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6 A morte e o luto no Facebook
Começaremos agora a exposição dos dados obtidos em nossa pesquisa.
Inicialmente iremos apresentar alguns dos perfis de falecidos e dos perfis-
memoriais que encontramos em nossa trajetória, bem como algumas das
mensagens contidas nestes, que julgamos serem ilustrativas do fenômeno que
estudamos129. Em um momento seguinte, exporemos os resultados obtidos em
nossos questionários aplicados junto aos usuários comuns e os usuários
participantes da comunidade Profiles de Gente Morta. Por fim, traremos de dois
casos específicos que marcaram nossa pesquisa.
6.1. Perfis de pessoas falecidas
Os perfis de pessoas falecidas que selecionamos tiveram como critérios de
seleção: a) estarem abertos à visualização pública, ao menos até a data de nossa
primeira incursão digital e b) conterem mensagens deixadas por terceiros,
familiares, amigos ou mesmo desconhecidos. Apresentaremos casos de pessoas
que faleceram por causas diversas, como doença, acidente, suicídio, entre
outros130. Decidimos manter sigilo em relação às identidades dos mortos e dos
usuários que comentavam em seus perfis, criando nomes fictícios somente para
fins de identificação quando das dinâmicas das mensagens deixadas. Passemos ao
primeiro caso.
6.1.1. Perfil I
Meu Deus!! Estou tão desesperada de saudades do meu filho e abro o face agora às
18 horas do dia 9/7 e vejo essa foto tão querida. Assim não consigo segurar a barra.
Amo muito o meu filho... (Heliosa Fraga, mãe de Lelo Fraga, em 09/07/2015).
129 Acrescentaremos a essa etapa alguns comentários aleatórios de usuários da minha rede de
relacionamentos que se expressaram pontualmente sobre a questão da morte. 130 Contudo, algumas vezes não foi possível conhecer a causa da morte. Em todos os casos,
indicaremos.
115
Lelo Fraga tinha 47 anos, era formado em filosofia e morava na cidade do
Rio de Janeiro. Budista praticante, além de compartilhamentos sobre música e
diversos pensadores, exibia como foto de seu perfil uma imagem da deidade
Vajrasattva131. Sua última postagem pública foi em 22 de junho de 2014 – um
link para um vídeo na plataforma de vídeos do YouTube –, porém, em virtude de
uma resposta a um post de um amigo, sabemos que ao menos até a noite do dia 4
de julho estava vivo. Lelo, como veremos adiante, veio a falecer na manhã do dia
7 de julho132. A primeira mensagem encontrada em sua linha do tempo foi de sua
afilhada Patrícia Sales, que na ocasião escreveu: “Te amo Lelo!!! Vá com Deus
meu padrinho!!!”. Cerca de uma hora depois, Priscila Fraga, registrou: “Lelo
Fraga: meu querido primo! Você era de outra dimensão! Bjs”. No mesmo horário,
Patrícia retorna à página e publica uma foto 3x4 de Lelo:
Patrícia Sales: “Te amo muito meu padrinho!!! Vá com Deus, Lelo Fraga!!!
A postagem recebe 29 curtidas nas quatro horas seguintes, e integrantes da
rede de amigos e parentes de Lelo e Patrícia respondem:
A: Primo querido fique com Deus!!! Estamos aqui rezando por você! Bjs!!!
B: Meus sentimentos Pat! Muita força para você e sua família! Fica bem! Grande
bjo!
C: Estou sem acreditar ainda! Que vc descanse em Paz meu primo. Mto triste!
Heloisa Fraga: Meu filho a dor está insuportável. Te amo muito
O post é seguido por novo tópico, um comunicado do cunhado de Lelo, que
vem “informar a triste notícia do falecimento inesperado nesta manhã do Lelo
Fraga. Vou informando” – aqui então, mesmo sem conseguir precisar a causa,
conseguimos aferir o dia exato do falecimento: 7 de julho. Na mensagem seguinte,
um primo comenta: “Só soube agora e ainda sem acreditar no que está
acontecendo [...] peço Luz e paz no coração de todos nós que sofremos com sua
ausência. Beijos, meu primo querido e amigo do coração”.
131 Deidade da corrente budista mahayana. 132 Tivemos acesso ao perfil de Lelo na tarde do dia 8 de julho de 2014.
116
Adiante, Adriana Fraga compartilha uma foto em baixa resolução, onde um
prédio aparece em meio às arvores e a estátua do Cristo Redentor figura ao fundo
no topo do morro do Corcovado. “Lelo, você sempre foi de outra dimensão. Te
amamos sempre”, escreve a autora do post. A fotografia, que segue abaixo, parece
ter sido tirada de um celular, de dentro de um automóvel em movimento. Uma
referência direta a um lugar onde se encontraria ou para onde estaria se
direcionando o falecido? Possivelmente. Signo religioso que, ao mesmo tempo em
que salvaguarda o caminho de quem se foi, remete a um plano espiritual além-
vida. Também ajuda a abrandar a dor dos que ficam? Talvez.
Figura 01 – Foto publicada pela usuária Adriana Fraga no perfil de Lelo Fraga no Facebook em 07/07/2014.
A linha do tempo registra na sequência a publicação de outro amigo:
“Grande tricolor, grande ser humano. Deixará saudades... Mas com certeza está
sendo muito bem recebido no plano”. Depois, informações sobre velório e
sepultamento são publicadas por um primo, que acrescenta ao final da mensagem:
“Descanse em paz primo querido. Não tenho dúvidas que vc cumpriu sua missão
aqui na Terra”. O post recebe 10 curtidas133. As mensagens seguintes, publicadas
133 Entendemos que, nesses casos, o botão “curtir” é acionado como forma de suporte ao conteúdo
do que é publicado, e não como forma de atestar um sentimento de prazer. Em 24/02/2016, durante
117
em comentários separados na linha do tempo do perfil, seguem a mesma dinâmica
e são em sua maioria direcionadas ao falecido:
D: Lelo Fraga meu primo querido fique com Deus!! Te amamos muito! Bjs!
E: Primo querido vc vai fazer muitaaaaa falta!!! Te amo muito... Fica com Deus!!!!
F: Quando falei com vc pela primeira vez... Eu disse: Ganhei a noite.! Hoje... Perdi
meu dia! [emoticon134 de “coração”]... Vai na paz, tranquilo... um dia nos
encontramos.!
G: Fique em paz Lelo, grande figura, era sempre uma satisfação encontrar você.
H: Lelinho minha saudade sempre de Ti meu amigo tão especial e querido...
[emoticon de “rosto triste” com os dizeres “se sentindo triste”135, seguido de uma
imagem da deidade Vajrasattva]
O comentário que aparece em seguida nos pareceu especial, pois parece se
destinar tanto a Lelo quanto a seus amigos e familiares e até mesmo a
desconhecidos – vale lembrar que B (acima) não conhecia o falecido diretamente.
Além disso, parece cumprir uma função crítica ao modo como as pessoas nas
sociedades contemporâneas organizam suas vidas em razão de objetivos
questionáveis. Um desabafo diante da escassez cada vez maior de tempo e da
dificuldade em dedicar mais de si aos indivíduos que muitas vezes integram
algumas de nossas mais importantes esferas afetivas. Apesar das redes sociais
digitais...
Adriana Rocha: Não é a primeira vez que as coisas acontecem desse jeito torto. E
sempre que um amigo vai embora para sempre, de repente e sem aviso, a vontade é
ligar para todos os amores, amigos e companheiros e estabelecer que, daqui pra
frente, vamos nos encontrar com mais frequência, vamos cuidar uns dos outros,
vamos ser mais generosos com o nosso tempo e as nossas prioridades.
Mas amanhã, já bem cedo, adiamos os planos mais pra frente e, de novo, nos
surpreendemos com mais outro buraco.
Hoje foi a vez de Lelo Fraga. João me ligou e deu a triste notícia. Chorei e senti
saudades do sorriso largo, das pausas aprendidas com Adilson, do carinho e dos
olhares para o palco da vida.
a redação desse trabalho, o Facebook adicionou outros botões interativos que representam
sentimentos como alegria, tristeza, raiva etc. Todavia, trabalharemos com o cenário anterior a essa
mudança. 134 Ícones que são utilizados para expressar sentimentos (do inglês emotion + icon) 135 O Facebook permite que os usuários definam seus humores, e os deixem visíveis às suas redes,
a partir de uma lista pré-determinada de opções: “se sentindo feliz”; “se sentindo triste” etc.
118
[...]
A possibilidade de aproximação, pela rede, nos fez novamente juntos. Algumas das
primeiras histórias que escrevi foram lidas por Lelo, um querido incentivador para
que o projeto virasse um livro.
Lelo dormiu e nos deixou. Vou sentir saudades. Somos feitos do afeto e dos
rombos deixados por ele. Vai em paz, Lelinho.
A mensagem recebeu um total de 103 curtidas somente nas primeiras quatro
horas, período de nossa incursão digital. Depois chegou a 122. Além disso, dois
dos seis comentários feitos à postagem pertencem a amigos/as de Adriana que não
conheciam Lelo. Dizem eles: “Meus sentimentos, Aloísio Rocha! R.I.P.” (sigla
em inglês para “descanse em paz”); e “Sinto muito pela perda, abraços”,
respectivamente. Isso ocorre porque, ao citar Lelo em seu texto, a autora permitiu
a criação de um hiperlink que automaticamente redirecionou a mensagem também
para a linha do tempo de Lelo. Este, por sua vez, não havia configurado sua conta
para que uma solicitação de autorização de publicação em sua linha do tempo lhe
fosse previamente enviada sempre que tivesse seu nome citado em um texto.
O post seguinte também é uma mistura de “destinos”. Começa como uma
confissão, depois segue a rota dos amigos e conhecidos, por fim se direciona ao
falecido. “Poucas vezes nos encontramos [...] Sempre de alto astral e muito
brincalhão. Nos últimos tempos nos comunicávamos pelo face, sempre
demonstrando bom gosto musical e coisas espirituosas. Tenha um bom Bardo136!
Vai na Clara Luz Irmão Vajra! OM AH HUM SO HA!” 137, escreve um amigo.
Outro deixa o registro:
I: Lelo querido de longas datas você deixa saudades e muitas lembranças felás [do
inglês fellow, “companheiro”]. Fizemos muitas merdas juntos e eu adorei cada uma
delas (...) É foda irmão porque tô no trabalho na Nova Zelândia e eu não quero
chorar nessa merda, mas você é e sempre vai ser um irmão muito querido que eu
nunca vou esquecer, bro. Eternidade pra você cumpade! Vai com tudo nessa porra!
É interessante notar que o autor do depoimento, assim como boa parte dos
demais, se dirige textual e informalmente ao falecido: “irmão”, “você é”, “sempre
136 Bardo, assim como aedo (“poeta” em grego), é figura que em histórias, mitos e lendas se
relaciona simultaneamente com os mundos físico e espiritual. 137 Mantra em sânscrito.
119
vai ser”, “nunca vou esquecer, bro”, “vai com tudo”. O mesmo se vê na postagem
seguinte:
J: Acabei de saber da partida do meu amigo. Nos formamos juntos, trabalhamos
juntos, comemoramos muitas coisas juntos. Ultimamente encontrava-o nos lugares
mais inesperados, mas sempre parávamos para falar e ouvir histórias. Sempre um
papo gostoso [...] Morreu dormindo, descansou para a eternidade. Vai com Deus
amigo! Muita luz e amor no seu caminho. De onde estiver, receba meu carinho.
Todas as oito mensagens que se seguiram, até o fim de nossa investigação,
começaram em tom de depoimento; quando, como ou onde conheceram Lelo.
Depois, uma breve menção às qualidades do falecido; alegre, generoso, estudioso,
educado. Se de início não direcionaram suas mensagens objetivamente ao
falecido, fizeram isso ao final, recorrendo a signos místicos e/ou religioso para
registrar seus pêsames: paz, eternidade, Deus, luz.
O perfil de Lelo, ao menos até o término dessa redação, ainda pode ser
acessado, e a linha do tempo de seu perfil continua a ser alimentada,
especialmente por sua mãe, Heloisa Fraga. Inicialmente apenas respondendo às
mensagens de alguns amigos e familiares, Heloisa externa, em uma réplica feita
quase um mês após a morte do filho, que “está muito difícil aguentar essa dor,
mas vou melhorar para que ele não sofra me vendo assim”. Em 2 de abril de 2015,
faz sua primeira publicação:
H. F.: Lula Fraga meu filho querido hoje você faria 48 anos. A sua falta ainda me
dói muito. Tenho certeza que você, espiritualizado como era, já encontrou todos os
nossos queridos e está trabalhando para nos dar força. Deve estar contente em me
ver determinada a melhorar. Gostaria de pedir para, junto ao tio Leon, receber o
Diego e, como você sempre soube fazer, acolhê-lo com muito amor. De onde você
estiver ajude a Fabiana Fraga a conseguir superar essa dor imensa. Fique em paz.
Beijos de toda a sua família.
Ao longo do dia foram cerca de 30 publicações, boa parte fazendo menção à
saudade deixada e ao aniversário que seria completado, mas alguns poucos
comentários denunciam o desconhecimento do óbito. “Parabéns, Lelo! Sucesso!”,
“Feliz aniversário!” e “Felicidades!” são alguns deles. Por não ter sido
formalmente informado do ocorrido, o Facebook segue e seguirá mantendo sua
política de avisar aos contatos de Lelo sobre seu aniversário de nascimento. Se o
120
contato em questão for um laço fraco, provavelmente deverá felicitar o falecido
novamente como se este estivesse vivo, até que tome ciência do fato138.
A partir 31 de maio de 2015, Heloisa começou a publicar (e o faz até hoje)
quase que semanalmente imagens, fotos e mensagens direcionadas não só a seu
filho morto como também aos outros dois que estão vivos. Em todo caso, Lelo era
sempre o primeiro a ser lembrado, transformando-se numa espécie de protetor da
família, figura para quem as pessoas próximas prestam não somente homenagens,
mas fazem pedidos. “Amo muito vocês. E sei que o Lelo está nos protegendo [...]
para que a nossa família fique unida como sempre foi meu sonho”, escreve
Heloisa em 22 de junho. Por fim, em 3 de agosto de 2015, pouco depois do
falecimento completar um ano, uma aparentemente resignada Heloisa publica uma
imagem com os seguintes dizeres: “Um dia a saudade deixa de ser dor e vira
história para contar e guardar para sempre. Algumas pessoas são sim eternas...
dentro da gente!”.
6.1.2. Perfil II
Hoje levantei os olhos para os céus, desorientados e cegados pelas lágrimas, e pela
primeira vez compreendi a dor que existe na perda, o verdadeiro peso de um
definitivo adeus. Meu amigo, você se foi, para sempre! Você partiu e para trás
deixou um rastro de saudade e tristeza que jamais se apagará. A morte roubou você
de mim, meu melhor amigo, cruel e cedo demais ela ceifou sua vida... parece
impossível a compreensão da simples ideia de que jamais voltarei a escutar a sua
voz, jamais voltarei a ver o seu sorriso... Jamais! E como dói! Você partiu, mas
para sempre por mim será recordado, para sempre viverá em meu coração, pois
para sempre sentirei saudades suas e da nossa amizade. Até sempre, meu amigo!
(Cesar Montes, amigo de Gustavo Fernandes, em 29/11/2015).
O segundo perfil que apresentaremos é o de Gustavo Fernandes, 50/60 anos,
formado em Relações Públicas e falecido no dia 2 de dezembro de 2014 em
decorrência de uma “meningite fulminante”, segundo um de seus amigos.
Curiosamente, seu último post, em 22 de novembro, foi um desenho onde duas
pessoas se abraçam com os seguintes dizeres: “Fale ilimitado... Fale
pessoalmente. A melhor operadora... É o encontro!”. Gustavo então acrescenta
espirituosamente: “A arte do encontro é da manutenção da amizade. Claro que
138 Esse tipo de mal-entendido, inclusive, foi o principal motivo que fez com que o Facebook
revisse sua política de manutenção de perfis de falecidos nos últimos anos. O recebimento de um
aviso de aniversário de um contato falecido causou estranheza entre os usuários por muito tempo.
121
vou dar um Oi aos meus amigos mais íntTIMos”, alusão a três grandes operadoras
de telefonia móvel.
A primeira mensagem, publicada ainda no dia do falecimento por uma
amiga, novamente recorre ao discurso direcionado ao morto: “Amigo querido... de
você só boas lembranças. Posso dizer que em muitos dos momentos felizes de
minha vida você esteve presente [...] vai alegrar o céu! Nós aqui ficaremos um
tanto tristes, mas um dia a gente se encontra, amigo”. O texto é acompanhado por
uma foto onde se vê o falecido junto a dois amigos fantasiados em um evento de
carnaval.
O compartilhamento que mais gerou comoção e participação das redes em
questão foi a nota de falecimento:
K: ...NOTA MUITO TRISTE! ...essa é a nossa última foto tirada com nosso
irmãozinho Gustavo Fernandes que acaba de falecer com uma meningite
fulminante... a você Gustavo meu amigo Gu como eu o chamava todo meu
agradecimento por ter convivido um pouquinho com você e aprendido um
pouquinho sobre um verdadeiro folião de carnaval... em sua homenagem hoje no
início das minhas duas aulas tocarei surdo de silêncio do sambista [...] seu último
pedido para mim foi se ele poderia desfilar no [nome do bloco] de uma forma tão
emocionante que fique certo levaremos vc nos nossos corações... Vá com Deus
amigo Gu o dia do Samba ficou pra sempre um pouquinho mais triste pra mim...
muita força para toda a sua família! Deus salve o nosso Rio de Janeiro e o nosso
Gustavo Fernandes!
Até o dia 4 de dezembro, o compartilhamento já havia recebido 143
curtidas, e mais de 60 comentários. Por ser uma publicação aberta na linha do
tempo de Gustavo, a maioria dos comentaristas era também de amigos/as e/ou
conhecidos/as seus. Por isso os comentários eram publicados nos mesmos moldes
dos anteriores, isto é, em tons de depoimento, lamento, homenagem e
notadamente direcionados ao morto. Todavia, por também ser uma postagem
visível na linha do tempo do autor do texto, foi possível encontrar manifestações
dirigidas a este e àquele. Estas em geral limitavam-se a um breve “meus
sentimentos”. Porém chamou-nos a atenção a seguinte declaração: “Que nota
triste... Por favor, marque-o, não o conhecia, mas a hora da partida dói em todos...
[emoticon triste]”. Aqui podemos perceber a dinâmica da rede, que articula
diferentes graus de conexão dependendo do modo como é acionada.
Os sete compartilhamentos que se seguiram à nota de falecimento, advindos
de sete diferentes usuários, também lançaram mão de fotos de Gustavo quando em
122
vida como forma de homenageá-lo. Nove das dez imagens postadas tinham as
comemorações de carnaval como tema e apresentavam o falecido fantasiado ou
vestido em roupas carnavalescas, sempre destacando seu ar bonachão e boa-praça.
“Espalhe sua alegria onde você estiver”, “Vamos sentir muito sua falta amigão”,
“Vou lembrar sempre de você, meu amigo querido”, são algumas das mensagens
que se somam aos depoimentos que ajudam a construir (e reconstruir) a biografia
de Gustavo: um caso aqui, uma história acolá.
Quase uma semana após o falecimento, uma prima compartilha um texto em
que reconhece o momento de tristeza e dor, mas exorta os demais amigos/as e
familiares para que estes não se deixem abater, porque “onde ele estiver ele não
gostaria de sentir nossa dor”. E acrescenta: “Sei que ele gostaria que a sua partida
fosse comemorada. Que a sua passagem pela terra fosse comemorada com uma
grande festa, com direito a bateria, samba, wisque [sic], cerveja e muitos sorrisos.
Como sempre... uma desculpa pra beber”. O único comentário nesta postagem,
que recebeu pouco mais de dez curtidas, é do amigo Cesar Montes, que afirma
que “a merda toda está aí, ele era feliz e nos deixou infeliz”.
Entre os dias 19 de dezembro de 2014 e 2 de janeiro de 2015, C.M. publicou
31 vezes na linha do tempo do perfil de Gustavo. Todas as postagens seguiam o
mesmo formato: uma mensagem com o tema de amizade, saudade, amor e uma
foto de Gustavo em uma situação diferente, mas sempre cercado de amigos/as. Ao
que tudo indica, C.M. seguiu postando mensagens ao longo do ano de 2015. Sua
última manifestação data de 13 de fevereiro de 2016. Em 29 de novembro, quase
um ano após a morte de Gustavo, escreveu:
C.M.: Saudades [é] uma palavra que eu tirei do meu dicionário, quem tem saudades
fica preso no passado, de você eu tenho lembranças dos tempos divertidos e alegres
que passamos juntos e não foram poucas, essa semana fará um ano que você se foi
mas não existe um único dia que eu não pense e me lembre de você, obrigado por
te existido e me dado a oportunidade de ter sido teu amigo de fé e leal
Quem também se manifestou por esta época foi o irmão do falecido,
Claudio Fernandes, que cerca de uma semana antes do aniversário de morte
postou a foto de uma tela de computador onde se podia ver uma foto de Gustavo e
as informações sobra a missa de um ano. No alto, a seguinte mensagem: “Tristeza
também faz aniversário. Quanta saudade...”. Além de um compartilhamento, o
post teve 85 curtidas. Porém, nenhuma manifestação repercutiu tanto quanto a de
123
Celina Borba, companheira de Gustavo, que em 30 de dezembro de 2014 publicou
uma foto do casal com os seguintes dizeres: “Difícil é acordar e ver que vc não
está mais aqui”. Foram 197 curtidas e mais de 60 comentários, em sua grande
maioria destinados a confortar a viúva.
Assim como no caso anterior, no dia de aniversário de nascimento de
Gustavo, 17 de outubro, a linha do tempo do perfil registrou um razoável número
de mensagens; 44 diferentes amigos/as, para sermos precisos. A grande maioria
menciona a palavra “saudade”, mas algumas poucas apenas desejam “feliz
aniversário”, sugerindo que seus autores ainda desconhecem o fato e apenas
respondem ao impulso gerado pelo mecanismo de aviso do Facebook.
6.1.3. Perfil III
Ah amiga como vc faz falta!!! E hoje no seu aniversário, tive a alegria de lembrar
de tantos momentos bons ao seu lado!!! Sempre amigas!! Sdds eternas Marta
Peri!!!! (Mensagem no perfil de M.P. em 06/10/2014).
O falecimento de Marta Peri, 39, advogada, casada e mãe de quatro filhos
ocorreu em 23 de junho de 2013 em decorrência de um AVC. Porém, mensagens
deixadas antes desta data, a partir de 18 de junho do mesmo ano, nos fornecem
indícios de que sua saúde já estava debilitada e de que possivelmente o óbito veio
a ocorrer em meio a alguma intervenção médica. “Tudo vai dar certo”,
“Melhoras”, “Vamos vencer isso”, entre outras, são alguns dos mais de vinte
recados deixados na linha do tempo do perfil por familiares e amigos/as de Marta.
O clima de confiança na superação dá lugar à tristeza e à sequência de
mensagens póstumas com a seguinte postagem: “Deus continua contigo, só que
agora vc está nos braços dele minha querida... descanse em paz!!! Vc foi uma
guerreira!!!”.
Ananda Peri: A madrugada foi mal dormida e o dia hj amanheceu mais triste do
que poderia ser... perder vc se torna uma dor sem fim. Marta a angústia de ter te
perdido, não supera a alegria de ter um dia possuído. [...] Como suportar a voz que
se calou trazendo um terrível silêncio? [...] O sofrimento é imenso, que fica
complicado até para compartilhar, faltam palavras para expressá-lo [...] Perder vc
prima tá sendo uma dor sem fim, nada será igual, seu sorriso ficará guardado aqui
dentro do meu peito, aquele sorriso contagiante, aquela vontade linda de sempre ser
feliz, aquela mãezona que vc sempre foi, uma pessoa maravilhosa, minha saudade
sua será eterna, e a única coisa que tenho a pedir nesse momento de dor para todos
124
é que Deus nos de força, principalmente para seus pais, filhos e para seu marido.
Que papai do céu cuide dessa pessoa maravilhosa. Te amamos, Marta Peri.
Janaina Peri: Minha rainha, a dor é insuportável! Mas prometo que estamos unidos
aqui fazendo de tudo pra sermos fortes e nos apoiarmos. Afinal filhos de peixe,
peixinhos são e você deixou pra gente além da sua alegria constante essa força,
garra e coragem! Estamos nos espelhando na mulher batalhadora e guerreira que
você sempre foi pra amenizar esse sofrimento. Te amamos demais, mãezinha!
Cuida da gente daí e fica bem tá? Saudade imensa já. Um beijo enorme e muita luz
minha linda! (Leo Peri, Breno Peri e Janaina).
As mensagens acima foram deixadas ainda no dia 24 de junho, juntamente
com as mais 40 outras postagens que ainda aparecem na linha do tempo de Marta
até o dia 25. A mensagem deixada por Janaína, que uma semana depois iria
retornar ao perfil da mãe para publicar um link contendo a letra e o áudio da
música “Feliz” (Gonzaguinha), registrou 60 curtidas. Mais uma vez fica evidente
a quem a mensagem se destina: à falecida. Além disso, assim como observado
anteriormente, verificamos a presença dos elogios às qualidades do ente que se
foi, bem como a aura transcendental que se forma com os pedidos e solicitações
de zelo além-vida.
Em relação ao depoimento de Ananda, achamos interessante destacar o
“terrível silêncio” a que são submetidos os amigos/as e familiares de um ente
querido falecido. Lembremo-nos do vazio interacional como característica
primeira do evento da morte (Rodrigues, 1983/2006). Do mesmo modo, “faltam
palavras” para falar da morte, e é nesse sentido que Derrida define essa tarefa:
“Trata-se sobretudo de fazer passar a palavra, lá onde as palavras nos faltam”
(2004, p. 16). Provavelmente foi essa a dificuldade que Herman Richa também
tenha encontrado nos primeiros dias após o falecimento de Marta. “Sobrinha
querida, somente hoje tive coragem de voltar ao face [Facebook]”, confessa ele
em 1º de julho.
As publicações na linha do tempo de Marta seguiram nos meses seguintes,
especialmente por parte de sua prima, Alessandra Peri, que aleatoriamente postava
fotos da falecida, imagens contendo textos sobre saudade e mensagens em que
externava a dificuldade de suportar sua ausência. Em 6 de outubro de 2013, data
do aniversário de nascimento da prima, Alessandra escreveu:
A.P.: Parabéns Marta, hoje porque vc completaria seus tão sonhados 40 anos, e
sempre porque você soube passar por aqui! Ótima pessoa! Soube dar o melhor em
125
todos os papéis que a vida te deu para protagonizar, boa esposa, boa mãe, boa filha,
boa amiga, de bem com a vida e o coração... ahhhhh esse não cabia dentro de você!
Saudades.....Vc não tem idéia da saudade que deixou no coração daqueles que
como eu tiveram o privilégio de cruzar seu caminho! Eu sei como vc era generosa,
sincera, caridosa e amiga, assim como sei que sentirei muito a sua falta para
sempre! Hoje não posso fazer vc rir com uma piadinha boba ou te contar aquelas
besteiras que vc curtia dividir comigo. Hoje não dá, meu coração tá doendo p
caramba! Mas vou rezar, vou rezar muito para que vc fique em paz!
Diferentemente dos outros dois perfis apresentados, a linha do tempo do
perfil de Marta registrou poucas mensagens de aniversário. De dezembro de 2013
e abril de 2014, familiares e amigos/as silenciaram. Somente no dia 3 de abril,
data que não podemos afirmar com precisão se marca alguma ocasião especial,
uma nova atividade é detectada. Quase um ano após a morte de sua esposa, o
viúvo Silvio se manifesta no Facebook pela primeira vez e altera a foto (imagem)
do perfil de Marta, numa espécie de homenagem ao que julgamos ser uma data de
noivado ou casamento. Sabemos se tratar do marido por um dos comentários
publicados.
Figura 02 – Imagem do perfil de Marta Peri alterada em 03/04/2014 por seu esposo.
Outras fotos e mensagens foram publicadas ao longo do ano de 2014. O
aniversário de um ano de falecimento conta com a transcrição da música “Por
enquanto” (Legião Urbana). “Minha querida amiga, um ano sem a sua
companhia”, escreve a autora do post. Exatos dois anos após a morte, em 23 de
126
junho de 2015, algumas mensagens ainda são deixadas: “Quando dois anos da sua
partida se passam... eu prefiro lembrar os anos em que pude compartilhar da sua
felicidade... SAUDADES...”, escreve uma amiga.
Chama-nos atenção o fato de que, com o passar do tempo, as mensagens
direcionadas a Marta tornaram-se cada vez mais escassas e pontuais. O último
post data de 26 de agosto de 2015.
6.1.4. Outros perfis de falecidos
Encontramos em nossa pesquisa basicamente a mesma dinâmica de envio de
mensagens aos falecidos em todos os outros profiles que analisamos. Nesse
sentido, tentando não nos tornarmos demasiadamente repetitivos, decidimos
apresentar neste tópico um panorama geral dos demais perfis de falecidos
presentes em nosso trabalho.
L.: Nossa... Em outubro estive com a Rê, a abracei mas nunca imaginaria que seria
o último abraço, que seria as últimas palavras, a última vez que veria aquele rosto
tão bonito... Nossa última conversa no face suas últimas palavras foram “Eu tenho
fé”. E ela tinha, muita fé que tudo ficaria bem. É tudo ficou bem... Nós vamos
chorar por uns tempos, ficar chateados por sua partida até entendermos que agora
ela está bem... Sem dor, sem tristezas e incertezas... Ela está serena agora, com sua
voz mansa como sempre foi... A dor hoje amanhã será saudades e que serão
sanadas quando todos se reencontrar novamente, pois a Rê só fez uma viagem...
Como sempre adorou viajar ela foi na frente... Até o reencontro e fique em paz..
(30/11/2014 – Perfil de Regina Meira, pouco mais de 30 anos, universitária,
falecida em 28 de novembro de 2014 em decorrência de um câncer no cérebro).
M.: Deletei hoje o telefone do meu amigo Pedro Scarpa...é penoso deletar o contato
de um amigo que morreu (...) Deletar amigos que morreram da lista telefônica é
muito duro, imagino que é triste para todos. Viva Pedro Scarpa! (18/04/2015 –
Perfil de Pedro Scarpa, 50/60 anos, jornalista, vítima de um câncer de garganta em
18/03/2015).
N.: Independente do que aconteceu com você tio quero te dar os parabéns sei que
aonde você esta e um lugar magnífico que deus te colocou espero que você possa tá
comemorando ai no céu com seus amigos que se foram o que todos nos queríamos
era que você estivesse aqui com nós festejando essa data maravilhosa au [sic] lado
da sua família te amo tio e sempre vou te amar espero um dia poder ficar do seu
lado (13/12/2015 – Perfil de Anderson Moniz, 37, universitário, assassinado em
07/04/2015).
Os seis perfis que apresentamos até aqui seguem ativos, mas com
pouquíssimos registros atualmente – na verdade, os registros vão gradualmente
127
rareando até que, passado aproximadamente um ano do falecimento, não mais
recebem mensagens ou somente em raríssimas ocasiões. Os perfis de Regina,
Pedro e Anderson, por exemplo, apresentam as últimas mensagens nas suas linhas
do tempo em 30 de março de 2015, 1º de fevereiro de 2016 e 13 de dezembro de
2015.
6.2. Perfis-memoriais
Diferentemente destes, destacam-se os perfis que foram transformados em
memoriais por familiares e/ou amigos dos falecidos, que conseguiram provar o
óbito à administração do Facebook e tiveram a oportunidade de assim proceder139.
Como explicado, caso os usuários tivessem solicitado a desativação de suas contas
em caso de morte, o procedimento teria sido realizado tão logo o falecimento
tivesse sido comprovado. Como a opção de criar herdeiros (legacy contact) para
as contas do Facebook ainda não estava disponível quando da criação da maioria
dos memoriais encontrados140, podemos ter certeza de que se trata de casos em
que os donos dos perfis não autorizaram – nem desautorizaram – a manutenção de
suas respectivas contas por terceiros.
Em termos de design os memoriais são muito semelhantes aos perfis. O
novo administrador pode alterar as fotos de perfil e a foto de capa (header), além
de conseguir responder às mensagens enviadas pelos familiares e/ou amigos do
falecido. Todavia, não é possível visualizar as mensagens e conversas que
precedem o falecimento. No que diz respeito à visualização pública do memorial,
este tem sua linha do tempo “apagada” e reiniciada na primeira alteração de foto
de perfil, atividade que detectamos em todos os casos analisados. As mensagens
deixadas, ora acompanhadas de fotos, ora de imagens com dizeres sobre saudade,
amor e sentimentos afins, em geral continuam sendo direcionadas aos falecidos.
139 Antes de 2009 o Facebook não tinha uma política específica para criação de perfis-memoriais.
Neste caso, os familiares e/ou amigos de falecidos optavam por criar comunidades como forma de
homenagear seus entes queridos. Mesmo assim, talvez pela burocracia de reunir documentação
que atestasse o óbito, muitas pessoas optaram por criar comunidades-memoriais em vez de
transformar os perfis de seus entes falecidos em perfis-memoriais. Por terem ambos os tipos o
mesmo fim, homenagear os falecidos, entendemos os dois como memoriais online. 140 O Facebook disponibilizou o recurso em caráter experimental nos EUA em 12 de fevereiro de
2015. No Brasil a opção foi incluída nas configurações de segurança dos perfis somente em
setembro do mesmo ano.
128
Quando, em conversa breve e informal via Messenger, questionamos se a
criação do memorial de sua prima Andrea Maria Silva havia de alguma forma
contribuído para a aceitação de sua perda, Renata Silva afirmou:
Sim. Primeiro pq é uma forma de homenagear a pessoa que partiu dessa vida pra
uma melhor. E tb uma forma de estarmos sempre próximo dessa pessoa, pra nunca
cair no esquecimento, embora ninguém esqueça o que está registrado no coração. É
uma maneira de ajudar as pessoas a superar a perda. Pra deixar sempre nítido o
amor e a admiração. (Renata Silva, 20, estudante, em 09/02/2015).
Patrícia Ribeiro, administradora do memorial de seu irmão, Wanderson
Ribeiro, é ainda mais direta: “Sim posso mi desabafar pois sempre falava com
meu irmão no face mandava mensagem pensamentos pra ele todos os dias...”. O
desabafo é compartilhado, assim como a dor sentida e isso fica claro na
publicação feita em 5 de julho de 2015, nove meses após o falecimento de
Wanderson, em que duas usuárias que não faziam parte da rede de conexões do
morto trocam mensagens com a administradora do memorial, isto é, com Patrícia.
Memorial: 9 meses..... O sorriso no meu rosto não e a ausência da minha dor ....9
meses de dor de saudades de vontade de ti abraçar , A pessoa que fez isso não só
tirou sua vida mas também acabou com muitos sonhos, tirou o brilho dos olhos de
nossa mãe que eu sei que ela só está de pé por nós. E se alguém achar um exagero
não julguem por que não sabe como fomos criados não sabe a importância de cada
um na vida um do outro agente somos como um quebra cabeça um completa o
outro agora estamos incompletos ....mas a tua ausência física irmão não nos afastou
e nunca nós afastara estaremos juntos sempre e eu vou ti encontrar não importa
quanto tempo vou ter que esperar .....vou ti encontrar. Te amo te amo te amo um
amor infinito que nem cabe em mim meu menino.
O.: Deus levou o meu filho também , com vinte e dois anos faz um ano e quatro
meses a saudade é eterna.
Memorial: Sinto muito..... nem sei o que dizer por que sei que nada que eu diga vai
diminuir a sua dor mas saiba que se precisar de uma amiga estou aqui eu e minha
família com certeza [sic] um abraço dia 5 de outubro vai fazer 1 ano que meu
irmão partiu .sei sua dor.
P.: A sua dor, me fez lembrar da minha filha! Ela sente muito a falta do irmão que
se foi há um ano! Cauê* e como vc falou; não importa o que os outros pensem:
Que eles descansem em paz, e que a luz divina estará - os iluminando! Creia
amém.
Memorial: Muito obrigado... pela atenção a dor e grande mesmo mas Deus é o
nosso suporte amém um abraço.
129
Um memorial que ganhou grande visibilidade foi o de Jéssica Maiara
Garcia141, estudante de 17 anos que foi assassinada no dia 14 de novembro de
2014. O crime comoveu os moradores da pequena São José (SC), e ganhou ainda
mais visibilidade quando ficou confirmado que o tio da jovem, André Luis da
Silva, 47, havia sido o responsável pela morte. Detalhes sórdidos do caso à parte
(atenhamo-nos ao que nos interessa: o perfil-memorial de Jéssica no Facebook).
O que mais nos chamou atenção nesse caso foi o fato de que a página,
inaugurada poucos dias depois do falecimento da estudante, em 21 de novembro
de 2014, se tornou local de “peregrinação virtual” de muitos usuários
desconhecidos da família. Comovidos com o episódio, passaram a deixar
mensagens de apoio aos familiares e em homenagem a Jéssica. A participação
dessas pessoas fica evidente em mensagens como: “Que a justiça seja feita... E
que Deus conforte essa família, pois como sou mãe, imagino a dor dessa mãe e
desse pai... Tenho certeza não tem dor pior...” ou “não conheci vc mais orei muito
por vc”.
Como de praxe, a primeira publicação feita foi a atualização da foto do
perfil da página, ação que registrou 428 curtidas. Os primeiros dois dias
registraram uma intensa movimentação por parte dos usuários junto ao memorial
com 23 publicações contendo links com os desdobramentos da investigação,
informações sobre os pais e o tio, mensagens diversas, além de fotos da própria
Jéssica. No total, a média de curtidas nesse curto período foi de mais de 700
curtidas por post, totalizando mais de 1,2 mil comentários e 560
compartilhamentos. A postagem com uma foto do enterro, acompanhada da
expressão “último adeus”, feita no dia 21/11, recebeu 1.872 curtidas, 120
comentários e 51 compartilhamentos.
O perfil-memorial de Jéssica se difundiu de maneira tão impressionante que
havia recebido, até novembro de 2015, mais de 5.500 curtidas142. O potencial de
divulgação dos compartilhamentos e curtidas, bem como o efeito da dinâmica da
rede, são percebidos pela administração do memorial na mensagem:
Memorial: cada compartilhada nessa página que você der vai ta ajudando a outras
pessoas também acompanharem o fechamento da investigação que ainda tem muita
141 Devido à grande repercussão do caso nas mídias, optamos por utilizar o nome verdadeiro da
homenageada no perfil-memorial. 142 No Facebook é possível curtir tanto um perfil quanto uma comunidade ou uma publicação.
130
coisa pra rolar, convide amigos para participar que vai rolar ainda a reconstituição
do crime ACOMPANHEM! (Publicação de 22/11/2014).
Outras duas postagens que convém serem mostradas são as que exortam
explicitamente a participação dos usuários e podem ser vistas nas imagens abaixo.
Figura 03 – Mensagem publicada no perfil-memorial de Jessica Maiara no Facebook convidando os usuários, conhecidos ou não, a postar mensagens póstumas.
131
Figura 04 – Usuários que não conheciam Jéssica e sua família se mobilizam para deixar mensagens de apoio aos pais da jovem.
As postagens no memorial de Jéssica mantiveram certa regularidade ao
longo do ano de 2015, sendo quase que semanais, mas é possível perceber um
declínio gradual na participação dos demais usuários. O número de curtidas, assim
como de comentários e compartilhamentos das mensagens, exceto em raras
exceções, foi diminuindo. A última atividade registrada na linha do tempo deste
perfil-memorial data de 29 de dezembro de 2015; uma atualização da foto do
perfil que recebeu 36 curtidas. Desde então, a “peregrinação virtual”
aparentemente cessou143...
Dinâmica semelhante pode ser detectada em todos os demais memoriais que
encontramos. Os dias que se seguem ao falecimento são os que registram a maior
quantidade de atividade por parte dos usuários, assim como os períodos festivos
(Natal e Ano Novo, por exemplo) e as datas especiais, como aniversários de
nascimento e morte. No geral, com o passar do período de aproximadamente um
ano após a morte, as publicações e demais atividades tornam-se escassas.
143 Dizemos “aparentemente” porque não temos como saber se o perfil ainda é acessado por
usuários (familiares, amigos e/ou desconhecidos) que apenas optam por não se manifestar na linha
do tempo do memorial, utilizando o espaço apenas para contemplar as mensagens, as fotos e os
comentários deixados.
132
Contudo, algumas exceções foram detectadas. Dos 22 perfis-
memoriais/comunidades-memoriais144, encontramos seis que permaneceram ou
permanecem ainda registrando publicações, ainda que extremamente pontuais,
mesmo passados mais de três anos do óbito. A comunidade-memorial mais antiga
encontrada, que em 21 de novembro de 2015 recebeu sua última publicação, data
de 12 de julho de 2012. As tarefas do luto não são lineares, sendo vividas por cada
pessoa de maneira diferente, não acreditamos que tais casos conflitem com a
percepção geral de que as manifestações maciças ocorrem basicamente ao longo
do primeiro ano após a morte.
6.3. A morte, o luto e o “usuário comum”
As informações que apresentaremos agora são provenientes do questionário
online que aplicamos junto a usuários do Facebook que não estão/estavam, ao
menos à primeira vista, vinculados a qualquer experiência digital que tivesse a
morte como tema. Em outras palavras, não foram usuários que observamos se
manifestar em perfis de falecidos ou que abordamos porque integravam
comunidades como a Profiles de Gente Morta. Por isso, constituem o que
chamamos de “usuários comuns”.
É preciso ainda fazer outra ressalva. Por terem sido disparadas do perfil
pessoal do pesquisador, o questionário atingiu majoritariamente conexões diretas
e conexões de conexões, isto é, perfis de amigos/conhecidos diretamente
conectados à rede do perfil do pesquisador e perfis de terceiros ligados a estes,
respectivamente. Acreditamos que isso explica o fato de que o universo dos 355
participantes seja formado basicamente por pessoas com ensino superior completo
(ao menos 49% dos casos)145.
Com idades que variam fundamentalmente entre 25 e 45 anos (68% dos
casos)146, os participantes são mulheres (72%) e homens (28%) que possuem
144 Perfis transformados em memoriais propriamente, e não utilizados como tais. Contudo, na
prática o objetivo e a forma de utilização são as mesmas. 145 Os demais casos encontrados são formados por participantes com ensino superior incompleto
(5%), ensino médio completo (2%) e/ou que não forneceram informações sobre seu grau de
instrução (44%). 146 Cerca de 12% dos participantes têm idade igual ou superior a 46 anos, 16% menos de 25 anos e
2% não responderam. A título de curiosidade, informamos que o participante mais jovem possui
15 anos e o mais velho 74 anos.
133
conta no Facebook há no mínimo três anos (86%), sendo este total formado por
usuários que utilizam essa rede há pelos menos cinco anos (47%)147. Metade das
pessoas se considera religiosa, ou diz possuir algum tipo de crença ou fé em algo
superior148. Do total de participantes, 60% informaram utilizar smartphones para
acessar o Facebook e a Internet149, e impressionantes 84% revelaram que faz isso
“diversas vezes ao dia” – se somarmos a esses os 7% que disseram acessar o FB
ao menos uma vez por dia, temos um total de mais de 90% dos participantes
diariamente atuando na rede.
Cerca de 80% disseram desconhecer os memoriais do Facebook, e quase
90% nunca tinham ouvido falar dos herdeiros dos perfis. Ainda assim, ao serem
questionados se algum amigo, conhecido ou familiar, que também possuía conta
na rede, havia falecido, mais de 70% responderam positivamente e 53%
confirmaram ter utilizado o próprio perfil e/ou o perfil do/a falecido/a para
registrar uma mensagem póstuma. As situações são variadas e revelam variadas
percepções:
Sim, aconteceu de um amigo falecer e a conta dele até hoje está ativa e as pessoas
escrevem no aniversário dele, falando que sentem saudades, que ele esteja em paz.
Eu nunca escrevi nem postei nada depois que ele faleceu. Acho muito estranho a
esposa dele manter o perfil dele, postar foto no perfil dela marcando ele. Enfim,
acho muito esquisito. (Madalena, 34 anos).
Três amigos faleceram e a conta ainda existe no face, e aniversários ou alguma data
comemorativa sempre deixo alguma msg de saudade... (Laércio, 38 anos).
Um amigo veio a falecer. Não vi lógica em escrever um recado na linha do tempo
dele, visto que ele não iria ler. (Diego, 26 anos).
Alguns conhecidos vieram a falecer, e eu não cheguei a escrever uma mensagem,
mas entro para ver as mensagens ou obter algum tipo de informação. Morte é uma
coisa que faz a gente querer ter um último contato com aquela pessoa e por mais
que isso não seja possível por impulsividade acabo entrando na página do/a
falecida. Citando um caso: Um conhecido meu da época que jogava basquete veio
a falecer. Fiquei sabendo muito depois... Ao chegar em casa, ainda um pouco
impactado com a notícia, entrei no facebook dele. O perfil ainda está ativo.
(Frederico, 29 anos).
147 Os dados do tempo de acesso ao Facebook ficaram da seguinte maneira: 4% não responderam;
10% menos de três anos; 38% entre 3 e 5 anos; 43% entre 5 e 8 anos e 5% mais de oito anos. 148 Aproximadamente, 36% dizem ter fé ou creem em algo superior, 32% se dizem católicos, 21%
espíritas, 5% evangélicos, 3% religiões de matrizes africanas, 1% religiões de matrizes orientais, e
2% outros. 149 Dos restantes, 17% utilizam computadores desktops; 16% laptops; 4% tablets e 3% não
responderam.
134
Um amigo de muitos anos que morava em porto alegre, faleceu de câncer, e ele era
muito querido por tantas pessoas, gostava de música, poesia, um publicitário com
alma de artista. E quando bate a saudade, quando alguma música me lembra dele
visito o perfil. Enfim, o seu mural virou um monumento da saudade de nós, amigos
órfãos. (Clara, 49 anos).
Usei meu perfil pra entrar em contato com familiares e amigos. E algumas vezes
acabei escrevendo para a própria pessoa, em uma tentativa angustiante de fingir
que nada aconteceu, de negar o processo. Mas ainda assim, eram palavras de
despedida. É muito estranho tudo se manter na rede. Fotos, posts, toda uma
timeline. A vida acaba e essa linha do tempo continua, recebendo posts dos outros,
sendo alimentada pelo universo da pessoa. (Paulina, 27 anos).
Usei o Facebook todas as vezes que houve falecimento de alguém próximo. O
namorado da minha irmã foi assassinado e somente pelo Facebook foi possível
mobilizar tantas pessoas no Brasil para que o caso chegasse à esfera política, sendo
ele um grafiteiro com algum reconhecimento pelo seu trabalho e morto com 6 tiros
por um vizinho que sequer tinha direito sobre o muro que ele pintava. Hoje o
assassino está solto, mas conseguimos mostrar que tipo de pessoa ele é e responde
por diversos processos. (Carlos, 33 anos).
Faleceu meu irmão. Fiquei afônica, creio que foi uma somatização do corpo, e usei
o Facebook um dia depois da sua morte para desabafar e destacar alguns bons
momentos que vivemos. (Jaqueline, 36 anos).
Usei meu perfil para falar da perda do meu pai e avô. Ambos tinham conta no
facebook e nossa família usou os perfis dos falecidos para comunicar somente o
falecimento e a missa de sétimo dia. (Ian, 29 anos).
[...] ontem mesmo foi aniversário de uma grande ativista do movimento das
prostitutas [no Recife] que morreu há alguns anos e eu deixei uma mensagem pra
ela no mural que ainda está em funcionamento. (Diana, 29 anos).
Me recordo de três falecimentos. E em todos eu escrevi um texto no Facebook.
Três amigos queridos. Em dois eu compartilhei foto e falei dos bons momentos. No
outro, que tinha sido um chefe meu, eu falei sobre o aprendizado que tive com ele
durante a passagem dele por aqui. (Patrícia, 25 anos).
Quando um paciente meu faleceu, deixei mensagem registrada lá, com a finalidade
de conforto para família. (Mani, 33 anos).
Acho desnecessário, acho que as pessoas acabam inconscientemente fazendo isso
[deixando mensagens nos perfis] por culpa mesmo, de não ter procurado a pessoa
enquanto ela estava viva. (Maira, 24 anos).
Só houve um caso. A pessoa em questão tinha uma “marca”, à cor magenta. Muitas
homenagens usando a cor como referência à pessoa falecida foram feitas, inclusive
a minha. Pra mim é muito estranho ver a pessoa, hoje, aparecer como marcada em
uma publicação ou ainda, “fulano tem 13 amigos em comum, dentre eles, a pessoa
falecida”. (Marcia, 37 anos).
[...] uma amiga muito querida que faleceu há 1 ano atrás, tinha o perfil na rede, e
ela sempre informava tudo sobre tratamento e estado de saúde, com direito a
registro fotográfico pela rede. Na rede eu postei fotos e mensagens para ela e para
135
os familiares, prestei minha última homenagem, a qual repeti no sétimo dia, no
primeiro mês, no primeiro ano... (Alice, 22 anos).
Uma conhecida havia falecido dias antes do seu aniversário sem que eu soubesse.
Mandei uma mensagem no dia, mas em seguida uma amiga dela me avisou do seu
falecimento. (Rogério, 33 anos).
Apesar de versarem sobre casos diversos, os depoimentos acima apresentam
alguns aspectos comuns: o estranhamento e a descrença diante da morte, mas
também a prática de deixar mensagens e depoimentos nos perfis dos falecidos, e a
utilização do Facebook para comunicar o falecimento e as cerimônias fúnebres. A
biografia do/a falecido/a mais do que nunca é escrita por múltiplas mãos...
Cerca de 73% dos participantes que admitiram ter utilizado o Facebook para
publicar uma mensagem póstuma em seu próprio perfil, ou no perfil de alguma
conexão que havia falecido, acreditam que a ferramenta teve um papel importante
diante dessas experiências de luto. “Oportunidade de dividir um sentimento, de se
sentir ouvida e de dar importância e relevância ao fato”, comenta a participante
Dora, 29.
Mesmo os que responderam que o Facebook, no contexto estudado, não
tinha um papel importante, ao justificarem suas negativas, implicitamente
apontaram o contrário. Ou seja, afirmaram que não houve importância no uso da
rede em suas experiências, mas reconheceram certas qualidades no uso da
ferramenta.
Nenhum papel importante, apenas a importância de tentar de alguma forma deixar
uma homenagem [a um] amigo, ou animal que fez parte da história de vida de
alguém. (Laércio, 38 anos).
Acho apenas que serve como propagação da lembrança dessas pessoas, tanto de
forma ativa (ao publicar) quanto passiva (ao ver publicação dos outros e
relembrar). (Raphael, 28 anos).
[...] acredito que naquele momento foi apenas mais uma forma de expressar minha
tristeza. (Rosana, 37 anos).
Exerceu o papel importante de ferramenta auxiliar na catarse da dor da perda e tb
na forma rápida e abrangente de render minha homenagem e admiração à pessoa.
(Marcelo, 52 anos).
Sim e não. É muito bom receber boas mensagens, de qualquer tipo, seja ela
mínima, em um caso de perda te conforta bastante. E não porque foi indiferente, a
pessoa morreu, não vai ver a homenagem, e ao mesmo tempo que mensagens
136
positivas te confortam, te fazem lembrar do acontecido com vc tentando esquecer.
(Ester, 16 anos).
Ora, como vimos no primeiro capítulo, a reposição afetiva do objeto perdido
é uma das tarefas do luto. Tal momento passa tanto pela vivência da tristeza e da
dor quanto pela experiência de momentos que compõem estruturalmente os rituais
de passagem. A homenagem é celebração à vida, à memória do morto. Nesse
sentido pode ser entendida como uma etapa nesse caminho de desligamento e
religamento que ocorre entre o indivíduo que vem a falecer e a sociedade da qual
faz – e da qual vai fazer parte, a dos mortos.
Além disso, de uma perspectiva estritamente social, as homenagens se
destinam tanto aos vivos e quanto aos mortos. Mas, como coloca Elias (2001, p.
10) “A morte é um problema dos vivos. Os mortos não têm problemas”. É claro
que o morto não verá a homenagem, não poderá se pronunciar, aprovar ou
desaprovar o ritual escolhido, a roupa com a qual será enterrado ou o local onde
suas cinzas serão jogadas. Os ritos e as homenagens fúnebres que neles estão
presentes auxiliam os vivos a superar o estranhamento causado pelo silêncio da
alteridade que não mais está presente.
Ainda assim, para alguns participantes, o recurso do uso do Facebook como
meio para registro de mensagens aos mortos causa até mais estranheza do que a
ideia da morte em si. “Descobrir a morte de alguém com um post é terrível. É
como descobrir lendo um jornal, sessão de óbitos. Não há calor algum com a
chegada da notícia”, comenta Paula, 27. Segundo Lúcia, 25, constatar esse tipo de
atividade na rede, “só torna os mortos estranhamente mais presentes”. Natália, 45,
é taxativa e diz que tal uso é “sempre negativo [pois] exacerba o sofrimento”.
César, 43, nos fornece um interessante depoimento ao afirmar que “a falta
presencial acredito que protege do sofrimento. O corpo ‘presente’, para mim, faz
parte da ‘estética’ do luto, do sofrimento”.
De fato, este é um ponto para o qual chamamos atenção: o corpo físico é
claramente de natureza diferente da de um potencial corpo digital. Diferentemente
dos que acreditam na digitalização de um “corpo morto” (Rezende, 2007),
entendemos que a dinâmica entre vida, morte, indivíduos e sociedade tem
significado extremamente particular quando atentamos para o fato de que o corpo
físico se decompõe. Um análogo digital ao corpo de um ente pode, no máximo,
137
ficar abandonado com o passar do tempo – uma página de um álbum que não se
pode completar. Pode até ser deletado e condenado à aniquilação, encaminhado ao
esquecimento, mas será realizado a um só tempo. Basta um clique para que um
perfil seja excluído.
O corpo, em contrapartida, se despede de maneira radical, usando o tempo
para expor gradativamente sua final fraqueza. Mesmo que seja submetido a
técnicas funerárias que visam a reduzir o corpo ao pó, como a cremação, o hiato
entre o cessar das funções biológicas e a burocracia gerada pelo óbito fornece
tempo suficiente para que uma série de processos físico-químicos sejam
disparados no organismo. Os efeitos logo são sentidos: orifícios devem
permanecer vedados para evitar os odores, a posição do defunto deve permanecer
alinhada levando-se em conta o enrijecimento do cadáver, entre outros.
Nesse sentido, nos parece que o “corpo digital” se assemelha muito mais às
estruturas funerárias, por onde passam aqueles que decidem prestar homenagens a
seus mortos. Um local de peregrinação, um espaço para rememorar, um lugar para
homenagear.
6.4. A comunidade Profiles de Gente Morta
Criada em dezembro de 2004 na extinta rede social Orkut, a Profiles de
Gente Morta é a mais antiga comunidade que reúne perfis de pessoas falecidas e
usuários interessados no tema da morte. A PGM, como é chamada por seus
participantes, chegou a contar com mais de 30 mil membros150, mas hoje, segundo
dados de sua página no Facebook, onde se encontra desde o ano de 2009, é
composta por 16.473 membros151. Dos 127 participantes de nossa pesquisa,
aproximadamente 70% são mulheres152, com idades entre 25 e 45 anos (90%)153, e
ensino superior completo (75%).
150 De acordo com a pesquisadora Renata Rezende (2007), em 5 de agosto de 2006 a comunidade
Profiles de Gente Morta registrava 31.736 membros. 151 Dados de fevereiro de 2016, em https://www.facebook.com/groups/pgmoriginal/?fref=ts,
acesso em 28/02/2016. 152 A pesquisadora Andréia Martins, que atualmente está cursando um doutorado na Universidade
de Bath (Inglaterra), gentilmente nos cedeu alguns dados de um questionário que aplicou junto aos
membros da PGM. Do total de 274 participantes, 85% são mulheres, um percentual aproximado ao
que encontramos em nosso caso. 153 Os dados fornecidos por Martins, que trabalha com duas faixas distintas (16-29 anos e 30-40
anos), mostram que quase 90% dos participantes encontram-se na faixa dos 16-40 anos.
138
Aproximadamente 50% dos participantes participam da comunidade há pelo
menos dois anos, sendo que 1/3 do total já está há mais de quatro anos no grupo, e
57% dizem acessar a PGM “diversas vezes ao dia”. Somados aos 19% que ao
menos uma vez ao dia verificam os compartilhamentos da comunidade, conclui-se
que mais de ¾ dos participantes diariamente mantêm contato com o conteúdo
disponibilizado no Profiles de Gente Morta. Em contrapartida, somente 18% dos
usuários informaram acessar o site da PGM na Internet154 com a frequência de
pelo menos uma vez ao dia (12% diversas vezes ao dia; 6% uma vez ao dia). O
uso de dispositivos de telefonia móvel chega a 60% e quando somados ao uso de
laptops e tablets chega a 75%.
A dinâmica da comunidade pode ser resumida na seguinte atividade: a
divulgação de perfis de falecidos e os subsequentes debates acerca das causas das
mortes a eles relacionados. Membros da Profiles, atentos às notícias de óbito que
são veiculadas pelas mídias, utilizam os recursos de busca do Facebook para
tentar encontrar os perfis destes falecidos e os publicam na página da comunidade.
As publicações devem seguir algumas regras estabelecidas pelos administradores
da PGM, sendo obrigatório seu cumprimento sob pena de exclusão da
comunidade. Por exemplo, além de ser terminantemente proibido comentar nos
perfis publicados155, é vedado o compartilhamento de fotos e/ou vídeos do morto
e/ou do acidente, sendo esse o caso, exceto quando em vida e/ou quando estão
associadas a matérias jornalísticas.
Ainda assim, a moderação da Profiles de Gente Morta está sempre atenta a
comentários ofensivos e discussões mais acaloradas, apagando-os e solicitando
que seus membros evitem fazer dos tópicos um espaço de bate-papo – o que quase
sempre tende a acontecer. Por sua vez, os “Tópicos OFF”, como são chamados os
tópicos relativos a falecidos que não possuem conta no Facebook, são destinados
basicamente à morte de pessoas famosas. A padronização dos tópicos é algo
também bastante importante para a dinâmica da comunidade, pois funciona como
uma ficha descritiva e resumida dos principais elementos que compõem o óbito
que está sendo divulgado.
- Não é regra, mas sugerimos que siga o seguinte padrão: símbolo de cruz + nome
154 Atualmente o sítio da PGM encontra-se fora do ar. 155 Apesar disso, 11% dos participantes admitiram que o fazem.
139
do falecido + causa da morte + símbolo de cruz. Exemplo: † João da Silva -
leucemia †
Se você não sabe fazer a "cruzinha", pode usar o sinal de +.
Exemplo: † Fulano - Causa mortis ou fato típico †
Quando a causa for desconhecida, apenas postar NSC (que significa Não Sei a
Causa). Preferencialmente postar após o nome o link de site noticiando a morte.
Evitar comentários e opiniões na postagem. Deixar a postagem "limpa" e
resumida. (Padronização dos Tópicos em Regras do Grupo Profiles de Gente Morta
no Facebook).
Os membros do grupo, que de modo geral relacionam-se apenas através da
comunidade156, usam ainda algumas siglas para alertar outros membros sobre os
tópico postados e/ou emitir juízos sobre seu conteúdo: “DEP (Descanse em Paz),
NSC (Não sei a causa), BBBM (Bandido Bom é Bandido Morto), JFP (Já foi
postado), RIP (Rest in Peace), TI (Tópico Inútil)”. Sendo assim, um
compartilhamento na PGM fica da seguinte forma:
Figura 05 – Um compartilhamento feito na comunidade Profiles de Gente Morta.
Quase que a totalidade dos participantes de nosso questionário (98%)
respondeu que acessa o perfil do falecido quando este é publicado na página da
PGM. “Talvez dar mais valor à minha vida e tentar descobrir alguma coisa que
156 Do total de participantes, 83% informaram nunca ter se encontrado pessoalmente com outro/a/s
participante/s da comunidade. Somente 15% disseram já ter vivido tal experiência, e os 2%
restantes não responderam.
140
diz que a pessoa sabia que iria falecer”, comenta um membro que não quis se
identificar ao ser questionado sobre sua motivação. “Ver se tem posts públicos,
saber quem era, o que pensava”, acrescenta outro. “Pra saber como era a vida
daquela pessoa em questão no facebook, olhar fotos, ver mensagens de parentes e
amigos”, informa um terceiro.
Especialmente quando se trata de suicídio, tema de maior interesse para
64% dos participantes, vemos que a mobilização é diferenciada157. “O intuito é
humanizar aquela pessoa e dar valor a toda e qualquer vida. É lamentável ver
pessoas aparentemente felizes cometendo suicídio por exemplo. Você acaba
procurando pistas, sinais”, justifica um participante. “Tento encontrar fotos,
procurar entender os motivos em caso de suicídio, ou apenas ver a rotina da
pessoa”, diz outro.
Suicídios me chamam muito a atenção por achar que as pessoas que comentem tal
ato são tão corajosas e ao mesmo tempo não "conseguem" enfrentar suas vidas, não
expõem seus problemas e assim não buscam ajuda, assim como quem muitas vezes
expõe não é ajudado da maneira correta pela família e amigos. (Membro da PGM).
[...] os compartilhamentos, esses chamam minha atenção pelo fato de tentar saber o
que levou a pessoa ao extremo da dor, que quis tirar a própria vida. Ao meu ver,
em muitos casos, se trata de depressão, então, vejo a pessoa como corajosa, em
muitos outros, foi um ato de loucura em um momento de crise, e vejo a pessoa
como covarde. Julgamentos que não cabem a ninguém, mas que são feitos
involuntariamente pela nossa cabeça. Fico muito preocupada com os parentes do
suicida, e quando este namora, também fico muito preocupada com o(a)
namorado(a). (Membro da PGM).
As mortes por suicídio me impressionam bastante principalmente por pessoas
muito novas. Ao acessar o perfil dessas pessoas podemos ver o quanto a depressão
tem matado nossos jovens e quanto essa doença tem sido ignorada pelo nosso
governo. É preciso mais medidas preventivas e recursos ao combate a depressão e
suicídio. (Membro da PGM).
Em todos os depoimentos, mesmo quando não encontramos menção direta
ao termo curiosidade, fica evidente que há um componente do gênero que
estimula os membros da Profiles de Gente Morta a pesquisar e debater casos de
morte. De fato, aproximadamente 66% dos participantes recorreram ao uso dessa
palavra (curiosidade) para justificar sua motivação em fazer parte da comunidade.
A curiosidade sobre a morte, sobre o morto, sobre a família do falecido, sobre os
157 Os dados da pesquisa de Martins revelam que o suicídio é o tema de maior interesse para 64,2%
dos membros da comunidade.
141
detalhes do falecimento, sobre as manifestações de parentes e amigos, enfim, a
curiosidade dos que desejam conhecer.
Ao serem solicitados a desenvolver um pouco mais a questão da
curiosidade, alguns participantes responderam:
A curiosidade está relacionada em tentar vivenciar os últimos momentos da pessoa,
sobre o que ela gostava, o que ela deixou de fazer, o que ela poderia ter feito. De
recriar o ambiente familiar que a pessoa viveu, imaginar se a vida dela valeu a
pena. Mas tudo se resume ao fato de ''relembrar'' que a vida não é eterna, e
impulsionada pelas coisas que percebemos que as pessoas deixaram durante o
caminho, realizar os nossos objetivos. (Membro da PGM).
Não sei explicar muito bem. A curiosidade em saber quem era a pessoa, seus
gostos, ver suas fotos advém da perspectiva da minha, ou melhor, da nossa
finitude. É estranho olhar a foto de alguém que há até pouco tempo respirava,
sentia... e agora feneceu. Eu me sinto mais 'tocada' em relação a alguém que
conheci, em relação aos desconhecidos a curiosidade não envolve sentimentos.
(Membro da PGM).
Minha curiosidade nasce da necessidade de mostrar a mim mesma todos os dias,
ali, através dos perfis postados o quanto a minha vida pode ser frágil, o quanto
meus planos para amanhã, podem ser interrompidos bruscamente por um acidente
inesperado e fatal, ou uma doença grave e etc... Vem também da minha
necessidade de todos os dias exercitar minha empatia para com o outro, me
solidarizar com as famílias, amigos e até com o (a) próprio falecido. (Membro da
PGM).
Sou uma pessoa que adora observar as coisas. E eu sempre reflito sobre as ações, o
afeto que deve ser presente sempre com as pessoas mais próximas. E hoje em dia
isso está em falta. As pessoas te deixam por coisas inúteis como as redes sociais. E
quando eu entro em determinados perfis de pessoas mortas, é com o intuito de
observar o arrependimento das pessoas, a falta de demonstração de amor enquanto
elas estão vivas. E algumas mensagens chegam a ser dolorosas, mas me fazem
refletir. (Membro da PGM).
Devido à extensa capacidade do Facebook em registrar e cruzar dados de
naturezas diversas, é possível em boa parte das vezes ter acesso a muitas
informações que podem saciar ainda que parcialmente a curiosidade desses
usuários. No limite, sabemos ser impossível conhecer por completo a vida e a
morte de alguém em seus mínimos detalhes. A morte nos chega sempre através de
outrem. Por isso jamais nos é mostrada em sua totalidade – exceto no momento de
nossa própria morte, quando não mais servimos como testemunhas –, segue
inacessível ao conhecimento. A dúvida então permanece, a chama da curiosidade
não se apaga. Talvez isso explique o fato de que 45% dos participantes admitam
permanecer visitando alguns dos perfis de falecidos após a primeira visita. O
142
mosaico de causa e consequência é complexo de se montar, mesmo quando existe
um suporte religioso, místico e transcendental por parte de quem observa158.
Apesar do tema principal da comunidade ser a morte e 68% afirmarem que
acreditam no papel positivo que o Facebook tem no trabalho de luto, quase a
metade dos participantes desconhecia, ao menos até a data da aplicação do
questionário, a existência dos memoriais da rede. Diferentemente dos dados
obtidos em nosso primeiro questionário, onde 63% afirmaram que estiveram
presentes no enterro ou no velório de algum conhecido/a, amigo/a ou familiar com
o qual mantinham contato no Facebook, 71% dos participantes da PGM
responderam que não compareceram presencialmente a qualquer rito fúnebre de
conhecido/a, amigo/a ou familiar nos últimos tempos.
Essa informação nos direciona diretamente para outro tópico que parece
mobilizar a comunidade: os velórios virtuais. Como explicamos no segundo
capítulo, muitas funerárias já transmitem via Internet os velórios realizados em
suas dependências. Esses são links compartilhados pelos próprios integrantes na
linha do tempo da comunidade. Ao menos para 44% dos membros que
responderam o questionário, os velórios virtuais são fonte de prazer e interação
junto a outros usuários. “Gosto de ver os velórios online para ver o quão a pessoa
era em vida. Por exemplo: quantidade de pessoas; quantidade de coroas etc.”,
explica um deles.
Isso na época do Orkut já era uma "diversão" das madrugadas. Eu era mais jovem e
tinha tempo de ficar horas em velórios virtuais [...] Quando eu acompanhava esses
velórios virtuais, acho que a curiosidade era em saber do que a pessoa morreu, a
reação da família, as pessoas ficavam comovidas com falecidos sem
acompanhantes no velório ou com poucas pessoas. Quando era velório de pessoas
novas [...] a comoção era gigante. Acho que tmb [também], pq a maioria das
pessoas que acompanham estes assuntos na internet sejam pessoa mais jovens na
faixa dos 20, 30 anos. (Membro da PGM).
Muitos participantes explicam que gostam de observar a reação das pessoas
presentes no enterro, ver a expressão do falecido no caixão, olhar as
indumentárias e os arranjos de flores que as pessoas deixam. O compartilhamento
de 16 de fevereiro de 2015, um conjunto de links de velórios online reunidos por
158 Aproximadamente 57% dos participantes se julgam religiosos/as, seguem alguma religião ou
dizem ter fé em alguma força superior. Deste total, 34% se dizem católicos, 26%
“espiritualizados”, 15% evangélicos, 14% espíritas, 9% de religiões de matriz africana, e 2% de
outras correntes.
143
um dos moderadores da PGM, mostra de modo inquestionável essa dinâmica. Ao
longo de muitos meses os membros da Profiles se reuniram neste link para
comentar sobre as cerimônias e as capturas de tela feitas dos eventos.
“Olha a diferença do caixão”, comenta uma das integrantes ao olhar para
uma das imagens. “Adoro ver essas fotos”, afirma um dos comentários. “É a coisa
mais estranha que já vi na vida”, reconhece outro membro. “Puxa, a senhora da
sala F tá mal arrumada [emoticon de tristeza]”; “Aqueles velórios vazios... triste”;
“Alguns parecem que estão atolados de flores”. Algumas vezes as conversas vão
além de breves comentários e opiniões, podendo se tornar uma troca de
experiências e informações, como se pode ver na imagem abaixo.
Figura 06 – Conversa entre dois membros da PGM durante um velório virtual.
Figura 07 – Captura de tela de um velório online. Destaque para a informalidade dos comentários.
144
Figura 08 – Membros da PGM disponibilizam informações sobre os velórios.
Figura 09 – Espectadores debatem sobre os detalhes do velório.
145
Figura 10 – A curiosidade sobre a causa mortis movimenta as discussões.
146
Figura 11 – A dinâmica das conversas se intensifica quando determinado comportamento fora do padrão é notado.
147
6.5. Dois casos marcantes
Aproveitaremos este último tópico para apresentar dois casos que marcaram
nossa trajetória de pesquisa, tanto pelo caráter dramático que assumiram quanto
pela maneira como promoveram o uso do Facebook. Em ambos os casos,
pudemos testemunhar cada um dos momentos que serão descritos, fato que os
tornou experiências ainda mais complexas de serem emocionalmente processadas.
Desafios à parte, passemos então às descrições.
6.5.1. Suicídio “assistido”
O suicídio causa um impacto social por apresentar a liberdade disposta em
termos tão radicais – sou livre para viver a minha morte – que coloca em crise não
só o grupo do qual fazia parte o/a suicida. Em nossa pesquisa na PGM deparamo-
nos com a divulgação do caso de um jovem na faixa dos 20 anos que utilizou seu
Facebook para expor seus últimos momentos. As mensagens trocadas por Leon
Jorge e seus amigos deixam evidente o drama vivido nesse tipo de óbito. O que
aos olhos de um psicólogo poderia ser interpretado como um quadro de
perturbação e/ou desordem mental, para a maioria era apenas mais um caso de um
jovem experimentando a montanha-russa de emoções da vida.
Transformado em memorial, a página hoje não mostra as comunidades da
qual o jovem fazia parte; Temple of Lucifer e Satan são algumas delas, mas ainda
é possível ver todo o histórico de conversas e publicações. Em uma de suas
últimas postagens, em 7 de abril de 2015, lê-se uma frase do Zaratustra de
Nietzsche (“Eu vos digo: se deve ter um caos em si, para poder dar à luz a uma
estrela dançante”). Interpretar esses signos como indícios isolados de que as
coisas não iam bem seria irresponsabilidade de nossa parte, mas quando
percebemos o contexto criado com as mensagens que se seguem a partir do dia 13
de abril, a situação é outra.
Leon Jorge: A Fernanda Mendes é uma P***!!!!
Q: Leon, que isso!?
R: Cara isso não se faz...
148
S: Aprenda a resolver as coisas da sua vida sem ter que expor de forma infantil no
facebook. Ainda mais quando se refere a outras pessoas.
T: Calma gente, nêgo deve ter pego o cel. dele... não precisa tacar pedra antes de
saber.
U: Fernanda Mendes ahahahahahahahaha
L.J.: Não gente. É real. A Fernanda me traiu com um guri. Dentro do banheiro. De
uma social na casa do namorado da Tamires. Não tem nada que resolver [...] Ah
cara, se virem, td mundo vai ficar do lado daquela fodida, mas eu já fiz pior,
duvido q a vida dela vai ser a mesma daqui em diante. O q eu fui praquela
desgraçada? [...] Eu quero que vocês façam um rolinho de papel com suas opiniões
e enfiem no c*.
A postagem segue com mais de 40 comentários, muitos deles solicitam que
o jovem fosse um pouco mais sereno e evitasse a agressão, que poderia ter
implicações legais. Reconhecem o momento triste pelo qual Leon está passando,
mas o exortam a “esfriar a cabeça”, argumentando que são coisas de vida, que ele
não deve se deixar abater, e se disponibilizam a conversar com mais calma. Em
contrapartida, alguns poucos passam a estimular o jovem a manifestar sua fúria,
inclusive diretamente no perfil de sua ex-namorada, reforçando seus xingamentos
e opiniões – o post registrou cinco curtidas. O último comentário dessa publicação
parte de uma amiga que simplesmente diz: “Amigo, precisamos conversar”.
Algumas horas depois, Leon volta a se manifestar em sua linha do tempo
com uma nova publicação:
L.J.: Pros curiosos, sim! Eu fui corno. A puta da Flávia Melo (que me bloqueou pq
tem vergonha dos seus atos ridículos) esperou eu ficar mal, bêbado, e chorando pq
NINGUÉM NUMA FESTA INTEIRA, sabia fazer uma conta básica de cálculo, e
quando eu entrei pq estava apertado, ela estava lá no banheiro, CHUPANDO um
filho da p*** q eu nem nunca vi na vida. Querem me julgar de boas (...) , mas eu
tenho problema de pressão e coração e quando eu caí no chão dando um treco,
ninguém quis nem ao menos chamar uma ambulância, inclusive a própria p*** q
ignorou tudo e foi continuar fazendo sei lá o q com o cara dentro do quarto. Eu não
sei se isso é bonitinho pra ela, mas já informei toda a família da puta e vou fazer
questão de ir ter um papo bola com o patrão dela, que afinal é o Deputado (...) Eu
estou todo cheio de hematoma, tomei 2 capsulas de Diazepan 10 MG e nem ao
menos consegui dormir mais de 2 dias. UMA MULHER DESSA, NÃO MERECE
SER CHAMADA DE MULHER, TROÇO, BICHO, NEM MERECE TER UMA
DEFINIÇÃO DE SER SE ALGUÉM AQUI CONHECE, POR FAVOR SAIBA:
EU VOU DESTRUIR A VIDA DELA, COMO SHIVA DESTRÓI UNIVERSOS,
Pq EU, NUNCA trai essa filha da p*** em nenhum segundo da minha vida.
V: Mano, meça suas palavras, isso é papo de cadeia... VC esta denegrindo a
imagem da garota heim [em] caráter mundial... Se ela for cabeça ainda vai usar isso
149
contra VC! Relaxa quem nunca um dia foi corno um dia vai ser! E isso é normal
mano! [...]
X: Bem vindo ao mundo dos cornos assumidos kkkkkkkkkkkkkk
Y: kkkkkkkkk o que o chefe da sua ex namorada tem a ver com a vida sexual de
vocês dois (três, já que teve o outro inserido)? nada. Ele vai rir da sua cara de corno
difamador
X: kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
V: Já deu né rapaziada, quando VC foi corno, ngm [ninguém] fez isso cntg
[contigo] não X, qual foi?
Y: [...] esse post é histeria e ressentimento puro
A publicação registrou oito curtidas, 26 comentários e 113
compartilhamentos. Leon não mais se manifestou nesse post, e o que se seguiu foi
uma discussão entre amigos que se dividiam entre fazer piada da situação ou
chamar o jovem à razão. Um grupo de amigos, visivelmente querendo mostrar ao
jovem que ele não precisava encarar o problema com tanta raiva, combina um
churrasco no fim de semana em Santa Cruz, querendo “comemorar o seu ingresso
nos cornos anônimos/assumidos”. Outra amiga solicita aos demais que “respeitem
a dor do cara”. O último comentário dessa publicação diz: “kkkkkkkk. To vendo
que essa porra vai dar uma merda maior ainda com isso que vcs tão falando, o
Leon Jorge já disse que quer virar a Shiva, com o q vcs tão dizendo o kra vai
querer Shaka pra poder fuder a porra toda... manera galera rsrsrs”159.
Ainda em 13 de abril, Leon volta a publicar outro post agressivo, que ainda
assim teve duas curtidas e 14 compartilhamentos.
L.J.: Gnt [Gente], nada contra a tentativa de vcs me ajudarem, mas sinceramente?
Pas [paz] de c* é r***. Eu quero inferno, morte, e não vem com esse papo de
controle pra cima de mim não q só vai piorar, no dia q eu tiver um quarto de
torturar com uma espécie de burro espanhol e utilizar com toda a calma no c* dessa
vadia podrida [sic] e asquerosa, ai sim, eu terei paz de espírito. Conseguiram matar
o pingo de paz q tinha em mim, agora eu sou o caos, e através do caos eu destruirei
tudo, exatamente tudo o q cruzar o meu caminho. Tchau seus merdas.
Z: Vlw [Valeu] Satanás
A’: Leon quero falar contigo whats [WhatsApp] por favor
159 Shaka é um personagem do desenho animado Cavaleiros do Zodíaco.
150
As publicações silenciam por dois dias. Contudo, em 15 de abril, Leon faz
sua derradeira publicação, antes de se jogar do quinto andar de um prédio. Com
mais 101 compartilhamentos, 42 comentários e sete curtidas (dados atualizados), a
conversa vai se tornando dramática com os insistentes pedidos para que o jovem
não se mate, e na sequência com a constatação da morte.
B’: Leon Jorge Meu irmão, ela não merece o valor da sua vida! Eu te amo... vem
pra casa [emoticon chorando]
C’: Deixa de palhaçada a garota te colocou galhas e vc vai se matar por ela... pois
fiq [fique] sabendo q enquanto vc ta aí ela tá rindo e vivendo a vida dela numa
boa... Pow [Pôxa] cara vc é um cara legal não deixa essa garota te ferrar assim não!
C’: Pow to muito triste por vc ta reagindo dessa forma... cara enquanto a vida for
vida vai ter sempre quem nos decepcione, para de se humilhar.
D’: Sai dessa Leon, se recupere!
E’: Oi Leon, não sei a fundo o q VC esta passando, mas sei q o pouco tempo que
trabalhamos juntos, esse não é o Leon que eu conheci, uma pessoa inteligente,
cheia de planos, super do bem, não se deixe levar por atitudes d pessoas q talvez
não mereça sua consideração, as vezes foi melhor assim, VC que saiu ganhando
pois essa pessoa não te mereça [merecia], ergue sua cabeça e siga seu caminho
garanto que seus amigos estão aqui para te ajudar, bjs.
F’: Gnt ele se jogou da janela do quinto andar e por essa puta, que definitivamente
ñ [não] merece [emoticon chorando]
G’: F’ é vdd [verdade]??? Pelo amor de Deus me responde
C’: Q isso. Sério cara pelamour [pelo amor de Deus] meu amigo. Não brinca não
cara.
H’: Meus Deus [emoticon de surpresa]
I’: Como assim gente?
151
Figura 12 – Última publicação antes do suicídio.
A descrença dos amigos e amigas de Leon é total, e muitos são literais ao
expressarem isso. Além de tudo, chama-nos a atenção o fato de que a maioria dos
amigos que em comentários anteriores brincavam descontraidamente com a
situação, não mais se pronunciaram. Já era tarde para brincadeiras.
6.5.2. Um perfil e um corpo
Evandro Lages era um ambientalista dedicado e um usuário assíduo do
Facebook. Quase que diariamente postava fotos de seus trabalhos em unidades de
conservação Rio afora e de sua outra paixão, o motociclismo. Costumava sair aos
fins de semana juntamente com outros amigos para fazer trilhas de moto em
lugares distantes, verdes, naturais. A prática fazia com que eventualmente
Evandro ficasse alguns dias sem dar sinal de vida. Em 18 de fevereiro de 2016,
após 12 dias sem estabelecer nenhum contato, amigos e parentes estranharam.
“Atenção. Estamos tentando falar com o Evandro Lages, nosso querido amigo
#Evandro há uns 15 dias e não estamos conseguindo nenhum tipo de contato.
Caso você tenha alguma informação, nos comunique. Desde já agradecemos a
colaboração de todos”, escreve um amigo.
152
A publicação de 23 de fevereiro aparece em tom mais preocupante. Uma
foto vem acompanhada do texto abaixo, mas os detalhes da mensagem não são
muito animadores. Além de não fazer contato com qualquer de seus amigos
próximos há mais de duas semanas, Evandro havia deixado seus pertences em
casa.
Figura 13 – A publicação acima teve 212 compartilhamentos no Facebook.
Amigos perguntam se alguém fez algum boletim de ocorrência. Outros
sugerem tentar rastrear as transações bancárias. Às 23h25 do mesmo dia um outro
amigo publica: “Acabei de chegar do IML conferi todas as entradas de indigentes
e identificados desde 06.02.2016 e não o encontrei por fotos. Certo que algo
aconteceu”. Novos compartilhamentos são feitos e a rede de busca se amplia.
Grupos de amigos do meio ambiente e de grupos de motociclismo se mobilizam
para tentar obter informações que pudessem levar ao paradeiro de Evandro. Se ele
saiu no carnaval sem documentos, poderia estar hospitalizado por conta de
ingestão excessiva de álcool, ter perdido a memória ou algo parecido. As
hipóteses são muitas.
Na manhã seguinte, 24/02, a notícia que não nenhum dos envolvidos
gostaria de saber dá fim ao mistério do desaparecimento. Evandro havia caído do
Mirante do Leblon no dia 6 de fevereiro, foi socorrido, mas não resistiu e veio a
falecer na mesa de ressuscitação. Por estar sem documentos, foi encaminhado
diretamente ao Instituto Médico Legal (IML), que após 15 dias tem como
procedimento enterrar os mortos como indigentes. Como a família somente
153
constatou que Evandro tinha dado entrada no IML no dia 24, o prazo já havia se
esgotado e o corpo havia seguido para o cemitério de Santa Cruz. Já que o Estado
pagava pelo enterro, o atestado de óbito havia sido emitido, e toda a burocracia
complementar fora cumprida, a família achou melhor não mais interferir.
Assim, o corpo de Evandro foi enterrado no dia 26 de fevereiro de 2016
numa cova comum, como indigente, sem que nenhum velório ou rito fúnebre
tradicional fosse realizado, sem que nenhum de seus amigos estivesse presente
para celebrar sua existência. De modo geral, as homenagens ficaram restritas ao
perfil de Evandro no Facebook, que acabou se tornando tanto o local de
“peregrinação virtual” para onde os amigos e familiares enlutados se dirigiram,
quanto o meio pelo qual as pessoas se mobilizaram para tentar descobrir seu
paradeiro. O Facebook, afinal, acabou permitindo que redes de solidariedade
fossem formadas em tempo, isto é, antes que o corpo de Evandro desaparecesse
para sempre, absorvido pela terra e pelos procedimentos burocráticos do estado.