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  • Direito, Estado e Sociedade n.36 p. 102 a 123 jan/jun 2010

    Vestgios: o arquivo, o direito, o perdo e a (im)possibilidade de testemunhar

    Katia Kosick1

    Bruno Lorenzetto2

    1. Alegoria e conceitos gerais

    O primeiro rastro destas reflexes se apresenta de modo alegrico atra-vs da utilizao derridiana de um mito egpcio constante no Fedro de Plato. A alegoria se apresenta como um prospecto para a discusso da problemtica que est no cerne das aes do arquivar e testemunhar em suas ambiguidades de phrmakon, ou seja, remdio e veneno da memria, bem como a relao de poder entre o simples escriba e o rei egpcio. As-sim, de acordo com Derrida, o rebaixamento daquilo que ele entende por escritura3 percebe-se desde o citado mito egpcio, o qual descreve a relao entre o deus Teuth e o e rei Thamous quando o deus apresenta ao rei sua inveno, a escritura: Eis aqui, oh, Rei ..., um conhecimento que ter por efeito tornar os Egpcios mais instrudos e mais aptos para se rememorar: memria e instruo encontraram seu remdio (phrmakon).; ao que o rei responde: Neste momento, eis que em tua qualidade de pai dos caracte-

    1 Professora da Universidade Federal do Paran e da Pontifcia Universidade Catlica do Paran. Email: [email protected].

    2 Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paran. Email: [email protected].

    3 Segundo Derrida: A escritura, meio mnemotcnico, suprimindo a boa memria, a memria espontnea, significa o esquecimento. bem precisamente isso que dizia Plato em Fedro, comparando a escritura fala como a hypomnesis mneme, o auxiliar lembrete memria viva. Esquecimento porque mediao e sada fora de si do logos. Sem a escritura, este permaneceria em si. A escritura a dissimulao da presena na-tural, primeira e imediata do sentido alma no logos. DERRIDA, 1973, p. 45. Sobre o conceito de escritura ver: DUQUE-ESTRADA, 2002.

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    res da escritura, atribuste-lhes, por complacncia para com eles, todo o contrrio de seus verdadeiros efeitos!, o rei acreditava que as almas se tornariam mais esquecidas pois deixariam de exercer a memria, deposi-tando sua confiana no escrito, afirmando que: No , pois, para a mem-ria, mas para a rememorao que tu descobristes um remdio. Thamous, segundo Derrida, no possua qualquer necessidade de escrever, sua fala seria suficiente para exercer sua administrao de rei dos deuses, de tal modo que o papel de um escriba seria apenas secundrio4.

    Relatada a alegoria de tal mito egpcio, fundamental para a reflexo da tenso que perpassa a relao entre o testemunho e o arquivo, passa-se a apresentar os conceitos gerais de tais categorias e suas possveis relaes com o direito. Para tanto, recorre-se s consideraes de Ricoeur quanto qualificao de tais institutos.

    Paul Ricouer expe que o testemunho:

    [...] nos leva, de um salto, das condies formais ao contedo das coisas do passado (praeterita), das condies de possibilidade ao processo efetivo da operao historiogrfica. Com o testemunho inaugura-se um processo epistemolgico que parte da memria declarada, passa pelo arquivo e pelos documentos e termina na prova documental5.

    Existem, inobstante, relevantes distines quanto s finalidades dos testemunhos. No plano historiogrfico um testemunho volta-se para a produo de prova documental pertinente a determinada narrativa. No mbito jurdico o depoimento perante um tribunal vincula-se produo de provas para a elaborao da deciso do magistrado.

    O testemunho possui sua especificidade no fato de que [...] a assero de realidade inseparvel de seu acoplamento com a autodesignao do sujeito que testemunha6, ou seja, a afirmao de ter vivenciado o mo-mento empiricamente por parte da testemunha, atestando sua presena no local de ocorrncia dos fatos.

    Contudo deve-se manter o horizonte aberto para o entendimento de que a autodesignao exposta por Ricoeur ata uma histria pessoal que

    4 DERRIDA, 1997, pp. 21, 22.

    5 RICOEUR, 2007, p. 170.

    6 RICOEUR , 2007, p. 172.

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    est enredada em histrias7, portanto, a impresso subjetiva de um dado acontecimento e sua aleatria representao (seu testemunho) devem ser pr-estabelecidos como discretas contribuies para a tentativa de uma (impossvel) reconstruo do momento experienciado.

    Ainda que o testemunho deva ser limitado sua estrutura inscrita sub-jetivamente na relao entre aquele que testemunha e os fatos experimen-tados, Ricoeur evidencia uma caracterstica implcita na genealogia de toda prtica testemunhal, qual seja, a fidcia:

    [...] a testemunha pede que lhe dem crdito. Ela no se limita a dizer: Eu estava l, ela acrescenta: Acreditem em mim. [...] da confiabilidade, e, portanto, da atestao biogrfica de cada testemunha considerada uma a uma que depende, em ltima instncia, o nvel mdio de segurana de lin-guagem de uma sociedade8.

    Enquanto o testemunho originariamente oral, o arquivo escrito, de um lado a escuta, do outro, a leitura. Outra divergncia emerge quanto aos atos relacionados ao arquivo e ao testemunho: a compleio do arquivo pressupe o arquivamento, momento em que se constitui em uma ruptura no trajeto temporal-historiogrfico; a testis se insere em um continuum da narrativa memria declarativa.

    Segundo Ricoeur o arquivo:

    [...] apresenta-se assim como um lugar fsico que abriga o destino dessa espcie de rastro que cuidadosamente distinguimos do rastro cerebral e do rastro afetivo, a saber, o rastro documental. Mas o arquivo no apenas um lugar fsico, espacial, tambm um lugar social9.

    Trao emblemtico dos arquivos a potencialidade nsita quanto ao registro dos mais variados rastros, que passam a ser inseridos dentro da ruptura temporal da arquivsitca10. H ainda uma abertura (hermenutica),

    7 Idem, p. 173.

    8 Idem, pp. 173, 175.

    9 Idem, p. 177.

    10 Segundo Todorov: Os acontecimentos passados deixam dois tipos de rastros: uns, chamados mnsicos, na mente dos seres humanos; os outros no mundo, sob a forma de fatos materiais: uma marca, um vestgio, uma carta, um decreto (as palavras tambm so fatos). TODOROV, 2002, p. 142.

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    a priori, da escrita arquivada, o documento do arquivo no possui destina-trio certo, h uma orfandade11 dos registros legados no arquivo ao passo que o testemunho oral no possui muito sentido se desvinculado de um interlocutor que recepcione a mensagem.

    2. Arquivo, testemunho e dispositivo

    Pensar nos conceitos de arquivo e testemunho ou na ao do arquiva-mento ou do testemunhar possibilita uma aproximao da leitura filosfica de Agamben de O que um dispositivo. Na trilha do pensamento fou-caultiano, Agamben trata da questo hegeliana da positividade, ou seja, o elemento histrico, permeado por suas regras, ritos e instituies impostas aos indivduos por um poder exterior, mas que, contudo, se interioriza nas crenas e nos sentimentos.

    Em sequencia, aduz como tal conceito (positividade) passa a fazer par-te do pensamento de Foucault, ante a importncia central que o elemento histrico amarra [...] o conjunto das instituies, dos processos de sub-jetivao e das regras em que se concretizam as relaes de poder., anali-sando como [...] as positividades (ou os dispositivos) atuam nas relaes, nos mecanismos e nos jogos de poder12.

    A positividade de um discurso, segundo Foucault, caracteriza sua uni-dade atravs do tempo e para alm das obras individuais, dos livros e dos textos, pois demarca um espao limitado de comunicao. Alm disso, desempenha o papel de um a priori histrico, ... um a priori que no seria condio de validade para juzos, mas condio de realidade para enunciados13, o qual evidencia o fato de o discurso no possuir um senti-do unvoco ou uma verdade singular.

    Aproxima-se, ento, ao particular conceito de arquivo postulado por Foucault. Para o filsofo:

    So todos esses sistemas de enunciados (acontecimentos de um lado, coisas de outro) que proponho chamar de arquivo. [...] O arquivo , de incio, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como

    11 RICOEUR, 2007, p. 179.

    12 AGAMBEN, 2005, p. 11.

    13 FOUCAULT, 2007, p. 144.

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    acontecimentos singulares. Mas o arquivo , tambm, o que faz com que todas as coisas ditas no se acumulem indefinidamente em uma massa amorfa, no se inscrevam, tampouco, em uma linearidade sem ruptura e no desapaream ao simples acaso de acidentes externos, mas que se agrupem em figuras dis-tintas, se componham umas com as outras segundo relaes mltiplas, se man-tenham ou se esfumem segundo regularidades especficas; [...]14.

    O papel do arquivo para Foucault no o de registro e conservao dos discursos, dos textos que determinada cultura entende como valiosos ou constitutivos de sua identidade histrica. Cabe ao arquivo foucaultiano a diferenciao dos discursos e a especificao destes em suas duraes singulares. Assim, o arquivo define uma prtica que faz surgir uma multi-plicidade de enunciados e, por isso: ... entre a tradio e o esquecimento, ele faz com que apaream as regras de uma prtica que permite aos enun-ciados subsistirem e, ao mesmo tempo, se modificarem regularmente. o sistema geral da formao e da transformao dos enunciados15.

    Contudo, Foucault explica que no possvel realizar a descrio do prprio arquivo, j que no interior de suas prprias regras que uma fala se produz, ou seja, o prprio arquivo consiste em um objeto de discurso, ele concede as condies de possibilidade para o dizer.

    Por esse motivo, a descrio do arquivo se inicia com a exterioridade lingstica, ... seu limiar de existncia instaurado pelo corte que nos separa do que no podemos mais dizer e do que fica fora da nossa prtica discursiva... 16. Percebe-se uma sutil aporia nas reflexes foucaultianas so-bre o discurso, na qual o arquivo ao sistematizar os enunciados, no pode se enunciar, havendo, portanto, uma revelao, sem fim, inalcanvel do arquivo, que forma o exame das positividades e a delimitao do campo enunciativo. Neste plano funda-se a categoria central da perspectiva hist-rica foucaultiana, a arqueologia, a qual tem por tarefa a descrio dos dis-cursos como prticas especficas na arena do arquivo. Expe Foucault que:

    Se situo a arqueologia entre tantos outros discursos que j esto constitudos no para fazer com que se beneficie, como quer por contigidade e con-tgio, de um status que ela no seria capaz de dar a si mesma; no para

    14 Idem, pp. 146-147.

    15 Idem, pp. 147-148.

    16 Idem, p. 148.

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    dar-lhe um lugar definitivamente delineado em uma constelao imvel; mas para revelar, com o arquivo, as formaes discursivas, as positividades, os enunciados e suas condies de formao, um domnio especfico que no constitui, ainda, objeto de nenhuma anlise [...]17.

    Retomando a perspectiva de Agamben, uma linha referencial dos dis-positivos pode ser traada em paralelo com as seguintes ideias: positividade de Hegel; Gestell, na qual o stellen refere-se a pr, colocar mas tambm aparato, de Heidegger; dispositio da teologia, que assume a esfera semntica da oikonomia divina; e ainda (e principalmente) aos dispositivos de Foucault.

    O referencial comum desses conceitos, segundo Agamben, a presena de uma oikonomia, ou seja: [...] um conjunto de prxis, saberes, de me-didas, de instituies cujo objetivo de administrar, governar, controlar e orientar, em um sentido em que se supe til, os comportamentos, os gestos e os pensamentos dos homens18.

    Agamben expe que, em linhas gerais, o conceito de dispositivo envolve:No somente, portanto, as prises, os manicmios, o panptico, as escolas, as confisses, as fbricas, as disciplinas, as medidas judicirias etc., cuja co-nexo com o poder em um certo sentido evidente, mas tambm a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegao, os computadores, os telefones celulares e porque no a linguagem mesma, que talvez o mais antigo dos dispositivos, em que h milhares e milhares de anos um primata provavelmente sem dar-se conta das consequncias que se seguiriam teve a inconscincia de se deixar capturar19.

    Como os gestos (em sentido genrico) do arquivar e testemunhar pres-supe uma linguagem, estas instituies, ainda que no tenham sido arro-ladas explicitamente por Agamben em sua exposio dos tipos de disposi-tivos podem, sem maiores digresses, serem includas ou derivadas da lista no exaustiva daquelas coisas que tenham de algum modo a capacidade de: ... capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegu-rar os gestos, as condutas, as opinies e os discursos dos seres viventes20.

    17 Idem, p. 232.

    18 AGAMBEN, 2005, p. 12.

    19 Idem, p. 13.

    20 Idem.

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    Um exame atento categoria do dispositivo evidencia, nesse sentido, a dupla estratgia entronizante e pragmatista que o circunda, motivos e va-riaes que estratificam o testemunho e o arquivo como importantes dispo-sitios dos poderes, pois, o dispositivo possui necessariamente uma funo estratgica concreta e sempre est inscrito em uma relao de poder.

    Ao reafirma-se, ento, uma reflexo sobre a captura realizada pelos dis-positivos e, como tais so aparatos nsitos governabilidade, segue-se pelas sendas de tal fenmeno aberto e complexo, relacionando-o ainda a este uma outra figura, a Arkh, que traz em seu bojo tanto um a priori, quanto um imperativo, caractersticas que possibilitam um reencontro com a oikonomia.

    3. Arkheon e democracia

    De acordo com a explicao de Derrida, Arkh, refere-se, ao mesmo tempo, a comeo e a comando. O arquivo do termo arquivo condensa dois princpios: o princpio natural ou histrico, o lugar onde as coisas come-am, mas tambm o princpio da lei em que os homens e deuses coman-dam, exercem sua autoridade, o lugar a partir do qual emana-se a ordem21.

    Arkheon designa uma casa, um domiclio, um endereo, a residncia dos magistrados superiores de Atenas: os arcontes, aqueles que comanda-vam. Segundo Derrida, aos cidados que possuam o poder poltico reco-nhecia-se o direito de fazer ou de representar a lei. Face autoridade dos polticos, publicamente reconhecida, era nos lares deles que se deposita-vam os documentos oficiais e, os arcontes foram seus primeiros guardies22.

    Aos arcontes no cabia apenas a segurana fsica dos documentos deposi-tados, era-lhes atribuda a competncia e o direito de hermeneutas, possuindo, portanto, o poder de exegese dos documentos arquivados. Depositados sob a guarda, material e cognitiva, dos arcontes os documentos do arquivo diziam a lei, nos termos de Derrida: [...] eles evocavam a lei e convocavam lei23.

    O estabelecimento de um domiclio, uma morada para os documentos marca a transio ocorrida no seio institucional do privado ao pblico. O arquivo habita um lugar particular, mas isto no o suficiente, requer-se um poder arcntico, que concentre as funes de unificao, identificao e classificao com um poder de consignao. Para Derrida:

    21 DERRIDA, 2001, p. 11.

    22 Idem, p. 12.

    23 Idem, p. 13.

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    A consignao tende a coordenar um nico corpus em um sistema ou uma sincronia na qual todos os elementos articulam a unidade de uma confi-gurao ideal. Num arquivo, no deve haver dissociao absoluta, hetero-geneidade ou segredo que viesse a separar (secernere), compartimentar de modo absoluto. O princpio arcntico do arquivo tambm um princpio de consignao, isto , de reunio24.

    Nesse sentido, entende-se que no suficiente a mera tarefa tcnica organizativa da biblioteconomia, um registro burocrtico que pode ser exercido por uma mquina. Conforme a interpretao derridiana de Ali-cia Duh Lose, quem trabalha em um arquivo sofre do Mal de arquivo, pois no processo cotidiano de classificao, seleo e escolha, necessrios para a consolidao de um arquivo, h uma imposio de uma pers-pectiva, uma hierarquia, que reflete em recortes e censuras sob o signo freudiano do recalque, as quais ocorrem de modo pessoal e parcialmente consciente. Segundo Lose: [...] assim como no h memria sem supor-te, tambm no h arquivo sem arconte e sem recalques. No h arquivo sem mal de arquivo25.

    Deve-se, portanto, elevar a pertinncia poltica da memria arquivada, uma poltica do arquivo, ante seu preponderante papel de determinao da poltica como res publica. Isso espelha o fundamento sobre o qual Derrida afirma enfaticamente: A democratizao efetiva se mede sempre por este critrio essencial: a participao e o acesso ao arquivo, sua constituio e sua interpretao26. Eis o motivo pelo qual a interdio (ou censura) ao acesso dos arquivos expressa uma grande ofensa democracia, pois, a impossibilidade de acesso aos registros (recalque), o embargo herme-nutico que pode ser proferido verticalmente por um Estado, espreita as prticas ditatoriais.

    Atrelada seara jurdica, a Arkheon pode ser compreendida, conside-rando-se a consignao e o poder arcntico de Derrida, como ancestrais da positivao e da hermenutica, pois no era outra a tarefa realizada pelos magistrados superiores de Atenas, ainda que as diferenas histricas e cul-turais devam ser consideradas nesta transposio27. A positivao guarda a

    24 Idem, p. 14.

    25 LOSE, 2010.

    26 DERRIDA, 2001, p. 16.

    27 No h nesta transposio qualquer tentativa subliminar em tentar construir um modelo histrico

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    mesma funo da consignao, na qual se busca, idealmente, uma reunio (de documentos ou de leis) pautada pela unicidade e coerncia. A interpre-tao dos arquivos atribuda aos arcontes no duplo papel de evocar e convo-car lei, tambm no se distancia do papel cumprido hodiernamente pelos magistrados e sua relao com a legislao na produo jurisprudencial.

    Cabe lembrar que uma relao simplista com o arquivo, que no atenta para a possibilidade do Mal dArchive, se formou na corrente do positivis-mo histrico, segundo a qual os documentos (fonte crucial e possivelmen-te unvoca) e a histria dos fatos, dos vencedores, eram as caractersticas fundamentais. Hodiernamente, aps as crticas feitas a essa leitura histri-ca28, aparenta no haver oxignio suficiente para a realizao de uma hist-ria em tais moldes, com sustentculos fundados apenas nas fontes oficiais.

    No foi outra a razo (instrumental) que pautou a verticalizao do po-der na formulao e administrao dos arquivos e documentos, no recente passado histrico brasileiro, que experimentou as cinzas da unidimensio-nalidade ditatorial29 dos longos anos (1964-1985) em que o silncio e a disciplina impuseram-se sobre a democracia.

    Resqucios da ditadura no Brasil, poca da ignorncia e da arbitrarie-dade, podem ser constatados ante a existncia do importante instrumento constitucional o Habeas Data30, ainda que sua utilizao prtica no seja expressiva, apresenta-se na Constituio de 1988, simbolicamente como possvel redimensionador da relao do Estado com seus cidados, ao me-nos no que tange produo de arquivos que se relacionem a estes.

    transcendental, pelo contrrio, utilizam-se tais figuras como fenmenos histricos propositivos para questes que sero desenvolvidas no artigo.

    28 Importante crtica ao positivismo histrico foi realizada pela Escola dos Annales ou Histria Nova, sobre a questo disserta Le Goff: A histria nova ampliou o campo do documento histrico; ela substituiu a histria de Langlois e Seignobos, fundada essencialmente nos textos, no documento escrito, por uma histria baseada numa multiplicidade de documentos: escritos de todos os tipos, documentos figurados, produtos de escavaes arqueolgicas, documentos orais, etc. Uma estatstica, uma curva de preos, uma fotografia, um filme, ou, para um passado mais distante, um plen fssil, uma ferramenta, um ex-voto so, para a histria nova, documentos de primeira ordem (LE GOFF, 2005, pp. 36-37).

    29 Sociedade que busca se afirmar na racionalidade instrumental e na ausncia de oposies.

    30 Sobre o instituto jurdico expe Jos Afonso da Silva: O habeas data (art. 5, LXXII) um remdio constitucional que tem por objeto proteger a esfera ntima dos indivduos contra: (a) usos abusivos de registros de dados pessoais coletados por meios fraudulentos, desleais ou ilcitos; (b) introduo nesses registros de dados sensveis (assim chamados os de origem racial, opinio poltica, filosfica ou religiosa, filiao partidria e sindical, orientao sexual, etc.); (c) conservao de dados falsos ou com fins diversos dos autorizados em lei. SILVA, 2007, p. 453.

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    Nos pases democrticos, uma das liberdades fundamentais consiste na possibilidade de acesso ao passado sem um controle centralizador, em consonncia com o instituto do Habeas Data, a Constituio alberga, no rol de seus direitos e garantias fundamentais, o direito de todos a receberem dos rgos pblicos informaes de seu interesse particular, no artigo 5 XXXIII.

    Tais institutos, em termos gerais, abrem o caminho para duas frentes: o conhecimento de um passado histrico inglrio podendo transformar segredos de Estado em vergonhas do Estado; e a cristalizao legal ante um (dentre vrios) dos marcantes apelos e testemunhos daqueles que almejam um perene Nunca Mais31.

    4. A supresso dos vestgios, ou a (im)possibilidade do testemunho

    Todorov em suas Indagaes sobre o sculo XX reflete sobre a ques-to das ditaduras arrazoando que: Os regimes totalitrios do sculo XX revelaram a existncia de um perigo antes insuspeitado: o de um dom-nio completo sobre a memria. No que, no passado, se desconhecesse a destruio sistemtica dos documentos e dos monumentos, o que um modo brutal de orientar a memria de toda a sociedade32. A prtica sem precedentes dos regimes totalitrios no consistiu na destruio de acer-vos oficiais da memria, pois isso acontecia quase sempre na tentativa de imposio de uma cultura sobre outra, resistindo, remanescendo, formas distintas de memria, inscritas nas runas ou nas lnguas33. A novidade dos totalitarismos tem seu fulcro na compreenso do potencial estratgico da informao e da comunicao e na tentativa direcionada de eliminao dos vestgios do passado.

    A supresso dos vestgios enquanto prtica biopoltica pde ser obser-vada em 1942 quando os nazistas passaram a desenterrar cadveres para

    31 ARNS, 1985.

    32 TODOROV, 2002, p. 135.

    33 Para exemplos recentes da prtica destrutiva da memria de outras civilizaes veja-se o caso da des-truio das esttuas de Buda no Afeganisto pelos Talebs, bem como a destruio de museus no Iraque com a invaso dos EUA. Segundo Jaaber Jelil Ibrahim, diretor-geral do patrimnio de antiguidades no Iraque: Protegeram o Ministrio do Petrleo, mas no o museu. Esqueceram-se totalmente da memria deste pas. Fontes: . Acessados em: 01/06/2010.

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    inciner-los e pretensamente apag-los da histria, transformando-os na fumaa cinzenta que era expelida pelos campos de extermnio. Do mesmo modo o apagar das evidncias se deu com a grande queima de arquivos pelos nazistas quando perceberam a iminncia da derrota.

    Em outro sentido, aponta Todorov: Os regimes comunistas no tm esse cuidado, j que se acreditam instalados pela eternidade; os espaos do Grande Norte, na URSS, acolhem incontveis sepulturas34. Contudo, parece que a diferena neste caso tnue, pois no seria o III Reich um governo que duraria mil anos?

    Sobre o apagamento dos vestgios simblico o trecho descrito por Primo Levi:

    [...] muitos sobreviventes (entre outros, Simon Wiesenthal, nas ltimas p-ginas de Gli assassini sono fra noi, Milo, Garzanti, 1970) recordam que os SS se divertiam avisando cinicamente os prisioneiros: Seja qual for o fim desta guerra, a guerra contra vocs ns ganhamos; ningum restar para dar tes-temunho, mas, mesmo que algum escape, o mundo no lhe dar crdito. Talvez haja suspeitas, discusses, investigaes de historiadores, mas no haver certezas, porque destruiremos as provas junto com vocs. E ainda que fiquem algumas provas e sobreviva algum, as pessoas diro que os fatos narrados so to monstruosos que no merecem confiana: diro que so exageros da propaganda aliada e acreditaro em ns, que negaremos tudo, e no em vocs. Ns que ditaremos a histria dos Lager campos de concentrao35.

    A afirmao dos SS coloca em questo a (im)possibilidade do testemu-nho. Pois, enquanto o silncio abriga a corroborao da tese nazista, o tes-temunho, aps Auschwitz, no pode possuir mais uma feio de um sim-ples narrar descompromissado. Enfrenta-se, portanto, um paradoxo que envolve uma narrao (im)possvel atrelada a um silncio (im)possvel.

    A experincia extrema que deve ser transmitida fora o silncio, uma objeo memria, um no querer contar to (in)digno quanto o prprio escutar. Ricouer entende que a dificuldade da escuta testemunhal dos sobreviventes dos campos de extermnio [...] constitui talvez o mais in-

    34 TODOROV, 2002, p. 136.

    35 LEVI, 2004, p. 9.

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    quietante questionamento da tranquilizadora coeso do pretenso mundo comum do sentido. Trata-se de testemunhos extraordinrios, no sentido em que excedam a capacidade de compreenso ordinria [...]36.

    Fala-se ento de uma crise do testemunho, ante sua extraordinariedade narrativa. Nesse movimento, pem-se prova os limites da inscrio e do arquivamento. A dificuldade na transmisso consiste no fato de que a teste-munha no acompanhou os acontecimentos como terceira, ela vivenciou-os (so superstes)37.

    De acordo com a anlise filolgica de Agamben, h em latim dois ter-mos para a designao de testemunha: testis e superstes. O primeiro refere-se quele que se coloca como terceiro em um processo ou litgio entre duas partes. Em sintonia com tal acepo Ricoeur expe que: . Benveniste observa em Le Vocabulaire des institutions indo-europennes (...) que no direi-to romano a palavra testis, derivada de tertius, designa as pessoas terceiras encarregadas de assistir a um contrato oral e habilitadas a autenticar essa transao38. O segundo representa aquele que experimentou os eventos e que por isso pode narrar os fatos. Superstes trata, portanto, daquele que sobreviveu (como Primo Levi) e que, destarte, poderia (tentar) relatar aos outros sua vivncia39.

    Uma terceira figura sobre a qual versa Agamben o auctor, o qual, em outro sentido, se caracteriza como testemunha por lhe recarem pressupos-tos exteriores, pr-existentes, pois seu relato no possui a fora ou a legiti-midade necessria a um testemunho, de modo que carece de convalidao ou certificao. Neste sentido: O testemunho sempre , pois, um ato de autor, implicando sempre uma dualidade essencial, em que so integra-das e passam a valer uma insuficincia ou uma incapacidade40.

    A necessidade de convalidao do testemunho, ao perpassada pela marca do auctor, no corrobora uma absoluta impossibilidade de dizer ou compreender Auschwitz e, em tom profundamente crtico o filsofo italia-no disserta:

    36 RICOEUR, 2007, pp. 175-176.

    37 Sobre a questo Ricoeur disserta: E ns escrevemos aqui sobre a enunciao da impossibilidade de comunicar e sobe o imperativo impossvel de testemunhar de que, contudo, eles do testemunho.. RI-COEUR, 2007, p. 187.

    38 Idem, p. 173.

    39 AGAMBEN, 2008, pp. 27, 150.

    40 Idem, p. 150.

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    Dizer que Auschwitz indizvel ou incompreensvel equivale a eu-phemein, a ador-lo em silncio, como se faz com um deus; significa, por-tanto, independente das intenes que algum tenha, contribuir para sua glria. Ns, pelo contrrio, no nos envergonhamos de manter fixo o olhar no inenarrvel. Mesmo ao preo de descobrirmos que aquilo que o mal sabe de si, encontramo-lo facilmente tambm em ns41.

    O testemunho sempre traz, contudo, uma lacuna, uma pedra fundado-ra de um no-lugar estabelecido pela lingustica moderna, o abismo entre a lngua e o discurso. O testemunho parece, em certo sentido, exteriorizar-se neste vo, na ciso muda entre lngua e discurso, como refere Agamben: O sujeito da enunciao feito integralmente do discurso e por meio do discurso, mas, exatamente por isso, no discurso, no pode dizer nada, no pode falar42.

    O sujeito do testemunho experincia um paroxismo em seu duplo sen-tido, tanto no seu aspecto doentio mrbido, do no humano; quanto na sua parte voltada para a exaltao mxima dos sentimentos, da sua relao sensvel com o mundo, do humano. Encaminha-se, de tal modo, para mais uma antinomia, na qual os afogados tm muito a dizer, mas no podem fa-lar, ao passo que aos sobreviventes, aqueles que podem falar, no possuem nada de importante a dizer. Nos termos de Agamben:

    Tudo isso tambm pode ser expresso dizendo que sujeito do testemunho quem d testemunho de uma dessubjetivao, contanto que no se esquea que dar testemunho de uma dessubjetivao s pode significar que no existe, em sentido prprio, um sujeito do testemunho (repito, no somo ns [...] as verdadeiras testemunhas), que todo testemunho um processo ou um campo de foras percorrido sem cessar por correntes de subjeti-vao e de dessubjetivao43.

    As verdadeiras testemunhas, as testemunhas integrais so aqueles que perderam a capacidade de observar, recordar, medir, se expressar, (... nin-gum restar para dar testemunho...), pessoas para as quais falar de dig-

    41 Idem, p. 42.

    42 Idem, p. 121.

    43 Idem, p. 124.

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    nidade e decncia no seria cabvel. A aporia tica de Auschwitz apontada por Agamben se encontra na perplexa constatao diante da qual Aus-chwitz: o lugar onde no decente continuar sendo decente ...44.

    A disputa entre a manuteno da prpria vida dos prisioneiros e a tica marca um profundo corte tal como o ingresso da zo na plis, a politizao da vida nua ou ainda como a prtica na qual o poder penetra (e viola) o corpo de seus sujeitos45. Pois a escolha possvel aos prisioneiros era entre a tica, continuarem dignos, ou a sobrevivncia, continuarem sujeitos. Abala-se, com isso, um dos pilares do Aufklrung:

    [...] Auschwitz marca o fim e a runa de qualquer tica da dignidade e da adequao a uma norma. A vida nua, a que o homem foi reduzido, no exige nem se adapta a nada: ela prpria a nica norma, absolutamente imanente. E o sentimento ltimo de pertencimento espcie no pode ser, em nenhum caso, uma dignidade46.

    A vida nua que desafia qualquer dignidade relatada por Agamben na no-humanidade dos muulmanos47. Um grupo de pessoas no campo de concentrao que, por seu estado fsico extremamente debilitado pareciam rabes em orao. Em sua indefinio entre humano e no-humano (bos e zo), o muulmano fica no limiar do dilogo entre vida vegetativa e vida rela-cional, fisiologia e tica, medicina e poltica, vida e morte, ele transita por tais categorias as quais parecem no apresentar uma soluo de continuidade48.

    Assim como h um vcuo entre fala e discurso, o lugar do humano est cindido, pois este se ancora entre o ser que vive e o ser que fala (logos), entre o no-humano e o humano. Este deslocamento (do humano) o terreno do muulmano, pois este o verdadeiramente humano, a testemunha integral, o afogado. Contudo , ao mesmo tempo, no-humano, aquele cuja humani-dade foi destroada, aquele com que se identifica (como humano) quase que apenas por circunstncias fisiolgicas. Sobre a questo Agamben arrazoa que:

    44 Idem, p. 67.

    45 Idem, pp. 12-13.

    46 Idem, p. 76.

    47 Segundo Gagnebin: A etimologia dessa expresso muulmano obscura; da minha parte no consigo no ouvir, em todas laboriosas explicaes, como que uma certa desforra de carter racista na boca das vtimas do anti-semitismo. GAGNEBIN, In: AGAMBEN, 2008, p. 13.

    48 AGAMBEN, 2008, p. 56.

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    O paradoxo reside, neste caso, no fato de que se realmente der testemunho do humano s aquele cuja humanidade foi destruda, isso significa que a identidade entre homem e no-homem nunca perfeita, e que no poss-vel destruir integralmente o humano, que algo sempre resta. A testemunha esse resto49.

    O peculiar conceito de resto de Agamben refere-se a um ncleo teol-gico e messinico. O resto indica (mais uma vez) o vo, o vcuo, a lacuna que funda a lngua do testemunho em oposio a pretenses de classificao exaurientes do processo de arquivamento. Forma-se uma coincidncia, na conceitualizao do resto, entre as aporias do testemunho e a messinica.

    5. Apokatastasis ou Restitutio in pristinum statum

    O tempo messinico no se refere mais (nem poderia tent-lo) ao tempo histrico, muito menos eternidade, sua (des)localizao est na separao que os divide. O mesmo procede quanto ao testemunho aps Auschwitz, as testemunhas no so nem os mortos, nem os sobreviven-tes, nem os submersos, nem os que se salvaram, mas aquilo que restou entre eles. Por isso que, no final, [...] o resto apresenta-se como uma mquina soteriolgica que permite a salvao daquele todo, cuja divi-so e cuja perda havia assinalado50, ou seja, uma possibilidade de uma apokatastasis, a recoleco de todas as almas no Paraso, segundo a leitura de Walter Benjamin51.

    Tal figura teolgica est diretamente relacionada com conceitos impor-tantes do pensamento benjaminiano. O narrador e os fragmentos. Em uma possvel unificao de tais categorias de modo que o narrador cumpre o papel de um chiffonnier, o catador de detritos ou de restos, que tem por funo resgatar tudo aquilo que deixado de lado, o lixo, as coisas insigni-ficantes52. Ao narrador e ao historiador cumpre a tarefa de uma transmis-so a contrapelo da do discurso histrico, dizer o que a tradio, oficial ou dominante, no recorda ou no quer recordar.

    49 Idem, p. 136.

    50 Idem, p. 162.

    51 Sobre a questo ver: GAGNEBIN, 2006, p. 54.

    52 Idem.

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    Nas sendas de tal reflexo que Gagnebin lana mo dos relatos de H-lne Piralian e Janine Altounian, descendentes de sobreviventes do geno-cdio armnio, provavelmente o primeiro genocdio em moldes modernos. A grande dificuldade estaria, no caso, na falta de lembrana e reconheci-mento pela comunidade internacional, dificultando o luto de tais pessoas.

    A proposta de Gagnebin, portanto, seria o restabelecimento de um es-pao simblico, onde se possa abrir o discurso para o terceiro, ou seja, aquelas pessoas que no participaram do par mortfero algoz-vtima. Nesse sentido:

    [...] uma ampliao do conceito de testemunha se torna necessria; teste-munha no seria somente aquele que viu com seus prprios olhos, o histor de Herdoto, a testemunha direta. Testemunha tambm seria aquele que no vai embora, que consegue ouvir a narrao insuportvel do outro e que aceita que suas palavras levem adiante, como num revezamento, a histria do outro [...]53.

    Tal proposta tem como fundo no a expiao de uma culpa ou o exer-ccio, muitas vezes egostico, de compaixo, mas a necessidade de uma transmisso simblica, necessria para uma retomada reflexiva do passa-do, que abriria uma porta de sada para um outro presente talvez um Jet-ztzeit, (tempo do agora), revolucionrio e messinico de Walter Benjamin.

    Uma segunda proposta pode ser relacionada, ainda que de modo indi-reto, com a ampliao do conceito de testemunha. Refere-se profanao, figura proveniente da esfera do direito e da religio romana, interpretada na interessante tessitura de Giorgio Agamben. Tal estratgia se encontra na raiz de uma possvel mudana da relao dos sujeitos com os dispositivos.

    Sobre os dispositivos importante remarcar que eles implicam neces-sariamente um processo de subjetivao, sem o qual no podem funcionar como dispositivo de governo, reduzindo-se a mero exerccio de violncia, por isso: O dispositivo , na realidade, antes de tudo, uma mquina que produz subjetivaes, e s enquanto tal uma mquina de governo54.

    Contudo, de acordo com o filsofo italiano, os processos de subjetiva-o e de dessubjetivao parecem reciprocamente indiferentes no possi-

    53 Idem, p. 57.

    54 AGAMBEN, 2005, p. 15.

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    bilitando que seja restaurado um novo sujeito, que seria o resultado almeja-do por tais processos. As sociedades contemporneas viveriam, portanto, como corpos inertes que so perpassados por processos de dessubjetivao no relacionada com qualquer subjetivao real. E em sintonia com tais questes, Agamben compreende que:

    Enquanto a nova normativa europia impe assim a todos os cidados aqueles dispositivos biomtricos que desenvolvem e aperfeioam as tecno-logias antropomtricas (das impresses digitais fotografia sinaltica) que foram inventadas no sculo XIX para a identificao dos criminosos reinci-dentes, a vigilncia atravs da vdeo-cmara transforma os espaos pblicos das cidades em reas internas de uma imensa priso. Aos olhos da auto-ridade e talvez esta tenha razo nada se assemelha melhor ao terrorista do que o homem comum55.

    Formam-se, consequentemente, medidas de governo com dispositivos tecnolgicos que aprisionam os sujeitos das mais diversas formas. O homem comum, mais do que nunca, pode ter algum documento ou arquivo no sentido vasto de que se pode imaginar a produo de arquivos digitais, de cmeras fotogrficas ou de filmadoras, por exemplo que realize mais uma captura de sua subjetividade sem qualquer aviso prvio.

    A alternativa para os dispositivos segundo Agamben est na prtica da profanao. Lembra o filsofo, que os juristas romanos conheciam muito bem o significado da profanao, pois, sagradas ou religiosas eram as coisas pertencentes aos deuses. Por esta qualidade, elas eram subtra-das ao livre uso e ao comrcio dos homens. Cometia-se, portanto um sacrilgio ao violar essa condio especial, indisponvel, dos bens per-tencentes aos deuses.

    Assim, se o ato de consagrao remetia-se retirada das coisas da esfera do direito humano, colocao em um altar, por exemplo, quando um bem virava motivo de adorao, a profanao significava a restituio que era realizada das coisas sacras esfera humana, uma devoluo realizada ao uso e propriedade dos homens56.

    Profanar para Agamben no implica uma simples abolio das separa-es (como a do humano e do no humano), mas com um aprendizado

    55 Idem.

    56 AGAMBEN, 2007, p. 65.

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    que re-signifique o papel no mundo da separao, um novo uso, uma brin-cadeira. Coadunando com tal tarefa, importante se faz expor a reflexo de Walter Benjamin sobre Livros infantis velhos e esquecidos:

    que as crianas so especialmente inclinadas a buscarem todo local de tra-balho onde a atuao sobre as coisas se processa de maneira visvel. Sentem-se irresistivelmente atradas pelos detritos que se originam da construo, do trabalho no jardim ou na marcenaria, da atividade do alfaiate ou onde quer que seja. Nesses produtos residuais elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta para elas, e somente para elas. Neles, esto menos empenhadas em reproduzir as obras dos adultos do que em estabelecer uma relao nova e incoerente entre esses restos e materiais residuais. Com isso as crianas formam o seu prprio mundo de coisas, um pequeno mundo inserido no grande57.

    Alude-se, enfim, a um comportamento libertado, que ainda guarda cer-tas caractersticas de seu modelo anterior, mas agora com um novo signifi-cado, quanto ao seu sentido e sua relao com o mundo em sua finalidade, h uma abertura, uma disposio para um novo uso.

    Pensar a profanao do testemunho, este jogar, brincar, ou o novo uso, poderia levar a efetiva considerao daquele que ouve como participante, testis, ainda que nunca possa chegar ao fundo, ser uma testemunha inte-gral. Tal tarefa relacionada com o arquivo nos meandros da casa do poder (Arkh), levaria a uma permanente e necessria democratizao dos arqui-vos (agora tambm em um dimenso virtual).

    6. Os perdes, o perdo

    Uma terceira categoria que poderia ser apresentada no rastro das an-teriores seria a referente ao perdo, pois o perdo tambm se relaciona com a memria, com os registros que se produzem de eventos traumticos condio de possibilidade para o perdo. A memria, portanto, se apre-senta como categoria de temporalidade que permeia as problematizaes do artigo, como j apresentado na alegoria do phrmakon.

    57 BENJAMIN, 2002, pp. 57-58.

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    O perdo colocado fora do eixo da relao com os dispositivos, pois se cr que se este for pensado com o auxlio da belssima exposio de Der-rida, deve ter uma forma incondicional, sem medida, sem moderao58, ou ainda, poder-se-ia dizer, uma noo j profanada do ato de perdoar.

    Provavelmente, outra perspectiva do perdo, apresentada e criticada por Derrida, poderia ser pensada como uma forma de dispositivo ao cons-tatar que, ante uma urgncia universal por memria, os representantes po-lticos, religiosos, etc., passaram a adotar uma linguagem (abramica) uni-versal do direito, da poltica e da economia ou da diplomacia, em conjunto com cenas de pedido de perdo.

    Essas cerimnias de culpabilidade dos representantes foram refutadas por Derrida, pois caso a humanidade desejasse se acusar dos crimes que ela praticou contra ela mesma, no restaria uma pessoa inocente na Terra. Formaram-se, ento, pedidos de perdo genricos e impessoais que, em grande medida levaram a uma banalizao, ao esvaziamento semntico da ao do perdo.

    Nesse sentido, em oposio referida banalizao lingstica, Derrida evidencia que o perdo costumeiramente confundido com os seguintes temas: a desculpa, o arrependimento, a anistia, a prescrio, etc.. Neste diagnstico, o processo de globalizao do perdo aparece como uma cena imensa de confisso (crist). Por isso, entende Derrida que a linguagem do perdo, a servio de determinadas finalidades, qualquer coisa menos o perdo puro e desinteressado59.

    Assim, toda vez que o perdo se circunscreve a servio de uma deter-minada causa, cada vez que busca re-estabelecer a normalidade por um trabalho de lamentao, ento o perdo no puro nem seu conceito. O perdo no no deveria ser normativo, normal, normalizante. Deve-ria permanecer excepcional e extraordinrio, perante o impossvel: como se tivesse interrompido o curso ordinrio da temporalidade histrica.

    A prpria ideia de perdo desapareceria se o perdo no enfrentasse aquilo que imperdovel, assim se apresenta a aporia de Derrida: o perdo perdoa apenas o imperdovel. O perdo se anuncia como a impossibilida-de de si mesmo. S pode ser possvel na realizao do impossvel60.

    58 DERRIDA, 2002.

    59 Idem.

    60 Idem.

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    Derrida trata, ainda, da perspectiva de Hannah Arendt e de Janklvi-tch, os quais entendem que o perdo deve se encontrar em uma possibili-dade humana, bem como esta possibilidade seria correlata possibilidade de punio, pois, segundo Arendt, as pessoas seriam incapazes de perdoar aquilo sob as quais no conseguem infligir alguma punio61.

    Ainda, entende que sempre h um clculo poltico ou estratgico no gesto generoso daquele que oferece reconciliao ou anistia, como no caso da Frana e a demanda por reconciliao nacional. Sugere, portanto, que deva se proceder de outra forma a aproximao ao dever de memria, atra-vs da abertura de arquivos.

    Outra caracterstica que afastaria o perdo de Derrida da noo de dispositivo seria o desdobramento da crtica que realiza ao corpo annimo do Estado como incapaz de perdoar. Para Derrida o perdo deve ser um presente gracioso. O perdo ficaria entre os plos do irreconcilivel e do indissocivel, nas quais decises e responsabilidades devem ser tomadas. O perdo no deveria ser esquecido e, se almejar ter seu prprio sentido, no deveria ter sentido, finalidade, ou mesmo inteligibilidade.

    Derrida afirma que a absoluta exceo do direito de graa a exceo da lei, exceo para a lei, e se situa na fundao do jurdico-poltico, no corpo da soberania, junto unidade da nao, garantindo a Constituio e as condies de exerccio do direito. Este direito de graa, no pode-ria ser exercido sem uma injustia pois, em nome dos direitos humanos, costuma-se buscar restries soberania e, esta limitao da soberania se imporia onde possvel, segundo Hannah Arendt62.

    Por fim, aquilo que torna o Eu te perdo insuportvel ou odioso a afirmao da soberania, que endereada de cima para baixo. Neste contexto, uma vtima seria uma vtima, ao se perceber despida da mnima possibilidade de virtualmente se considerar perdoando o imperdovel. Este crime no aconteceria apenas na forma de assassinato. Derrida, ao pensar sua pureza do perdo fala de um perdo sem poder: incondicional, mas sem soberania. A tarefa mais difcil, ao mesmo tempo necessria e aparentemen-te impossvel, seria de dissociar o incondicional e a soberania.

    61 DERRIDA, 2002 e ARENDT, 2008.

    62 H ainda a necessidade da alteridade (do outro enquanto outro, irredutvel) no perdo: a necessidade de uma linguagem comum, alm de se entender e concordar com a natureza da culpa. Um perdo terminado no pode ser considerado um perdo. DERRIDA, 2002.

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    Recebido em fevereiro/2010Aprovado em abril/2010

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