591654 Cicero Sobre o Destino
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Título Original: De Fato © Copyright, 1993. Editora Nova Alexandria Ltda.
Todos os direitos reservados. Editora Nova Alexandria Ltda. Rua Dionísio da Costa, 141 04117-110 — São Paulo — SP Caixa Postal 12.994 04010-970 — Scão Paulo — SP Tel./fax: (11)5571-5637 [email protected] www.novaalexandria.com.br
Revisão de tradução: João Câmara Neiva Revisão: Lourenço de Souza Barba
Carla CCS. Mello Moreira Composição e filmes: Ensaio Editoração Eletrônica
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Cícero, Marco Túlio Sobre o destino / Cícero ; tradução e notas de José Ro
drigues Seabra Filho ; posfácio de Zélia de Almeida Cardoso. — São Paulo : Nova Alexandria, 2001.
ISBN 85-86075-69-8
Edição bilíngue: latim-português
1. Destino 2. Literatura latina I. Seabra Filho, José Rodrigues II. Cardoso, Zélia de Almeida III. Título
93-2270 CDD-870
índices para catálogo sistemático:
1. Clássicos latinos : Literatura latina 870 2. Literatura latina 870
SUMÁRIO
Sobre o Destino
Fragmentos
Notas
De Fato
Fragmenta
Posfácio
Resumo dos Parágrafos
1 1 ... porque 1 toca aos costumes, que eles (os gre
gos) chamam de êthos, e nós a essa parte da filoso
fia c o s t u m a m o s m e n c i o n a r c o m o f i l o s o f i a d o s
costumes, mas convém que a enriquecente língua la
tina a nomeie de moral 2 , deve também ser explicado
o sentido e a teoria das enunciações que os gregos
chamam de axiomas*; qual significado tenham esses
axiomas, quando alguma coisa dizem sobre o futuro
e sobre aquilo que possa acontecer ou não possa, é
questão obscura, que os filósofos mencionam como
dos possíveis, e é toda a lógica4, palavra que eu cha
mo de método de argumentar. Nesta disputa Sobre o
destino, certo acaso me impediu de fazer aquilo que
no entanto fiz em outros livros que tratam da Natu
reza dos deuses, e t ambém naqueles que publ iquei
Sobre a adivinhação: que se desenvolvesse para uma e
outra parte uma l inguagem contínua, a fim de que
mais facilmente fosse aprovado por cada um aquilo
que a cada um parecesse o mais provável 5 .
2 Pois como estivesse eu em Puteolano 6 , e também es
t i ve s se no m e s m o l o c a l 7 o nosso Hírcio ' s , cônsu l
designado, homem muito meu amigo, e dedicado a
es tes e s tudos nos quais eu tenho v iv ido desde a
infância 9 , ficávamos muito tempo juntos, procurando
sobretudo precisamente aqueles consensos que tocas
sem à paz e à concórdia dos cidadãos. Com efeito,
como após a morte de César 1 0 todos os motivos de
novas pe r tu rbações pa reces sem ser p rocurados , e
pensássemos que se lhes devia resistir, quase toda a
nossa conversação se consumia nessas deliberações; e
f izemos isso não só f requentemente , mas t a m b é m
num dia mais l ivre do que cos tumava ser e mais
vazio de visitadores, como ele tivesse vindo a minha
casa, c o m e ç a m o s a discutir p r imei ramente aquelas
coisas que eram cotidianas e quase de lei para nós:
sobre a paz e sobre o óc io 1 1 .
II 3 Tra tados esses assuntos, ele diz: "E então? Visto
que tu na verdade não abandonaste , como espero,
os exercícios oratórios, mas certamente antepuseste a
eles a filosofia, acaso posso ouvir algo de t i ? -Ce r t a
mente, digo eu, ou ouvir ou dizer, p o i s - e isto é o
que supões cor re tamente-nem abandonei aqueles es
tudos oratórios com os quais até te inflamei, con
quanto já houvesse percebido que tu eras ardentís
s i m o , n e m e s t e s e s t u d o s , d e q u e a g o r a t r a t o ,
d iminuem, mas antes aumentam aquela faculdade.
Efetivamente, com este género de filosofia que nós
s e g u i m o s 1 2 , o orador tem muita afinidade, pois da
Academia ele toma de emprés t imo sutileza, e, por
sua vez, a ela restitui fecundidade de oração e orna
mentos de l inguagem. Por esse m o t i v o - d i g o e u - ,
visto que nosso domínio é de um e outro estudo,
que seja opção tua de qual dos dois queiras hoje
fruir". Então Hírcio diz: "Isso é muito amável, e se
melhante a tudo que vem de ti: nada, com efeito, a
tua vontade alguma vez recusou ao meu desejo.
4 Mas, visto que teus preceitos de retórica me são co
nhec idos , e sobre e les não só te o u v i m o s mui t a s
vezes, como também ouviremos, e como as Disputas
10
tusculanas indicam que tu tens adotado dos académi
cos este costume de argumentar contra uma propo
s i ção , q u e r o p r o p o r a lgo em r e l a ç ã o ao qual eu
possa ouvir-te discorrer, se não te é molesto. - Acaso,
digo eu, me pode ser molesto algo que a ti haja de
ser agradável? Mas é assim que me ouvirás: como a
um homem romano, como a um que caminha timi
damente para este género de discussão, como a um
que depois de longo intervalo retoma estes estudos.
- A s s i m te ouvirei argumentar , diz ele, da m e s m a
forma como leio as coisas que escreveste. Começa ,
portanto. Assentemo-nos aqui..." 1 3
III 5 ... em a l g u n s d e s s e s c a s o s , c o m o no p o e t a
Ant ípa t ro 1 4 , como nos nascidos no dia do solst ício
d e i n v e r n o 1 5 , c o m o n o s i r m ã o s q u e a d o e c e m
s imul taneamente 1 6 , como na urina, como nas unhas,
c o m o nas restantes coisas desta espécie , prevalece
uma influência da natureza 1 7 , que eu não suprimo:
mas nenhuma influência é força de um destino. E
em outros casos pode haver certos acasos, como na
q u e l e n á u f r a g o 1 8 , c o m o e m I c á d i o 1 9 , c o m o e m
Dáfitas 2 0 . Certas coisas também P o s i d ô n i o - e que eu
as tenha dito com a licença do mestre - parece in
ventar: são na verdade absurdas 2 1 . Pois quê? Se o
des t ino de Dáfi tas era cair de um cavalo e assim
perecer, era acaso de tal "cavalo" que, como cavalo
não fosse, t inha nome i m p r ó p r i o 2 2 ? Ou era Fil ipe
aconselhado a evitar aquelas quadrigas decoradas so
bre um p u n h o de e s p a d a ? C o m o se na v e r d a d e
houvesse sido morto por esse punho 2 3 ! Que há tam
b é m de g r a n d i o s o em que a q u e l e náu f r ago sem
nome haja caído num riacho, conquanto na verdade
este (Posidônio) escreve que se lhe tinha sido predi
to que haveria de na água perecer 2 4 ? E - p o r Hércu
l e s ! - n e m s e q u e r v e j o a l g u m d e s t i n o d o l a d r ã o
1 I
Icádio 2 5 , pois nada escreve (Posidônio) sobre alguma
predição que lhe tenha sido feita.
6 Que há então de maravilhoso em ter-lhe uma pedra
caído da caverna sobre as pernas? Penso com efeito,
que, mesmo se Icádio não estivesse então na caver
na, aquela pedra prestes a cair teria lá estado. Por
que ou não há absolutamente nada fortuito, ou isso
aí pôde ocorrer por casualidade. Pergunto e n t ã o - e
isto se estenderá longamente - se do destino absolu
tamente nenhum nome, nenhuma natureza, nenhuma
força existisse, e fortuitamente, sem querer, por meio
do acaso, ou a maior parte dos acontecimentos ou
todos acontecessem, ocorreriam porventura diferente
m e n t e do m o d o c o m o agora o c o r r e m ? Logo, que
importa inculcar aí o destino, quando, sem o desti
no, à natureza ou à fortuna se consigne a razão de
todas as coisas?
IV 7 Mas deixemos Posidônio com um bom agradeci
m e n t o - a s s i m é j u s t o - ; v o l t e m o s aos l a ç o s d e
Cr i s ipo 2 6 . A este respondamos primeiro exatamente
sobre essa mesma influência das coisas; perseguire
mos depois o restante. Vemos quanto se distinguem
entre si as naturezas dos lugares: uns são salubres,
outros pestilentos; aqui, úmidos e quase abundantes
em líquido, acolá, secos e áridos; e mui tas outras
coisas existem que grandemente difiram de lugar pa
ra lugar. Em Atenas o céu é ténue: daí são conside
rados então mais perspicazes os áticos; em Tebas é
espesso: pingues e robustos por isso os tebanos. To
davia nem aquele ténue céu fará que ou a Zenão
ou a Arcésilas ou a Teofrasto alguém ouça 2 7 ; nem o
céu espesso de Tebas fará que alguém aspire à vitó
ria antes em Neméia que no Is tmo 2 8 .
8 Segue mais adiante: que influência pode então a na
tureza do lugar trazer, para que passeemos no Pór-
12
tico de Pompeu antes que no Campo 2 9 ? Contigo an
tes que com outro? Nos idos antes que nas calen
das? Então, como para certas coisas a natureza do
lugar influi em algo, e para outras em nada influi,
assim dos astros a natureza valha, se queres, para
certos casos; para todos certamente não valerá. "Mas
então, visto que nas naturezas dos homens há desse
melhanças, de sorte que a uns deleitem os doces, a
outros os um tanto amargos, uns libidinosos sejam,
outros iracundos, ou cruéis, ou soberbos, outros se
apartem de tais vícios; visto portanto q u e " - d i z e l e
f a n t a uma natureza dista da outra, que há de ma
ravilhoso em serem essas dessemelhanças criadas a
partir de diferentes causas?"
V 9 Disser tando sobre isso, (Crisipo) não percebe de
que a s sun to se trate, e em que cons is ta a causa .
Pois se uns são mais propensos a umas coisas, ou
tros a outras, em virtude de causas naturais e ante
cedentes , não é por isso que t ambém deva haver
causas naturais e antecedentes para nossas vontades
e desejos. Pois nada dependeria de nós, se a coisa
assim se passasse. Agora, reconhecemos que na ver
dade isto não depende de nós: que sejamos finos ou
ob tusos , robus tos ou fracos. Q u e m pensa, porém,
que se é coagido por isso, e que nem sequer seja
de nossa vontade o fato de que nos sen temos ou
andemos, esse não vê como uma coisa se segue de
outra 3 0 . Que, com efeito, engenhosos uns e rudes ou
tros assim nasçam por causas antecedentes, e igual
men te robustos uns e fracos outros, não se segue
todavia que também estar esses sentados e andar e
fazer a lgo seja definido e es tabe lec ido por causas
principais.
10 Que Esti lpão 3 1 , filósofo de Mégara, foi homem segu
r a m e n t e f ino e e s t i m a d o n a q u e l e s s eus t e m p o s ,
13
temos ouvido dizer. Os familiares do próprio (Estil-
pão) escrevem haver ele sido não só um ébrio como
também um mulherengo; e não o escrevem vitupe-
rantes, mas antes para louvor: pois dizem haver a
viciosa natureza por ele sido de tal modo domada e
reprimida com a instrução, que ninguém o teria vis
to alguma vez embriagado, ninguém teria nele visto
vestígio de libido. Que dizer então de Sócrates? Não
temos lido acaso de que modo Z ó p i r o - o fisionomis-
ta que se gabava de reconhecer pe r fe i t amente os
c o s t u m e s e as na tu rezas dos h o m e n s a part i r do
corpo, dos olhos, do vulto, da f ron te -hav ia caracte
rizado Sócra tes 3 2 ? Disse que Sócrates era estúpido e
retardado, porque não tivesse covinhas no pescoço;
obstruídas e obturadas dizia serem-lhe tais partes;
acrescentou até que ele era mulherengo-sobre o que
se diz ter Alcibíades soltado uma gargalhada 3 3 .
11 Mas esses vícios podem nascer de causas naturais;
serem extirpados, porém, e profundamente suprimi
dos, de maneira que seja de tantos vícios afastado
aquele m e s m o que a eles propenso haja sido, não
está isso posto em causas naturais, mas em vontade,
aplicação, disciplina. Suprime-se tudo isso, se a for
ça e a natureza do destino for estabelecida a partir
do argumento da adivinhação 3 4 .
V I C o m efeito, se a adivinhação existe, então de quais
percepções da capacidade técnica provém? - chamo
de "percepções" o que, em grego, se diz teoremas35.
Pois não creio que, sem a lguma percepção, ou os
demais artífices versem seu ofício, ou aqueles que se
servem da adivinhação predigam futuros.
12 Sejam portanto deste modo as percepções dos astró
logos: "Se alguém, por exemplo, nasceu ao elevar-se
da Canícula 3 6 , esse não morrerá no mar". Vigia, Cri
sipo, para que não abandones a tua causa, sobre a
14
qual sus tentas contra Diodoro , poderoso dialé t ico,
um grande combate 3 7 . Se efetivamente é verdadeiro
o que assim se concatena: "Se alguém nasceu ao ele
var-se da Canícula , esse não morrerá no mar", tal
também é verdadeiro: "Se Fábio nasceu ao elevar-se
da Canícula, Fábio não morrerá no mar" 3 8 . Opõem-se
portanto entre si estas coisas: ter Fábio nascido ao
elevar-se da Canícula, e haver Fábio de morrer no
mar; e porque se estabelece como certo, em Fábio,
ter ele nascido ao elevar-se da Canícula, também es
tas coisas se opõem: que Fábio existe, e que ele há
de morrer no mar. Logo , t ambém esta proposição
composta é estabelecida a partir de coisas contraditó
rias: "Fábio existe", e "Fábio morrerá no mar", o que,
como foi proposto, nem sequer pode acontecer. Logo,
tal proposição "Fábio morrerá no mar" é deste géne
ro: que não pode acontecer. Logo, tudo aquilo que
se a f i rma c o m o fa lso , s o b r e o fu turo , não p o d e
acontecer 3 9 .
V I I 13 Mas isso, Cr is ipo , de m o d o a lgum queres , e
p r i nc ipa lmen te a respe i to d isso m e s m o tens uma
disputa com Diodoro. Este, com efeito, diz ser pos
sível só o que ou seja verdadeiro ou deva ser ver
dadeiro; e o que quer que deva acontecer, isso ele
diz ser necessário acontecer; e o que quer que não
deva acontecer, isso ele nega ser possível. Quanto a
ti, dizes tanto ser possível o que não deva aconte
c e r - c o m o quebrar-se esta pedra preciosa, ainda que
isso nunca deva acon t ece r - , como dizes nem ter si
do necessário que Cípselo reinasse em Corinto, con
quanto isso houvesse sido anunciado mil anos antes
pelo o rácu lo de A p o l o 4 0 . Mas , se admi t i res c o m o
proféticas essas predições, também as falsas que se
rão ditas sobre as coisas futuras terás entre aquelas
que não possam ocorrer - como, por exemplo, caso se
15
diga que o Africano haverá de apossar-se de Cartag o 4 1 - ; e se com verdade se vier a dizer do futuro, e isso assim deva acontecer, dirás que era necessário: o que é a opinião toda de Diodoro, contrária à vossa 4 2 .
14 Com efeito, se isto ve rdade i ramente se concatena ,
"Se nasceste ao elevar-se da Canícula, não morrerás
no mar", e o primeiro membro que está na proposi
ção hipotética, "Nasceste ao elevar-se da Canícula", é
necessário - efetivamente todas as coisas verdadeiras
nos fatos passados são necessárias, como parece bem
a Crisipo, que difere de seu mestre Cleantes 4 3 , por
que os fatos passados são imutáveis e não podem, a
partir da verdade, converter-se na fals idade-; se en
tão o primeiro membro que está na proposição hipo
tética é necessár io , tornar-se t ambém necessár io o
que se lhe segue. Todavia isso não parece a Crisipo
valer em todos os casos; mas entretanto se há uma
causa natural para que Fábio não morra no mar, Fá
bio não pode morrer no mar.
V I I I 15 Neste passo Crisipo, agitando-se, espera que os
caldeus e também os restantes adivinhos se enganem
e não venham a servir-se de proposições compostas,
de modo a pronunciarem assim suas percepções: "Se
a lguém nasceu ao elevar-se da Canícula , esse não
morrerá no mar", mas antes assim digam: "Não exis
te a q u e l e que, nasc ido ao e l eva r - se da Can ícu l a ,
morrerá no mar". O licença divertida! Para que ele
próprio não incida em Diodoro, ensina aos caldeus
de que modo convenha que estes exponham as pró
prias percepções. Pergunto pois: se os caldeus assim
fa l a s sem-de maneira que estabelecessem as negações
das proposições compostas gerais antes que as pro
posições hipotéticas ge ra i s - , por que os médicos, por
que os geómetras, por que os demais não poderiam
16
fazer o mesmo? O médico em primeiro lugar, o que
houve r s ido por ele obse rvado , em sua ar te , não
proporá assim: "Se a alguém as veias se movem de
tal maneira, esse tem febre", mas antes deste modo:
"Não há alguém a quem as veias se movem de tal
maneira, e ele não tenha febre". E igualmente o geô-
met ra não dirá a s s i m : " N u m a esfera os c í r c u l o s
máximos se dividem iguais entre si", mas antes des
te modo : "Não há numa esfera c í rculos m á x i m o s
que também não se dividam iguais entre si".
16 Que é que não possa desse modo ser transferido da
proposição hipotética para a negação das proposições
compostas? E na verdade podemos expor de outros
modos as mesmas coisas. Há pouco eu disse: "Nu
ma esfera os c í rculos m á x i m o s se d iv idem iguais
entre si"; posso dizer: "Se numa esfera houver círcu
los máximos . . . " posso dizer: "Porque numa esfera
haverá círculos máximos...". Muitas são as maneiras
de enunciar - nenhuma mais torcida que aquela com
a qual Crisipo espera que os caldeus, por interesse
dos estóicos, hajam de ficar contentes 4 4 .
1 X 1 7 Nenhum deles, contudo, fala assim; pois é mais
difícil aprender inteiramente essas confusões de lin
guagem que os nascimentos e desaparecimentos das
constelações. Mas voltemos àquela discussão de Dio
doro, que m e n c i o n a m c o m o dos possíveis, na qual
aquilo que prevaleça, porque possa acontecer, se pro
cura. Agrada então a Diodoro somente poder aconte
cer aqui lo que ou seja ve rdade i ro ou haja de ser
verdadeiro. Esse ponto atinge esta questão: nada que
não haja s ido neces sá r i o acon tece , e , t udo o que
possa acontecer , isso ou já é ou haverá de ser; e
não mais podem ser a l teradas de verdade i ras em
falsas estas coisas que haverão de ser, tanto quanto
aquelas que foram feitas. Mas a imutabi l idade nos
17
fatos passados é evidente; em certos futuros, porque
não seja evidente, nem sequer parece existir, assim
c o m o em re lação à q u e l e que es te ja a cos sado por
mortífera doença, seja verdade dizer: "Este morrerá
por causa desta doença"; por outro lado, isso mes
mo, se dito segundo a verdade, em relação àquele
sobre o qual uma tão grande força da doença não
se evidencie, não haverá de realizar-se menos. As
sim, pois, acontece que nem sequer no futuro possa
acontecer aquela mudança do verdadeiro em falso.
Com efeito, a proposição "Cipião morrerá" tem tal
força que, embora dita a respeito do futuro, não po
de todavia converter-se em falsa: pois se diz de um
homem, a quem morrer é necessário.
18 Assim, se se dissesse "Cipião morrerá de noite, em
seu leito, assassinado com violência", seria dito se
gundo a verdade, pois seria dito haver de acontecer
aquilo que havia de acontecer; ora, ter estado para
acontecer deve ser entendido a partir disto: porque
aconteceu. E não era mais verdadeiro dizer "Cipião
morrerá" que "Morrerá de tal modo"; nem mais ne
cessário, a Cipião, morrer que morrer de tal modo;
nem mais imutável de verdadeiro em falso "Cipião
foi a s s a s s i n a d o " q u e "Cip ião será a s s a s s i n a d o " 4 5 .
Nem, quando essas coisas assim sejam, há mot ivo
para que Epicuro tema o destino e procure apoio da
parte dos átomos, e os desvie do trajeto próprio, e
duma só vez sustente duas coisas insolúveis: uma,
que algo aconteça sem causa - resultará daí que algo
aconteça do nada, o que não parece bem nem a ele
própr io nem a físico a l g u m - ; outra, que, quando
dois indivis íveis 4 6 se dirigem através do vazio, um
se mova em linha reta, outro decl ine 4 7 .
19 Com efeito, é lícito a Epicuro, que concede que todo
enunciado é ou verdadeiro ou falso, não temer que
18
seja necessário que todas as coisas aconteçam pelo
destino, pois não é por causas eternas decorrentes de
uma necessidade da natureza que é verdadeiro isto
que assim se enuncia "Carnéades desce à Academia",
nem todavia sem causas ; mas há diferenças entre
causas fortuitamente anteriores e causas que encer
ram em si uma eficiência natural 4 8 . Assim, sempre
foi verdadeiro "Morrerá Epicuro quando tiver vivido
setenta e dois anos, sendo arconte Pitarato", e contu
do não havia causas fatais para que assim chegasse
a acontecer; mas é porque assim tivesse acabado por
acontecer que com certeza teve de acabar acontecen
do assim como acabou acontecendo 4 9 .
20 E aqueles que dizem ser imutáveis as coisas que es
tejam para existir, e não poder o verdadeiro futuro
converter-se em falso, não confirmam a necessidade
do d e s t i n o , m a s só i n t e r p r e t a m o s e n t i d o d a s
palavras 5 ". Por outro lado, aqueles que introduzem
uma série sempi terna de causas, esses v inculam a
mente do homem, despojada de uma vontade livre,
à necessidade do dest ino 5 1 .
X Mas essas coisas até aqui; ve jamos outras. Crisipo,
com efeito, conclui deste modo: "Se há um movi
mento sem causa, não toda enunciação, que os dia-
léticos mencionam como axioma, será ou verdadeira
ou falsa, pois o que não tiver causas eficientes não
será verdadeiro nem falso; ora, toda enunciação é ou
verdadeira ou falsa; logo, nenhum movimento sem
causa existe.
21 Quanto a isso, se assim é, todas as coisas que acon
tecem, acon tecem por causas anter iores ; se isso é
assim, todas as coisas acontecem pelo destino: de-
duz-se então que pelo destino acontecem quaisquer
coisas que aconteçam". Aqui pr imei ramente se me
aprouver assentir a Epicuro e negar que toda enun-
19
ciação seja ou verdadeira ou falsa, aceitarei antes es
se ponto que admitir que todas as coisas aconteçam
p e l o d e s t i n o : p o i s a q u e l a o p i n i ã o t em a l g o d e
disputa; esta, na verdade, não é tolerável. E assim
Crisipo faz todos os esforços para persuadir que to
do axioma ou é verdade i ro ou falso. Assim como,
com efeito, Epicuro receia, se tiver concedido isso,
que se deva conceder que acontecem pelo des t ino
quaisquer coisas que aconteçam - com efeito, caso um
e outro ponto seja verdadeiro desde toda a eternida
de, é isso também certo, e, se certo, também neces
sário: assim ele pensa que se confirmam então tanto
a necessidade como o d e s t i n o - ; deste modo Crisipo
temeu que, se não tivesse obtido ou ser verdadeiro
ou falso tudo que se enuncie, não pudesse sustentar
que todas as coisas acontecem pelo destino e a par
tir de causas eternas de acontecimentos futuros.
22 Mas pela declinação do átomo Epicuro julga ser evi
tada a neces s idade do dest ino. E assim um cer to
te rce i ro m o v i m e n t o surge , a lém de peso e go lpe ,
quando o átomo declina num intervalo m í n i m o - e l e
o m e n c i o n a c o m o o menor-; e ele é c o m p e l i d o a
confessar, senão por palavras, por fato, que essa de
clinação acontece sem causa. Com efeito, um átomo
não declina com impulso da parte de outro átomo.
Pois qual, um por outro, pode ser impelido, se os
corpos indivisíveis são levados pela gravidade, verti
ca lmente , em linhas retas, como apraz a Epicuro?
Segue-se então que, se um por outro nunca é des
viado, nem sequer um toque ao outro. Deduz-se daí,
ainda que o átomo exista, e que ele decline, que ele
declina sem causa.
23 E tal raciocínio Epicuro o introduziu por este moti
vo: porque receou que, se s e m p r e o á tomo fosse
levado por gravidade natural e necessária, nada nos
2 0
seria livre, visto que assim se moveria a alma, con
forme fosse compelida pelo movimento dos átomos.
Isto, que todas as coisas acontecem pela necessidade,
Demócri to , o autor da teoria dos átomos' 1 2 , preferiu
aceitar a arrancar dos corpos indivisíveis os movi
mentos naturais.
XI De manei ra ma i s perspicaz procedeu C a r n é a d e s 5 3 ,
que ensinava poderem os epicuristas defender a pró
pria causa s e m essa i m a g i n a d a d e c l i n a ç ã o . Po is
como ensinassem poder existir algum movimento vo
luntário da alma, ser isso defendido era melhor que
introduzir uma declinação cuja causa sobretudo não
pudessem descobrir: defendido isso, facilmente pode
riam resistir a Crisipo. Pois, ainda que tivessem con
cedido não existir movimento algum sem causa, não
concederiam acontecer por causas antecedentes todas
as coisas que acontecessem: pois para a nossa vonta
de não há causas externas e antecedentes.
24 Portanto abusamos de um comum cos tume de lin
guagem, quando assim d izemos que a lguém quer
algo ou não quer, sem causa; porque assim dizemos
"sem causa" conforme queremos dizer: sem causa ex
terna e a n t e c e d e n t e , não sem a l g u m a c a u s a ; do
m e s m o modo, quando d izemos que um vaso está
vazio, não falamos assim como os físicos, aos quais
apraz que o vazio nada seja, mas da mesma forma
que, por força de expressão, queremos dizer estar o
vaso sem água, sem vinho, sem óleo; assim também,
quando d izemos que a a lma se move sem causa ,
queremos dizer que se move sem causa antecedente
e externa, não absolutamente sem causa. Do próprio
átomo, já que se move pela gravidade e peso atra
vés do vazio, pode-se dizer que se move sem causa,
porque nenhuma causa se lhe acrescenta de fora.
25 Novamente p o r é m - p a r a que todos os físicos não se
21
r iam de nós, se d i sse rmos que a lgo acon tece sem causa - deve-se distinguir e assim dizer que tal é a natureza do próprio indivisível, de maneira que pelo peso e gravidade ele se mova, e que essa própria natureza é a causa pela qual ele assim seja transportado. Semelhan temente , não se deve procurar uma causa externa para os movimentos voluntários das almas, pois o próprio movimento voluntário contém em si aquela natureza, de tal forma que esteja em nosso poder e nos obedeça, e isso não sem causa, pois desse fato a causa é a própria natureza.
26 Já que isso assim seja, que há para que toda propos i ç ã o n ã o se ja ou v e r d a d e i r a ou fa lsa , s e m q u e tenhamos concedido acontecer pelo destino qualquer coisa que aconteça?
"Porque coisas futuras verdadeiras" - diz ( C r i s i p o ) 5 4 -
não podem ser as que não têm causas pelas quais
devam acontecer; então é necessário que as que são
verdadeiras tenham causas: assim, quando t iverem
ocorrido, terão ocorrido pelo destino".
X I I O assunto está concluído, se por ti deve ser conce
dido ou que pelo destino todas as coisas aconteçam
ou que algo possa acontecer sem causa.
27 Acaso esta proposição "Cipião tomará Numância" de
outro modo não pode ser verdadeira, a não ser que
desde toda a eternidade uma causa encadeando ou
tra tiver de produzir isso? Acaso isso teria podido
ser falso se fosse dito seiscentos séculos antes? E se
então não fosse verdadeira esta proposição "Cipião
tomará Numância", nem estoutra sequer seria verda
deira "Cipião tomou Numância". Pode então haver
sucedido algo que não tenha sido verdade haver de
suceder? Pois como denominamos verdadeiras estas
coisas pretéritas das quais em um tempo ainda ante
rior verdadeira tenha sido a realização, assim verda-
22
dei ras d e n o m i n a r e m o s aque la s co i sas futuras das
quais em um tempo seguinte verdadeira será a rea
lização.
28 E se todo enunciado é ou verdadeiro ou falso, não
se s egue imed ia t amen te haver causas imutáve i s e
eternas que proíbam que algo acabe acontecendo de
modo diferente do que venha a acabar acontecendo.
Fortuitas são as causas que estabeleçam que verda
deiramente se diga o que assim se dirá: "Catão virá
ao senado"; elas não estão incluídas na natureza das
coisas e no mundo, e todavia tanto é imutável "terá
de vir", quando verdadeiro , quanto "ter v i n d o " - e
nem por essa causa o destino ou a necessidade de
ve ser temida. Porquanto será necessário confessar:
se este enunciado "Hortêncio virá a Tusculano" não
é verdadeiro, segue-se que seja falso. Desses enun
ciados, esses n 3 nem num nem outro querem, o que é
impossível.
Nem nos embaçará aquele raciocínio que é conside
rado preguiçoso: com efeito, pelos filósofos é cha
mado raciocínio preguiçoso um certo raciocínio com o
qual, se o aceitássemos, nada absolutamente faríamos
em vida. Assim pois argúem: "Se o destino para ti é
convalescer desta doença, quer tu tenhas consultado
um médico quer não tenhas consultado, convalescerás;
29 paralelamente, se o destino para ti é não convalescer
desta doença , quer tenhas consu l t ado um m é d i c o
quer não tenhas consultado, não c o v a l e s c e r á s - e um
outro destino existe para ti: logo, consultar um mé
dico é indiferente".
X I I I Corretamente tal género de argumentação foi de
n o m i n a d o de p r egu i çoso e iner te , porque , com o
mesmo raciocínio, tolher-se-á toda ação da vida. Pa
ra não ajuntar o nome de destino e todavia manter
o mesmo sentido, pode-se até modificar a frase, des-
23
te modo: "Se desde toda a eternidade verdadeiro foi
isto 'dessa doença convalescerás', quer tenhas consul
tado um médico quer não tenhas consultado, conva
lescerás; e paralelamente, se desde toda a eternidade
falso foi isto 'dessa doença convalescerás ' , quer te
nhas consultado um médico quer não tenhas consul
tado, não c o n v a l e s c e r á s " - e assim quanto ao mais .
Esse raciocínio é criticado por Crisipo.
30 "Algumas coisas s ã o " - d i z e l e - " s i m p l e s nos fatos;
outras, associadas . S imples é 'Sócra tes morrerá tal
dia ' ; quanto a isso, quer tenha ele feito algo quer
não tenha feito, o dia de morrer lhe foi determina
do. M a s se o des t ino é ass im ' É d i p o nasce rá de
La io ' , não se poderá dizer ' Q u e r Laio tenha com
mulher estado quer não tenha estado' , pois é uma
coisa associada e confatnl"*6. Assim, com efeito, (Cri
sipo) nomeia isso, porque assim o destino seja: que
tanto Laio haverá de ter relações com a esposa, co
mo, dela, haverá de procriar Édipo; assim como se
houvesse s ido di to "Milão lutará nos jogos ol ímpi
cos", e alguém respondesse "Logo, quer tenha adver
sário quer não tenha, ele lutará", erraria, pois "ele
lutará" é fato associado, porque sem adversário ne
n h u m a luta há. Por tan to todos os sof i smas d e s s e
género são refutados do mesmo modo. "Quer tu te
nhas consultado um médico quer não tenhas consul
t ado , c o n v a l e s c e r á s " : s o f i s m a , pois t an to é fatal
consultar um médico como convalescer. Essas coisas,
conforme eu disse, ele (Crisipo) chama de confatais.
X I V 31 Carnéades não aprovava esse género todo de
argumentação, e julgava ser tal raciocínio concluído
demasiado inconsideradamente. E assim pressionava
(a Crisipo) de outro modo, e não recorria a algum
falso pre tex to 3 7 . A argumentação dele era esta: "Se
todas as coisas acontecem por causas antecedentes,
2 4
todas as coisas acontecem por conexão natural, liga
da e encadeadamente; se isso é assim, a necessidade
produz todas as coisas; se isso é verdadeiro, nada
está em nosso poder; há porém algo em nosso po
der; mas se todas as coisas acontecem pelo destino,
todas as coisas acontecem por causas antecedentes;
então não acontecem pelo dest ino quaisquer coisas
que acontecem"^ 8 .
32 A tal ponto um raciocínio não pode ser mais estrei
tamente espremido. Pois se alguém quisesse replicar
ao mesmo e assim dizer "Se todo futuro desde toda
a eternidade é verdadeiro, de maneira que certamen
te assim, do mesmo modo que haja de ser, ocorra,
en tão é necessá r io que todas as coisas a c o n t e ç a m
por conexão natural, ligada e encadeadamente", nada
diria. Porquanto é muito diferente: que porventura
uma causa natural desde toda a eternidade produza
futuros verdadeiros, ou que, também sem uma eter
nidade natura l 3 9 , as coisas que hajam de ser, essas
como verdadeiras possam ser entendidas 6 0 . Por isso
dizia Carnéades que nem mesmo Apolo podia dizer
as coisas futuras, a não ser aquelas cujas causas a
natureza assim contivesse, de maneira que seria ne
cessário que elas acontecessem.
33 Com efeito, considerando o quê, o próprio deus di
ria que aque le Marce lo que foi três vezes cônsul
haver ia de pe rece r no m a r 6 1 ? Isso era ce r t amen te
verdadeiro desde toda a eternidade, mas não tinha
em si causas eficientes. Assim, nem sequer estas coi
sas pretéritas, das quais sinais alguns subsistem tais
quais vestígios, (Carnéades) julgava serem conhecidas
por Apolo: quanto menos as coisas futuras! Pois só
conhecidas as causas eficientes de cada fato, é que
se pode enfim saber o que há de acontecer. Logo,
nem sobre Édipo - nenhuma causa tendo sido pre-
2 5
posta na natureza dos acontecimentos, para que fos
se necessár io que o pai fosse morto por e l e - t e r i a
Apolo podido predizer, nem teria podido predizer
coisa alguma de tal espécie.
XV Por conseguinte, se aos estóicos, que dizem que to
das as coisas acontecem pelo destino, é consentâneo
c o m p r o v a r os oráculos dessa espécie e os dema i s
q u e são g u i a d o s a pa r t i r da a d i v i n h a ç ã o , s o b r e
aqueles, porém, que dizem que são verdadeiras des
de toda a eternidade estas coisas que hão de aconte
cer, o m e s m o não deve ser d i t o - v ê que não é a
m e s m a a causa deles e a dos estóicos: estes, com
efeito, são pressionados mais l imitadamente; daque
les, o raciocínio é desembaraçado e livre.
34 Porque se se concede que nada pode ocorrer a não
ser por uma causa antecedente, que se avança, se não
se considera essa causa como ligada a partir de cau
sas eternas? Ora, a causa é aquela que produz aquilo
de que é causa: como da morte a ferida, da doença a
indigestão, do ardor o fogo. Por conseguinte, não se
deve entender uma causa assim como: aquilo que an
teceda a cada co isa lhe seja a causa , m a s c o m o :
aquilo que eficientemente anteceda a cada coisa. Por
que tenha eu descido ao Campo de Marte, isso não
tem servido de causa para que eu jogasse péla; nem
Hécuba, porque a Alexandre tenha gerado, foi a cau
sa da destruição dos troianos; nem Tíndaro a causa
da destruição de Agamenão, porque a Clitemnestra te
nha gerado. Pois desse modo dir-se-á haver também o
viajante bem vestido servido de causa a um salteador,
para que por este fosse espoliado.
35 Desse género é isto, de Ênio:
"Oxalá no bosque do monte Pélio, pelos machados Cortadas, não houvessem caído à terra as traves de abeto!"
2 6
Seria lícito até mais profundamente dizer: "Oxalá no
pélio nenhuma árvore houvesse algum dia nascido!"
-e mais ainda: "Oxalá nenhum monte Pélio existis
se!"; e, da mesma maneira, é possível que o repe
tente retroceda infinitamente a coisas anteriores.
"E que daquele lugar a base da construção de um
navio
Não se houvera começado!"
A que fim esses pretéritos? É porque se segue isto:
"Pois nunca minha errante senhora levaria para fo
ra de casa o pé,
Ó Medeia, de espírito triste, ferida por um cruel
amor!"
...não de maneira que esses fatos trouxessem a cau
sa do amor 6 2 .
XVI 36 No entanto há diferença, dizem, se acaso algu
ma coisa for de tal modo: sem a qual outra coisa
não possa ser produzida , ou de tal modo: com a
qual outra coisa seja necessário ser produzida. Então
nenhuma dessas coisas acima mencionadas é causa,
porque nenhuma produz por força própria aque le
acontecimento de que se diz ser ela a causa. N e m
isto, sem o que algo não acontece, é causa; mas is
to que, quando sobrevêm, produz necessar iamente
aquilo de que é causa. Ainda não tendo sido então
ferido Fi locte tes por mordedura de serpente , qual
causa es tava contida na natureza das coisas, para
haver de acontecer que ele fosse abandonado na ilha
de Lemnos? Depois, porém, uma causa houve, mais
próxima e mais ligada a seu efei to 6 3 .
37 Então a razão do evento revela a causa. Mas desde
toda a eternidade esta proposição tem sido verdadei
ra: "Filoctetes será abandonado numa ilha"; e isso
não podia de verdadeiro em falso converter-se. Com
efeito, é necessário em duas coisas con t rá r ias -e con-
27
trarias digo aqui aquelas das quais uma diz o que a
outra nega- , dessas então é necessário, constrangedo-
ramente a Epicuro, ser uma verdadeira, outra falsa.
Assim "Filoctetes será ferido" tem sido, em todos os
séculos antes, verdadeiro; "Não será ferido" tem sido
falso. A não ser que por acaso queiramos seguir a
opinião dos epicuristas, que dizem não ser nem ver
dadeiras nem falsas tais proposições, ou, quando isso
envergonha, dizem todavia isto, que é mais impu
dente: que as alternativas entre as proposições con
t r á r i a s s ã o v e r d a d e i r a s , m a s , d e s s a s c o i s a s q u e
h o u v e s s e m ne la s s i d o e n u n c i a d a s , n e n h u m a das
duas é verdadeira.
38 O admirável licença e miserável insciôncia do disser
tar! Pois se algo no falar nem verdadeiro nem falso
é, certamente verdadeiro isso não é; ora, o que não
é ve rdade i ro c o m o pode não ser falso? ou o que
não é falso como pode não ser verdadeiro? Ter-se-á
portanto isto, que é defendido por Crisipo: ser toda
enunciação ou verdadeira ou falsa. A própria razão
nos forçará a admitir tanto haver desde toda a eter
n idade certas coisas verdadei ras , como não se rem
estas ligadas a causas eternas, como também serem
livres de uma necessidade do destino.
XVII 39 E por outro lado a mim na verdade parece -
c o m o de ant igos filósofos duas sentenças t ivessem
existido, uma: desses que julgassem acontecer assim
pelo destino todas as coisas, de modo que esse des
tino trouxesse a força da necessidade, sentença com
a qual Demócri to , Heráclito, Empédocles, Aristóteles
es teve 6 4 ; a outra: destes para os quais os movimen
tos vo lun tá r ios das a lmas pa reces sem exis t i r sem
depender de destino a l g u m - t e r Crisipo, tal qual ár
bitro honorário, querido atingir um meio; mas ele se
a p r o x i m a antes daque l e s que que rem l iber tos de
28
uma necessidade os movimentos das almas; ora, en
quan to ele se se rve de suas palavras , cai em tais
dificuldades, de modo a confirmar, constrangido, a
necessidade do destino.
40 E isso, se te apraz tal como seja, vejamos nos assen
t imentos de que na pr imeira o ração t r a t e i 6 3 . C o m
efeito, aqueles antigos, para os quais todas as coisas
pareciam acontecer pelo destino, diziam ser tais as
sentimentos produzidos por força e necessidade. Os
que entretanto deles dissentiam, liberavam do desti
no os assentimentos e negavam que, aplicado o des
tino aos assentimentos, a necessidade pudesse destes
ser removida; e eles assim dissertavam: "Se todas as
coisas acontecem pelo destino, todas as coisas acon
tecem por uma causa antecedente; e então se a ten
d ê n c i a é a s s i m , a q u e l a s c o i s a s q u e s e g u e m a
tendência também o são; logo, os assentimentos tam
bém; mas se a causa da tendência não está situada
em nós, nem sequer a própria tendência está em
nosso poder; se isso é ass im, nem sequer aquelas
coisas que são produzidas pela tendência estão situa
das em nós; não há então nem assent imentos nem
ações em nosso poder . Deduz - se da í que nem as
louvações sejam justas, nem as vituperações, nem as
honras, nem os suplícios". Como isso seja erróneo 6 6 ,
eles pensam que com probabi l idade deve ser con
cluído que todas as coisas que acontecem não acon
tecem pelo destino.
XVIII 41 Crisipo, entretanto, como não só desaprovasse
a necessidade como também quisesse que nada ocor
resse sem causas prepostas , d i s t ingue géneros de
causas, para tanto evitar a necessidade como conser
var o destino. "Das causas" -d i z e l e - " u m a s são per
feitas e principais; outras, auxiliares e próximas. Eis
porque quando dizemos que todas as coisas aconte-
29
cem pelo des t ino a partir de causas an tecedentes ,
não queremos que se entenda isto: a partir de cau
sas perfei tas e pr incipais , mas : a partir de causas
auxiliares /antecedentes / e próximas." E deste modo,
àque l e rac ioc íc io que pouco antes conclu í , e le se
opõe assim: Se todas as coisas acontecem pelo desti
no, c e r t a m e n t e tal se s egue : que todas as co i sas
acon tecem a part i r de causas antepostas ; mas em
verdade não de causas principais e perfeitas, mas de
auxiliares e próximas. Se estas mesmas não estão em
nosso poder, não se segue que nem sequer a ten
dência esteja em nosso poder. Por outro lado, isso
se seguiria, se disséssemos que todas as coisas acon
tecem a partir de causas perfeitas e principais, de
manei ra que, quando essas causas não es t ivessem
em nosso poder, nem sequer aquela (a tendência)
estaria em nosso poder.
42 Eis porque contra aqueles que assim introduzem o
destino, como para ajuntar a necessidade, valerá tal
argumentação; porém contra estes que não disserem
perfeitas nem principais as causas antecedentes, a ar
gumentação não terá valor. Quanto na verdade ao
fato de que digam que os assentimentos aconteçam
a part ir de causas antepostas , isso, tal c o m o seja,
(Crisipo) considera fácil ser por ele explicado. Pois,
conquanto não possa acontecer a não ser posto em
movimen to por uma representação 6 7 , todavia c o m o
tenha essa r ep resen tação por causa p róx ima , não
principal, um assentimento tem tal explicação, como
Crisipo quer, conforme dissemos há pouco. Não que
aquele (o assentimento) na verdade possa acontecer
não excitado de fora por alguma f o r ç a - é necessário,
com efeito, que o assentimento seja posto em movi
men to por uma r e p r e s e n t a ç ã o - , mas ele (Cris ipo)
v o l t a a seu c i l i n d r o e a s u a t u r b i n a , q u e n ã o
3 0
podem, a não ser com um impulso, começa r a se
mover ; porém quando isso chega a acontecer , ele
considera, quanto ao mais, que tanto o cilindro é ro
lado c o m o a turbina é gi rada pela natureza deles
próprios.
X I X 4 3 "Por tan to" -d iz e l e - " c o m o aquele que empur
rou o c i l i n d r o lhe deu p r i n c í p i o de m o v i m e n t o
porém não lhe deu rotação, assim aquela representa
ção ap resen tada impr imi rá ce r t amen te e ma i s ou
m e n o s g rava rá sua i m a g e m em nossa a lma , mas
nosso a s s e n t i m e n t o estará em nosso poder , e , do
mesmo modo que se disse do cilindro, impulsionado
de fora, ele se moverá quanto ao resto por sua pró
pria força e natureza. Por isso que, se alguma coisa
se produzisse sem causa antecedente, seria falso que
todas as coisas acontecem pelo destino; mas se a to
das as coisas quaisquer que acontecem é verossímil
que uma causa anteceda, que razão poderá ser adu
zida para que não se reconheça que todas as coisas
aconteçam pelo dest ino? Somen te se entenda qual
seja das causas a distinção e diferença."
44 Logo que essas coisas assim tenham sido explicadas
por Crisipo, se aqueles que negam que os assenti
mentos aconteçam pelo destino reconhecem todavia
que os mesmos não acontecem sem uma representa
ção antecedente , outro lhes é o tipo de raciocínio;
mas se eles concedem que as represen tações v êm
antes, e que os assentimentos todavia não acontecem
pelo dest ino - porque não provoque nosso assent i
mento aquela causa próxima e suf ic ien te - , vê bem
que não estejam eles dizendo o mesmo. E Crisipo,
então, ao não conceder que a causa próxima e sufi
ciente do assentimento esteja posta na representação,
t ampouco concederá que essa causa seja necessária
para o assentir, de maneira que, se todas as coisas
31
acontecem pelo destino, todas aconteçam a partir de
causas antecedentes e necessárias; e igualmente aque
les que diferem disso, confessando que os assenti
mentos não acontecem sem a precedência das repre
sentações, dirão que, se todas as coisas acontecessem
pelo des t ino des te m o d o - admi t indo-se que nada
acon teces se a não ser com a precedênc ia de uma
c a u s a - , dever-se- ia confessar que todas as coisas
acontecem pelo destino; daí é fácil de e n t e n d e r - p o r
chegarem, desvendada e expl icada de um e outro
sua sentença, à mesma c o n c l u s ã o - q u e eles dissidem
em palavras, não em concei to 6 8 .
45 E de modo geral , c o m o esta seja a d is t inção: que
em cer tos casos v e r d a d e i r a m e n t e se possa dizer,!
quando tais causas tenham precedido, não estar em
nosso poder impedir que não ocorram aqueles fatos 1
cujas causas tenham existido; porém em outros ca
sos, sendo antegressas as causas, estar todavia em
nosso poder que aquilo de outro modo ocorra - essa
d i s t inção uns e outros ap rovam; mas uns ju lgam
que em tais casos, quando as causas tenham antece-;
dido, não esteja em nosso poder que de outro modo
aqueles fatos ocorram, eles acontecem pelo destino,
porém as coisas que estejam em nosso poder, dessas
o destino está afastado... 6 9 .
XX 46 Deste modo convém discutir esta questão, não
convém procurar apoio a partir de átomos errantes e
declinantes do trajeto. "O á tomo" -d i z (Epicuro) - "de
clina". Primeiramente, por quê? Da parte de Demó
crito eles tinham já uma outra certa força motriz de
impu l são , que e le chama de go lpe ; da tua par te , j
Epicuro, de gravidade e peso. Qual é então na natu
reza a nova causa que decl ine o á tomo? Ou acaso*
sorteiam-se entre si: aquele que decline, aquele que]
não? Ou por que declinariam num intervalo muito pe-
32
queno, não num maior? Ou por que declinariam num
só muito pequeno intervalo, e não declinariam em dois,
ou três? Isso na verdade é optar, não discutir.
47 Pois nem dizes que o á tomo se desloca e decl ina
impulsionado de fora; nem que, naquele vazio pelo
qual o átomo é transportado, tenha havido qualquer
coisa de causa para que ele não fosse transportado
em linha reta, nem que aconteceu algo de mutação
no próprio átomo para que assim ele não conservas
se o movimento natural de seu peso.
Assim, embora (Epicuro) não houvesse trazido causa
a lguma que produzisse essa decl inação, parece-lhe
todavia dizer a lgo de impor tante , a inda que diga
aquilo que as mentes de todos desprezem e rejeitem.
48 Em verdade, ninguém me parece confirmar mais não
só o destino mas também a necessidade e força de
todas as coisas, e ninguém me parece ter mais su
pr imido os m o v i m e n t o s voluntár ios da a lma, que
este (Epicuro), que reconhece que não teria podido
de outro modo resistir ao destino, se não houvesse
recorrido a essas inventadas declinações. Pois ainda
que os átomos existissem - os quais de nenhum mo
do me pode ser provado que verdadeiramente exis
t e m - , todavia nunca se expl icar iam essas decl ina
ções. Com efeito, se aos átomos foi pela necessidade
da natureza atribuído que sejam transportados pela
g r av idade -po rque é necessário que todo peso, coisa
nenhuma impedindo, se movimen te - , também a cer
tos átomos ou, se (os epicuristas) querem, a todos,
conforme a natureza, tal é necessário: que eles decli
nem.. . 7 0 .
33
I
GÉLIO™, (fragmento) das Noites áticas VII (VI), 2, 1 5 7 2 .
E assim Marco Cícero no livro que compôs Sobre o des
tino, quando disse que essa questão era mui to obscura
e intrincada, que Crisipo, também filósofo, não havia ti
do bom êxito nela, disse com estas palavras: Crisipo,
agitando-se e laborando então para que explique deste
modo tanto acontecerem pelo dest ino todas as coisas
como estar algo em nosso poder, fica embaraçado.
II
SÉRVIO, Acerca da Eneida de Virgílio [11,37o73.
E (o deus) faz rolar as sortes: definição do destino se
gundo Túlio, que diz: O destino é a conexão das coisas
entre si através da eternidade, mantendo-se alternativa
mente , que varia pela sua ordem e lei, de tal modo
porém que a própria variedade possua a eternidade.
Ill
AGOSTINHO, A Cidade de Deus V, 8.
T a m b é m dão apoio a esta sentença aqueles versos de
Homero (cf. V.pistolae, 107, 9, de Séneca) , que Cícero
verte para o latim:
As mentes dos homens são tais como a luz com a
qual o próprio pai
Júpiter iluminou as fecundas terras.
37
Nem nesta questão a sentença poética teria autoridade
mas porque (Cícero) diz que os estóicos, reivindicando |
força do destino, costumam apropriar-se desses versos d
Homero, não se trata da opinião daquele poeta, mas d
desses filósofos, visto que através desses versos que leva
a uma discussão que eles têm sobre o destino, muit
abertamente é declarado o que eles sentem que é o desti
no, porque proc lamam Júpi ter , a quem consideram
sumo deus, do qual dizem pender a conexão dos destinos
IV
AGOSTINHO, A Cidade de Deus V, 2 7 4 .
V
MACRÓBIO, Saturnais III, 16, 3 7 5 .
E para que o poeta não seja testemunha de menor valor
ouve, segundo afirma Cícero, em qual honra tenha estad
este peixe junto a Públio Cipião, aquele de Africa e Nu-f
maneia. Estas são no diálogo Sobre o destino as palavras de
Cícero: Pois como Cipião estivesse em sua casa em Lavér-
nio e juntamente com Pôncio, foi trazido por acaso a
Cipião um esturjão, que muito raramente se apanha, mas
é peixe, como dizem, sobremaneira fino. Como pois Cipião
houvesse convidado a um ou dois daqueles que tinham
vindo para saudá-lo, e parecesse ainda estar para convidar
a muitos, Pôncio lhe disse ao ouvido: "Cipião, vê o que
fazes; esse esturjão é para poucos homens".
VI
NÓNIO, pág. 35/\
Diminuir um dito é não restringir nem elogiar excessiva
mente...
Cícero, nos tratados Sobre o destino e Sobre os li>nites dos
bens e dos inales, livro IV, diz: Com o esplendor da virtu
de diminuis a penetração de nossas almas.
38