%5bjoanna Maitland%5d Ameaçada Pelo Amor
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Ameaçada Pelo Amor Rake's Reward
Joanna Maitland
Arriscando sua reputação...
Como dama de companhia da viúva lady Luce, Marina Beaumont tem
instruções estritas para evitar que a velha senhora ceda a seu antigo hábito
de jogar. Assim, quando lady Luce perde uma fortuna para o renomado
libertino Kit Stratton, a posição de Marina fica seriamente ameaçada.
Então, ela resolve visitar Kit em segredo para pedir-lhe que devolva o
dinheiro que ganhou, e ele, surpreendentemente, concorda. Mas apenas se
Marina o recompensar da maneira que Kit deseja...
Doação do livro: Choy Lin(Desculpa se escrevi errado)
Digitalização: Joyce
Revisão: Andréa
CAPÍTULO I
— Tenho esperado por muitos anos para conseguir isso, Hugo. E nada que possa me
dizer fará diferença.
Kit Stratton falava com uma calma certeza, sorrindo lentamente para seu irmão
mais velho, como se estivessem conversando a respeito da melhor maneira de dar um nó
de gravata ou sobre uma nova marca de bebida. Recostou-se em sua cadeira e passou
uma das pernas, enfiada numa bota de cano alto, por sobre o braço do móvel,
observando o irmão com certa expressão de cinismo. Poderia ser ele, Kit, e não Hugo, o
dono daquela magnífica biblioteca.
Sir Hugo Stratton parou de dar passos irritados pelo cômodo e encarou o irmão,
obviamente exasperado diante da resposta que ouvira.
— Pelo amor de Deus, Kit! — exclamou. — Deve estar ficando louco! A Stratton
Magna está na família há gerações! E está me dizendo que vai arriscar perdê-la numa
rodada de cartas com aquela velhota?! Não pode prosseguir com essa piada! Além do
mais, o que houve... bem, foi há tantos anos! Não pode, simplesmente, esquecer?!
— Não. Esqueceu-se do que ela me fez?
— Eu tinha outras coisas em mente — alegou, tomando um gole da bebida. — Coisas
sem importância, sei que vai dizer, apenas distrações. Aliás, uma delas está em Londres,
agora. — Kit ergueu os olhos para o irmão. Podia perceber que a raiva de Hugo
desaparecia aos poucos. — Pode ter certeza de que aprendi minha lição com Emma.
Passei a dedicar minhas atenções a damas que... Bem... Têm experiência e não
representam perigo algum a minha adorável condição de solteiro.
— Desde que os maridos delas não o peguem em suas camas — Hugo completou,
sarcástico novamente. — Onde pensa encontrar uma pele nova se um deles o pegar em
flagrante?
— Na verdade, Hugo, fui pego em flagrante algumas vezes. E minha pele, posso
assegurar-lhe, está intacta.
— Meu bom Deus! — Hugo ria, mesmo aborrecido, diante da atitude do irmão.
Nunca conseguira permanecer sério por muito tempo, ainda mais com o caçula da
família. — E o que houve, então? Esses maridos enganados o desafiaram para um duelo?
Matou algum deles?
— Não. Matar um adversário seria algo pouco... cavalheiresco, não acha? Além do
mais, eu era culpado. E as senhoras envolvidas eram... bem, deliciosas, mas pouco
valiosas.
— Ah, para mim já chega dessa conversa, Kit. Não estamos aqui para discutir seu
sucesso com o sexo frágil. Ainda mais porque quase toda a Europa já sabe de seus
feitos na cama. O que precisamos falar é a respeito dessa sua idéia. Não pode estar
falando a sério, meu irmão! Pode perder tudo para essa mulher! E, depois daquela última
vez, certamente não...
— Depois da última vez, não tenho a menor intenção de perder para ela — Kit
afirmou, enfático, tornando a levantar-se. E, colocando a mão sobre o braço do irmão,
completou: — Nada que você disser me fará mudar de idéia, Hugo. Não pode imaginar
como foi humilhante para mim vir até você para implorar-lhe dinheiro a fim de pagar
minhas dividas. Eu sabia que você teria de tirar o dinheiro do dote da moça que eu havia
comprometido. Consegue imaginar como me senti? Eu podia ter apenas vinte e dois anos
naquela época, porém, pode acreditar, foi terrível. Doeu muito e ainda dói. Eu estava a
um passo da desgraça total.
Hugo encarou-o, muito sério, depois seu olhar se desviou para o enorme retrato de
Emma, que pendia sobre a lareira. Estava calmo agora ao dizer:
— Eu entendo, Kit. Foi há muito tempo e todos já se esqueceram do que aconteceu.
E, se você desafiar essa mulher agora, novamente, vai fazer com que tudo venha à tona
outra vez. Esqueça...
— Não, não posso. Esperei por este momento durante cinco anos e pretendo vivê-lo
com muita intensidade. —Vendo que o irmão ia rebater suas palavras mais uma vez, Kit
ergueu a mão e prosseguiu: — Não se apresse em dizer que vou perder esse jogo.
Acredite, não tenho intenção de fazê-lo.
Hugo tentou sorrir. A longa cicatriz que trazia no lado esquerdo do rosto era
pouco visível, exceto quando sorria devagar, como agora.
— E como pretende garantir seu sucesso, meu irmão? — Hugo perguntou. — Será
que conseguiu tanta perícia assim no jogo enquanto esteve vivendo no Continente?
— Não. Mas aprendi a reconhecer todos os truques e manejos de um bom jogo.
Não precisarei trapacear para vencer. Joguei durante muitos anos, sim, mas aprendi
muito e minhas habilidades agora me garantem. Sabe que sempre tive boa sorte, não?
Nada mudou nisso. E agora tenho muito mais prática e experiência do que antes. Tenho
certeza de que vou ganhar, ainda mais porque ouvi dizer que lady Luce perdeu um pouco
da sua habilidade com as cartas.
Hugo apenas assentiu, pensativo. E Kit aproveitou sua concessão para continuar:
— Ótimo, então. Isso aumenta ainda mais minhas possibilidades de vitória. Lady
Luce tentou me arruinar no passado e teria conseguido se você não tivesse pago minhas
dívidas. Devo muito a você. E devo a ela também. Com a Stratton Magna como garantia,
vou levar essa mulher à sarjeta, você vai ver! E vou adorar apreciar sua queda.
Hugo agora negava de leve com a cabeça, sem conseguir entender como o irmão
conseguia nutrir tanto ódio por outro ser humano. E devia estar nutrindo-o havia anos.
Talvez, ponderou, se ele próprio tivesse passado tantos anos no Continente, também
tivesse voltado sem muito respeito para com a sociedade. Parecia que Kit aprendera que
as pessoas existiam a fim de serem usadas para a sua vantagem. Não via nada de bom
em aproximar-se de alguém, e isso poderia levá-lo ao fracasso...
O terceiro conde Luce andava pelo quarto da mãe, contrariado.
— Não pode prosseguir com isso — murmurou.
A condessa tomou um grande gole de xerez e saboreou-o antes de responder:
— Pelo amor de Deus, William, pare de se comportar como um elefante enjaulado!
O conde parou de andar de repente. Olhou para seu reflexo no grande espelho do
toucador, notando que, muito ao contrário, nada havia em sua aparência que pudesse ser
comparado a um elefante. Como sua mãe podia soar tão ofensiva?, analisou.
Ela, por sua vez, encarava-o como se nada tivesse dito de mal. E a forma como o
olhava era a mesma que William detestava desde os cinco anos de idade. Agora, mais de
quarenta anos depois, ainda se sentia assim.
— A que se referiu quando me disse para não prosseguir? — indagou ela,
arrogante.
William pigarreou e abordou o assunto a respeito do qual sabia ainda exercer
alguma influência:
— Não pode continuar jogando com dinheiro que não possui, mãe. Deve...
Lady Luce levantou-se, ameaçadora. Mesmo muito mais baixa do que o filho, sua
presença impressionava pela corpulência.
— E quem vai me impedir? — perguntou em tom de ameaça.
— Eu vou — William replicou, mas evitando fitá-la nos olhos. — Não posso mais
continuar a pagar suas dívidas! Parece se esquecer de que tenho minha própria família
para sustentar!
— Ah, como eu poderia me esquecer?! Nunca vi tantos fedelhos gastando mais do
que têm! Você é ainda pior do que Clarence!
— Mãe! Como pode dizer isso?! Não é apropriado a damas mencionarem filhos
ilegítimos, embora o pai deles seja um grande duque! E a senhora sabe muito bem que
jamais fui infiel a Charlotte!
— Isso porque nenhuma outra mulher olharia para você! Mesmo que tivesse
dinheiro para atraí-las! E culpa inteiramente sua ter tido dez filhos! E não vejo por que
meu estilo de vida tenha de ser modificado para que você pague o que eles gastam!
Ainda mais porque não consegue manter seu...
— Mãe! Por favor, contenha-se!
Lady Luce olhou-o e sorriu com sarcasmo. Estava, obviamente, adorando o
embaraço que lhe causava. E William detestava isso também. Deu-lhe as costas e foi
até a janela; olhando para fora, seria mais fácil dizer-lhe o que teria de fazer.
— Meus filhos não são o principal assunto aqui — ponderou. — Meu pai deixou-lhe
muito dinheiro. Nem mesmo precisa gastar com esta casa. Tem condições de viver com
conforto e bem-estar, mas prefere ficar jogando, acreditando que eu sempre estarei
pronto a pagar o que fica devendo.
— Seu miserável! Você me deixou desamparada quando...
William voltou-se, enfurecido.
— Isso foi há cinco anos, mãe, e aconteceu apenas uma vez! Sabe muito bem que eu
não poderia levantar uma soma tão alta em dinheiro em tão pouco tempo! Além do mais,
a senhora se recuperou bem depressa quando ganhou aquela fortuna de Kit Stratton,
lembra-se? Nem precisou mais da minha ajuda financeira.
— Ah, não? Pois saiba, seu infeliz, que eu...
— Chega, mãe! Agora vai me ouvir. Vai aprender a viver com seus próprios meios.
Se me procurar mais uma vez para que eu pague suas dívidas de jogo, será a última, eu
prometo! E isso acabará com a sua reputação! Porque todos saberão que não tem mais
com quem contar!
— Não ousaria fazer tal coisa com sua mãe! Seu nome também seria...
— Bobagem! Toda a sociedade saberá que fui indulgente demais durante anos com
as suas jogatinas! Pode ser considerada autêntica, diferente, mãe, mas a sociedade se
cansa de tudo, até do que chegou a apreciar um dia. Agora sou o chefe desta família e
pode ter certeza de que estou falando a sério!
Lady Luce aproximou-se e, com o dedo em riste, bateu contra o peito do filho,
desafiando-o:
— É mesmo, William? Então, entenda bem o que vou lhe dizer: vou continuar me
comportando como bem entender. Se quiser jogar, nada que diga vai me impedir! Posso
até jogar esta casa e deixar que as minhas dívidas fiquem sem serem pagas. E vou
apregoar para toda Londres que tenho o seu apoio, mas que, se você não pagar o que
devo, irei parar na sarjeta! O que acha que pensariam de você, então? E, se eu for
parara na prisão, o que é ainda pior, o que dirão de meu filho? O que seus amigos
elegantes diriam disso? E seus filhos? Que comentários terríveis se fariam a seu
respeito?
William engoliu em seco. Sua mãe vencia mais uma vez. Ela não era uma mulher,
avaliou; era uma bruxa.
— Muito bem, o que me diz? — Lady Luce insistiu.
— Mãe, precisa entender que não tenho condições de ficar pagando tantas dívidas.
— Agora, ele tentava convencê-la pela razão. — Nossos rendimentos têm se tornado
menores a cada ano depois da guerra. Se essa situação continuar, vou ter de começar a
vender nossas propriedades menores. Não pode querer que eu faça uma coisa dessas,
não é? Afinal, é tudo o que tenho para deixar a meus filhos.
Lady Luce ergueu as sobrancelhas.
— Vou pensar no assunto — prometeu.
A tática por ele usada parecia estar funcionando, William analisou. Sua mãe
acabara de lhe dar uma mínima concessão de entendimento.
— Talvez, se tivesse outros interesses, algo que a divertisse mais... — disse ainda.
— Sinto-me muito bem como estou.
— Eu sei, mãe, mas... olhe, o que acha de arranjar uma dama de companhia? Uma
moça, jovem, animada...
Lady Luce encarou-o com olhos fuzilantes. Mesmo assim, ele prosseguiu:
— Quer que eu procure alguém? Pode deixar que pagarei o salário dela. Seu
dinheiro continuará a seu dispor, como sempre.
Lady Luce parecia pensar. Depois, para total surpresa do filho, assentiu,
concordando:
—Acho que você tem razão. Seria bom se eu tivesse alguém jovem em minha
companhia.
William respirou aliviado e inclinou-se diante da mãe, numa saudação de despedida.
A dedicada amiga de sua esposa, lady Blaine, devia conhecer uma moça apropriada para
o que queria. Precisava sair dali depressa, antes que sua mãe mudasse de idéia. E já
estava junto à porta quando ela o chamou, acrescentando:
— Quero apenas que essa tal moça saiba jogar também. Na minha idade, não tenho
mais paciência para ensinar ninguém a participar de uma boa partida.
— Srta. Beaumont?
Marina voltou-se, notando que quem a chamara era um criado de ar arrogante, que
parecia pouco satisfeito diante de suas roupas simples e de seu chapéu surrado. Ela,
porém, ergueu o queixo; podia ser pobre, mas era uma dama. E não permitiria que um
simples criado a tratasse mal.
Cerrou um pouco os olhos e encarou o rapaz, notando vagamente que era quase tão
alta quanto ele. E, com voz gelada, respondeu:
— Sim, sou a srta. Beaumont.
O criado não conseguiu sustentar-lhe o olhar firme e, depois de alguns segundos,
desviou o seu.
— Poderia vir comigo, senhorita? — indagou, indicando a carruagem que aguardava
para levar Marina à casa de sua patroa.
Manter aquele rapaz em seu devido lugar era uma vitória pequena, mas importante
para Marina. Se iria viver em casa de lady Luce, devia deixar bem claro desde o
princípio que os criados precisavam tratá-la com respeito.
— Por favor, cuide para que a minha bagagem seja transportada em segurança —
pediu, apontando para os dois baús velhos que continham tudo o que ela possuía.
O rapaz obedeceu com presteza. E, ao ouvir o suave "obrigada" de Marina, pareceu
surpreso. Mas se lembrou logo de que aquela moça mostrara-lhe seu lugar e apressou-se
em ajudá-la a entrar na carruagem.
Dentro do veículo, Marina sentiu-se aliviada. Finalmente chegara a Londres. E em
breve estaria em companhia de lady Luce, a senhora que contratara seus serviços para
sentir-se mais animada. Marina sabia que podia desempenhar tal papel muito bem. Viera
o caminho todo desde Yorkshire pensando a respeito. Fora uma excelente companhia
para sua avó em seus últimos anos de vida; lera muito para ela, tocara piano a fim de
entretê-la, cantara para alegrá-la, até mesmo jogara cartas com ela. Naqueles últimos
anos, sua avó mostrara-se uma senhora muito altiva, como se ainda recebesse os
privilégios de ser irmã de um visconde. Lady Luce devia ser da mesma forma, Marina
avaliou. Todas as velhas senhoras que viviam sozinhas deviam ser parecidas.
Marina cerrou os olhos, tentando não ouvir os ruídos da cidade grande, nem sentir
os diferentes cheiros que lhe invadiam as narinas. Nunca imaginara que Londres pudesse
ser tão barulhenta. Em casa, sempre estivera acostumada aos sons e aromas da vida no
campo, ao canto dos pássaros, ao sussurrar do vento nos campos. Nada como o que ouvia
agora. E, se tinha de passar a viver em Londres, precisava começar a acostumar-se com
tudo.
Assim decidida, olhou pela janela; não fazia idéia de onde se encontrava, mas, aos
poucos, as ruas pareciam ficar mais tranqüilas. As casas começavam a ficar maiores,
mais imponentes. Tudo muito maior e mais elegante do que jamais vira em Yorkshire.
Olhava ainda para os contornos das colunas de uma casa quando a carruagem parou
junto ao meio-fio, do outro lado da rua. Tinha chegado. O criado, mais formal e educado
agora, já havia saltado da boleia e abria a porta para ajudá-la a descer. Ao pisar no
caminho que seguia pelo jardim, Marina viu que a porta da frente da casa se abria e um
homem alto e magro, já idoso, apareceu. Era quase completamente calvo. Ele lhe
pareceu saído de um conto de fadas, embora, imaginou, devesse estar usando uma roupa
colorida de feiticeiro em vez do elegante e austero terno preto.
— Bem-vinda a Londres, srta. Beaumont — saudou o mordomo, com voz sem
expressão. — A senhora a espera no andar superior, em sua sala particular. Queria me
acompanhar, por favor.
Marina seguiu-o, aflita. Não esperava encontrar sua patroa tão cedo assim. Usava
ainda roupas de viagem, precisava de tempo para arrumar-se melhor, ficar mais
apresentável. Se lady Luce a visse assim, iria mandá-la de volta de imediato. Por isso
parou ao pé da escada.
— Tenho certeza de que lady Luce não irá querer me ver assim, ainda com a poeira
da viagem... — argumentou. — Por favor, leve-me até um cômodo onde eu possa me lavar
e trocar de roupa primeiro. O criado da carruagem pode trazer minha bagagem.
O mordomo voltou-se e encarou-a, perplexo, por segundos. Por fim, aquiesceu:
— Como desejar, senhorita. Por aqui, sim? Charles! Traga imediatamente a
bagagem da srta. Beaumont até seus aposentos!
— Sim, sr. Tibbs — respondeu o rapaz, que aguardava ainda à porta.
Mais uma vez, Marina sentiu-se satisfeita por mostrar aos criados daquela casa
que ela também tinha certa autoridade, pelo menos no que se referia a si mesma.
CAPÍTULO II
Marina passou os olhos pelo pequeno quarto com pouca e simples mobília. Imaginava
que deveria sentir-se feliz por não ter sido banida para o sótão, junto com os outros
criados da casa. Como dama de companhia, não era nem parte da criadagem nem
nobreza, mas algo vagamente indeterminado entre as duas categorias. Tinha de manter-
se distante dos criados, e lady Luce e seus amigos e familiares manteriam distância
dela também; em resumo, estaria sempre sozinha.
O mordomo lhe informara, de maneira um tanto paternal, que haviam lhe separado
aquele quarto, no mesmo andar dos aposentos de lady Luce, porque, assim, ficaria mais
próxima em qualquer necessidade, e Marina compreendera que deveria estar à
disposição da velha senhora em tempo integral.
Deu de ombros. Afinal, o que mais poderia esperar? Sua avó também fora muito
exigente quanto a sua presença e companhia. Precisava apenas reunir todas as suas
reservas de paciência e compreensão e preparar-se para atender a todas as vontades
de mais uma senhora idosa.
Chegou a pensar que poderia fazer de conta que lady Luce era sua avó. E, enquanto
trocava de roupa, seguia imaginando como seria sua vida naquela casa. Precisava ser
paciente, educada e tolerar qualquer coisa; afinal, agora, estava sendo paga para fazer
companhia a uma senhora.
Sorriu ao pensar no dinheiro que poderia enviar a sua mãe, em seu primeiro
pagamento. A mãe lhe dissera que deveria usar o dinheiro para comprar roupas novas,
porém Marina achava que poderia continuar com as que possuía no momento. Uma dama
de companhia, afinal, não deveria precisar de muitos vestidos para acompanhar sua
patroa a um passeio ou ficar com ela enquanto tricotava. Marina decidira contentar-se
com o que possuía; em primeiro lugar estava a obrigação para com sua família.
Olhou-se no pequeno espelho pendurado sobre a cômoda. E achou-se satisfatória
no vestido cinza, limpo, bem cuidado, embora ainda trazendo as marcas das dobras por
ter sido tirado havia pouco do baú. Mas, como tinha corte elegante, dava-lhe um ar
refinado. Achou-se mais uma dama do que uma criada, e sorriu. Passou uma escova nos
cabelos, fez duas tranças e prendeu-as ao alto da cabeça, num coque. E seu rosto,
lavado, estava fresco, saudável. Aos vinte e três anos, Marina era uma mulher bonita,
morena, de traços suaves. Podia não usar jóia nenhuma, mas a sua beleza lhe parecia
suficiente. Olhou para a mão direita, onde trazia o anel simples que lhe ficara depois da
morte do pai, e seu sorriso desapareceu. Olhou-se mais uma vez no espelho, sabendo
que sua imagem era a de uma mulher discreta e educada. Lady Luce iria gostar. Não
teria motivo algum para mandá-la de volta a Yorkshire, e Marina sabia que isso não
poderia acontecer de forma nenhuma, pois sua mãe precisava de cada centavo que
ganharia naquele emprego.
Respirou fundo, pronta para encontrar a senhora com a qual poderia trabalhar
meses, anos até. Ao sair para o corredor, viu Tibbs, o mordomo, parado a pouca
distância, a sua espera.
— Essa porta é a dos aposentos de lady Luce — indicou ele mostrando uma porta à
esquerda das escadas. E continuou explicando: — Ninguém mais dorme neste andar, a
não ser quando a nossa patroa recebe hóspedes. Muito embora, agora, haja a senhorita.
— O conde não se hospeda aqui quando está em Londres? — Marina quis saber.
— Não, senhorita. A senhora e seu filho... bem... lorde William tem sua própria
casa na cidade. E sempre fica lá.
— Entendo. — Era compreensível que um homem adulto não quisesse ficar em
companhia da mãe, mesmo que fosse por um ou dois dias, Marina analisou consigo
mesma. Tibbs começou a dizer algo, mas se interrompeu, talvez para evitar palavras que
pudessem ser consideradas comentários impróprios para um criado. Porém Marina ficou
intrigada com o relacionamento do conde com a mãe. Talvez ela fosse exigente demais...
Senhoras idosas costumavam ser. E a paciência de um cavalheiro poderia não ser muito
grande.
O mordomo a conduziu até uma sala na parte da frente da casa. Com um gesto
largo, ele abriu a porta e anunciou, em bom tom:
— A srta. Beaumont, senhora.
Marina ouviu a porta se fechando logo atrás de si. Porém o cômodo em que se
encontrava dava a impressão de estar vazio.
— Não fique aí parada, menina — ela ouviu uma voz autoritária dizer-lhe, vinda das
profundezas de uma poltrona voltada para a janela da rua. — Venha até onde eu possa
vê-la!
Marina obedeceu, andando um tanto ao redor, para poder ficar diante de quem
estava na poltrona. Viu a figura praticamente afundada dentro dela, vestida de forma
luxuosa, exuberante até, mas com roupas já fora de moda, nas quais a abundância de
tecido parecia proliferar e as rendas praticamente cobriam toda a parte visível do
pano. Lady Luce usava uma peruca, coisa que havia muito ficara ultrapassada. Marina
notou que, mesmo com o rosto enrugado devido aos muitos anos, a senhora havia sido
bastante bonita na juventude; e agora percebia que ela mais se parecia com uma fruta
murcha e frágil, embora ainda corpulenta.
— Nossa, me mandaram uma vassoura! — exclamou lady Luce, fazendo Marina
corar.
Sempre tinha sido um certo problema para Marina a altura que herdara de seu pai;
e, magra como era, dava a impressão de ser mais alta.
— Como está, senhora? — cumprimentou com calma, tentando sorrir mesmo diante
da rudeza com que fora recebida.
Lady Luce não respondeu de pronto. Olhava-a de cima a baixo com olhos
perspicazes.
— Imaginei que um membro da família Blaine fosse melhor apanhado — comentou
ela, sem preâmbulos. — Eu não daria um vestido assim nem a uma criada!
Aquele não era, definitivamente, um bom começo, Marina ponderou. Lady Luce
precisava saber naquele momento que ela não era da família Blaine, Marina pensou; e
que não podia vestir-se melhor. Tinha de falar a verdade, mesmo que isso fizesse com
que a velha senhora a mandasse de volta a Yorkshire.
— Acho que deve ter havido algum mal-entendido, senhora — disse. — Meu nome é
Beaumont, não Blaine. Tenho apenas um distante parentesco, por parte de minha avó,
com a família do visconde, que, porém, nunca foi reconhecida por eles, não depois de seu
casamento.
— Sei... — murmurou lady Luce, não parecendo muito satisfeita. — Mas sua mãe e o
novo visconde são primos, não é verdade?
— Sim. Mas não...
— Então, você é uma Blaine. O pai do antigo visconde era um tirano idiota, porém
isso não altera a linhagem de sangue, não para mim. Sua avó era filha de um visconde e
irmã do próximo. Portanto, sem dúvida, você é uma Blaine.
Ao que parecia, seria muito difícil argumentar com lady Luce, Marina analisou.
Mesmo assim, precisava tentar, em especial num assunto tão delicado.
— Perdoe-me, senhora — começou de novo —, mas deve entender que os Beaumont
jamais foram reconhecidos pela família do visconde, nem mesmo quando o irmão de
minha avó recebeu o título na linha sucessória.
— Isso aconteceu porque ele era exatamente como o pai — lady Luce rebateu. — O
que era de se esperar, já que todos os homens da família Blaine... — ela se interrompeu
a fim de olhar com mais atenção para o rosto de Marina, depois acrescentou: — Percebo
que você nada sabe sobre suas ligações aristocráticas, mocinha. Bem, talvez um dia eu
possa explicá-las a você. Mas há assuntos mais interessantes no momento. Para
começar, temos de fazer alguma coisa quanto a essa monstruosidade que você está
vestindo.
Marina percebia que teria também de defender seu guarda-roupa, porém lady Luce
estava tomando nas mãos as rédeas de sua aparência como tomara as de sua linhagem
de sangue.
— O único destino desse vestido deve ser uma fogueira — prosseguia a velha
senhora. — Ou, pelo menos, uma casa de caridade. Embora eu ache que, mesmo lá, as
mulheres torceriam o nariz ao vê-lo. Não tem nada melhor para vestir, menina?
— Tenho um vestido de noite, senhora. Mas os outros que possuo são semelhantes
a este. Todo o dinheiro extra deve ser usado na educação de meu irmão, entende?
Harry está em Oxford. E pretende ser padre.
— Não aprovo que se gaste todo o dinheiro com os meninos, sabia? Eles são
educados e, depois, o que acontece com quem os educou? Hein? Eles são capazes de
tirar cada centavo dos pais e abandoná-los em seguida! Há sempre no que gastar.
Propriedades, mulheres, libertinagem!
— Mas Harry não...
— Seu irmão talvez não. Não sei nada sobre ele, afinal. Pode até ser um rapaz
direito, porém os filhos das famílias nobres... — Lady Luce meneou a cabeça em
desaprovação. Sua mensagem era clara: os filhos das famílias nobres não mereciam
confiança no que se referia a dinheiro. Talvez estivesse falando do próprio filho... E
continuou sem vacilar: — Uma dama tem de ser independente o suficiente para levar sua
própria vida da forma que quiser. Em especial quando é viúva.
O modo pouco ortodoxo com que lady Luce vivia estava começando a ficar claro
para Marina agora.
— É, mocinha, nós damos um herdeiro a eles e nosso dever está cumprido! —
continuou lady Luce. — E o mínimo que um marido pode fazer em troca é fornecer-nos
uma viuvez confortável. Mas os maridos parecem achar que seus herdeiros é que devem
ficar com tudo, cuidar de tudo, inclusive da mãe! Ei, menina, posso saber por que está
rindo?!
Marina não havia percebido que começara a sorrir diante da defesa da velha
senhora de seus próprios interesses.
— Desculpe-me, senhora — pediu de imediato. — Mas eu estava imaginando que a
senhora me faz lembrar minha própria avó. E eu sinto tanta falta dela!
— Bobagem! Estava pensando que eu falo coisas sem sentido, isso sim! E deve
achar que posso ser perdoada pelo que digo porque tenho idade avançada. Não é isso?
— Bem, sim, senhora, eu admito. Mas vejo que seus argumentos não devem ser
relevados. Parece-me uma mulher de opinião, uma oponente forte e firme para homens e
mulheres, e sua idade avançada nada tem a ver com isso.
Lady Luce ergueu as sobrancelhas, encarando-a. E, por um segundo, Marina
imaginou que não devia ter sido tão franca. A velha senhora poderia chamar o mordomo
e despachá-la de volta a Yorkshire sem discussão. Mas nada disso aconteceu. Lady Luce
olhou-a ainda por alguns segundos, depois sorriu de leve e comentou:
— É, acho que você serve. Assim que tivermos feito algo quanto ao seu guarda-
roupa, é claro. Vou tratar disso amanhã mesmo. Não deve ser vista como está. Dê uma
volta.
Obediente, Marina girou o corpo diante dela.
— Mais uma vez — ordenou lady Luce. Marina tornou a obedecer.
— Muito bem, sente-se, menina. Estou ficando com o pescoço duro de tanto olhar
para cima.
Marina sorriu e ocupou uma cadeira próxima.
— Muito bem, então, srta. Beaumont, fale-me sobre você. — A velha senhora
parecia satisfeita por ver que, sentada, Marina ficava da sua altura. — Qual é seu
nome?
Surpresa por ver que ela nem mesmo sabia o nome de quem contratava, Marina
respondeu:
— Marina.
— Marina... Nome nada comum...
— De fato, senhora. Foi minha avó quem me deu este nome.
— E ela era estrangeira? — O tom de voz de lady Luce traía seu aborrecimento
pelo fato.
— Sim, senhora. Porém nunca a conheci. A família de meu pai serviu o Exército
durante anos. As mulheres seguiam os tambores também.
— Mesmo?! Sua mãe também? — Era claro que ela não aprovava tal
comportamento.
— Sim, senhora. Mas depois que a Paz de Amiens foi assinada, meu pai achou
melhor que sua esposa permanecesse na Inglaterra, já que eu e meu irmão éramos
pequenos. E nos estabelecemos em Yorkshire.
— E seu pai?
— Bem, ele era capitão no 95º Regimento. Morreu há nove anos, na batalha de
Ciudad Rodrigo, junto com meu tio.
Lady Luce assentiu devagar. Marina imaginava se ela também teria perdido entes
queridos em guerras. Muitas famílias nobres tinham.
— Mas, e sua mãe? Ele a deixou com algum rendimento? — lady Luce insistiu,
mesmo num assunto tão íntimo.
— Não, senhora. Minha mãe teve de dar aulas para garantir nossa renda. Ela tem
uma educação esmerada, seu pai foi um grande pensador e educou a filha da mesma
forma que educou o filho. Porém, diferentemente de minha mãe, meu tio nunca apreciou
os estudos. Adorava o Exército desde pequeno. Foi uma grande decepção para meu avô.
— Sei, sei. E quem era ele, esse grande pensador que foi seu avô?
— Bem, ele conheceu minha avó quando era secretario particular do visconde
Blaine, acredito.
De repente, um sorriso abriu-se nos lábios de lady Luce.
—E ele era excepcionalmente bonito também, não? — indagou ela. — Muito alto,
com traços refinados, cabelos negros e uma voz maravilhosa.
— Bem... sim. Minha avó costumava descrevê-lo assim. Chegou a conhecê-lo,
senhora?
Lady Luce continuou a sorrir, um sorriso um tanto secreto, e um olhar distante
divagava em seu semblante. Até que disse:
— Sim, eu conheci James Langley. Lembro de que todas as garotas eram loucas por
ele. Era o homem mais bonito que já tínhamos visto, mas tão... impróprio para qualquer
uma... — De repente, ela olhou para Marina como se tentasse ver alguma referência do
homem de quem falava. — Sua avó se deixou seduzir pelo belo rosto de James, não foi?
Marina corou, pois não estava acostumada a uma linguagem tão aberta com sua
mãe, sempre tão formal e fechada. Mas assentiu mesmo assim. E lady Luce insistiu:
— E, como resultado, o pai dela a deserdou, não foi?
Mais uma vez, Marina assentiu.
— É exatamente o que eu poderia esperar dessa família. Não concordo com um
comportamento assim. Nunca concordei. Se eu tivesse tido uma filha...
A porta se abriu e o mordomo apareceu, fazendo uma breve mesura para anunciar:
— Lorde William está no hall, senhora, e pede-lhe que o deixe conversar por alguns
minutos com a srta. Beaumont.
— Ah, ele pede, é?! — ironizou a velha senhora. Marina estava surpresa. O que o
filho de lady Luce poderia querer lhe dizer?
— Então, acho que devo ser magnânima e permitir — declarou lady Luce. —
Conduza a srta. Beaumont até ele, Tibbs.
Marina seguiu o mordomo à biblioteca, no andar inferior. Talvez o conde quisesse
dar uma olhada na dama de companhia de sua mãe para saber se ela era apropriada ou
não, imaginou. E se ele não a aprovasse?, indagou-se. Tendo conhecido sua patroa,
achava pouco provável que qualquer opinião do filho pudesse fazer lady Luce mudar de
idéia...
O conde estava parado diante da janela, olhando para a rua. Diferente da mãe,
vestia-se na última moda, embora a calça justa não lhe caísse muito bem. Ele esperou
que a porta se fechasse para só então voltar-se e observar Marina, e não fez o menor
gesto para cumprimentá-la.
Ela compreendia. Para o conde, não passava de uma criada. Inclinou-se com
delicadeza, esperando que ele falasse primeiro.
Como a mãe fizera, William passou os olhos por ela, analisando cada detalhe.
Diante de olhar tão crítico, Marina apenas ergueu o queixo, altiva. Afinal, lady Luce não
insistira tanto no fato de ela ser uma Blaine?
— Srta. Beaumont — começou o conde, em tom afetado —, finalmente chegou.
Imaginamos que viesse mais cedo.
Marina nem tentou desculpar-se pelo atraso. Talvez o conde estivesse acostumado
a viajar no melhor meio de transporte disponível, mas ela não podia dar-se a esse luxo.
Continuou olhando-o em silêncio.
— No entanto, não é este o motivo da minha vinda até aqui — ele prosseguiu,
formal. — Temos algo mais importante a discutir.
Como Marina se mostrasse surpresa diante de tais palavras, William esclareceu:
— Imagino que lady Blaine não a tenha colocado a par das minhas exigências.
— Não, de fato, ela nada disse. Escreveu apenas que...
Era evidente que o conde não tinha interesse no que Marina ia dizer, e a
interrompeu:
— Isso não importa, senhorita. O que importa são as instruções que vou lhe passar.
Seu papel nesta casa será o de impedir que minha mãe faça extravagâncias tolas. Já
deve ter ouvido falar sobre o gosto que ela tem pelo jogo.
— Não, senhor. Nada sei sobre o estilo de vida de sua mãe.
O conde parecia impaciente.
— Muito bem. Então, os fatos são os seguintes: minha mãe adora jogar. E já
chegou a apostar mais do que poderia pagar. E, assim, seu papel aqui, srta. Beaumont, é
impedir que isso volte a acontecer.
Marina engoliu em seco. Como poderia garantir tal coisa?! O que lady Luce poderia
pensar? Ela saberia sobre o que seu filho estava fazendo?
— Não entendo, senhor... — começou, e, mais uma vez, ele a interrompeu:
— É bem simples. Estou lhe dando este emprego para que impeça minha mãe de
jogar. Como vai fazê-lo, cabe à senhorita.
— Mas eu imaginei que havia sido empregada pela condessa...
— Nas aparências, sim, porém sou eu quem vai lhe pagar. Portanto sou eu seu
empregador de fato. E fará o que mandei.
— E... sua mãe concordou com esse... acordo?
O conde dava sinais de começar a ficar irritado.
— Não, e nem deve saber. Não lhe diga nada. Se o fizer, será demitida
sumariamente.
Marina estava pálida como uma folha de papel. Notou que lorde Luce sorria de leve
ao prosseguir:
— Lembre-se, srta. Beaumont, que sou eu, e não minha mãe, quem lhe paga o
salário. E é a mim que deve dar satisfações se falhar na tarefa que estou lhe dando.
Isso é tudo. Pode ir agora.
Nada mais havia a ser dito. Marina inclinou-se lentamente e deixou a biblioteca.
Sentia seu coração bater disparado; compreendia, por fim, por que lady Blaine havia
escrito aquela carta sucinta, fria, a sua mãe. Marina chegara a imaginar por que aquela
parenta distante teria se lembrado dela depois de tantos anos de afastamento, para
oferecer uma posição de certo conforto. Mas, como o orgulho era um luxo que os
Beaumont não podiam ter, Marina aceitara o emprego. E agora podia ver que acabara de
cair numa armadilha.
Estava sozinha em Londres, sem ninguém a quem recorrer para, pelo menos, pedir
um conselho. Se fosse leal a lady Luce, o conde a demitiria. Se agisse como ele queria,
lady Luce poderia desconfiar e mandá-la embora. Depois do dinheiro que gastara para
chegar a Londres, acabaria sendo apenas um fardo para sua mãe, se tudo desse errado.
E sua única chance de ajudar sua família estaria arruinada.
Respirou fundo, pensando. Não podia deixar-se abater, analisou. Precisava fazer o
que era seu dever. De alguma forma, tinha de encontrar um meio de satisfazer tanto o
conde quanto sua mãe. E assim ganhar o dinheiro necessário para enviar para a sua casa
e evitar que a mãe continuasse na penúria em que se encontrava. Era o que precisava
fazer. E era o que faria.
CAPÍTULO III
— Meu bom Deus, achei que havia .dito que possui um vestido de noite! É esse?!
Rígida, Marina postava-se diante da condessa, enquanto esta, após a exclamação
franca e direta, olhava cada detalhe de sua roupa. Era um vestido simples, mas limpo, de
corte tradicional e, diferente dos outros vestidos de Marina, não apresentava remendo
algum.
Mas a condessa estava profundamente aborrecida. Levantou-se de sua poltrona e
ajeitou as vastas saias, negando devagar com a cabeça, em desaprovação.
— Sim, este é meu melhor vestido — Marina disse, por fim.
Lady Luce produziu um estranho som com a boca, que poderia ser tomado por uma
risada abafada. Depois disse:
—Vamos cuidar do seu guarda-roupa amanhã mesmo. Quanto a esta noite... Bem, eu
não deveria levá-la a Méchante, mas... — E, voltando-se para a porta, acrescentou: — É.
Você é de fato o que eu poderia esperar de William: uma garota aprumada demais, séria
demais.
— Senhora, por favor, quem é Méchante? — Marina ousou perguntar.
Lady Luce voltou-se para explicar:
— É uma dama... digamos, que uma moça direita não deveria conhecer. É filha de
uma mulher muito liberada e sua história é... colorida, digamos assim. A maior parte de
seus convidados à noite, para o jogo de cartas, é, obviamente, masculina. Quanto às
mulheres que se podem encontrar por lá... Bem, seria melhor você sempre dizer que
jamais pousou seus olhos em ninguém que esteja naquela casa. Portanto, minha cara,
tente ser... indiferente, passar despercebida. — Ela olhou mais uma vez para Marina, de
cima a baixo, e completou: — É, com esse vestido, não seria mesmo tão difícil que não a
percebessem.
A porta se abriu e Tibbs apareceu. Não havia dúvidas de que ele ouvira tudo o que
fora dito ali dentro. Na manhã seguinte, toda a criadagem já saberia o que lady Luce
dissera a respeito do vestido de Marina. Mas não havia o que fazer, avaliou ela,
seguindo lady Luce naquela estranha saída noturna até a casa de jogos acerca da qual
fora avisada não ser tão bem-afamada assim.
Na carruagem, ao lado de sua patroa, Marina pensava no nome da dona da casa
para onde seguiam. Sabia que, em francês, tal nome significava "má", "maliciosa" ou algo
do gênero. E, se o passado de tal dama era, como dissera a condessa, tão colorido assim,
ela devia merecer seu nome.
Tensa, Marina pensava no primeiro teste a que estava sendo submetida. Tão cedo...
Meditava no que fazer ou dizer para evitar que a condessa fosse jogar, mas nada lhe
ocorria. Se dissesse estar passando mal, lady Luce simplesmente a mandaria de volta
para casa; se interviesse no jogo, poderia ser demitida. E, se traísse as instruções do
conde, lady Luce seria capaz de gastar tudo o que possuía e um pouco mais, pois deixara
claro que desprezava o filho e tudo faria para aborrecê-lo.
— Tenha calma, menina — ouviu a condessa aconselhá-la. — Méchante não vai
comê-la viva. Talvez você até se divirta e se livre dessa cara de segunda-feira. Você
sabe jogar, não sabe?
— Sim, sei, senhora. — O pai de Marina se deleitara muitas vezes em ensiná-la a
jogar, mas ela jamais tivera oportunidade para saber se herdara dele a sorte, além da
habilidade com as cartas. E ele perdera muito dinheiro, o que causara a pobreza da
família, por isso Marina apressou-se em dizer: — Sabe, não gosto muito de jogar
porque...
— Isso não vem ao caso agora — cortou a condessa. — Logo vai descobrir que todo
mundo joga, tendo ou não condições para tanto. Imagino que não tenha dinheiro algum...
— Acho que jogar é errado, senhora, tenha-se ou não dinheiro. Porque o jogo pode
arruinar muitas vidas.
Lady Luce apenas a olhou por instantes, em silêncio, e nada mais disse até
chegarem a seu destino. Lá, antes de descerem, aconselhou:
— Não dê sua opinião puritana sobre o jogo a nenhuma pessoa da casa onde vamos
entrar. Não faria bem a ninguém; ao contrário, faria mal apenas a você mesma.
Calada e obediente, Marina seguiu a condessa pela entrada muito iluminada da casa
extravagante de lady Méchante.
— Mas se não é lady Luce! — alguém exclamou, fazendo a condessa parar de
repente e Marina quase colidir com suas costas.
Quando ergueu os olhos, Marina viu que sua patroa estava olhando com frieza para
o mais belo homem que já aparecera diante de seus olhos. Ele se colocara entre lady
Luce e a escadaria do hall, e sua presença parecia encher o ambiente. Bem alto e
moreno, com feições perfeitas, muito bem vestido, ele parecia à vontade naquele lugar.
— É um grande prazer encontrá-la novamente, senhora — continuou o cavalheiro
em questão, com um tom desagradável na voz que Marina logo percebeu. Um sorriso
maldoso curvou-lhe os lábios conforme ele olhava para a dama cujo caminho bloqueava.
— Já faz... cinco anos, não? Eu não via a hora de reencontrá-la. Ainda joga, pelo que
sei...
— Sim, ainda jogo, sr. Stratton, pode ter certeza disso — lady Luce respondeu,
fria. — Mas não imaginei que Méchante estivesse assim tão carente de convidados para
aceitar a presença de qualquer um em seus salões. Imagino que eu deva ter mais
cuidado ao aceitar certos convites... — Com isso, a velha senhora avançou, obrigando o
rapaz a se afastar, o que ele fez com elegância, enquanto olhava para a senhora que
começava a subir os degraus até o andar superior, onde ficavam as salas de jogos. E ele
não lançou um olhar sequer a Marina; praticamente, não a viu.
Ao chegar ao alto da escadaria, lady Luce estava pálida de raiva. Seus lábios
estavam-apertados, como para evitar que dissesse impropérios.
— Senhora... — Marina adiantou-se, mas ela logo a interrompeu:
— Fique longe de Kit Stratton, menina. Ele é perigoso. Mais do que pode imaginar.
Naquele momento, uma loira voluptuosa apareceu, sorrindo, e lady Luce voltou-se
para saudá-la.
— Como está, Méchante?
Marina jamais vira uma mulher vestida de maneira tão sensual. E teve de desviar o
olhar para não parecer tola. Notara, porém, o sorriso aberto e bonito da loira, cujos
olhos muito verdes pareciam faiscar. Havia algo de felino naquele olhar, Marina avaliou.
Muitas perguntas começavam a aparecer em sua mente. Quem seria o belo homem
do hall? Seu nome lhe parecia familiar, mas não conseguia identificá-lo. O que haveria
entre ele e lady Luce? Animosidade, com certeza, mas... por quê?
Olhou para a sua patroa e viu que ela já seguia, com sua anfitriã, por entre os
convidados da casa. Marina forçou-se a pensar em assuntos mais práticos. Tinha de
parar de imaginar onde estaria o elegante sr. Stratton. Precisava misturar-se aos
convidados, como a condessa lhe dissera. Olhou para as enormes cortinas de veludo e
imaginou que, se ficasse bem junto delas, a luz dos candelabros a fariam parecer não
mais do que uma sombra.
Sozinha e segura naquela espécie de esconderijo, ela apenas observava. Quase
todos os convidados eram homens. Soldados em uniformes escarlates, alguns bem
idosos, outros tão jovens que mal tinham barba. Marina lembrou-se de seu irmão, Harry,
e de quanto ele se orgulhara ao fazer sua primeira barba. Dentre os civis, poucos
estavam vestidos dentro da moda; a maioria a fazia lembrar-se de lady Luce, pareciam
todos bem nutridos e ricos, porém, na maioria, a caminho do túmulo. Quanto às
mulheres, bem poucas, três, na verdade, além de lady Luce e lady Méchante, já não
eram tão jovens. Usavam vestidos elegantes, mas já fora de moda, e duas delas tinham
o rosto bem pintado. Lady Luce tinha razão: aquela não era uma casa que se pudesse
recomendar a uma moça... Mas, então... por que insistira para que ela a acompanhasse?
O barulho naquele ambiente era quase ensurdecedor. Parecia que todos os
cavalheiros tinham bebido muito e falavam mais alto do que o normal para serem
ouvidos. Marina encolhia-se por entre as dobras da cortina, desejando jamais ter vindo
àquele lugar.
Passou os olhos ao redor e notou que sua patroa e lady Méchante haviam
desaparecido. Talvez estivessem numa sala ao lado e ela não sabia se deveria seguir os
passos de lady Luce. Hesitou, mas apenas por um instante. Era seu dever proteger a
condessa do vício de jogar e ela bem podia já estar sentada a uma mesa de carteado em
outro aposento...
Endireitando os ombros, Marina encheu-se de coragem e deixou a proteção da
cortina.
— Muito bem — disse uma voz masculina logo a seu lado, provocando-lhe um
sobressalto.
Ela sentiu o cheiro da bebida e do suor antes mesmo de se voltar para ver de quem
se tratava. De onde aquele homem aparecera? E ele estava praticamente sobre ela! Um
velho de aparência nojenta, embriagado, que a olhava com volúpia.
Na intenção de afastar-se quanto antes, Marina deu um passo à frente, porém o
sujeito a agarrou por um braço.
— Calma, mocinha! — disse ele, com um bafo horrível. — Quem é você?
— Meu nome não lhe interessa, senhor. — Ela tentava soltar-se, em vão. — Queira,
por favor, deixar-me ir.
Os olhos do homem a fitavam com interesse renovado.
— Mas quanta arrogância, mocinha! Não sei por quê... Com a sua aparência, deveria
dar graças a Deus que um homem a olhe! Não deve valer nem algumas moedas velhas.
Marina prendeu a respiração, percebendo o que ele imaginava que ela fosse. Com
um puxão, ela se soltou e seguiu por entre as pessoas até o outro lado do salão, passou
por uma porta, na esperança de encontrar a condessa no cômodo contíguo.
Decepcionada, viu que a sala tinha apenas algumas mesas de carteado, nas quais se
reuniam pequenos grupos de cavalheiros. Na mais próxima, um dos homens, claramente
perturbado por sua chegada abrupta, fez-lhe um sinal para que se mantivesse em
silêncio.
Marina assentiu e caminhou devagar, tentando manter a calma; seguiu para o outro
lado da sala, onde havia uma outra porta. Passou por ela, para mais uma sala de jogos,
onde havia uma mesa de dados com convidados barulhentos ao seu redor; no lado
esquerdo do lugar, havia uma roleta, junto à qual se espremiam outros convidados, entre
os quais mais duas mulheres.
De repente, Marina sentiu-se num pesadelo e desejou poder escapar dele. Mas não
sabia para onde lady Luce havia seguido...
Kit observou com atenção lady Luce subir a escadaria. Nos cinco últimos anos, ela
não mudara tanto assim, notou. Continuava uma mulher rude. Talvez tivesse desconfiado
de suas intenções; devia saber da mudança em sua vida. Damas de sociedade como ela
sabiam de tudo que acontecia.
Para onde ela estaria indo?, Kit se perguntava. Ousaria jogar sabendo que ele
estava ali, que podia arriscar a sorte com ela novamente?
É claro que ela iria jogar! Lady Luce podia ser terrível, mas não era covarde. Podia
até tentar evitar Kit, porém diante de um desafio, não recuaria. Tudo o que ele
precisava fazer era esperar o momento certo. Um dia, ele apareceria. Talvez, quem
sabe, nessa mesma noite...
Com um leve sorriso de satisfação, Kit subiu também a escada. Mas não tomou o
mesmo caminho que sua arquiinimiga. Aprendera, havia muito, todos os caminhos da casa
de Méchante. Sabia onde estavam ocorrendo os jogos mais altos e, como um caçador
bem treinado, sabia que a melhor tática era esconder-se e esperar por sua presa.
Marina estava pasma. Passara de cômodo em cômodo, encontrando jogadores
bêbados que mais pareciam polvos, cheios de mãos ousadas. Desviara-se de todos e
custara chegar de volta ao andar inferior. Mas ainda não vira sinal de sua patroa.
Do outro lado do saguão, uma porta se abriu e uma voz anunciou:
— Ah, então você está aqui! Não pensa que me engana fingindo que vai fugir.
Aprendi os truques do seu negócio antes mesmo de você nascer! E sei exatamente o que
tem em mente!
Marina voltou-se, viu o homem que avançava em sua direção e encolheu-se. Sentiu a
maçaneta de uma porta bater contra seu quadril e entrou depressa no cômodo que
aparecia as suas costas, e em seguida se apoiou na porta, aliviada.
Mais uma sala de jogos, percebeu, olhando ao redor. Menor do que as outras, mas
bem mais elegante. Duas mesas ovais estavam lado a lado e, a cada uma delas, um grupo
de senhores jogava em silêncio absoluto. Marina notou as pilhas e moedas, fichas e
notas sobre o tecido das mesas. Os jogadores, ali, faziam apostas muito altas.
Marina ainda não conseguia ver lady Luce. Talvez ela não estivesse jogando,
animou-se. À mesa bem à sua frente, lady Méchante fazia as vezes da banca.
Marina deu um passo à frente, mas um ligeiro sinal da dona da casa a fez deter-se;
não era bem-vinda ali. O que devia fazer?, indagou-se.
Logo atrás de si, alguém tentava abrir a porta. E, segundos depois, ela foi
empurrada contra suas costas, fazendo-a curvar-se para frente.
Lady Méchante franziu a testa, aborrecida pela distração, e fez um sinal para que
Marina deixasse a sala de imediato. E ela iria obedecer, mas parou de pronto quando
viu, à porta, o bêbado que a segurara antes. E ele a olhava, sorrindo maldosamente.
A voz de lady Luce, então, chegou aos ouvidos de Marina, num grito de alegria e
triunfo. Então, ela estava jogando na sala ao lado!, concluiu. E voltou-se tão de repente
que colidiu com um homem que acabava de se levantar da mesa de jogo.
Ao perder o equilíbrio, Marina quase caiu, porém dois braços fortes a ampararam e
ela percebeu-se diante de um peito largo, no meio do qual um alfinete de gravata em
forma de águia brilhava seu esplendor em ouro. Sentiu o calor que vinha do corpo
daquele estranho e ergueu os olhos para seu rosto. Era Kit Stratton, e ele a olhava com
a expressão mais severa que ela já vira.
CAPÍTULO IV
Kit fez com que a moça recuperasse seu equilíbrio, sem poder deixar de pensar
que aquele não era lugar para uma garota como ela. Calada, simplória, devia estar no
lugar errado sem nem ao mesmo saber, avaliou.
E seu olhar se desviou para o homem bêbado que ainda se encontrava recostado na
porta. Seus olhos avermelhados tinham toda a característica de um predador.
Kit baixou os olhos para a moça que ele ainda segurava e imaginou o que o bêbado
teria visto nela. Nada atraente, nem valia a pena ser perseguida, ponderou, a não ser, é
claro, para quebrar aquele estranho ar de "não-me-toque" que parecia haver ao redor
dela. É, devia ser isso, pensou. Devia ser divertido ver como aquela garota simplória iria
lidar com seu provável conquistador.
O bêbado deu um passo em direção a ambos.
— Obrigado por segurar minha mulher — resmungou ele. — Mas eu a vi primeiro.
Kit meneou a cabeça diante daquela afronta. Mesmo bêbado, o sujeito era
impertinente. Rodeou Marina e se pôs entre ela e o sujeito, baixando a cabeça para
colocá-la na mesma altura do outro. E, forçando-se a ignorar o terrível odor que havia
na respiração dele, disse:
— Deve estar fora do seu ambiente, meu amigo. E acho sua presença ofensiva. Vá
refrescar essa cabeça lá fora.
O homem encarou-o. Parecia que palavras firmes não eram suficientes para ele.
Então, Kit segurou-o com habilidade, fazendo-o dar meia-volta, e arremessou-o para
fora com um empurrão violento. Depois sorriu ao ouvir o ruído do corpo pesado cair
sobre a madeira do chão. E fechou a porta, sabendo que o sujeito não voltaria.
Quando se virou, Kit percebeu que Marina o olhava. E, dessa vez, notou que não
havia nada de simplório nela.
— Meus bons modos fazem com que eu lhe agradeça, senhor — disse Marina,
distante. — Mas devo dizer que pretendo fingir não ter visto uma demonstração tão
rude. — E, assim dizendo, ela se voltou e afastou-se em direção à outra sala.
Kit olhou-a, notando que ela caminhava com dignidade, como uma nobre. E achou
isso muito estranho. Sentiu uma vontade repentina de rir. Pela primeira vez, salvara
uma donzela em perigo, em vez de avançar sobre ela. E sua recompensa fora apenas um
olhar de desprezo... Devia saber, pensou. As mulheres eram todas iguais. Da próxima
vez, se houvesse uma próxima vez, ela se arrependeria de ter cruzado o caminho de Kit
Stratton.
Aliviada por estar longe dele, Marina ponderava sobre o relacionamento daquele
homem com sua patroa. Eram inimigos. E ele era perigoso, ela fora avisada. Por baixo
dos bons modos, ele devia ser um selvagem. Mas estava satisfeita com a forma que se
comportara diante dele: como uma dama.
Lady Luce jogava à mesa seguinte. Marina sentiu seu coração se apertar quando viu
que sua patroa estava com a banca. E aquele era um jogo sério. Jogavam faraó. Um jogo
que Marina detestava acima de todos os outros, porque fora o que arruinara seu pai. Um
jogo que podia ter apostas e perdas terrivelmente altas. Os homens continuavam
jogando, na esperança de reaver o que haviam perdido, e acabavam sem mais nada para
apostar. O faraó tinha levado muita gente à ruína. Teria acabado com seu pai se ele
tivesse sobrevivido à guerra, Marina sabia muito bem.
Ninguém ali parecia ter percebido que ela entrara no aposento. Recostou-se numa
parede próxima à mesa, recuperando o fôlego que ainda estava instável. Tentava
controlar-se, pensar que sua patroa não jogaria além de suas posses. Além do mais, com
a banca, ela teria mais chances a seu favor. Podia, até, deixar a mesa como ganhadora.
Tal pensamento acalmou um pouco Marina.
Havia mais cinco jogadores além de lady Luce àquela mesa. Todos eram homens.
Com as costas voltadas para Marina, lady Luce recolhia algumas fichas da mesa; seu
grito de triunfo parecia ter fundamento a julgar pela quantidade de fichas que possuía
agora. E embaralhava as cartas mais uma vez.
Os jogadores davam a impressão de estarem congelados em suas cadeiras, atentos
a tudo. Então, uma voz profunda quebrou o silêncio, vinda da porta:
— Deve estar com muita sorte, senhora! Ousa elevar as apostas para a próxima
mão? Talvez... vinte guinéus? Ou prefere passar a banca?
Marina não precisou se voltar para reconhecer quem falava. Era Kit Stratton. E o
tom dele era leve, mas trocista. Quase um insulto...
Um brilho indignado apareceu no olhar de lady Luce.
— De forma alguma, senhor — respondeu ela. — Não pretendo deixar a banca
ainda. Mas concordo que as apostas estão baixas. Sugeriu vinte? Acho melhor
cinquenta.
O cavalheiro sentado diante da condessa levantou-se de imediato.
— Alto demais para mim — disse e saiu da sala. Kit Stratton aproximou-se e tocou
o espaldar da cadeira deixada vaga. Marina sabia que ele estava desafiando a condessa
a continuar. E sabia também que lady Luce não cederia diante daquele homem.
O que devia fazer?, ela se perguntava. Tentava, mas, por algum motivo, não
conseguia raciocinar direito. Era seu primeiro dia de serviço e não conseguia fazer o
que lhe fora ordenado. O que estava lhe acontecendo, afinal?
— Cinquenta? — repetiu Kit. — Para mim, está bem, a não ser que queria apostar
mais alto ainda.
Marina rezava para que sua patroa ignorasse aquele desafio. Porém lady Luce
sorriu, primeiro para o sr. Stratton, depois para os outros jogadores.
— Senhores — disse —, como dona da banca, aceitarei qualquer valor proposto pelo
sr. Stratton. — E tornou a encarar Kit com um brilho de vitória no olhar.
Por alguns segundos, ele nada disse. Depois, com voz calma e suave, aceitou:
— Senhora, dá-me uma grande honra, mas não seria cavalheiresco desapontá-la. As
vontades de uma senhora devem sempre ser satisfeitas. Digamos... duzentas libras?
Dessa vez, um murmúrio de espanto passou por todos os presentes. Mais dois
jogadores se retiraram, murmurando desculpas para não continuarem no jogo. Mas Kit
Stratton mantinha-se firme em sua posição. Ele ria, porém Marina percebia que não
havia humor algum em sua atitude.
— Parece que vai ser um jogo bem íntimo, senhora — Kit comentou, olhando
fixamente para lady Luce.
Marina sentiu-se tonta de repente. Apoiou-se na parede, para manter o equilíbrio.
Aquilo não podia estar acontecendo! Duzentas libras era muito dinheiro! Deu dois passos
à frente, na esperança de chamar a atenção da condessa. Tinha que fazê-la parar de
alguma forma!
— Ah, então você está aí! — Lady Luce a viu. E apontou para uma cadeira vazia a
um canto. — Sente-se e não faça nada. Isto é importante demais para que me distraia.
Marina obedeceu, com o coração apertado. O olhar firme da condessa mostrava-
lhe que não devia argumentar. Marina queria poder fazer alguma coisa, mas sua única
esperança era de que sua patroa ganhasse.
Porque aquele cavalheiro sem coração poderia arruiná-la. E, por conseguinte, a ela
própria...
Kit observava as mãos gorduchas de lady Luce embaralhando as cartas. Manter o
olhar fixo ajudava em sua concentração. Também o ajudava a perceber qualquer sinal de
trapaça, embora soubesse que nada precisava temer quanto a isso. Lady Luce era
orgulhosa demais para trapacear, mesmo que soubesse como fazê-lo. Aquele seria um
teste de nervos e de habilidade. A mente bem treinada de Kit nas cartas provavelmente
acabaria com qualquer vantagem que lady Luce pudesse ter.
E, depois disso, era deixar que a sorte falasse mais alto.
Com as cartas todas juntas, lady Luce empurrou o baralho para Kit.
— Quer embaralhá-las também, senhor? — ofereceu. — Ou gostaria que algum dos
senhores que nos observam o fizesse?
— Tenho certeza de que elas estão muito bem embaralhadas, senhora. Mas
gostaria de cortar, se me permite.
E ele assim o fez, sem encarar sua oponente.
Marina percebeu que sua patroa se irritava com o sarcasmo dele. Era óbvio que os
dois se detestavam, embora Marina não pudesse compreender por quê.
— Apostas, por favor — lady Luce chamou.
Kit retirou duas notas graúdas do bolso e colocou-as sobre a mesa, junto ao 9. O
homem calvo que se encontrava ao lado de Marina pareceu vacilar, mas o rapaz perto
dele foi mais decidido e ficou com a rainha. Por fim, o indeciso deixou suas notas sobre
o 6.
Marina prendeu a respiração, esperando pela primeira carta a ser virada. Seu pai
sempre dizia que a primeira carta era um presságio para o resto do jogo. As jogadas do
faraó normal consistiam de duas cartas; a banca vencendo com a primeira e os
jogadores com a outra, mas a primeira e a última chamadas eram sempre com cartas da
banca. O pai de Marina se convencera de que se a banca ganhasse a primeira carta, os
jogadores acabariam perdendo durante o jogo. Porém Marina nunca acreditara muito
nisso, pois não evitara que seu pai perdesse tudo que possuía. E agora ela rezava para
que lady Luce ganhasse.
Precisava ser um 6, um 9 ou uma rainha. Melhor ainda se fosse o 9 apostado pelo
sr. Stratton. Porque queria vê-lo perder.
Lady Luce se preparava. Sorriu para os três homens antes de tocar no baralho.
Parecia muito confiante. Tirou a primeira carta, olhou-a e colocou-a ao lado do baralho:
um 9!
Sorrindo, a velha senhora recolheu a aposta feita por Kit. Ele nem mesmo piscou. E
Marina achou-o parecido com uma estátua de mármore: belo, frio, sem coração. Os
deuses do Olimpo costumavam divertir-se brincando com os homens, imaginou,
lembrando-se do que aprendera sobre mitologia. E Kit Stratton parecia agir da mesma
forma em relação a seus oponentes.
Retirou mais duas notas do bolso e colocou-as novamente junto ao 9, sem olhar
para qualquer um dos que se encontravam a seu redor. Parecia totalmente concentrado
nas cartas.
Marina reconhecia aquele olhar. Vira-o em seu pai. O sr. Stratton devia ser um
grande jogador, com habilidade para memorizar todas as cartas jogadas. Ela mesma
fora ensinada a fazê-lo por seu pai. Isso ajudava a aumentar as chances, sobretudo no
final do jogo, quando havia poucas cartas sobrando. Kit Stratton estava jogando para
ganhar.
A condessa olhou as cartas para a próxima mão: um rei para a banca, seguido de
um 2. Assim, não houve ganhadores. Com tão poucos jogadores, haveria muitas rodadas
iguais a essa. Se a banca fosse rápida, seria ainda mais difícil memorizar as cartas.
Marina começou a prestar atenção para fazê-lo. Assim ficaria calma, ainda mais se o sr.
Stratton viesse a ganhar.
Houve mais três mãos sem vencedores e Marina sabia exatamente quais cartas
tinham já sido jogadas. Talvez o sr. Stratton também soubesse, mas não havia como
adivinhar pela expressão dele.
Lady Luce virou um 6. O homem calvo gemeu baixinho e começou a retirar mais
dinheiro do bolso antes mesmo que a jogada estivesse terminada. A carta seguinte foi
outro 9, e lady Luce pegou as duas notas de Stratton entre os dedos, como se
estivessem contaminadas, e as colocou a seu lado.
Kit sorriu de leve, depois voltou a ser impassível. Suas mãos estavam sobre a mesa
e Marina notou que eram bem tratadas, momentaneamente distraída do jogo. Percebeu
também que eram mãos fortes; não deviam ser gentis. Talvez ele desejasse colocar
aquelas mãos em torno do pescoço de lady Luce e apertar até tirar-lhe a vida...
Surpresa com o próprio pensamento, Marina voltou à realidade do jogo. Afinal, Kit
Stratton era apenas um jogador e um cavalheiro, com certeza.
Com calma, ele deslizou suas notas do 9 para o 10. E lady Luce virou outra carta:
outro 9!
O homem calvo riu, mas se calou diante do olhar severo de lady Luce. Ela não
queria distrações ali. Dessa vez, a carta da mesa era uma rainha e o rapaz ganhou.
Sorrindo, ele colocou sua aposta junto à de Kit, no 10. Também ele devia estar
percebendo que aquele era um jogo de vida ou morte. E escolheu ficar com os homens,
Marina avaliou; contra uma senhora idosa...
Treze cartas tinham sido jogadas. Marina lembrava-se de todas elas. Kit Stratton
apostara quatrocentas libras no 10. Havia ainda 39 cartas a serem viradas. E entre elas,
os quatro 10.
Marina já tinha dificuldade em lembrar-se de todas as cartas. Isso nunca lhe
acontecera antes. Sempre se orgulhara de sua habilidade de memória, mas agora que
era tão importante, esse dom a abandonava. Talvez fosse por causa daquelas longas e
belas mãos... Não conseguia desviar os olhos delas. Tão calmas... Kit Stratton era como
um falcão: um caçador tranqüilo e fatal, disposto a lançar-se com eficiência contra
qualquer presa que aparecesse.
Havia apenas dezenove cartas sobrando. E nenhum 10 aparecera. Muitas pessoas
tinham se juntado para apreciar o jogo agora. O duelo entre Kit Stratton e lady Luce
atraía a atenção geral.
O homem calvo parecia manter-se calmo ou fingia estar. O rapaz estava animado.
Não falava, mas seus movimentos mostravam seu estado de espírito. Havia gotas de
suor em sua testa; seu destino dependia, como o de Kit, daqueles fatídicos 10.
Lady Luce continuava a virar cartas. A do homem calvo ganhou. Impassível, a
condessa empurrou o dinheiro que ele ganhara e esperou por sua próxima aposta. A
quantidade de dinheiro que havia agora diante dela era pequena; precisava
desesperadamente de uma carta vencedora.
A tensão crescia. Os lábios da condessa ficavam mais e mais finos. Seu sorriso
desaparecera, mas suas mãos mantinham-se firmes nas cartas que virava. Um 9 para a
banca. Inútil. E depois uma carta para os jogadores: um 10.
As pessoas na sala prenderam a respiração. O rapaz ria de orelha a orelha, mas Kit
Stratton mantinha-se imóvel. Olhava apenas para as cartas.
A condessa empurrou suas últimas notas em direção ao rapaz. Este recolheu-as e
as colocou sobre a rainha, olhando com certo ar de desculpa para Kit. Lady Luce não
possuía mais nota alguma. Então pegou uma pena e um bloco de papel que havia logo ao
lado e escreveu sua aposta. Olhou para Kit, que, impassível, ergueu o dedo indicador
para a mesa, mostrando que continuava no jogo.
Marina sabia que ele estava administrando sua sorte. Se ganhasse mais uma vez, a
condessa teria de pagar-lhe sete vezes a aposta. E isso significava aproximadamente
três mil libras!
Lady Luce fez menção de virar mais uma carta, e Marina fechou os olhos, incapaz
de continuar observando aquela tortura. Havia ainda três 10 no maço que a condessa
segurava.
Um gemido do homem calvo fez Marina tornar a abrir os olhos. Ele perdera, e Kit
Stratton ganhara com outro 10.
Dessa vez, Marina sabia exatamente o que ele iria fazer. Suas mãos elegantes
moveram-se de novo. Ele apostava tudo que ganhara contra o prêmio de quinze vezes
sua aposta!
Mais três rodadas e nenhum 10 apareceu. O rapaz perdeu com sua rainha e o
homem calvo ganhou com seu rei.
Kit Stratton mantinha-se firme como uma rocha fria. Havia ainda sete cartas
sobrando. Marina queria concentrar-se nas cartas. Quais eram? Precisava saber!
Esforçou-se ao máximo, até que, de repente, sua mente projetou-lhe a idéia exata
do que restava ser virado no maço de cartas: dois azes, um 2, um 3, um valete e dois 10.
O homem calvo tinha duzentas libras no ás. O rapaz colocou sua aposta no 6; era
óbvio que não tinha boa memória para cartas. E o sr. Stratton, com classe, escorregou o
dedo e sua aposta sobre o 10. Parecia que ninguém ousava respirar enquanto esperavam
que lady Luce virasse as próximas cartas. Um ás para a banca e um 3 para os jogadores.
Lady Luce retirou seu ganho de sobre o ás. Marina respirou aliviada. Agora, pedia a
Deus que o mesmo acontecesse com o 10.
O homem calvo apostou no 10. Parecia ter decidido que era Kit Stratton quem
estava com sorte. Com calma, a condessa virou mais uma carta. Um 2 inútil. E, em
seguida, a outra carta: um 10!
O homem calvo riu, satisfeito. Havia um silêncio mórbido na sala, enquanto todos
aguardavam pelo próximo movimento de Kit. Ele podia recolher seu dinheiro agora, seis
mil libras, ou prosseguir, se pretendesse dobrar seu ganho para trinta vezes a aposta
original.
E lá estava ele, parado como uma estátua, pensando. No quê? Havia apenas três
cartas sobrando. Um jogador experiente devia saber agora que a banca tinha duas
chances de vencer, e ele, apenas uma. O homem calvo recolheu seu dinheiro sabiamente.
Era improvável que Kit Stratton ganhasse outra vez.
Mas ele era um jogador até o âmago de seu ser. Sem deixar de olhar para as
cartas, apostou novamente. E, por alguns segundos, um sorriso irônico apareceu em seus
lábios.
Marina sentia o coração acelerado. Aquele sorriso muito leve dissera-lhe tudo. Kit
tinha certeza de que as probabilidades eram contra ele, mas estava preparado para
tentar a sorte a fim de derrotar a mulher a quem detestava. E, se não tivesse sucesso
agora, faria com que houvesse outras ocasiões. Era o grande inimigo da condessa.
Marina olhou para a velha senhora. Ela estava pálida e havia raiva em seu olhar.
Aceitou o último desafio do sr. Stratton. Parecia-lhe melhor arriscar uma perda
improvável de doze mil libras do que pagar uma perda certa de 6 mil.
Reunindo coragem, Marina forçava-se a olhar. Havia três cartas sobrando: um ás,
um valete e um 10. E as mãos de lady Luce mexiam nelas quase com carinho. De repente,
virou a de cima: o ás.
Duas cartas sobrando, chances iguais agora para ambos. Lady Luce sorriu
tranqüila, mas o sr. Stratton continuava a fixar as cartas. Não olhou para ver a
expressão no rosto da condessa quando ela virou a carta que poderia ser sua ruína: o 10.
Kit Stratton tinha ganhado doze mil libras. Com um gesto de aborrecimento, lady
Luce olhou para a última e inútil carta. Tudo estava acabado. Aceitara o desafio e
perdera. Endireitou as costas e esperou as palavras de seu adversário.
Mas ele nada disse. Estava apenas olhando para a carta com a qual ganhara. Então,
muito lentamente, seus olhos se cerraram um pouco e seus lábios formaram um sorriso.
E esse sorriso fez os cabelos da nuca de Marina se arrepiarem, pois havia algo de
demoníaco nele.
Erguendo o rosto alguns centímetros, ele olhou para a condessa; ainda sorria. E
Marina pensou numa víbora, com a cabeça erguida diante da vítima antes do ataque
fatal. Como pudera achá-lo bonito?, indagou-se, repugnada. Havia ódio e vingança
naquela expressão terrível. Queria deixar de olhar para Kit, mas não conseguia. E,
diante dele, a condessa parecia miúda agora, frágil, mais envelhecida.
Era como se Kit esperasse que lady Luce dissesse algo, atestando sua derrota. E
gostaria disso. Queria humilhá-la. Mas lady Luce apenas assentiu, como se nada de mais
tivesse acontecido; então reuniu as cartas de sobre a mesa com mãos firmes.
Muito devagar, Kit Stratton levantou-se; estava apreciando cada momento da sua
vitória. Alto, ele olhava para lady Luce ainda sorrindo daquela forma terrível... E então
falou, com uma voz extremamente suave:
— Pelo que vejo, desta vez o sucesso foi meu.
Mas lady Luce não se deixou abater. Seu autocontrole era admirável. Pegou uma
folha do bloco, escreveu nela sua dívida e assinou embaixo.
— Mas eu não tenho pressa em receber o que me pertence — prosseguiu Stratton,
baixando sua voz ainda mais. — Imagino que deva dar-lhe um prazo para que possa
levantar tal soma... Digamos... sete dias? Bem, então, boa noite, condessa.
Lady Luce continuou em silêncio. Não havia necessidade de dizer coisa alguma. A
expressão em seu rosto era bem eloquente. E Marina percebeu que podia detectar até
um certo medo nela.
Kit Stratton pegou a folha de papel, dobrou-a e a colocou no bolso do paletó. Havia
triunfado. E Marina sentia-se ainda mais derrotada do que a condessa, porque o conde a
demitiria por ter falhado em sua missão. Sua única chance de ter um emprego e uma
vida decente fora destruída por aquele belo, mas odioso homem. Alguém precisava
fazer algo para detê-lo!, considerou.
Sem pensar, Marina levantou-se e colocou-se diante dele. E, tocando-lhe o braço,
começou:
— Senhor... — observou-lhe os olhos mais frios que ela jamais vira. — Por favor,
não poderia... não poderia...
Mas não conseguiu terminar seu pedido.
— Não, senhora — ele respondeu, sério. E afastou o braço dos dedos de Marina
como se eles trouxessem em si alguma doença. — Seja o que for que pretenda me pedir,
a resposta é "não". — Com calma, Kit retirou um lenço de cambraia do bolso e passou-o
pelo local onde ela o tocara.
Ultrajada, Marina encarou-o. Não encontrava palavras à altura para descrever um
ser tão mesquinho quanto aquele homem. Estava enojada. Mas ele simplesmente se
afastou e foi embora. E levou consigo todas as esperanças que Marina poderia ter.
CAPÍTULO V
Kit passou pelos que haviam observado .o jogo e que agora se afastavam devagar
para abrir-lhe caminho. Muitos daqueles rostos demonstravam fascínio. Provavelmente,
nenhuma daquelas pessoas teria arriscado perder tanto.
No andar inferior, o bêbado que Kit arremessara para fora da sala já havia ido
embora havia muito tempo. O hall parecia deserto. Kit desceu devagar a enorme
escadaria, sua mente parecia vazia. Mal podia se lembrar do que fizera, exceto que, por
fim, havia conseguido sua tão esperada vingança. Deveria estar se sentindo aliviado,
triunfante, feliz, mas nada disso acontecia. Na verdade, não sentia absolutamente nada.
Voltou-se para ver Méchante descendo as escadas, logo atrás, com passos
ondulantes, lascivos. A seda do vestido que ela usava era quase transparente, deixando
bem pouco à imaginação. Nos últimos anos, Kit havia preferido mulheres um tanto mais
resguardadas. Diferente de Méchante, sua atual amante não se oferecia a qualquer um.
A baronesa Katharina Von Thalberg oferecia-se apenas a ele... e ao marido, é claro. E
Kit não poderia fazer objeção a isso.
Esperou até que Méchante o alcançasse, comparando-a mentalmente com a bela
Katharina e achando-a um tanto sedutora. Sim, nessa noite poderia procurar por
Katharina, pensou. Perdendo-se no corpo dela, teria de volta um pouco da sanidade que
fora desencadeada nessa noite de loucura.
— Já vai, Kit? — Méchante perguntou em um sussurro. — Não quer beber comigo
uma taça de champanhe por sua vitória? E pelos velhos tempos, também? Tenho uma
garrafa excelente esperando, no gelo, em meus aposentos. — Ela o olhou
significativamente, depois recostou-se a seu corpo para segredar-lhe no ouvido: —
Meus convidados podem ficar sem mim por uma ou duas horas...
O corpo de Kit não reagiu àquele convite. Levar uma mulher para a cama era para
ele um prazer tão natural quanto vencer numa rodada de cartas. Porém Méchante o
deixava frio. Fora sua amante havia cinco anos, e o traíra.
Levou a mão da mulher aos lábios, mas evitava encará-la para que ela não
percebesse o que sentia.
— Não, minha cara — murmurou. — Eu nunca volto atrás. E nunca divido nada.
— Cuidado, então, meu querido. — Méchante já não sussurrava. Havia certa malícia
em sua voz agora e seus intensos olhos verdes estavam semicerrados. — A sua
Katharina arrisca-se demais. Seu marido pode não ser tão compreensivo agora que já
não estão mais em Viena; lá, ele era apenas um aristocrata sem importância, mas aqui é
um representante diplomático do Império Habsburgo... Um escândalo poderia arruiná-
lo... E isso poderia acontecer tão facilmente, não acha?
Ela era inteligente e ainda muito perigosa. Seu nome fazia-lhe jus. Kit, então,
fitou-a nos olhos. Sim, entendiam-se muito bem.
— Obrigado pelo convite para esta noite, Méchante. E por suas sábias palavras
também. — Ele se inclinou de leve e voltou-se para pegar a cartola e a bengala que um
criado lhe trazia. — Agora devo dizer-lhe boa noite. Foi, de fato, muito boa para mim.
Sinto-me em dívida com você.
A risada suave dela o acompanhou até que Kit deixou a casa.
Era muito tarde. Katharina, com certeza, já se cansara de esperar por ele. Devia
estar com o marido, extremamente irritada por haver esperado tanto tempo. Kit
fechou a porta atrás de si e subiu a escada da elegante casa que alugava na cidade.
Dormiria ali por algumas horas e, no dia seguinte, melhor dizendo, naquele mesmo dia,
mas depois do raiar do sol, daria um jeito de encontrar-se com Katharina e desculpar-
se. Talvez ela o perdoasse... E, se lhe impusesse uma penalidade... bem, isso seria
divertido também.
Sentiu-lhe o perfume antes mesmo de entrar no quarto. Aspirou profundamente,
tentando recuperar lembranças de momentos em que estivera na cama com ela. Pena ela
já ter ido embora...
Mas, para sua surpresa, lá estava Katharina, deitada no enorme leito, folheando
uma revista.
— Ah, Kàtchen!
Ao ouvi-lo pronunciar o nome carinhoso como era conhecida, voltou-se e, por
breves instantes, franziu a testa. Seus grandes olhos negros o fitavam com rancor e
acusação.
— Sinto muito, querida — Kit começou, sem jeito. Katharina podia ter todo o
direito de sentir-se aborrecida, mas não estava disposto a ouvir um de seus sermões.
Aliás, ela nem precisava ter esperado.
Olhou-a, notando-a ainda irritada. Mesmo assim, sua bela austríaca era
extremamente provocante. Ouviu-a dizer algo em alemão, e corrigiu-a:
— Em inglês, minha cara.
Com um muxoxo, ela apenas o encarou. E Kit explicou, tirando o paletó e a gravata
e deitando-se a seu lado:
— Palavras são sempre perigosas, sabia? Em qualquer idioma. — E, sem cerimônia,
passou a acariciar-lhe os seios, fazendo-a cerrar os olhos. — Além do mais, não
precisamos de palavras, não é?
Seus lábios estavam tão próximos da pele dela que cada palavra era uma carícia
que a arrepiava mais e mais. Kit observou-a com atenção, notando sua beleza. E seu
corpo se aquecia a cada instante diante da paixão que notava brotar de Katharina.
A mão de lady Luce tremia quando ela levou o cálice de licor aos lábios.
— Eu devia ter deixado aquela casa no momento em que o vi — repreendeu-se
amargamente, deixando-se cair em sua poltrona favorita junto à janela. — Esse homem
é o próprio Lúcifer disfarçado! E tem a sorte dele também!
Marina assentiu de leve. Era-lhe estranho ver a condessa tão fragilizada. Ouviu-a
gemer com raiva e continuar:
— Quanto a William... — E meneou a cabeça, irritada ao pensar no filho. — Ah, vai
adorar me passar um bom sermão! Claro que não lhe darei essa chance! Sabe, achei que
ele poderia querer me enganar. E mandou você para me vigiar! Bem, quem é o tolo agora?
Então, ela sempre soubera, analisou Marina, em silêncio. Não devia surpreender-se.
A velha senhora era muito esperta, e seu filho não lhe era páreo. Fosse como fosse,
mesmo sem ser tão inteligente, o conde ainda podia demitir Marina.
A condessa ergueu o cálice para que Marina o enchesse novamente. E ela obedeceu
sem uma palavra.
— Por que não toma um pouco também? — ofereceu lady Luce.
— Não, senhora, obrigada. Não bebo nada alcoólico. Eu...
— Vamos, pegue outro cálice, menina! Vai precisar de um pouco disto. Terá um dia
difícil a sua frente. William vai cuidar disso. Adora esse tipo de coisa...
A condessa tinha razão. Marina devia ser demitida nas próximas vinte e quatro
horas. E ela sentia o estômago se revirar só em pensar que teria de falar com o conde.
Bebericou o licor que serviu a si mesma, mas acabou tossindo.
— Meu Deus! — exclamou, por fim. — As pessoas bebem isto por prazer?!
Lady Luce riu. Estendeu o braço e tocou a mão de Marina.
— Tenha coragem, menina. Vou ajudá-la. E não permitirei que aquele idiota do meu
filho a trate mal ou a mande embora.
Marina encarou-a, surpresa.
— Por que acha que eu a levei à casa de Méchante esta noite? — Lady Luce
prosseguiu. — Não tenho a menor intenção de permitir que William mande em minha
vida. De forma alguma! Levei você até aquele antro para mostrar a ele e a você também
que vou continuar jogando quando e onde bem entender. Ele não pode me deter. E
manter uma dama de companhia para evitar que eu faça o que quero não vai funcionar
também.
— Mas, senhora, eu não... não...
— Eu sei que não. Eu mesma cuidaria de demiti-la se achasse que era uma
ferramenta de William. Mas, como ele me prometeu uma dama de companhia, com todas
as despesas pagas, vou mantê-lo preso a sua promessa.
Marina respirou fundo. A vida começaria a ser muito desagradável se a velha
condessa e seu filho passassem a usá-la como peão em seu jogo de poder. Ainda mais
com o peso de duzentas libras para tornar a briga ainda mais intensa...
Lady Luce estendeu o cálice para mais um trago. Depois ficou um longo tempo em
silêncio, com a bebida entre as mãos e os olhos perdidos no nada. Devia estar pensando
no dinheiro, Marina imaginou. Não devia ter uma soma tão alta assim. Muito menos em
uma semana.
— Ele estava determinado a vingar-se — lady Luce murmurou pouco depois, ainda
imersa em seus pensamentos. — Acho que não posso culpá-lo por isso. E foi fiel ao que
disse. Eu devia estar preparada.
— Perdoe-me, senhora, mas não estou compreendendo...
— E nem deveria, menina. Nem eu estava falando com você. Mas como vai acabar
sabendo de tudo, é melhor que seja eu mesma a lhe contar. Não quero que fique ouvindo
comentários dos criados. Fofocas sempre mudam os fatos, como deve saber.
Lady Luce riu de leve ao sabor de suas lembranças. Depois começou seu relato:
— Na verdade, não existe tanta coisa assim para contar. Há alguns anos, quando
Kit Stratton ainda era um rapazola, ele perdeu cinco mil libras para mim. Eu mesma
estava numa situação financeira muito difícil naquela época e não pude dar-lhe tempo
para me pagar, muito menos para poder recuperar suas perdas. Exigi que me pagasse
dentro de sete dias. Usei aquelas mesmas palavras, e ele esperou durante todos esses
anos para se vingar.
Marina sabia que muitos cavalheiros perdiam fortunas no jogo. Por que, então, Kit
Stratton teria se vingado daquela forma? E ainda mais contra uma senhora idosa?
Seus pensamentos deviam tê-la traído, pois lady Luce olhou-a, parecendo um tanto
envergonhada.
— Ele me pagou — disse. — E mais tarde descobri que seu irmão Hugo lhe havia
dado o dinheiro; um dinheiro tirado do dote da esposa. Os dois estavam casados havia
menos de uma semana. Kit foi enviado ao exterior pouco depois.
Marina começava a entender. Não era de admirar que Kit Stratton tivesse ficado
tão envergonhado e humilhado. O que seu irmão poderia ter pensado sobre tudo aquilo?
Teria Hugo Stratton realmente enviado o irmão ao exílio? Hugo Stratton! Agora
percebia por que o nome lhe tinha soado familiar!
A condessa começava a soltar a língua, talvez por efeito da bebida, Marina notou.
— E, não posso dizer que a culpa tenha sido do rapaz. Foi minha, na verdade.
Deixei-o pensar que estava agindo por maldade quando, de fato, foi William quem agia
assim. Ele insistiu que não poderia me ajudar com dinheiro algum, e eu não poderia
jamais admitir uma coisa dessas ao jovem Stratton, não é mesmo? Mas hoje ele usou as
mesmas palavras que eu disse... — Ela terminou a bebida de um só gole.
— Conhece Hugo Stratton, senhora? O irmão dele?
— Como? Ah, sim. Bem... certa vez fomos apresentados, mas todo mundo o
conhece. É imensamente rico, desde que seu irmão mais velho faleceu; isso para não
mencionar o dinheiro que a esposa tem e que passou às suas mãos com o casamento. Mas
ele não vem muito a Londres. Passou a não vir especialmente depois da guerra, dizem,
porque detesta que fiquem olhando para o seu rosto.
Marina encarou-a.
— Como assim?
— Ah, ele foi muito ferido! Mas... por que esse súbito interesse por Hugo
Stratton? De onde acha conhecê-lo?
Marina engoliu em seco.
— Acho que ele serviu com meu pai no Exército, senhora. Na Espanha. Creio que
lutou na batalha em que meu pai e meu tio morreram.
Lady Luce nada disse. Simplesmente alcançou a garrafa de licor e serviu-se,
enchendo o cálice até a boca. Depois fez o mesmo com o cálice de Marina.
Era difícil para Marina encontrar uma posição confortável em sua cama. Já devia
ser madrugada e ela sentia a cabeça latejando, sem conseguir dormir. Não deveria ter
bebido aquele licor, recriminava-se. Fechou os olhos uma vez mais, numa nova tentativa
de adormecer.
Kit Stratton era o irmão mais novo de Hugo Stratton, seu cérebro insistia em
repetir-lhe. E um certo capitão Hugo Stratton tinha sido o melhor amigo de seu tio.
Haviam servido juntos no Exército durante anos. De acordo com tio George, Hugo
Stratton era um excelente amigo e companheiro. Fora em parte por influência dele que
o pai de Marina havia conseguido uma vaga no 95º Regimento.
Kit Stratton, portanto, não podia ser assim tão mau quanto falavam. Não era
possível. Não, se Hugo Stratton fosse seu irmão. Talvez Kit tivesse outros motivos para
detestar a condessa, Marina ponderava. Talvez seu insulto em relação a ela mesma,
Marina, fosse apenas uma continuação inconsciente da tensão do jogo... Talvez.
Não havia outro modo de saber, a não ser averiguar. Faria isso: procuraria Kit
Stratton e pediria a ele que perdoasse a dívida de lady Luce. Se necessário fosse,
pediria que o fizesse em memória a seu pai e seu tio mortos, e também pela amizade
que seu irmão Hugo tivera por eles. Nenhum cavalheiro poderia negar-se a tal pedido.
Mas, ao pensar em falar com ele, sentia seu estômago revirar. Teria de deixar
todo o orgulho de lado e, se ele a tratasse com o mesmo desprezo dessa noite...
Estremeceu. Não sabia se poderia suportar tanto.
Seria Kit Stratton um cavalheiro, afinal? Lady Luce falara por muito tempo sobre
o estilo de vida que ele levava, suas amantes, suas roupas caras, suas carruagens, seus
cavalos... Possuía todos os atributos de um cavalheiro de muitas posses. Mas teria ele
um senso de honra que lhe permitisse agir com benevolência?
Soubera, pela condessa, que Kit exercitava seus animais no parque pela manhã,
chovesse ou fizesse sol. E ele estaria lá dentro de poucas horas. Ela precisaria apenas
ir até lá e enfrentá-lo. Como cavalheiro que era, ele não se recusaria a ouvir seu pedido.
Poderia, sim, Marina argumentou consigo mesma, revirando-se entre os lençóis.
Poderia dispensá-la sem hesitar. Já o fizera antes... e poderia repetir seu gesto. A não
ser que ela encontrasse um meio de romper aquela espécie de armadura que ele parecia
vestir.
Seu orgulho próprio não interessava. Era seu dever de proteger sua família que
falava mais alto agora. E, para tanto, ela precisava manter-se no emprego e salvar a
condessa. O caminho para isso era desafiar Kit Stratton.
Mas por que ele tinha de estar cavalgando um animal tão grande?, perguntou-se ao
ver Kit naquele cavalo enorme. Sentia-se uma anã. Viu-o puxar as rédeas com suavidade,
fazendo o cavalo parar. Havia um estranho brilho em seus olhos ao fixá-la.
— Parece que acordou muito cedo hoje, senhora — disse. — E deve ter se perdido
de sua criada...
— Uma dama de companhia não possui criada, senhor, como deve saber — Marina
devolveu no mesmo tom altivo que ele usara.
Kit ergueu as sobrancelhas. Depois assentiu muito de leve.
— Não, de fato — comentou. — Mas pode possuir uma língua bem afiada.
Marina sabia que estava corando e irritou-se consigo mesma por isso. Engoliu em
seco, não querendo parecer hostil. Afinal, não fora para isso que viera até ali.
— Sr. Stratton — recomeçou —, eu gostaria de poder lhe falar em particular. É
sobre... ontem à noite. Eu...
Ele franziu a testa.
— Veio a pedido de lady Luce? — interrompeu-a. — Acredite, senhora, eu não...
— Não, não! — Marina apressou-se em esclarecer. — Ela nada sabe sobre minha
atitude, eu juro! Tenho meus próprios motivos para ter vindo... consultá-lo.
O estado de espírito dele mudava conforme Marina falava. Estava quase sorrindo,
mas sua expressão, mesmo assim, não era agradável. E ela sentiu uma vontade enorme
de sair correndo dali e nunca mais voltar a vê-lo. Tornou a engolir em seco, sabendo que
Kit Stratton fazia todo o possível para tornar sua posição impossível. Nem mesmo
desmontara, como qualquer cavalheiro teria feito. E isso chegou a irritar Marina.
Percebia que ele tentava, de propósito, humilhá-la. Devia desprezá-la por não passar de
uma dama de companhia e aproximar-se assim dele.
— Está me interpretando mal, senhor — disse, rígida. — Não vim a pedido de lady
Luce, mas por minha própria conta para pedir-lhe um... favor. — Ela notava que a
expressão dele ficava ainda pior, mais fechada. — Não é por ela, senhor, pois sei que
isso seria impossível, mas... por...
— Um favor? Um favor para quem? — Kit rebateu. — Para a senhora? Acredite,
não faço favores a mulheres. Não, até que elas façam por merecê-los.
Marina não conseguia mover-se, muito menos falar. Aquilo não podia estar
acontecendo, dizia a si mesma. Ele estaria dizendo o que seus ouvidos tinham escutado?!
— Parece que entendeu o que eu quis dizer — Kit continuou. — Ótimo. — E curvou-
se em direção a ela. Seu perfume a atingiu, parecendo combinar muito bem com seu
caráter pouco recomendável. — Se deseja... discutir o assunto de ontem à noite,
senhora, estarei disposto a ouvi-la. Estarei livre às onze horas ainda esta manhã. Poderá
fazer-me seu pedido, então. Em particular, como prefere.
Ele lhe entregou um endereço em Chelsea. Para Marina, uma estranha em Londres,
aquilo nada significava. Viu-o sentar-se novamente na sela e dizer, antes de partir:
— Espero-a às onze. Não se atrase.
CAPÍTULO VI
Kit ergueu os olhos do jornal quando o grande relógio do hall bateu as horas. Tinha
feito a ela a cortesia de estar ali porque ela era uma dama. Mas soubera que ela não
viria. Baixou novamente os olhos para as notícias impressas; iria apenas terminar a
leitura daquele artigo e depois sairia para ir até o clube. Não havia dúvida de que as
notícias sobre sua vitória no jogo da noite anterior já deviam estar circulando por toda
parte, inclusive por lá. Com certeza, nada mais ouviria em uma semana. Acomodou-se
melhor na poltrona de couro da sala de estar de sua casa em Chelsea. Cinco minutos
depois, uma batida suave na porta chamou-lhe a atenção. A mulher miúda que cuidava da
limpeza apareceu então, dizendo, humilde:
— Há uma pessoa querendo lhe falar, senhor. Mas não quis dizer seu nome. Ela...
— A senhora veio tratar de negócios — Kit apressou-se em esclarecer, para evitar
especulações. E levantou-se, ordenando: — Peça a ela para entrar, sra. Budge.
Quando Marina entrou, com o vestido cinza salpicado de respingos de lama, Kit
olhou de soslaio para a janela. Entretido em sua leitura, não percebera a chuva. Ela
teria caminhado até ali? Não fazia sentido! Já era uma mulher tão sem atrativos, e
agora ainda havia aqueles respingos todos para piorar sua aparência!
Como podia achar que ele se interessaria? Kit ergueu as sobrancelhas e afastou o
pensamento. Mas aquela mulher parecia muito mal preparada para a tarefa que teria
pela frente...
— Bom dia, senhora — saudou-a com educação. Notava que ela estava ainda mais
rígida do que antes. Estaria se sentindo insultada? Porque, afinal, viera encontrar-se
com um homem em sua casa...
Esperou que ela dissesse algo, não a ajudaria.
— Bom dia, senhor — ela respondeu, por fim. E fez uma leve inclinação com a
cabeça.
Kit percebia muito bem seu nervosismo e apenas aguardava.
— Foi... muito gentil de sua parte me receber — murmurou Marina, como se aquele
encontro fosse a coisa mais natural do mundo, e não algo que pudesse ultrajar as
normas da sociedade. — Disse que eu poderia... A verdade é que queria... pedir-lhe que
perdoasse a dívida que lady Luce tem para com o senhor. Sei muito bem que se trata de
uma fortuna, mas é um homem muito rico e ela é velha e...
— Pobre? — Kit indagou, cheio de ironia. — Se a sua patroa é pobre, senhora, é
porque andou jogando tudo que possuía. É a única culpada por sua situação. Não
concorda?
Marina parecia culpada, mas nada respondeu. E seu silêncio começou a irritar Kit.
Percebeu, então, que não sabia o nome dela.
— Não concorda, senhora? — insistiu. — Perdoe-me, mas não tive ainda a honra de
ser-lhe apresentado. Deve ter um nome, pois não? — Ele se divertia em perturbá-la.
Havia algo naquela mulher que o deixava contrariado.
Ela ergueu o rosto, altiva.
— Sim, tenho um nome, sr. Stratton. Sou a srta. Beaumont.
Kit assentiu. Ela possuía a altivez de uma duquesa, avaliou, mas o garbo de uma
criada... Teria de ter cuidado para não deixar que ela acabasse por levar a melhor
naquela conversa. Não permitiria que isso acontecesse. Na verdade, não permitia que
isso acontecesse quando estava diante de qualquer mulher.
— Muito bem, srta. Beaumont. — Ele apontou a cadeira logo ao lado, para que ela
se acomodasse. — E o que tem a me oferecer que valha doze mil libras?
Marina ia sentar-se, porém parou. Estava intensamente pálida.
— Como disse? — indagou, com voz carregada de ultraje.
Kit sorriu. Percebia que ela se fechava, mas que ainda sustentava seu olhar. Era
uma mulher de coragem.
— Como a senhorita mesma disse, doze mil libras é uma fortuna. Mesmo assim,
quer que eu perdoe a dívida... — Kit caminhou até ela. Estavam tão próximos agora que a
barra suja de lama da saia de Marina roçava-lhe as botas. — Parece-me que está
colocando um preço muito alto no que tem a me oferecer. — Sua voz era baixa,
acariciante.
Marina ergueu o rosto para ele, e também a mão, na intenção de dar-lhe um tapa.
— Não faça isso, srta. Beaumont — Kit avisou, segurando-lhe o pulso no ar e
torcendo-lhe o braço até as costas. — Eu não permito que nenhuma dama me atinja. —
Olhava-a diretamente, notando que ela possuía intensos olhos cor de avelã, muito
abertos, devido ao medo. Seria ela tão ingênua a ponto de não saber o que arriscava
vindo até ali?
Continuando a lhe torcer o pulso, aproximou-a ainda mais de si, e os lábios dela se
abriram num leve gemido de dor.
Kit afrouxou a mão de imediato, mas não conseguiu deixar de olhar para aqueles
lábios entreabertos. Aquela mulher precisava aprender uma lição, concluiu. Assim,
segurou-lhe a nuca com a mão livre e beijou-a. Mas encontrou uma resistência ferrenha.
A mão livre de Marina empurrava-o, porém Kit, com habilidade, segurou-a junto da
outra. Agora, ela estava completamente segura.
Devagar, gentilmente, sem ameaçá-la, Kit começou a soltar as tiras que prendiam a
touca aos cabelos dela. Sentiu que os lábios, sob os seus, se abriam um pouco mais,
talvez na surpresa que ela sentia por seu gesto. Não... devia haver algo mais, percebeu.
Ela aceitava o beijo. Como esperava. As mulheres sempre reagiam assim, mais cedo ou
mais tarde. Tentou aprofundar o beijo e, de repente, sentiu um violento pontapé na
canela.
Kit afastou-se com um gemido abafado, porém não a soltou. Olhou-a. Com a touca
torta, o vestido sujo... mas seu peito arfava e seus olhos brilhavam de raiva. Kit notou a
perfeição de sua pele. Notou também a perfeição dos seios cobertos, que subiam e
desciam na respiração acelerada. Pena ser raiva, e não desejo que os movia.
— Agradeceria se me soltasse — disse Marina, firme, séria.
Mas ele não a soltou. Ao contrário, segurou-a de forma a não mais poder ser
agredido.
— Minha cara srta. Beaumont, acha que sou um completo idiota? — perguntou. —
Só a soltarei quando me der sua palavra de que vai se comportar como uma dama.
A raiva que ela sentia parecia estar se transformando em embaraço.
— Tem minha palavra — murmurou. — Mas quero a sua para garantir que vai se
comportar como um cavalheiro.
Kit teve de rir diante de tamanha ousadia. Aquela era, de fato, uma mulher
surpreendente. Meneou a cabeça, porém não a soltou.
— Seja quem for que lhe disse que sou um cavalheiro, senhorita, deve tê-la
enganado.
Marina ergueu os olhos para os dele.
— Não acredito nisso, senhor. — E desviou o olhar para a mão que ainda a agarrava.
— Por favor, sr. Stratton — pediu, calma, à espera.
Ele afrouxou os dedos. Afinal, de que adiantava segurá-la daquela forma?, indagou-
se. Não queria beijar uma mulher que mais se parecia com uma gata selvagem. Precisava,
isso sim, pôr um ponto final naquela entrevista.
Afastou-se e pegou a sineta com que chamava a criada e a tocou vigorosamente. A
porta se abriu segundos depois.
— Mande o garoto chamar um coche, sra. Budge — Kit pediu à criada. — Minha
visitante já está de saída.
A porta se fechou novamente, depois da saída, da empregada, e Marina começou a
protestar:
— Sr. Stratton, não preciso de um coche. Vou a pé, como vim. Além do mais, ainda
não terminamos nosso assunto e...
— Srta. Beaumont, não há mais nada a dizermos. — Ele deu um passo à frente,
fazendo-a recuar até uma cadeira. — Sugiro que se sente. Ótimo. Agora, quanto ao
coche, não há o que discutir. Não costumo permitir que damas caminhem pelas ruas de
Londres sozinhas. Nisso, pelo menos, ainda sou um cavalheiro. O garoto irá pagar a
corrida para aonde quiser ir.
Marina ia protestar novamente, mas Kit a impediu com um gesto da mão. E
prosseguiu:
— Quanto ao nosso assunto: quer que eu perdoe a dívida de lady Luce. Doze mil
libras, pagáveis em sete dias. Muito bem, srta. Beaumont, eu o farei.
Marina arregalou os olhos, absolutamente surpresa, mas nada disse. Não tinha
palavras. E ouviu-o continuar:
— Porém há um preço para isso, é claro. A senhorita já sabia quando aceitou meu
convite para vir à minha casa, não? — Kit parou, esperando por uma reação. Não houve
nenhuma, então completou: — O preço é a senhorita. Em minha cama. Mas... de boa
vontade.
Ela estava horrorizada agora. Aprendera sua lição, afinal. E não o perturbaria
novamente. Não depois de uma barganha assim tão suja.
— O senhor... — A voz de Marina falhou. Pigarreou e prosseguiu: — O senhor é
muito direto. Posso perguntar-lhe como esse... arranjo deverá acontecer?
Por essa resposta Kit não esperava. Era surpreendente ver que ela não o encarava
agora. No entanto, como já começara com aquela charada, era melhor levá-la até o fim
para afugentá-la de vez.
— Pode escolher o dia e a hora — disse, escondendo um sorriso. — E deve marcar
nosso encontro antes do vencimento da dívida, é claro. No dia que escolher, deverá
estar caminhando pelo parque, bem cedo, como fez hoje. Uma carruagem simples,
fechada, irá apanhá-la. Haverá um cachecol branco amarrado à maçaneta da porta.
Deverá entrar nela.
— E... como deverei explicar minha ausência a lady Luce? Ela quererá saber onde
passei o dia... e a noite. E vai querer me demitir.
Kit sentia vontade de rir, porém se manteve firme, dando o golpe final:
— Ah, não pretendo retê-la por muito tempo. Nosso... assunto será prontamente
resolvido. Não é necessário esperar pela noite, como sabe. Vai estar em casa muito
antes que notem sua ausência.
Marina o ouvira de cabeça baixa. Quando a ergueu, estava calma, mas ainda havia
uma sombra de temor em seus olhos. E havia algo mais, também, que Kit não soube
identificar. Naquele momento a porta se abriu.
— O coche já está à porta, senhor — avisou a sra. Budge.
— Obrigado. Diga ao cocheiro que espere um instante. A senhora sairá em alguns
minutos.
A criada se foi e Marina levantou-se, encarando Kit com orgulho.
— Vou agora, senhor, mas tomo a liberdade de lhe dizer que não merece ser
chamado de irmão de Hugo Stratton, porque ele é um homem honrado, enquanto o
senhor...
Marina voltou-se e saiu praticamente correndo. Kit chegou a segui-la, mas quando
chegou à porta, o coche já havia partido.
Marina recostou-se no banco de couro e respirou fundo. Não queria desmaiar. Não
agora. Mantivera o controle durante toda aquela terrível entrevista e não havia por que
perdê-lo agora quando tudo já terminara.
Kit Stratton era um demônio, com certeza. Um canalha. Lady Luce a avisara, mas
ela não ouvira... Quebrara todas as regras indo visitá-lo em sua casa. Aliás, nenhum
homem de bem viveria ali. Mesmo uma estranha na cidade poderia saber disso. Ele devia
usar aquela casa modesta para receber e entreter suas amantes. Se aceitasse a
proposta dele, também ela seria levada ali para... para... Não queria nem pensar.
Mas era fato: Kit Stratton oferecera-lhe perdoar a dívida de lady Luce em troca
de sua honra.
Ele devia saber que ela não o faria! Que não poderia! Então, por que, mesmo assim,
lhe fizera aquela proposta indecente?! Não fazia sentido... Kit não gostava dela e muito
menos a admirava.
Fora uma grande tola, levada pelo desespero de encontrar um modo de manter seu
emprego. Vira a arrogância nos olhos dele, mas imaginara poder encontrar uma forma de
comovê-lo, apelando para seu lado bom. Loucura! Kit Stratton não tinha um lado bom.
Ele não possuía sentimentos!
Cerrou os olhos, querendo esquecer tudo aquilo. Porém havia pensamentos demais
em sua mente. Estivera nos braços dele, lutara contra sua força, mas não o suficiente...
Em toda sua vida, nunca fora beijada com paixão. Não sabia o que era sentir tal
coisa. Jamais imaginara que pudesse gostar, corresponder até, indo contra tudo que lhe
havia sido ensinado. Kit Stratton forçara aquele beijo, e ela deveria tê-lo repudiado de
pronto, com convicção, mas houvera um momento em que cedera... Ele a tratara como
uma vadia porque se comportara como uma! E aquela proposta final provava isso. Ele
tomaria sua inocência sem arrependimento algum, como se sua virtude não valesse mais
do que uma carta virada numa partida de faraó. Ficaria menos de uma hora em sua
cama, e depois ele a enviaria de volta a lady Luce, usada, em troca de doze mil libras...
Lady Luce ficaria grata? Marina duvidava. Se algum dia descobrisse, a velha
senhora iria rir dela. Não, não podia aceitar aquela proposta humilhante. Jamais!
O coche parou diante da casa de lady Luce e a porta da frente se abriu assim que
Marina desceu do veículo. O conde apareceu na soleira, carrancudo.
— Ah, por fim chegou, srta. Beaumont! — exclamou ele, sem preâmbulos. — Nem
vou perguntar aonde esteve! Temos um assunto muito mais importante a tratar! — Ele a
olhou de cima a baixo. — E nem precisa trocar de roupa para falarmos. Serei breve.
Kit serviu-se de um segundo copo de Madeira e bebeu-o de uma só vez. Olhou pela
janela da sala e negou de leve com a cabeça, observando o céu cinzento. Aquela jovem
fora tola e ingênua em seu pedido, e ele fora longe demais... Afinal, ela era uma dama, e
a tratara de forma vergonhosa. Ainda mais quando falara sobre o tempo em que
ficariam juntos. Como havia sido cruel! Imperdoável! Devia estar ficando louco. Estava
perdendo o controle, sim, e jamais o fizera com as mulheres. Jamais. Pelo menos, não
por mais de cinco anos...
Desde aquele momento louco em que se comprometera com Emma Fitzwilliam,
nunca mais se permitira falar ou fazer algo que pudesse fazer uma dama recuar diante
de seus avanços. E achara que sabia como interpretar todas as mulheres.
No entanto, a srta. Beaumont parecia não ser previsível. Não sucumbira a seu beijo
bem treinado. Rebatera suas palavras e, até mesmo, o comparara a... Hugo!
Como a dama de companhia podia conhecer Hugo?! Teriam se encontrado alguma
vez? Ela devia ser apenas uma criança quando Hugo voltara da guerra... E ele logo se
casara com Emma.
Se havia algo entre a srta. Beaumont e seu irmão, isso teria de ter acontecido
depois do casamento dele. Fosse como fosse, esse não era o comportamento de seu
irmão. Não fazia sentido... o que Hugo poderia querer com uma mulher assim quando
tinha Emma?
Emma era loira, linda, cheia de vida, adorável! Uma esposa perfeita! E a srta.
Beaumont era simplória, sem graça... nem parecia saber como sorrir. Era altiva,
orgulhosa. O que Hugo teria visto nela?
O inesperado.
Ela não era como as outras... Era diferente das mulheres que Kit já levara para a
cama. Lutara contra ele. E lhe falara de honra e do valor de um cavalheiro. Não, não
podia ser amante de Hugo. Devia haver outra coisa entre os dois. Era um mistério. E Kit
não sossegaria até descobrir tudo.
Levantou-se e foi até a porta, de nada adiantava permanecer em casa. Katharina
estava longe e não poderiam se encontrar por diversos dias. Às vezes, infelizmente, o
marido tinha prioridade... Kit podia ir até o clube, ouvir os comentários.
Pensou no tempo ruim e no fato de não dispor de uma carruagem em Chelsea. E
decidiu pedir outro coche.
Imaginava se a srta. Beaumont teria voltado diretamente para a casa de lady Luce.
Talvez jamais se aventurasse sozinha pelas ruas de Londres, muito menos no parque,
logo cedo. Fugira dele como uma corça assustada.
Lembrou-se da entrevista tensa que tiveram. Não chegara a pensar com clareza
nos motivos que a haviam levado a lhe pedir com tanta intensidade para que perdoasse a
dívida de sua patroa. Nem dera chance a ela para que se explicasse... Simplesmente,
fora direto e grosseiro com ela.
Seria uma grande loucura para ela encontrá-lo novamente, ainda mais sabendo o
que iria acontecer entre ambos se fosse ao encontro. Mas como poderia estar certo de
que ela não apareceria?
Devia deixar ordens específicas para que qualquer carta que chegasse a sua casa
lhe fosse entregue de imediato. E precisava estar preparado para alugar uma
carruagem simples e fechada...
CAPÍTULO VII
Marina conseguiu apenas chegar até seu quarto, mas não teve forças para ir até a
cama, sucumbindo ao peso do próprio corpo. Deixou-se ficar ali, no chão, rosto coberto
com as mãos, pensando no que acabara de lhe acontecer. Fora demitida!
A proteção que a condessa lhe prometera de nada adiantara. Lorde Luce exigira
que ela deixasse a casa de sua mãe antes mesmo do anoitecer. Jamais escreveria um
bilhete para Kit Stratton marcando um encontro fatídico. Teria de deixar Londres.
Como poderia explicar tal situação à sua mãe?! Mal sabia se ainda havia dinheiro
suficiente em sua bolsa para poder comprar a passagem de volta a Yorkshire... E tudo
por culpa de Kit Stratton!
— Doze mil?! — William quase gritou, assustado. — Está me dizendo que aquela
mosca-morta ficou ali, parada, enquanto a senhora perdia doze mil libras?!
— Ela não ficou "ali, parada"! Estava sentada. — A calma de lady Luce era
exasperante para seu filho. — E não tente bancar o mártir agora, William. A dívida é
minha, não sua.
— Ah, claro! E a senhora dispõe de todo esse dinheiro de imediato, devo supor.
A condessa nada disse, pensativa.
— Muito bem, pois eu também não tenho tanto assim! — William prosseguiu,
furioso. — Vou ter de pedir dinheiro a agiotas até poder vender algumas terras e
levantar essa fortuna! E saiba que nós dois vamos ter de economizar muito de agora em
diante! — Ele pareceu pensar um pouco, depois acrescentou: — Sua inútil dama de
companhia voltará a Yorkshire hoje mesmo e...
— O quê?! Não tem o direito de demiti-la! — lady Luce protestou. — Como ousou?
— Sou eu quem a paga, esqueceu-se, mãe? E ela tornou-se uma despesa que não
posso mais bancar. — E sua mãe tornara-se outra, William pensou, amargo. Seria
adorável poder dizer-lhe isso, mas se conteve.
— Bela vingança a sua, William — comentou lady Luce. — Procura humilhar sua
própria mãe. Não pensei que pudesse descer tanto.
Lorde Luce encarou-a por alguns segundos; poderia jurar que havia ódio nos olhos
de sua mãe.
— Mãe, eu não posso, realmente, pagar a srta. Beaumont. Mas, se acha que ela
deve permanecer aqui por mais alguns dias, que assim seja. Reconheço que seria
desumano mandá-la de volta com um tempo ruim como o que estamos tendo.
A condessa olhou-o, parecendo surpresa diante de tanta generosidade. Depois
assentiu.
— Diga a ela o que decidimos, então — William acrescentou. — E... se eu conseguir
arranjar o dinheiro a tempo, tudo se resolverá. — Ele deu alguns passos até a porta,
mas pareceu lembrar-se de algo e voltou-se: — Mãe, por favor, pare com isso. Sei que
tem o direito de levar sua vida como quiser, mas... Olhe, sinto muito se interferi de
alguma forma. No entanto, se continuar a jogar desse jeito, vai arrumar a nós dois.
Peço-lhe que pense bem no assunto e veja que está agindo mal. Pense em seus netos,
pelo menos.
O rosto de lady Luce continuava implacável. Dessa vez, a tática de William não
funcionou.
— Eu... acho que nos encontraremos na igreja amanhã —William finalizou,
compreendendo que ela não mudaria de idéia. — Tenha um bom dia, mãe.
Lady Luce sentou-se em sua poltrona preferida assim que o filho se foi. Por
intermináveis minutos ficou ali, olhando para a rua, que ficava mais e mais movimentada,
lá embaixo. Porém sua visão era dificultada pela chuva que caía pesada. Com lentidão, a
condessa tocou a sineta que se encontrava no aparador a seu lado. E o mordomo
apareceu quase de imediato.
— Viu a srta. Beaumont esta manhã, Tibbs? — lady Luce perguntou, sem olhar para
o criado.
— Sim, senhora. Ela conversou com lorde Luce, e logo em seguida...
— Isso não me interessa. Quero saber onde ela estava antes disso. Eu enviei a
minha camareira até seu quarto e ele estava vazio.
— Bem, ela... saiu bem cedo, senhora. A pé.
— E quando voltou?
— Pouco depois da chegada de lorde Luce. Conversaram na biblioteca.
— Entendo... Bem, o que está esperando, homem? Vá chamá-la! De que adianta ter
uma dama de companhia que nunca está comigo? Vá buscá-la agora mesmo!
Marina parou ao pé da escada para ajeitar as saias. Não estava mais suja de lama
como naquela terrível entrevista com lorde Luce. Mas estaria ainda pior se Kit Stratton
não lhe tivesse providenciado o coche. Talvez devesse ser grata por isso. Afinal, não se
molhara e não se perdera como quando seguira para Chelsea. Porém, se tivesse voltado a
pé, lorde Luce não a teria esperado e não a teria demitido. Mais uma vez, tudo por culpa
de Kit Stratton!
Ao entrar no quarto de lady Luce, a repreensão veio de imediato:
—Ah, então você está aí! O que acha de me explicar por onde andou esta manhã?
Marina mordeu o lábio inferior. Não esperava que sua patroa desse por sua falta.
Mas fora uma tola por pensar assim.
— Imaginei que a senhora fosse dormir até mais tarde, senhora — murmurou,
aproximando-se. — E saí para dar um passeio.
— Um passeio? Com um tempo desses? Faça-me um favor...
— Estou acostumada com a chuva, senhora. Em Yorkshire, chove muito. Se as
pessoas de lá saíssem apenas quando não está chovendo, não exercitariam as pernas.
— Muito bem — comentou a velha senhora, parecendo ainda contrariada. — Mas, no
futuro, espero que esteja sempre aqui quando eu precisar de você.
— No futuro? — Marina apertou as dobras da saia com as mãos, subitamente
trêmulas.
— Sente-se, menina. Você está pálida demais! E detesto quando alguém desmaia
diante de mim; portanto, se não está se sentindo bem, sente-se logo.
— Não, eu não vou desmaiar, senhora — afirmou Marina, tentando mostrar pleno
controle de si mesma. — Mas é que seu filho disse que eu deveria deixar esta casa ainda
hoje...
— Ele estava irritado com o seu comportamento, menina. Pelo que não o culpo. —
Lady Luce tentava parecer solidária para com o filho, porém não conseguia. — Mas ele
sabe muito bem que sou eu quem decide se você fica ou não. E, no momento, quero que
fique. Compreendeu?
— Sim, senhora.
— Muito bem, então. Há alguns assuntos dos quais preciso tratar esta tarde. E o
primeiro deles será encontrar roupas decentes para você. Esteja pronta para me
acompanhar em dez minutos. Não se atrase.
Marina levantou-se, fez uma breve cortesia para sua patroa e apressou-se a pegar
seu chapéu e sua bolsa.
— Muito bem, então: sim ou não? — lady Luce quis saber.
Atônita, Marina voltou-se para ela.
— Vamos, menina, decida-se: gosta ou não desse vestido? — a condessa insistiu.
Marina olhava-se no espelho. O vestido verde, embora de linhas simples, caía-lhe
bem. Nunca tivera vestidos que não fossem cinza ou marrom, cores que facilitavam a
vida para uma mulher acostumada a trabalhar. E estava encantada com o que vestia
agora.
— É adorável, senhora! Mas eu não posso gastar o meu dinheiro com roupas agora.
E, como lorde Luce disse que eu devia partir...
— Bobagem! Você só vai partir quando, e se, eu quiser. E recuso-me a ter uma
dama de companhia mal vestida. O que sua prima, lady Blaine, diria, se a visse agora?
— Ela nunca me viu, senhora.
— Sei, sei. Bem, mas esse vestido está ótimo. Fique com ele. Ah, e com aquele
outro, para a noite, também. São um presente. Não vai precisar pagar por eles.
Marina sorriu, maravilhada. Não teria mais que usar seus vestidos velhos para
encontrar-se com Kit Stratton. Ele não iria...
Mas, o que estava pensando?!, recriminou-se. Não iria encontrá-lo de forma
alguma! Nunca mais! Já se decidira sobre o assunto. Não colocaria sua reputação em
risco, mesmo que fosse para salvar lady Luce e, consequentemente, seu emprego. Não
faria tal sacrifício nem para salvar sua mãe da penúria; e ela mesma não aprovaria tal
ato. Não, ela jamais saberia...
— Marina, estou esperando! — protestou a condessa. Estava cansada de esperar
que Marina se decidisse e tornasse a vestir suas roupas velhas para saírem da loja.
— Oh.desculpe me, senhora.Ficarei pronta num minuto!
No resto daquela tarde, Marina apenas acompanhou lady Luce e ouviu-a criticando
as pessoas, os hábitos, a vida da Londres naqueles dias. Como sua dama de companhia,
aceitava suas idéias, fazia breves comentários, sorria, mas não compartilhava as
opiniões de sua patroa. Na verdade, não conseguia prestar atenção a muitas coisas, pois
um rosto de homem insistia em habitar seus pensamentos. E era como se a pele de seus
braços e ombros reagisse à lembrança do toque dele. Também seus lábios pareciam
diferentes ao recordar-se daquele beijo...
— O que há, menina? Não se sente bem? — lady Luce indagou, notando-a estranha.
— Não vá me dizer que está enjoada do balanço da carruagem...
Marina forçou um sorriso.
— Olhe lá, hein! Não vá desmaiar em cima de mim, ou mando-a de volta a Yorkshire!
— protestou a velha senhora.
— Pode ficar tranqüila, senhora. Nunca desmaiei em minha vida e não pretendo
começar agora.
Por fim, ela estava de volta ao silêncio reconfortante de seu quarto! Podia pensar
em sua vida, sem ter de ficar prestando atenção ao que a condessa falava. E ela fizera
comentários severos contra muitas coisas, inclusive contra ela mesma, Marina. Sabia
que merecia as críticas, embora mal as tivesse ouvido por ter estado tão distraída o
tempo todo. Estranhava-se.
Sempre fora prática, sempre tivera bom senso, nunca ficara sonhando acordada. E
agora estava assim por culpa única e exclusiva de Kit Stratton! Fora ele quem acabara
com sua paz de espírito fazendo-lhe aquela proposta escandalosa. Tentava afastá-lo de
sua mente, mas não conseguia. Se fechasse os olhos, poderia revê-lo, com seu belo
rosto, seu sorriso irônico e seu olhar duro...
Marina abriu bem os olhos, porém ele parecia grudado em seus pensamentos. Tinha
até receio de dormir e de sonhar com ele. Tinha medo de que, no sonho, Kit tornasse a
abraçá-la e a beijá-la daquela forma...
Levantou-se da cama e deu alguns passos pelo quarto. Estava cansada e com sono,
mas precisava pensar. Não podia ceder à proposta que Kit Stratton lhe fizera. Seria
imoral, indecente! Uma mulher tinha de permanecer pura até se casar. E Marina jurara
a si mesma que só se entregaria a seu marido, a fim de dar-lhe filhos. Vira, muitas
vezes, o tratamento que se dava a mulheres de reputação duvidosa, mesmo em
Yorkshire. Elas tinham um destino terrível...
Não podia enveredar por esse caminho, entregando-se a Kit Stratton. Ele a usaria
e depois a descartaria. Não sofreria; sairia livre de seus pecados, enquanto ela
carregaria o fardo pelos dois. E ele ainda a condenaria por ter sido uma mulher fácil.
Tocou os lábios ao recordar-se do beijo dele mais uma vez. Era como se uma chama
tivesse sido acesa dentro de seu corpo e estivesse ainda se alastrando...
Não, não podia deixar-se envolver. Kit Stratton era um sedutor contumaz, um
canalha. Soubera muito bem o que estava fazendo com ela, pretendera fazê-la derreter
entre seus braços e aceitar seus avanços. Não, ele nada sentira de fato. Ela era apenas
mais uma a ser conquistada e depois esquecida.
Agora, Marina andava mais depressa pelo quarto. Parou de repente e se apoiou no
encosto de uma cadeira. Não permitiria que ele a controlasse daquela forma. Não
pensaria mais em Kit Stratton.
Precisava encontrar uma maneira de resolver o problema antes que o dinheiro
devido pela condessa tivesse de ser entregue a ele. Muito bem, Kit tentara levá-la para
a cama por meio de um ardil; ela também poderia pensar em alguma coisa para enganá-
lo.
Pensou durante mais algum tempo, até que uma provável solução lhe ocorreu.
Seu pai lhe ensinara um truque com as cartas. Nunca o usara, mas adorara tê-lo
aprendido. E tanto seu pai quanto seu tio se divertiam quando ela os enganava, sem que
percebessem. Tinham sido bons tempos aqueles em que todos sorriam... Podia ainda
rever o corpo alto e magro do pai, vestido com o elegante uniforme de soldado. No
último dia em que se haviam visto, antes da partida para a guerra, seu pai e seu tio
tinham-na elogiado muito; e ela não passava de uma garota de catorze anos que não se
julgava bonita... Mas, depois das palavras deles, havia se sentido especial. E no inverno
seguinte, a notícia terrível chegou. Sua mãe nunca mais sorriu. Num só dia, ela perdera
seu único irmão e o marido que tanto amava. Porém Marina nunca a viu chorar ou
lamentar-se; nem mesmo quando descobriram que o jogo tinha deixado muitas dívidas
em nome de seu pai. Sua mãe tornara-se uma mulher silenciosa e séria, que devotava
todos os seus esforços a encontrar um meio de sustentar os dois filhos. Passara a
lecionar muito, e eles tinham conseguido sobreviver.
Marina girou o anel em seu dedo e olhou-o, entristecida. Era tudo que lhe ficara de
seu pai, além das lembranças que possuía dele e de sua habilidade com as cartas. E ela
agora usaria essa mesma habilidade contra Kit Stratton. Seu pai ficaria orgulhoso se a
visse jogando.
Foi sentar-se a mesa que ficava abaixo da janela e pegou uma folha de papel.
Molhou a pena no tinteiro e começou sua carta:
Prezado sr. Christopher Stratton...
Parou, hesitando. O que escreveria? Ele estava esperando uma carta marcando um
encontro, não um convite para um jogo de cartas. E onde poderia marcar esse jogo?
Seria loucura ir sozinha à casa dele em Chelsea, se queria sair de lá com sua virtude
intacta.
Talvez pudesse desafiá-lo para jogarem na casa de lady Méchante. Teria de
persuadir a condessa a levá-la até lá novamente e esconder as apostas que faria, mesmo
sem dinheiro algum.
Largou a pena, pensativa. Onde estava seu bom senso?, indagava-se. Devia estar
ficando louca... Não havia como tirar doze mil libras de Kit Stratton dentro de cinco
dias. Não, a não ser que fosse sozinha até sua casa. Lá, poderia... Não. Tinha de haver
outra solução!
Pegou a pena mais uma vez e ficou pensando. Encontrou uma outra saída, não tão
segura, mas, ainda assim, considerável. Começou a escrever, parando de vez em quando
para avaliar melhor as palavras a serem usadas. Quando terminou, recostou-se na
cadeira e leu:
Senhor, em referência ao assunto que discutimos recentemente, acredito que
considere o que tenho a oferecer valioso o suficiente, embora, com certeza, não possa
fazer o pagamento de antemão. Assim, peço-lhe que me envie o papel de garantia que
está em seu poder; enquanto isso, providenciarei tudo que for necessário para que
possamos concluir nosso acordo. E estarei pronta para isso assim que o documento que
lhe peço chegue as minhas mãos.
Satisfeita, Marina assinou a carta. Kit Stratton enviaria a garantia escrita pela
condessa, sabendo que, como mulher de palavra, ela, Marina, se entregaria a ele sem
contestar. Mas ela não o faria! De alguma forma, assim que recebesse a garantia,
encontraria um meio de não cumprir sua parte no acordo. E a recompensa pela infâmia
que ele lhe propusera seria manter sua virtude intacta! E começaria a praticar de
imediato com as cartas para que, se fosse necessário, pudesse usar sua habilidade com
elas. Poderia, assim, rir diante de Kit Stratton quando triunfasse.
CAPÍTULO VIII
Kit ergueu a cabeça, irritado, quando a porta do escritório foi aberta. Tinha dado
ordens específicas para não ser incomodado. No entanto, ao ver o irmão, seu semblante
se suavizou.
— Hugo! O que o traz de volta à cidade? Quanto tempo vai ficar agora? —
perguntou e encaminhou-se para apertar-lhe a mão.
— Pouco tempo. Uma ou duas semanas — respondeu Hugo, um tanto
enigmaticamente. — Negócios, Kit.
Mas Kit conhecia bem demais o irmão para deixar de notar aquele estranho
sorriso.
— Ah, aposto que ouviu falar dos meus... ganhos e quis saber de tudo
pessoalmente, com detalhes. Deveria parar de se preocupar comigo, meu irmão. Já sou
bem crescidinho.
Hugo riu, satisfeito.
— É exatamente isso que me preocupa, Kit. Mas... por que não me conta o que anda
acontecendo desde que nos falamos pela última vez?
— Claro. Mas dê-me um instante para terminar esta carta, sim? — Kit voltou para
trás da escrivaninha, assinou a carta, dobrou-a e, em seguida, a colocou no envelope. —
Por favor, toque a sineta, sim, Hugo? Preciso mandar isto agora mesmo.
Assim que o garoto de recados apareceu, Kit entregou-lhe a carta, avisando:
— Isto deve ser entregue ainda esta tarde. E certifique-se de que o mensageiro
que entregar esta carta permaneça anônimo.
O rapaz se foi e Hugo comentou, sorrindo:
— Não pode deixar que o marido dela descubra a origem das cartas que recebe,
não é? É, acho que eu faria o mesmo, se estivesse em seu lugar.
Kit apenas sorriu. Voltou a aproximar-se do irmão e sentou-se junto dele.
— É claro que você já ouviu falar do meu romance com Katharina. Como é que fica
sabendo das coisas, enfiado lá no campo?
— Segredo de família, meu caro. Como chefe do clã, tenho que obter certas
vantagens, você sabe.
— Acho que aquela tia de Emma andou fofocando novamente. Posso perguntar que
tipo de histórias ela andou contando desta vez?
— Tem razão. Tia Warenne nos mantém bem informados. E ela diz que a sua
baronesa é um diamante de primeira grandeza. E que tem um marido excessivamente
possessivo.
— Mas não precisa se preocupar comigo, Hugo. Ele é possessivo, de fato, mas atira
muito mal.
Hugo tornou a sorrir e avisou:
— Tome cuidado, Kit. Não quero ser o único Stratton vivo.
— Pode ficar tranqüilo. Vou viver muito mais do que você.
— Mesmo assim, cuide-se. Até esse barão pode acabar acertando um tiro. Entendo
que você tenha gostado de ter a esposa dele por amante em Viena, mas sabe que, aqui,
tudo é diferente, mais perigoso. Como diplomata, o barão tem muito a perder.
— É verdade.
— Pelo que ouvi dizer, você levou quase um ano para seduzir essa mulher. A
baronesa lhe é tão cara assim, que quis continuar seu relacionamento quando ela veio
com o marido para a Inglaterra?
Kit nada disse. Levantou-se, serviu dois copos de Madeira, entregou um ao irmão e
bebericou o seu.
— Talvez a baronesa tenha sido o motivo pelo qual você não quis voltar para cá
depois da morte de John — Hugo insinuou.
— Eu ainda demorei a seduzi-la depois que retornei dos funerais — Kit explicou. —
Mas, agora, é ela quem praticamente me persegue.
— Kit... Não lhe ocorre que seduzir mulheres casadas pode ser algo... errado?
— Acho essa uma maneira muito melodramática de ver as coisas, Hugo.
— Talvez, mas quero lhe dizer uma coisa: se um homem, qualquer um, tentasse
seduzir Emma, eu não hesitaria em meter uma bala na cabeça do infeliz.
Kit encarou-o, já não sorria.
— Mas Emma jamais se deixaria seduzir — rebateu. — Essa é a grande diferença.
Levei muito tempo para seduzir Katharina porque ela estava gostando de cada minuto da
conquista. Não se iluda, ela decidiu desde o princípio que se deixaria seduzir. Porém fui
esperto o suficiente para perceber isso. Cheguei a apostar com vários colegas da
embaixada sobre quando a seduziria e devo dizer que ela me rendeu uma soma
considerável.
— Calculista! Bem, mas, se a baronesa nada significa para você, por que ainda está
com ela aqui em Londres?
— Porque isso se adequou perfeitamente aos meus outros planos. Se a sociedade
se convencesse de que estou profundamente apaixonado pela baronesa, ninguém ficaria
especulando sobre o que mais eu tinha em mente, ou quais outras mulheres pretendia
seduzir. Sabe, gosto de agarrar minhas presas quando estão... distraídas.
Hugo negou de leve com a cabeça.
— Como estava a pobre lady Luce, eu suponho. Doze mil libras! Não acha que foi
longe demais, Kit? Afinal, ela levou apenas cinco mil de você...
— É verdade, mas cinco anos de exílio aumentam em muito a soma, como se fossem
juros. Acho que doze mil é mais do que justo. Se ela pagar.
— Por quê? Há alguma chance de ela não o fazer?
— Não sei se vai querer ou poder. Mas não importa. Tenho certeza de que não vai
poder me pagar sem a ajuda do filho e ele está farto de sustentar-lhe o vício. Toda a
cidade sabe disso. Por outro lado, como seria se ele...
— Se ele a deixasse completamente desamparada? Todos sabemos a resposta para
essa pergunta. Nenhum dos dois seria recebido em lugar algum. Nunca mais. E o filho de
Luce não vai permitir que isso aconteça, não com a esposa que tem e que adora a vida
social. Ela tornaria a vida do infeliz um verdadeiro inferno. Nunca vi mulher mais
artificial, mais fútil.
— Esse é um dos grandes perigos do casamento, meu irmão.
Hugo negou com a cabeça.
— Não, quando a gente se casa com uma mulher apaixonada. Não acha que...
Kit levantou-se e foi até a porta, sabendo que a conversa começava a tomar um
rumo do qual não gostava. Não devia ter tocado no assunto "casamento".
— Alguns amigos meus estão a minha espera no clube — mentiu. — Acompanha-me
até lá? Se não sairmos agora, chegaremos atrasados.
Hugo percebeu a fuga, mas não insistiu. E sabia que Kit estava aliviado com isso.
Respeitando muito o irmão mais velho, Kit sempre evitava discutir com ele, ainda mais
um assunto que detestava abordar. Achava que as mulheres apenas criavam problemas,
nada mais.
Um pensamento lhe ocorreu de repente, e abriu a porta, apressado, chamando pelo
mordomo. Quando ele apareceu no hall, indagou:
— A carta que dei ao garoto há pouco. Já a enviou?
— Bem, senhor, eu ia tratar disso agora...
— Não quero ouvir suas desculpas. Onde está ela?
O mordomo retirou a missiva do bolso, um tanto atrapalhado pela pressa. Kit
pegou-a e jogou-a sobre sua escrivaninha, reclamando:
— Culpa sua, Hugo! Fez-me lembrar de uma coisa: não devo responder tão
depressa. Acho que a dama deve esperar um pouco mais. Nunca se sabe, pode ser bom
para ela... Bem, podemos ir?
Hugo meneou a cabeça e pegou sua cartola.
— Cuidado, meu irmão — aconselhou. — Um dia, pode ser você quem terá de
esperar para receber uma carta muito aguardada... e ser vítima de um tratamento
indiferente como o que está dando agora a essa senhora.
— Não, Hugo. Nenhuma mulher faria isso comigo. Nenhuma.
Marina acompanhava a condessa, seguindo-a dois passos atrás. O vestido cor de
âmbar que usava e que lhe parecera deslumbrante ao experimentá-lo, agora era
ofuscado pela elegância e riqueza dos outros, usados pelas convidadas da festa. Teria
de manter-se em sua posição de sombra, como sempre.
Depois das apresentações necessárias, lady Luce entrou no salão e parou por
alguns segundos para poder dar uma olhada ao redor. Chamou Marina para mais perto e
comentou:
— Vê aquelas damas junto à janela? — E indicou, com o leque, duas senhoras
ricamente vestidas. — Aquela com o vestido amarelo é Charlotte, esposa de meu filho.
Nunca teve gosto para nada a infeliz! E nunca foi bonita, tampouco. Era passável quando
mais jovem, admito, mas acabou ficando isso aí por ter tido tantos filhos. Dez,
acredita?! Um herdeiro e uma filha seriam mais do que suficientes para qualquer
cavalheiro.
Marina mal conseguia abafar o riso diante daquela observação, mas as palavras
seguintes da condessa não tinham nada de engraçadas:
— Então, o que acha de sua prima exaltada? — Como Marina a olhasse, sem
entender, ela explicou: — A mulher ao lado de Charlotte. É a atual viscondessa Blaine.
Marina olhou para a mulher muito magra, com nariz longo, deselegante e o vestido
moderno, porém sem graça. Usava jóias demais, e isso fez Marina começar a comentar:
— Ela parece tão...
— Exatamente—concordou lady Luce, mesmo sem ter ouvido a comparação. — Mas,
venha. Vamos às apresentações. — E cruzou o salão, sendo seguida de perto por Marina,
que não se achava muito à vontade por conhecer uma das pessoas que haviam tratado
sua família com tanto desprezo durante anos.
— Boa noite, Charlotte — a condessa cumprimentou. — E boa noite para a senhora
também, lady Blaine.
As duas mulheres retornaram as saudações, sem parecerem cordiais. E ignoraram
Marina por completo.
— Eu gostaria de apresentar minha dama de companhia — insistiu lady Luce —,
Srta. Beaumont.
As duas damas olharam para Marina por segundos e não pareceram gostar do que
viram. Nem sequer lhe ofereceram a mão.
— É surpreendente vocês ainda não se conhecerem — comentou lady Luce, cheia
de ironia. — Considerando-se que a mãe da Srta. Beaumont é prima direta de seu
marido, lady Blaine. Mas, e ele? Parece-me que está fora do país há alguns meses...
Charlotte Luce olhava para Marina com interesse crescente, deixando-a pouco à
vontade.
— Então, esta é a garota que lhe recomendei... — lady Blaine observou com ar
altivo. Sua voz, muito aguda, chegava a ser irritante. — Espero que esteja satisfeita
com ela, lady Luce. Mas deve entender que a recomendei apenas porque seu filho disse
que havia urgência em arranjar-lhe uma companhia. E não consegui pensar em ninguém
mais que pudesse servir, já que não tinha tempo para escolher. Com mais tempo
disponível, eu, com certeza, teria encontrado alguém que lhe interessasse bem mais.
— Ah, mas você foi muito útil, querida! — lady Luce exclamou, extremamente
irônica agora. — Pode ficar tranqüila e satisfeita. Deixe as boas ações para aqueles que
estão acostumados a praticá-las. Venha, Marina. — E a condessa afastou-se, levando
Marina consigo antes que lady Blaine pudesse dar uma boa resposta. — Ignore-a —
aconselhou, conforme caminhavam pelo salão. — É uma mulher sem berço. Blaine a
desposou pelo dinheiro que ela possuía. Os homens dessa família sempre se casam por
dinheiro e o gastam todo com as suas amantes.
Marina arregalou os olhos diante da franqueza da condessa. Como dama de
companhia, ela sabia que devia conter a língua, mas viver junto a lady Luce era, sem
sombra de dúvida, nada aborrecido...
Lady Luce continuou apontando para outros convidados e contando a Marina
histórias mirabolantes sobre eles. Era uma distração e tanto ouvir os fatos
apimentados que ela sabia.
— Está vendo aquela empertigada ali adiante? — dizia ela. — É a filha mais velha
de lady Blaine. Milly, ou Tilly, não me lembro bem de seu nome. Veja como ela tem o
mesmo rosto eqüino da mãe.
Marina conteve-se para não rir. A impressão que lady Blaine lhe causara era, de
fato, a mesma externada por lady Luce:
— Pobre bichinho feio. E a mãe insiste em vesti-la de branco! Pálida como é, parece
sempre estar doente, a pobrezinha. Puxa, essa mulher tem menos gosto do que minha
nora!
Marina olhou para a pista de danças, onde um casal valsava, e perguntou:
— Quem é aquela moça loira, tão linda?
— Ah! É lady Stratton. Seu nome era Emma Fitzwilliam, antes de se casar. Está
dançando com o marido, sir Hugo Stratton.
Interessada, Marina continuou olhando, até que, na dança, o casal se voltou e ela
pôde ver o rosto de sir Hugo. Mesmo sendo mais velho e tendo aquela cicatriz que lhe
cruzava a face, a semelhança entre ele e Kit Stratton era grande.
Lady Luce notava o interesse de Marina e aproximou-se mais para explicar:
— Emma era a garota mais linda da cidade quando se casaram. O dinheiro dela
ajudou a compensar o escândalo.
— Escândalo?! Que escândalo?
— Acredito que você seja jovem demais para entender. Mas é um motivo a mais
para tomar cuidado com Kit Stratton, ouviu? Ele comprometeu Emma, mas se recusou a
desposá-la. E o irmão o fez. Foi por isso que Kit teve de passar os últimos cinco anos no
exterior.
Marina olhou mais uma vez para o casal. Eles sorriam um para o outro com um amor
tão visível que fez o seu coração se apertar. Fossem quais fossem os motivos daquele
casamento, era evidente que se amavam, e muito, agora.
— Mas que coisa! — exclamou a condessa, de repente. — Será que não consigo
evitar esse homem?! Continua aparecendo em todos os lugares!
Kit Stratton acabara de entrar no salão e misturava-se aos convidados. Marina
sentiu o estômago se apertar ao vê-lo. Suas mãos suavam dentro das luvas. Respirou
fundo, na esperança de que ele não a visse.
Viu-o aproximar-se de uma senhora e inclinar-se para fazer-lhe uma elegante
saudação. Mas não ficou mais do que alguns segundos com ela; dirigiu-se à pista de
dança, bateu de leve no ombro do irmão e, sem constrangimento, "roubou-lhe" a dama.
Sir Hugo apenas sorriu, se afastou e foi parando aqui e ali para trocar algumas palavras
com conhecidos. Não olhou para trás nem mesmo uma vez. Ao passar os olhos pelo salão,
viu Marina e a condessa. Pareceu vacilar alguns segundos, depois voltou a andar por
entre os presentes.
— Não me parece haver ressentimentos entre eles — Marina comentou, sem
conseguir conter seus pensamentos.
— Só aparências, aposto — lady Luce observou. — Marina, vamos. Não quero ficar
aqui nem mais um minuto. Não esperava que o ar desta festa ficasse tão poluído de
repente.
Marina olhou mais uma vez para os convivas, em especial para a alta e elegante
figura de Kit Stratton, depois seguiu sua patroa até a saída, sem perceber que não era
a única interessada no jovem aristocrata. A srta. Tilly Blaine, um tanto oculta atrás de
um pilar, olhava-o intensamente, como se nunca tivesse visto um homem tão bonito.
Marina não dormiu bem naquela noite e seu dia também não foi muito bom. Mesmo
assim, tentou dar toda sua atenção a lady Luce e aos visitantes que ela recebeu tarde.
Quando todos já tinham saído, a velha senhora sentou-se pesadamente numa poltrona e
ajeitou a peruca.
— Oh, graças a Deus! — exclamou. — Pensei que aquelas duas harpias nunca fossem
embora!
Marina apenas sorriu, sabendo que ela gostara de receber as visitas. O problema
era que as duas últimas senhoras que a haviam visitado não tinham sido capazes de
rebater as coisas que a língua ferina da condessa dizia.
— Posso saber por que está rindo? — lady Luce perguntou, notando a expressão de
Marina.
— Bem, eu estava pensando na definição da palavra "harpia", senhora. Sempre
soube que elas eram seres mitológicos assustadores, com garras mortíferas. Mas não
me pareceu que a sra. Varity e sua filha fossem assim tão terríveis...
Lady Luce não conseguiu conter o riso. A sra. Varity nada tinha de assustadora, na
verdade, a não ser seus inúmeros quilos a mais.
— E elas nem mostraram garras... — Marina prosseguiu. — E nem sei por que, pois
nem sempre suas visitas são recebidas com extrema bondade, senhora.
Lady Luce bateu muito de leve com o leque fechado no pulso de Marina, numa
repreensão que nada tinha de severa. Estava, de fato, gostando das palavras de sua
dama de companhia.
— Já chega, mocinha. Parece que estou criando uma cobrinha aqui comigo.
— Acho que sim, senhora — Marina concordou, sorrindo.
— Ah, mas não vou suportar que você defenda essa sra. Varity, sabia? Ela só veio
até aqui para saber em detalhes o que aconteceu na casa de Méchante, na outra noite.
Aposto que queria rir da minha perda. Mas acho que consegui tirar tal idéia de sua
mente.
— Ah, com certeza, senhora! — Marina sabia que aquele era um bom momento para
tocar no assunto que lady Luce praticamente já abordara: — Está esperando a visita do
sr. Stratton nos próximos dias, senhora?
Ela estava ansiosa. Por que demorava tanto para responder à carta que lhe
enviara?!
— Mas isso é do seu interesse? Aposto que já se deixou levar pelo rosto bonito
que ele tem!
— Não, não! Eu só queria... bem, estava imaginando apenas se... como um cavalheiro,
ele não poderia vir para perdoar-lhe a dívida.
Lady Luce riu com deboche.
— Ele? Kit Stratton não tem um único osso cavalheiro em seu corpo! Preferiria
morrer antes de vir...
— Lady Luce interrompeu-se com a chegada do mordomo. — Sim, Tibbs?
O criado inclinou-se de leve e lhe entregou uma carta.
— Acabou de chegar, senhora. Em mãos. E o mensageiro não esperou para levar
uma resposta.
Lady Luce estendeu a mão para pegar a carta, mas Tibbs explicou:
— É para a srta. Beaumont, senhora.
Marina teve um sobressalto. Agradeceu ao mordomo, sentindo os olhos
perspicazes de lady Luce em si. Damas de companhia recém-chegadas do interior não
costumavam receber cartas, já que não tinham conhecidos na cidade. Precisava pensar
no que explicar a sua patroa, caso ela lhe fizesse perguntas a respeito.
Marina sentiu que a carta era mais pesada do que o normal. E devia ser de Kit
Stratton. A caligrafia no envelope era refinada e masculina. Sentindo que a condessa a
olhava ainda com maior curiosidade, enfiou a carta no bolso enorme de sua saia e voltou-
se para ela.
— Pode abrir, se quiser, menina — disse lady Luce. — Deve estar curiosa para
saber quem lhe escreveu.
— Bem, eu já sei quem foi, senhora... Só há uma possibilidade, já que... não tenho
amigos em Londres. Mas há um... padre aqui que conhece meu irmão... — Ela esperava
estar sendo convincente. — Lembra-se de que eu lhe disse que Harry vai ser padre?
Esse sacerdote vive em Londres com a irmã, na paróquia, e ela deve ter-me escrito...
Gentil de sua parte, não acha? — Marina tentava sorrir.
Lady Luce olhou-a por alguns segundos, muito séria. Depois disse:
— Está em Londres para ser minha dama de companhia, menina. Não para manter
contato com um padre e sua irmã. Já chega termos de ouvi-los nos sermões de domingo.
Nos dias de semana seria insuportável, não acha?
Marina teve de rir. Lady Luce não fazia segredo do que pensava da igreja. No
domingo anterior, mostrara-se entediada na missa, chegando a bocejar alto e chamar a
atenção de todos, o que encheu seu filho e nora de vergonha.
— Pode visitar esse padre quando não estiver a meu serviço, entendido? — insistiu.
— Sim, senhora.
— Muito bem, vá ler a sua carta, então. Parece-me que está ansiosa por isso. Não
vou precisar de você até o jantar.
— Obrigada, senhora. É muito gentil. — Marina deixou a sala devagar, controlando-
se para não sair correndo escada acima, em sua ansiedade.
Quando chegou ao seu quarto, fechou a porta, sentou-se na cama e abriu o
envelope, apressada. Kit Stratton devia ter mordido a isca, analisou.
Em sua pressa, deixou cair um papel dobrado de dentro do envelope, e decidiu lê-lo
depois. No momento, queria apenas ter certeza de que estava com o papel assinado por
lady Luce em mãos.
Mas decepcionou-se ao ver a mesma caligrafia do envelope. Por que Kit Stratton
lhe escrevera duas cartas?, indagou-se, sem entender.
E a resposta veio logo. Uma das cartas não estava endereçada a Marina, mas à
própria condessa. E era óbvio que ele quisera que Marina a lesse. Só podia ser esse o
motivo pelo qual Kit Stratton não a selara.
Leu, apressada, sentindo-se mais e mais animada a cada linha. Aquela carta poderia
valer por um perdão da dívida! Ele dizia que perdoaria a dívida no fim da semana, quando
visitaria a condessa!
Marina cerrou os olhos e apertou a carta contra o peito. Era bom demais para ser
verdade. Armara uma ratoeira e ele caíra! E seu futuro estava assegurado agora.
Chegou a imaginar sua mãe, confortavelmente instalada, com um olhar agradecido
por sua ajuda. Dentro de algumas semanas, poderia enviar-lhe sua primeira contribuição
para que a situação financeira da família melhorasse. Seria maravilhoso! Desde que Kit
Stratton pudesse ser convencido a desistir da segunda parte do acordo...
Marina abriu os olhos, assustada. Ainda precisava enfrentar esse aspecto. Mas,
pelo menos, a dívida da condessa já não seria um problema. Abaixou-se para pegar a
outra carta. O que ele teria a lhe dizer?
A carta era curta. Tinha apenas duas linhas. Não havia uma saudação nem uma
assinatura. Apenas palavras frias:
Cachecol branco. Amanhã. A carta foi pós-datada e pode ser publicamente
revogada.
Não fazia sentido! Marina pegou a outra carta novamente, lendo cada linha com
extremo cuidado. O que não entendera?!
De repente, tudo ficou claro. A carta estava datada para dali a dois dias e
endereçada à condessa. Seu tom era simples e formal.
Dizia:
Senhora, sua intermediária pediu-me para não exigir o pagamento de seu débito.
Far-lhe-ei uma visita amanhã, como combinado. Sua garantia de pagamento lhe será
devolvida então.
Christopher Stratton.
Na pressa, ela deixara de ler a palavra "amanhã" e a data... Aquela carta de nada
valia. Fora enganada! Fora arrogante e tola por achar que conseguiria enganar alguém
tão esperto quanto Kit Stratton. Ele se aproveitara de seu estratagema e o voltara
contra ela própria. Não poderia agora exigir que ele fizesse sua parte no acordo antes
que cumprisse a sua! Nem podia mais voltar atrás. Se não o encontrasse, ele tornaria o
caso público, usando a carta de Marina como prova de suas alegações contra ela. E
Marina seria chamada de mentirosa, de vadia, de falsa! E lady Luce a demitiria no ato!
Teria de voltar a Yorkshire sem um centavo, além de carregar o nome enlameado! Sua
mãe ficaria envergonhada, perderia seus alunos, teriam de contar com Harry para
sustentá-las!
E quanto a Harry?! Também sofreria! Poderiam pedir-lhe que deixasse Oxford, já
que ele tinha uma irmã tão sem caráter!
Marina sentiu as lágrimas descerem por seu rosto. Mas as secou, irritada consigo
mesma por saber que fora a causadora de toda aquela situação. Havia sido idiota,
escrevera uma carta que a incriminava!
Kit Stratton vencera. Podia detestá-lo, amaldiçoá-lo, xingá-lo. Ele vencera. E a
esperaria, no dia seguinte, em sua carruagem. E ela agora não tinha outra saída a não
ser ir ao seu encontro...
CAPÍTULO IX
Marina não dormiu. E assim que ouviu os primeiros ruídos que denunciavam o
amanhecer na casa, levantou-se e começou a preparar-se para seu fatídico encontro
com Kit Stratton. Sentia-se como um condenado que caminha para o patíbulo. Lavou-se
na água que ficara da noite anterior, na vasilha sobre a penteadeira, e sentiu-a fria,
mas não a ponto de fazê-la estremecer. Parecia estar anestesiada para tudo. Depois
procurou, nas poucas roupas de baixo que havia na cômoda, aquelas que menos
apresentavam sinais de remendos. Só então um tremor percorreu seu corpo. Kit as
veria... Veria suas roupas de baixo! Mas seu orgulho não permitiria que ele descobrisse a
total extensão de sua pobreza. Kit Stratton devia lembrar-se de que ela era uma dama
e, assim, uma igual.
Olhou para o belo vestido pendurado no cabide. Aquele que lady Luce lhe comprara.
Não, não poderia usá-lo. E procurou o mais sóbrio dos que havia trazido de Yorkshire.
Abotoou o colarinho alto, que lhe cobria até o pescoço, e só então se olhou no espelho.
Estava muito pálida. Seus cabelos, de um castanho profundo, contrastavam com a
brancura de sua tez, como se fossem uma peruca para um cadáver... Com dedos
trêmulos, fez-lhes uma trança e prendeu-a no penteado costumeiro. Queria que eles
estivessem praticamente invisíveis sob o chapéu.
Mas Kit Stratton lhe pediria para tirar cada peça de roupa que estava usando!
Marina engoliu em seco, passando os olhos pelo interior da carruagem. O veículo
estava longe de ser elegante. E tinha um cheiro de mofo, como se não tivesse sido usado
havia muito tempo.
— Peço-lhe desculpas pela carruagem — disse Kit Stratton, como se pudesse ler
seus pensamentos. No banco, diante dela, ele se sentava à vontade, olhando-a com
atenção. — Não é minha, deve entender. Porque pensei em sua reputação...
Marina encarou-o, desconfiada.
— Sim, devido a sua reputação — ele insistiu. — Aluguei este veículo anônimo, em
vez de utilizar o meu. Não gostei muito da qualidade, mas, como não permaneceremos
dentro dele por muito tempo... — Com calma, ele estendeu a mão magra para fora da
carruagem e trouxe o cachecol branco que ainda estava pendurado na maçaneta. Passou
a dobrá-lo com cuidado e continuou: — Não quero chamar a atenção de ninguém para a
sua presença aqui.
Ainda calada, Marina baixou os olhos para o fundo pouco limpo do veículo.
— Tire seu chapéu e suas luvas, por favor — ouviu Kit pedir.
Tensa, ela obedeceu, lutando um pouco com as tiras de seda do chapéu.
— Agora, dê-me sua mão — ele prosseguiu. E seus dedos longos envolveram os dela.
Depois, com um puxão brusco, retirou-a de seu banco, trouxe-a para o seu colo e a
beijou.
Sem raciocinar, Marina o empurrou. Kit fitou-a nos olhos. Sua expressão era
indecifrável. E observou, com voz baixa e, ainda assim, ameaçadora:
— De boa vontade, lembra-se, srta. Beaumont?
— "Em sua cama" de boa vontade — ela corrigiu. — Não numa carruagem suja e
malcheirosa!
Kit teve de rir.
— Touché, srta. Beaumont — aquiesceu. E, sem dificuldade, pegou-a pela cintura e
a recolocou em seu lugar. Depois, ainda rindo, recostou-se em seu banco.
Era a primeira vez que ela via um sorriso sincero no rosto dele. Seus olhos
pareciam ter se suavizado e sua expressão era leve. Parecia até mais jovem e
devastadoramente bonito. Se aquela era a expressão que costumava mostrar às suas
conquistas, não era de admirar que todas sucumbissem... Marina também se sentia
atraída. Mas desviou o olhar antes que enfraquecesse sua determinação e voltou a
amarrar o chapéu sob o queixo. Mesmo sem as luvas, sentia dificuldade em fazê-lo.
Kit inclinou-se para ela, sorrindo maliciosamente.
— Quer que eu a ajude com isso? — ofereceu. — Dizem que sou exímio em lidar
com peças femininas...
Marina, porém, afastou-se ainda mais, sem responder. Percebia que Kit queria
deixá-la totalmente embaraçada. Como se a sua presença já não fosse suficiente para
isso.
Com o chapéu e as luvas recolocados, perguntou, evitando olhar para Kit:
— Para onde estamos seguindo?
— Eu a estou levando para a minha casa em Chelsea — ele respondeu, sem se
alterar. — É um local bem afastado, como já sabe, perfeito para o tipo de negócios de
que vamos tratar. Não faz objeção, faz?
— Não acho que tenha alternativa, não é?
— De fato, não tem, mas sempre é bom manter a etiqueta. Uma conversa educada
ajuda a passar o tempo, não acha?
Ele estava se divertindo a sua custa, Marina constatou, irritada. Pôde perceber
isso ao olhá-lo de repente, embora a expressão em seus olhos mudasse logo em seguida.
Sentia vontade de esbofeteá-lo. Mas sabia que isso de nada adiantaria. Na outra vez em
que tentara, ele a beijara...
A carruagem diminuiu o ritmo e Kit ergueu de leve as cortinas escuras para saber
onde se encontravam. Então enfiou a mão no bolso do colete e dele tirou um pequeno
véu escuro.
— Sugiro que use isto — disse. — Nunca se sabe se haverá alguém passando pela
rua. Não quero que a sua reputação seja manchada porque se esqueceu de colocar um
chapéu com véu.
Ele a culpava pelo que estava prestes a acontecer?, Marina imaginou. Mas que
grande canalha era! Porém, como não estava em posição de reagir, colocou o véu que Kit
lhe oferecia, em silêncio.
A carruagem parou por completo, Kit desceu e estendeu a mão para Marina. Ela
hesitou. Havia algo naquelas mãos magras... Tinha receio de tocar-lhe os dedos, do que
sentiria se os tocasse...
— Venha, senhorita! — ele chamou, impaciente. — Vamos tratar logo do nosso
assunto. A não ser que queira negar-se a fazê-lo.
Marina aceitou-lhe a mão e caminhou com ele até a porta da frente da casa. Não o
olhava, mas ouviu-o murmurar:
— Eu imaginei que não era covarde.
Ela estremeceu. Podia sentir-lhe o calor da respiração em sua nuca. A governanta
veio abrir e olhou-os, parecendo pouco amistosa. Fitava Marina quase com raiva.
— Obrigado, sra. Budge — Kit agradeceu com autoridade na voz. Então tocou a
cintura de Marina muito de leve e a conduziu até a sala de estar, na qual tinham se
encontrado no outro dia.
Ela tentava manter-se calma, ignorar o tremor que lhe tomava o corpo. Mas não
conseguia deixar de pensar que, em breve, estaria no quarto dele. E estava apavorada.
Kit fechou a porta, dando, antes, instruções à governanta para que não fossem
perturbados. E Marina arregalou os olhos, imaginando se Kit exigiria seu pagamento ali
mesmo.
— Não, srta. Beaumont — disse ele, aproximando-se. — Não vou seduzi-la aqui,
nestes tapetes. — De fato, Kit conseguia ler-lhe os pensamentos. — Com certeza,
podemos ser mais elegantes do que isso. Sente-se, por favor. Gostaria de beber alguma
coisa?
Marina negou com a cabeça. Kit sentou-se diante dela e estendeu as longas pernas
em direção ao fogo da lareira. E ela teve a impressão de que ele era grande demais para
aquela sala.
— Devo admitir que fiquei surpreso com a sua vinda — Kit comentou. — Posso
supor que pretende, de fato, manter sua parte em nosso acordo?
Muito devagar, ela ergueu o véu que lhe cobria o rosto e encarou-o.
— É claro. Eu lhe dei minha palavra. E não faltaria, com ela, mesmo para com o
senhor.
Ele a observava, atento. Não se sentia atraído, a não ser por aqueles belos olhos.
Notava-a pálida demais, mal vestida, tensa. Como deixara aquela situação chegar a tal
ponto?, indagou-se. Tivera certeza de que ela não cumpriria sua palavra. As mulheres
costumavam agir assim. Mas não aquela... Devia deixá-la ir embora. Então... o que estava
fazendo?!
Talvez... exigindo seu pagamento numa aposta... Tinha concordado em perdoar uma
dívida de doze mil libras, além de sua vingança contra lady Luce. Devia haver uma
recompensa para tanto. E havia alguma coisa naquela mulher que o intrigava.
Ficou ali, sentado, apenas olhando-a. Permitiria que uma jovem de classe
entregasse sua virtude a ele por doze mil libras? Em seus vinte e sete anos de vida,
jamais pagara a uma mulher para vir a sua cama. Jamais! Perseguia-as, sim, às vezes até
durante meses. Levara quase um ano para persuadir a bela baronesa a trair o marido.
Seus amigos em Viena diziam que ela era inacessível. Tinham apostado que não
conseguiria seduzi-la. E ela sucumbira, por fim. Mas o faria de qualquer forma. Se não
com ele, com algum outro. Seu jeito reservado era apenas uma fachada para um interior
ardente e voluptuoso, pronto para a traição. Tinha sido um bom acerto entre ambos. E,
quando ela seguira com o marido para Londres, achara conveniente segui-la. Precisava
mesmo voltar, e era bom tê-la como amante quando bem entendesse.
E agora estava ali, diante da srta. Beaumont. Ela havia se preparado para ceder ao
seu prazer. Devia achar que fizera um acordo com o demônio, mas manteria sua palavra.
Uma mulher impressionante! Se, ao menos, tivesse uma aparência que combinasse com
seu caráter!
Podia deixá-la ir embora. Mas, assim, aquela velha sem princípios teria ganho a
batalha! Como fizera havia cinco anos...
Nem pensar numa segunda derrota! A srta. Beaumont teria de manter sua parte no
acordo. Ele não devia ter proposto aquele acordo, para começo de conversa, já que o
maior pagamento cairia sobre as costas da srta. Beaumont, e não de lady Luce. Apenas
um homem absolutamente infame a levaria para a cama. Seria ele assim infame?
Notou que ela girava um anel no dedo, por baixo da luva. Kit levantou-se e deu
alguns passos pela sala. Havia mobília demais ali, analisou. Desistiu de andar, então, e
parou junto à janela, olhando para a rua. Recomeçara a chover.
— Srta. Beaumont—chamou, quebrando o silêncio profundo.
Marina teve um sobressalto.
Kit tornou a olhá-la e se aproximou dela.
— Manteve sua palavra — disse. — Eu não esperava que o fizesse. Admiro-a por
sua coragem. Mas devo confessar-lhe que, agora, não tenho o menor desejo de levar a
cabo nosso... acordo. Tenho por princípio não ter mais de uma amante por vez. Portanto,
como estive com uma ontem... bem, se me permite, eu a levarei de volta ao parque, para
que retorne à sua casa.
Marina olhou-o, abismada.
— Mas... não entendo... A dívida... Concordamos que...
— A dívida está paga. Pode entregar minha carta a lady Luce amanhã. Na sexta-
feira, eu a visitarei para entregar-lhe a garantia que ela assinou, como prometi.
Marina levantou-se.
— Mas... — Seu corpo todo tremia, e Kit podia notá-lo muito bem.
— Nada tema, senhorita. Sei manter minha palavra também.
A cor começava a voltar ao rosto de Marina, enchendo-o de vida. Com calma, Kit
ergueu as mãos e colocou-lhe de novo o véu sobre o rosto.
— Venha. A carruagem está esperando.
Marina nada mais disse durante todo o trajeto que fizeram de volta ao parque.
Não entendia. Ele havia desistido... Por quê?!
Essa pergunta estava na mente de Kit também. Talvez tivesse desistido porque
encontrara uma mulher de fibra. Olhou-a e sorriu de leve. Garantiria que sua honra
fosse protegida, pois ela o merecia. Quanto a lady Luce, não haveria proteção alguma.
Perdoaria a dívida, sim, mas todos saberiam que o fizera. Ele, Kit Stratton, seria visto e
reconhecido como magnânimo. E ela, a condessa Luce, teria de ser publicamente
agradecida a ele por haver recebido doze mil libras como caridade. E aquela velhota
ficaria humilhada para sempre! Não era essa a vingança que ele tanto planejara, mas
poderia ser tão doce quanto.
Marina sentia muito frio. Kit a estava levando de volta ao parque. Estivera a sua
mercê, em sua casa, e ele a devolvia intacta. Marina sentia que não valia sequer uma
hora de diversão na cama daquele homem. Olhou para ele, por trás do véu que lhe dava
certa proteção. Notava que Kit parecia estar muito distante dali, pensativo, distraído.
A chuva tinha parado agora. Mas as ruas estavam cheias de poças. Seria um longo
e sujo caminho de volta à casa de lady Luce.
Percebeu que um sorriso muito leve aparecia nos lábios de Kit. Devia estar se
regozijando de mais alguma vitória, imaginou. E ele devia vencer sempre, em especial no
que se referia às mulheres. Era um verdadeiro demônio...
Com a mão elegante, ele afastou a cortina como fizera antes.
— Vamos chegar em alguns instantes — anunciou. — Consegue encontrar seu
caminho de volta, imagino. Deve entender que não posso levá-la até a porta de sua casa.
Por que ele estava sendo subitamente tão gentil?, Marina se perguntou. Uma hora
antes, praticamente a seduzira ali mesmo, naquela carruagem...
— Obrigada, sr. Stratton. Sou perfeitamente capaz de me arranjar sem... a sua
ajuda — respondeu, fria.
Ele a olhou e, de repente, veio sentar-se a seu lado, ergueu-lhe o véu e beijou de
forma avassaladora. Foi um beijo possessivo, como se estivesse mostrando a ela que a
possuía, que poderia ter conseguido muito mais do que seus lábios, que ela não
conseguiria resistir ao seu poder de sedução. E, para vergonha de Marina, ela
reconhecia que era assim de fato. Sabia que devia afastá-lo, mas seus braços pareciam
tão pesados! E o beijo, agora mais profundo, era uma alegria, não um castigo, que a fazia
experimentar sensações com as quais jamais sonhara. Seu corpo a traía! E foi com
paixão que passou a mão pela nuca de Kit e entregou-se completamente ao beijo.
Quando ele se afastou, por fim, a carruagem já tinha parado. E Marina não fazia
idéia de quanto tempo ela estava assim. Todo o seu ser tinha sido levado a um mundo
encantado de sensações deliciosas. Fora seu primeiro abraço apaixonado, seu primeiro
beijo voluntário. E agora respirava fundo e sentia seu coração bater descompassado.
Tinha vergonha do que acabara de fazer.
Olhou para Kit, mas a expressão dele era um enigma. E sua respiração estava quase
normal. O beijo que a arrebatara não parecia ter tido o mesmo efeito nele. Marina
sentia-se mais envergonhada do que nunca. Sentiu um calor intenso, repentino, subir-lhe
ao rosto.
Apressada, abaixou o véu e estendeu a mão para abrir a porta, porém Kit a
segurou.
— A calçada fica do outro lado — explicou-lhe calmamente. — Não quero que desça
na lama.
Marina engoliu em seco e, encarando-o, levantou-se e se dirigiu na direção que ele
indicara.
— Deve entender que não posso sair para ajudá-la a descer — Kit ainda disse. —
Perdoe-me por isso.
Marina desceu para a abençoada liberdade de Hyde Park. Voltou-se e respondeu:
— Por isso, certamente, eu o perdôo, senhor, mas não pelo resto. — E bateu a
porta do veículo com toda sua força.
Quando começou a correr, chegou a ouvir a risada dele lá dentro. Era impossível
lidar com um homem assim, avaliou. Seguiu seu caminho, cabisbaixa, chegando, por fim,
ao portão do parque. Ia atravessá-lo quando viu um cavaleiro exercitando seu animal
pela rua. Ele ia passar por uma poça próxima a ela, e desviou o cavalo educadamente.
Marina ergueu os olhos, na intenção de agradecer, e teve de arregalá-los. O homem ia
tocar a aba de sua cartola, numa saudação, e a encarou por segundos, seguindo depois
seu caminho.
Marina ficou parada ali, olhando-o, imaginando se ele a reconhecera. Não, tentou
convencer-se. Nunca tinham sido formalmente apresentados... e ela estava usando um
véu.
Levou a mão até ele e sentiu-se estremecer. Parte do véu permanecera erguida
quando descera apressada da carruagem e seu rosto ficara parcialmente à mostra. O
cavaleiro a tinha visto descer do veículo.
E devia ter se aproximado um pouco para ver quem era a mulher que tão
obviamente desafiava as convenções. Por sua expressão, Marina percebera que ele a
reconhecera, mesmo sem saber seu nome.
O que poderia fazer com a informação de que dispunha agora? Iria dizer que uma
mulher alta, esguia, vestida de cinza, saíra sozinha de uma carruagem fechada nas
primeiras horas da manhã? Muitos dos conhecidos de lady Luce poderiam reconhecer
sua descrição, então...
Marina estremeceu. Mais uma vez, sentia um frio intenso. Pensou de novo em Kit
Stratton. Diante do que acabara de acontecer, somente ele poderia salvá-la de uma
desgraça pública. Porque o cavaleiro que a vira sair daquela carruagem era sir Hugo
Stratton.
CAPÍTULO X
Aquilo tudo não fazia sentido, Marina pensou, largando as luvas e o chapéu sobre a
mesa de seu quarto e sentando-se na cadeira. Tudo mais lhe parecia uma sequência de
charadas que não conseguia entender. Primeiro, Kit a atacara em sua carruagem. Depois
dissera-lhe aquela baboseira toda sobre não ficar com mais de uma amante a cada vez.
Depois, dera-lhe aquele beijo faminto no caminho de volta ao parque. Por algum
motivo que desconhecia, sentia que ele estava brincando ela. Os homens poderiam ser
tão instáveis quanto as mulheres?, indagava-se. Porque em sua casa mantivera-se
distante, mas na carruagem...
Devia ser isso, concluiu. Era porque, na carruagem, ele mal a podia ver. Devia ter
imaginado que estava beijando outra, sua amante atual talvez.
E Marina sentiu-se ultrajada, usada. Teria sido pior se ele, de fato, a tivesse
levado para a cama? Porque fora corajosa, ele simplesmente a dispensara. Humilhante!
Mais ainda porque, quando ele a beijara, correspondera com intensidade. E agora
sentia-se extremamente envergonhada. Pecara, analisava. E sabia que, se tivesse
oportunidade novamente, pecaria outra vez...
Não podia permitir que houvesse mais uma oportunidade, então. Rodava o anel no
dedo, pensando no que fazer. Pior ainda era saber que precisava falar com Kit Stratton
ainda uma vez para pedir-lhe que falasse com seu irmão a fim de que este não contasse
ao mundo sua vergonha. Poderia escrever-lhe uma carta, pedindo que o fizesse. Seria
bem melhor do que vê-lo em pessoa. Mais uma vez sentia que seu futuro dependia de
uma resposta dele. Assim pegou uma folha de papel e preparou-se para escrever a carta
mais difícil de sua vida.
Com um olhar malicioso para o marido, Emma Stratton tocou o ombro de Kit para
que este se inclinasse até sua altura a fim de dar-lhe um beijo barulhento na bochecha.
— Que delícia revê-lo, Kit — disse, sorrindo. Kit devolveu o sorriso a sua linda
cunhada.
— Se as más línguas a vissem agora, cunhadinha... — comentou.
— Ora, o que quer dizer com isso? — ela indagou, com ar de inocência.
De seu lugar, junto à janela, foi Hugo quem respondeu:
— Sabe muito bem o que ele quer dizer, meu amor. Nunca irão parar de procurar
um escândalo entre você e Kit.
— Imaginem! — Emma protestou, voltando a sentar-se na poltrona que antes
ocupava. — Eu? Mãe de três crianças lindas? Que vergonha falar assim de mim, Hugo!
Kit tomou-lhe a mão e beijou-a de leve, sempre sorrindo.
— E quem pode garantir que essas três lindas crianças são todas suas, meu irmão?
— brincou. — Afinal, somos tão semelhantes... — Ele não precisava lembrar nem à
cunhada nem a seu irmão que Emma tinha sido comprometida, tantos anos antes, como
resultado de uma confusão que ela fizera entre os dois, num jardim, à meia-noite.
— Você é um monstro! — acusou ela, também brincando, batendo de leve na mão de
Kit com a ponta do leque.
— Agora, falando a sério — disse Hugo, aproximando-se dos dois —, seria melhor
nem mencionar nossa semelhança. Porque as más línguas podem começar a pensar
demais. Sabe muito bem como os rumores são...
— Não se preocupe, meu irmão. Afinal, estive em Viena praticamente desde o dia
em que vocês se casaram. Posso ter certa reputação com as damas, mas há coisas que
nem eu... — ele se interrompeu, vendo a expressão de descrença no rosto do irmão e da
cunhada.
— Vocês dois são iguais, isto sim — Emma comentou, então. — Nenhum dos dois
vale nada! Que assunto mais impróprio!
— É verdade — Hugo concordou. — Kit, vamos falar de coisas mais apropriadas
para a presença de uma dama. Não quer se sentar? Diga-me uma coisa: viu a dama que
acompanhava lady Luce no baile na outra noite?
— Por que pergunta? — Kit indagou, com cuidado.
— Talvez porque eu ache que você conhece todas as damas de Londres... e deve tê-
la visto. É mais alta do que a média. Não pode ter deixado de notá-la.
— Na verdade, Hugo, não a vi no baile, mas sei de quem se trata. É a dama de
companhia de lady Luce. Seu nome é srta. Beaumont.
— Ah, mas é claro! — Hugo pareceu lembrar-se de algo. — Como não pensei nisso
antes? A semelhança é tão grande!
Emma encarou o marido, franzindo a testa.
— Mas do que estão falando? — quis saber. — Quem é essa srta. Beaumont?
— Não tenho bem certeza, Emma, mas acho que o meu amigo George Langley era
tio da moça. Você sabe que George foi morto em Ciudad Rodrigo, mas acho que eu nunca
mencionei que o marido da irmã dele, Tom Beaumont, morreu lá também.
— Oh, que triste! Perder o marido e o irmão!
Kit levantou-se de repente e foi até a janela. Por alguns segundos permaneceu ali,
pensativo, ainda tendo nos ouvidos o comentário solidário da cunhada para com a outra
mulher.
— O que o faz pensar que essa srta. Beaumont seja, de fato, parente deles, meu
amor? — Emma perguntou ao marido.
— Porque não deve haver dúvidas a respeito. Não para quem tenha conhecido Tom
Beaumont. Ela se parece muito com ele. É alta, esguia, morena. Mas não entendo por que
está trabalhando como dama de companhia de uma velhota como lady Luce.
— Imagino que a família tenha se tornado muito pobre, Hugo — Kit falou de onde
se encontrava. — Será que o Exército nada fez pela viúva?
— Não sei. Deve lembrar-se de que, depois daquela batalha, eu... passei por
dificuldades.
Kit assentiu depressa, sem querer que o irmão tivesse de ficar lembrando das
terríveis acusações de covardia que suportou, vindas de seu comandante-em-chefe.
Tudo fora esclarecido, mais tarde, mas as lembranças ainda doíam.
— Não pude fazer nada pela sra. Beaumont naquela época — Hugo explicou. — Nem
me permitiram escrever para ela. E, quando voltei para casa, já se tinham passado
alguns anos. Nem sabia onde estavam morando.
Kit continuou olhando pela janela, pensativo. Quase fizera algo de terrível contra
uma dama cuja família devia ter ficado sob a proteção da sua. Não era de admirar que a
srta. Beaumont tivesse mostrado tanta coragem ante suas investidas. Vinha de uma
família de gente corajosa. Engoliu em seco, reconhecendo que aquela moça precisava de
ajuda, não de coação. Mas agora seria praticamente impossível que ela aceitasse
qualquer coisa vinda dele. Dissera até que ele não estava à altura de Hugo, seu irmão.
Deixara de ouvir o que Hugo e Emma estavam falando, mas entendeu as últimas palavras
da cunhada:
— E eu vou cuidar dela. Não me interessa o que lady Luce possa dizer.
— Ah, mas aquela bruxa vai ter o que dizer! — Hugo observou. — Não acha, Kit?
— Como?
— Eu e Emma estávamos falando sobre a srta. Beaumont. Emma quer ajudá-la,
mas... devo admitir que tenho minhas... dúvidas.
Emma olhou-o, incrédula.
— Dúvidas?! Mas por quê?
— Acredite, minha querida, sinto se ela e a família estão passando por um estado
de penúria, mas não deve se envolver. A moça é apenas uma dama de companhia, afinal.
— Hugo, mas que comentário terrível! — Emma continuava olhando-o sem entender
sua reação. — Não devia dizer algo tão rude! Está tentando esconder alguma coisa de
mim?
Um silêncio estranho caiu na sala e Kit voltou-se para encarar o irmão. Também ele
queria saber o que Hugo poderia ter contra a srta. Beaumont.
— Eu só estou lhe pedindo que não tome a srta. Beaumont sob a sua proteção por
enquanto — Hugo explicou. — Acredite, tenho motivos para ser cauteloso. Eu... a vi esta
manhã, digamos, num local onde uma dama não deveria estar.
— Mas não deve supor nada sem... — Emma começou, porém o marido a
interrompeu com suavidade:
— Paciência, meu amor. Dê-me algum tempo para descobrir um pouco mais sobre
essa moça e... se nada houver que a desabone, então ficarei feliz que você a ajude.
— Está bem, então — Emma concordou. — Mas aja depressa, porque estou curiosa
para conhecer a srta. Beaumont.
Kit apenas olhava atento. Emma sabia como conseguir o que queria do marido. E
Hugo estava rindo.
— E prometeu-me obediência quando nos casamos... — ele comentou, brincando.
Ela se levantou e, após dar-lhe um beijo na testa, disse:
— Fique tranqüilo, meu querido. Jamais faltarei com os meus votos matrimoniais.
Agora, como tenho um compromisso com lady Dunsmore, deixo-os para que possam
conversar à vontade. Adeus, Kit.
Depois que Emma se foi, a sala pareceu ficar sem graça. Hugo ainda sorria quando
o irmão se aproximou, junto à lareira.
— Enorme coincidência que essa moça seja filha do seu amigo, não, Hugo? —
observou.
— É. Eu e o tio dela servimos juntos durante anos. Seu pai, porém, era mais velho e
depois foi transferido para o 95º Regimento, e eu não o conheci tão bem assim. Mas,
pensando agora a respeito, não me surpreende que a família tenha ficado sem nada.
Beaumont estava sempre jogando e poucas vezes ganhava.
Kit começava a entender por que a srta. Beaumont queria tanto proteger sua
patroa dos estragos de uma partida mal jogada. Mais uma razão para condenar seu
próprio comportamento, também.
— Parece-me que sabe mais sobre a srta. Beaumont do que está preparado a
revelar, Kit — Hugo declarou, encarando-o. — Devo estar certo ao dizer que ela não é
uma pessoa que se possa recomendar aos cuidados de Emma...
— Não, você não está certo — Kit rebateu de imediato. — A srta. Beaumont é uma
dama sim. Por que pensa o contrário?
Hugo olhou-o por instantes, como se quisesse captar algo de revelador em sua
expressão. Não conseguindo, respondeu:
— Muito bem, então: eu a vi no parque esta manhã. Estava sozinha. Desceu de uma
carruagem com cortinas negras e, por sua expressão, me pareceu que estava um tanto
agitada. Não consigo imaginar um bom motivo para uma dama se encontrar ali, tão cedo.
E, a meu ver, ela me pareceu ainda mais culpada.
— Falou com ela?
— Não. Nem fomos apresentados. Mas eu a reconheci do baile.
— Reconheceu-a através do véu?!
Hugo recostou-se em sua poltrona e olhou para o irmão.
— Não vou lhe perguntar como sabe que ela usava véu — murmurou. — Mas agora
estou ainda mais certo de que devo descobrir mais coisas sobre essa moça antes de
permitir que Emma a conheça.
Kit respirou fundo, arrependendo-se de sua estupidez. O que poderia fazer para
salvar a situação?, indagava-se. Se Hugo começasse a especular sobre a srta. Beaumont,
haveria comentários... E tudo seria por sua culpa. Por isso disse:
— Hugo, entendo o seu interesse em proteger a reputação de Emma, mas não
precisa se preocupar quanto à srta. Beaumont. Ela é uma dama, e muito virtuosa. Eu...
lhe dou minha palavra de que não a seduzi.
— Mas se encontrou com ela. E estavam a sós, suponho.
— Ela... ela me procurou para pedir-me que perdoasse a dívida de lady Luce — Kit
acabou por confessar, sabendo que de nada adiantaria esconder o fato de seu irmão.
— Entendo... Bem, isso não é tão surpreendente assim, considerando-se os
antecedentes na vida dessa moça. E posso imaginar por que ela bateu a porta da
carruagem na sua cara, Kit. Deve ter ficado furiosa com a sua negativa.
— É, ficou, sim. — Kit sorriu, lembrando-se da forma apaixonada com que ela
correspondera ao seu beijo e da raiva que devia ter sentido de si mesma por haver sido
tão fraca. — No entanto — continuou —, devido às revelações que fez sobre ela, imagino
que eu deva atender ao seu pedido.
— O quê? Vai deixar de ganhar doze mil libras?! Isso seria excepcionalmente
generoso, meu irmão! Ainda mais considerando-se sua raiva pela condessa.
— Minha raiva não mudou. Ela vai se sentir furiosa em ter de admitir que fui
magnânimo por perdoar-lhe a dívida. Na verdade, até vai valer a pena não ganhar esse
dinheiro, se eu puder ver aquela velhota humilhada publicamente.
Hugo meneou a cabeça, demonstrando que não se conformava com a maneira de
pensar de Kit.
— Espero que esteja satisfeito agora com o que lhe contei sobre a srta. Beaumont
— insistiu ele.
— Claro. Aceito sua palavra, Kit. E, como ninguém mais a viu, exceto eu... É claro
que não vou manchar a reputação de uma dama por tão pouco. Nada direi.
— Nem mesmo a Emma?
— Vou sugerir que ela faça uma visita a lady Luce.
— Ah, mas ela não ousaria!
Hugo sorriu.
— ÉE claro que ousaria — afirmou. — Emma vai achar a situação toda um grande
desafio. Tentará reconciliar as duas famílias e ajudar a srta. Beaumont, como já
pretende. E aposto que vai descobrir mais sobre essa misteriosa dama de companhia do
que eu faria em uma semana de indagações. E acredito que você estará mais tempo em
companhia da srta. Beaumont do que imaginou. A não ser que deixe de nos visitar...
— Mas é claro que não. Se a srta. Beaumont estiver aqui quando eu vier, tentarei
me acostumar à situação.
Marina colocou a carta no bolso e entrou na sala, sabendo exatamente o que dizer,
depois de mais uma noite de sono perturbado. Caminhou até junto da poltrona próxima à
janela, onde se encontrava a condessa. E viu-a de olhos fechados.
— Não fique aí parada, menina! — disse lady Luce, sem abrir os olhos. — Não há
nada de errado com os meus ouvidos, mesmo quando meus olhos estão fechados.
Marina sorriu, tensa. Tinha de parecer normal. E, estendendo a carta para sua
patroa, disse:
— Chegou uma carta para a senhora.
A condessa entreabriu os olhos. Em seguida, endireitou-se, pegou a carta e leu o
que estava escrito no envelope.
— Não reconheço a caligrafia — disse. — Isto chegou esta manhã?
— Não tenho certeza, senhora. Mas não deve haver resposta, pois o mensageiro
não esperou por uma.
Lady Luce abriu a carta, colocou os óculos e leu, enquanto Marina prendia a
respiração.
— Oh! Como ele ousa?! — gritou a condessa, segundos depois. — Ele me concede
doze mil libras porque alguém que enviei lhe pediu! Eu jamais enviaria ninguém até
aquele miserável! Que grande mentira! E diz que está satisfeito em me informar que
virá até aqui amanhã para devolver-me a garantia que assinei! Virá para rir na minha
cara, isto sim!
— Posso... posso ler a carta, senhora? — Marina tentava manter-se calma.
Lady Luce entregou-lhe a carta sem dar-lhe grande atenção. Marina a leu como se
fosse pela primeira vez e concluiu:
— Talvez um de seus amigos tenha falado com o sr. Stratton sem a sua permissão.
Se assim foi, essa pessoa salvou-a de muitos problemas...
— Ora! Se eu descobrir quem ousou fazer isso! — Lady Luce estava furiosa. — E
por que você está defendendo esse intermediário, afinal?
— Conheço poucos dos seus amigos, senhora, e não estou em condição de defender
ninguém. Mas estava pensando que, já que a dívida lhe causaria tantos problemas... ainda
mais entre a senhora e seu filho... bem, é uma bênção que não tenha mais de pagá-la.
— Uma bênção?! Acredite, menina, não é bênção alguma estar nas mãos de Kit
Stratton!
Marina concordava plenamente com isso.
— E se o preço a pagar for o de que aquele infeliz possa rir de mim, jamais
aceitarei...
A porta abriu-se, interrompendo-a.
— O conde Luce, senhora — anunciou o mordomo. Lady Luce praguejou baixinho,
enquanto o filho entrava, sorrindo, parecendo satisfeito. A condessa olhou-o com
desdém, ouvindo-o cumprimentá-la:
— Bom dia, minha mãe. Vejo que está muito bem. — Depois, voltando-se para
Marina, deixou de sorrir para acrescentar: — Não esperava vê-la mais aqui.
— Saiba que a srta. Beaumont não vai a lugar algum sem a minha expressa
permissão, William! — avisou lady Luce, contrariada. — Ela vale mais do que vinte das
garotas com quem você anda por aí. E vai ficar em minha companhia.
Marina arregalou os olhos diante da revelação.
— Falaremos disso mais tarde, mãe — o conde rebateu entre os dentes. — Temos
assuntos mais importantes a tratar agora. Sua dívida, por exemplo. Sei que duvidou de
que eu pudesse levantar tanto dinheiro em tão pouco tempo, mas estava enganada.
Tenho aqui comigo um cheque nesse valor. — E bateu no bolso do paletó. — Nem me
custou muito consegui-lo, devo acrescentar. Tratei do empréstimo pessoalmente,
porém, como não tinha alternativa... Não importa o rombo que isso irá causar na minha
fortuna, eu não podia deixar que dissessem que minha mãe deixaria de pagar uma dívida
de honra.
Marina percebia que a condessa rangia os dentes de raiva. Até que lady Luce disse,
fria:
— Parece que se deu a um grande trabalho, William. E, na verdade, nem era
necessário. Não preciso que me fale sobre honra, devo dizer. Sugiro que pegue esse seu
cheque e faça bom uso dele. Compre vestidos novos para Charlotte; qualquer coisa
menos monstruosa do que ela usava no baile da outra noite.
— Mas a sua dívida...
— Não tenho mais nenhuma dívida, William! Posso tratar de minhas finanças
perfeitamente bem sem sua interferência. E agora, se nos dá licença, eu e a srta.
Beaumont temos uma hora marcada esta manhã.
— Mas eu fui até o banco...
— Tenha um bom dia, William! Como já sabe o caminho para a porta... Venha,
Marina!
Marina não se atreveu a olhar para o conde. Ele dava a impressão de estar a ponto
de ter um ataque do coração. Ao que parecia, a condessa faria qualquer coisa para
irritar, enfurecer até, seu filho. Mesmo que isso significasse aceitar um favor de um
homem que ela detestava tanto: Kit Stratton.
CAPÍTULO XI
Não havia nenhuma hora marcada, claro, embora lady Luce tivesse mandado
preparar sua carruagem para dar umas voltas pelo parque e, assim, mostrar a seu filho
que tinha mesmo para onde ir. E durante o tempo todo em que esteve com Marina no
veículo, ocupou-se em falar contra o filho e contra Kit Stratton. Era difícil saber qual
dos dois ela detestava mais. Marina percebia que isso dependia da situação. A condessa
usara a oferta de Kit para irritar o filho, sem pensar nas consequências. Essas viriam na
manhã seguinte, quando Kit lhe faria uma visita para devolver-lhe a garantia assinada.
Marina duvidava que a velha senhora fosse capaz de manter-se calma diante de tal
provocação, mesmo não tendo condições de pagar a dívida. Quanto a Marina, o problema
persistia em relação a sir Hugo. Não recebera ainda uma resposta da carta que enviara
a Kit Stratton. Talvez ele simplesmente a ignorasse... Afinal, por que se interessaria em
ajudá-la? Sua despedida tinha sido um tanto quanto intempestiva.
E podia lembrar-se ainda daquela risada que ouvira ao bater a porta da carruagem.
Uma risada que não podia ser a reação de um homem vingativo.
Precisava ser paciente e aguardar a resposta dele. De certa forma, tinha
esperanças de que ela viesse. Kit não era o tipo de homem que desse as costas a um
pedido de socorro, ainda mais vindo de uma dama...
Mas... como podia saber ao certo?, indagava-se, sem entender. Nada sabia sobre
Kit Stratton, a não ser que era um canalha contumaz e que nenhuma mãe zelosa
confiaria a filha a ele, mesmo sendo um homem que, recentemente, havia se tornado
muito rico.
A condessa era de opinião de que Kit seria um canalha até o dia de sua morte; e,
como sir Hugo já era casado e tinha filhos, Kit não teria a menor necessidade de deixar
herdeiros que poderiam seguir seus instintos. Na verdade, de acordo com lady Luce,
seria bem melhor assim; o mundo ficaria livre dele e de qualquer semente que pudesse
deixar.
Lembrando-se de como seu tio falava de sir Hugo, Marina sabia perfeitamente
bem que ele jamais deixaria o irmão mais novo sem posses. Isso porque seu tio George
sempre dissera que seu amigo era o homem mais honrado e honesto que já conhecera e
que amava demais sua família, preocupando-se sempre com os menos afortunados que
passavam por seu caminho.
Ela achava estranho que Kit pudesse ser tão diferente do irmão.
Seus pensamentos foram interrompidos por batidas firmes na porta e pela voz de
Tibbs, que lhe dizia estar lady Luce exigindo sua presença em sua sala particular. Havia
visitas.
Não podia ser Kit Stratton, avaliou Marina. Ele só viria no dia seguinte e, como
havia toda aquela animosidade entre ele e a condessa, era quase certo que Kit não
colocaria os pés em sua casa a não ser no exato momento necessário.
— Ah, aí está você, menina! — exclamou a condessa quando Marina entrou. A voz
da velha senhora parecia bastante calma agora.
Lady Luce voltou-se para o visitante que, sentado na poltrona à sua frente, estava
ainda oculto para Marina.
— Venha, Marina! — continuou a condessa. — Quero apresentar-lhe lady Stratton.
Marina sentiu um aperto no peito. A esposa de sir Hugo estava ali! Aproximou-se e
deparou com a elegante e bela lady Stratton, uma dama de verdade.
— Quero apresentar-lhe a srta. Marina Beaumont, que recentemente se tornou
minha dama de companhia — disse lady Luce, cheia de formalidade. — Ela é parente dos
Blaine, mas a sua família é de Yorkshire. E devo dizer que, para ela, Londres está sendo
um tanto aflitiva, já que viveu toda a sua vida nos campos.
Lady Stratton sorriu para Marina e estendeu-lhe a mão direita.
— Oh, duvido que a srta. Beaumont deixe que um pouco de poluição e barulho a
afete tanto assim — comentou. — Na verdade, senhorita, estou encantada em conhecê-
la. — E apertou a mão de Marina de uma forma que a esta pareceu significativa.
Marina estava fascinada pela beleza daqueles intensos olhos azuis. Se ela viera
como mensageira de seu cunhado, porque não devia haver outro motivo para a sua visita,
não parecia disposta a revelar seus propósitos, pelo menos por enquanto.
— Sente-se, menina — indicou a condessa. — Não gosto de vê-la, tão alta, em pé,
quando estamos conversando.
Lady Stratton sorriu, observando:
— Eu sempre quis ser mais alta porque meu marido zomba da minha estatura tão
baixa. E o irmão dele é ainda pior! Mas o que se pode esperar de alguém como Kit, não é
mesmo?
A condessa franziu o cenho. Marina já aprendera a interpretar as expressões de
sua patroa e agora percebia que ela concordava com sua visitante, porém de maneira
cínica.
— Nossas famílias não têm o hábito de se visitarem — continuou lady Stratton,
amável, para sua anfitriã. — E isso, em parte, é porque eu e meu marido passamos
bastante tempo no interior. Hugo não gosta muito da vida social de Londres, como deve
saber. Mas estamos aqui por algum tempo agora e eu vim para tentar persuadi-la,
senhora, a estar presente a uma pequena reunião que daremos no sábado. — Como a
condessa hesitasse diante do convite, Emma prosseguiu: — Oh, por favor, diga que irá!
E a srta. Beaumont também, é claro!
Lady Luce ainda vacilava, porém Marina percebia que ela não era de todo imune ao
charme encantador de lady Stratton. E, de repente, perguntou:
— Seu cunhado estará lá também?
Emma riu, simpática.
— Duvido, senhora. Kit não costuma freqüentar os salões de damas respeitáveis,
mesmo daquelas de quem é parente. Além do mais, a sua presença poderia afugentar a
maior parte dos meus convidados!
Até mesmo lady Luce não pôde conter sua satisfação ao ouvir tal comentário. E
tanto ela quanto Marina riram dele.
— Sei que eu não deveria dizer tais coisas de meu cunhado — Emma acrescentou.
— Mas... já conhece Kit, srta. Beaumont?
— Ah, ela o conhece, sim — respondeu a condessa por sua dama de companhia.
Marina estremeceu, temendo que lady Stratton prosseguisse no assunto e
acabasse por descobrir que ela estivera na casa de jogos de lady Méchante, o que
poderia fazê-la retirar o pedido de visita que acabara de fazer.
— Diga-me — indagou lady Stratton, sempre sorridente —, o que você achou de
meu cunhado, srta. Beaumont?
— Oh, bem, ele... ele... é impressionante. E... muito alto. — Ela não sabia o que lhe
estava acontecendo. Gaguejava como uma tola.
Emma sorriu novamente e tocou-lhe a mão.
— É muito cautelosa e gentil, e lhe agradeço por isso — disse. — Mas não há
necessidade de sê-lo. Conheço muito bem a reputação que Kit ganhou. Ele é, com
certeza, alto e impressionante. Já conheci damas que se apaixonaram só em olhá-lo.
Mas isso foi antes de ele viajar para o exterior, claro. Hoje em dia, donzelas inocentes
estão proibidas de olhar para ele, já que um olhar bastaria para corromper seus
pensamentos...
Marina mal podia acreditar no que acabara de ouvir. Lady Luce riu, cínica.
— Verdade — comentou. — Kit é, de fato, muito bonito. E tem um jeito bastante
persuasivo com as moças. No entanto, para mim, ele sempre será um rapaz arrogante e
presunçoso. Mas joga muito bem, devo admitir.
As palavras de sua patroa trouxeram Marina de volta à realidade. Viu que lady
Stratton se levantava, começando a calçar as luvas delicadas.
— Preciso ir agora. Foi um grande prazer conversar com a senhora, lady Luce. Kit
bem me disse que a senhora era uma mulher muito franca e direta. E eu gostaria que
houvesse mais pessoas assim aqui em Londres. Afinal, a sociedade pode ser terrível, não
acha? — Lady Luce assentia e Emma estendeu-lhe a mão. — Espero-a no sábado, então.
As duas, aliás.
— Conte conosco — afirmou a condessa. — E devo dizer-lhe que, se aquele seu
cunhado aparecer por lá... bem, talvez consigamos reformá-lo. O que acha?
Sorrindo, Emma meneou a cabeça.
— Oh, acho que isso seria impossível, lady Luce. Toda Londres sabe que Kit
Stratton está muito longe da redenção.
A governanta de Kit jamais colocara os pés numa das mansões do lado oeste da
cidade. E ainda não tinha certeza de se encontrar ali, mas a baronesa fora muito
específica quanto às recompensas que ela poderia receber...
A criada francesa que trouxera a sra. Budge pela escada dos fundos parecia
achar-se o centro do mundo, avaliou ela. Mas sabia que uma criada era uma criada em
qualquer parte. Um membro da nobreza, como a baronesa Von Thalberg, sempre teria o
poder de determinar as vidas de seus criados e livrar-se deles quando bem entendesse.
Não era de admirar, então, que os pobres criados tivessem de arranjar uns centavos
aqui, outros ali, de qualquer maneira possível. Como sobreviveriam em tempos difíceis se
não fosse assim?
Calada, a sra. Budge fez uma mesura às costas da baronesa que, voltada para a sua
penteadeira, arrumava uma onda dos cabelos sedosos. Mas seus olhos estavam
observando sua visitante com extremo cuidado pelo espelho. Por fim, virou-se
lentamente para olhá-la de frente.
— Muito bem, Budge — disse em tom imperioso —, o que a traz aqui a esta hora da
manhã? Espero que a sua presença valha a inconveniência que está me causando. Já
estou atrasada para um compromisso muito importante.
A criada, mesmo não gostando do tom de ameaça, fez outra mesura e disse:
— Senhora, pediu-me para informá-la sobre qualquer mulher que aparecesse lá em
casa. Houve uma... uma dama, que foi visitar meu patrão sábado anterior.
— E hoje é sexta-feira! Levou muito tempo para trazer-me essa notícia.
— Sinto muito, senhora, mas na hora não achei que fosse importante. A dama não é
uma beldade. Meu patrão disse que ela estava lá a negócios, e eu acreditei. Não vi
nenhum outro motivo para ele se encontrar com uma mulher tão simples e sem graça.
— Ele a levou para o andar superior?
— Não, senhora. Ficaram apenas na sala.
— E sobre o que falaram?
— Não sei, senhora. A porta estava fechada e é grossa, e eu...
— Oh, poupe-me de suas desculpas! O que mais sabe?
— Ela deixou a casa sozinha, num coche. Mas uma carta chegou depois disso, e
acho que deve ter sido enviada por ela. Meu patrão deu instruções precisas sobre a
correspondência depois que a dama saiu. E não recebemos mais sua correspondência.
A baronesa pensou por instantes, parecendo aborrecida. A governanta prosseguiu:
— Na quarta-feira, bem cedo, ele a trouxe de volta.
— E foram para o andar superior? — insistiu a baronesa.
— Não, senhora. Ficaram na sala, porém por pouco tempo, e depois saíram outra
vez.
— Juntos?!
— Sim, senhora.
— E qual é o nome dessa mulher?
— Não sei, senhora. Mas ela escreveu outra carta. Foi por isso que eu vim até aqui
hoje. A senhora disse que seria... bem, que seria generosa se eu ajudasse. Eu lhe trouxe
a carta.
A baronesa estendeu a mão elegante para receber a carta.
— Achei que, assim que a lesse, poderia recolocar o selo para que eu a leve de volta
ao meu patrão. Ele vai achar que foi o correio que demorou a entregá-la.
Mas Katharina não a estava ouvindo. Abriu o selo, sem pensar em não danificar o
papel. Desdobrou a carta e leu, apressada, antes de voltar a olhar para a sra. Budge.
— Infelizmente, não há uma assinatura inteira — reclamou. — Apenas as iniciais
M.B.
Frustrada, a governanta se adiantou para retomar a carta.
— Sinto muito se não há um nome, senhora — murmurou. — Mas eu lhe trouxe
todas as informações de que dispunha. Se puder devolver-me a carta, eu...
A baronesa pegou a folha de papel e rasgou-a em pedacinhos, com extrema calma.
Depois os juntou numa pequena bola e arremessou-os à lareira.
A sra. Budge arregalou os olhos para as chamas reavivadas por segundos.
— Senhora!
— A carta não ficou presa no correio — esclareceu Katharina. — Perdeu-se de vez.
E a nossa misteriosa M.B. vai esperar em vão pela ajuda de que necessita. Bem feito
para ela.
A governanta não entendeu aquelas palavras. O que poderia haver naquela carta?,
indagava-se. Mas agora era tarde demais para saber. Devia tê-la aberto antes de trazê-
la para a baronesa.
— O que digo ao meu patrão?—indagou, sem saber o que fazer.
— Nada. Não diga nada. A carta nunca chegou. Alguém mais na casa sabia da
existência dela?
— Não, senhora.
— Então, não vai haver problema algum. — Katharina abriu a gaveta de cima de sua
penteadeira e vasculhou lá dentro, enquanto a governanta a olhava, cheia de esperança.
— Tome — disse ela, colocando uma única moeda na palma da mão da criada.
Decepcionada, Budge olhou para o dinheiro; achava que merecia mais por estar
arriscando seu emprego em troca daquela informação tão valiosa.
— Eu poderia ser bem mais generosa se você tivesse me trazido um nome, Budge —
Katharina comentou, arrogante. — Sugiro que seja mais esperta da próxima vez. Agora,
vá. E tome cuidado para que ninguém a veja sair daqui. Se achar um nome para essa
M.B., venha me dizer imediatamente. Só então será bem recompensada.
Budge fez outra mesura, enfiou a moeda no bolso e saiu do quarto. Mas, antes de
fechar a porta atrás de si, ouviu:
— Espere!
Voltou-se de pronto. A baronesa estava a sua escrivaninha e escrevia numa folha
de papel. Budge imaginou que se tratava de uma carta endereçada a seu patrão, para
ser entregue assim que ele chegasse. Esperou, paciente. Mais um serviço podia
significar outro pagamento, talvez.
Katharina escrevia depressa, sem parar para pensar. Depois dobrou a carta e
colocou-a num envelope, que selou com cera.
— Entregue isto imediatamente, Budge, sim?
A governanta olhou para o papel, que não era o elegante, desenhado, que ela
costumava usar sempre. E não reconheceu o endereço escrito no envelope.
— Não conheço esse lugar, senhora — protestou.
— Como vou encontrar esse sr. Johnson?
— Isso não me interessa, Budge. Vai levar a carta a esse endereço e entregá-la
pessoalmente ao sr. Johnson. E a ninguém mais!
Budge assentiu, mesmo contrariada. Talvez essa nova tarefa que recebia fosse
bem mais lucrativa do que esperara até que seu patrão soltasse alguma informação
sobre a misteriosa M.B.
— Não espere pela resposta — a baronesa instruiu.
— E nada diga ao sr. Johnson. Nada, ouviu bem?! A respeito da identidade de quem
a está enviando. Também não diga nada sobre você mesma. Entendeu?
Budge anuiu. Faria o que lhe estava sendo ordenado, porém faria de tudo também
para descobrir quem era esse tal sr. Johnson. Poderia vender a informação mais tarde,
talvez, até para seu próprio patrão...
A baronesa entregou-lhe outra moeda e explicou:
— Vai receber mais assim que a carta for entregue em segurança.
— Mas, se não vou esperar por uma resposta, senhora, como vai saber que...
Katharina apenas sorriu. Depois observou:
— Não se preocupe com isso. Eu vou saber. Em breve. E, imagino, também a
misteriosa M.B.
— O sr. Stratton, senhora — Tibbs anunciou.
A condessa, muito bem-arrumada, endireitou-se na poltrona e ordenou:
— Faça-o entrar.
Marina levantou-se automaticamente e percebeu que suas pernas tremiam.
Sustentou-se se apoiando no espaldar de uma cadeira próxima, não queria que Kit
Stratton percebesse como sua presença a afetava.
O mordomo trouxe Kit até a sala particular da condessa e depois se retirou,
discreto.
Com sua altura impressionante, Kit adentrou o quarto e inclinou-se de leve diante
da condessa. Voltou-se para Marina, então, e fez o mesmo, mas de maneira que, a ela,
pareceu irônica.
Lady Luce nada disse. Não lhe ofereceu uma bebida, não tentou quebrar o silêncio
estranho que invadia a sala. Kit olhou para ela com um vago sorriso nos lábios.
— Vim para tratarmos da sua dívida, senhora — anunciou —, como foi avisado. Doze
mil libras, certo?
A condessa tornou-se mais corada, porém continuou impassível e calada. Kit
retirou uma folha de papel dobrada que estava no bolso de seu colete, abriu-a, olhou-a e
depositou-a na pequena mesa aparadora perto de lady Luce.
— Sua garantia, senhora — disse simplesmente. A condessa olhava-o com irritação.
Sabia que ele esperava por sua resposta. Kit Stratton podia ter decidido perdoar a
dívida, mas estava saboreando cada minuto que a tinha humilhada diante de si. Marina
via que o sorriso dele se pronunciava mais, enquanto sua patroa ficava a cada instante
mais e mais embaraçada.
A condessa pegou a folha de papel e amassou-a com os dedos trêmulos.
— Agradeço-lhe — disse, séria.
Marina queria que ela dissesse qualquer coisa que o fizesse sair dali depressa. Mas
lady Luce mantinha-se calada novamente. E Kit Stratton quase riu.
— Doze mil libras — lady Luce murmurou, com raiva.
— Exatamente — Kit concordou.
— Não disponho desse dinheiro para pagar-lhe — declarou a condessa, com grande
esforço.
— Sei muito bem disso, senhora. E estou satisfeito por reconhecê-lo. Não vou
exigir o pagamento, e isso significa que a dívida não mais existe.
Marina sentia que a condessa estava a ponto de levantar-se e agredir Kit, mas se
continha a custo. Ele, por sua vez, muito calmo, voltou-se de novo para encarar Marina.
— Espero que esteja bem desde que nos vimos pela última vez — murmurou, vendo
que ela prendia a respiração. E então completou: — Na casa de Méchante.
— Sim, ela está muito bem — disse lady Luce. E, levantando-se devagar, continuou:
— O que quero saber, rapaz, é a identidade do intermediário que mencionou em sua
carta. Não dei permissão a ninguém para que interferisse em minha dívida para com o
senhor e quero saber de quem se trata para repreendê-lo quando nos encontrarmos.
— Vai mesmo repreender essa pessoa? — Kit perguntou, irônico. —Acho que será
difícil, senhora. Porque não tenho a menor intenção de revelar-lhe o nome. Afinal... devo
ter algum tipo de compensação por haver deixado de receber doze mil libras...
A condessa estava tão chocada que entreabriu os lábios, incapaz de articular um
só som.
— Bem, agora preciso deixá-la, senhora — Kit prosseguiu. — Mas acredito que nos
encontremos novamente em casa de Méchante, não?
A condessa continuava muda. Kit voltou-se uma terceira vez para Marina e lhe
disse:
— Poderia acompanhar-me até a porta, senhorita?
Parecendo recuperada, lady Luce respondeu mais uma vez por Marina:
— Vá, menina, acompanhe o sr. Stratton. Esta entrevista ridícula já durou tempo
demais. — E afastou-se até sua poltrona preferida, não mais olhando para Kit.
Ele sorriu, sem se importar, e caminhou adiante de Marina, para abrir-lhe a porta.
— Obrigada — ela sussurrou, sabendo que dispunha de apenas alguns segundos
para agradecer-lhe por ter falado com seu irmão. — Sr. Stratton, obrigada por haver
respondido tão prontamente a minha carta. Estou em débito para com o senhor.
Kit franziu as sobrancelhas, estranhando. Olhou-a, muito serio, percebendo seu ar
de inocência, e irritou-se com isso. Ela não devia estar falando da carta agora, como se
tivesse sido algo muito fácil conseguir que ele não cobrasse a dívida. Estaria exultando
sobre o que conseguira?
— Não costumo deixar que damas fiquem em débito comigo — observou, frio. Mas,
logo em seguida, percebeu que suas palavras poderiam ser mal interpretadas e
arrependeu-se de tê-las dito.
Parecia estar agindo errado em tudo que se relacionava a srta. Beaumont. Talvez
ela pensasse que estava se referindo ao preço absurdo que cobrara para perdoar a
dívida... Não importava ter-lhe dito que não exigiria o pagamento de levá-la para a cama.
Por isso acrescentou:
— Não se preocupe. Não há débito algum entre nós. Já devia saber disso.
Muito próximo, Kit notou mais uma vez a perfeição da pele de Marina. Ergueu a
mão, quase sem sentir, na intenção de tocar-lhe o rosto, porém ela se afastou.
— É muito direto, senhor — disse, engolindo em seco. — E... em certos aspectos,
acredito que não concordemos. Como cavalheiro, deveria deixar que uma dama chegasse
as suas próprias conclusões quanto ao que deve ou não.
Kit franziu as sobrancelhas, mais uma vez sem entender. Mas o mordomo apareceu,
tornando a conversa impossível. Kit tomou a mão de Marina, como se fosse beijá-la,
porém parou, subitamente rude.
— É por demais gentil, senhorita — murmurou. — Tenha um bom dia. — E,
acompanhado pelo mordomo, deixou aquela casa sem nem sequer olhar para trás uma
única vez.
CAPÍTULO XII
— Quero meu casaco preto, Tibbs — ordenou lady Luce. — E mande preparar a
carruagem imediatamente.
O mordomo inclinou-se e saiu para obedecer à ordem, e Marina estranhou:
— Vai sair, senhora? Quer que eu vá buscar meu casaco também para acompanhá-
la?
A condessa olhou-a de soslaio, depois disse:
— Sente-se. Não será necessário. Não vou precisar de você esta noite.
Marina apenas assentiu, sabendo que seria impróprio indagar aonde sua patroa iria.
— Dou-lhe os parabéns por sua discrição — continuou a velha senhora, agora
fitando Marina nos olhos. — Infelizmente, porém, seu rosto é muito expressivo. Sim,
estou indo para a casa de Méchante. E não vou permitir que me acompanhe desta vez.
Não é um bom lugar para uma jovem dama como você.
— Mas esteve lá há uma semana...
— Há uma semana, certas pessoas precisavam de uma lição. Não costumo repetir
uma dose, seja do que for, ainda mais com William.
A criada de quarto chegou, trazendo as luvas e o casaco de lady Luce e começou a
colocá-lo sobre seus ombros, ao mesmo tempo que a condessa prosseguia para Marina:
— Enquanto eu estiver fora, quero que vocês duas continuem a fazer o vestido que
começaram esta tarde. Se ele tem que ficar pronto para amanhã, é bom que se
empenhem.
— Sim, senhora — murmurou a sra. Gibson, ajeitando o casaco sobre as pregas do
vestido da condessa.
— E, Gibson, não se esqueça do que eu lhe disse, ouviu? Espero ver uma melhora
considerável.
Marina não estava entendendo a conversa. Mas, como a sra. Gibson já tivesse se
retirado e Tibbs chegasse, anunciando a carruagem, era tarde demais para perguntar
qualquer coisa.
Instantes depois, a criada de quarto retornava, trazendo sua caixa de costura e
também a de Marina.
— Tomei a liberdade de trazer-lhe isto, senhorita — avisou, sorrindo. — Para
poupar-lhe o trabalho.
— Obrigada, Gibson. Foi muita gentileza sua. — E olhou para o vestido que ela
trazia pendendo sobre o braço e que era de corte elegante, de uma cor adamascada
muito fina.
Gibson sentou-se, parecendo confortavelmente instalada.
— Podemos trabalhar aqui por enquanto — comentou. — Depois poderemos ir para
seu quarto, para que possa experimentá-lo.
Marina arregalou os olhos.
— Este vestido é para mim?!
— Mas é claro que sim, senhorita. Lady Luce não lhe disse? — Vendo Marina negar
com a cabeça, a criada prosseguiu: — A condessa gosta mesmo de uma brincadeira.
Vamos terminá-lo logo. Só temos de colocar as mangas e fazer o acabamento delas.
Sabe, se fosse um vestido à moda antiga, ficaríamos trabalhando durante dias. Esses
vestidos modernos podem ser, digamos, muito mais reveladores, mas são, com certeza,
bem mais fáceis de costurar.
Marina assentiu, sentando-se também. A criada colocava a linha na agulha e
continuava falando:
— E, com as suas linhas, este corte será ideal. Espere e verá. Vai ficar espantada
com a beleza deste modelo em seu corpo.
— Boa noite, Kit.
Ele não se surpreendeu ao ser cumprimentado por Méchante praticamente à porta
da casa. A mulher sabia a quem devia tratar bem. Depois de sua rejeição aos avanços
dela, Kit esperava mais uma tentativa de sedução assim que entrasse em sua casa
novamente. Méchante não sabia perder.
Sorriu forçadamente para ela.
— Minha querida, é maravilhoso ser recebido pela anfitriã em pessoa! E à porta! A
que se deve esta honra tão especial?
O sorriso dela estava carregado de sensualidade a fim de provocar-lhe uma
reação. Mas Kit nada sentia, e Méchante devia saber disso, pois ele percebeu quando a
expressão dela deixou de ser sedutora para se tornar calculista.
— Vai jogar faraó esta noite, Kit? Porque a sua oponente favorita se encontra aqui.
Ele ergueu as sobrancelhas.
— É mesmo? Devo dizer que estou um tanto surpreso, considerando-se que...
Méchante riu alto.
— Considerando-se que ela acabou de se livrar da dívida da semana anterior —
completou por ele. — É isso o que ia dizer?
— Não. Não ia dizer nada disso. Se quer informações sobre meus negócios com a
condessa, deve perguntar diretamente a ela, não a mim.
— Ora, vamos, Kit. Pode me contar! Afinal, foi na minha casa que a dívida se
estabeleceu.
— Não. Se ela quiser que você saiba, irá, sem dúvida, contar-lhe.
— Muito bem, então. Mas, se quiser entrar na lista de adversários dela no futuro,
vou insistir em saber de tudo. De agora em diante, esta será uma condição para que
entre na minha casa.
Ele assentiu muito de leve, concordando.
— Vou considerar seu aviso — comentou —, embora eu não possa prometer que vá
continuar a freqüentar a sua casa nesses termos. Bem, mas não tenho intenção de jogar
faraó esta noite, uma simples rodada de pôquer estará bem. Junta-se a mim?
— Obrigada, mas eu não jogo pôquer muito bem. Porém desejo-lhe boa sorte. —
Com uma breve mesura, ela se afastou e subiu a escadaria que dava para o salão
principal.
Kit subiu devagar, olhando ao seu redor. O salão se encontrava praticamente vazio
e ele avançou para a sala de pôquer. Lançou um olhar para a esquerda, onde ficavam as
salas de faraó, mas elas estavam fechadas. Podia ir até lá e observar o jogo. Se lady
Luce se encontrava, de fato, ali, resistiria à tentação de jogar uma partida contra ela.
A condessa devia estar desesperada para vingar-se e para ganhar, mas ele não lhe daria
esse prazer.
Kit seguiu até as salas de faraó, porém na primeira delas não havia ninguém. Passou
para a segunda, onde todas as cadeiras ao redor da mesa estavam ocupadas. Lady Luce
sentava-se diante do homem que possuía a banca e que Kit não conhecia. A julgar pela
pilha de fichas que havia diante dela, devia estar ganhando.
Kit encostou-se num pilar, apenas observando, com ar casual. O jogo logo iria
terminar. E, quando a última carta foi dada, um jogador, visivelmente bêbado, acenou
para Kit, chamando-o.
— Kit, meu amigo, não quer se juntar a nós? — convidou. — Você é o tipo de homem
contra quem gosto de jogar, sabia? Porque é muito generoso!
A expressão no rosto de lady Luce tornou-se visivelmente tensa, mas ela não se
voltou. Parecia estar ocupada observando as próprias unhas.
Kit foi até a mesa e colocou uma mão espalmada sobre o tecido verde, bem ao lado
do braço da condessa.
— Esta noite, não, obrigado — disse, com voz tranqüila. Olhou para lady Luce,
percebendo que ela estava determinada a ignorá-lo, e ele não permitiria isso. — Boa
noite, senhora. Parece que está com bem mais sorte hoje do que... em outras ocasiões.
— Boa noite, sr. Stratton — ela respondeu, olhando-o de esguelha. — Então, está
noite não está preparado para arriscar sua reputação no faraó?
— Não vejo necessidade disso. Nada tenho a provar aqui. Minha reputação está
segura.
— Verdade? Mas ouvi dizer... — ela se interrompeu por uma fração de segundo,
para que todos prestassem atenção nas suas palavras. Então completou: — Ouvi dizer
que, pelo menos no que se refere à... fidelidade, as reputações estão se tornando,
digamos, uma tanto maculadas.
Kit não se alterou, mas não entendeu uma só palavra. O que ela poderia ter ouvido?
E os comentários que foram feitos, a meia-voz, em torno da mesa demonstravam que os
rumores a que lady Luce se referia não tinham chegado apenas aos seus ouvidos.
— Não tenho dúvidas, senhora — ele disse, mesmo assim —, que uma boa
quantidade em ouro possa garantir o brilho ao que quer que tenha sido maculado. Agora,
se me permite, boa noite.
Sem mais, Kit deixou a sala. Do outro lado do cômodo, Méchante estava
observando tudo, bebendo uma taça de champanhe e sorrindo com satisfação.
Kit a viu, fez-lhe um breve sinal e continuou seu caminho. Não pretendia que
nenhuma daquelas duas mulheres percebesse qualquer sinal de fraqueza nele. Mas sua
raiva estava a ponto de explodir. Agora entendia que lady Luce sugerira estar ele sendo
infiel a Katharina. Como ousava?! Ao que parecia, ela não conhecia limites quando se
tratava de irritá-lo. Não fora infiel a Katharina... por causa da srta. Beaumont... devia
ser isso! A condessa devia ter sabido de seus encontros clandestinos com ela e
interpretado tudo a seu modo. Não poderia haver outra explicação. Precisava arranjar
um jeito de abafar os rumores antes que Katharina viesse a tomar conhecimento deles.
Lady Luce tinha de ser persuadida a...
Não. Lady Luce não era a maior culpada no caso. Hugo jurara segredo sobre o que
vira. Além dele, ninguém sabia a respeito dos seus dois encontros com a srta. Beaumont.
A única fonte de conhecimento acerca do que acontecera devia ser a própria srta.
Beaumont!
Se ela fora ingênua o suficiente para confiar na condessa, logo saberia que iria se
arrepender amargamente por havê-lo feito. E Kit teria prazer em dizer-lhe exatamente
quanto fora tola.
— Ela vai tocar e cantar mais tarde. E acredito que tenha uma linda voz. Parece-
me muito bem esta noite, também. Não concorda, Hugo?
Sir Hugo seguiu o olhar da esposa e comentou:
— É. Há algo de diferente nela. Não sei exatamente o quê, mas... Ela me parece...
mais jovem.
— Ora, os homens! — Emma troçou. — É claro que ela parece diferente! Está
usando um novo penteado. Muito mais bonito do que aquele coque sem graça que usava
antes.
— Deve ter razão, minha querida. E ela me parece ter berço, sabe? Tem... postura
elegante, sóbria. E aposto que muitos homens vão se interessar pela sua beleza clássica.
Embora seja um tanto alta.
— Sei. Para você, eu sou baixa demais, e ela é "um tanto alta". Vocês, homens,
nunca estão satisfeitos. Mas acho que tem razão. Há muitos cavalheiros aqui, bem altos,
que poderiam olhá-la diretamente nos olhos...
Hugo sorriu.
— Você está me saindo uma casamenteira, isso sim. Qualquer dia vai querer casar
Kit também.
— Não, não. Na verdade, se ele aparecesse aqui hoje, a maioria das damas
desmaiaria de choque e a minha reputação ficaria muito abalada!
— Tem certeza? — Hugo, era evidente, se referia ao mal-entendido do passado.
Ela cerrou os olhos e assentiu, certa do que dizia.
— Bem, minha cara, então sugiro que se prepare para ter a sua reputação abalada,
pois seu querido cunhado acaba de chegar.
Emma entreabriu os lábios e olhou para a porta, ouvindo o murmúrio geral de seus
convidados devido à chegada de Kit. Ele passava os olhos ao redor, absolutamente
tranqüilo, como se sua presença ali fosse a coisa mais natural do mundo. Usava um terno
preto, com um alfinete de ouro prendendo-lhe a gravata também preta. Não sorria e
não o fez nem quando seus olhos encontraram seu irmão e Emma. Seguiu até eles, altivo,
por entre os convidados que se afastavam a sua passagem. As damas mais velhas
afastaram-se ostensivamente, mas ele nem pareceu notar.
Kit inclinou-se diante da cunhada e tomou-lhe a mão, que levou aos lábios para um
beijo suave.
— Querida Emma — disse —, minhas desculpas por ter chegado atrasado. Mas
acho que não interrompi seu entretenimento...
Ela olhou-o, repreensiva, porém Kit não estava disposto a receber admoestações.
— Estou surpresa que tenha vindo a uma festa tão aborrecida para você —
comentou lady Stratton, soltando sua mão da dele com delicadeza.
— Ainda mais porque não foi convidado — Hugo acrescentou, em voz baixa e em
tom de brincadeira.
— Você se importaria em me apresentar a alguns de seus convidados, cunhada? —
Kit indagou, ignorando os comentários.
Emma respirou fundo e, tomando-lhe o braço, aquiesceu:
— Mas é claro. Venha.
Hugo apenas observava, certo de que aquela noite seria mais divertida do que
parecia.
Emma levou Kit até lady Luce, cuja figura miúda tinha sido escondida pelos que
estavam ao seu redor. Kit teve poucos segundos para se armar contra ela. Depois do
breve encontro da noite anterior, era óbvio que a condessa não fosse recebê-lo com
bons modos.
A dama de companhia parecia não a estar acompanhando naquela noite, o que era
uma pena, ele pensou. Esperara que a reunião em casa de sua cunhada fornecesse uma
excelente oportunidade para confrontar a srta. Beaumont. Queria mostrar a ela quanto
ficara furioso por suas revelações fora de hora, embora tais revelações acabassem
sendo piores para ela mesma do que para ele.
— Senhora acredito que já conheça meu cunhado — disse Emma, sorrindo.
Lady Luce ergueu os olhos para Kit com ar aborrecido e comentou:
— Então, rapaz, decidiu criar outro escândalo, é?
Ele inclinou-se de leve, sem uma palavra.
— Devia envergonhar-se — continuou a condessa.
— Os convidados de sua cunhada vão arranjar desculpas para começar a sair daqui
a pouco tempo. Vai estragar a recepção que ela está dando. — E, voltando-se para lady
Blaine, que se encontrava a seu lado, indagou: — Não concorda?
Lady Blaine olhou para Kit com ar de superioridade. E ouviu a apresentação de lady
Luce com certo embaraço:
— Este é o sr. Kit Stratton.
Sem vacilar, Kit deu um passo à frente e, num gesto ousado, tomou a mão direita
da dama e a ergueu como se tivesse a intenção de dar-lhe um beijo. Mas se deteve,
dizendo apenas:
— Encantado, senhora.
— Sr. Stratton — lady Blaine respondeu ao cumprimento extremamente fria. E,
voltando-se para lady Luce, disse: — Na verdade, tenho mesmo um outro compromisso,
condessa.
— Bobagem! — a velha senhora rebateu de pronto.
— Esta reunião está muito agradável e mal começou. Não pode sair só porque este
jovem... senhor apareceu de repente.
Kit estava com dificuldade para manter-se impassível. Evitava o olhar da cunhada.
Lady Blaine comportava-se como se estivesse diante de uma desgraça.
— Além do mais — continuou lady Luce —, a senhora mesma disse que sua filha
Tilly iria cantar para nós. E espero que ela tenha uma boa voz, porque não suporto
jovens com vozes esganiçadas que nunca sabem quando devem parar e poupar os ouvidos
alheios. — Ela passou os olhos ao redor, em busca da moça em questão, seguida por
todos que estavam ali perto.
A srta. Blaine encontrava-se ao lado do piano, usando um vestido branco que em
nada combinava com sua tez extremamente alva nem com sua magreza considerável.
Estava ali, imóvel, com os olhos muito abertos, como se acabasse de ter uma visão. Seu
olhar pousava, encantado, em Kit. Era um olhar que ele já vira inúmeras vezes em muitas
jovens.
— Não me parece que ela consiga cantar — comentou lady Luce, com certa malícia.
—Acho até que está a ponto de desmaiar ou de sair voando...
Lady Blaine levantou-se e seguiu até a filha, mas era tarde demais. Muitos
convidados tinham ouvido o comentário da condessa e já observavam a moça. Um
murmurinho baixo começou a circular na boca de todos. Em poucas horas, a paixão da
srta. Blaine por Kit estaria circulando por toda Londres. Apenas a própria garota
parecia alheia a tudo que se passava. Continuava a olhar para Kit com expressão de
adoração e seus lábios, agora abertos, davam-lhe um aspecto absolutamente tolo.
A mãe tomou-a pelos ombros, sacudindo-a de leve e dizendo-lhe algo a meia voz. E
o efeito foi imediato: a moça corou muito e baixou a cabeça.
— Oh, não suporto mocinhas tolas com mães mais tolas ainda! — disse lady Luce,
sem conseguir controlar sua língua. — Ainda mais quando não perdem num jogo de
cartas!
Emma desviou o olhar, tentando abafar o riso. E desculpou-se:
— Perdão, lady Luce, mas acho que terei de encontrar outra pessoa para cantar no
lugar da srta. Blaine.
— Oh, Marina pode fazê-lo! — exclamou a condessa. — E aposto que não vai me
decepcionar. Mas... onde ela se enfiou?
Marina... Um nome incomum. Kit imaginava se lady Luce estaria se referindo a sua
dama de companhia. Nunca soubera qual era o primeiro nome da srta. Beaumont. Porém
sua inicial era, de fato, M.
Emma passava os olhos pelo salão. Até que apontou com seu leque, anunciando:
— Ali, senhora! Se me der licença, vou perguntar a ela se concorda em cantar para
nós.
Kit ficou observando a cunhada, vendo-a passar por vários convidados, sorrindo,
trocando palavras, sendo amável como sempre. Hugo era um homem de sorte, avaliou.
Emma parou ao lado de uma jovem dama que estava atrás de um pilar. Instantes
depois, ela se revelou, andando com uma graça incrível, seguindo em direção ao piano.
Kit não conseguia deixar de olhá-la, de notar sua elegância. Mas foi apenas quando ela
se aproximou e se sentou ao instrumento, com a luz do grande lustre incidindo sobre si,
que ele a reconheceu.
A dama de companhia de lady Luce tinha algo de especial. Via alguma coisa nela
que, com toda sua experiência, não notara antes. E então ela começou a tocar.
CAPÍTULO XIII
A srta. Beaumont tocava maravilhosamente. Sob seus dedos, o piano parecia
cantar. Kit achou a música que ela tocava muito comovente, mas procurava manter a
expressão como se estivesse muito entediado com aquele desempenho. Não seria bom
para a srta. Beaumont que a sociedade percebesse que ele tinha o menor interesse por
ela.
No entanto foi mais difícil manter a expressão de enfado quando ela começou a
cantar, já que sua voz era muito mais tocante do que a música. E Kit tentava lembrar se,
ao falar, ela era também tão suave. Não conseguia. Fosse como fosse, não conhecia nem
a música nem a letra. Marina Beaumont cantava falando dos espaços abertos, dos
campos, das maravilhas da natureza, da primavera, da simplicidade da vida rural. E era
como se todos ali pudessem ver as paisagens bucólicas a que se referia, quase sentir o
perfume das flores espalhadas pelas campinas.
Kit notava que ela se transformava ao cantar. E deixava-se levar pelo enlevo que a
música e a cantora provocavam em seu ser.
Emma tocou-lhe de leve o braço, repreendendo-o:
— Como pode, Kit?! Está ouvindo uma peça tão suave, tão linda, e nada faz para
disfarçar seu enfado?! Não tem bons ouvidos? Ou é um mero bárbaro?
Kit encarou a cunhada, não admitiria a verdade nem mesmo a ela. Havia gente
demais ao redor, curiosos que poderiam ouvi-lo. Também não estava preparado para
mentir sobre a beleza do canto da srta. Beaumont. Seria desleal.
— Sinto muito, minha cara — desculpou-se. — Eu pensava em outra coisa. Nem
estava ouvindo, na verdade. Mas, se me diz que o desempenho dessa moça é
maravilhoso, devo concordar, sem dúvida. Seria pouco cavalheiresco não fazê-lo.
— Pouco cavalheiresco! Veja quem fala! — Emma brincou. — E essa moça, como
você disse, chama-se Marina Beaumont, como parece ter esquecido. Você não deveria
comparecer a reuniões deste tipo se não está preparado para tentar, ao menos,
apreciar a boa música.
Kit sorriu, mas nada disse. E Emma aproveitou para continuar:
— Saiba que, por penitência, meu cunhado querido, vai ficar aqui, a meu lado,
quando a srta. Beaumont cantar a próxima canção. E, quando ela terminar, vou querer
uma opinião concreta sobre o que você ouviu.
Kit fingiu um gemido, porém não tentou escapar. Recostou-se a um pilar, fingindo
falta de interesse.
A segunda canção foi bem diferente da primeira. Era uma balada italiana muito
conhecida em Viena, embora a srta. Beaumont, Marina, ele se lembrava, estivesse
cantando num ritmo bem mais rápido do que se costumava fazer na Áustria. E ela
parecia mais alegre, mais solta. Kit imaginava se aquela garota, antes tão severa,
fechada, teria consciência de quanto expunha sua alma ao cantar daquela forma. Por
baixo da dama de companhia recatada e séria, havia uma alma alegre, cheia de
entusiasmo.
E, ouvindo-a, Kit concluiu que aquela mulher, aquela que via agora, precisava ser
trazida à luz do dia, aparecer, viver. A outra srta. Beaumont parecia não saber sorrir.
Já era tempo de aprender...
Marina inclinou-se numa mesura delicada ao receber os aplausos. Sabia que havia
cantado e tocado bem, apesar da relativa falta de prática desde que chegara a Londres.
A primeira canção que cantara fizera-a lembrar-se de sua terra, de sua avó, que
adorava aquela música. Uma música que ela mesma compusera havia algum tempo.
Emma Stratton aproximou-se quando Marina já se afastava do piano.
— Srta. Beaumont, foi maravilhoso! — elogiou ela. — Emocionante, na verdade! Até
mesmo Kit ficou emocionado com o seu desempenho!
Marina sentiu o sangue parar em suas veias. Seguiu o olhar de sua anfitriã e viu
que Kit estava ainda recostado ao pilar. Não parecera nada entusiasmado, ela notara
enquanto cantava. Na verdade, dava até a impressão de estar entediado. E sua
expressão de dúvida quanto a isso devia ser óbvia, pois lady Stratton insistiu:
— Não acredita em mim? Venha, então! Vai ouvir por si mesma. — Emma passou o
braço pelo de Marina e a levou até Kit.
Marina engoliu em seco e tentou manter a calma. Ele se endireitou quando as duas
se aproximaram, desencostando-se do pilar.
— Kit, acabei de dizer a srta. Beaumont quanto você apreciou sua apresentação! —
Emma anunciou. — Mas acho que ela não acreditou.
Ele olhou para a cunhada, calado por alguns segundos, e Marina podia jurar que sua
chegada não era bem vista por Kit.
— Senhorita — disse ele, com um leve inclinar de cabeça —, dou-lhe meus
parabéns. Jamais ouvi essa música italiana cantada dessa forma antes. Foi muito...
interessante.
Marina não esperava muito dele, mas agora achava que, se Kit nada tivesse dito,
teria sido bem melhor. Ele usava um tom condescendente que não era nada convincente.
Podia agradecer a ele por haver falado com o irmão sobre guardar silêncio quanto ao
que vira no parque, mas não permitiria que a tratasse com desdém. Kit agia assim com
todas as mulheres, imaginou, lembrando-se do que lady Luce lhe dissera; porém Marina
não pretendia ser mais uma em sua lista.
— Oh, minha tia Warenne está me fazendo sinais! — Emma interferiu, antes que
Marina pudesse pensar numa boa resposta. — Imagino que ela tenha visto algo de
errado quanto aos arranjos para a recepção. Se me derem licença... tenho certeza de
que Kit poderá entretê-la na minha ausência, srta. Beaumont.
Um silêncio pesado caiu entre ambos, enquanto Marina pensava numa boa desculpa
para se afastar. Seria rude demais se simplesmente o deixasse ali.
— Posso lhe perguntar sobre a primeira canção que nos apresentou? — Kit indagou,
acabando com a tensão que estava no ar. — Não me lembro de tê-la ouvido antes.
Marina não sabia o que dizer. Se lhe dissesse que ela mesma a tinha composto, Kit,
por educação, a cumprimentaria por seu talento, mesmo que estivesse mentindo. E ele
se comportaria daquele seu jeito superior, como se fosse uma grande coisa a atenção
que lhe estava dando, decidindo, talvez, se ela ainda valeria a pena como amante...
Marina sentiu-se corar. Por que havia pensado uma coisa assim?! Talvez por causa
do jeito que Kit a estava olhando. De forma intensa, com aqueles olhos muito mais azuis
do que ela conseguia se lembrar. Na semi-escuridão da carruagem, mal pudera prestar
atenção a ele; mas ali, sob a luz de um lustre enorme, era diferente. E Kit não poderia
atacá-la diante de tanta gente...
Ela se deu conta de que levara a mão aos lábios, como se pudesse lembrar-se da
sua reação aos beijos dele. Como pudera?, lamentava-se. Com sua vasta experiência, Kit
Stratton devia entender cada movimento seu. E começou a se sentir embaraçada.
Precisava pensar rapidamente em uma resposta para dar a ele.
E Kit continuava extremamente educado:
— Está se sentindo bem, senhorita? Faz bastante calor neste salão. Talvez queira
sair um pouco...
Ele estava se oferecendo para acompanhá-la até o jardim?, Marina ponderou.
Não... ela não poderia aceitar, em público, ficar a sós com um sedutor como ele.
— Não, não... Estou bem, obrigada. Não será necessário sair do salão.
— Não? — Kit franziu a testa. — Talvez não seja o ar que lhe é indiferente, mas a
companhia.
Marina encarou-o. Um cafajeste como ele não deveria sentir-se ferido pela recusa
de uma dama em acompanhá-lo. No entanto Kit parecia estar. E, sem pensar no que
fazia, Marina estendeu a mão e tocou-lhe de leve o braço. E foi como se seus dedos
tivessem tocado uma brasa. Afastou-os de imediato, percebendo que sob aquela
aparência fria e distante, havia músculos tensos e um intenso calor.
Sentiu que corava e seu corpo todo parecia estar queimando. Sua respiração
também se acelerou. Mas Kit, é claro, mantinha o controle. Depois de alguns segundos,
inclinou-se de leve para comentar:
— Gostaria que eu pegasse alguma coisa para beber?
— Eu... estou com um pouco de sede, sim, depois de cantar.
— Champanhe?
Marina recusou. Seus dedos giravam o anel, como de costume.
— Não? Então, vou lhe trazer uma limonada. Com sua licença.
Marina ficou sozinha com seus pensamentos enquanto ele se afastava. Ficar a sós
com Kit Stratton significava perigo. Ele era a tentação em pessoa! Marina não conseguia
deixar de pensar nos beijos que Kit já lhe tinha dado, no calor de seu corpo; e, apesar
de si mesma, queria que tudo acontecesse novamente. O que estava lhe acontecendo era
pura loucura! Kit era um homem que possuía amantes às dúzias, e entre elas havia as
mulheres mais belas da Europa! O único motivo pelo qual a beijara fora para provar que
podia fazê-lo e que ela não conseguiria resistir-lhe.
Sir Hugo, notando que se encontrava sozinha, aproximou-se. E, para surpresa de
Marina, foi ele quem lhe trouxe um copo de limonada.
— Srta. Beaumont, perdoe-me por tomar o lugar de meu irmão. Mas o fato é que eu
queria ficar alguns momentos a sós com a senhorita para dizer-lhe quanto a amizade de
seu tio me era cara. E a de seu pai também, embora eu não o tenha conhecido muito
bem. Esperava escrever para sua mãe depois daquela batalha, mas... não foi possível.
Espero que acredite que senti muito por isso. Como está sua mãe agora? E seu irmão?
Eu soube que tem um...
— Uma noite muito agradável, embora sem a presença da baronesa—disse lady
Luce, satisfeita, quando voltavam, na carruagem, para casa. — E devo dizer que você
cantou muito bem, Marina. Todos gostaram e a elogiaram.
Porém, Marina não estava prestando atenção. Ouviu as palavras da condessa e elas
provocaram-lhe uma lembrança que a incomodava: todos tinham gostado, menos Kit
Stratton. E foi quase sem perceber que ela acabou revelando o que pensava:
— Acho que o sr. Stratton não deveria comparecer a recitais e festas desse tipo
se não aprecia música. Ele estava obviamente aborrecido e nem teve a delicadeza de
fingir o contrário.
Lady Luce olhou de esguelha para Marina, depois mudou de assunto:
— Notei que conversou bastante com sir Hugo. Ele gostou muito da sua atuação. Eu
mesma o ouvi dizer isso.
— Sir Hugo é muito gentil. Falou-me de meu pai e de meu tio, que foi seu grande
amigo. Disse que sentia muito por ter perdido contanto com a nossa família e que
pretende escrever para minha mãe. Disse até que está disposto a oferecer um lugar
para Harry morar assim que ele se ordenar. Isso seria de muita valia para nós.
—Achei que seu irmão já tivesse recebido essa oferta do seu amigo de Londres,
como você mesma disse. A irmã dele escreveu para você, não?
Marina calou-se por instantes. Por que contara aquela mentira estúpida?,
repreendeu-se. E teve de contar outra:
— Ah, mas a família dele se mudou de Londres temporariamente. Esqueci de lhe
dizer, senhora. E, na verdade, o amigo de Harry não lhe prometeu uma casa de fato,
apenas uma leve ajuda... Quanto a sir Hugo, bem, a oferta foi clara. Ele até me disse
para escrever para minha mãe contando a novidade. Vou fazê-lo assim que chegarmos.
Emma sentou-se com prazer em sua poltrona favorita e cerrou os olhos por
momentos. Hugo olhou-a e sorriu, encantado.
— Sua recepção foi um sucesso — elogiou ele. — Tenho certeza de que poderia
facilmente tornar-se uma das damas mais conhecidas da sociedade londrina.
— Isso não é o que tia Augusta pensa, meu amor. Culpou-me pelo comportamento
tolo de Tilly Blaine, sabia? Insistiu para que eu faça algo a respeito. Mas não sei o que
ela quer, exatamente.
— Sua tia Warenne ficou visivelmente irritada com a chegada de Kit. — E,
voltando-se para o irmão, Hugo completou: — É de admirar que ela não tenha se
oferecido para colocá-lo pessoalmente para fora daqui.
Kit virou-se, deixando de olhar para o movimento das carruagens na rua. E sorriu,
indulgente.
— Essa senhora aterroriza a maioria dos homens, devo admitir, mas sei que acaba
se derretendo quando conhece melhor as pessoas.
— É, até mesmo tia Warenne não pode ser colocada contra seu irmão, Hugo —
Emma suspirou. — Ele deveria ser trancafiado, sabia? É um grande perigo para as
mulheres em geral.
— Vou aceitar suas palavras como um elogio, querida cunhada.
— Pode brincar, Kit, mas o que acha que eu deva fazer quando garotas bobocas
como Tilly Blaine quase desmaiam ao vê-lo?
— Ignore-as. Faça como eu. Depois de alguns instantes de absoluta frieza, elas
tendem a voltar ao normal.
— Oh, você não tem coração! — Emma repreendeu-o. — Um dia, também vai
descobrir como é doloroso gostar de alguém que não corresponderá a sua afeição. E
será bem feito!
— Se não tenho coração, como você mesma sugere, acho que jamais poderei
experimentar tal sensação, minha querida.
Emma encarou-o com uma careta.
— Detesto cavalheiros cheios de lógica — observou. Hugo sorriu e interferiu na
conversa:
— Sugiro que sirva um copo de vinho a minha esposa, Kit. Talvez, se o entregar a
ela de joelhos, Emma seja persuadida a perdoar-lhe a impertinência.
Kit riu alto. Depois serviu três copos de vinho, entregando um deles à cunhada.
Não se ajoelhou, porém. Mas lhe fez uma mesura exagerada.
— Hugo já deveria saber que você nunca segue seus conselhos, mesmo que sejam
excelentes — disse ela, aceitando o vinho.
— Bobagem. Ele me aconselhou a estar presente à sua recepção hoje, e eu vim.
Emma olhou para o marido, parecendo surpresa. Mas sua atenção foi tomada pela
continuação das palavras de Kit:
— E eu gostei de ter vindo. Foi uma noite muito agradável. Gostei da música,
apesar de os meus ouvidos não serem talhados para ela... Mas, querida cunhada, não se
zangue. Hugo queria apenas que a sociedade se reconciliasse com o meu comportamento
ultrajante. Ele acredita, não sei bem por que, que essa gente pode acabar preparada
para me aceitar se eu for um bom moço em reuniões como a de hoje.
— A sociedade jamais vai aceitar um homem solteiro com boa linhagem e muito
dinheiro — Hugo observou, um tanto cínico. — Agora que você se tornou mais rico, seus
casos amorosos serão simplesmente vistos como indiscrições da juventude.
Kit nada disse, porém sabia que era verdade. A riqueza que recebera
recentemente fizera grande diferença.
— E você espera preencher os requisitos da sociedade, Kit? — Emma quis saber.
— Isso significa tomar uma esposa? — Emma assentiu, bebendo seu vinho.
— Eu costumava dizer que não me casaria nunca e figuras como essa tal Tilly Blaine
não melhoram meu ânimo. Como um homem normal poderia querer ligar sua vida a alguém
tão idiota?
— Talvez a achasse mais interessante se ela fosse bonita. E não é culpa de Tilly
ser magra e comum.
— É verdade. Mas ela usa aquelas roupas que só acentuam sua palidez, sua
magreza! Uma mulher pode ser magra, mas elegante, charmosa. Não é o caso dela.
— Tem razão. Notou a srta. Beaumont? Ela também é magra, mas é... é...
— Impressionante — Kit completou.
— Exatamente! Ainda mais quando cantou! — Emma concordou.
— Eu acho que há maravilhas ocultas na srta. Beaumont — Hugo opinou, tranqüilo.
— Sei que a sua família passou por maus bocados desde o falecimento do pai, e isso
acaba moldando a personalidade, o caráter, o comportamento das pessoas. A mãe dela
se viu forçada a lecionar, e seu irmão, que está em Oxford, estuda muito e pretende
ser padre. É uma grande despesa para elas. Não é de admirar que a moça esteja
trabalhando como dama de companhia. Devem precisar de cada centavo que ela ganha.
— E você pretende ajudá-los, meu amor?
— Já prometi fazê-lo. Disse que daria um lugar para seu irmão morar assim que ele
se ordenar. Se visse a alegria nos olhos da srta. Beaumont!
— E que lugar ofereceu a ele?
— Stratton Magna, é claro! É a única propriedade vaga em nossa família.
— Espere, espere, Hugo — Kit interferiu. — Stratton Magna é minha. Você pode
ser o chefe da família, mas aquela propriedade me pertence.
Hugo parou e pensou por instantes.
— De fato — concordou, por fim. Mas sabe que temos uma dívida de gratidão para
com a família Beaumont. E eu permiti que vivessem na penúria por duros anos. Dez
longos anos. A família do irmão de meu melhor amigo! Dando a Harry uma moradia em
Stratton Magna, a família sairia da pobreza, sem que isso parecesse caridade. Quer que
eu retire a oferta, meu irmão?
Kit encarava-o. Depois olhou para Emma, que esperava ansiosa. Então sorriu.
— Não, Hugo. Mas já pensou em como a srta. Beaumont reagirá quando souber que
está, dessa forma, ligada a mim?
CAPÍTULO XIV
A caminho da casa de lady Emma Stratton mais uma vez, Marina recostou-se
dentro da carruagem que a elegante dama mandara para buscá-la e passou os olhos ao
redor do veículo requintado. Tanto luxo para uma mera dama de companhia, avaliou.
Cerrou os olhos, desfrutando o momento. Sir Hugo e sua esposa estavam sendo por
demais generosos para com uma pobre moça do interior. Lady Stratton não apenas
persuadira lady Luce a permitir que Marina visitasse sua casa pela manhã, como também
a convidara para duas recepções em sua casa, à noite. A condessa não ficara muito
satisfeita a princípio, mas acabara cedendo, já que não teria tanta necessidade assim
de sua companhia, pois, à noite, continuava frequentando as casas de jogo mais
afamadas de Londres.
Marina não sabia ao certo como lady Stratton conseguira, porém o efeito era que
sua vida na cidade estava se tornando mais parecida com a de uma verdadeira dama do
que com a de uma simples dama de companhia. E Marina agora possuía um bom guarda-
roupa, pois lady Luce levara a cabo suas ameaças de gastar o dinheiro do filho na
costureira para melhorar a aparência de sua protegida. E tudo que havia escolhido para
Marina era de um extremo bom gosto, mesmo estando sempre ela a dizer que a moda
atual era indecente, sem recato, horrível.
Agora, ali, na carruagem, Marina olhava para seu vestido azul-escuro e sorria. Era
maravilhoso poder vestir-se com bons tecidos e modelos que valorizavam seu corpo,
muito embora a costureira que os fazia não fosse a mais elegante de Londres. Isso, na
verdade, não importava. Para Marina, ela ainda vivia um conto de fadas. Lady Luce a
proibira de usar roupas nas cores cinza e marrom e seus antigos vestidos estavam agora
guardados no fundo de um baú. Lembrava-se de quanto sua mãe havia trabalhado para
poder comprar aqueles vestidos; e era sempre bom guardá-los, já que a condessa
poderia, a qualquer momento, mudar de humor e de idéia... Principalmente se
descobrisse algum envolvimento seu com Kit Stratton.
Marina engoliu em seco ao lembrar-se dele. Podia ver-lhe o rosto, o sorriso, quando
ele conversava com sua cunhada, amável, simpático, igual a qualquer outro cavalheiro, e
não como o maldoso canalha que era. Devia desprezá-lo, mas não conseguia. Queria
poder condená-lo por levar uma vida depravada e por haver tentado levá-la a isso
também.
Mas, ainda uma vez, não conseguia... Tudo o que acontecera entre ambos fora
porque ela permitira, pelo menos em parte. Fora ao seu encontro sozinha, estivera em
sua casa, sentira-se derreter em seus braços...
Era tão culpada quanto ele. E, quando o via sorrindo para os membros de sua
família, sentia inveja. Olhou pela janela e mordeu o lábio. Não entendia o que lhe estava
acontecendo. Fora beijada por Kit Stratton e estava irremediavelmente perdida, essa
era a grande verdade.
— Srta. Beaumont! — surpreendeu-se Kit ao adentrar a sala de sua cunhada. —
Mas que agradável surpresa!
Marina levantou-se muito devagar da cadeira, sentindo-se subitamente trêmula.
Por que ele tinha de aparecer agora, como se tivesse sido trazido pela força de seus
pensamentos?, imaginava. E por que lady Stratton, sempre tão pontual, ainda não
chegara?
Era óbvio que Kit esperava que ela dissesse alguma coisa. Olhava-a, parecendo
divertir-se com seu embaraço.
Marina endireitou-se mais e disse:
— Tenho permissão para visitar lady Stratton pela manhã, quando lady Luce não
precisa de meus serviços. Na verdade, lady Stratton tem sido muito gentil.
— Imagino que sim. Ela acredita que os Stratton negligenciaram sua família depois
da morte de seu pai.
— Oh, não...
— Srta. Beaumont — disse Kit, naquela voz profunda que parecia arrebatá-la a
cada palavra —, permita-me avisá-la de que em nada adianta discordar de minha
cunhada quando ela decide algo. E, se Emma decidiu que a nossa família deve alguma
coisa a sua, é melhor aceitar o fato.
Marina sabia que ele era arrogante, mas aquelas palavras estavam além do que
podia esperar.
— Verdade? — indagou, sem conseguir pronunciar mais nada.
— Verdade. — Kit a observou de cima a baixo por instantes. Parecia ter notado
somente agora a mudança em seu modo de se vestir, pois seus olhos abriram-se um
pouco mais, talvez mostrando certa admiração.
Marina ergueu mais o rosto, não permitiria que a presença dele a constrangesse.
— Estou esperando por sua cunhada, senhor — afirmou, muito séria. — Ela sugeriu
que tocássemos juntas e não mencionou estar esperando visitas.
— Imagino que não. E, na verdade, srta. Beaumont, cunhados nunca contam como
visitas. Com certeza, Emma não estava a minha espera. Vim para levar Hugo à academia
de boxe de Jackson. — Ele esperou alguns segundos, como para analisar sua reação,
depois observou: — Vejo que não franze o nariz à idéia. Emma, com certeza, o faria.
— Tenho um irmão também, senhor, e me acostumei a encarar com naturalidade
certas coisas tipicamente masculinas.
— Claro, claro...
Marina se sentia como se estivesse diante de um perito que apenas a considerava
uma tola sem muito saber. E, de repente, sentiu uma compulsão absurda de agredi-lo,
como fizera na casa dele, em Chelsea, depois daquele beijo... Detestava lembrar-se
porque ficava sem controle sobre suas sensações. E isso estava acontecendo mais uma
vez.
— Oh, sinto tanto por havê-la deixado esperando, querida! — Lady Stratton surgia
na sala como um pequeno e agradável furacão. — Oh, Kit! O que faz aqui a esta hora?!
— Nada de grande importância. Pensava ir até a academia de Jackson. Prometi
apresentar um amigo a ele esta manhã e achei que Hugo poderia gostar de ir comigo. Já
faz algum tempo que nós dois não nos engalfinhamos numa luta...
Lady Stratton fez uma careta teatral. Depois comentou:
— É um dos tristes fatos da vida, srta. Beaumont, que as damas tenham de
suportar certas... características e hábitos de seus parentes do sexo masculino. Não
consigo entender, nunca consegui, que prazer insólito eles sentem em tornarem-se
mutuamente sacos de pancada. — E, olhando para Kit, acrescentou: — E não sei por que
está rindo, Kit! Vamos, pode ir! Vá! Vá chamar seu irmão para acompanhá-lo naquela
aventura absurda!
Ele se inclinou com cuidado exagerado.
— Seu desejo é uma ordem para mim, querida cunhada! — E, voltando-se para
Marina, completou: — Permita-me, srta. Beaumont, dizer-lhe que me agrada muito ver
que a condessa permitiu que tivesse algum tempo para si mesma. Agora, se gosta de
aproveitar essa liberdade em companhia da minha querida cunhada... — Ele olhou para
Emma, que se enfurecia. — Bem, isso é decisão unicamente sua. Tenham um bom dia!
Kit fechou a porta atrás de si no exato momento em que um livro, lançado por
Emma, atingia o local exato em que ele estivera.
— Mas que homem terrível! — murmurou ela por entre os dentes. Mas estava
praticamente rindo enquanto falava.
Marina tentou forçar um sorriso. Sabia que não devia tecer comentário algum a
respeito do que acabara de presenciar. Lady Stratton podia rir à vontade do que o
cunhado fazia, porém Marina também sabia que, por trás das brincadeiras dele, havia
um homem frio, sem coração. Vira-o quanto era perigoso quando levara a condessa
praticamente à ruína e quando quase levara a ela, Marina, ao pecado!
Hugo meneou a cabeça.
— Acho que não, Kit. Tenho um compromisso esta manhã ao qual não posso faltar,
mas vou querer acompanhá-lo, sim, em outra oportunidade. Sei que Jackson vai dizer
que estou terrivelmente fora de forma, e ele terá razão, com certeza. Não subo no
ringue há semanas.
— Nesse caso, é melhor que não vá mesmo. De que me adianta um irmão que não
será um oponente à altura?
Hugo riu.
— Vamos combinar uma ida à academia dentro de uma semana, o que acha? Então
vou lhe mostrar se sou ou não um oponente à altura.
Kit estendeu a mão para que o irmão a apertasse.
— Combinado, então! — concordou. — Cinco libras para quem vencer?
E os dois se apertaram as mãos, num acordo. Depois, Hugo comentou:
— Kit, quero lhe dizer uma coisa. — Ele hesitava. — Eu... bem... ouviu alguns
rumores recentemente?
— Pode ser mais específico? Porque ouço rumores o tempo todo. A que tipo de
rumores está se referindo?
— Sobre... sua... amante austríaca.
Kit estava pensando em Marina. Pelo visto, enganara-se. Tratava-se de Katharina.
O que Hugo teria ouvido? Respirou fundo e então respondeu:
— Entendo... Bem, não ouvi nada. Mas vai me dizer do que se trata?
— Costumeiramente eu não o faria, porém... Olhe, Kit, você merece algo melhor do
que ser feito de tolo por aquela mulher.
Kit podia adivinhar o que estava por vir. Sentiu um ímpeto de raiva, primeiro
contra Hugo, porque ele era quem estava lhe dando a notícia, e depois contra Katharina,
por ser a causa de tudo. Mas se recusava a deixar que seu orgulho ferido falasse mais
alto.
— Pode me contar tudo — pediu. — E não tente poupar meus sentimentos, pois,
nesse caso, não tenho nenhum, acredite.
Hugo olhou-o por um longo momento antes de prosseguir:
— Estão dizendo que a baronesa tem um novo amante. Não sei de quem se trata,
mas muitas pessoas já estão comentando o fato. Sei que podem estar todos enganados,
porém...
— Mas acha que não estão.
— Acho. Ainda mais porque... Olhe, tem que ficar atento, Kit, pois um desses
jornalecos de quinta categoria já está publicando coisas a respeito de seus casos
amorosos, além do fato de que a baronesa... bem..., desapareceu.
— Você viu essa matéria de jornal?
— Não, mas muitas pessoas viram. Quer que eu tente...
— Não, obrigado, Hugo. Agradeço pela informação e... não há mais nada que possa
fazer por enquanto. Vou lidar com a situação a meu modo. Emma sabe alguma coisa
sobre isso?
— Não. Mas sua tia Warenne, como você bem sabe, é sempre uma das primeiras a
saber de tudo que se passa na sociedade londrina. Acredito que seja apenas uma
questão de tempo para que...
— Nesse caso — Kit interrompeu-o, colocando a mão em seu ombro —, acho melhor
eu ir. Ao que parece, vou ter de encarar mais de um... oponente hoje. Deseje-me sorte,
meu irmão.
— Com toda a sua experiência, vai mesmo precisar?
A baronesa estava furiosa, mas não ergueu a voz:
— Então, tem a impertinência de vir até mim para que eu lhe pague, Budge? — Seu
sotaque estrangeiro ficava mais e mais forte a cada palavra. E mostrou um jornal à
governanta. — Depois "disto"?!
A sra. Budge estremeceu, porém se manteve firme.
— Fiz exatamente como ordenou, senhora — disse. — Juro. E já faz quase uma
semana, por isso...
— Eu lhe dei instruções muito claras para que não dissesse uma única palavra a
ninguém sobre a carta que escrevi! Vai negar que me desobedeceu?!
— Não, senhora. Quero dizer... sim... Eu... — Ela meneava a cabeça, tentando
colocar os pensamentos em ordem. — Senhora, eu nada disse sobre a senhora ao sr.
Johnson nem a qualquer outra pessoa. Simplesmente entreguei a carta que me deu.
A baronesa abriu o jornal sobre a mesa e olhou-o com raiva.
— Está me dizendo que não conversou com o sr. Johnson? — perguntou em tom
imperioso.
— Não... não, senhora. Não, exatamente. Apenas comentamos sobre o tempo, sabe?
— Sei, sei... Eu devia ter me prevenido e não confiado em uma criada inglesa! Em
especial uma que ousa me falar em pagamento depois de me trair!
— Mas, senhora, eu juro que...
Katharina jogou o jornal contra o rosto de Budge.
— Mesmo?! Então leia isso! E me diga que não é responsável! Se ousar, é claro!
A governanta passou os olhos pelas letras minúsculas do jornaleco. Suas mãos
ainda tremiam como reflexo da violência com que a baronesa a tratava.
E então ergueu o queixo e encarou sua acusadora.
— Senhora, nada tenho a ver com isso — declarou, enfática. — Eu não disse ao sr.
Johnson que a senhora e meu patrão são... Bem, e, com certeza absoluta, não disse nada
a respeito da sua pessoa em particular. Como poderia, se nada sei sobre seus outros
casos?
Katharina arregalou os olhos.
— Mas como ousa?! Sua impertinente! Saia da minha casa imediatamente, antes
que eu mande jogá-la no meio da rua! Vamos, saia daqui!
A sra. Budge praticamente saiu correndo, antes que a baronesa cumprisse sua
ameaça. Era óbvio que nunca mais receberia nem sequer um centavo dela.
Não sabia o que aconteceria dali em diante. Katharina inventaria uma história e
Budge seria sumariamente demitida. Não podia permitir que isso acontecesse. Não
podia perder seu emprego e o dinheiro que recebia nele. No entanto deveria haver
outra forma de ganhar dinheiro, pelo menos no momento. A baronesa a acusara de
traição e a estava tratando como se fosse, de fato, culpada. Assim, poderia conseguir
alguma coisa...
Faria outra visita ao sempre bem informado sr. Johnson e, dessa vez, não seria tão
reservada quanto ao que dissesse a ele. E a próxima edição daquele jornaleco de quinta
categoria publicado por ele acabaria por dar uma lição àquela baronesa sem escrúpulos!
Isso, além de torná-la a mulher mais mal falada de toda Londres...
Budge assentiu de leve, aprovando os próprios pensamentos. E, caso o que fizesse
não fosse suficiente para causar todo o dano que planejava, ela mesma se encarregaria
de que uma cópia do tal jornal, com sua história interessante, chegasse à embaixada
austríaca, aos cuidados pessoais do nobre barão Von Thalberg.
Por instinto, Kit manteve-se nas sombras. Não queria ser visto nas vizinhanças da
casa de Katharina. Já havia rumores demais pairando por toda a cidade. E foi então que
reconheceu a mulher vestida de negro que deixou a residência. Era sua própria
governanta!
O caso estava se tornando ainda mais interessante, analisou. Que motivos a sra.
Budge teria para visitar a baronesa em sua casa? Ele mesmo não dera recado algum para
que ela levasse a sua amante... Na verdade, não se comunicava com Katharina havia mais
de uma semana, o que não era tão surpreendente assim, se fosse verdade que sua
querida austríaca o estava enganado, como Hugo sugerira. Já era hora de se separarem,
ponderou. Deixara já bem claro, durante seu envolvimento, que era um homem fiel a
suas amantes enquanto o caso durasse e que esperava a mesma cortesia delas. E, como
Katharina, aparentemente, ignorara seu aviso, um rompimento era, agora, mais do que
necessário.
Por um momento, pensou em entrar e acabar com tudo de uma vez. Seria um
grande escândalo! A esposa de um diplomata recebendo em casa um dos maiores
cafajestes de Londres. Seria ousado...
Mas não podia permitir que um escândalo caísse também sobre ele próprio, Emma e
Hugo, por serem seus parentes mais próximos. Não seria justo para com eles. Teria de
encontrar um outro meio de lidar com a baronesa. Um homem vil poderia romper seu
relacionamento por meio de uma carta pura e simples, mas Kit não queria adotar uma
tática tão covarde. Iria enfrentá-la com desdém e dizer-lhe com todas as letras por
que a estava banindo de sua cama.
Viu que sua governanta erguia a mão, ela andara apenas alguns metros desde o
portão da casa de Katharina e estava tentando pegar um coche. E isso era ainda mais
interessante! Aonde ela estaria indo que justificasse tomar um transporte tão caro?
Katharina devia ter-lhe dado dinheiro, mas... qual seria a tarefa que estava cumprindo?
Não fazia sentido Katharina empregar Budge para levar recados ao seu novo amante.
Havia tantas outras criadas que poderiam fazê-lo em troca de algumas moedas. Por que
a sua governanta estaria sendo usada naquela tarefa?
Kit olhou em volta, tentando pegar outro coche, mas não havia nenhum passando
por ali. Seria impossível segui-la agora. Podia, então, prosseguir com o que estava
fazendo antes de vê-la, seguindo para a casa de seu amigo, que ficava a duas quadras de
distância da de Katharina. Seu amigo o esperava para que Kit o levasse e o apresentasse
na academia de Jackson. Uns bons golpes de direita seriam tudo de que precisava para
acalmar-se um pouco agora. Poderia extravasar toda sua raiva.
Mas a sra. Budge não escaparia impune. Quando julgasse conveniente, Kit faria
com que a governanta enfrentasse uma conversa que não consideraria nada agradável...
CAPÍTULO XV
— Não vim aqui para ser insultada! — exclamou a baronesa por entre os dentes,
levantando-se da poltrona que ocupava na sala de estar.
— Não, Katharina, veio aqui para ver se conseguia me ludibriar e fazer-me
acreditar que todos esses boatos não passam de mentiras. — Kit fixava-a, impassível. —
Não é isso?
Ela não respondeu. Tentou encará-lo, mas não conseguiu. E, para encobrir seu
embaraço, passou a dar passos pela sala.
— Poupe-me desses movimentos teatrais, minha cara — ele prosseguiu. — Devia
saber que de nada vão adiantar. Chamei-a aqui para poder dizer-lhe frente a frente que
nosso... arranjo está terminado. E você sabe muito bem por quê.
A baronesa fuzilou-o com o olhar e depois deu-lhe as costas.
— Seu marido sabe que você o está enganando de novo? — Kit quis saber.
Essas palavras a fizeram voltar-se.
— Como ousa dizer tal coisa?! Você! Como se não tivesse culpa nenhuma!
— Minha querida Katharina, fiz apenas uma pergunta simples. E a fiz porque tenho
um aviso a lhe dar. Você costumava ser discreta, mas, agora, parece que não é mais. Se
os rumores que andam sendo sussurrados por aí chegarem aos ouvidos do barão e ele
decidir por um duelo para defender sua honra, o que não é impossível, pois seu marido
não é nem tão velho nem tão cego assim, bem... terei de dizer-lhe quem é seu novo
amante, porque não quero levar uma bala no lugar de outro.
Kit sorriu com ironia, depois foi até a lareira, de cima da qual tirou a sineta para
chamar a governanta.
— A sra. Budge a acompanhará até a porta—disse, frio. Depois cruzou os braços e
esperou, calmo, até que a porta se abriu.
— Leve minha visitante até a porta — ordenou, severo.
A criada fez uma breve mesura e, de cabeça baixa, colocou-se ao lado da porta da
sala, esperando pela baronesa.
— Adeus, minha cara — Kit despediu-se. — E agradeça por eu ter-lhe dado o
benefício de um encontro aqui, porque isso é bem mais do que merece. Uma mulher que
usa criados para espionar seus próprios patrões não merece consideração de espécie
alguma.
A baronesa olhou-o com raiva e se encaminhou para a porta. Mas, antes que
Katharina passasse por ela, Kit ainda disse, diante do espanto que se estampou no rosto
da sra. Budge:
— Espero que, pelo menos, a tenha pago bem, já que, afinal, ela vai perder o
emprego.
A condessa sorriu de leve.
— Esplêndido! — exclamou. — Absolutamente esplêndido! Vai ser muito bom ver
aquela mulher receber o que merece!
Marina não fazia idéia do que sua patroa estava falando, mas imaginava que devia
ter algo a ver com o jornaleco escandaloso que lady Luce tinha sobre os joelhos.
Porém... a que mulher ela estava se referindo?, gostaria de saber.
— Kit Stratton excedeu a si próprio dessa vez — continuou lady Luce. — Nunca
pensei que fosse capaz. E a sua... amante austríaca vai ficar completamente
enlouquecida. Imagino... — E seu sorriso aumentou. — Imagino se alguém vai fazer com
que isto chegue aos olhos de seu marido. Poderemos ter até mesmo um incidente
diplomático. Que beleza! — E, vendo a estranheza estampada no rosto de Marina,
entregou-lhe o jornal. — Pode ler, se quiser, minha cara. Mas não quero vê-la
embaraçada. Afinal, são fatos da vida. E, quando todos começarem a pensar a respeito,
acredito que poderão concluir com facilidade a identidade da misteriosa... M.B.
M.B.! Marina sentiu como se, de repente, o sangue parasse de correr em suas
veias. Mal tinha força nos dedos para abrir o jornal. Fora traída! Agora que suas iniciais
estavam publicadas num jornal de quinta categoria, não levaria muito tempo para que
sua identidade fosse revelada. Fora uma idiota ao pedir ajuda a Kit Stratton. E pensar
que chegara a querer agradecer-lhe por ter falado o irmão dele! Sir Hugo devia ter
comentado sobre o que vira... Ou, talvez, o grande culpado tivesse sido o próprio Kit.
Como pudera imaginar que ele tivesse um comportamento de cavalheiro?!
Sentia como se uma nuvem negra a estivesse envolvendo. Era agora apenas uma
questão de tempo até estar perdida por completo.
Marina olhou furtivamente para a condessa, que ainda sorria com satisfação. Por
quê?, indagou-se. Tinha praticamente dito que sabia quem era M.B., mas isso era
impossível. Se soubesse, não estaria falando com ela daquela forma, no mínimo,
estranha. Tê-la-ia mandado fazer as malas e ir embora para Yorkshire na primeira
carruagem!
Havia algo de muito estranho em tudo aquilo, ponderou. E baixou os olhos para ler
o artigo, que era curto, porém devastador. Um certo sr. S. tinha sido visto
encontrando-se secretamente com uma dama de estatura mais alta do que o comum. E o
autor da matéria dizia não estar nada surpreso com isso, uma vez que um amigo próximo
do cavalheiro em questão afirmara que a tal dama fora vista andando sozinha em um
horário pouco apropriado... O autor do artigo dizia também que conhecia essa dama, mas
que não revelaria seu nome abertamente. Suas iniciais, porém, eram M.B.
Marina engoliu em seco. Olhou para a sua patroa e, por um segundo, teve a leve
impressão de que iria desmaiar; mas logo sua visão tornou-se clara novamente. Não
ousava dizer nada. Não confiava em sua própria voz.
Lady Luce, porém, parecia nada ter percebido.
Estava completamente absorvida na diversão do escândalo.
— Não vou dizer nada por um ou dois dias — afirmou, em tom misterioso. — Quero
ver quem será astuto o suficiente para descobrir. E quero ver também como Kit
Stratton vai reagir. Se tiver um pingo de bom senso, partirá para Viena sem demora,
antes que o machado caia sobre a sua cabeça. Mas, como sempre foi teimoso,
arrogante... Aposto que vai querer sair limpo dessa situação.
A condessa levantou-se e caminhou devagar até a porta. De lá comentou ainda:
— Será melhor do que uma peça de teatro, aposto! Marina respirou fundo depois
da saída da patroa.
Precisava pensar em como agir, e rápido. Poderia avisar Kit sobre o que a condessa
estava planejando fazer. Mas, como? Nem ela mesma entendia o que estava se
passando... Além do mais, ele não aceitaria conselhos de uma mulher, sobretudo dela, a
quem claramente desprezava.
O machado a que a condessa se referia parecia estar posicionado para cair sobre
Kit, de fato. E se ela, Marina, também tivesse um pouco de bom senso, apenas ficaria
calada e observando.
O cavalo vacilou e Kit segurou as rédeas com mais firmeza. Não estava prestando a
devida atenção a sua montaria, concluiu. E a última coisa que queria era que seu animal
preferido se ferisse por sua falta de cuidado.
— Desculpe-me, César, meu amigo — disse ao cavalo. — Seu dono não está a sua
altura hoje. — E fez com que o animal voltasse a um passo mais lento. Assim, poderia
deixá-lo mais à vontade e ele, Kit, pensar.
Já se tinham passado dois dias desde que rompera com Katharina. E não se
arrependia. Na verdade, estava surpreso pela falta de impacto que a separação lhe
provocara. Gostara de usufruir seu belo corpo; afinal, que homem não gostaria? Mas não
precisava dela. Nunca precisara. Não costumava ficar sem uma amante, porém não
estava com pressa para substituí-la. Nenhuma das mulheres da sociedade londrina o
atraía. Não eram belas o suficiente, não eram inteligentes como gostaria, não tinham
vivacidade...
Meneou a cabeça, sem entender o que estava lhe acontecendo. As damas em
Londres eram como as damas em Viena. Por que, então, sentia-se assim, com tanta
dificuldade de interessar-se por qualquer uma delas? Poderia encontrar uma amante
num piscar de olhos. Havia mulheres casadas que não apresentavam nenhuma ameaça a
sua independência, que gostariam muito de partilhar sua cama e vangloriar-se
secretamente de terem conseguido conquistar o homem mais desejado da cidade.
Kit fez uma careta ao pensar nisso. Sabia muito bem o que diziam a seu respeito. E
às vezes sua aparência era como uma maldição.
Começou a pensar em prováveis candidatas. Méchante, por exemplo, não hesitaria,
apesar de como a tratara na última vez em que se falaram. Ela fora uma excelente
amante no passado e não havia como negar que possuía uma beleza selvagem, agressiva.
Mas era egoísta demais, não tinha qualidades de caráter. Não havia, na verdade,
nada a se admirar nela, a não ser por fora.
E isso se aplicava a todas as outras, ponderou ele, aborrecido. Todas, exceto...
Kit engoliu em seco ao pensar na srta. Beaumont. Ela era a única mulher que
possuía algo admirável a ser notado. Tinha coragem. Era uma pena que tivesse certa
duplicidade também... Devia tê-la examinado mais de perto, por exemplo, na festa de
Emma, mas deixara a oportunidade passar. E isso porque ficara como enfeitiçado pelo
canto da jovem, deixara-se encantar... Havia algo nela, algo que ia muito além da
aparência física, que o intrigava, o atraía. Queria saber mais coisas a respeito da srta.
Beaumont. Muitas coisas.
Tentava lembrar-se exatamente do que ela lhe dissera em casa de lady Luce, mas
não conseguia. A srta. Beaumont falara sobre uma carta? Não, não se lembrava direito.
Tivera certeza, naquele momento, que ela estava tentando insultá-lo de alguma forma,
mas não podia afirmar nada. As mulheres eram, às vezes, tão difíceis de serem
entendidas...
Exceto na cama, é claro, ele avaliou com um sorriso malicioso, lembrando-se das
mulheres negligenciadas, deixadas de lado, que sempre gemiam de prazer em suas mãos.
Nesse aspecto, Kit nunca tivera a menor dificuldade em agradá-las e entendê-las.
— Mãe, preciso lhe falar.
Lady Luce ergueu as sobrancelhas e olhou para o filho com o mesmo desprezo de
sempre.
— É mesmo, William? E posso saber que assunto é assim tão urgente?
— Tenho notícias sobre Kit Stratton.
— Muito bem, estou ouvindo.
— Acho que seria melhor se conversássemos a sós.
Ao ouvir isso, Marina levantou-se de imediato.
— Bobagem! — rebateu a condessa, erguendo a mão enrugada. — A srta. Beaumont
é minha dama de companhia e sabe bem mais do que você poderia supor. Sente-se,
Marina. Seja o que for que meu filho deseje me dizer, poderá dizê-lo na sua presença.
O conde pareceu ficar embaraçado e zangado.
— Muito bem — concordou, visivelmente a contragosto —, se é assim que deseja,
mãe, mas devo avisar que o que tenho a dizer não é apropriado para os ouvidos de uma
donzela.
A condessa lançou um olhar significativo ao filho. Um olhar que parecia sugerir
que, em sua opinião, o que ele achava que donzelas deviam ou não ouvir deixava muito a
desejar.
Assim, William pigarreou e começou com certa pompa:
— Deve saber, minha mãe, que o sr. Stratton tem, digamos, inúmeras ligações... e
dizem que voltou à Inglaterra apenas para seguir sua aman... sua namorada austríaca,
quando o marido dela foi enviado para trabalhar aqui. E, pelo que sei, deve ser verdade.
No entanto imagino que goste de saber que essa tal... namorada, se cansou de Kit e que
ele, um homem que sempre se orgulhou de ser quem termina todos os seus
relacionamentos, acabou sendo desprezado por ela e recebeu um pedido de rompimento
irrevogável. Deve ter sido a primeira vez... — William sorriu para a mãe, então
completou: — Tenho certeza de que apreciará as novidades.
— De fato. Apreciei, sim, quando fiquei sabendo delas, alguns dias atrás. Posso
perguntar-lhe por onde seu cérebro tem andado esse tempo todo? Ou você espera que
Charlotte lhe conte todas as novidades? Porque sua esposa é sempre a última a saber
de tudo.
O conde tornou-se pálido de raiva.
— Se não se interessa pelo que tenho a lhe dizer, minha mãe, vou-me embora!
— Bobagem! Fique onde está! Agora, sou eu quem vai lhe falar a respeito de Kit
Stratton.
Marina prendeu a respiração. O que mais a condessa poderia estar sabendo?,
indagou-se, aflita. A velha senhora andava com um sorriso nos lábios desde que lera
aquele jornaleco, no outro dia! Era como se acreditasse em cada palavra escrita nele. E
parecia estar convencida de que era a única pessoa que conhecia a identidade da mais
recente amante de Kit, a tal M.B. mencionada no artigo. Estava enganada, claro, mas...
conheceria outra mulher com as iniciais M.B.? Até o momento, ela não partilhara seu
segredo com Marina. Iria revelá-lo agora? Ao filho?!
— Pode até estar servindo muito bem à dama em questão que pareça a todos que
foi ela quem rompeu o relacionamento — continuou lady Luce, cheia de orgulho de si
mesma —, mas isso, certamente, não é verdade.
— Não?! Como assim, mãe? — William perguntou, surpreso.
— Deixe-me terminar! Como eu disse, não é verdade. O sr. Stratton terminou o
relacionamento assim que descobriu a perfídia dessa mulher. E isso foi há vários dias,
William. Nem posso culpá-lo pelo que fez... Mas... há algo mais que queira me dizer?
Como lorde Luce nada dissesse, estando ainda digerindo o que a mãe lhe contara,
ela prosseguiu:
— Então, como me parece que não viu luz alguma nos fatos, vou deixar que leia
algo. — Ela pegou o jornal, um tanto amassado, de dentro de uma gaveta próxima e
entregou-o ao filho. — Sugiro que o leia com a sua querida esposa. Então poderão ficar
pensando juntos sobre a provável identidade dessa misteriosa M.B.
Lorde Luce passou os olhos rapidamente pelo artigo, então seus lábios se
entreabriram e uma expressão de surpresa surgiu em seu rosto.
— Interessante, não? — comentou a condessa. — Mas vou lhe dar um pequeno
aviso, William: não procure demais para saber quem é a dama misteriosa.
— Como, mãe? Não entendo o que está dizendo.
— É porque se recusa a usar o pouco de bom senso que tem. — Ela esperou por
alguns instantes, como se quisesse que o filho chegasse a uma conclusão. Isso não
aconteceu e, respirando fundo, a condessa exclamou: — Muito bem, muito bem! Não
pretendo ficar esperando aqui a vida inteira! Aposto que vou estar enterrada há um
bom tempo quando alguém, por fim, tiver chegado a uma vaga idéia de quem M.B. é!
Marina mordeu o lábio e baixou os olhos para os próprios sapatos, na expectativa.
— M.B. — disse a condessa com satisfação. — Não devia ser tão difícil assim, em
especial para você, William. Pense! Pense bem! Imagine o número de damas que conhece
e que têm o sobrenome começando pela letra B. Pense com muito cuidado sobre uma
família que é... digamos... aliada a sua. É nela que se encontra a misteriosa M.B. Na
verdade, você mesmo já esteve tão próximo da dama em questão quanto se diz que Kit
Stratton esteve.
O conde tornou-se vermelho como um pimentão.
— O quê?! Mamãe, está sugerindo...
A condessa se levantou depressa demais para os seus anos.
— Nunca ouve uma só palavra do que digo, não é, William?! Eu lhe disse para
pensar, não para falar! Agora, saia daqui antes que eu perca a paciência com você!
Paciência era a última virtude que Marina consideraria possível em lady Luce, mas
estava ansiosa demais para pensar nisso agora. A descrição que a condessa fizera
poderia encaixar-se na sua pessoa, mas tinha certeza de que a velha senhora não
pensava assim. Mesmo porque lorde Luce nunca estivera próximo dela de forma alguma.
O conde praticamente se esquecera de sua presença quando a sugestão de sua mãe
o irritara por demais. E agora, mais irritado ainda, ele quase gritava:
— Vou sair, sim! Mas acho que não consigo entender suas charadas! Não consigo
imaginar nenhuma família conhecida que permitiria, em seu seio, um comportamento tão
vergonhoso! Uma mulher sozinha com Kit Stratton?! Seria ultrajante, escandaloso!
A condessa sorriu, cheia de malícia. E William prosseguiu, eloquente:
— Uma mulher assim, tenho certeza, não seria tolerada por minha família. E,
quanto as suas insinuações, minha mãe, há apenas uma família que se encaixa no que me
disse: os Blaine. E eles estão acima de qualquer suspeita!
Lady Luce deu de ombros.
— Estão mesmo? — duvidou. — Você, obviamente, não pára para pensar por que
lady Blaine sempre ganha quando se senta a uma mesa de faraó. Sabe, as más línguas e
as boas também estão começando a falar de seus preciosos amigos, os Blaine, meu caro.
Marina engoliu em seco mais uma vez. Os Blaine! Então, era a isso que a condessa
se referia! Olhou para o conde, que respirava profundamente, como se estivesse se
sentindo ultrajado com tudo aquilo. Talvez até tivesse um ataque do coração, Marina
ponderou, assustada.
Mas a condessa não parecia se importar com as condições do filho. Seguiu até a
porta e chamou:
—Venha, Marina. Temos coisas a fazer. — E, olhando para o filho, completou: —
Lembre-se do que eu disse, William! M.B. Uma dama que você também teve em seus
braços. Intrigante, não?
Na pressa em que estava, Marina acabou colidindo com uma moça e estendeu os
braços de pronto para ajudá-la a ganhar equilíbrio.
— Que desastrada eu sou!
A moça sorriu de leve, alegrando suas feições pálidas. Era a filha mais velha dos
Blaine.
— Não foi nada — murmurou, educada. — Oh, mas você é a srta. Beaumont, não?
Sinto muito, porém... como é a única moça que tem quase a minha altura, eu não podia
deixar de reconhecê-la, mesmo que não nos tenham apresentado formalmente.
Estávamos as duas na recepção em casa de lady Emma Stratton, lembra-se? Mas eu e
minha mãe tivemos de sair por que... — Ela parou, envergonhada.
— Porque você não se sentiu bem — Marina completou, tentando aliviá-la. — Não é
de admirar... Estava tão quente naquela noite! — Ela ergueu os olhos para as escadas
que levavam à sala particular de Emma. — Veio visitar lady Stratton?
— Ah, sim. Ela está sempre em casa às segundas-feiras, para receber visitas.
Viemos na segunda passada porque minha mãe disse que eu devia me desculpar pela cena
que fiz na recepção... Mas lady Stratton nem quis ouvir falar. Insistiu que viéssemos
novamente. Ela é encantadora, generosa, um amor de pessoa! E tão elegante...
— É verdade — Marina concordou, percebendo o leve tom de inveja na voz da
outra. — E ela tem sido maravilhosa comigo também. E olhe que sou apenas uma dama de
companhia.
— Mas... imaginei que você fosse, de alguma maneira, aparentada com meu pai. —
Havia algo de diferente no tom dela agora. E sugeria que, se Marina fosse apenas uma
mera dama de companhia, não deveria estar falando com ela de forma alguma.
— Sim... — Marina murmurou, hesitante.
— Bem, nesse caso, vou chamá-la de Marina. E você pode me chamar de Tilly.
Detesto meu nome, sabe? Mas, como ele inteiro, Mathilda, é ainda pior, prefiro ficar
com o apelido. Sempre quis que minha mãe tivesse me dado um nome mais poético.
— Tilly! — A voz de lady Blaine cortou o ar como uma navalha sem fio. — Por que
está aí parada?! Dei-lhe ordens para chamar a carruagem! Faça-o imediatamente!
— Eu estava prestes a fazê-lo, mamãe, mas encontrei Marina aqui na escada e...
— Srta. Beaumont — disse lady Blaine com ênfase, olhando para Marina com
profundo aborrecimento. — Não é de admirar que ela esteja aqui para cumprir alguma
determinação de sua patroa. Por favor, não queremos atrasá-la ainda mais em sua
tarefa, srta. Beaumont. Vá encontrar lady Stratton em sua sala particular.
Marina olhou para Tilly, porém a moça já se apressava em sair para chamar a
carruagem. Era provável que nunca mais falasse com Marina, pelo menos não na frente
da mãe. Aquela mulher parecia apreciar a aflição que infligia ao humilhar os outros, até
mesmo a própria filha.
Marina arrebanhou as saias e subiu a escada, chegando ao patamar onde se
encontrava lady Blaine. E, ali, encarou-a de frente. Fez uma breve mesura e, sem
conseguir se controlar, disse:
— Quanta gentileza sua, prima. Mas eu conheço o caminho. — E seguiu pelo
corredor antes que a viscondessa tivesse tempo para responder.
— Srta. Beaumont! — admirou-se Emma. — Oh, que pena! Lady Blaine e sua filha
acabaram de sair e vocês nem se encontraram... Mas, sente-se. Você me parece um
tanto ofegante... Algo errado?
— Não, senhora. Estou bem. Porém, como estava um pouco atrasada, vim correndo.
— Mas não precisava, querida! Vamos, tire esse chapéu. Vou pedir chá para nós.
Marina estava quase sem ar, sim, mas por causa do que acabara de descobrir.
Depois de dias em que só pensara no assunto, acabava de saber quem era a M.B. a que
lady Luce se referia. Na verdade, a resposta havia instantes surgira em sua mente!
Fechou os olhos por alguns momentos, pensando. Não podia haver dúvidas. A
condessa se referira à família Blaine, embora não tivesse dito um nome... Marina
imaginara que ela se referisse à amizade entre as duas famílias porque a esposa do
conde era muito amiga de lady Blaine. Ela dissera que seu filho tivera alguém daquela
família nos braços! O conde poderia ter segurado a pequena Mathilda nos braços quando
bebê. Mas a condessa devia estar brincando, como sempre fazia, maldosamente. E
agora... seria verdade?, ela se indagava, incrédula.
Pelo menos, aos olhos da condessa, sim. Ela parecia detestar os Blaine tanto quanto
detestava o filho... e fora ela quem chamara a atenção de todos para a expressão de
encantamento de Tilly Blaine na recepção de lady Stratton!
Talvez, em breve, toda a sociedade já tivesse decifrado que a misteriosa M.B. era
Tilly Blaine! A mulher que seria a nova amante de Kit Stratton! E a pobre moça estaria
arruinada! Marina não podia deixar que isso acontecesse.
Seria uma monstruosidade, uma enorme injustiça para com uma moça cuja única
culpa fora trair seus sentimentos pelo mais famoso canalha de Londres! E, de repente,
Marina sentiu-se imensamente culpada. Teria de fazer algo para salvar Tilly Blaine,
mesmo que isso...
A porta se abriu e seus pensamentos foram interrompidos. Nem mesmo ouvira as
batidas. Marina ergueu os olhos, esperando ver o mordomo com a bandeja e o chá.
— Boa tarde, Emma — disse uma voz que conhecia muito bem. — Cheguei tarde
demais para cumprimentar suas visitas? Mas que imperdoável de minha parte!
CAPÍTULO XVI
Marina sentia seu coração atormentado pelo acúmulo de emoções que o assolavam.
Estava arrepiada pela simples visão de Kit. E sua boca tornou-se repentinamente seca,
como se nunca mais fosse capaz de pronunciar uma só palavra. Mas sabia ter motivos
para estar furiosa com ele. Afinal, Kit a traíra, pois suas iniciais, agora, estavam na
boca de todos na cidade. E, por consequência, ele era responsável também pela
desgraça iminente que ameaçava atingir a inocente Tilly Blaine.
Marina precisava falar com Kit, mas em particular. Precisava mostrar-lhe o
absurdo de toda aquela situação, chamá-lo à razão! Talvez nunca ninguém o tivesse
feito, muito menos uma mulher, porém ela o faria. E não permitiria que nada a impedisse
de fazer o que achava certo. Recusava-se a ceder às deliciosas recordações que
povoavam sua mente em relação a Kit. Por isso forçou-se a olhar com frieza para ele.
— Perdoe-me, srta. Beaumont — disse Kit, numa leve inclinação de cabeça. — Por
um momento, achei que Emma estivesse sozinha. Não me ocorreu que pudesse se
encontrar aqui a esta hora do dia.
E como ele poderia ter prestado atenção à sua presença?, imaginou ela, ressentida.
Afinal, não passava de uma dama de companhia...
Lady Stratton havia cruzado a sala para tomar o braço do cunhado e trazê-lo mais
para perto.
— Você não me engana, Kit querido — disse ela, sempre suave. — Sei muito bem
por que veio até aqui a esta hora. Está deliberadamente evitando minhas outras visitas
e fingindo inocência.
Ele sorriu.
— Nem vou tentar negar — confessou. — Ainda mais porque reconheci quem estava
na carruagem que saiu da frente da sua casa. E devo admitir que a presença de lady
Blaine realmente não me agrada.
— Mas achei que o visconde, marido dela, fosse um membro do seu clube.
— E é, mas muitos outros cavalheiros também são. Isso não significa que eu
aprecie a sua companhia. Além do mais, ele está há muito tempo no exterior e, depois
que eu voltei para cá, mal o vi. Pelo que me disseram, ele está verificando propriedades
e fazendas de escravos que tem em outros países.
Marina remexeu-se na cadeira, sem conseguir se conter. O que Kit revelava
deixava-a inquieta. Ele, por sua vez, notando sua atitude estranha, olhou-a sem
entender.
— Está surpreso, senhor, por ver que alguém não aprova a escravidão? — indagou
ela, em tom desafiador. — A religião nos ensina que somos todos irmãos e que não é
correto escravizar nossos semelhantes.
Kit a olhava com curiosidade. Por fim, comentou:
— É louvável de sua parte que defenda dessa forma aqueles que são escravizados.
Mas, pelo que sei, o comércio negreiro já foi banido dos mares. Assim, sua batalha está
ganha, não?
— Na verdade, não. Podemos não tirá-los mais de seus países, na África, mas, nas
fazendas, eles ainda estão agrilhoados e...
O mordomo apareceu naquele momento, impedindo-a de continuar.
— Ah, nosso chá! — Emma saudou, apontando a mesa de centro, para que a bandeja
fosse ali colocada. — Aceita uma xícara, Kit?
— Perdoe-me, senhora — disse o mordomo —, sir Hugo está na biblioteca e pede-
lhe que lhe conceda alguns minutos.
— Mas que estranho! — Emma comentou, porém seguiu até a porta sem vacilar. —
Srta. Beaumont, poderia me desculpar por alguns minutos? Por favor, sinta-se à vontade
em minha ausência.
— Obrigada.
—E Kit vai se comportar, eu lhe prometo. — Emma lançou um olhar significativo a
ele, que pareceu não ter efeito algum. — Voltarei logo. Com licença.
O coração de Marina agora se agitava dentro de seu peito. Procurou ignorá-lo, mas
foi inútil. E, assim que o mordomo se retirou, serviu uma xícara a Kit, perguntando, no
tom mais frio que conseguiu:
— Creme e açúcar, senhor?
— Sim, obrigado.
Ele se sentou no sofá a sua frente. E, quando Marina entregou-lhe a xícara, pegou-
a com educação, agradecendo novamente e fazendo com que ela notasse, mais uma vez,
seus longos, elegantes dedos.
Tensa, Marina mal sabia como não derrubara a xícara. Repreendia-se, achando que
devia estar ficando louca por comportar-se assim. Estava ali, servindo chá a um homem
que poderia ser o veículo de sua desgraça. E a de Tilly Blaine também.
Respirou fundo, tomou um gole de seu próprio chá e começou:
— Sr. Stratton, preciso perguntar-lhe se está a par dos rumores que estão
circulando sobre sua pessoa e... nossos encontros.
— Imagino que esteja a ponto de me colocar a par deles, srta. Beaumont.
— Não, não preciso fazê-lo, já que o senhor é a causa deles!
Kit ergueu as sobrancelhas. E ela interpretou sua reação como desdém.
— Já basta! — irritou-se. — O senhor me fez acreditar que fizera o que lhe pedi,
e eu fui tola o suficiente para acreditar que fosse um cavalheiro, que pedisse a seu
irmão para não revelar o que ele havia visto! Eu devia saber que não poderia confiar no
senhor! Diga-me, foi o senhor quem traiu minha indiscrição, revelando-a aos jornais mais
baixos de Londres? Ou simplesmente a revelou a seus amigos mais íntimos? Porque
imagino que eles devam ter se divertido muito ao saberem.
Kit recolocou a xícara na bandeja com extremo cuidado e calma. Depois voltou a
sentar-se e observou Marina com atenção. Ela podia perceber seu desprezo, mas não
estava disposta a aceitá-lo. Por isso sustentou-lhe o olhar com altivez.
— Muito bem, srta. Beaumont — disse ele com suavidade. — Poderia me explicar
essas suas acusações? Porque devo dizer-lhe que não costumo trair confidências de
forma alguma.
— Então, por que me traiu?
— Eu não a traí.
Marina estava agora tão exasperada que mal o ouvia.
— O senhor e sir Hugo eram as únicas pessoas que sabiam que eu saí da sua
carruagem naquela manhã. Ninguém mais me viu no parque. E seu irmão me reconheceu!
Por que outro motivo, então, eu escreveria ao senhor pedindo sua ajuda? E me fez
acreditar que tudo estava bem, que...
— Espere, espere! Escreveu para mim?! Quando? — Ele se inclinou para frente,
subitamente alerta.
— Sabe muito bem quando.
— Srta. Beaumont, não recebi nenhuma carta sua.
— Mas...
— Não recebi nada, acredite. É verdade que meu irmão a reconheceu no parque
naquela manhã e posso garantir-lhe que Hugo nada falou sobre o fato a ninguém. Nem
mesmo a sua esposa. Achou que devia isso a seu pai e seu tio para preservar seu nome
de um possível escândalo.
— Mas, então...
— Eu mesmo não falei sobre o assunto com mais ninguém, a não ser com meu irmão.
Se o seu nome está circulando em jornais de quinta categoria, senhorita, não é por
minha culpa, eu lhe juro.
Marina baixou a cabeça e cobriu o rosto com as mãos. Momentos antes, poderia
ter voado sobre Kit e o agredido. Mas, agora, sua força parecia ter se evaporado por
completo.
— Não entendo — murmurou. — Se nem o senhor nem seu irmão disseram nada...
como, então... — Marina não terminou a frase. Não importava agora quem era o culpado.
A vergonha cairia sobre ela da mesma forma. E não conseguia mais encará-lo. Mal podia
se mover, na verdade.
Kit aproximou-se e, muito gentilmente, afastou-lhe as mãos do rosto, segurando-
as, confortador.
— Srta. Beaumont, olhe para mim — pediu.
Pareceu passar uma eternidade antes de ela obedecer. Seus olhos tinham uma
expressão assustada, como se pudesse ver o destino que a aguardava.
— Acredita que os Stratton a traíram — Kit prosseguiu, tranqüilo. — Juro que não
o fizemos. Mas, pelo que diz, parece que foi traída por alguém. Por que não me fala mais
a respeito dessa carta que mencionou? Quando a enviou? Quem a entregou?
— Escrevi para o senhor assim que cheguei em casa, naquela manhã. E eu mesma a
levei à agencia dos correios.
— E tem certeza de que escreveu meu endereço corretamente?
— Sim, é claro. Não poderia me enganar. Afinal, eu tinha acabado de vir da sua
casa...
— Endereçou-a a mim em Chelsea? — Como ela assentisse, com certa impaciência
Kit comentou: — Entendo. Deve ter havido algum engano, parece. — Ele começava a ter
suas suspeitas, mas de nada adiantaria revelá-las a Marina. Afinal, ela já estava tensa
demais. Devia tratá-la com cuidado e carinho, porém não dispunha de muito tempo.
Emma poderia voltar a qualquer momento.
Tentou sorrir para que Marina se sentisse mais tranqüila. Ainda segurava-lhe as
mãos, mas não sabia se ela não as retirara por algum motivo específico. Talvez, nem
mesmo tivesse se dado conta de que ele as segurava.
— Não recebi a sua carta — repetiu. — Mas por que não me diz o que escreveu
nela?
— Não me lembro exatamente das palavras, porém eu disse que achava que seu
irmão tinha me reconhecido. Creio que lhe pedi para que intercedesse junto a ele, para
que sir Hugo nada revelasse.
— Foi apenas isso?
— Posso ter mencionado algo sobre a sua carruagem, não sei... para explicar como
seu irmão tinha me visto. Mas não me lembro mais dos detalhes da carta.
Kit preocupava-se. A situação tornava-se ainda pior.
— E assinou a carta, srta. Beaumont?
— Não, não! — ela se apressou a negar.
Kit respirou fundo, aliviado, porém ela completou:
— Mas coloquei as minhas iniciais.
Kit baixou os olhos para o chão, pensativo. A carta estava perdida e continha todas
as informações necessárias para arruiná-la. Ela, inocente e sem experiência como era,
pensara estar segura desde que não a assinasse.
— Sr. Stratton, peço-lhe desculpas pelas palavras duras que lhe disse há pouco —
Marina murmurou, evitando fitá-lo nos olhos. E, num movimento rápido, retirou suas
mãos das dele, como se só agora percebesse que se encontravam ali, e as enfiou nas
dobras de suas saias. Estava corada, embaraçada.
Kit, muito próximo, observava mais uma vez sua pele perfeita; e surpreendeu-se
desejando que ela o olhasse novamente. Achava seus olhos lindos, mesmo estando
assustados, revelando medo.
Marina continuou a falar, porém tão baixo que ele mal a ouvia:
— Sr. Stratton, acho que a situação é ainda pior do que imagina. Um jornal desses
bem baixos anda circulando pela cidade, dizendo que o senhor tem uma nova... amante,
uma dama alta, com as iniciais... M.B. E tem havido especulações a respeito da
identidade dessa mulher.
Kit assentiu.
— Tem motivos para acreditar que tenha sido identificada como tal? — perguntou.
— Não, não.
Era estranho, mas ela parecia tensa demais. Afinal, Marina devia saber que estaria
salva enquanto M.B. continuasse sem identificação.
— Lady Luce tem certeza de que a dama em questão é Tilly Blaine — revelou ela,
quase sem voz.
Kit encarou-a, absolutamente surpreso. Tilly Blaine?, repetia em sua mente.
— O nome verdadeiro dela é Mathilda — Marina explicou. — Mas o seu apelido é
Tilly, por isso a conexão é óbvia e...
De repente, Kit começou a rir. Não conseguia evitar. Tudo aquilo era absurdo
demais para deixar de ser engraçado como uma comédia de erros de Shakespeare. Tilly
Blaine!
Uma mulher que ele achava sem graça, sem inteligência, sem atrativo algum!
Marina levantou-se de imediato, aborrecida.
— Como ousa rir, senhor?! — repreendeu-o. — Não pensa no que a pobre srta.
Blaine pode vir a sofrer por causa disso tudo?!
Ele se levantou também, mas calmo.
— Minha cara srta. Beaumont, tenho certeza de que nada de mau acontecerá.
Porque quem poderia acreditar que eu...
— O senhor é muito convencido! Não pensa em mais ninguém a não ser em si
mesmo! Acha que não acreditariam que o grande Kit Stratton poderia ter encontros
secretos com uma garota sem muitos atrativos como Tilly Blaine! Mas devo lembrá-lo,
senhor, que teve dois encontros comigo!
Ele respirou fundo. Não quisera parecer arrogante, porém reconhecia que o fora.
Marina tinha razão, mas não o ouviria agora. Tentou tomar-lhe as mãos novamente,
porém ela as afastou, irritada. Naquele momento, a porta da sala se abriu e Emma
retornou, sorridente.
— Pretende jogar faraó esta noite, senhora?
— Talvez — respondeu lady Luce a Méchante. — Está preocupada com a minha
sorte? — E deixou que a criada da casa de jogo a ajudasse a retirar o pesado casaco. —
Devia estar agradecida por eu não ser lady Blaine. Afinal, às vezes perco. E acho que eu
poderia verificar se a sorte continua a meu lado esta noite.
— Como quiser, senhora. Minhas salas estão sempre abertas para a sua presença.
A condessa mal lhe deu atenção e dirigiu-se às escadas.
— O que acha dos rumores mais recentes? — Méchante perguntou, colocando-se a
seu lado.
— Rumores? Quais rumores? — lady Luce fingiu não saber.
— Sobre a amante atual de Kit Stratton, uma misteriosa dama com as iniciais M.B.
A condessa parou de subir e encarou sua anfitriã.
— Não sabe quem ela é — afirmou com certo ar de triunfo. — Frustrante para
você, não?
— E devo imaginar que a senhora saiba de quem se trata? — Méchante destilava
veneno.
— Naturalmente que sim. Mas ainda não quero partilhar minhas informações. Sei
muito bem que não há amor perdido entre você e Kit Stratton, por isso, pensando
melhor, creio que vou lhe dar uma pista. Afinal, somos aliadas nessa pequena charada.
Dessa vez, Kit Stratton foi longe demais e pode acabar caindo em sua própria
armadilha. E duvido que goste da experiência. — A velha senhora ria com satisfação,
depois completou: — Mas eu, com certeza, vou me divertir muito com a situação. Sabe,
teria até pago a ele aquelas doze mil libras por isso. Pena que ele nunca venha a saber...
Méchante olhou-a, cheia de malícia.
— M.B. é uma dama? — indagou. — Uma dama solteira?!
Lady Luce assentiu.
— Talvez nós duas venhamos a dançar no casamento dele — observou, cínica.
— Ah, duvido. Isso jamais acontecerá! Será mais fácil dançarmos em seu túmulo.
Mas a condessa apenas ergueu as sobrancelhas, duvidando, ao que Méchante
acrescentou:
— Minha querida senhora, posso ainda não ter conseguido identificar essa tal M.B.;
admito que as minhas fontes não são das melhores... Mas posso garantir-lhe que tenho
pensado muito a respeito. Já ouviu os rumores crescentes sobre Kit e a baronesa?
Imagino que o marido dela esteja achando cada vez mais difícil fazer vistas grossas às
aventuras dela. E mais: tenho cuidado pessoalmente para que a maior parte dos
diplomatas, em especial o embaixador francês, esteja rindo dele, de sua falta de
habilidade para manter a esposa em sua própria cama. O orgulho empertigado que o
barão sempre mostrou não vai suportar a situação por muito tempo, ainda mais se ouvir
alguma insinuação de um francês. Assim, creio que Kit Stratton está correndo um risco
ainda maior de levar um tiro antes mesmo de subir ao altar.
— Bobagem! Kit Stratton atira muito bem!
— Mas eu não mencionei um duelo, minha cara condessa! Deve saber que há outras
formas de...
— É claro que há — lady Luce interrompeu-a. — Bem, agradeço pela informação,
Méchante. E vou ficar observando o desenrolar dos acontecimentos com grande
interesse. Darei uma festa na quarta-feira à noite. E todos estarão presentes: os
diplomatas, os Stratton, a nata da nossa sociedade. Acho que vai ser muito
interessante! Pena eu não poder estender meu convite a você, minha querida, mas tenho
certeza de que entende os meus motivos.
Marina estava revendo as anotações que fizera para a recepção que lady Luce
ofereceria, quando o mordomo apareceu. E, aproximando-se da condessa, disse:
— Senhora, um mensageiro de lady Méchante trouxe isto. E se foi sem esperar
resposta.
Lady Luce pegou a carta que o mordomo lhe oferecia numa bandeja e fez-lhe um
sinal para que saísse. Depois rompeu o lacre de cera e abriu o papel. Marina apenas a
observava, ansiosa. Tinha certeza de que lady Méchante estava tramando algo de ruim;
afinal, a condessa já insinuara mais de uma vez que a dona da casa de jogos tornara-se
inimiga de Kit. E que melhor maneira de atacá-lo agora senão atacando M.B.?
A carta vinha acompanhada de um jornal dobrado, e Marina sentiu o coração se
apertar quando viu a condessa deixá-lo de lado para ler primeiro a missiva.
— Bem, eu não esperava que a minha aliança com Méchante produzisse resultados
tão rapidamente — comentou lady Luce com um breve sorriso.
E, depois de ler o conteúdo da carta, pegou o jornal e o abriu. Após alguns
segundos de leitura, ergueu os olhos para Marina e observou:
— A baronesa vai ficar furiosa! E, quanto às Blaine... Bem, vai gostar disto, Marina.
Afinal, essa família desprezou a sua por tantos anos! Ouça: "Até hoje fomos reticentes
quanto à identidade de M.B., atendendo à necessidade de preservarmos a reputação
dessa dama. No entanto, agora pudemos perceber que sua conduta não merece tal
cuidado de nossa parte. Vimos, horrorizados, que M.B. foi visitar o sr. S. em sua casa,
em Chelsea, em pelo menos duas ocasiões, permanecendo a sós com ele lá. Podemos
apenas lamentar tanta falta de pudor e de moral nas jovens damas de hoje em dia. Seus
pais deveriam culpar a si mesmos por isso".
Depois de ler, lady Luce pareceu pensar a respeito, e depois comentou:
— É, eles deveriam mesmo. É muita vergonha para uma viscondessa, devo dizer.
Deveria sofrer uma reprimenda severa!
Marina sentia sua mente tomada por um frenesi de pensamentos. Alguém vira suas
visitas à casa de Kit e as revelara! Poderia ter sido ele mesmo?, indagava-se. Não, Kit já
o negara e lhe parecera tão sincero! Sir Hugo não seria capaz de fazer tal coisa. Além
do mais, dissera a Kit que nada comentaria. Mas alguém falara... Alguém... Se pudesse
descobrir quem, talvez fosse possível...
Não, nada havia a fazer, concluiu. Ademais, era muito tarde para agir. Sua conduta
estava aberta a todos. Bastaria apenas que sua identidade fosse conhecida para que
estivesse completamente arruinada. E isso poderia não demorar a acontecer.
— O conde Luce, senhora! — anunciou o mordomo, aparecendo mais uma vez.
William entrou logo em seguida, trazendo outra cópia do infame jornal. E Marina
sentiu-se ainda mais abalada com sua chegada. Não havia esperanças agora. O conde a
detestava e, quando descobrisse o que ela fizera, não hesitaria em contar tudo a toda a
sociedade londrina.
— Mãe, eu lhe trouxe as últimas notícias sobre o escândalo! — ele declarou,
entusiasmado. — E acredito que ficará chocada! É infame, escan...
Com calma, a condessa pegou sua própria cópia do jornaleco e a ergueu na direção
do filho.
— Poupe o seu fôlego — disse. — Eu já sei de tudo.
O conde olhou-a, profundamente exasperado. E Marina baixou os olhos, sentindo o
coração bater mais depressa do que nunca, tamborilando em seus ouvidos, deixando-a
ainda mais angustiada e tensa.
— Vamos, sente-se — a condessa ordenou ao filho. — Diga-me, como Charlotte
recebeu a notícia?
— Não contei a ela. Ela está... deve entender, mãe, que Charlotte está... em estado
interessante...
— O quê?! De novo?! Pelo amor de Deus, William, mal consegue sustentar dez
filhos, quanto mais onze! O que se passa nessa sua cabeça?!
— Devo lembrá-la, minha mãe, de que o casamento foi criado por Deus com o
propósito de que nos multiplicássemos.
— Ah, bobagem! Vai querer povoar a Terra sozinho?! É um grande tolo, isso sim! Às
vezes fico imaginando se...
— Mãe! — ele a interrompeu, olhando para Marina, que se tornara testemunha
inocente de sua humilhação. — Vim para pedir-lhe conselhos sobre esse assunto — Ele
ergueu o jornal para mostrar a que se referia. — Diz saber quem é M.B. Assim, deve
saber também que cabe a mim agir nessa situação.
Lady Luce ergueu as sobrancelhas.
— Alguém deve fazê-lo — ele confirmou. — O pai dela só voltará daqui a algum
tempo e o irmão não passa de um colegial. Não posso ignorar minha responsabilidade.
Lembre-se de que sou seu padrinho.
Então, William era padrinho de Tilly!, Marina ponderou em silêncio absoluto. Baixou
a cabeça, pensando em tudo que estava acontecendo, sentindo-se mais culpada do que
nunca. Seus dedos giravam mecanicamente o anel no dedo anular.
— Então, descobriu que eu estava me referindo a Tilly Blaine... — comentou a
condessa.
— E não estava?
— Não estou dizendo nada. Você é quem deve tirar suas próprias conclusões. Mas
devo dizer que nada que aquela família fizesse de errado me surpreenderia.
O conde a encarou, sério, porém lady Luce nada acrescentou, esperando que ele
dissesse alguma coisa agora. Marina percebia que sua patroa agia como um gato astuto
que acabava de pegar um rato e que esperava apenas o momento em que ele tentasse
escapar para poder agarrá-lo novamente. Por que uma mulher idosa teria tanto prazer
em atormentar seu único filho?, imaginava.
— Muito bem, não me deixa alternativa — disse William, contrariado. — Vou ter de
falar imediatamente com lady Blaine. Ela ficará horrorizada, é claro, mas preciso do seu
consentimento antes de... tomar as providencias necessárias.
Marina estava intrigada. A que ele estaria se referindo? O que pretendia fazer?
A condessa estava calma e sorria, maliciosa. E mantinha-se em silêncio. Seu filho
esperou por alguns instantes, depois disse:
— Como quiser, então, minha mãe. Tenha um bom dia.
Ele se inclinou e saiu em seguida, parecendo apressado. E, assim que a porta se
fechou as suas costas, lady Luce começou a rir. Era uma risada feia, terrível, repleta de
malícia.
— Mas que idiota cheio de pompa! — comentou a condessa, com desprezo. E,
olhando para Marina, indagou: — Mas... qual é o problema com você, menina? Está tão
pálida! Vai me dizer que não se diverte com essa pequena tragédia? Eu lhe disse que
seria melhor do que uma peça de Shakespeare, não disse? Pena William ter se oferecido
para fazer o papel principal, já que suas habilidades teatrais deixam muito a desejar.
Duvido que o público vá aplaudir de pé...
— Senhora — Marina começou em voz baixa —, posso... posso perguntar o que seu
filho quis dizer quando falou em providencias necessárias? Eu não entendi.
— Oh, mas você é mesmo uma garota do interior! Eu não imaginava que Yorkshire
estivesse assim tão afastada da civilização! William vai insistir para que Kit Stratton se
case com a garota! O que achou que ele poderia fazer?
Marina sentiu um arrepio de frio percorrer-lhe o corpo. Não conseguia falar, muito
menos mover-se. Kit seria forçado a enfrentar um casamento absolutamente sem amor!
Não importava que Tilly Blaine o adorasse, pois logo descobriria que seu marido a
detestava. E logo aprenderia a odiá-lo. Que destino terrível para os dois! E tudo por sua
culpa, ela se acusava. Cerrou os olhos, sentindo que toda a raiva que chegara a sentir de
Kit pelo comportamento libertino dele havia desaparecido como por encanto.
Agora podia ver o belo rosto dele voltado em sua direção, com uma expressão de
simpatia. Podia sentir o calor de suas mãos confortando-a, quando poderia estar
acusando-a de traição...
Nada que Kit fizera no passado poderia justificar o destino angustiante de estar
ligado a uma mulher que ele não amava.
Uma mulher que realmente o amasse iria se sacrificar por ele.
E Marina não podia mais negar que o amava. Sentia-se inclinada a revelar toda a
verdade, não importava o que isso lhe custasse.
Estava desesperada. Como aquela situação podia ter chegado a tal ponto?! Estava
apaixonada pelo maior canalha de Londres e, se alguém descobrisse o seu amor, estaria
perdida.
Sentiu que seu coração se endurecia. Era necessário. E ficou ali, sentada, sentindo
o gelo que se formava em seu peito.
Amava Kit Stratton, apesar de não querer. E, se ele desconfiasse disso, poderia
usá-lo contra ela.
Marina não suportaria tamanho sofrimento. Precisava trancafiar os sentimentos
em seu coração, onde ninguém poderia penetrar para conhecê-los. Se não o fizesse, não
teria saída.
Totalmente absorvida por sua própria linha de pensamentos, a condessa não estava
prestando atenção a ela.
— Ele não vai conseguir — murmurou então, trazendo Marina de volta à realidade.
— Kit Stratton nunca irá concordar em uma aliança forçada. Fugiu da Inglaterra há
cinco anos para evitar casar-se com Emma Fitzwilliam, e ela é linda, rica! Agora, ele
certamente vai se recusar a casar com uma garota sem atrativos, de cabeça oca como
Tilly Blaine. Ainda mais se William exigir essa atitude de sua parte. Kit vai rir na cara
dele.
— Mas a srta. Blaine...
— Bobagem! — a condessa nem deixou Marina continuar. — Pense, menina! Todos
sabem que as amantes de Kit Stratton são mulheres maravilhosas, elegantes,
belíssimas! Diamantes de primeira! E, se Tilly Blaine estivesse na companhia dele,
mesmo que por pouco tempo, seria por insistência dela, não de Kit. Não posso dizer que
esteja surpresa, depois do espetáculo que Tilly deu na casa de sir Hugo. Vai ser
responsável pela sua própria ruína. E por fazer com que William passe por tolo, o que,
de fato, ele é. Aposto que toda a família Blaine será obrigada a mudar-se para o
exterior! — ela declarou, satisfeita com a idéia. — Você e eu teremos nossa vingança,
menina, e a sociedade londrina terá se livrado dessa gente mesquinha!
CAPÍTULO XVII
— Tinha de vê-la, Hugo! — Kit informava ao irmão, inflamado. — Parecia uma leoa
querendo avançar contra mim, com aqueles belos olhos flamejantes, enfurecidos! Foi
uma pena eu ter de acalmar tanta beleza.
Hugo olhou para o irmão com certa estranheza, mas nada disse. Continuou ouvindo-
o, calado, paciente.
— Ela deve ter achado que não tenho um só sentimento em meu peito, mas, afinal,
a idéia de ter alguma coisa com Tilly Blaine pareceu-me tão absurda, tão bizarra! Porém
reconheço que eu não devia ter rido. Foi cruel. Admito que errei, mas...
— Está bem, está bem, Kit. Mas chegou a admitir seu erro à srta. Beaumont?
— Bem... não. Não pude! Emma entrou naquele momento e tornou-se impossível
continuarmos a conversa. E...
— E Emma teve certeza de que alguma coisa, digamos, fora do normal, tinha
acontecido durante a ausência dela — Hugo o interrompeu. — Ela me disse que a srta.
Beaumont parecia estar bastante abalada. E é exatamente por isso que estou aqui, meu
irmão. Sabe muito bem que me sinto responsável pelo que aconteça a essa jovem. Assim,
vim para perguntar-lhe francamente: aproveitou-se dela?
Kit olhou-o em silêncio por instantes. Sua expressão parecia estar levemente
indignada. Por fim, defendeu-se:
— Mas é claro que não! Eu não faria uma coisa dessas! Não à srta. Beaumont!
Segurei as mãos dela, nada mais! E o fiz com o único objetivo de acalmá-la. Ela estava
abalada, sim, mas por causa da srta. Blaine, não por si mesma.
Hugo encarou-o muito sério, assentiu e comentou:
— Ela é uma mulher admirável, Kit.
— E eu não sei disso? — Kit parecia estar abalado agora. Pensava, sabendo que
chegaria à mesma conclusão a que já havia chegado antes. Marina estava em perigo de
ter sua reputação manchada seriamente, mas, ainda assim, parecia mais preocupada com
a outra do que consigo mesma. Nunca encontrara uma mulher assim. E decidiu fazer o
que pudesse para ajudá-la. Seria o mínimo que ela merecia. Teria de descobrir com
precisão onde sua governanta havia estado e o que fizera, mas tinha ficado tão
aborrecido com a traição dela que acabara por demiti-la logo depois da conversa que
tivera com a baronesa. E agora era possível que nunca mais a visse.
O mordomo bateu discretamente na porta e entrou em seguida, trazendo uma
carta sobre uma bandeja de prata.
— Sinto incomodá-lo, senhor — disse ele —, mas esta carta acaba de ser entregue.
E o mensageiro diz ser urgente. Está no hall, esperando por sua resposta.
Kit levantou-se e pegou o envelope selado e o abriu.
— Muito bem — murmurou, enquanto o fazia. — Leve-o para a cozinha. Tocarei a
sineta quando tiver a resposta.
— Pois não, senhor.
Assim que o mordomo se retirou, sir Hugo caminhou até uma das poltronas que
ficavam diante da lareira e sentou-se. Olhava ainda pela porta, por onde o mordomo
saíra em absoluto silêncio, e comentou:
— Seus criados são muito bem treinados.
Kit ergueu os olhos para ele e observou:
—Aqui, talvez. Mas não em todas as minhas casas. — E, voltando a atenção
novamente para a carta, acabou de ler e exclamou: — Meu Deus!
— O que houve?—Hugo se alarmou, levantando-se de imediato.
— Esta carta... É de Katharina, a baronesa. Está me informando que seu marido
descobriu sobre seus casos e que a está ameaçando!
— E o que ela quer com você? Não a avisou para que indicasse ao marido quem é
seu atual amante? Estranho, não?
— Aparentemente, sou a única pessoa que está em condições de ajudá-la. Pede-me
que a encontre, mas...
— Ele olhou mais uma vez para o papel em suas mãos para ter certeza de que não
havia engano no que entendera. — Ela não especifica nem onde nem quando devemos nos
ver. Diz apenas que não ousa ir até a minha casa em Chelsea.
— Mais estranho ainda, me parece.
— A mim também. Nunca me deixei levar por pedidos movidos pela paixão. Mas ela
pede que eu não a decepcione. O que acha que eu deva fazer?
— Por que não tenta apenas ignorar essa carta?
— Não posso. — Kit foi até sua escrivaninha, sentou-se e pegou uma pena, que
molhou na tinta. — Pelo menos por enquanto, vou atendê-la. E, quando ela estipular seus
termos...
— Quando ela estipular seus termos, você não irá ao seu encontro sozinho — sir
Hugo praticamente impôs.
Kit olhou para o irmão e sorriu.
— Ainda está me protegendo, meu irmão? — indagou, em tom de brincadeira.
Hugo devolveu-lhe o sorriso.
— Você costumava dizer que essa era a grande serventia dos irmãos, se bem me
recordo.
Kit não respondeu. Apenas meneou a cabeça e terminou sua carta. Hugo,
conhecendo bem as atitudes do irmão, voltou a acomodar-se na poltrona.
O mordomo voltou quando Kit fechava o envelope. Estranho, ele não tocara a
sineta, avaliou, olhando para seu criado e comentando:
— Está começando a ler pensamentos? Eu ia chamá-lo agora mesmo...
— Não, senhor. Desculpe-me. Lorde Luce encontra-se no hall e pede para que o
receba imediatamente.
— Ah, aí está a explicação! — Kit exclamou, terminando de selar a carta com calma.
Entregou-a, então, ao mordomo e orientou: — Cuide para que esta carta chegue ao seu
destino. E agora... imagino que deva conduzir meu visitante até aqui.
Lorde Luce entrou na sala parecendo estar pronto a entrar numa batalha com seu
pior inimigo. Todos os seus canhões vinham apontados contra Kit, mas vacilou quando viu
que ele não se encontrava sozinho.
— Imagino que conheça meu irmão, sir Hugo Stratton — Kit apresentou, educado.
— Sim, conheço — respondeu o conde, entre os dentes. — No entanto, senhor, meu
assunto não é com ele. Gostaria de lhe falar a sós, se possível.
Hugo, que se levantara para fazer uma mesura ao conde, tornou a sentar-se com
calma deliberação. E Kit, vendo-o reagir assim, disfarçou um sorriso. Sabia que seu
irmão poderia ser tremendamente teimoso quando queria, e, naquele caso, parecia ter
decidido que a visita de lorde Luce necessitava de uma testemunha.
— Tenho plena confiança em meu irmão, senhor — Kit explicou. — Podemos tratar
de qualquer assunto em sua presença. Mas, por favor, queira se sentar. Gostaria de
beber alguma coisa?
O conde não se sentou, sua expressão demonstrava que estava a ponto de explodir.
— Não, mas pode ser educado o suficiente se fizer, agora mesmo, um pedido
formal de casamento para minha afilhada, srta. Mathilda Blaine. E não vou perder meu
tempo dando-lhe motivos para que o faça! Deve conhecer muito bem quais são as razões
desta minha exigência.
Então, era assim que ele queria, Kit avaliou. E, na ausência do pai da garota, o
padrinho vinha exigir-lhe satisfações. Pena Luce não ter dignidade suficiente para
fazer o papel de parente ofendido.
— Acho que está redondamente enganado, senhor — Kit rebateu.—Não dei motivo
algum a srta. Blaine para que ela espere um pedido desse tipo de minha parte.
— Seu demônio mentiroso! — lorde Luce sibilou. — Dois encontros a sós em sua
casa em Chelsea não são motivo suficiente, então!
Sem perder o controle, Kit continuou a conversa:
— Ela lhe disse, pessoalmente, e nesses termos, que esteve lá? — E, vendo que seu
interlocutor vacilava, acrescentou: — Pelo que vejo, não.
— Ela nem precisava fazê-lo! — insistiu o conde. — A própria mãe a acusou! E ela
não negou! Como poderia, não é mesmo?! Foram vistos juntos, droga!
— Posso perguntar quem nos viu juntos?
— Isso não interessa! Toda Londres já está sabendo do caso! E a garota estará
arruinada se o senhor não fizer o que é correto para com ela! E pode ter certeza de que
vou cuidar para que o faça!
Kit levou as mãos às costas e começou a dar passos lentos diante da lareira.
— Que infelicidade — comentou, irônico. — É mesmo uma grande infelicidade não
podermos concordar nesse aspecto.
— O quê?! Ora, seu... seu...
— Cuidado com o que diz, lorde Luce! Não tenho a menor obrigação para com a
srta. Blaine. Pode levar este meu recado a sra. viscondessa, com todo o meu respeito.
Meus respeitos também à sua esposa, é claro. Tenha um bom dia!
Kit caminhou até a porta para abri-la, enquanto Hugo se levantava, educado. E o
conde, por fim, explodiu com cólera:
— Eu juro, em nome de Deus, que o senhor vai pagar por isso! Todas as boas portas
de Londres estarão fechadas à sua presença! — E deixou a sala, resmungando coisas
incompreensíveis.
Kit fechou a porta assim que ele se foi e sacudiu os ombros, como se tivesse se
livrado de um fardo muito pesado.
— Que cena terrível — comentou. — Sinto por você ter sido forçado a presenciá-
la, meu irmão.
Calado, Hugo apenas pensava. Até que avisou:
— Esse sujeito é capaz de fazer-lhe muito mal, Kit. Tenha muito cuidado e se
acautele. O que fará agora? Não acredito que vá permitir que esse palhaço manche seu
nome pela cidade.
— "Nosso" nome, Hugo — Kit o corrigiu. —As ameaças dele foram direcionadas a
nós dois, pode ter certeza. E a Emma também, receio.
— Vou falar com ela, é claro, mas não costumo aceitar ameaças com paciência,
muito menos com passividade.
— Nem eu. E, neste caso, a honra de uma dama está em jogo.
— Fala da srta. Beaumont? — Kit assentiu.
— Não posso desmentir as acusações de Luce sem comprometê-la — analisou,
circunspecto. — E isso eu não farei.
— Tem outra saída?
— Claro que sim. Não vou fazer nada. Não tenho a menor intenção de ser
manipulado, Hugo. Mesmo que tivesse, a srta. Blaine é a última mulher na face da Terra
que eu escolheria para desposar. Que Luce faça o que bem entender, se ousar, é claro.
Ninguém em seu juízo perfeito acreditaria que eu tivesse marcado um encontro, dois,
na verdade, com Tilly Blaine. Todos vão rir dele.
— Essa tática, eu diria, é muito arriscada, meu irmão. E a srta. Blaine poderia ficar
mal falada. Não tem consideração nenhuma para com ela?
— Foi ela mesma quem causou essa confusão toda, Hugo. Ouviu bem o que Luce
disse: ela teve uma chance para negar tudo e não o fez. Acho que deve querer que sua
reputação fique arruinada.
Hugo meneou a cabeça com certa tristeza.
— Parece que quer arriscar sua última chance de arranjar um casamento com
você... — comentou.
— Se é assim, é uma garota extremamente tola. Porque eu seria um demônio de
marido para ela, pode ter certeza.
— Bem, acho que essa afirmação é a primeira sensata que você faz em toda esta
manhã. — Hugo riu. — Bem, já vou indo. Avise-me se Luce mostrar as garras novamente.
Quero saber também no que deu a história da carta que enviou a baronesa. Ah, e não se
esqueça de que Emma o está esperando esta tarde. Sabe que ela não aceita desculpas
quando alguém falta com um compromisso.
Kit assentiu, vendo o irmão sair. Quando a porta se fechou atrás dele, voltou à
cadeira de sua escrivaninha e sentou-se, enfiando os dedos pelos cabelos. Hugo havia
sido notavelmente controlado, concluiu, em especial porque o nome dos Stratton estava
a ponto de ser enxovalhado devido à decisão que Kit acabara de tomar quanto a não se
envolver na tempestade que estava se preparando para cair sobre suas cabeças.
Que situação!, avaliou, respirando fundo. Primeiro Katharina, e depois essa tal
srta. Blaine... Devia estar ficando louco. Nenhuma mulher podia acreditar que pudesse
chantagear um homem e forçá-lo a casar baseando-se em rumores falsos! Que tipo de
casamento uma mulher assim poderia esperar?!
Ela, provavelmente, não pensara em nada. Afinal, muitas mulheres não conseguiam
pensar em nada além de uma cerimônia de casamento e um vestido de noiva... Tilly Blaine
devia ter criado suas próprias fantasias enlouquecidas por estar apaixonada por ele. E
isso apenas por tê-lo visto, pois Kit nunca lhe falara! De fato, sua boa aparência estava
se tornando uma maldição!
Sacudiu a cabeça, tentando colocar os pensamentos em ordem. Hugo dissera, e
com razão, que não reagir, não fazer nada, era uma tática perigosa de encarar as coisas.
Luce não era inteligente o suficiente para manter a boca fechada. E sempre haveria
aqueles que citariam o velho provérbio "Não há fumaça sem fogo". Mesmo admitindo que
Kit jamais se envolveria com uma mulher solteira, muito menos com uma sem atrativos,
haveria sempre uma dúvida pairando no ar. E comentários também. Muitos. Por fim, Kit
acabaria sendo forçado a propor casamento à srta. Blaine.
E teria de se exilar mais uma vez. Isso poderia ser visto pela sociedade como uma
admissão de culpa. E, pior do que isso, teria de deixar Hugo e Emma naquela situação
constrangedora; afinal, sua desgraça acabaria caindo sobre eles também. Se deixasse a
Inglaterra, porém, o escândalo seria esquecido.
Tinha poucas alternativas, e todas elas eram difíceis. Podia ir embora novamente.
Podia também trair a srta. Beaumont... mas jamais o faria.
Marina estremecia a cada passo que dava. Tinha receio de entrar na casa de lady
Stratton depois da conversa que tivera com Kit no dia anterior. Ficara muito
embaraçada quando Emma havia entrado na sala e os vira tão próximos. Tentara
disfarçar seu embaraço, mas lady Stratton não era tola. Devia ter percebido que havia
algo de diferente entre seus visitantes. E fora um grande alívio deixar a casa, por fim.
Marina agora imaginava como Kit poderia ter explicado sua pequena discussão.
Talvez apenas tivesse fingido que nada acontecera. Talvez sua cunhada tivesse sido
discreta e educada demais para perguntar-lhe qualquer coisa.
Não havia como saber. Como não houvera um meio de responder "não" ao convite
de lady Stratton para que fosse até sua casa com urgência. Ela até mesmo mandara sua
carruagem para buscar Marina...
E agora Marina sabia por que estava sendo convidada. O convite chegara em nome
de lady Stratton, mas devia ter sido seu cunhado quem o fizera de fato. Kit Stratton
sabia, tanto quanto seu irmão, que as alegações de lorde Luce sobre Kit e a srta. Blaine
eram totalmente sem fundamento. O conde não tinha base alguma para exigir que Kit se
casasse com sua afilhada, porém Marina era a única pessoa que poderia prová-lo.
Ela respirou fundo ao subir as escadas. E a porta se abriu assim que ergueu a mão
para tocar a campainha. Estava sendo esperada! O mordomo a cumprimentou e Marina
respondeu mecanicamente, seguindo-o depois até a sala particular de lady Stratton.
Estava em absoluto silêncio, mas sua mente era um torvelinho de indagações. O que
poderia dizer a sua anfitriã, que estava sendo tão gentil? E quanto a sir Hugo, que sabia
de toda a verdade, mas se mantinha absolutamente em silêncio? Lady Luce poderia ter
certeza de que Kit não seria forçado a se casar com Tilly Blaine, mas... e se estivesse
enganada?!
Marina ergueu o rosto ao entrar na sala. Tinha sido ensinada a ser honesta sempre
e a ter consideração para com os outros. Na situação em que se encontrava, porém,
essas simples regras de conduta não seriam suficientes, pois não conseguiria salvar uma
parte sem prejudicar a outra. Sentia muito por Tilly Blaine, mas a única maneira de
salvar a reputação da garota seria sacrificar a de Kit. E Marina não se sentia preparada
para fazer tal coisa. Não era uma questão de amor, absolutamente não, pois já fizera o
impossível para enterrar seu amor para sempre em seu coração. Era, sim, uma questão
de honra.
— A srta. Beaumont, senhora — o mordomo anunciou, fechando as portas assim que
saiu.
Lady Stratton levantou-se de sua poltrona e acorreu para dar as mãos a Marina,
numa acolhida carinhosa. Parecia menos tranqüila do que o normal, mas estava sozinha.
Marina pensara, angustiada, que um dos irmãos Stratton estivesse presente.
— Obrigada por ter vindo tão prontamente, minha querida — disse Emma. — A
condessa não colocou nenhum empecilho a sua vinda?
— Não. Ela está... muito ocupada com assuntos domésticos ultimamente. E
prometeu comparecer a um jogo de cartas esta noite. Assim, disse que não vai precisar
de mim por hoje.
— Ótimo. Eu não gostaria de importuná-la de forma alguma. Venha, sente-se. Tire
seu chapéu e fique à vontade. Vou pedir que nos tragam um pouco de chá.
Marina fez como lhe era dito, imaginando o que a aguardava. E não teve de esperar
por muito tempo para saber. A bandeja com o chá veio quase imediatamente e o
mordomo se retirou, impassível como chegara. Mas logo Kit Stratton adentrou a sala,
elegante e jovial como sempre.
— Srta. Beaumont — saudou ele, com uma leve inclinação do corpo.
A garganta de Marina estava tão seca que mal conseguia engolir. Fez apenas uma
breve saudação com a cabeça e manteve-se quieta.
— Srta. Beaumont, por favor, queira me perdoar — interferiu lady Stratton,
corando visivelmente — mas acho que vou ter de deixá-los mais uma vez a sós para ir
falar com meu marido. Parece que ele sempre está precisando de mim em momentos...
inconvenientes... porém, por favor, fiquem à vontade, como se casa fosse sua.
Marina mal teve tempo para responder e Emma já se fora. Estava, assim, mais uma
vez a sós com Kit Stratton. E ele parecia olhá-la com uma expressão acusadora que a
deixava muito embaraçada.
— Creme e açúcar, sr. Stratton? — ela ofereceu, como da outra vez.
— Sim, por favor. Não mudei meus hábitos de ontem para hoje.
Kit não estava disposto a tornar aquela entrevista fácil, Marina avaliou, engolindo
em seco. E não podia reclamar. Ele, provavelmente, queria estrangulá-la pelo que fizera.
Sendo um cavalheiro, porém, iria se restringir a feri-la com palavras.
Entregou-lhe sua xícara com mãos trêmulas, sem sorrir ou falar. O silêncio, denso,
pesado, foi quebrado quando Kit recomeçou a falar:
— Imagino que esteja a par, senhorita, de que lorde Luce veio fazer-me uma visita
hoje. — Kit esperou que ela assentisse para prosseguir: — E sabe dos detalhes do
assunto que ele veio tratar?
Mais uma vez, Marina assentiu. Não podia negar.
— Ótimo. Isso torna nossa conversa bem mais fácil. — Ele bebeu seu chá com
calma, depois depositou a xícara de volta à bandeja e ajeitou-se melhor na cadeira para
que pudesse ficar de frente para Marina. — Preciso ter certeza, srta. Beaumont: não
pretende intervir, de forma alguma, no assunto?
Aquela pergunta mais lhe parecia uma acusação, e Marina baixou a cabeça. Como
Kit poderia pensar que ela permaneceria em silêncio quando ele estava sendo forçado a
se casar sem amor?! Era isso o que pensava a seu respeito? Como ela podia estar
apaixonada por um homem que a considerava tão pouco?! Tornou a erguer a cabeça e
enfrentou o olhar dele, profundo, sério, recusando-se a desviar o seu. Queria provar
que não era covarde, e o faria.
— Sr. Stratton — disse em voz baixa, porém determinada —, posso ser pobre, mas
sou honrada. Não foi possível para mim revelar a verdade a lorde Luce esta manhã. —
Ela pareceu ver um brilho diferente nos olhos ele, porém prosseguiu sem se deixar
abater: — Mas tenho intenção de contar a ele toda a verdade na primeira oportunidade
que aparecer. A condessa, não tenho dúvidas, fará com que esse escândalo acabe
vazando para toda a cidade.
Os olhos de Kit se estreitaram. Sua expressão mudara, parecia irritada agora. E
Marina sentiu vontade de se afastar, temendo-o.
Kit estendeu o braço e agarrou-a pelo pulso com tanta força que chegou a assustá-
la.
— Srta. Beaumont, preciso lhe dizer que é uma grande tola. Vai deixar vazar para
todo o mundo que manteve encontros secretos com o pior cafajeste de Londres? O que
espera alcançar com isso?! Hein? Porque será a sua ruína!
Marina sentia aquelas palavras como adagas perfurando seu corpo inocente e sem
defesa. Mas o ataque não tinha terminado ainda. Kit apertou ainda mais os dedos no
pulso dela, falando por entre os dentes:
— Acha que vai salvar a srta. Blaine da desgraça admitindo o que fez?! Pois saiba
que está chegando tarde, minha menina. Porque ela já anunciou ao mundo que é M.B.
— Não! Ela não poderia tê-lo feito!
— Mas fez. E ouvi isso da boca de seu padrinho esta manhã. Se não acredita, está
praticamente dizendo que chamei o conde de mentiroso.
— Não, eu... eu...
— Pelo menos, me poupará disso. Agora — ele a puxou mais para si —, vai me ouvir,
srta. Beaumont. Já dei minha resposta a lorde Luce. O assunto está decidido, e a
senhorita não vai dizer uma só palavra sobre a sua participação nessa história, nem para
a condessa nem para ninguém mais. Sua versão não mudaria nada, apenas faria com que
pensassem que não passa de mais uma das amantes de Kit Stratton.
— Mas... — Marina tentou soltar-se, porém não conseguiu.
Com a mão livre, ele tocou-lhe os lábios, pedindo-lhe silêncio.
— Fique quieta, Marina. E me ouça. Afinal, nunca faz o que lhe pedem?
Aquele breve, leve toque, mudou tudo. Marina não conseguia mais pronunciar uma
palavra sequer. Embora ele ainda a segurasse com força com uma das mãos, seu dedo
estava sobre seus lábios com uma delicadeza inacreditável.
E assim, próximos, olhando-se, o tempo pareceu parar. Kit afrouxou os dedos que a
seguravam. E os desviou de seus lábios para afastar alguns fios de cabelos que estavam
invadindo-lhe o rosto. Marina cerrou os olhos, saboreando a delícia daquele toque tão
suave.
— Vai retornar a Yorkshire em breve — disse ele. — Dentro de uma semana, mais
ou menos. Vão dizer que não precisa mais ficar empregada como dama de companhia da
condessa, já que seu irmão receberá um bom lugar para morar. E isso será verdade,
embora, no momento, não possa ser Stratton Magna ainda. Eu não permitiria. Quero
dizer... isso poderia provocar comentários piores, já que a senhorita estaria vivendo em
uma das minhas propriedades.
— "Sua" propriedade?! Então, é sua a casa em que meu irmão poderá viver?!
— Vou cuidar para que seja outra de minhas casas.
Marina estava confusa, mas, ao mesmo tempo, irritada. Afinal, Kit estava
calmamente arranjando sua vida e a de sua família sem permitir que ela dissesse uma
única palavra! E era óbvio que ele estava determinado a permitir ser chantageado,
forçado naquele casamento absurdo com Tilly Blaine! Estúpido, arrogante!
— Entendo — disse ela por fim, irritada. — Será que posso falar agora? Vai
permitir? Oh, quanta gentileza sua, sr. Stratton! — Marina levantou-se, puxando com
toda a força a mão que ele segurava, chegando a dar um gemido de dor. — Então, vai me
permitir também dizer-lhe que não tenho a menor intenção de acatar ordens suas! Tilly
Blaine é uma tola, e desonesta também, se pensa que poderá agarrar um marido
contando mentiras. Mas eu vou dizer toda a verdade para quem quiser ouvir. E se essa
verdade manchar minha reputação, bem... sou eu a única culpada por isso. Afinal, tudo
que aconteceu foi provocado por mim mesma. E estou mais do que preparada para
suportar as consequências dos meus atos. Além disso...
Kit não deu chance a ela para que continuasse. Levantou-se rapidamente e,
pegando-a pelos ombros, sacudiu-a. Marina arregalou os olhos, surpresa, chocada. De
repente, encontrava-se nos braços dele, e os olhos de Kit estavam mergulhados
profundamente nos seus.
— Marina, você é, sem dúvida, a mulher mais corajosa e mais irritante que já
conheci — ele sussurrou antes de beijá-la apaixonadamente.
Foi um beijo poderoso, forte, cuja intenção era mostrar a ela quanto era frágil,
quanto não podia opor-se a Kit Stratton.
Marina sabia, entendia. Mesmo assim, ainda sentia vontade de avançar contra ele.
Mas o toque de seus lábios parecia renovar tudo de bom que povoara seus sonhos desde
a primeira vez que o vira. E seu corpo pedia pelo dele, a despeito de tudo. Sentia-se uma
grande tola e por isso lutou por afastar-se.
— Não! — exclamou. E, vendo que Kit erguia a mão para tocar-lhe os cabelos,
repetiu com mais ênfase: — Não! Não serei uma simples peça em seus jogos! Mesmo uma
simples dama de companhia tem consciência, senhor, e pretendo seguir o que a minha
me orienta a fazer. Tenha um bom dia!
Marina agarrou seu chapéu e saiu depressa da sala, sem dar a Kit uma
oportunidade para dizer qualquer outra coisa.
E, talvez pela primeira vez em toda sua vida, ele ficou completamente perdido. A
princípio, não conseguiu pensar em mais nada a não ser na atitude altiva, orgulhosa, de
Marina ao enfrentá-lo. Era como se tivesse se aproveitado dela... outra vez. Era
estranho, mas, no que se referia a Marina Beaumont, o imenso poder que Kit sempre
tivera sobre as mulheres parecia desaparecer. Fora rígido, tentara restringir-lhe os
atos, ditar-lhe o que deveria fazer, sacudira-a para tentar fazê-la parar com aquela
teimosia toda, e depois a beijara como se quisesse puni-la. Mas, puni-la pelo quê? Por
ter ousado enfrentá-lo? Por estar se oferecendo ao sacrifício para salvá-lo de um
casamento sem amor com aquela odiosa srta. Blaine?
Precisava fazer alguma coisa, agir rápido! Caso contrário, Marina estaria
arruinada! Ela era uma em um milhão, reconhecia. E seria lançada às chamas da vergonha
por tentar defendê-lo. Precisava encontrar um modo de detê-la. Mas apenas o próprio
silêncio de Marina poderia salvá-la. E ela não continuaria em silêncio enquanto
acreditasse que poderia impedi-lo de casar-se com Tilly Blaine.
Kit deixou-se cair numa poltrona, pensativo. Precisava ser frio, pensar com lógica,
analisava. E levou algum tempo até que uma boa alternativa aparecesse em sua mente.
Era uma alternativa terrível, quase fora de questão, porém a única que poderia tentar:
casamento.
A sociedade exigia que ele, como cavalheiro, propusesse casamento a Tilly Blaine.
E, assim que seu provável casamento se tornasse público, nada mais poderia impedi-lo.
Nada. Marina teria de entender que sua confissão, então, não teria utilidade alguma.
E ela teria de aceitar o fato de que seria obrigada a ficar calada. Isso, se seu
casamento fosse anunciado. Meneou a cabeça, desesperado. Uma semana antes, não
acreditaria ser possível estar envolvido numa situação assim. Ele, Kit Stratton, o
canalha que jurara jamais ligar-se definitivamente a mulher alguma, não mais se
importava se fosse forçado a se casar ou não.
Olhou para a escrivaninha de Emma, num dos cantos da sala, e seguiu até lá. Iria
engolir seu orgulho e exigir... não, pedir... uma entrevista urgente com lorde Luce. E,
nessa entrevista, ofereceria casamento a srta. Tilly Blaine.
CAPÍTULO XVIII
Marina apressou-se, escada abaixo, para atender ao chamado urgente de lady
Luce. Lorde Luce viera fazer outra visita à sua mãe, provavelmente para falar-lhe sobre
a visita que fizera a Kit Stratton. E ainda podia haver tempo suficiente para evitar o
anúncio do noivado.
O conde olhou para Marina com desagrado quando ela entrou na sala de estar, mas,
pela primeira vez, nada disse contra sua presença. Talvez tivesse entendido, por fim,
que qualquer protesto seu serviria apenas para inflamar ainda mais o temperamento de
sua mãe.
— Então, eu estava certa — dizia a condessa, com satisfação, sem prestar atenção
à chegada de Marina.
— Não exatamente, minha mãe — esclareceu William. — É verdade que Kit
Stratton agiu como a senhora disse que faria quando o visitei ontem; simplesmente se
recusou a reconhecer suas obrigações para com a minha afilhada. Chegou a me desafiar,
imagine! Aquele presunçoso! Mas acabou mudando de idéia.
A condessa estava a cada instante mais contente.
E Marina mal podia acreditar no que ouvia. Ao que parecia, Kit voltara atrás... Como
pudera fazer tal coisa?! Iria se casar com Tilly Blaine! Devia haver algum mal-entendido
em tudo aquilo, analisava, começando a se desesperar.
— Depois de ter conversado sobre o assunto com lady Blaine — continuou o conde
—, decidi dar ao rapaz um certo tempo para refletir, antes que eu tomasse alguma
atitude mais séria.
— Sei... O que deve ter acontecido é que lady Blaine lhe disse para aguardar e não
fazer nada impensado, isso sim! — comentou a condessa, irônica. — Ela deve saber que
de nada vai adiantar ficar alardeando a ruína da reputação da filha. Sabe muito bem que
os rumores vão ficar mais e mais intensos com o passar do tempo.
— Mas eu estava certo, minha mãe! — William insistiu. — Porque recebi uma carta
de Kit Stratton pedindo o favor de uma entrevista quando for mais conveniente para
mim. — Ele fazia sua revelação cheio de orgulho. — E vai me visitar esta manhã ainda.
Não tenho dúvida alguma de que irá propor casamento a Tilly. E lady Blaine ficou
encantada, como deve imaginar. Quando a deixei, antes de vir para cá, estava
escrevendo para o marido a fim de lhe contar a novidade a respeito do casamento e
falar-lhe de como se sente bem por ter um intermediário como eu. Ela mesma me disse
que nenhum padrinho poderia ter feito melhor por sua afilhada. É claro que eu sempre
confiei em minhas habilidades diplomáticas, mas...
— Oh, poupe-me dessas baboseiras! Sua única grande habilidade é falar bem de si
mesmo! Acha que os Blaine vão aplaudir sua atitude? Pois eu lhe digo que está
redondamente enganado!
— Com licença, senhora — Marina interferiu, sem conseguir suportar mais a espera
para poder falar o que lhe afligia o coração. Aquela charada estúpida tinha de parar ali.
— Agora, não, Marina — a condessa recusou-se a ouvir.
— Mas, senhora, é muito importante que me ouça! O sr. Stratton foi vítima de um
mal-entendido. A srta. Blaine jamais esteve a sós com ele.
Houve um silêncio tenso, surpreso, durante o qual os olhos de lorde Luce voltaram-
se, atônitos, para Marina. A condessa, por sua vez, apenas esperava que ela continuasse
com o que pretendia dizer. Quando, por fim, o silêncio começou a se estender por mais
tempo do que achou suficiente, lady Luce indagou;
— Como foi que disse, menina?
— A srta. Blaine não é M.B. Eu sou.
— Impossível...
— Cale a boca, William! — exclamou a condessa impedindo que o filho continuasse a
expressar sua surpresa. — Prossiga, Marina. Explique o que quer dizer.
— É a verdade, senhora. Fui eu quem visitou o sr. Stratton em sua casa, em
Chelsea. E... por duas vezes.
— Eu a avisei para mandar essa garota detestável de volta a Yorkshire, minha mãe!
— William interferiu, furioso. — Deveria ter...
— Eu já lhe disse para ficar calado, William! Não tenho a menor dúvida de que
Marina teve muito bons motivos para fazer o que fez!
Marina percebia que teria de explicar exatamente o que fizera e por quê. E sua
expressão de angústia devia ser bastante eloquente, pois a condessa apressou-se em
acrescentar:
— Falaremos sobre esse assunto mais tarde, menina. Por enquanto, vamos nos
concentrar no que meu filho acaba de dizer. — E, voltando-se para ele, ironizou: —
Estava satisfeito consigo mesmo, não? Bem, não pode mais esperar casar Tilly Blaine.
Marina percebia que sua patroa continuava satisfeita, porém não conseguia
entender o porquê.
— Bobagem — respondeu o conde. — Não acredito que essa moça esteja dizendo a
verdade. É impossível! Ademais, minha mãe, Tilly admitiu que esteve com Stratton.
Está, então, sugerindo que ela mentiu? A filha de uma viscondessa? Que mentiu para a
própria mãe?
— Diga-me uma coisa, William: o quê, exatamente, essa sua preciosa Tilly disse?
O conde pareceu pego de surpresa. Pensou por alguns instantes, depois respondeu:
— Eu não estava presente, é claro... mas lady Blaine disse que pressionou a menina
dizendo que ela era M.B., e que Tilly não negou. Portanto é verdade.
— Mas quanta bobagem! Tilly Blaine tem o cérebro menor do que o de uma pulga!
Além, é claro, de possuir o rosto de um cavalo. Aposto que ela não disse uma única
palavra. Provavelmente ficou parada, olhando para a mãe com sua constante cara de
idiota, parecendo culpada, já que devia estar de boca aberta diante da simples idéia de
ficar a sós com Kit Stratton. Não foi?
William respirou fundo e deu alguns passos pela sala enquanto a condessa lançava
um olhar cúmplice a Marina.
Quando ele parou e voltou-se, abrupto, disse, irritado:
— Agora não interessa mais se Tilly esteve ou não com Kit Stratton! O que importa
é que ele está pronto para propor-lhe casamento. A carta que me mandou não deixa
dúvidas quanto a isso. — Ele bateu no bolso em que guardava a carta. — E jamais
teremos uma oferta melhor para Tilly. Afinal, ela já passou da idade de casar. Quanto
ao resto... bem, não vou deixar passar uma oportunidade dessas. O pai dela ficará
satisfeito por eu lhe ter arranjado um genro rico.
Se não tivesse ouvido aquelas palavras com seus próprios ouvidos, Marina não
conseguiria acreditar que um cavalheiro pudesse ser tão maquiavélico. A condessa não
tentou mascarar seu ultraje.
— Você não vale nada mesmo, William! — acusou. — Seu único interesse no
momento é alardear a vitória que terá sobre Kit Stratton. Pois eu lhe aviso que não
permitirei que o faça. Kit Stratton pode ser um canalha, porém vale dez de você!
— Mas... a senhora detesta Kit Stratton, mãe!
O conde acabara de colocar em palavras o que Marina estava pensando. Por que a
condessa estaria tomando o partido de Kit contra seu próprio filho?! Mesmo
desprezando-o tanto, ele ainda era seu sangue! E a resposta que deu a ele foi ainda pior:
— Não o detesto mais do que a você! E à família do homem que foi seu pai!
— O quê? Mas meu pai a deixou bem, com dinheiro, propriedades!
— Seu pai o rejeitou e a mim também. Será que nunca notou quanto "não" se
parece com as pessoas desta família?! — Ela meneou a cabeça. — Não, suponho que não.
Uma mente normal não é o forte dos Blaine.
O conde entreabriu os lábios, pasmo. E deixou-se cair na cadeira mais próxima.
— Não vou permitir que essa família amaldiçoada triunfe novamente sobre mim —
prosseguiu lady Luce, muito séria. — Mesmo se eu tiver de ficar ao lado de Kit
Stratton. E aviso a você, William: se persistir em tentar forçar esse casamento, vou
gritar aos quatro ventos que seu pai era o falecido visconde Blaine!
— A senhora... a senhora apenas trará desgraça sobre si mesma — William
conseguiu murmurar, apesar de estar muito chocado.
— E o que isso me importa? Sou uma mulher velha agora! Todos que importavam
para mim, meu marido, nosso filho, estão mortos há muito tempo. Por que eu me
importaria com o que possam dizer sobre mim?
— Mas ainda sou seu filho também — o conde rebateu com surpreendente
dignidade. — E meus filhos são seus netos. Vai arruinar a vida deles por causa da sua
vingancinha pessoal.
— Vingancinha? Seu pai, seu verdadeiro pai, me seduziu e depois me jogou na
sarjeta! Minha família estava a ponto de me deserdar e eu poderia ter morrido, não
fosse por lorde Luce. Ele se casou comigo e salvou minha reputação. E quando nosso
querido filho foi morto na índia, e meu marido faleceu pouco depois, lorde Blaine, seu
pai, veio ainda vangloriar-se diante do meu desespero. Disse que seu irmão era um
fraco, pois a família de onde viera era fraca. Disse que eu deveria ficar feliz por um
verdadeiro homem ter sido seu pai! — Ela o encarava com raiva. — Você não é meu filho.
Olhe bem para você, com seu jeito arrogante e infantil ao mesmo tempo! E seus
inúmeros filhos também! É um Blaine, com certeza!
— Não, minha mãe. Pela lei, sou o conde Luce por direito!
Ela quase rosnou.
— Esse título deveria ter sido dado a Roland. Ele era o único e verdadeiro Luce.
— Mas meu irmão está morto, mãe. E nenhuma vingança de sua parte o trará de
volta!
— Não, mas os Blaine vão sofrer como eu sofri! E olhe bem o que estou dizendo:
falo a sério, William! Se forçar Kit Stratton a esse casamento absurdo com aquela
idiota, sua verdadeira sobrinha, eu vou denunciar você no altar, se for necessário!
O conde se levantou e, encarando a mãe com olhos injetados, assentiu muito de
leve.
— Pense muito bem antes de fazer qualquer coisa de que venha a se arrepender,
minha mãe — murmurou em tom de ameaça. — Lembre-se de que todos a conhecem
como uma mulher que foge ao normal, às convenções. Poderão imaginar que está
começando a ficar louca.
— Bobagem!
— E nada que diga poderá influenciar lady Blaine, seja como for. Por que acha que
ela vai se importar se a senhora teve um caso com seu sogro? Ele já morreu há tanto
tempo! Enquanto Tilly e a ameaça de uma desgraça iminente estão muito mais vivas em
sua mente. Não, minha mãe, sua pequena chantagem não vai adiantar nada. — Ele se
inclinou numa saudação fria. — Tenha um bom dia, "mãe". — E deixou a sala.
Marina, calada, pensava no que acabara de ouvir e ainda não conseguia acreditar.
Aquilo explicava muitas coisas, mas era como... o enredo de um romance gótico. Essas
coisas não aconteciam na vida real, aconteciam?, indagava-se.
A condessa olhou-a com certo arrependimento no olhar.
— Está chocada, menina? — perguntou com voz suave. Falava de maneira muito
diferente de seu jeito sempre exigente. — Imagino que sua avó tenha lhe contado
muitas histórias sobre sua família e as coisas terríveis que são capazes de fazer. Os
homens da família Blaine sempre foram cruéis com as mulheres. Não com suas esposas,
é claro. E as mulheres dessa família, tanto as esposas quanto as filhas, bem, não podem
ser culpadas de nada quanto a esse aspecto. Talvez seja por isso que sua avó foi
excluída... pois ela desafiou o pai e o irmão. Eles jamais poderiam tolerar tal
comportamento. Jamais.
— Desculpe-me por perguntar, senhora, mas é por isso que me deixou ficar em sua
companhia? Por causa do que os Blaine fizeram contra a minha família? — Lady Luce
sorriu de leve.
— Os Blaine já causaram muito mal, menina. Tanto para a sua quanto para a minha
família. Eu não podia permitir que William tomasse uma atitude semelhante à que o pai
tomou. Ele já é um grande tolo, mas quer ser um tirano tolo, o que é imperdoável. E
seria terrível com as mulheres também, se tivesse dinheiro e beleza para isso.
— Mas ele é seu filho, senhora...
— Eu sei, mas nunca vi nada de meu nele. Esse idiota é um grande covarde, jamais
enfrenta uma boa briga.
— Não me pareceu assim desta vez, senhora. Ele... me deu a impressão de estar
bastante determinado a prejudicá-la, se for preciso. — A condessa deu de ombros.
— Isso é porque ele acha que está seguro. E, desta vez, receio que ele possa estar,
sim. Os Blaine até podem vencer novamente. — As mãos dela, enrugadas e frágeis,
estavam fechadas em punhos.
— Senhora... — Marina murmurou, insegura. — Eu... acho que devo deixar Londres.
— Por quê? Eu preciso de você aqui!
— Mas lorde Luce poderá contar a lady Blaine sobre o que eu disse! Sobre o que
fiz! E ela despreza minha família! Vai encontrar um modo de rotular-me como amante de
Kit Stratton, tenho certeza! Mas eu lhe juro, senhora, não fiz nada de errado! Não sou
amante dele! Não iria querer uma dama de companhia falada por todos, iria, senhora?
Devo partir agora, antes que os rumores comecem. — E também antes que o casamento
de Kit fosse anunciado, Marina acrescentou apenas em seus pensamentos. Se ficasse
claro para todos que ela era, de fato, a mulher que estivera com ele, sentia que não
conseguiria esconder seus sentimentos por muito mais tempo.
— Não, não, não! — insistiu a condessa, firme. — Você vai ficar aqui! Lady Blaine
não poderá acusá-la antes de desistir de suas esperanças quanto a forçar um casamento
de Stratton com sua filha.
Porém Marina sabia que lady Luce não estava com a razão agora. Lady Blaine não
precisava dizer que Marina era M.B., teria apenas de dizer que Marina permitira-se ser
seduzida por Kit. E os fofoqueiros ficariam satisfeitos em poder espalhar tal escândalo,
ainda mais vindo ele de uma fonte tão irrepreensível.
— Olhe aqui, menina — continuou lady Luce, depois de ter pensado mais um pouco
—, acho que a ameaça que fiz a William poderá segurar essa mulher por algum tempo.
William está muito seguro de si mesmo. Os Blaine não gostariam que se soubesse que o
visconde era dado a seduzir mocinhas inocentes e depois abandoná-las grávidas.
Acredite no que digo, Marina: não vou permitir que eles vençam outra vez. Estão todos
convidados para a minha festa esta noite, não estão? Pois bem. Acho que uma conversa
em particular será necessária e interessante... — E lady Luce sorriu com aquele seu
costumeiro ar de malícia que acabava de voltar-lhe ao rosto.—E agora — disse em tom
amistoso —, talvez queira me contar tudo sobre a verdadeira M.B. e sua ligação com
aquele jovem cafajeste.
Marina olhou-se no espelho de cima da cômoda. Ainda se sentia muito agitada. Não
fosse pela ajuda da sra. Gibson, não teria sequer conseguido abotoar seu vestido, muito
menos feito o penteado.
Estava pálida, reconhecia, apesar do tom alegre no rosa de seu vestido. E não
conseguia olhar para a sua imagem refletida sem se sentir aterrorizada. Estava prestes
a ser exposta à sociedade. E teria de permanecer quieta, apenas observando enquanto o
homem a quem amava iria se aventurar em um casamento hediondo com a herdeira de
uma família vil, inescrupulosa, cruel. E nada havia que pudesse fazer para evitar tudo
isso.
Saiu do quarto e encaminhou-se, pelo corredor, até o topo da escada, a qual desceu
com cuidado, erguendo a parte da frente do vestido. Tinha de lembrar-se de manter a
altivez, de ficar com a cabeça erguida e as costas eretas. A condessa lhe dissera que
deveria reunir-se a ela e a seus convidados no salão do piso térreo. Era ali que o conde
havia falado com ela no dia em que chegara e se apresentara para seu emprego.
Também fora ali que ele quisera demiti-la. Era estranho, mas tais acontecimentos
pareciam-lhe, agora, ter se passado havia muito, muito tempo. Numa época em que ela
ainda não aprendera a amar Kit Stratton.
Tentou não pensar nele. De nada adiantava, afinal.
Mas bastava ouvir-lhe o nome para que seu coração disparasse, sem controle, e sua
pele se arrepiasse na antecipação do toque daquelas magníficas mãos.
Talvez nunca mais o visse, pensava, entristecida. Apesar de tudo que a condessa
lhe dissera, Marina sentia que seria banida de volta a Yorkshire em breve. No entanto
queria muito ter a oportunidade de lançar mais um olhar, por mais furtivo e rápido que
fosse, a Kit. E, se possível, sentir o toque de seus dedos firmes.
Tola, dizia-se; como podia pensar em tal coisa?! Tentara salvá-lo e falhara. A
conversa que estava prestes a presenciar na sala iria prová-lo.
Tibbs encontrava-se parado ao lado das portas duplas, como se montasse guarda.
Quando a viu, saudou-a com um assentimento e abriu a porta para que ela passasse.
— A srta. Beaumont — anunciou a condessa assim que a viu chegando. — Muito
bem, então. Podemos começar nossa conversa.
— Não vejo por que eu tenha de suportar a presença de uma mulher dessas —
protestou lady Blaine, olhando para lorde Luce, em busca de apoio. — Se me der
licença...
—Não, não lhe dou licença alguma! — rebateu lady Luce, fazendo com que lady
Blaine tornasse a se acomodar, à espera do que iria acontecer. — Quero lembrá-la,
senhora, de que é uma convidada em minha casa e aqui sou eu quem decide quem fica e
quem sai.
Marina estava extremamente tensa. Tentava esconder as mãos fechadas nas
dobras do vestido, esperando que aquela conversa terrível acabasse logo. Os convidados
de lady Luce estavam chegando e não poderiam ficar ali, na sala, sem dar-lhes a atenção
devida. Se pudesse fazer alguma coisa!
— Acredito, senhora — continuou a condessa com firmeza —, que William já lhe
tenha dito o motivo desta nossa reunião aqui.
Lady Blaine ergueu a cabeça, olhando com desdém para sua interlocutora. E fez um
breve assentimento, apenas para constar que sabia do que se tratava.
— Muito bem. Então, vamos à verdade — prosseguiu lady Luce, sempre muito
direta. — A senhora e sua família pretendem usar métodos inescrupulosos para
conseguir arranjar um marido rico para sua filha. E não precisa que eu lhe diga quanto
tal atitude é vergonhosa! Afinal, sua filha é um caso perdido. Tão culpada dessa
situação quanto a senhora mesma.
Lady Blaine arregalou os olhos diante de tais palavras.
— Como ousa dizer tal coisa?! Minha filha é inocente! Nada fez de errado! Ela e
eu...
— Sua filha permitiu que todos vissem seu comportamento de absoluta paixão por
Kit Stratton na recepção em casa de lady Stratton! Não achei aquilo nada inocente.
— Mas é claro que foi inocente! — A viscondessa começava a se irritar
profundamente. — Com aquela aparência incrível, ele se afigurou um herói para Tilly, o
tipo de homem que aparece nos poemas que ela mais adora ler! Minha filha estava
sonhando acordada, nada mais!
— Talvez devesse levá-la para fora do país, então, para mostrar-lhe esses lugares
maravilhosos e idílicos com os quais ela sonha, em vez de forçá-la a se casar.
— O futuro marido pode muito bem mostrar esses lugares a ela — replicou lady
Blaine. — Assim que se casarem.
A condessa assentiu para si mesma.
— Está determinada a levar isso até o fim, então, viscondessa — comentou. —
Muito bem. Também eu estou. E, se realmente insistir nesse casamento, anunciarei ao
mundo todo que seu querido amigo, meu filho William, é um filho ilegítimo do falecido
visconde. Assim sendo, ele é, de fato, irmão mais velho de seu marido.
— "Meio-irmão" — corrigiu a viscondessa, sem se abalar.
Houve alguns segundos de silêncio, nos quais lady Luce esperou que lady Blaine
acrescentasse alguma coisa ao que dissera. Como isso não aconteceu, indagou:
— Não tem mais nada a dizer, então?
A viscondessa olhou mais uma vez para o conde, e acrescentou, meio a
contragosto:
— Todo mundo sabia que meu sogro tinha tido filhos fora do casamento. Se está
disposta a colocar-se na lista das amantes que ele teve, senhora, pode fazê-lo. Isso em
nada afetará minha família, muito menos nossas decisões. E agora, se me permite, eu
gostaria do me juntar aos outros convidados. Vim porque me disseram que haveria um
bom jogo de faraó esta noite em sua casa e estou muito inclinada a jogar para ganhar.
— Ela se levantou, inclinou a cabeça numa leve saudação e encaminhou-se para a porta.
Lorde Luce fez menção de imitá-la, mas sua mãe o impediu:
— Um momento, William. Parece que Kit Stratton fez seu pedido de casamento a
srta. Blaine...
— Sim. Esta tarde.
— E esse pedido foi aceito...
— Claro. Mas nada será anunciado até que o visconde retorne de sua viagem,
naturalmente. Esperamos que esteja em Londres muito em breve. Lady Blaine recebeu
uma carta dele esta tarde.
— Muita sorte dela, devo dizer.
William não entendeu direito o comentário. Limitou-se a fazer uma breve mesura
diante da mãe, olhar com ironia para Marina e sair em silêncio da sala.
— Senhora... — Marina começou, tocando o braço de sua patroa.
Lady Luce ergueu o rosto muito sério para ela, e sua expressão demonstrava que
se sentia derrotada.
— Senhora, tenho uma idéia — Marina prosseguiu. — No outro dia, a senhora disse
que... bem, a senhora me fez entender que lady Blaine rouba no jogo. Tem certeza
disso?
Os velhos olhos da condessa brilharam.
— Certeza absoluta, menina.
— Então... acho que ainda podemos derrotá-los, se... se for isso o que realmente
quer.
— Claro, é o que quero, mas... explique-se, sim?
— Bem, terei de pedir-lhe que confie em mim, senhora, e que siga minhas atitudes,
mesmo que elas lhe pareçam estranhas e fora de propósito. Não sei ainda exatamente o
que terei de fazer, mas vou precisar muito da sua ajuda. Poderei explicar-lhe melhor
mais tarde, lá em cima.
A condessa levantou-se e começou a encaminhar-se para a porta. Afinal, seus
convidados poderiam começar a indagar-se por que ela ainda não aparecera. Voltou-se
antes de tocar na maçaneta.
— Vai precisar da minha ajuda? — estranhou.
— Sim, senhora. Lady Blaine jogará faraó esta noite e, com a sua ajuda, eu também
vou.
— Boa noite, senhorita!
— Sr. Stratton!—Marina sentiu-se absolutamente surpresa. — Mas... o que está
fazendo na casa de lady Luce?!
Ele tentou pegar-lhe a mão, porém Marina escondeu-a nas pregas do vestido; não
ousava deixá-lo tocá-la agora. Não ousava sequer pensar nele. Precisava apenas manter-
se atenta ao que estava prestes a fazer.
Kit olhava-a, parecendo não entender sua atitude.
— Por que me pergunta, srta. Beaumont? Está em absoluta segurança, como sabe.
E... fui convidado.
Ela assentiu, ainda tensa.
— Sinto muito, senhor.
— Meu irmão e sua esposa também estão aqui, parece que a condessa decidiu
oferecer um armistício aos Stratton... Embora em não tenha ainda entendido por quê.
Marina imaginava que ele entendia perfeitamente, sim. Mas, como gostava de jogar
suas iscas por toda parte, para divertir-se, em especial com ela, estava fingindo
inocência.
— Bem, se me der licença, senhor... Estão a minha espera na mesa de faraó. — E
ela se voltou para seguir até lá.
— Mas que interessante! — Kit comentou, fazendo-a parar. Alcançou-a, segurou-a
pelo braço e a fez tomar o seu. — Eu também estava a caminho dessa mesma mesa.
Podemos ir juntos, então.
— Não, eu...
Mas ele estava com a mão livre sobre a dela, na dobra de seu braço, parecendo não
ter intenção de soltá-la. E, com voz baixa, acariciante, disse:
— Marina, você é irritante, sabia? E muito, muito linda também.
Ela prendeu a respiração. Vinda de um cafajeste contumaz, aquela afirmação tinha
o sabor de uma mentira. Porém Kit não a deixou protestar, continuando, firme:
— E, desta vez, minha querida, vai fazer como eu disser. Agora, vamos.
Determinado, Kit se encaminhou para a sala de jogos, levando-a consigo. Marina
não sabia como reagir. Mesmo porque o calor do corpo dele parecia estar se espalhando
pelo seu por conta daquele breve contato entre suas mãos. E ela sentia esse calor
caminhar por suas veias, aquecê-la, chegar-lhe ao coração... Nem mesmo uma bebida
forte poderia ter um efeito tão intenso, imaginou. E não conseguiria livrar-se dessa
embriaguez. Nunca mais. Afinal, Kit lhe dissera que ela era linda...
Kit sabia perfeitamente bem que não devia ter feito aquilo. E estava dizendo isso a
si mesmo enquanto segurava entre os seus os frágeis dedos de Marina. Aquela poderia
ser sua última oportunidade de segurar aquela mão tão suave. Logo, ela estaria fora de
sua vida para sempre.
Cuidaria para que Marina estivesse bem, para que nada de mal lhe acontecesse, que
vivesse com conforto, mas... longe da sua presença. Porque não conseguiria manter uma
farsa por muito tempo se Marina ainda estivesse vivendo por perto.
Amava-a. Mais do que jamais pensara ser possível. Hugo estivera certo o tempo
todo. Aliás, sempre estava, em qualquer assunto. Era sensato e prudente, qualidades
que Kit parecia não ter. Mais uma vez seu irmão tinha razão. Afinal, o grande cafajeste
de Londres, que não se importava com mulher alguma, acabara apaixonando-se pela
garota mais corajosa e exasperante, mas também mais adorável que já passara por sua
vida. No entanto não podia casar-se com ela. Se, ao menos, tudo tivesse sido diferente!,
lastimava-se. Se Marina fosse...
Não, não adiantava nada ter tais fantasias. Era loucura. Não poderia jamais casar
com ela. Ainda mais com aquele conde sem escrúpulos acusando-o abertamente de ter
seduzido sua afilhada. Se tentasse se casar com Marina, esse casamento faria dela uma
pessoa indesejável na sociedade. Seria rotulada de rameira ou coisa ainda pior. Um
homem podia aprender a conviver com o exílio, com a humilhação pública, mas uma
mulher, em especial uma dama, não.
Assim, ele estava comprometido com Tilly Blaine. Uma garota sem cérebro que
vivia num mundo de poesia e faz-de-conta. Nunca pensara nela, nem por um segundo!
Jamais! Mas, agora, ou quando o pai dela retornasse de sua viagem, seria obrigado a
freqüentar festas com ela, dançar com ela, acompanhá-la sempre e fazer as vezes do
noivo feliz e ansioso. Seria necessário aplicar todo o seu autocontrole para conseguir
desempenhar esse papel, mas o faria. E o faria desde que Marina Beaumont estivesse
longe de sua vida, protegida, segura.
Olhou para Marina por alguns instantes. E notou que ela evitava seu olhar. Mas
podia sentir-lhe o tremor dos dedos e a ligeira cor mais viva em suas faces. Sim, ela
sabia! Devia saber.
— Oh, boa noite, Kit! — Ao som da voz conhecida, ele se voltou, mas louco de
vontade de proferir todos os impropérios de que pudesse se lembrar no momento. Seus
músculos estavam tensos, rígidos, prontos para enfrentar o conflito que logo se daria.
— Suponho que esta deva ser... a dama de companhia da condessa... não? Poderia dar-
nos licença por alguns segundos, minha cara? — A baronesa Katharina colocou sua mão,
de forma possessiva, sobre o braço de Kit.
Ele gostaria de poder sacudi-lo, para livrar-se daquele toque que agora lhe era
repugnante, dizer-lhe uma série de verdades, colocá-la no seu lugar, repreendê-la por
ter sido rude com Marina, mas era tarde demais. Marina já se afastara entre os
convidados e desaparecera no salão, sem dizer uma só palavra. Procurou detectá-la
entre os convivas e percebeu-a junto à dona da casa. As duas conversavam em voz
baixa, como conspirando.
— Ela é o melhor que consegue arranjar agora, Kit? — perguntou a baronesa, cheia
de desprezo. — Imaginei que...
— Não me interessa o que imaginou — ele a interrompeu, grosseiro. — O que
deseja? Vim para jogar cartas, não para encontrá-la.
— Bem, não posso dizer-lhe agora o que desejo — ela murmurou, tentando agir
como se não estivessem falando nada sério. E, com um breve e discreto gesto, apontou
para o marido, que conversava com um cavalheiro ao pé da escadaria. — Mais tarde,
talvez. Vou pensar em uma forma de podermos ficar a sós. — E afastou-se com
elegância. Kit voltou-se para ver melhor a alta figura do barão. Ele estava em forma,
apesar dos cabelos já grisalhos. E o uniforme que usava, de gala, em referência ao seu
posto como diplomata, ressaltava seu porte. Passou por Kit com um breve olhar. Kit,
consciente do humor daquela situação, curvou-se muito de leve, numa saudação
elegante. Sempre achara que maridos enganados mereciam um mínimo de consideração,
mesmo que fosse apenas em eventos sociais como aquele.
E, como nem a baronesa nem seu marido se encontravam por perto para incomodá-
lo, Kit seguiu para a sala em que se jogava faraó. Seria melhor jogar um pouco e
entreter-se. Afinal, já perdera o único tesouro que lhe importava no mundo. Talvez, se
perdesse toda sua fortuna nessa noite, os Blaine ficassem menos ansiosos para tê-lo
como genro...
Sentou-se, cumprimentou as pessoas ao redor e se entregou ao jogo num abandono
descuidado.
CAPÍTULO XIX
Kit estava jogando havia mais de uma hora e perdia muito. Mas não se importava;
na verdade, sentia-se até satisfeito; mas isso foi até que lady Blaine sentou-se à mesa.
Contra ela, Kit ficou com uma vontade alucinante de ganhar.
A condessa, sentada à direita dele, mantinha-se educada e até gentil, quase como
se nunca houvesse acontecido nada de desagradável entre ambos. Era uma velha
senhora imprevisível, mas jogava muito bem. E Kit podia jurar que ela conseguia contar
as cartas tão bem quanto ele mesmo.
O lugar à esquerda de Kit estava vago já havia algum tempo. Ele até gostaria que
Marina pudesse sentar-se ali, mas sabia que ela não o faria. Seria uma atitude muito
imprópria, por demais ousada. Ela se sentava à ponta da mesa e às vezes jogava uma
rodada com mãos trêmulas. Kit imaginava que fora a condessa quem fornecera dinheiro
a Marina para que pudesse jogar de vez em quando. Mas ela estava perdendo com muita
freqüência e logo ficaria sem ter o que apostar.
A primeira rodada terminou. Lady Blaine ganhou duas sequências seguidas. E
ganhara com facilidade. Isso começou a incomodar Kit. Não percebera alguma coisa?,
indagava-se. Ouvira dizer que ela costumava roubar... mas não havia notado nada de
incomum.
Lady Blaine sorria, satisfeita, em direção à condessa. Estava sentada exatamente
a sua frente e parecia sentir prazer em encará-la.
— Parece que a banca é quem está com sorte esta noite, senhora — comentou,
puxando as fichas para si. — Vai tentar recuperar o que perdeu?
Para surpresa enorme de Kit, lady Luce levantou-se, dizendo:
— Não adianta nada ficar correndo atrás da sorte quando ela teima em fugir de
nós, não é mesmo? Mas não se preocupe, lady Blaine. Não vou deixá-la sem um oponente.
Venha cá, Marina, fique no meu lugar. Sua sorte não deve ser pior do que a minha.
Marina levantou-se, obediente, e deu a volta à mesa. Parecia hesitante e
preocupada.
— Senhora, eu não... — começou a dizer para a sua patroa.
Mas a condessa colocou as mãos nos ombros dela e forçou-a a sentar-se.
— Jogue — disse apenas. E depois lançou um olhar de puro desafio para lady
Blaine. —A srta. Beaumont tomará meu lugar e jogará com o meu dinheiro — anunciou. —
Imagino que aceite isso, não?
Lady Blaine não pareceu satisfeita, porém assentiu. Não podia agir de outra forma,
já que era convidada em casa de lady Luce. E Kit gostou das maquinações que percebia
por trás da atitude da condessa, embora não soubesse ao certo o que ela pretendia.
Talvez, avaliou, ela não fosse a raposa odiosa que sempre a considerara.
Marina não olhou para ele. Parecia não tê-lo visto, embora fosse óbvio que sim. Kit
sabia disso, mas sua ousadia não permitiria que ela simplesmente o ignorasse. Tinha de
fazer com que Marina falasse ou fizesse algum coisa, mesmo que fosse apenas para
ouvi-la dizer que cuidasse de sua própria vida. Seria adorável ver aquele fogo nos olhos
dela mais uma vez.
Lady Blaine tinha aberto um baralho novo e o estava embaralhando, distraída. Toda
sua atenção parecia estar focalizada nos jogadores ao redor da mesa. Não havia dúvidas
de que esperava que outras pessoas se sentassem para jogar. Quanto maior o número
de jogadores, maior seria seu lucro.
Kit olhou para Marina, notando que suas mãos estavam sobre a mesa, parecendo
calmas. E Marina olhava para elas, aparentemente distraída com os próprios
pensamentos.
— Joga faraó com freqüência? — ele quis saber. Assim que o jogo recomeçasse,
seria bem mais difícil conversarem. Precisava aproveitar aquela oportunidade. Afinal,
ela poderia não ficar a seu lado por muito tempo, se continuasse a perder.
Porém Marina não ergueu os olhos para olhá-lo. Por um momento, Kit imaginou que
ela não o tivesse ouvido, ou que, pelo menos, que não tivesse intenção de responder.
Talvez a tivesse magoado pelo fato de deixá-la afastar-se quando Katharina aparecera.
No entanto a resposta veio, por fim, em tom suave:
— Raramente estive em companhia de pessoas que têm dinheiro para apostar num
jogo assim, senhor.
Do outro lado da mesa, lady Blaine tentava ouvir a conversa.
— Imagino que saiba, pelo menos, embaralhar as cartas, srta. Beaumont —
comentou ela com desdém.
Marina ergueu a cabeça ao ouvi-la. Um tanto vacilante, estendeu a mão para pegar
o baralho.
— Posso tentar, senhora, se me permite — murmurou.
Mas, em vez de depositar as cartas na mão que Marina lhe oferecia, lady Blaine
deixou-as sobre a mesa. Depois sorriu para um dos cavalheiros que, em pé, observavam
o início do jogo.
Marina ignorou tal atitude esnobe, pegou o baralho e começou a misturar as
cartas. Era óbvio que não era uma jogadora contumaz. Em dado momento, quase
derramou todas as cartas sobre a mesa.
— Gostaria de cortar, assim que a srta. Beaumont conseguir embaralhar, sr.
Stratton? — lady Blaine indagou, sempre esnobe.
Ele assentiu em silêncio. Não confiava em si mesmo para dar uma resposta educada
àquela mulher.
— Podemos nos unir a vocês nesse jogo? — perguntou Hugo, que se aproximava da
mesa com a esposa. Kit levantou-se para cumprimentá-los e notou que Emma parecia
satisfeita. Talvez fosse resultado do que havia acontecido no dia anterior. Kit estava
quase certo de que Emma o deixara a sós com Marina de propósito, embora não tivesse
idéia do que ela tramava de fato.
— Gostaria de sentar-se aqui? — perguntou a Emma, apontando o lugar vazio a seu
lado.
— Não, obrigada. Prefiro ficar a uma das pontas, junto a Hugo. Ele conta as cartas
melhor do que eu, e você jamais me diria como apostar, Kit. Adora me ver perder. —
Vindas de qualquer outra mulher, essas palavras teriam soado como um insulto, mas não
vindas de Emma. Havia sempre um brilho de beleza e graça nela.
— Como quiser — ele aceitou, sorrindo, voltando a se sentar.
Enquanto isso, Marina continuava tentando concentrar-se em embaralhar as
cartas. Kit esperou, paciente, observando-a.
Jamais imaginara que ela pudesse ser tão desajeitada. Aquela maneira de
embaralhar não combinava com a elegância que Marina ostentava em todas as suas
outras atitudes.
— Se é que já terminou, srta. Beaumont... — disse lady Blaine, impaciente.
Marina parou com as cartas de imediato e assentiu, sem graça.
— Posso? — Kit perguntou a ela, estendendo a mão.
Sem erguer os olhos, ela lhe entregou o baralho, evitando tocar-lhe a palma da
mão.
— Obrigado — ele agradeceu, suave. Cortou o maço e empurrou-o sobre a mesa em
direção a lady Blaine.
— Ah, por fim! — exclamou ela. — Eu estava começando a achar que jamais
jogaríamos esta partida! — E olhou para os outros jogadores. Havia sete deles agora. —
Façam suas apostas, por favor — pediu. — Quando estiverem preparados, senhoras e
senhores — lady Blaine chamou para mais uma rodada. Ela parecia uma professora
primária mal-humorada chamando os alunos para uma aula enfadonha.
Emma ainda vacilou, depois depositou sua próxima aposta no 6. Ao lado de Kit,
Katharina levantou-se. Todos os cavalheiros à mesa imitaram-na, numa gentileza. E lady
Blaine ficou furiosa por sua partida estar sendo interrompida.
O sorriso que a baronesa lançou aos homens encantou-os, mas ela simplesmente
ignorou as damas.
— Acho que eu não estou com vontade de jogar faraó esta noite, afinal. Queiram
dar-me licença, sim? — disse, e se afastou com elegância.
No breve intervalo do jogo, Kit apalpou o bolso no qual ela mexera; não, não se
enganara: Katharina deixara-lhe um bilhete. Fora esperta. Se o marido indagasse
alguma coisa, todos os ali presentes diriam que ela mal falara com Kit. Katharina estava
aprendendo a ser cuidadosa, afinal. Talvez, Kit ponderou, o barão a estivesse de fato
ameaçando. Ela sempre dissera que ele tinha um temperamento explosivo.
Lady Blaine acabara de virar a carta da mesa. Outra vez, nenhum dos jogadores
ganhou. Restou apenas uma carta ser jogada. Devia ser um 3, e a banca ganharia. Kit
sentiu certa compaixão por Marina. Ela não tinha apostado muito em todos os 3, mas
teria perdido três vezes e ganho apenas uma.
Lady Blaine virou a última carta. Era um 5! Kit não podia acreditar no que via! Tinha
certeza de que não havia contado errado, mesmo tendo se distraído alguns instantes
com a baronesa. A última carta deveria ter sido um 3!
— Eu sabia que não devia ter confiado em você para contar as cartas para mim,
Hugo — Emma reclamou, com um muxoxo, batendo de leve com o leque fechado no braço
do marido. — Você disse que todos os 5 já tinham aparecido, seu malvado!
— Mas eu estava certo disso... — Hugo explicou-se. — Devo ter cometido um
engano, então. Seja como for, se você tivesse apostado no 5 novamente, teria perdido
na última carta da banca.
— É verdade — ela lastimou.
Lady Blaine começou a juntar as cartas usadas e as fichas e o dinheiro que agora
lhe pertenciam. Como dona da banca, tinha ganho muito. Marina, então, ergueu a cabeça
e encarou a viscondessa diretamente. Naquele mesmo instante, lady Luce reapareceu na
sala e todos os cavalheiros ali presentes levantaram-se respeitosamente.
— Eu achei... — Marina começou, suave, franzindo as sobrancelhas. Parecia meio
confusa. — Sinto muito, senhora, mas... não deveria haver mais um 3 no baralho?
Lady Blaine parou de respirar. Todos os outros jogadores olharam para ela. Lady
Luce aproximou-se de Marina e colocou a mão em seu ombro para que não se levantasse.
E indagou, muito séria:
— O que foi que disse, minha filha?
Marina ergueu os olhos para a sua patroa.
— Eu... acho que devo ter me enganado — respondeu. — Não pode ser... Porém me
pareceu que apenas três cartas 3 haviam sido jogadas...
— É claro que se enganou, Marina. E não é de admirar, eu reconheço, considerando-
se o pouco que você conhece das cartas. No entanto... — Lady Luce parou, encarou a
viscondessa e prosseguiu: — Tem havido muitas trapaças no jogo de faraó ultimamente,
sobretudo em salas de jogos particulares. Algumas anfitriãs, eu sei, não mais permitirão
que esse jogo seja feito em suas casas. E eu não permitirei que paire uma suspeita
sequer sobre o jogo que se faz em minha casa! — E, estendendo a mão, imperiosamente
exigiu: — As cartas, por favor, lady Blaine!
Mas a outra permanecia imóvel, muito pálida.
— Por favor, senhora! — lady Luce insistiu, em voz mais alta. — Não gostaria que
se dissesse que é uma das donas da banca que trapaceia nesse jogo, pois não?
Kit inclinou-se em sua cadeira e olhou para o chão, a fim de que ninguém visse seu
rosto. Tinha achado Marina esperta, mas aquilo era brilhante! Mas, infelizmente,
também muito perigoso. Era, na verdade, loucura!
Sem outra saída, lady Blaine entregou o baralho nas mãos de lady Luce. Sua
expressão era tensa e seus dedos tremiam.
— Obrigada — murmurou lady Luce. E começou a colocar as cartas em cima da
mesa, voltadas para cima, para que todos pudessem vê-las. Os presentes aproximaram-
se para observar melhor. Ninguém dizia uma só palavra.
As cartas falavam por si mesmas. Havia duas a mais no baralho: um 5 e um 10.
— Esse baralho deve ter sido alterado — começou lady Blaine. — Eu não...
Lady Luce pegou as cartas e comparou-as com o resto do maço.
— Acho que está enganada — rebateu. — Estas cartas não são de um maço novo, já
estão usadas. E imagino que... — Ela ergueu uma delas em direção ao candelabro. — É.
Acho que há furos de alfinete nesta.
Todos se entreolharam. Todos, exceto Kit e Marina. Ela estava atrás dos outros
jogadores, tentando não ser notada, e recusava-se a encontrar os olhos dele.
A condessa parecia sentir-se ultrajada.
— Não posso acreditar que a senhora ousou fazer tal coisa sendo convidada em
minha casa! — acusou, olhando para a viscondessa, que permanecia calada e pálida ao
extremo. — E lhe agradeceria se saísse daqui imediatamente! Espero que entenda, daqui
para frente, se eu não mais a reconhecer, ou a qualquer membro da sua família! E tenho
certeza de que todos os membros respeitáveis da nossa sociedade farão o mesmo!
Lady Blaine levantou-se devagar, apoiando-se no encosto de sua cadeira.
A culpa estava estampada em seu rosto. Mesmo assim, ainda protestou:
— Deve ter havido algum engano! Não consigo pensar em outra explicação possível!
Pode acreditar em mim ou não, senhora, mas os meus amigos mais chegados certamente
me apoiarão. — E encaminhou-se para a porta, endireitando a espinha, altiva, deixando
para trás todo o dinheiro e as fichas que havia ganho por meio de seu engodo.
A condessa, então, olhou para seus outros convidados e desculpou-se:
— Nem posso lhes dizer quanto sinto pelo ocorrido... — Seu tom era uma estranha
mistura de arrependimento e triunfo.
Kit, pensativo, apenas analisava se seria possível que lady Luce soubesse o tempo
todo a respeito do mau hábito de lady Blaine trapacear no jogo. Talvez... E talvez
tivesse agido com a ajuda de... Marina! Tinha de ser! Um 3 havia sido retirado do
baralho! E Marina jogara apenas com o 3 desde o início das partidas!
Havia apenas duas alternativas possíveis: ou Marina havia preparado aquela
situação para expor lady Blaine, ou ela mesma retirara a carta que estava faltando para
poder acusá-la! Em ambas as opções, sua atitude fora bastante ousada. E era bem típico
da sua Marina ser assim, arrojada, corajosa! No entanto não se sentia feliz pelo que ela
fizera. Muito ao contrário. Lady Luce meneou a cabeça, mostrando-se entristecida.
— Eu já tinha ouvido rumores — comentou. — E, é claro, sabia que ela ganhava
freqüentemente, demais até, quando tinha a banca. Mas jamais pude imaginar que... — E
suspirou. — Bem, aconteceu. — Seguiu até o local onde estavam as fichas e o dinheiro e
indagou a todos: — O que devo fazer com isto? Imagino que queriam que o que lhes
pertence volte aos seus bolsos.
— Não, senhora — disse Hugo com firmeza. — Perdemos no jogo. E poderíamos ter
perdido de qualquer forma. Talvez tenha alguma instituição de caridade que a senhora
esteja acostumada a prestar ajuda. Um hospital ou um orfanato... Ficaríamos felizes se
esse dinheiro pudesse favorecer alguém que realmente precisa.
— Tenho uma idéia ainda melhor! — Kit levantou-se. Tentava esconder seus
sentimentos mostrando-se alegre. — Por que não doamos esse dinheiro à campanha anti-
escravagista? Afinal, o marido de lady Blaine retornará a Londres em breve e ele está
voltando exatamente de suas fazendas nas quais utiliza trabalho escravo. Imagino que
ele vá apreciar nossa atitude...
Todos riram da ironia de suas palavras. Marina olhou-o, por fim, mas não parecia
contente.
— Esplêndido! — apoiou a condessa, ainda rindo. — E vamos esperar para ver o que
esses jornais sensacionalistas vão dizer a respeito!
Kit percebeu o olhar furtivo, mas cheio de significados que lady Luce lançou a
Marina. Havia triunfo naqueles olhos, e suas suspeitas confirmaram-se. Ali ficara
provado que a viscondessa era, na verdade, uma ladra em mesas de jogo. E Marina
arriscara tudo para que ela fosse publicamente exposta.
— Minha querida, você foi sensacional! — elogiou a condessa, em sussurros, assim
que se afastaram dos demais.
Marina negou de leve com cabeça. Tinha recolocado o 3 para garantir-se, mas não o
7. Também não colocara a carta marcada. Lady Blaine o fizera depois que o maço havia
sido embaralhado. E ela ainda não entendia por que a mulher se arriscara de forma tão
estúpida. Podia mexer nas cartas com tamanha habilidade que os outros jogadores nem
teriam chance de ganhar, a não ser quando ela permitisse. Sem as cartas que estavam
faltando, seu golpe jamais seria descoberto. Mas uma carta teria sido suficiente para
enganar a todos. Marina não precisava nem ter agido...
— Você deve ter um modo especial de lidar com as cartas, minha querida —
continuava a condessa, satisfeita. — Ninguém suspeitou de nada! E aquela mulher jamais
será capaz de andar com a cabeça erguida novamente!
— Kit Stratton sabe — Marina anunciou. O sorriso da condessa desapareceu.
— Sabe? Como assim? Como pode saber?! Ele nada disse quando você estava
embaralhando as cartas, não é?
— Não, senhora. Mas ele sabe. Pude ver em seus olhos que sabe. — Ela jamais
esqueceria aquele olhar, uma mistura de espanto e desagrado. Kit sabia que ela
trapaceara, e Marina não conseguiria encará-lo outra vez.
Lady Luce deu de ombros.
— Que seja — comentou. — O fato é que ele não vai dizer nada a ninguém sobre o
ocorrido, mesmo se suspeitar de você. Afinal, por que o faria, não é mesmo? A culpa de
lady Blaine estava óbvia a todos que se encontravam ali. E a desgraça em que ela caiu vai
desobrigá-lo de casar-se com aquela garota horrorosa. Kit pode ser um cafajeste, mas
ainda é um cavalheiro. E nenhum cavalheiro manteria seu pedido de casamento para com
a filha de uma ladra. Ele deveria abençoar a sua habilidade com as cartas, minha filha.
— Mas e o que acontecerá à srta. Blaine? Ela é inocente em tudo isso! Vai ficar
arruinada se ele a rejeitar publicamente!
— Não, minha cara, não vai, não. — A condessa batia amigavelmente no braço de
Marina. — O casamento nem chegou a ser anunciado, lembra-se? E, além disso, está se
esquecendo de que Tilly Blaine mentiu para poder enredar Kit? Ela sabe muito bem que
nunca esteve a sós com ele. E disse à mãe que esteve.
— Mas ela...
— Não, Marina. Não tente defender a moça. Mesmo se a primeira reação dela foi
mal entendida, e eu duvido disso, Tilly teve dois dias inteiros para dizer a verdade, e
não o fez. Assim, ela acabou provando que é, de fato, uma Blaine, e, dessa forma, sem
caráter.
Marina não tentou mais argumentar. A condessa tinha razão. Lady Blaine e lorde
Luce haviam conspirado juntos a fim de fazer Kit cair numa armadilha, e Tilly nada
fizera para detê-los. Seus motivos não interessavam. Fora um plano sórdido, muito pior
do que qualquer coisa que Marina tivesse feito naquela noite. Tilly tinha sorte pelo fato
de o casamento não ter sido anunciado ainda. E sua desgraça viria apenas pelo que sua
mãe fizera.
— Acho que vou me recolher agora, senhora, se me permitir — Marina pediu.
— Mas é claro que não! — reagiu a condessa. — O que está pensando?! Deve ficar e
fazer com que a vejam aproveitando esta recepção! Vai até jogar cartas mais um pouco!
— Não, acho que não posso...
— Bobagem! É claro que pode! Não precisa jogar faraó, é claro, mas uma coisa mais
leve. Porém cuide para não parecer esperta demais, ouviu?
Isso não seria difícil, Marina avaliou consigo mesma; já que seu cérebro estava
cheio de pensamentos atravessados. A confusão que havia em sua cabeça provavelmente
a faria esquecer todos os truques que havia aprendido com as cartas.
—Venha, vamos encontrar um adversário para você — convidou lady Luce, tomando-
a pelo braço. E levou-a diretamente a sir Hugo e lady Stratton. — Estou tentando
persuadir esta garota a não se aborrecer por demais com o incidente de há pouco. A
pobrezinha não consegue tirar o ocorrido da cabeça! O que precisa é ocupar seus
pensamentos com um outro joguinho mais suave. O senhor joga alguma outra coisa, sir
Hugo?
— Sim, jogo.
— Ele joga, mas me prometeu levar-me para casa daqui a pouco, senhora —
interferiu lady Stratton, com doçura. — Entretanto meu cunhado ficará feliz em jogar
com a srta. Beaumont, tenho certeza! — Ela se voltou e acenou para Kit, que estava
conversando com dois senhores, a pouca distância.
O coração de Marina disparou. Não queria jogar com ele! Kit inclinou-se, em sua
costumeira elegância, diante do chamado de Emma e aproximou-se. Quando ela lhe
explicou o que lhe era pedido, sua expressão permaneceu indecifrável. Então voltou-se
para Marina e ofereceu-lhe o braço.
— Eu terei grande prazer em jogar com a senhorita.
Lady Luce sorriu, encantada. Por dentro, porém, Marina estava extremamente
tensa. Não acreditava que aquilo pudesse estar lhe acontecendo. Mas estava...
Dentro de instantes, encontravam-se os dois sentados a uma pequena mesa e Kit
estava abrindo um baralho novo.
— Deve entender, senhorita — disse ele, educado —, por que prefiro eu mesmo
embaralhar estas cartas.
Estavam jogando, em total silêncio, por quase meia hora. Marina tinha perdido
praticamente todas as rodadas. Seus descartes haviam sido fracos e sua mão, mais
ainda. Kit ainda estava aborrecido com o que ela fizera. E temia que, se Marina lhe
dirigisse a palavra, pudesse perder o controle e responder-lhe mal. Portanto tentava
manter-se frio, distante. Mais do que tudo, queria tomá-la nos braços e dar-lhe umas
boas sacudidelas. Afinal, ela armara uma situação, trapaceando para poder pegar uma
ladra! O que a levara a fazer algo tão arriscado e perigoso?!
Cerrou os dentes e descartou novamente. E ela não pegou a carta, embora lhe
servisse. Foi a gota d'água.
— Se quer jogar direito — Kit protestou —, deve aprender as regras! Tem que
pegar desta vez! Pois eu sei muito bem que precisa dessa carta!
As mãos de Marina tremiam. E encarou-o com aqueles grandes olhos que o
desarmavam sem nem mesmo saber. Eles estavam cheios de culpa e arrependimento.
— Marina — disse Kit, sentindo sua irritação passar como por milagre —, minha
vontade é dar-lhe uma surra, sabia? Como pôde fazer aquilo? Você...
Ela deixou as cartas sobre a mesa.
— O que eu faço, senhor, é problema meu — respondeu. — E já que sou uma
adversária tão fraca para o seu gosto, não o incomodarei mais. Quanto lhe devo?
A culpa se fora e agora havia indignação em Marina. Era óbvio que pensava que Kit
a reprovava pelo que fizera. E ele, de fato, não gostara daquilo, porém só porque fora
arriscado demais. Queria apenas protegê-la, mas todas as vezes em que tentava
aproximar-se, ela se empertigava como um porco-espinho!
— Não me deve nada — respondeu, sério. Depois, como se tivesse pensado melhor,
acrescentou: — Não fizemos apostas com regras no começo do jogo, mas... já que
declara sua derrota, imagino que eu deva exigir algum tipo de pagamento. Vejamos...
permitiria que eu a levasse a um passeio amanhã pela manhã?
— Não — a palavra foi dita em tom baixo, porém firme o suficiente para fazê-lo
entender que era definitiva.
— Posso saber por que não?
Marina apoiou as mãos na beirada da mesa e encarou-o. Respirou fundo e
respondeu, em tom claro:
— Parece esquecer-se de quem eu sou, senhor! Sou apenas uma dama de
companhia, uma criada. Sei muito bem qual é meu lugar e ele não é dentro da carruagem
de um cavalheiro!
Assim dizendo, Marina levantou-se e afastou-se em direção à porta. Mesmo em sua
derrota, ela ainda se comportava como nobre.
Não, seu lugar não é na minha carruagem, Kit pensou ao recolher as cartas. Seu
lugar é na minha cama. E é onde vai estar, minha doce Marina, mesmo que eu tenha de
arrastá-la para lá.
CAPÍTULO XX
— Achei ter ouvido uma carruagem há quase meia hora. Quem era? — lady Luce
perguntou a Marina.
— Era lady Stratton, senhora.
A condessa pareceu estranhar:
— E por que ela não entrou?
— Bem, ela... ela não estava na carruagem...
Lady Luce nada disse. Apenas encarou Marina e esperou pela explicação:
— É que ela... ela enviou um recado. Na verdade, foi um convite para que eu fosse
até a sua casa, mas... eu não aceitei.
— O quê?! Você não aceitou?! Mas, menina, o que...
— Desculpe-me, senhora, mas eu não posso tornar-me íntima de lady Stratton. Ela
é uma dama tão elegante e nobre como a senhora e... eu não sou ninguém.
— Bobagem! Eu já devia ter imaginado que se tratava disso! Na verdade, depois de
ontem à noite, lady Stratton deve ter ficado muito grata a você por...
— Mas ela nem sabe sobre o que eu fiz no jogo.
— E você, certamente, não é uma ninguém, como disse há pouco! É uma Blaine. — A
condessa se interrompeu e, depois de alguns segundos, riu. — Bem, talvez não... Nem é
bom falarmos de possíveis ligações suas com aquela família. Afinal, os boatos já estão
se espalhando, você sabe. Lady Blaine pode ter mencionado os amigos dela ontem,
quando se defendia, mas aposto que todos eles vão abandoná-la agora. E uma outra
edição daquele periódico dos infernos já deve estar sendo preparada, é claro. Um
jornaleco como aquele não perderia um escândalo como esse.
— Acho que não, senhora. Nem houve tempo para que alguém de lá soubesse...
— Há sempre tempo, minha cara, se alguém quer usá-lo em seu próprio interesse.
Marina respirou fundo. O episódio logo estaria na boca de toda a sociedade
londrina e, ao que parecia, a condessa estava conspirando para que assim fosse. Marina
sentia que precisava escapar de tudo aquilo. Não conseguia mais suportar tanta intriga.
Kit fora salvo, mas à custa de sua paz de espírito. Queria muito vê-lo, porém sabia que
não deveria nunca mais se encontrar com ele. Kit, o maior cafajeste de Londres,
permaneceria ali e ela teria de partir quanto antes.
Depois de breves batidas na porta, Tibbs apareceu, sóbrio como sempre,
anunciando:
— Senhora, lady Stratton encontra-se em sua carruagem, diante da casa. Ela lhe
apresenta seus cumprimentos, e também à srta. Beaumont, e pede-lhe que permita que
a senhorita possa acompanhá-la em seu passeio desta tarde.
— Não — Marina sussurrou para a sua patroa.
— Mas é claro que sim! — exclamou lady Luce, ignorando-a. — Vá buscar suas luvas,
seu casaco e seu chapéu, minha cara. E não se demore, porque lady Stratton não vai
querer que seus cavalos fiquem aí parados por muito tempo...
— Parece pálida, minha querida — lady Stratton notou. — Não se sente bem?
— Acho que estou um pouco cansada, nada mais, senhora — Marina mentiu. — A
recepção de lady Luce terminou um tanto tarde.
— E você, é claro, ficou com ela até que todos os convidados fossem embora. O
papel de dama de companhia, realmente, não é fácil. E duvido que lady Luce seja uma
patroa pouco exigente.
— Está enganada, senhora. A condessa tem sido muito boa para mim! E... e...
Lady Stratton deu algumas batidinhas amigáveis nas mãos de Marina.
— Perdoe-me por ter falado assim — murmurou, sorrindo. — Foi indelicado de
minha parte. Ainda mais porque a condessa tem sido, de fato, muito generosa ao deixá-
la sair em minha companhia. O que a fez mudar de idéia esta tarde?
Marina não sabia o que dizer.
— Bem... não foi lady Luce quem se negou a me deixar sair antes, senhora — teve
de confessar. — Eu achei que ela fosse precisar de mim e acabei me precipitando e
alegando que não poderia ir visitá-la.
— Oh, foi muito louvável de sua parte, muito leal para com a sua patroa... Bem, mas
agora se encontra aqui, e não acha que está um belo dia para um passeio no parque?
Marina sorriu e assentiu, olhando para fora, pela janela do veículo.
— Devo dizer-lhe — prosseguiu lady Stratton — que o escândalo de ontem à noite
acabou sendo lucrativo para nós. Kit havia proposto casamento à filha mais velha da
viscondessa, sem o consentimento da família, é claro, mas agora ele está livre do
compromisso. Ainda bem, porque aquela família... Ninguém vai querer receber nenhum
de seus membros de agora em diante, você sabe. Diga-me, lorde Luce não é padrinho da
srta. Blaine?
— Sim, senhora, ele é.
— Então... você deve saber sobre os métodos que lorde Luce empregou para...
digamos... montar essa armadilha para Kit. Tenho grande respeito pela condessa, srta.
Beaumont, porém acho muito difícil considerar o filho dela uma boa pessoa. Ele, afinal,
não se comportou como um cavalheiro.
Não havia nada que Marina pudesse dizer. Tudo o que lady Stratton falara era
verdade. E ela continuou:
— Hugo me disse que os Blaine irão viajar para o exterior em breve, assim que o
visconde voltar, provavelmente. Imagino que, ao saber de tudo que aconteceu em sua
ausência, ele vá ficar muito chocado.
Marina assentiu, sentindo-se culpada mais uma vez. Não se preocupara com o
visconde e com o que ele poderia pensar ou sofrer por tudo aquilo. Preocupara-se
apenas com Kit. E agora considerava-se má, muito má.
— Não posso dizer que ele se preocupe muito, porém — continuou lady Stratton. —
Lorde Blaine é um homem de reputação reprovável. Como seu pai era. Sua fortuna vem
de suas fazendas de cana-de-açúcar e parece que ele não se importa muito em ser
honesto para fazê-las crescer e obter mais e mais lucros com seus negócios. Ouvi dizer
coisas que... bem, que são, no mínimo, perturbadoras a seu respeito. Kit acha que... bem,
mas não deve estar interessada nesse assunto. Diga-me, gostou da festa de ontem?
Depois que o jogo de faraó acabou, quero dizer.
— Eu., nem me lembro direito, senhora. Foi tudo tão... intenso. Se eu não tivesse
mencionado a falta daquele 3...
— Se não tivesse mencionado a falta daquela carta, minha querida, lady Blaine não
teria sido desmascarada e não saberíamos quem de fato ela é. E eu ainda estaria
contemplando a possibilidade de ter Tilly Blaine como cunhada, o que seria, na verdade,
um pesadelo. Nunca vai saber quanto lhe sou grata! E, para Tilly Blaine, acho que o fato
não repercutiu tão mal assim, afinal. Ela é a única pessoa daquela família que parece não
se importar muito com o fato de a mãe ser uma trapaceira no jogo. Pelo que parece,
está até feliz por saber que vai viajar pela Europa e nem se preocupa com a desgraça de
lady Blaine. É uma garota muito estranha! Sua cabeça está tão cheia de poesia que não
há espaço para o bom senso.
Já era relativamente tarde quando Marina retornou à casa da condessa. Teria de
se apressar para trocar de roupa e ficar pronta para o jantar, imaginou. Lady Luce
detestava falta de pontualidade.
Marina subiu correndo para seu quarto, tirou o vestido e começou a lavar o rosto;
não havia tempo para muito mais. Olhou-se no espelho e viu que seus cabelos estavam
quase caindo dos grampos. Teria de dar um jeito neles. Quando ia retirar os mais soltos,
ouviu:
— Posso ajudá-la? — A criada particular de lady Luce entrara sem ser percebida.
— Oh, Gibson — Marina murmurou, agradecida. A velha criada sempre sabia como
ajeitar bem um penteado. — Quanta gentileza! Estou atrasada, sabe? Acha que pode
dar um jeito nos meus cabelos?
— Não precisa se preocupar, senhorita. Foi lady Luce quem me mandou ajudá-la a
se arrumar, já que estava se atrasando em companhia de lady Stratton. Sente-se aqui.
Não vai levar mais do que alguns minutos.
Marina sentou-se na cadeira diante do espelho e ficou observando os movimentos
das mãos hábeis da sra. Gibson, que transformavam seus cabelos soltos em um novo e
elegante penteado. E, quando ela já terminava, comentou:
— Gibson, você opera maravilhas, sabia?
A criada sorriu, lisonjeada.
— Ora, deixe disso, senhorita. Vamos, venha escolher um vestido. O que acha
daquele de seda verde?
— Não sei... Diga-me, Gibson, está sabendo de algum plano diferente de lady Luce
para esta noite? Ela pretende sair e quer a minha companhia?
— Acredito que sim. Mas ela não me disse nada especificamente. No entanto está
usando um de seus melhores vestidos.
— Nesse caso, é melhor que eu use o meu vestido verde mesmo. E as sandálias que
combinam com ele também.
Quando o sinete que anunciava o jantar soou, Marina descia as escadas
calmamente, como se tivesse todo o tempo do mundo. A condessa, porém, não se
deixava enganar. Olhou para Marina de cima a baixo e assentiu, aprovando o que via.
— Devo dizer que esse vestido é de fato muito bonito — elogiou. — Talvez seja um
tanto decotado demais para o que o pudor exige, mas... não é simplório e fútil como os
vestidos que as moças andam usando atualmente. — Ela seguiu diante de Marina até a
sala de jantar, onde se sentou à mesa. — Pena você não poder mostrar esta noite quanto
está bem vestida.
Marina nada disse, entendendo que não deveria sair com sua patroa. Sentiu-se,
porém, um tanto decepcionada, embora sabendo que não deveria, em sua posição,
esperar ter programa para todas as noites.
— Vou a um jogo de cartas — anunciou a condessa. — Mas vou sozinha. Depois do
que aconteceu ontem à noite, você atrairia muita atenção sobre si.
Marina tinha de admitir que ela estava com a razão. A condessa, então, passou a
falar incessantemente durante todo o jantar, fato que Marina apreciou, já que ela
mesma não estava com vontade de conversar. Era bom simplesmente ouvir. E sua mente
insistia em projetar-lhe imagens de Kit Stratton, muito embora tentasse evitá-las a
todo custo. Ele não iria mais se casar com Tilly Blaine.
Mas isso não era da sua conta, repreendia-se. Não tinha nada a ver com a vida de
Kit Stratton. Não mais. Suas atitudes impensadas já haviam causado uma série de
problemas, porém, graças as suas habilidades com as cartas, que aprendera com o pai e
o tio, além de um pouco de sorte também, conseguira desfazer todo o mal que causara.
Pelo menos, para Kit. Quanto à família Blaine... teria de aprender a conviver com o que
fizera. As palavras e as revelações de lady Stratton, na carruagem, sugeriam que toda a
desgraça que acabara caindo sobre os Blaine era bem merecida; e parecia até que Tilly
tinha se recuperado de sua paixão por Kit. Estranho... muito depressa, Marina avaliou.
Talvez em sua viagem pela Europa ela acabasse apaixonada loucamente por algum poeta
italiano, divagou.
— Se está pronta, Marina... — disse a condessa, tomando-a de surpresa e já se
levantando para deixar a mesa.
Marina levantou-se também, confusa.
— Desculpe-me, senhora, mas... como disse? Eu acho que estava distraída...
Mas a condessa apenas ergueu as sobrancelhas e se encaminhou para a sua sala
particular. Ao atingir o meio da escada, porém, Tibbs apareceu no hall e, fazendo uma
mesura, anunciou:
— Com licença, senhora, esta carta acaba de chegar para a senhora.
Lady Luce olhou para o mordomo.
— Ora, traga-a aqui em cima, homem! — ordenou. — Não vou poder ler nessa
distância, não é mesmo?
Marina abafou um sorriso, ao que parecia, lady Luce estava em forma novamente.
A carta era de lady Méchante e fez com que a condessa desse uma gargalhada.
— Oh, não me olhe desse jeito, Marina! — disse ela. — O que esta carta diz não
tem preço! Aposto que vai gostar! — E, sentando-se em sua poltrona costumeira, olhou
para a garrafa de bebida que ficava na mesinha próxima.
Marina já aprendera a reconhecer seus sinais. Assim, serviu um cálice e colocou-o
ao lado de sua patroa e depois sentou-se em sua cadeira, diante dela.
— Muito bem, minha querida — murmurou a condessa, bebericando seu licor.
Depois abriu mais uma vez a carta que acabara de receber e leu novamente,
comentando: — Excelente! Sim, excelente! Parece que Kit Stratton deixará de ser o
mais belo cafajeste de Londres por muito tempo.
— Ele... ele também vai viajar para fora do país, senhora? — Marina perguntou,
com o coração nas mãos. Não entendia, pois, afinal, lady Stratton nem tocara nesse
assunto.
—Não, não. Não se trata de algo assim tão simples, minha cara. — Lady Luce
bebericou um pouco mais de seu licor, parecendo sentir um prazer enorme tanto por ele
quanto pelo que lera na carta. — Sabe, posso tê-la perdoado por haver interferido em
minha dívida para com o jovem Stratton, mas, com certeza, não perdoei a ele pelo que
me fez quando me devolveu minha garantia de pagamento. Afinal, Kit é um grande
arrogante! E depois da forma como ele tratou você, imagino que vá gostar de vê-lo um
pouquinho... atrapalhado.
Marina engoliu em seco, temendo pelo que ouviria.
— O que... o que quer dizer com isso, senhora? — perguntou, já aflita.
— A doce vingança ainda me parece ser a mesma, querida Marina. Parece que o
marido da baronesa não gostou muito de ter sido feito de tolo... E deu um jeito, com a
ajuda de Méchante, não tenho dúvidas, para que aquele rostinho bonito de Kit seja,
digamos, um pouquinho alterado.
Marina arregalou os olhos assustada e levantou-se.
— Oh, meu Deus! Precisa detê-lo, senhora! Precisa fazer alguma coisa!
A condessa olhou-a, calma.
— Por quê? Ninguém vai matar Kit Stratton, menina! Pelo menos, não em Green
Park. Acho que será apenas uma pequena surra, ou algo assim, alguns cortes, arranhões,
hematomas, nada demais. Kit vai se recuperar, eu lhe garanto.
— Mas, senhora, não pode permitir que...
— Pare de se preocupar com tão pouco, Marina! Você tem o coração mole demais,
sabia?
A condessa, parecendo aborrecida, levantou-se, chamou a criada e saiu em seguida.
Sozinha, Marina pensava no que fazer. Não havia tempo a perder, nem mesmo para
trocar de roupa. Não poderia mandar um recado, um aviso... demoraria demais! O ataque
que Kit sofreria poderia acontecer a qualquer momento! Além do mais, não fazia a
menor idéia de onde poderia encontrá-lo naquela noite. Talvez, como dissera lady Luce,
em Green Park.
— Você não vai até lá sozinho, Kit — Hugo avisou.
Kit ergueu as sobrancelhas, percebendo que o irmão estava deixando sua teimosia
falar mais alto outra vez.
— Aceita minha companhia, então? — insistiu Hugo.
— Bem, se não há outro jeito e se insiste tanto...
— Ótimo. Porque esse pode ser um encontro clandestino com a sua baronesa, como
ela mesma disse no bilhete, mas eu duvido. Insistiu para que você fosse sozinho, e não
gosto nada disso, portanto serei seu acompanhante. Vou como cocheiro.
Kit teve de rir. Sentiu a mão pesada do irmão sobre seu ombro, enquanto ele dizia:
— Saiba que sei dirigir uma carruagem tão bem quanto você, e melhor do que o meu
cocheiro também. Ninguém vai perceber que sou eu, ainda mais se me vestir com uma
capa escura.
Kit assentiu. Hugo, mais uma vez, tinha razão.
— Também vou me vestir de preto — disse. — De que adianta fazer de mim mesmo
um alvo fácil para a pistola do barão, certo? Se for isso que ele tem em mente. Acha
que vai tentar me matar, não acha, Hugo?
— É possível. Precisamos estar preparados para qualquer coisa. A não ser que você
desista de comparecer a esse encontro. Porque podemos ir para o clube, nos
divertirmos...
— Sabe muito bem que isso é impossível, Hugo. Precisamos descobrir o que está
acontecendo. Se eu não for hoje, vão arranjar uma outra oportunidade para que caia
numa emboscada. E, da próxima vez, eu poderei não estar de sobreaviso e não ter meu
valoroso cocheiro para me defender também!
Hugo meneou a cabeça, rindo.
— Seu cocheiro e a pistola que ele vai levar consigo — acrescentou às palavras do
irmão. — Venho pegá-lo dentro de uma hora. Coloque um casaco escuro, Kit. E... escolha
um bem elegante, está bem? Afinal, se eu tiver que trazer o corpo de meu irmão para
casa, que ao menos ele esteja bem vestido...
Na escuridão, as sombras provocavam impressões de todo tipo. Green Park parecia
estar vivo, movimentado, mas poderia ser apenas uma ilusão criada pela brisa que
balançava árvores e arbustos.
Quando Hugo desceu da boleia, Kit já encontrara um garoto que prometera cuidar
dos cavalos em troca de algumas moedas. Pelo menos, um deles voltaria para pagá-lo...
— Não vejo nenhum movimento — Hugo comentou em voz baixa. — Mesmo de cima
da boleia, não consegui ver nada de diferente. Se há alguém por aqui, deve ter se
escondido muito bem. Está com a sua pistola?
Kit tocou o bolso do casaco.
— Minha pistola e minha bengala — respondeu. — No bilhete, Katharina pedia que
eu caminhasse pela alameda central. Ela viria encontrar-se comigo quando tivesse
certeza de que eu estava sozinho.
— Ela disse qual entrada você deveria tomar?
— Não. Por quê?
— Porque então temos uma vantagem. Você vai começar a caminhar daqui e eu vou
pelo outro lado. Assim, não saberão qual de nós dois é você.
— Não, Hugo. Esta briga é minha. Não quero que fique na linha de tiro do barão, se
for esse o caso. Vou sozinho, como me foi pedido. Pode vir em meu auxílio se eu
precisar. Saberá sem demora se estou correndo perigo, eu lhe garanto.
Hugo não parecia convencido.
— Estou falando sério — Kit insistiu. — Quero ter certeza de que vai voltar inteiro
para Emma.
— Está bem, mas, pelo menos, dê-me algum tempo para que eu chegue ao outro
lado. Se eu entrar pelos arbustos, vou ter mais chance de chegar até você a tempo, se
for necessário.
Kit reconhecia a razão nas palavras do irmão, mas ainda vacilava. Se alguma coisa
acontecesse a ele, haveria uma viúva e três crianças órfãs, enquanto ele, Kit, não tinha
ninguém à sua espera em casa... Afinal, Marina sempre o rejeitara.
— Kit, o que me diz? Não vai objetar a isso, vai? — Hugo insistia.
— Está bem, então. Vou lhe dar dois minutos e depois começo a caminhar por aqui.
Fique com Deus, meu irmão.
Hugo tomou-lhe a mão direita e, com a outra, segurou-lhe o ombro.
— Temos a vantagem da surpresa, Kit, não se esqueça disso. Fique você também
com Deus.
E desapareceu entre os arbustos do parque, seguindo para a outra extremidade.
Kit esperou, contando o tempo. Depois dos dois minutos combinados, colocou a mão no
bolso, segurou a pistola e começou a caminhar pela alameda principal, balançando a
bengala casualmente.
Hugo não tinha a menor intenção de se esconder entre os arbustos e esperar que
Kit fosse atacado, talvez até morto. Segurou o chapéu e correu até a outra
extremidade do parque, onde a alameda se encontrava com a rua. Lá, parou e respirou
fundo; depois recolocou o chapéu, quebrando-o um pouco do lado esquerdo, como Kit
costumava usar o seu. Naquela escuridão, ninguém conseguiria distingui-los.
Tirou a pistola do bolso e armou-a. E, com a mão livre ao lado do corpo, a arma
acabava encoberta pela capa que ele vestia.
Era exatamente como o início de um duelo, avaliou. E já tinha andado um bom
pedaço quando ouviu um ruído entre os arbustos, a seu lado esquerdo. Olhou
rapidamente, tentando visualizar alguma coisa. Então voltou os olhos para a alameda,
por onde Kit deveria aparecer em segundos.
Continuou andando e, de repente, uma voz masculina gritou:
— Lá está Stratton!
A voz viera dos arbustos, e Hugo abaixou-se de imediato. Mas não houve disparo
algum. Três homens corpulentos saíram para a alameda e bloquearam-lhe o caminho. E
traziam bastões em suas mãos.
— Ah, então vai ser isso — Hugo murmurou. Não trazia uma bengala, como Kit...
Com o canto dos olhos, percebeu algo colorido entre as árvores. E deu-se conta de
que havia uma mulher ali.
— Atrás de você! — gritou uma voz feminina, que veio de outra direção.
Hugo voltou-se e teve tempo apenas para se abaixar novamente. O bastão de um
quarto homem passou rente a sua cabeça. Um grito de mulher ecoou na noite, e depois
outro, em outra voz.
Hugo não lhes deu atenção e nem podia. A força do golpe que deu para se defender
fez o sujeito que o atacara dobrar-se em dois com um gemido. Hugo, então, atingiu-o
com uma coronhada, mas, na força de seu movimento, a arma caiu-lhe da mão. E ele teve
de se voltar, rápido, para enfrentar os outros três, desarmado.
Kit acabara de aparecer e estava usando sua bengala como uma espada contra os
homens. Apenas um deles agora encarava Hugo.
Kit sorriu para o irmão e exclamou:
— Parece que estamos em pé de igualdade agora, cavalheiros! Três contra dois...
Um dos sujeitos olhou rapidamente para trás, talvez preocupado com alguma coisa.
Foi um grande erro de sua parte.
Usando a bengala, Kit golpeou-o com toda sua força, e, com um grito de dor, o
homem largou seu bastão, gemendo:
— Droga, você quebrou o meu braço!
— É provável — Kit respondeu, voltando-se para o outro atacante e indagando: —
Vamos ver do que você é feito, hein?
O sujeito hesitava, temeroso. Kit deu um passo atrás e olhou para o irmão. Então
se preparou para dar mais um golpe com a bengala.
Uma mulher gritou novamente, e ele olhou para tentar ver do que se tratava.
O homem que Hugo havia golpeado primeiro já estava em pé outra vez e tinha uma
faca contra a garganta de uma mulher. Era Marina!
Kit sentiu uma sensação horrível subir-lhe pelo corpo, uma mistura de raiva e dor
que o cegava. E, com um golpe terrível, enfiou parte de sua bengala no ventre do
sujeito.
— Cuidado, Kit — Hugo sussurrou.
A voz do irmão pareceu trazê-lo de volta à realidade. Dois homens se encontravam
fora de combate e Hugo estava a ponto de acabar com o terceiro. Mas o quarto ainda
segurava Marina.
— Vamos! — gritou ele. — Ou eu acabo com o pescoço dela! Juro que acabo!
Kit sabia que não podia mais contar com a sorte nem com o desespero do sujeito.
Largou a bengala e deu dois passos, enfiando a mão no bolso. Então ameaçou:
— Solte-a ou eu mato você.
Mas o homem não se moveu. Sua mão, porém, fez um breve movimento, brilhando à
luz da lua. Kit gemeu por entre os dentes.
— Solte-a — repetiu, ameaçador, tirando a pistola do bolso. — Mesmo desta
distância, posso enfiar uma bala na sua cabeça antes que saiba o que o atingiu. Vamos,
solte-a!
Hugo tinha o outro sujeito sob a mira de sua arma também e avisou:
— Não seja tolo. Meu irmão atira como ninguém! Vai matá-lo se não obedecer.
O homem parecia indeciso. Então, o silêncio tenso que se formou foi quebrado por
outro grito.
CAPÍTULO XXI
Marina ouviu o grito e esforçava-se por voltar-se na direção de onde viera. Mas
estava muito bem segura nos braços fortes daquele estranho. Pelo canto dos olhos,
percebeu de relance a presença de uma mulher entre os arbustos, tentando livrar-se de
um homem. Ele parecia segurá-la brutalmente pelos cabelos.
— Ora, chega disso, mocinha! — rosnou o sujeito que segurava Marina, puxando a
ponta da faca mais para junto de seu pescoço. — Mais um movimento e furo a sua pele!
Ela imobilizou-se de pronto. Não sentia medo, mesmo sabendo que poderia morrer
ali. Era estranho, mas todos os seus sentidos pareciam estar alterados em virtude do
perigo. Podia sentir o cheiro ácido de suor que vinha do homem que a prendia, seu hálito
fétido, mistura de bebida, fumo e dentes apodrecidos. Podia também sentir o aroma
mais suave que vinha das árvores em que as folhas novas estavam surgindo. Podia
também ouvir a respiração acelerada de seu captor, quente, por trás de sua nuca. E a
faca que ele segurava contra seu pescoço tinha a fria promessa da morte em sua lâmina
de aço.
A poucos metros de distância, Marina podia ver Kit, alto, atlético, recortado
contra a escuridão, preparando-se para atirar. Ele avançou mais um passo, ameaçador.
— Já chega! — gritou o sujeito que a segurava. — Mais um passo e esta garota
estará morta!
Kit parou e, muito lentamente, ergueu a mão que empunhava a pistola.
Marina sentiu as mãos do homem apertarem-na mais. E, como seu corpo estivesse
na frente do dele, servindo-lhe de escudo, não havia como Kit mirar um alvo. Ela
prendeu a respiração. Sabia que Kit só atiraria se tivesse certeza do que fazia. Amava-
o. Amava-o profunda, imensamente! E confiava nele acima de tudo.
Recusava-se a fechar os olhos, embora a tensão daquela situação a fizesse sentir
vontade de assim agir. Mas, se aquele fosse seu último instante na Terra, queria morrer
com os olhos no homem a quem amava.
— Acho que deve ser sensato e baixar essa arma — disse uma voz vinda das
sombras do bosque.
Marina não podia voltar-se para ver de quem se tratava. Era uma voz masculina,
com certeza, e tinha um sotaque estrangeiro.
Kit não tirava os olhos de Marina. Sua pistola também mantinha a mira, sem mover-
se nem um milímetro sequer.
— Não penso assim, barão — respondeu a quem lhe falara. — Conhece muito bem
minha reputação. Diga ao seu homem que posso cumprir minha ameaça. Diga-lhe que o
matarei se não a soltar.
— E eu matarei você — replicou o barão, aparecendo na alameda.
Marina conseguia vê-lo agora. Sua mão esquerda prendia o braço de sua esposa e,
ao puxá-la atrás de si, fez Katharina gemer de dor.
Na mão direita, ele trazia uma pequena pistola de prata, que estava apontada
contra Kit.
Marina engoliu com dificuldade, sentindo um grito abafar-se em sua garganta. Não
queria distrair Kit. Precisava agir, fazer algo, qualquer coisa! Mas o quê?, indagava-se,
aflita. Não tinha armas, nem mesmo podia espernear e tentar chutar seu captor, já que
calçava sandálias, e não botas. Saíra de casa correndo, sem pensar em mais nada. E
agora suas sandálias estavam em frangalhos. Praticamente, estava sem elas, que se
dependuravam de seus pés como se fossem apenas retalhos do que haviam sido.
A respiração acelerada do homem em seu pescoço pareceu se acalmar um pouco.
Ele começava a pensar que estava seguro pela presença do barão e de sua arma.
E a mão que segurava a faca contra o pescoço de Marina também relaxou um
pouco.
Tinha de ser naquele momento!, Marina decidiu. Era sua única oportunidade.
Respirou fundo e enfiou o cotovelo contra as costelas do sujeito com toda a sua força.
Ele se curvou, gemendo. A faca não mais se encontrava em seu pescoço. Marina
aproveitou e, sacudindo-se, conseguiu soltar-se e saiu correndo até chocar-se contra
sir Hugo, bem longe da linha de fogo de Kit.
Ele, por sua vez, não se moveu. Sua pistola ainda apontava para o atacante de
Marina, que agora gemia, de joelhos.
— Ele machucou você? — Kit perguntou a Marina, com voz rouca.
— Não, não... — Por que ele estaria preocupado com ela? Devia estar se
defendendo do barão... E isso a fez gritar: — Tome cuidado, Kit!
Ele sorriu. E, sem se voltar para o barão, disse, tranqüilo:
— Se tencionava me matar, senhor, já devia tê-lo feito.
O barão puxou a esposa mais contra si, fazendo-a gemer de novo.
— Não pense que vou mover um só dedo para proteger sua esposa — Kit avisou-o.
— Nosso caso já terminou há muito tempo. Sugiro que faça seus protestos contra o
novo protetor que ela arranjou.
Marina cerrou os olhos por instantes, dominada pelo terror. Ele parecia tão calmo,
desafiando a honra daquele homem... O barão jamais aceitaria tais insultos! Poderia
atirar em Kit a qualquer momento!
Depois de longos e angustiantes segundos, o barão deu mais um passo à frente e
disse:
— Deixe esses homens irem embora, Stratton. Sua briga é comigo.
Kit lançou um olhar a Hugo, que assentiu de leve e soltou o sujeito que ele
mantinha seguro pelo pescoço. O homem cambaleou até a outra vítima, que ainda estava
curvada aos pés de Kit, com o ventre sangrando.
Os dois, apoiados um no outro, saíram dali praticamente se arrastando e
desapareceram na escuridão do parque.
O homem que segurara Marina e o outro, com o braço quebrado, simplesmente
levantaram-se e seguiram seus comparsas.
— Honra entre bandidos — disse Kit, voltando-se para encarar o barão, que
comentou:
— Parece que estamos empatados agora, Stratton.
Marina deu dois passos adiante. Se pudesse colocar-se entre eles... Mas Hugo
segurou-a antes que fizesse o que tencionava. Puxou-a para o abrigo de seus braços e
segurou-a contra seu peito.
— Não, Marina — sussurrou em seu ouvido. — Não interfira. Deixe Kit resolver
essa situação. — Mas, como ela ainda tentasse se soltar, ele riu e acrescentou: —
Confie nele, minha cara. Prometo que vai voltar vivo para você.
Marina, por fim, parou de se mexer.
— Então, vai ser aqui mesmo? — O barão indagou, em tom irônico. — Ou prefere
encontrar-me num campo de honra, como um cavalheiro? — Era óbvio que ele não via em
Kit nada de cavalheiresco.
— Como quiser, senhor. Não fará diferença alguma no resultado final.
O barão proferiu um palavrão qualquer em alemão, apertando ainda mais o braço da
esposa, que gemeu de novo.
— Na verdade, não sou amante de sua esposa agora — Kit continuou, desafiador. —
Mas já fui, é claro. Não há como negar. E tem todo o direito de tentar me matar.
— Está querendo me dizer que você não tem esse mesmo direito, Stratton?
Kit manteve-se em silêncio agora. E então Marina compreendeu. Se os dois se
encontrassem frente a frente num duelo com lugar e hora marcada, Kit não atiraria
contra o barão. Ficaria apenas parado, orgulhoso e desafiador, permitindo que o marido
ultrajado obtivesse sua vingança. Era esse o conceito de justiça de Kit.
O barão pareceu compreender também, pois baixou sua arma e rebateu:
— Não gosto de idéia de assassinato a sangue-frio — declarou.
Kit fez um leve sinal na direção em que seus atacantes haviam desaparecido.
— Não me pareceu — ironizou.
— Eles não iam matá-lo — o barão explicou —, mas digamos que... você ficaria um
tanto menos atraente para as damas. Apenas isso. — Ele ainda não soltara o braço da
esposa. — Katharina gostou de atraí-lo até aqui. Disse que queria testemunhar seu
espancamento e imaginei que isso seria uma lição muito salutar para vocês dois. — Ele
baixou os olhos cheios de desprezo para a baronesa. Havia lágrimas naquele rosto tão
lindo. — Mas acho que já foi suficiente. — E passou o braço sobre os ombros dela,
embora aquele não fosse um abraço terno. — Vamos embora agora. Dou-lhe meus
parabéns, Stratton, e a seu irmão também. Não imaginei que alguém pudesse vencer
aquele quarteto de trogloditas.
O barão juntou os calcanhares, como numa saudação militar, e, sem soltar
Katharina, acrescentou:
— Tenho certeza de que entende que não deveremos mais nos falar, senhor.
Kit devolveu a mesura, mas o homem já se voltara para partir. E, em poucos
segundos, ele e a baronesa já haviam desaparecido na escuridão do parque.
Só então Hugo soltou Marina. Mas, antes de deixá-la ir completamente, apertou-
lhe de leve os ombros.
— Essa passou bem perto, Kit — comentou, com um ligeiro sorriso nos lábios.
— É, talvez sim.
Marina notou que Kit evitava encontrar os olhos do irmão. Voltou-se para ela e
observou, sério:
— Quanto a você, moça, o quê, em nome de Deus, estava fazendo aqui?! — Ele já
avançava contra Marina, ameaçador. Tomou-a pelos ombros, como já fizera antes, mas,
dessa vez, não a sacudiu. Ficou apenas segurando-a, olhando-a intensamente. E, por fim,
murmurou: — Você é, sem sombra de dúvida, a mulher mais irritante, mais tola, mais
indomável...
Hugo pigarreou, interrompendo-o.
— Por que não vai buscar a carruagem? — Kit disse-lhe, sem olhá-lo. — Na
verdade, você não me parece em nada com um cocheiro, sabia?
Hugo começou a rir.
— Como quiser, senhor — respondeu, brincando e inclinando-se como um criado.
Ao ficarem a sós, Kit baixou a voz para falar com Marina:
— Por quê? Por que precisa ser assim, Marina? Por quê? Será que um dia vou
conseguir conviver com você sem ter de repreendê-la pelas coisas impensadas que faz?
— E puxou-a para dentro de seus braços, passando a beijar-lhe o rosto, os olhos, os
lábios.
Marina entregou-se por completo àqueles carinhos. Até que ambos pararam de
repente.
— Meu Deus, o que estou fazendo? — Kit sussurrou. — Você está ferida! E gelada!
— E, tirando depressa seu casaco, colocou-o sobre os ombros dela, esfregando-lhe os
braços. — Seu pescoço. Deixe-me vê-lo.
Com uma gentileza surpreendente, aqueles dedos longos, que ela amava tanto,
ergueram-lhe o queixo para que ele pudesse ver se a faca havia feito algum estrago.
— Droga, não consigo ver nada nesta escuridão! Venha, Marina. Há uma lanterna na
carruagem.
Começaram a caminhar e ela pisou em algo afiado e deu um grito de dor.
— Meu Deus! — Kit exclamou. — Seus pés! — Ergueu-a nos braços, ignorando a
tentativa de protesto que ela tentou fazer, e a carregou para fora do parque até onde a
carruagem os aguardava. Hugo encontrava-se na boleia e pulou depressa para abrir a
porta.
—Vai raptar a moça esta noite, senhor? — brincou. Kit sorriu, tenso, em resposta.
— Siga rapidamente para a casa de sir Hugo, meu bom homem — brincou também.
— Mas não corra demais.
Kit ignorara os protestos de Marina, que alegavam ter ela recebido apenas alguns
arranhões. Tomou-lhe o pescoço entre os dedos e, com muita gentileza, tocou a marca
que a faca deixara. Havia uma pequena mancha de sangue. Ele murmurou uma
imprecação ao vê-la, imaginando que devia ter matado o sujeito quando tivera
oportunidade.
— O que houve? — Marina indagou, sem poder ver o que ele via.
— Está sangrando. Ele cortou a sua pele...
— Foi por minha culpa — explicou Marina, colocando a mão sobre a dele. — Senti
uma leve picada da faca quando me libertei. Não é nada grave.
— Podia ter sido morta, sua tolinha linda.
Marina calou-se, porém sorriu. Parecia estar gostando das palavras dele, mesmo
sendo elas pouco agradáveis.
— E seus pés... — Kit murmurou, olhando-os.
— Culpa minha também, porque não parei para colocar as botas. Mas foi melhor
assim, porque poderia ter sido tarde demais.
— Tarde demais para quê? — Kit erguia-lhe os pés feridos sobre seu colo,
acariciando-os com cuidado.
—Para avisá-lo de que... — Marina interrompeu-se e encarou-o. — Bem, imagino que
vá dizer que o meu aviso não seria necessário e que a minha chegada serviu apenas para
me colocar em perigo.
— É. Algo assim — Kit concordou, retirando os farrapos de sandália de um dos pés.
Um arrepio passou pelo corpo de Marina ao sentir-lhe as mãos. E ele fingiu não
perceber, acariciando-lhe a pele com suavidade.
— O que... o que está fazendo? — ouviu-a murmurar.
— Tentando remediar o estrago que você fez.
Marina engoliu em seco. Aquele carinho era delicioso demais. Afundou-se no
assento acolchoado do veículo, tentando escapar das sensações que aquele toque lhe
provocava, mas algo dentro de seu peito parecia pedir por mais... Até que, por fim, não
conseguiu evitar um leve gemido.
— Acho que devemos remover estas meias rasgadas... — Kit acrescentou, tirando o
que restara das meias em um dos pés.
Marina sentia-se flutuar. Mal o ouvia. Sua pele parecia adquirir vida nova, mas sua
mente estava tomada pela magia daquele toque.
As mãos de Kit massageavam seus pés, tornozelos e pernas com extremo cuidado.
E a sensação que provocavam era inebriante. Marina deixou que ele lhe retirasse as
meias, sem resistir. E, quando Kit a tomou em seu colo e a beijou com paixão, a única
coisa que pôde fazer foi corresponder intensamente. Estava nos braços do homem que
ela amava e não queria que aquele momento maravilhoso terminasse jamais. Uma voz
muito fraca dentro de seu peito queria avisá-la de que Kit não passava de um sedutor,
um cafajeste que sabia muito bem como conduzir uma mulher ao pecado, porém Marina
ignorou-a por completo. O que sentia era forte demais.
E o beijo que a princípio foi um tanto hesitante, como se ele temesse não ser
aceito, tornou-se mais e mais profundo, ardente, faminto. Kit segurou-a com força, as
mãos em sua nuca, soltando-lhe os cabelos em ondas revoltas, despenteadas pela
urgência de seu desejo.
Com um sorriso malicioso, Kit passou a beijá-la de outra forma, mais exigente,
dominadora, e Marina inclinou-se para dentro de seu peito, aceitando aquele ardor novo,
correspondendo da mesma maneira, querendo muito ir além. Mesmo inocente, sua
resposta aos carinhos de Kit era tudo que ele poderia esperar.
E, num gemido rouco, Kit murmurou seu nome, perdido em seus beijos. Se não
tivesse mais nenhum outro momento de paixão em sua vida, Marina chegou a pensar,
aquele instante em que ouviu seu nome dito, sussurrado daquela forma, bastaria para
fazê-la feliz e deixá-la satisfeita.
Os lábios dele estavam agora em seu pescoço, que Marina inclinava para trás,
oferecendo a pele àqueles carinhos. Aquilo era a paixão. Aquela vontade, aquele desejo
de entregar-se, de não se restringir...
Kit interrompeu-se, respirando fundo. Beijou-a mais uma vez, ardente, e depois
pediu:
— Desculpe-me. Não devia ter feito isso.
Ela o encarou, prendendo-o definitivamente na beleza de seus grandes olhos
inocentes e brilhantes pela febre do desejo. Kit engoliu em seco, sentindo-se fraco,
dominado. Olhou para ela, para a pele suave de seu rosto, de seu pescoço, dos seios que
palpitavam mais rapidamente agora.
— Não, aqui não — sussurrou. — Não numa carruagem, lembra-se? Mas na minha
cama... de boa vontade, na minha cama.
O silêncio de Marina o alertou, deixou-lhe o coração aos saltos. Teria dito algo de
errado? Teria assustado mais uma vez a mulher que ele amava mais do que tudo no
mundo? E, antes que Marina pudesse reagir de qualquer forma, ajoelhou-se diante dela
e passou a limpar seus pés com um lenço que tirou do bolso. Não a olhava mais.
— Precisa de um banho, minha querida — disse por fim. — Para remover esta
sujeira e este sangue... Emma vai ajudá-la. Deve ter algum medicamento, bandagens...
— Emma?
— Sim. Minha cunhada. Estamos seguindo para a casa de Hugo.
— Não, não! Não pode me levar para lá! Olhe como estou! — Marina tocou seus
cabelos, sabendo que eles se encontravam despenteados pelos minutos de paixão que
haviam acabado de viver. — Preciso voltar à casa de lady Luce! Oh, Deus, o que ela vai
pensar de mim? Como poderei explicar o que fiz?!
— Vai dizer-lhe a verdade — Kit respondeu, só agora olhando para ela, sabendo que
Marina não o recriminaria. — Se não o fizer, eu farei. Afinal, você saiu correndo para
salvar uma vida.
— Mas eu...
— Você conseguiu salvar-me! É uma mulher corajosa e destemida, Marina
Beaumont. — Ele a olhava. Encantado, apaixonado. Assim, despenteada, com aquele
rubor da paixão e do embaraço em seu rosto, ela era ainda mais linda.
Batidas fortes no teto da carruagem o trouxeram de volta à realidade. E levou
alguns segundos para perceber que não estavam mais em movimento. Foi até a janela,
afastou as cortinas e perguntou em voz alta:
— Por que paramos?
— Porque chegamos, meu senhor — Hugo brincou ainda uma vez.
— Mesmo? Pois vire esta carruagem e leve a moça para a sua casa!
— O senhor é quem decide! Pelo que vejo, o rapto foi adiado...
Kit insistiu em carregá-la para dentro da casa da condessa. Seu casaco fora
enrolado ao redor de Marina para que os criados não ficassem especulando sobre o que
acontecera. Mas os cabelos dela estavam desalinhados e seus pés, descalços, e isso não
havia como ocultar. E Kit quase chegou a sentir a vergonha que inundava Marina
enquanto a transportava, nos braços, até a sala.
A condessa ainda não voltara do jogo.
— Posso levá-la até seu quarto — ele ofereceu.
— Não, não! — ela quase gritou. — Já foi suficiente ter me trazido até aqui. Por
favor, coloque-me no chão e depois... vá embora, sim?
— Marina, eu só vou sair daqui quando você parar de se comportar como uma tola
— Kit rebateu. E colocou-a com carinho sobre uma poltrona. — Afinal, qual é o problema
com você?!
— Bem... lady Stratton disse que não há mais um noivado entre o senhor e lady
Blaine... É... verdade?
— Mas é claro que sim! Pois foi você mesma quem garantiu a minha libertação
daquela garota estúpida! Na verdade, acho que ainda não lhe agradeci pelo que fez.
Porque uma mulher como Tilly Blaine poderia levar um homem a cometer suicídio, sabia?
Preciso de uma mulher que conheça o valor do silêncio e da coragem, Marina. Minha
esposa precisa ser...
A porta se abriu e a condessa entrou, parecendo esbaforida. E, ao notar a
presença de Kit, arregalou os olhos de imediato.
— Oh, Senhor! Mas o que é isso?! — assustou-se. — O que o senhor está fazendo
aqui? Achei que estivesse sendo... — Ela se voltou e fez um sinal para que o mordomo,
que a acompanhava, se fosse. Depois caminhou pela sala e afundou-se na poltrona mais
próxima.
Marina tentou levantar-se.
— Está tudo bem, senhora? — quis saber. Kit a fez sentar-se outra vez, dizendo:
— Fique onde está. Eu falo com lady Luce. — E, percebendo que a condessa estava
trêmula, serviu um cálice de conhaque a ela. — Beba isto, senhora. Vai se sentir melhor.
Ao que parecia, ela não se importava em ser servida por Kit. Bebeu de um só gole e
estendeu o cálice a ele para que o enchesse novamente. E bebeu mais devagar da
segunda vez. Depois ajeitou a peruca e olhou para Marina.
— Já estou melhor — disse.
Kit sorriu para Marina e ela percebeu, em sua expressão, que já não havia aquela
antiga máscara de cinismo; apenas um amor profundo que a fez derreter por dentro.
Em sua mente estavam as últimas palavras que ele lhe dissera a respeito de sua
esposa... mas não, não podia ser...
— Imagino que a sua presença aqui explique tudo — comentou lady Luce, olhando-o,
muito séria.
— Minha presença explica o quê, precisamente, senhora? — Kit quis saber.
— Bem, se está aqui, não pode estar lá, certo? E isso explica tudo — teimou a
condessa em não explicar.
— Senhora, aconteceu alguma coisa? — Marina indagou. — Quero dizer... no seu
jogo de cartas?
A condessa assentiu.
— Acabei indo até a casa de Méchante, afinal — confessou ela. — E uns sujeitos
chegaram, exigindo que ela lhes pagasse. Aparentemente, queriam ser pagos por um
servicinho que haviam feito... — Lady Luce olhou para Kit com certo ar de escárnio. — E
agora entendo que eles falharam em sua missão... Méchante, é claro, recusou-se a pagar
e eles começaram a quebrar tudo na casa. Acho que ela vai gastar uma pequena fortuna
para consertar o estrago.
— A senhora não se feriu? — Kit perguntou, mostrando-se solícito.
E Marina percebia que ele estava, de fato, sendo sincero. Ainda mais porque Kit
sabia que qualquer um daqueles sujeitos poderia ter ferido a condessa gravemente com
um só golpe. Mas ela apenas riu e deu de ombros.
— Eu não, mas Méchante, sim. Os sujeitos não gostaram do modo como ela os
expulsou da casa. E acho que ela vai estar um pouco além de arranhada amanhã... Vai ter
um olho roxo, com certeza.
Marina mordeu o lábio, assustada com aquela violência. Mas, talvez, ponderou, lady
Méchante tivesse recebido apenas o que merecia.
Lady Luce agora olhava para Kit, pensativa. Até que disse:
— Sabe de uma cosia, rapaz? Cheguei a desejar que aqueles brutamontes
mudassem um pouco a sua aparência. Porém quando os vi em ação... percebi que estava
enganada. — E, levantando-se, anunciou: — Vou me recolher agora. E o senhor não
deveria estar aqui! Poderia sair agora, sim? Vamos, toque a sineta.
Kit assim o fez e depois, educado, ofereceu-lhe o braço.
— Eu achava, senhora, que mesmo sob suas severas normas de comportamento, um
casal compromissado pudesse ficar a sós...
Lady Luce parou de caminhar e olhou para os dois, pasma. E, talvez pela primeira
vez na vida, ela ficou sem saber o que dizer.
Marina também foi pega de surpresa. Kit levou a condessa até a porta da sala e
completou:
— Acho que deve saber que a srta. Beaumont acaba de dar-me a honra de aceitar
ser minha esposa. Mas sei que a senhora teve uma noite muito agitada e amanhã, depois
de haver descansado bastante, poderá nos dar os parabéns pelo noivado. Marina vai se
mudar para a casa de minha cunhada amanhã pela manhã. E a senhora será sempre muito
bem-vinda lá.
— Kit, como pode... — Marina começou, mas ele a fez calar-se dizendo:
— Depois, meu amor. Depois. Não vamos deixar lady Luce embaraçada com
demonstrações explícitas de afeto. Ela precisa descansar. — Ele sorriu por sobre o
ombro e afastou-se levando a condessa até seus aposentos, onde se despediu, educado:
— Boa noite, senhora—murmurou. — Durma bem.
Quando voltou para a sala, percebeu que os olhos de Marina estavam brilhando.
Conhecia aquele fogo. E agora ela parecia ter motivos para estar agitada.
— Eu devia ter-lhe dado um tapa para tirar aquele seu sorriso arrogante do rosto,
sabia? — ela começou, irritada. — Como pôde dizer aquelas coisas a lady Luce?!
Kit tentou parecer arrependido, mas o resultado foi uma careta que acabou
fazendo Marina rir.
— Você não vale nada — ouviu-a sussurrar. — E não concordei em me casar com
você.
Ele se aproximou e tomou-a nos braços. Beijou-a em seguida com uma paixão tão
ardente que a fez perder o fôlego.
— Agora, meu amor, vou mandar a criada preparar-lhe água quente e toalhas para
os seus pés feridos. E você não vai protestar, ouviu? Na verdade, pode até cantar para
mim enquanto lavo seus ferimentos e depois passo algum medicamento sobre eles.
Depois, vou levá-la, no colo, até seus aposentos e...
— Não!
— Não iremos sozinhos, é claro. Uma das criadas poderá nos acompanhar para que
não haja comentários desagradáveis. E amanhã você seguirá para a casa de meu irmão, e
depois farei arranjos para que siga até Yorkshire e...
— Pare! Pare! Você é impossível, Kit Stratton! Não vou permitir que fique dando
ordens e regulando a minha vida. Ademais, eu ainda não lhe disse que o amo, não aceitei
seu pedido de casamento, que você, na verdade, não fez formalmente, e...
— Sei que me ama! Sei que quer se casar comigo! O que mais preciso ouvir? — Ele
passou a beijar-lhe o pescoço, sedutor, carinhoso, apaixonado. — E é assim que vai ser...
— Só se disser que me ama de verdade. — Marina derretia-se em seus braços.
— Se a amo? Meu Deus, Marina, como um louco! Um louco! — E encontrou seus
lábios mais uma vez, a fim de prendê-los para sempre.
Fim