Les jardins modernes de l’Exposition dês arts décoratifes”, Gazette illustrée dês amateurs de jardins, 1925 – Ver DANTEC, Jean-Pierre le. “O Eclipse Moderno do Jardim”, In Nos jardins de

Burle Marx. Editora Perspectiva. São Paulo, 1996. p. 104

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Ainda sobre a Ville Savoye, em Poissy, onde o sítio é um relvado rodeado de

prados e de pomares que dominam o vale do Rio Sena, a casa é colocada sobre a

relva como um objeto, sem perturbar nada:

“A idéia era simples: eles tinham um parque magnífico formado por um

campo cercado de árvores; eles desejavam viver no campo; eles estariam

ligados a Paris por um caminho de 30 quilômetros de automóvel. Vai-se

portanto até a porta da casa de carro, e é o arco mínimo de curvatura do

automóvel que fornece a dimensão mesma da casa. O automóvel entra sob o

pilotis, contorna os serviços comuns, pára no meio, na porta do vestíbulo,

entra então na garagem ou segue seu caminho de saída: eis o fundamental.

Outra coisa: a vista é muito bonita, a grama é uma coisa bela, a floresta

também: se tocará neles o mínimo possível. A casa se colocará em meio à

grama como um objeto, sem molestar nada.”111

Imagem 28: Ville Savoye, em Poissy

111 “Leur idée était simple: ils avaient un magnifique parc formé de prés entourés de forêt; ils

désiraient vivre à la campagne; ils étaient reliés à Paris par 30 kilomètres d’auto. On va donc à la

porte de la maison en auto, et c’est l’arc de courbure minimum d’une auto qui fournit la

dimension même de la maison. L’auto s’engage sous le pilotis, tourne autour des services

communs, arrive au milieu, à la porte du vestibule, entre dans le garage ou poursuit sa route pour

le retour: telle est la donnée fondamentale. Autre chose: la vue est très belle, l’herbe est une belle chose, la fôret aussi: on y touchera le moins possible. La maison se posera au milieu de l’herbe

comme un objet, sans rien déranger”. LE CORBUSIER. Oeuvre Complète – 1929-34, p.24

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Ou ainda:

“O edifício não atrapalhará a natureza aberta colocando-se como um bloco

hermético; a natureza não se deterá à soleira, entrará na casa. O espaço é

contínuo, a forma deve se inserir, como espaço da civilização no espaço da

natureza.” 112

O projeto para a Ville Savoye apresenta uma tensão constante entre liberdade e

ordem: o espaço interno, através de suas formas expansivas e imaginativas –

acessos, planos divisórios, rampas - busca se liberar dos limites e se apossar do

exterior, mas é contido pelo volume exterior extremamente disciplinador. Este,

por sua vez, se caracteriza por ser uma entidade espacial autônoma composta por

uma sucessão de níveis paralelos ao solo, como uma “caixa no ar” levemente

apoiada no campo verde, perfeito e neutro que a rodeia - um jardim que representa

a própria negação de um jardim. Esta postura reforça a presença do ato cultural,

humano, racional condensado no objeto construído, realçando que este tem um

funcionamento próprio e intrínseco – a máquina de habitar - perante a natureza

virgem e intocada.

Esta visão de Le Corbusier é ao mesmo tempo tão objetiva e, mais uma vez, tão

contraditória: a arquitetura não quer perturbar nada, mas, através de sua forma

fundada na lógica cartesiana e no cálculo racional, pretende qualificar todo o

ambiente circundante organizando o mundo de uma maneira exata, como se o

apuro arquitetônico qualificasse a beleza romântica da natureza, propondo a

construção de um “lugar” na fluidez da paisagem. Percebe-se um esforço idealista

de apaziguamento de forças contrárias: a rigidez da paisagem construída “versus”

a fluidez do espaço natural. O contraste entre a relva não aparada (o elemento

natural) e o volume geométrico de precisão mecânica (o elemento abstrato) reflete

a intenção de criar um fragmento de uma certa ordem “criada”, a exatidão do

trabalho do homem numa sensação de ordem harmoniosa da vida, baseada numa

idealidade platônica. Neste sentido, este movimento apaziguador que tem como

112 Ver ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. Do Iluminismo aos movimentos Contemporâneos . São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 266

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objetivo criar uma “descontinuidade” temporal, segundo Collin Rowe, se

aproxima da relação entre as villas de Palladio - especialmente a Villa Rotonda,

no arquétipo platônico da villa ideal – e o parque inglês pitoresco. No entanto,

enquanto para Palladio aquela paisagem mais agreste refletia a boa vida, um lugar

agradável onde se pudesse ser feliz (numa analogia ao paraíso), para Le Corbusier

Poissy seria o reflexo da possibilidade de uma vida eficiente, nutrida, no entanto,

de certa nostalgia do passado e um pesar despertado pela lembrança da natureza

intocada.113

Imagem 29: Ville Savoye, em Poissy

Observa-se ainda, nas representações da Ville Savoye e do Pavilhão de l’Espirit

Nouveau, a presença de uma árvore isolada, como se Le Corbusier quisesse trazer

simbolicamente, pela imagem do elemento-árvore, a presença da natureza, do

espaço aberto e desimpedido, do ar livre. No Pavilhão de L’Espirit Nouveau, a

arquitetura é desenvolvida entorno de uma árvore pré-existente: a vegetação fura a

arquitetura, entrelaça-se a ela. É a expressão na concepção arquitetônica da

natureza dentro do mundo moderno e industrializado; a árvore habita a casa, em

comunhão com o ser humano. É a expressão da possibilidade de uma transposição

entre interior-exterior, entre espaço aberto e espaço fechado, entre espaço natural

e espaço humanizado. Por outro lado, o plano geométrico – ou o espaço

construído - viola o espaço natural, expressando o sentimento de posse da

natureza: é a civilização que controla o fluxo orgânico da vida.

113 Sobre este assunto, ver ROWE, Collin. The mathematics of the ideal villa and other essays. Cambridge: MIT Press, 1982.

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Desta maneira, entende-se que frente à espacialidade mais abstrata de Le

Corbusier - sua arquitetura produz um objeto plástico auto-suficiente, suspenso

sobre si mesmo114 - a arquitetura moderna brasileira mostrava uma empatia com a

paisagem, um caráter sensível mais acentuado que dava uma especificidade ao

modernismo brasileiro. Segundo José Lins do Rego: “o retorno à natureza e o

valor que vai ser dado à paisagem como elemento substancial preservaram

nossos arquitetos do que de formal podíamos encontrar em Le Corbusier.” 115 No

Brasil, frente à grandiosidade e variedade da natureza tropical, os prismas puros,

como a Villa Savoye de Le Corbusier, teriam a sua evidência na paisagem

atenuada: há elementos mais movimentados e grandiosos que dissolveriam o

espaço abstrato, ou ao menos, alterariam o foco da visão. Em nossa paisagem, o

objeto arquitetônico não se submete à serenidade da natureza, mas é enfrentado

por ela. Segundo João Masao Kamita, “os arquitetos brasileiros sentem a

impropriedade deste vocabulário (os prismas puros) e começam a arriscar

formas cada vez mais exuberantes e envolventes para fazer frente à

grandiosidade da paisagem.”116

O estilo internacional adquire peculiaridades locais através de um conjunto de

valores culturais que convergiam para um temperamento brasileiro: a arquitetura

assume um caráter leve e extrovertido117, onde a composição trabalha

jocosamente com a curva e com a reta (contribuição de Oscar Niemeyer), com o

interior e com o exterior, sempre de maneira expansiva, atualizando elementos

vernaculares (contribuição de Lúcio Costa). À composição clássica corbusiana são

acrescidas características próprias, como o emprego das curvas, dos elementos de

proteção solar e a escolha de materiais potencialmente expressivos. Além disso,

114 Essa concepção deriva do cubismo, do espaço contínuo, plástico, que expõe um procedimento e que renova a experiência da realidade. 115 José Lins do rego. “L’Homme et lê paysage”. L’Architecture d’aujourd’hui, numero especial sobre o Brasil, agosto de 1952, citado por Michel Racine, em “Roberto Burle Marx, o elo que faltava”, In: Nos jardins de Burle Marx. Editora Perspectiva. São Paulo, 1996. p. 115 116 KAMITA, João Masao. Experiência moderna e ética construtiva: a arquitetura de Affonso

Eduardo Reidy. Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica - PUC/RJ, Rio de Janeiro, 1994.p. 92 117“Exuberância e extroversão, traços já convencionados do temperamento e da paisagem

brasileiras, de uma natureza risonha e franca, (...) em função de um clima tropical.” sobre o Pavilhão Brasileiro para a Exposição Universal de Nova York. Ver COMAS, Carlos Eduardo. Arquitetura Moderna, estilo Corbu, Pavilhão Brasileiro. AU nº 26, 1989. p. 98

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esta arquitetura se conformaria como um volume aberto, com uma disposição

expansiva de elementos compositivos, gerando um espaço contínuo que realiza

uma mediação flexível entre o ambiente interior moderno e o exterior composto

por uma paisagem dilatada, livre e ininterrupta, porém carregada de significado,

uma vez que evoca a assimilação de um trópico risonho e franco, onde se pode

andar despreocupado, pés descalços, peito aberto, braços nus.118

Da prevalescência dessas características nas terras brasileiras, se apercebera

também Lévi-Strauss, que no período de 1935 a 1939 realizou trabalhos sobre os

povos indígenas do Brasil e em 1955 escreve “Tristes Trópicos”:

“(...) pisando os meandros ondulados de um calçamento ondulado preto e

branco percebo, nessas ruas estreitas e sombreadas uma atmosfera

particular; a passagem é menos marcada que na Europa entre as casas e a

caçada (...); quase não se percebe se se está dentro ou fora. Na verdade, a

rua não é somente um lugar onde se passa, é um lugar onde se fica.”119

Para ilustrar a experimentação na criação de um espaço fluido que dissolve as

diferenciações entre interior e exterior, é importante citar o Pavilhão Brasileiro da

Feira Mundial de Nova York de 1939, projeto de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer.

Segundo Comas, é “o Pavilhão (…) o primeiro a materializar a leveza que se

tornaria marca registrada dessa arquitetura”120

Caracterizado pela exuberância e

extroversão, seus volumes são permeáveis, porosos, favorecendo uma forma

aberta que dilata as possibilidades de “promenades arquitecturales”, mesclando

interior e exterior, e ao mesmo tempo refletindo a personalidade aberta

característica dos climas tropicais. 121

118 Ver COMAS, Carlos Eduardo. “Uma certa arquitetura moderna brasileira: experiência e re-conhecer.” Arquitetura Revista 5. Fau / UFRJ V5 1987.p. 27 119 LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos. Lisboa. Edições 70, 1955. p. 84 120 Ver COMAS, Carlos Eduardo. Arquitetura Moderna, estilo Corbu, Pavilhão Brasileiro. AU nº 26, 1989. p. 92 121 Já a partir de 1936, esta arquitetura própria se esboçava com o projeto para o Ministério de Educação e Saúde, seguido pelo Hotel de Ouro Preto (1940), pelo conjunto da Pampulha (1942), pelo Hotel de Friburgo (1944), pelos edifícios do parque Guinle (1948) e vários outros.

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Em função destas características, se abre a possibilidade para a criação do jardim

como a arquitetura do espaço livre122, onde Burle Marx terá papel primordial. O

jardim estabelece com a arquitetura a possibilidade de um diálogo constante: ao

mesmo tempo em que a arquitetura pode se expandir para o exterior através da

ocupação dos espaços do jardim que assumem o caráter de ambientes ao ao livre,

o jardim pode invadir a arquitetura dando à ela um suporte na natureza.

122 Ver ALVAREZ, Alvarez Darío. El jardín en la arquitectura del siglo XX. Naturaleza artificial

en la cultura moderna. Barcelona, Reverté, 2007.

Imagem 30: Pavilhão Brasileiro da Feira Mundial de Nova York de 1939

Imagem 31: Pavilhão Brasileiro da Feira Mundial de Nova York de 1939 – Planta baixa

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No projeto para o Ministério de Educação e Saúde (1936), Burle Marx interpreta a

paisagem do entorno delimitando-a num espaço definido dentro da arquitetura - o

terraço jardim -, através da adoção de uma linguagem abstrata. Esta mesma

paisagem suspensa e emoldurada transborda os limites físicos do terraço e atinge

uma área infinitamente maior, ou seja, todo o terreno, gerando uma nova relação

entre o edifício e a cidade.

Imagem 32: Ministério de Educação e Saúde (1936)

Segundo Bruno Zevi, as formas orgânicas livres do terraço jardim do Ministério

“abrandam a geometria dos traçados reguladores e a dureza dos perfis

arquitetônicos.” 123

No entanto, em uma análise mais profunda, podemos perceber

que as relações entre a estrutura cartesiana da arquitetura e a liberdade da forma

sinuosa da vegetação afirmam uma síntese formal poderosa: a obra mantém uma

tensão no sentido em que há uma força expressiva para manter a integridade da

forma sob operações espaciais que expandem o objeto organicamente para o

ambiente através de seus arranjos amebóides que funcionam como vetores de

expansão espacial. Assim, o jardim praticamente redefine a arquitetura segundo

uma intenção artística, realizando uma complementação orgânica entre os

espaços, as formas e as cores. Além disso, a geometria fluida da obra de Burle

Marx incorpora o conceito de variabilidade - de cores, formas e texturas - a uma 123 Ver ZEVI, Bruno. “O arquiteto no jardim”, In Burle Marx. Homenagem à natureza, Petrópolis, Vozes, 1979. p. 41-3

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arquitetura racional que aparentemente é inalterável à passagem do tempo.

Imagem 33: Projeto para o terraço jardim do Ministério de Educação e Saúde (1936)

Ao nível do solo, o edifício racional pousa na quadra sem obstrução das visadas e

os núcleos de vegetação controlada, humanizada, encaminham o transeunte e

indicam silenciosamente onde ocorre a entrada ao edifício. Segundo Carlos

Eduardo Comas, a vegetação gera no pedestre a anulação da primazia de uma

sobre outra via (da Avenida Graça Aranha, Rua Pedro Lessa ou Rua Araújo Porto

Alegre), enfatizando uma rota preferencial oblíqua e o impacto das visões

diagonais de esquina, capazes de desvendar o prédio como um todo124. Pela

conformação dos volumes, não há prevalescência de nenhuma das direções, sendo

os pontos de vista em diagonal os mais favoráveis à compreensão da arquitetura.

E o jardim trabalha a favor desta renúncia do princípio da frontalidade. Trata-se

da conformação de um espaço abstrato moderno - contínuo visualmente - que

estabelece e reforça as já citadas relações entre arquitetura e paisagismo, que ao se

incorporarem virtualmente, possibilitam uma leitura única, sem hierarquias.

124 Ver COMAS, Carlos Eduardo. “Protótipo e monumento, um ministério, o ministério.” In: Revista Projeto, Rio de Janeiro, n.102, p.148, agosto, 1987.p.140

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Imagem 34: Ministério de Educação e Saúde

Na densidade construída da área do Castelo onde se situa o edifício se abre uma

praça: ocorre a possibilidade expansiva do edifício que gera um conjunto de

relações espaciais e de significados, criando uma relação ativa com o meio

construído. O Ministério celebra a sua imponência, a presença e o destaque na

paisagem, se inserindo singularmente na malha urbana - planejada por Alfred

Agache - dialogando e se abrindo para o entorno. A quadra torna-se então a

grande esplanada, a praça edificada, uma solene área aberta e articulada. A

elevação do edifício, possibilitada pelos pilotis, gera um espaço poroso, expansivo

e dinâmico – no sentido em que adquire a escala da cidade - e ao mesmo tempo

coletivo, num processo de reversão do espaço aberto com domínio privado em

espaço público. Ocorre assim, a partir da definição do térreo livre, uma

democratização desta área e conseqüente redefinição da dimensão pública,

enfatizando a restituição da permeabilidade ao ambiente urbano, declarando

acessibilidade do público e sensação de acolhimento. Burle Marx projetou ainda

um jardim público entre as Ruas Santa Luzia e Pedro Lessa em 1944, que, no

entanto, não chegou a ser implantado125. Caso fosse realizado, potencializaria

ainda mais a percepção do conjunto.

125 Ver DOURADO, Guilherme Mazza. Modernidade Verde: Jardins de Burle Marx. Senac, SP. 2009. p. 241

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Imagem 35: Jardim Público não implantado entre as Ruas Santa Luzia e Pedro Lessa (1944)

É importante frisar que em 1936, quando regressou ao Brasil pela segunda vez (a

primeira havia sido em 1929), Le Corbusier traçou o esboço para o Edifício do

Ministério da Educação e Saúde, que, mesmo sem ter sido desenvolvido devido à

mudança de terreno, teve uma contribuição direta para a equipe de arquitetos que

levou a cabo o projeto. Já em 1929 havia plantado sua semente em solo brasileiro

e afirmou:

"Tentei a conquista da América movido por uma razão implacável e pela

grande ternura que voto às coisas e às pessoas. Compreendi, entre esses

irmãos apartados de nós pelo silêncio de um oceano, os escrúpulos, as

dúvidas, as hesitações e os motivos que explicam a condição atual de suas

manifestações. Confiei no amanhã. Sob uma luz como esta, a arquitetura há

de nascer.”126

Por ocasião de sua primeira visita ao Brasil em 1929, Le Corbusier formaliza uma

nova relação entre arquitetura e natureza em sua obra a partir do plano urbanístico

126 LE CORBUSIER. Precisões: sobre um estado presente da arquitetura e do urbanismo. Cosac & Naify, 2004.

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proposto para a cidade do Rio de Janeiro. Afinal, compreende que “aqui,

urbanizar é o mesmo que pretender encher o tonel das Danaides! Tudo seria

absorvido por esta paisagem violenta e sublime.”127

Nos projetos urbanísticos de

Le Corbusier anteriores à sua primeira visita à América do Sul, a noção de

totalidade era obtida através de um esquema pragmático racionalista ortogonal,

um arranjo compositivo de elementos seriais implantado numa natureza idílica. A

partir de 1929, fundamentado na possibilidade técnica oferecida pelo concreto

armado, passa a explorar a forma curva como princípio compositivo, buscando

soluções econômicas para a circulação nas grandes cidades de topografia

acentuada e consequentemente criando majestosas sínteses “arquitetura-natureza”.

No projeto urbanístico para o Rio de Janeiro, Le Corbusier organiza o espaço

urbano a partir do desenho de uma construção contínua que suporta uma via

rodoviária em toda a sua extensão, ao mesmo tempo em que cria terrenos

artificiais que devem conter habitações. As curvas do grande edifício-viaduto

(l'imomeuble-autorrute) acompanham a topografia manifestando uma adesão ao

sentimento da paisagem carioca. Ocorre uma potencialização da arquitetura em

função da situação natural: a racionalidade construída não distancia o homem da

paisagem, mas assume uma característica natural, se relacionando com as curvas

das montanhas e potencializando, por sua vez, a interface homem-natureza.

Segundo Sophia Telles, “a relação que Corbusier estabelece entre o objeto

construído e a paisagem natural (...) reduz todos os elementos do projeto a uma

visualidade que organiza o fundo da paisagem e o objeto construído como um

plano articulado. Le Corbusier rende-se à natureza tropical e aos amplos espaços

desse novo continente.” 128 Há segundo a autora, uma harmonização do contexto:

uma vontade de estender ao espaço circundante o sentido de unidade harmônica

da obra. Se institui a partir daí uma nova harmonia, um equilíbrio dinâmico que

mantem uma tensão controlada na conformação plástica final.

127 LE CORBUSIER. Precisões: sobre um estado presente da arquitetura e do urbanismo. Cosac & Naify, 2004. 128 TELLES, Sophia. Arquitetura Moderna no Brasil: o desenho da superfície. Dissertação de Mestrado. São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas USP, 1998.p. 53

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Imagem 36: Projeto urbanístico de Le Corbusier para o Rio de Janeiro (1929)

Os preceitos corbuserianos apresentados em sua viagem à América do Sul em

1929 se tornaram influência majoritária na composição da arquitetura moderna

brasileira e na paisagem construída por ela. Se abre uma nova perspectiva para os

arquitetos brasileiros a partir da possibilidade de adoção da forma livre e contínua

como mediadora entre forma construída e lugar, possibilitando uma nova

compreensão do espaço como totalidade continua. A nova solução coloca em

xeque a vigência dos estilos puristas, fundando a noção de forma livre que seria

incorporado como traço nacional pela geração dos arquitetos cariocas. O próprio

Lúcio Costa afirma que “semelhante empreendimento digno dos tempos novos é

capaz de valorizar a excepcional paisagem carioca por efeito de contraste lírico

da urbanização monumental, arquitetonicamente ordenada, com a liberdade

telúrica e agreste da natureza tropical.” 129Além disso, trata-se de um gesto que

assimila a geografia em sua totalidade, numa operação de projetar o solo como

uma superfície. A arquitetura adquiriu uma nova forma de se situar na paisagem,

envolvendo um conceito de obra de arte total. Nesse sentido, articula-se

amplamente com a promessa de um projeto civilizatório moderno voltado para a

ideia de construção nacional.

No texto Precisões: sobre um estado presente da arquitetura e urbanismo, Le

Corbusier relata suas impressões sobre o território americano, definindo a “Lei do

129 COSTA, Lucio “Muita construção, alguma arquitetura e um milagre 1951 Depoimento de um Arquiteto Carioca” In: Registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995. p. 171.

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meandro”:

“Os cursos desses rios, nessas terras ilimitadas e planas, desenvolvem

pacificamente a implacável consequência da física; é a lei da linha de

maior inclinação, e depois, se tudo de tronou plano, é o teorema

emocionante da sinuosidade. Eu afirmo que é um teorema, pois a

sinuosidade resultante da erosão é um fenômeno com desenvolvimento

cíclico, totalmente semelhante àquele do pensamento criador, da invenção

humana. Ao desenhar dos ares o esboço da sinuosidade, expliquei, a mim

mesmo, as dificuldades encontradas nas coisas humanas (...). Para uso

próprio, batizei esse fenômeno de lei do meandro.”130

Le Corbusier adota o percurso sinuoso de um rio como metáfora para justificar a

forma livre como configuração mediadora entre arquitetura e paisagem. E o Plano

Urbanístico para a Cidade do Rio de Janeiro é uma conseqüência desta

compreensão; propõe um enfrentamento e ao mesmo tempo uma concordância da

arquitetura à geografia da cidade. Trata-se de um gesto de certa maneira

prepotente de ocupação e conquista do território ao abraçar a paisagem com a sua

auto-estrada habitada, suspensa por cima da cidade, como uma resposta à

paisagem natural num esforço de estruturá-la. Não é um gesto arbitrário na

paisagem, mas a formulação de um manifesto arquitetural de como enfrentar essa

realidade natural-geográfica.

“Esse discurso era um poema de geometria humana e de imensa fantasia

natural. O olho enxergava alguma coisa, duas coisas: a natureza e o

produto do trabalho do homem.” 131

Essa postura será retomada por Affonso Eduardo Reidy em 1947 no projeto para o

Conjunto Residencial Prefeito Mendes de Moraes, o Pedregulho132, onde, segundo

130 Citado por COHEN, Jean-Louis. A sombra do Pássaro Planador. Ver: TSIOMIS, Yannis (org.). Le Corbusier - Rio de Janeiro: 1929, 1936. Paris. Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1998. p. 62 131 LE CORBUSIER. Precisões: sobre um estado presente da arquitetura e do urbanismo. Cosac & Naify, 2004. p. 238 132 Empreendimento público para habitação social contando com equipamentos e serviços como lavanderia, mercado, posto de saúde, escola e clube.

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o próprio arquiteto, “a atividade de habitar não se resumia à vida de dentro de

casa, mas incorporava atividades externas”133, ou seja, englobava o que estivesse

além da arquitetura, tendo o sítio como elemento central do raciocínio projetual,

assumindo importância para a sensação arquitetural. Neste caso, o projeto se

impõe sobre o entorno caótico, como uma nova referência sobre a topografia e

expande para todo o ambiente circundante sua clareza e ordenação. O espaço flui,

contornando o edifício, penetrando e saindo dos ambientes internos e expandindo-

se para a s áreas livres. Daí, “a correspondência entre a obra arquitetural e o

ambiente físico que o envolve é sempre de maior importância.”134 Urbanismo,

arquitetura, paisagismo e arte (materializada pelos murais), em conjunto,

constituíam um sentido de vida urbana, onde cada uma das partes possui seu papel

ativo como potencializador na coesão espacial do conjunto.

Imagem 37: Conjunto Residencial do Pedregulho, Bloco A (1952)

Também em 1952 no projeto para o Conjunto Residencial Marquês de São

Vicente, Reidy adota a mesma postura. Sobre este projeto, Richard Serra externou

sua opinião por ocasião de uma palestra no Rio de Janeiro em 1997:

“(...) um dos edifícios que mais gosto (no Rio de Janeiro) é do arquiteto

Reidy. Gosto do edifício porque reflete a sinuosidade da estrutura

curvilínea do Rio de Janeiro. Não se pode olhar para aquele edifício sem

estabelecer uma relação imediata com a topologia da paisagem. Parece que

133 BONDUKI, Nabil. Affonso Eduardo Reidy. Editorial Blau / Instituto Bardi, Porto / São Paulo, 2000. p. 83 134 BONDUKI, Nabil. Affonso Eduardo Reidy. Editorial Blau / Instituto Bardi, Porto / São Paulo, 2000. p. 164

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cresceu da natureza. A imposição de uma estrutura de grade nesta cidade

parece totalmente ilógica; todo seu entorno parece sinuoso. Aqui, o céu é

infinito. E pensaria que o tipo de edifício e o tipo de arte que nasceriam

desta cultura não devem ser propostos com base em Piet Mondrian e na

grade cubista. Este lugar me parece ser o mais improvável para a

imposição da grade. A invenção aqui deveria ser baseada na premissa de

que a grade é passé.”135

Mais uma vez, mesmo que muitos anos depois, para um estrangeiro a paisagem

carioca revelava uma amplidão e uma sinuosidade particulares. Através desta

obra, Serra defende a superioridade da curva sobre a reta e a relação entre a forma

e a paisagem onde está inserida. Neste caso específico, a curva seria mais lógica e

racional do que a reta, desde que devidamente justificada a sua aplicação.

Também Lévi-Strauss em “Tristes Trópicos” se impressiona com o

estabelecimento direto do contato com a paisagem do Novo Mundo com as

“florestas grandiosas, angras virgens e rochas escarpadas”, descobertas em sua

viagem:

“Parece-me que a paisagem do Rio (de Janeiro) não está na escala das

suas próprias dimensões. O Pão de Açúcar, o Corcovado, todos esses

pontos estão louvados parecem ao viajante que penetra na baía como tocos

de dentes perdidos nos quatro cantos de uma boca banguela. (movimentos,

formas, luzes...) Tudo isso vive duma existência única e global. O que por

todos os lados me rodeia e me esmaga, não é a diversidade inesgotável das

coisas e dos seres, mas uma só e formidável entidade: o Novo Mundo.”136

Le Corbusier - assim como Richard Serra e Lévi-Strauss - compreende a força

impositiva que a paisagem do Rio de Janeiro possui, e se fascina com a relação

constante entre cidade (composta pela geometria dos edifícios) e floresta

135 SERRA, Richard. Rio Rounds. Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, 1999. Palestra de Richard Serra. Citado por CONDURU, Roberto. Ilhas da razão. Arquitetura racionalista do Rio

de Janeiro no século XX. Tese de doutorado. Departamento de História. Universidade Federal Fluminense. Niterói: UFF, 2000. 136 Ver LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos. Lisboa. Edições 70, 1955. p. 78-79

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(composta pela irregularidade da paisagem). Observa os perfis topográficos, onde

os promontórios são “uma espécie de chama verde desordenada, que paira sobre

a cidade, sempre, em todos os lugares, e que muda de aspecto a cada momento”

137 e as baías que “ sucedem-se ao longe, em forma de arco, cingidas por alvos

cais ou por praias rosadas; onde o oceano bate diretamente e as vagas

arrebentam em ondas brancas; onde o golfo penetra nas terras.”138

“(...) tudo é festa e espetáculo, quando tudo é alegria em nós, tudo se

contrai pra reter aquela ideia nascente, tudo conduz ao júbilo da

criação.”139

Le Corbusier volta seu olhar para a natureza, abrindo novas possibilidades no

Brasil de percepção da paisagem e da cultura, como um europeu disposto a

reconquistar e re-civilizar aquela terra. Seu olhar distanciado possibilita um

descompromisso na descoberta da poética da natureza sul-americana, o que torna

o Brasil território apto a receber as diversas formas de “transplante cultural”. É o

olhar distanciado, a partir do avião (o olhar articulado às possibilidades de

locomoção como experimentação da percepção espacial através do sobrevoo) que

possibilita certas descobertas que o olhar próximo não atinge. Através dele, ocorre

a descoberta de um espaço geográfico natural que o surpreende pela

magnificência do território, e pelas condições praticamente virgens. É a

possibilidade da analogia da Terra ao ovo poché, das florestas exuberantes ao

bolor da Terra. Isto possibilita enxergar que “é o conceito da vida o que se tem de

mudar, é a noção de felicidade o que se deve resgatar” 140

A natureza, para Le Corbusier, depois de sua visita ao Rio de Janeiro, assume um

papel mais amplo de uma especificidade enquanto paisagem. Ou mais ainda, a

dimensão natural passa a incorporar-se ao processo de concepção da forma urbana

enquanto território: e isto requer uma postura diferente do homem perante a 137 LE CORBUSIER. Precisões: sobre um estado presente da arquitetura e do urbanismo. Cosac & Naify, 2004. p. 228 138 LE CORBUSIER. Precisões: sobre um estado presente da arquitetura e do urbanismo. Cosac & Naify, 2004. p. 227 139 LE CORBUSIER. Precisões: sobre um estado presente da arquitetura e do urbanismo. Cosac & Naify, 2004. p. 229 140 LE CORBUSIER. “ Prólogo Americano” In: Precisões: sobre um estado presente da

arquitetura e do urbanismo. Cosac & Naify, 2004. p. 29

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paisagem. Esta passa de plano neutro de fruição contemplativa para objeto de

ação projetual. Lança um fundamento para a afirmação da unidade do sistema

arquitetônico à escala da cidade e da paisagem.

“Então, no Rio de Janeiro, cidade que parece desafiar radiosamente toda

colaboração humana com a sua beleza universalmente proclamada, somos

possuídos por um desejo violento, louco talvez, de tentar, aqui também, uma

aventura humana – o desejo de jogar uma partida a dois, uma partida

‘afirmação-homem’ contra ou com ‘presença-natureza’. ”141

Enfim, os arquitetos cariocas, baseados nesta experiência do olhar estrangeiro

sobre a paisagem nativa, também vão começar a explorar as potencialidades

formais da linguagem corbusiana através de uma plástica expansiva e dinâmica,

incorporando elementos do entorno e gerando uma nova força expressiva

possibilitando a construção de uma nova paisagem composta por construção e

espaço circundante.

Seguindo este mesmo raciocínio, a maneira como Burle Marx desenvolve sua

reflexão sobre o desenho do território, delimitando-o e proporcionando-lhe novo

caráter plástico, pode ser entendida como uma re-interpretação e uma re-

elaboração do diálogo racional homem/natureza instaurado pelo olhar de Le

Corbusier142. Burle Marx estava já no Rio de Janeiro num momento de debates

culturais e de transformações políticas importantes que subsidiavam um momento

de tomada de consciência da modernidade143 aliada a uma certa brasilidade144; o

Brasil era composto por um ambiente marcado pela contradição e a arquitetura

141 Trecho de conferência proferida por Le Corbusier no Rio de Janeiro em dezembro de 1929. LE CORBUSIER. “Corolário Brasileiro” In: Le Corbusier e o Brasil. p.89 142 A cultura francesa exercia uma forte influência sobre as elites das jovens nações. 143 “Quando jovem, vivia na mesma rua que Lúcio Costa. Ele me conheceu quando eu tinha 14

ou 15 anos e esse fato contribuiu para minha carreira. Ele viu o jardim que eu realizava em

minha própria casa e, como naquele tempo construía a residência de uma família Schwartz,

convidou-me a fazer também aquele jardim” MARX, Roberto Burle. Depoimento. XAVIER, Alberto (org). Arquitetura moderna brasileira: depoimento de uma geração. São Paulo, ABEA / FVA / Pini, projeto Hunter Douglas, 1987, p. 300-304. Burle Marx conheceu Lúcio Costa no início da década de 20, logo, supõe-se que ele também deva ter lido Le Corbusier. 144 Nesse momento, o país tomava consciência de sua cultura via Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda.

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moderna desponta sob a forma de um milagre145, de acordo com Lúcio Costa,

fazendo frutificar em solo brasileiro o que Le Corbusier havia plantado.

Às peculiaridades locais que são acrescidas ao estilo internacional da arquitetura

se soma a expansão das possibilidades de incorporar o projeto do edifício ao

projeto da paisagem, como que compostos por um único desenho, partes

integrantes do mesmo raciocínio, de um mesmo projeto. O edifício não se insere

mais em uma superfície natural, mas o gesto projetual de arranjo se estende até

essa superfície, esse solo, criando a possibilidade de imprimir no terreno as

características detectadas em relação ao lugar e à paisagem. Sobre o sítio desenha-

se uma nova geografia: ocorre assim uma contaminação formal entre elementos

de arquitetura e paisagismo. As qualidades do conjunto, potencializadas pela

planta livre, passam a ser realçadas pela multiplicação das visadas e dos

percursos, incorporando a experiência corporal e a possibilidade de “estar ao ar

livre”.

Segundo Bruno Zevi146 o paisagismo de Burle Marx ambienta a arquitetura

ligando-a ao terreno. O projeto do jardim, nesse sentido, se aproxima do

urbanismo ao se caracterizar como o tratamento da vastidão do território - como

já havia notado Lévi-Strauss - uma superfície vazia e intocada à espera de uma

ação. É a partir deste solo humanizado que a arquitetura vai se desenvolver e se

sustentar, além de, num sentido mais amplo, se integrar à natureza. O ambiente

visível é ordenado e o espaço passa a ser determinado através da ação do homem,

uma ação racional que supera a caótica realidade existente. Com esse objetivo,

coube pensar uma arquitetura que não apenas agregasse as características

arquitetônicas de um estilo internacional, com exacerbado racionalismo e

neutralidade plástica, mas que também reconhecesse e estabelecesse um vínculo

com o lugar onde se insere. Nesse sentido foram fundamentais as práticas

paisagísticas em comunhão singular com os projetos de arquitetura.

145 COSTA, Lucio “Muita construção, alguma arquitetura e um milagre 1951 Depoimento de um Arquiteto Carioca” In: Registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995. 146 ZEVI, Bruno. “O Arquiteto no Jardim” In: Burle Marx: Homenagem à Natureza. Petrópolis: Vozes, 1979, p. 42.

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Imagem 38: Projeto para o Instituto de Puericultura e Pediatria na Cidade Universitária do Rio de Janeiro - projeto de arquitteura e Jorge Machado Moreira e paisagismo de Roberto Burle Marx –

(1949-53)

No projeto para o Conjunto Arquitetônico da Pampulha em Belo Horizonte

(1942), por exemplo, Burle Marx cria diversas situações paisagísticas para os

diferentes edifícios de Oscar Niemeyer, todos ambientados em um contexto único,

ou seja, ao redor da lagoa artificial da Pampulha, construída no início da década

de 40 por Juscelino Kubitschek. Nela, a vista do observador segue um percurso

sinuoso, porém fechado, pontuado por edifícios isolados (Cassino, Casa de Baile,

Iate Clube, Igreja São Francisco de Assis, Golfe Clube e Grande Hotel – os dois

últimos não foram construídos). Este movimento congrega estes objetos pontuais

numa composição unificada, formada por três camadas distintas: paisagem

natural, paisagem construída (paisagismo) e arquitetura. Estes elementos devem

manter uma relação constante entre si com o objetivo de manter sempre a vista

desimpedida tanto para o panorama quanto para a arquitetura.

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Imagem 39: Complexo da Pampulha – Croquis de Oscar Niemeyer

A relação dos jardins com cada um dos edifícios se dá de maneira bastante

variada. No Cassino (atual Museu de Arte da Pampulha), por exemplo, – onde o

elemento construído tem uma presença marcante – o jardim não participa

efetivamente da arquitetura. As massas vegetais marcadas pela horizontalidade

constroem um pano de fundo para o edifício, reforçando o campo visual em

direção à arquitetura, assim como para sua entrada centralizada e tradicionalmente

estática. O mesmo paisagismo discreto e apaziguador ocorre no entorno do

edifício da Igreja, onde o edifício, composto por abóbadas parabólicas

combinadas, é também muito marcante na paisagem.

Imagem 40: Cassino (atual Museu de Arte da Pampulha)

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Imagem 41: Igreja São Francisco de Assis na Pampulha

A maior liberdade paisagística e relação com a arquitetura foram atingidas na

Casa de Baile. Neste projeto, a arquitetura é extremamente exteriorizada,

possibilitando um amplo diálogo entre espaços internos e espaços externos. O

jardim contorna, enlaça e envolve a arquitetura e esta, por sua vez, retribui com o

mesmo movimento envolvente. O terreno e o edifício são construídos juntos; ora

o terreno avança sobre a água, ora a água avança sobre o terreno, e a arquitetura

participa desta interação. A laje de cobertura se expande a partir do corpo

principal na forma de uma marquise sinuosa sobre pilotis que se dirige para o

horizonte em busca da paisagem circundante, querendo trazê-la para o conjunto.

Esta, por um lado, pode ser interpretada como um elogio à natureza, no sentido

em que se torna mais próxima à expansividade e ao caráter natural do meio que

cerca a construção. Porém, analisando este mesmo elemento por outro viés, é

inegável que se trata de uma laje plana, artificial, que desenha contra a paisagem

natural uma linha extremamente horizontal, fazendo com que se torne visível o

que é produto cultural, feito pelo homem, e o que é contexto natural, através de

uma atitude desafiadora da arquitetura juntamente com o paisagismo, ao propor a

criação de uma natureza extremamente artificial, desenhada.

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Imagem 42: Planta baixa da Casa do Baile, Pampulha, (1942)

Imagem 43: Casa do Baile, Pampulha. Foto cedida pelo Prof. João Masao Kamita

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