5poemas1silêncio - dramaturgiaemnucleo.com.br€¦sem querer um riso sobra, mesmo com os pisões...

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5poemas1silêncio

por

danilo crespo

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marca-passo

de passo em passo, incerteza em incerteza, dou um passo e sem querer, sem saber o que faço já estou fazendo, sem querer fazer sem querer querendo – o ano passa e a incerteza não, e outro passo vem, depois mais cem, e o sentimento cão me alcança como nem eu mesmo me alcanço e eu canso e cansado o meu passo incerto anterior já é passado, agora, nesse passo incerto dou mais um passo, vou longe mas perto, sigo aos trancos, passando apertos, vivendo aberto, e nessa vida sem acertos, te acerto – de passo em passo, passo pela corda bamba da incerteza, mais uma vez, devagarinho, passo de fininho, me equilibro com o rosto no seu coração, passo no posto pego dois latão, e os passos se confundem, tropeço e te peço para vir e você não vem, aí o passo desastrado me passa de volta ao passado tudo por ali, tudo a minha volta,

e um passo a mais solta tubarões no meu pensamento e nas minhas mãos, cimento – não desisto com os nãos, mas sigo a bater a cabeça na parede quando precisava dos seus seios para me equilibrar, sem meios, sem par, meus passos não me tiraram do lugar – mais um passo incerto, numa tentativa de liberdade ciente que isso não existe que minha liberdade jaz num poema triste e aí, então, eu já nem sei se o próximo passo existe mas passo a música e a minha liberdade jazz num passo de dança improvisada no meio da calçada, outros passos, uns dez, e a liberdade dobra, sem querer um riso sobra, mesmo com os pisões nos pés, e já não há mais consciência nem cansaço, acabou-se a metafísica, viva o fim da ciência! caio em mim, sentado estou passado, todos os meus passos foram errados mas sem eles eu não passaria sem eles não haveria amores amados – continuo lentamente e torto, o passo cansado e medroso do morto, naquela mesma corda bamba minha liberdade é samba e minha dor é carnaval; passo mal, mas passar bem, passe comigo, passe sem, pessoa alguma precisa de alguém: penso no amor, passo manteiga no pão e faço dieta em vão: a liberdade que eu habito me encarcera e me cria se ela me chamasse pro forró eu ia,

já nem é mais madrugada e eu vago sem alma, minha carne mal passada, sem cama e sem calma minha resposta é uma dúvida e se eu dou outro passo o mundo anda devagar e renasço ao acordar, no dia seguinte, atrasado e de ressaca, sem liberdade novamente, sem liberdade na minha mente, o passo por vir é incerto certamente e cheio de passos para seguir eu levanto e vou trabalhar.

campo grande

a bola é fácil tacada certa se houvesse espaço se eu pudesse me preparar se fosse um grande salão mas não é, mas não dá, nunca dá, é uma sinuca, sinuca de pilastra. tudo que nos impede atrás da gente, naquela bola fácil — que parece fácil, que deveria ser! que a gente exige que seja fácil, porque quando é difícil não há pilastra nenhuma.

um campo, um campo grande, grande e verde, onde quem corre quer algo sem saber sem se importar o quê: uma certeza sem rumo cujo propósito é existir. com o nascer do sol, o campo estende-se e a tacada já ultrapassa qualquer bar, qualquer fumaça, desilusão: quem corre no campo, corre desesperado incapaz de parar e pensar, querendo o que não está lá; sonhando.

na sinuca de pilastra, minha tacada desajeitada almeja mais que a caçapa, almeja a carne apertada entre os dedos. bato na bola branca para que ela encontre algo algo que eu quero algo que é tão grande que eu nem sei por onde começar.

a bola branca vai rasteira pela madrugada adentro sem pressa, astuta, passa perto, por um triz, a tangente, quase a tangente — a bola vermelha não se mexe, quase não se mexe.

a bola vermelha cai-não-cai, fica lá. passada a chance, a sinuca continua. entre as garrafas de cerveja vazias, nós vivemos momentos memoráveis que não serão lembrados por ninguém. a pilastra continua, todas elas — seguram as estruturas, dificultam tacadas simples. a paz precede o caos, a tensão nos acalma: é preciso se esforçar muito para ser exatamente quem a gente é. mesmo cansados, continuamos. e o sol nascente se aproxima sorrateiramente.

nunca aposte contra o Mar

não há risco na derrota certa

mas nós apostamos mesmo assim

porque não apostar também é perder.

1.

as proas cortam a pele azul ou verde das águas. o Mar apenas se refaz. os navios seguem parcialmente cientes de que águas os carregam de que peixes estão por lá de que outros navios já afundaram ali — às vezes, paz, às vezes, terror, o oceano é real e certo como chão certo como um cemitério. nunca aposte contra o Mar.

2.

como no xadrez, um peão marcha em frente. olha, é tão simples — todo dia, o Mar vem à praia e a espuma das ondas toca os nossos pés com esperança. olha, as correntes — ninguém pode explicá-las; tão simples que não é possível entender. o tempo dizem que resolve mas não resolve, o Mar dizem que quando quebra na praia é bonito, mas o corpo de pescador jogado na praia,

roído de peixe… o que é? lembra que peão só anda para frente não volta. nunca aposte contra o Mar.

3.

não há mais garrafa quando temos apenas estilhaço espalhado pelo chão em meio ao leite derramado. e agora, você pergunta, e agora, depois é um irmão mais velho, cruel sem motivo real, que castiga o presente, e agora, e agora, e agora, sempre. o que você sabe, você sabe e não é possível dessaber. ficar parado requere mais força do que parece — o oceano não cabe numa garrafa, inúmeras garrafas se perdem no oceano. nunca aposte contra o Mar.

4.

olha, é tão simples, mas tão simples. a âncora depende do navio — quanto mais âncoras, quanto mais pesadas, a embarcação ficará mais parada. ficar parado é ilusão. com uma âncora, o navio para e todos descem, com quatro âncoras, o navio para ainda mais

e o petróleo é extraído. ficar parado é movimento: o mundo roda e gira em torno do sol, a espuma navega pela superfície das águas levando esperança e terror; nunca aposte contra o Mar.

5.

a verdade corre dentro do apostador, porque perder uma aposta é o melhor motivo para continuar apostando. por um momento o complexo fica ciente do simples e o louco fica ciente do são mas, às vezes, só nos resta apostar. e, então, para um, todo o mundo era azul; e, então, para o outro, todo o mundo era verde. nunca aposte contra o Mar.

muito além do nosso dilema, há uma grande onda,

não importa se numa praia ou no meio do Mar,

e, então, suas âncoras podem

ter quantas toneladas for, não importará mais:

como minhas palavras, serão apenas um poema

no meio do sal.

cartas e oceanos

quando a gente aprende, se a gente aprende, aprende a aprender que a chuva faz o homem e a fome faz chover; da lama, limonada e do limão, colírio — se é demais, mais nada se ainda falta, põe farinha o que é saudade, aperta e o que é dor, acerta. a sanidade é linha, suave, tênue, lisa, bem longa e fina. a incerteza é brisa. tem seu tempo particular, vem pelas montanhas, passa sobre o Mar, agita, no varal, o lençol, o cobertor, a camisa. mas não deixa de ventar: se deixa, não é mais brisa.

tem gente dos dois lados: a gente que acha que sabe e a gente que acha que não sabe, e estamos sempre errados: a vida se desdobra ao longo do tempo-espaço e, às vezes, o amor sobra, às vezes, ele é escasso: o malabarismo é iminente, só nos falta o nariz de palhaço — o que enviamos nunca chega, ou chega ao contrário: não dá pra tirar a poeira de dentro do armário. as cartas engarrafadas vão pra bem longe, as cartas vão para os oceanos e perdem a razão de ser; assim passam-se anos: é uma pena que os peixes não sabem ler.

nós vamos nos encontrar de novo

eu preciso ser tão bomquanto eu sou. onde ficou minha chama? como é possível sótocar as notas certas? será que os pianistasse arrependem das canções que nunca foram? o remédio amargaenquanto o piano me desfaz (uma portaque não se abre poderia ser uma parede) como se eu fosseum cadarço com o laço mal feito.

o que sentem aqueles que não sentem o medo que eu sinto?

medo, cruel medo;de todos os medos, o medo: meu medo. bill evans cansadoacende um cigarro, fecha os olhos e põe as mãos na cabeça,cansado, entrelaça os dedos. incêndio gentil.a música para, eu paro, cansado como ele. o silênciome deixa só. os silêncios são todos iguais.os silêncios são todos iguais. todos iguais. todos.

o que sentem aqueles que não sentem o medo que eu sinto?

quando volta o piano,cada passo no trajeto dura apenas tempo necessário. a música é o degraue o caminho e nos sustenta mesmo na tristeza de um ré menor. de acorde em acorde,entre a dor e o som, o piano põe a mão no meu ombro. por um momento,eu não tenho medo de confiar em alguém. numa foto,não é possível ver úlceras, vícios ou depressão. quando vejo bill evans,só penso no gênio. na internet, só vejo sorrisos.

o que sentem aqueles que não sentem o medo que eu sinto?

o piano fala comigonuma língua que eu desconheço. eu tento ser o som,ponho as mãos na cabeça mas consigo ser apenas um autêntico eu. as paredes do hospitalnão aprendem nada com o tempo.   bill evans,toda chama que aquece também queima. não estou sozinho.não estou sozinho. não estamos. e eu sei que também morrem de medo aqueles quenão sentem o medo que eu sinto.

quando eu era mais novo, eu achava que sabia mais que todo mundo— todo mundo, exceto meu irmão. eu lembro da areia e do silêncio, quase silêncio: as ondas batendo na praia faziam um estrondo. ainda assim, todo esse som parecia parte do silêncio. como se fosse o próprio silêncio toda vez que houvesse silêncio em qualquer parte; silêncio real, sem nenhum ruído, nada. sempre há na cidade. lá na praia, eram só as ondas batendo. e aquilo me dizia muitas coisas. eu sou forte. eu sou inteligente. era o que a voz me dizia. um coração, talvez. o mar respirando. e, então, eu só acreditava nessas duas coisas, eu achava que só se podia ser forte e inteligente. como se fossem habilidades específicas, como se tudo se resumisse a isso. eram todos fortes e inteligentes. meu pai mais forte, minha mãe mais inteligente, meu irmão, os dois. e eu, nada. quando deitei de olhos fechados, eu senti o mar — sem estar no mar. a areia e o silêncio. às vezes, as ondas me diziam para ficar tranquilo. como se o mar estivesse ali para me proteger. aquele dia, não. raramente o mar ficava tão agitado assim na prainha. aquele dia, o mar me dizia para ter medo. o mar respirando ofegante? olhei ao redor em busca do meu irmão. levantei e fui até a água. o mar estava verde e cheio de espuma. as ondas quebravam há poucos metros dele, depois formavam um lago. a água batia no seu short de tactel. ele não estava interessado em se molhar, em aproveitar a água, nada disso. concentrado, ele observava. ele as estudava. como se tentasse entender. meu irmão sempre tentou entender. as ondas estavam mais altas do que nunca. como se o mar estivesse furioso. meu irmão observava bem de perto. mais atrás, a água tocou gelada no meu pé. pensei em gritar algo mas o silêncio falava mais alto. aproximei mais alguns passos. parei com receio. as ondas estouravam contra a areia. eu sou mais forte que você. eu sou mais forte que todo mundo. toda mulher e todo homem. ao mesmo tempo, isso era só o silêncio. nada mais.