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    Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. ST1406

    RELIGIO E MPB - SITUAO DA PESQUISA, LIMITES DAABORDAGEM TILLICHIANA E ENCAMINHAMENTOS POSSVEIS

    Carlos Eduardo Brando CalvaniDoutor em Cincias da Religio (UMESP)

    Universidade Federal de Sergipe

    [email protected]

    ST 14PAUL TILLICH

    Resumo:A presente comunicao chama a ateno para a importncia da MPB comofonte de reflexo sobre temas religiosos no Brasil. Essa abordagem no comum emnosso mundo acadmico. At mesmo Paul Tillich, conhecido por seu interesse emrelacionar religio e cultura, nunca se empenhou em comentar canes populares desua poca e de seu contexto. O segundo objetivo identificar dois limites inerentes abordagem tillichiana: a) seu menosprezo para com os produtos da indstria cultural, eb) a dependncia imposta por sua metodologia caracterizada pela valorizao unilateral

    de um determinado contedo que se deseja encontrar, s vezes forosamente, nasexpresses artsticas. O risco maior dessa perspectiva conteudista subordinarinsistentemente a obra de arte a dizer ou revelar o que se espera previamente que eladiga ou revele, resultando em subservincia da arte teologia. No caso da anlise decanes, a consequncia dar ateno apenas letra, desprezando melodia, harmoniae ritmo e separando elementos que, uma vez dissociados, prejudicam a compreensoda mesma ao mutilar o que uma unidade entre forma e contedo. O terceiro objetivo dialogar com outras metodologias (como a semitica ou a esttica da formatividade) afim de aprimorar o mtodo de abordagem de canes. Por motivos de espao s serpossvel identificar essas aproximaes, apontando-as como importantes interlocutorasmetodolgicas com a correlao tillichiana.

    Palavras-chave: Canes de MPB; Esttica; Religio; Tillich; Formatividade.

    Anais do V Congresso da ANPTECREReligio, Direitos Humanos e Laicidade

    ISSN:2175-9685

    Licenciado sob uma Licena

    Creative Commons

    mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]
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    Introduo

    A relao entre e canes populares e o imaginrio religioso se estabelece, a

    princpio de dois modos: a) cooptao e utilizao de canes por parte de sistemas

    religiosos, sobretudo quando reforam dogmas e discursos oficiais. Nesse caso, a

    canes podem ser utilizadas na propaganda institucional de uma religio, absorvidas

    como reforo espiritualidade pessoal, ou mesmo incorporadas aos ritos litrgicos,

    como tem acontecido com canes de Roberto Carlos em missas catlicas; b) crtica a

    discursos e prticas religiosas, desnudando contradies e incoerncias. Nesse caso,

    tais canes so veementemente rechaadas por diferentes grupos religiosos.

    Os primeiros estudiosos que ajudaram a definir contornos e o recorte preciso dasCincias da Religio tiveram dificuldades para abordar expresses musicais de cunho

    religioso. Durkheim, no clssico estudo sobre as religies aborgenes, despreza

    totalmente o poder da msica que anima tais ritos. Fala apenas em cantos ou

    danas ou movimentos e gritos, no dando importncia a esse elemento. R. Otto

    menciona diversos trechos de hinos religiosos a fim de corroborar sua tese sobre o

    sagrado, mas destaca apenas elementos literrios, omitindo qualquer referncia

    msica que os acompanha. Procedimento tambm adotado por van der Leeuw. Paul

    Tillich, a despeito de sua insistente preocupao em relacionar religio e cultura,

    sempre privilegiou as artes visuais, mencionando a msica muito raramente.

    Aproximaes de estudiosos da religio e msica popular comearam a surgir

    nos EUA no final dos anos 60 e meados dos anos 70 do sculo passado. A iniciativa

    partiu de telogos preocupados com direitos humanos, como James CONE (1972),

    demonstrando a importncia desses estilos para a identidade e autoestima de

    comunidades afroamericanas. Em outros contextos, a aproximao tambm foi tmida,

    alcanando maior visibilidade apenas nos ltimos anos. O Depto de Estudos de

    Religio da Univ. de Toronto publica o Journal of Religion and Popular Culture, com

    temas variados - cinema, quadrinhos, animaes e, naturalmente msica pop, com

    pesquisas que vo de Bob Dylan a Madonna, de U2 a Bob Marley. Na Inglaterra, as

    investigaes foram enriquecidas recentemente por Rupert TIL (2010). Nos Estados

    Unidos, o peridicoPopular Music and Societypublicou atualizada avaliao crtica das

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    mais recentes pesquisas naquele contexto (MOBERG, 2012). Em 2006, o Journal for

    the Scientific Study of Religionorganizou um Frum sobre Religio, Msica Popular e

    Globalizao. Na Sucia, o tema tem sido estimulado por Ola SIGURDSON (2001) do

    Depto de Literatura e Religio da Universidade de Gteborg. Na Europa, um dosltimos trabalhos uma volumosa coletnea com pesquisas diversas sobre Religio e

    Msica Popular naquele continente (BOSSIUS T., HAGER, A. & HARRIS, K. 2011).No

    Brasil, o interesse pelo dilogo com a MPB tambm partiu de setores da teologia. Jaci

    MARASCHIN (1974) esboou ainda nos anos 70, uma pesquisa sobre Jesus Cristo na

    MPB. No final dos anos 90, surgiu entre integrantes do GP Paul Tillich, da UMESP, um

    interesse mais focalizado, resultando em dissertaes e teses, publicadas no mercado

    editorial brasileiro. Na EST foi defendida uma dissertao de mestrado sobre f ereligiosidade popular na obra de Gilberto Gil (SANTOS, 2004).

    Porm, os mecanismos de busca em revistas acadmicas da rea de Cincias

    da Religio no Brasil denunciam a grande dificuldade ainda existente em tematizar

    religio a partir das canes populares. Palavras-chave como MPB, cano ou

    msica trazem resultados frustrantes ao pesquisador. A revista Correlatio, por servir

    pesquisa do pensamento de Tillich no Brasil, traz um nmero maior. Alm de ensaios

    da autoria do autor deste texto, identificamos artigos sobre a potica de Belchior,

    Cartola e a dupla S e Guarabira. Na REVER localizamos um artigo de Carlos Caldas,

    tematizando o messianismo em Alceu Valena e Caetano Veloso. Mas em todos os

    textos, percebe-se a insuficincia do referencial tillichiano para a anlise de canes

    populares, evidenciando a necessidade de superao de seus limites. O conceito que

    Tillich tem de cultura ou de obra de arte no apresenta muita abertura para a

    abordagem de canes populares.

    1 - Primeiro limite de Tillich O desinteresse pela cultura popular e de massa.

    As palavras cultura e popular, para Tillich, no se combinam. Tillich cresceu

    em um ambiente marcado pelo Kulturprotestantismus que, sob influncia romntica,

    procurava moldar a cultura alem aos valores da burguesia protestante, o que inclua o

    refinamento dos costumes, a supresso das teologias fundamentadas na experincia

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    (misticismo e pietismo), o apoio ao sistema poltico vigente e a valorizao das criaes

    artsticas que favorecessem a ordem e o enobrecimento das faculdades humanas. O

    conceito de Kultur, por ele utilizado na palestra de 1919 no implica em valorizao do

    popular ou da cultura de massas. Ali, Tillich direciona sua anlise para obras deescritores e pintores famosos ou de vanguarda. A cultura popular no tem espao em

    seu quadro de anlise, nem mesmo nos textos em que discute a situao do

    proletariado. H em Tillich um claro prejuzo do popular. Embora na Teologia

    Sistemtica, sua definio de cultura se torne mais abrangente (a totalidade da auto-

    interpretao criativa do homem num certo perodo), na prtica, a auto-interpretao

    criativa privilegiada por Tillich sempre a oriunda das elites ou das vanguardas

    artsticas, evidenciando suas afinidades com a Teoria Crtica desenvolvida pela Escolade Frankfurt MULLER (2003). Adorno foi seu aluno e, posteriormente seu assistente na

    ctedra de Filosofia Social em Frankfurt. Tillich foi seu orientador na tese sobre a

    esttica de Kierkegaard. Ambos compartilhavam da mesma admirao pelo

    expressionismo. Conforme Jay, se havia algum movimento modernista que resumia a

    concepo adorniana de uma vanguarda crtica, tratava-se do expressionismo (JAY,

    1981, p.118). Para ambos, o elemento que fazia do expressionismo a forma mais

    legtima de arte era sua fidelidade ao sofrimento do homem moderno.

    Os tericos da Escola de Frankfurt aliaram o conceito alemo de Kultur a

    referenciais marxistas, desenvolvendo uma profunda crtica aos meios de comunicao

    e cultura de massa surgida aps a Revoluo Industrial nos centros urbanos. Tillich

    os acompanha muito de perto, selecionando para suas anlises pinturas

    expressionistas, (algumas totalmente desconhecidas do grande pblico), e apenas

    muito tardiamente reconheceu que poderia haver algo de positivo e relevante no jazz.

    No final do sculo XX a prpria Teoria Crtica tornou-se passvel de crtica. John

    FISKE (1989), por exemplo, argumenta que a teoria crtica falhou em compreender adinmica real daquilo que produzido pela cultura popular ou pela cultura de massas,

    presumindo serem essas, to somente, instrumentos de alienao. Fiske defende que

    produtos da indstria cultural devem ser vistos da perspectiva de seus receptores e do

    modo como os recebem e os reinterpretam. O povo, de fato, no os produz; a penas

    os consome; mas nem sempre os consome da forma como a indstria quer; antes os

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    transforma. Portanto, o que deve ser interpretado no propriamente o processo de

    criao/produo e divulgao, mas o modo como essas produes so recebidas e

    reelaboradas por seus consumidores. Fiske tambm critica o complexo de gnio que

    acompanha as vanguardas artsticas, fazendo-as desprezar a singeleza e simplicidadeda cultura popular (FISKE, 1991). O compromisso de Tillich e dos tericos de Frankfurt

    com as vanguardas fez com que sua anlise cultural fosse prejudicada por essa

    posio de superioridade por eles adotada toda cultura de massas e tudo que

    divulgado pela indstria cultural julgado a partir de um trono tpico de intelectuais de

    origem burguesa educados na tradio clssica europeia.

    O que hoje se considera indstria cultural, foi na Idade Mdia at o

    Renascimento, espao de domnio da Igreja, e no ps-renascimento, um campoocupado por mecenas oriundos da aristocracia europeia. Em suma, anacronicamente

    falando, o financiamento produo artstica e a determinao de temas foi durante

    muito tempo privilgio de outro tipo de indstria: Igreja e mecenas.

    Nos anos sessenta, Umberto ECO (1991) foi um dos primeiros a questionar os

    preconceitos da intelligentsia(eruditos que tomam para si a determinao de qualificar

    o que cultura refinada) para com a cultura popular. Eco percebia as mudanas

    radicais procedentes da popularizao do rdio, da televiso e da Pop Art na cultura

    ocidental evitando dois extremos o dos apocalpticos que viam com desespero o

    desmoronamento de um padro cultural, e o dos integrados que saudavam efusiva e

    ingenuamente as mudanas, assumindo uma posio de inrcia e passividade. Para

    Eco ambos no percebem que a cultura de massas enquanto configurao scio-

    cultural forjada pela sociedade contempornea dentro de seu processo histrico

    nossacultura. Assim, alertava para a necessidade de no se ter preconceitos para com

    a msica de consumo. Ao invs de execr -la como um produto cultural alienante, Eco

    sugeria que a mesma fosse reconhecida como nosso retrato. Ele mesmo desenvolveupreciosa anlise sobre a msica de Rita Pavone, popular cantora romntica italiana dos

    anos sessenta.

    A |MPB uma expresso cultural de difcil enquadramento em virtude de sua

    capilaridade. Para alguns, apenas cultura de massa; outros a consideram cultura

    mdia, conceito que abarca obras que habitam um espao intermedirio entre a

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    msica erudita com suas tcnicas de composio e as exigncias de interpretao por

    orquestras ou cantores lricos, e aquelas identificadas como cultura popular. Esse

    debate est longe de acabar. Interessa-nos, no momento sustentar o seguinte

    argumento: a MPB uma fonte ainda a ser explorada para se compreender aspectosda religiosidade de camadas e setores da sociedade. Em canes da MPB so muito

    evidentes a presena de elementos religiosos, no vocabulrio de composies que

    dialogam nitidamente com conceitos teolgicos (f, Deus, orao/reza, cruz, sacrifcio,

    esperana, a relao entre sofrimento etc), nas observaes da religiosidade popular

    ou, em ltimo caso, como fonte para investigar os resqucios de uma religiosidade

    difusa nas composies de artistas que se afastaram de qualquer vnculo com religies

    organizadas.O problema central para quem trabalha com referenciais tillichianos justificar o

    valor desse objeto de estudo. Nesse sentido, possvel acercar-se da MPB por outras

    vias que no as tillichianas. A dificuldade de se relacionar Tillich e MPB reside muito

    mais no vcio ao qual Tillich nos conduz se permitirmos que ele nos pegue pela mo e

    nos transporte para o que ele mesmo reconhece como arte ou produo cultural

    genuna.

    2 Segundo limite de Tillich a perspectiva conteudista direcionada para a anlise

    das letras em detrimento dos elementos musicais que a sustentam

    O segundo desafio para quem adota a MPB como fonte de reflexes tericas

    reside em enfrentar o desequilbrio com que se privilegia a letra em detrimento da

    msica qual a letra est, inseparavelmente, atrelada. O que conhecemos hoje por

    cano uma obra que d continuidade ao conceito grego de mousik, aos hinos

    sacros e aos trovadores medievais. Paul ZUMTHOR (2001) demonstrou no estudosobre bardos e trovadores medievais, que, naquela poca, canto e rcita, ou canto e

    poesia estavam absolutamente implicados, sendo impossvel destacar um elemento

    sem compreender o outro. A separao entre letra e msica acontece aps o

    Renascimento, quando artistas se especializam em uma ou outra rea. A imprensa

    favorece a publicao de poesias sem msica e, por outro lado, msicos dedicam-se ao

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    refinamento de tcnicas de composio para diversos instrumentos, favorecendo o

    surgimento das grandes orquestras. Ainda assim, as canes continuaram a ser

    compostas, principalmente para rias de pera ou peas sacras como A paixo de So

    Mateus (Bach), hinos religiosos de diferentes estilos, sobrevive nas Liederde Schuberte mesmo em Wagner. Nessas e outras obras, um texto est atrelado a uma msica e

    vice-versa.

    Esse fator tem sido frequentemente desconsiderado na anlise de canes da

    MPB. Contudo, uma questo de fundamental importncia metodolgica. Se um texto

    criado com a finalidade de ser ouvido e cantado, e no para ser lido ou recitado, deve

    ser estudado na forma como foi concebido. Nas canes, letra e melodia se mesclam

    numa relao dinmica de significados verbais e efeitos lingusticos conduzidos por umritmo. Por isso, analisar apenas a letra de uma cano empobrec -la, visto que, em

    muitos casos a melodia pode alterar o significado da letra mediante flexes vocais,

    onomatopeias, entonaes, pausas, pronncias que foram rimas, prolongamento de

    slabas ou refres que sugerem significados que dificilmente seriam percebidos na

    considerao isolada da letra. Recursos dessa natureza foram muito utilizados para

    driblar a censura nos anos setenta, tal como na cano Clice (C. Buarque e G.Gil),

    com suas estrofes que descrevem algum levado ao desespero em virtude do silncio

    imposto por um sujeito annimo, e o refro extrado das narrativas da paixo de Cristo.

    A letra - Pai, afasta de mim esse clice - dificilmente seria censurada. O que a

    diferencia na cano o modo como se entoa o substantivo clice, transformando-o em

    imperativo do verbo calar cale-se!. Por isso Tatit, adverte: A letra da cano

    pertence a uma esfera de valores muito particular, altamente comprometida com a

    melodia e todo o aparato musical circundante, de tal modo que sua avaliao luz de

    critrios unicamente poticos redunda, quase sempre, em julgamento desastroso

    (TATIT, 1994, p.237).Essa preocupao metodolgica absolutamente pertinente para quem deseja

    explorar as relaes entre religio e MPB. Luiz Tatit, com base na semitica,

    desenvolveu um modelo de anlise de canes baseado em duas categorias de

    expresso musical: a tessitura (relacionada altura, que pode ser concentrada em

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    duraes curtas ou longas) e o andamento (relacionado durao acelerado ou

    desacelerado) propondo a seguinte tipologia:

    a) canes passionalizadas Caracterizam-se por um andamento

    desacelerado e tessitura expandida, com grandes curvas meldicas e prolongamentode vogais que desaceleram a melodia. Conforme Tatit, ao investir na continuidade

    meldica e no prolongamento das vogais o autor est modalizando todo o percurso da

    cano com estados passivos. Ao destacar na letra sentimentos como angstia,

    insatisfao, medo, precariedade, saudade, frustrao, etc, tais canes conduzem a

    momentos reflexivos e introspectivos - A passionalizao este tempo de espera ou

    de lembrana (...) essa durao que permite o sujeito refletir sobre os seus sentimentos

    de falta e viver a tenso da circunstncia que o coloca em disjuno imediata com seuobjeto em conjuno distncia com o valor do objeto. (TATIT, 1996, p. 99).

    b) canes tematizadas - so aquelas nas quais ocorre o processo inverso:

    com andamento acelerado e tessitura concentrada, produz uma melodia veloz,

    valorizando mais as consoantes. Enquadrariam-se no que Adorno denominou msica

    ligeira, que no conduz reflexo. Mas conforme Tatit, a tematizao meldica

    compatvel com letras que descrevem sentimentos ou acontecimentos eufricos

    (TATIT, 1996, p.22).

    c) canes figurativasaquelas nas quais a melodia submete-se s inflexes

    da fala, e a letra estabelece a presena dos interlocutores pessoais (eu-tu, eles, ns);

    categorias temporais (passado, presente e futuro) e categorias espaciais (locais

    geogrficos, casas, quartos, etc) que determinam o momento presente da enunciao.

    Tatit denomina esse processo de programao entoativa da melodia e de

    estabelecimento coloquial do texto como figurativizao por sugerir ao ouvinte

    verdadeiras cenas (ou figuras) enunciativas (TATIT, 1996, p.21).

    A partir desse modelo, letra e melodia se equivalem e formam uma estrutura,ligando contedo e forma. Assim, nas canes tematizadas, o contedo das letras, na

    maioria dos casos, afirma estados de satisfao, alegria, prazer, bem-estar, euforia e

    satisfao. Em canes passionalizadas, letra e melodia evocam momentos reflexivos

    como desabafos de tenses e angstias, como se tenso psquica correspondesse

    uma tenso acstica e fisiolgica de sustentao de uma vogal pelo intrprete. O

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    prolongamento das duraes torna a cano necessariamente mais lenta e adequada

    introspeco. Afinal, a valorizao das vogais neutraliza parcialmente os estmulos

    somticos produzidos pelos ataques das consoantes (TATIT, 2003:9). o recuso mais

    utilizado para canes de amor, saudade ou dor-de-cotovelo. Nas canes figurativas,por sua vez melodia e letra nos remetem s mais diversas situaes cotidianas, s

    vezes simplesmente descrevendo-as ou dialogando interpretativamente com as

    mesmas. Observe-se, porm, que tal tipologia no rgida, pois a liberdade artstica

    muitas vezes combina dois ou mais elementos em uma mesma cano.

    Outro aspecto fequentemente desconsiderado a relao entre melodia e

    prosdia. Toda melodia uma espcie de texto, no sendo desprezar a afinidade

    estrutural entre o verbal (logos) e o musical (melos). Werney adverte para a importnciade se compreender minimamente a maneira como a prosdia equilibra a tenso entre

    palavra e msica em uma cano: Em virtude disso, podemos afirmar que o

    compositor convive dialeticamente com os dois ofcios: a composio das estruturas

    meldicas e a composio da palavra. Trata-se de um combate entre melos e logos

    combate este existente desde a Grcia Antiga, quando ainda nem mesmo havia uma

    distino clara entre poesia e msica (WERNEY, 2009: p.7). Desse modo, na cano

    atuam, simultaneamente, e de modo complexo, duas expresses artsticas: a msica

    stricto sensoe um texto potico, nenhum dos dois exercendo funo subalterna.

    Para quem trabalha com religio e MPB, o mais importante em termos

    metodolgicos, lembrar que canes no so apenas letras. Canes so obras

    complexas que obedecem a leis e regras prprias de composio (prosdia, ostinatos,

    cromatismo, modulaes, mtrica, etc) que no podem ser desconsideradas no

    momento da anlise.

    A cano Batmakumba (G.Gil e C. Veloso) um bom exemplo dessa ntima

    relao entre letra e msica. Na pgina oficial de Gil na internet1

    , a cano assim seapresenta

    Batmakumbayy batmakumbaob

    Batmakumbayy batmakumbao

    1http://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_info.php?id=142&letra

    http://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_info.php?id=142&letrahttp://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_info.php?id=142&letrahttp://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_info.php?id=142&letrahttp://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_info.php?id=142&letra
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    Batmakumbayy batmakumba

    Batmakumbayy batmakum

    Batmakumbayy batman

    Batmakumbayy bat

    Batmakumbayy ba

    Batmakumbayy

    Batmakumbay

    Batmakumba

    Batmakum

    Batman

    Bat

    Ba

    Bat

    Batman

    Batmakum

    Batmakumba

    Batmakumbay

    Batmakumbayy

    Batmakumbayy ba

    Batmakumbayy bat

    Batmakumbayy batman

    Batmakumbayy batmakumBatmakumbayy batmakumba

    Batmakumbayy batmakumbao

    Batmakumbayy batmakumbaob

    Composta no auge do Tropicalismo, rene diversos elementos que temperavam

    as polmicas da poca sobre o que significaria MPB. Radicalizando o antropofagismo

    de Oswald de Andrade, os tropicalistas procuravam se afirmar contra o policiamento

    esttico e poltico dos que pretendiam determinar os rumos da MPB e que no admitiaminfluncias estrangeiras, principalmente ritmos, instrumentos eletrnicos e expresses

    em ingls. A simples audio da cano, desacompanhada da forma na qual a letra foi

    composta (poesia concretista), dificilmente far o ouvinte que a escuta pela primeira

    vez, perceber os intrincados signos que se movem embalados por um ritmo que mescla

    influncias do rock, da jovem guarda (i-i-i), de personagens de histrias em

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    quadrinhas norte-americanas (Batman) e do candombl. Os compositores combinam

    todos esses elementos ressaltando o carter sincrtico da cultura brasileira e sua

    capacidade de absorver e processar o novo ou o estrangeiro sem grandes dramas,

    dando-lhe outra forma. Ao reafirmar o sincretismo cultural, a cano tambm nosremete vida religiosa, marcadamente sincrtica em nosso pas. A cano, alis,

    uma tpica combinao de cano tematizada (andamento acelerado e tessitura

    concentrada, com muitas consoantes) e cano figurativa, em virtude da quantidade

    de imagens que sugere. Alm disso, Gil e Caetano so caprichosos na produo de

    neologismos e no modo como desdobram ou expandem palavras.

    A complexidade esttica da cano explora associaes nada usuais para a

    poca. Mistura acordes de guitarra em ritmo de rock, contraponto de candombl ereferncias culturais estrangeiras. No centro para onde a letra conflui e posteriormente

    se irradia est a palavra b, abreviao carinhosa de Bab (pai, em yoruba), de

    onde vem babalorix (pai de santo). Ob, na primeira e na ltima frase (como que

    abrindo e fechando a cano) foi a primeira mulher de Xang na tradio do

    candombl. A influncia anglo-americana aparece no ritmo, nos instrumentos

    eletrnicos e nas palavras bat e Batman, sempre apoiadas pela batida de tambores,

    evocando rituais afro. A repetio frequente de i-i evoca as despretensiosas

    canes da jovem-guarda, muito combatidas na poca pelas esquerdas que criaram o

    termo pejorativo i-i-i. Sobre essa cano, Gil comenta:

    O Oswald (de Andrade) estava muito presente na poca. Ns estvamosdescobrindo sua obra e nos encantando com o poder de premonio queela tem. A ideia de reunir o antigo e o moderno, o primitivo e otecnolgico, era preconizada em sua filosofia: Batmakumba deinspirao oswaldiana. concretista na ligao das palavras e naconstruo visual do k como uma marca (...) No s uma cano. uma msica multimdia, poema grfico, feita tambm para ser vista (GIL,1996, p. 98).

    Perspectivas de pesquisa ensaios para novos arranjos

    A perspectiva tillichiana, ao privilegiar a busca de um contedo direto

    (preferencialmente explcito ou, pelo menos intudo pelo pesquisador) que transparece

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    no estilo ou no prprio tema proposto pelo artista, diminui a importncia da forma.

    Nesse caso, o mtodo tillichiano necessita ser revisto e atualizado.

    Uma possibilidade para esse trabalho terico o aprofundamento na teoria da

    formatividade de Luigi Pareyson, sobretudo sua insistncia no princpio da coincidnciaentre espiritualidade e fisicidade na obra de arte. Pareyson enfrenta o antigo dilema

    entre priorizar o contedo (como faz Tillich) ou a forma (como fazem os formalistas da

    arte pela arte), lembrando que problemas tcnicos e contedos espirituais se invocam

    mutuamente. (...) Desta sorte, certas possibilidades expressivas e certos contedos

    espirituais nascem no preciso momento em que no desenvolvimento da linguagem e da

    tcnica se apresentam certos aspectos formais e certas possibilidades estilsticas.

    (PAREYSON. 1993, p.129). Assim, para alm do debate entre conteudismo eformalismo, Pareyson defende que a obra de arte um organismo dotado de legalidade

    interna que, em seu processo formativo, se impe ao artista, intrincando ambos em uma

    relao de formatividade e mtua transformao.

    a matria artstica tem sempre tendncias, exigncias e vontade prpriaque o artista no pode violar, mas antes dirigir e desenvolver no sentidointencionado pela vontade formativa que s nela foi capaz de tomar corpo,e as capacidades espirituais do autor se incluem nesse caso na

    "atividade" da matria (PAREYSON: 1993:252)

    Ao defender a inseparabilidade da forma e do contedo, evitando cindir aquilo

    que o processo formativo (artista e obra) produziu, Pareyson oferece uma abordagem

    mais adequada de expresses artsticas como as canes populares. Nelas, obra e

    artista coincidem, inexistindo sentidos espirituais separados da forma ou da fisicidade

    da obra. A obra um todo, que ao concretizar-se enquanto arte, fala dela mesma, mas

    tambm fala de seu criador, do estilo ao qual est atrelada, fala de seu tempo e do

    contexto em que surgiu, convidando potenciais receptores a interagir na trama daformatividade, participando tambm de seu processo criador sempre aberto. Assim, por

    mais que o carter de abertura permita mltiplas interpretaes, esse no pode ser

    conduzido to somente pela intencionalidade do intrprete (como faz Tillich algumas

    vezes), mas por regras ditadas pelo prprio processo de formatividade. Um exemplo

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    aproximado de formatividade pode ser identificado em uma entrevista de Chico

    Buarque:

    Sei que difcil falar do disco. At para mim difcil. Em jornal, crtico demsica geralmente crtico de letra. compreensvel que seja assim - aletra vai impressa, o crtico destaca este ou aquele trecho... e funcionaassim. Eu cada vez mais dou importncia msica e tenho vontade dedizer: "Olha, s fiz essa letra porque essa msica pedia. Isso no poesia, cano". Enfim, fico um pouquinho chateado com essas coisas,mas sei que difcil. Como que vai imprimir uma partitura no jornal eexplicar aos leitores? No d, eu sei. (BUARQUE: 2006, p.4)

    Por outro lado, Pareyson tambm no despreza a sensibilidade do intrprete,

    aproximando-se de Tillich naquilo que este designava intuio participativa. Segundo

    ele, a interpretao ocorre quando se instaura uma simpatia, uma congenialidade, um

    encontro entre um dos infinitos aspectos da forma e um dos infinitos pontos de vista da

    pessoa (...) interpretar consiste, portanto, em sintonizar um ponto de vista pessoal com

    um aspecto da obra. (GARCEZ, s/d, p.8.)

    Procuramos neste ensaio apontar dois limites de Tillich para a abordagem de

    MPB sua depreciao da cultura popular (especialmente expresses ligadas

    indstria cultural) e a fixao conteudista de seu olhar. O primeiro problema diz respeito

    qualificao do objeto de estudo, e o segundo a uma questo metodolgica.

    Esboamos uma tentativa de superao dessa limitao a partir da revalorizao dos

    aspectos musicais das canes e acenamos para uma aproximao da teoria da

    formatividade de Luigi Pareyson. Ainda assim, reafirmamos ser possvel utilizar, no

    campo das Cincias da Religio e da Teologia, um dos princpios bsicos da anlise

    tillichiana; o valor por ele atribudo s criaes artsticas nesse caso, canes

    populares - de abrir janelas para a anlise do existir e das possveis interaes que

    esse simples fatoexistir como ser humano criativo e produtor de sentido estabelececom o universo religioso.

    Referenciais

    BOSSIUS, T., HGER, A & HARRIS, K. Religion and Popular Music in Europe: NewExpressions of Sacred and Secular Identity. London: Tauris,2011.

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