5. Programas de transferência de renda no Brasil ... · gramática política do Brasil:...
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5. Programas de transferência de renda no Brasil: antecedentes e tendências recentes
Neste capítulo farei inicialmente um histórico dos direitos sociais no Brasil
desde 1930. Em seguida, serão abordados os debates sobre a presença ou ausência
de condicionalidades como fator de decisão da escolha dos beneficiários dos
programas. Serão estudados os primeiros programas de transferência de renda e a
implantação do formato atual, o Bolsa Família, programa de transferência direta
de renda que beneficia famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza, e
que tem como objetivos reduzir a pobreza no Brasil, especialmente a pobreza
extrema, e interromper o ciclo intergeracional de reprodução da pobreza.
5.1. Direitos sociais no Brasil a partir de 1930
Com relação aos direitos sociais, a queda da Primeira República traria um
avanço em relação à sua proclamação em 1889. O governo revolucionário criou o
Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Seguiu-se uma legislação
trabalhista e previdenciária em 1934, completada posteriormente pela
Consolidação das Leis do Trabalho. O artigo 120 da Constituição de 1934
reconhecia os sindicatos e associações profissionais, assegurando ainda que os
sindicatos teriam pluralidade sindical e completa autonomia. Já o artigo 121
previa que “a lei promoverá o amparo da produção e estabelecerá as condições do
trabalho, na cidade e nos campos, tendo em vista a proteção social do trabalhador
e os interesses econômicos do país” (Poletti, 2012: 134). Neste mesmo artigo
tratava-se de isonomia salarial, salário mínimo, jornada de oito horas, proibição de
trabalho a menores de 14 anos, férias remuneradas e instituição de sistema
previdenciário, entre outros direitos.
Segundo Wanderley Guilherme dos Santos, em Cidadania e justiça: a
politica social na ordem brasileira, havia, até 1932, uma situação na qual
109
[...] enquanto o Estado preocupava-se, essencialmente, em reordenar as relações
no processo de acumulação, a questão social, strictu sensu, se vinha resolvendo,
privadamente, mediante os acordos de seguro com que se comprometiam,
privadamente, empregadores e empregados. A responsabilidade estava clara e
nitidamente dividida: ao Estado incubia zelar por maior ou melhor justiça no
processo de acumulação, enquanto que às associações privadas competia
assegurar os mecanismos compensatórios das desigualdades criadas por esse
mesmo processo (Santos, 1979: 31).
Em Cidadania no Brasil: o longo caminho, José Murilo de Carvalho,
apoia-se nos estudos de Thomas Humphrey Marshall 31
(Marshall, 1967) sobre a
conquista dos direitos na Inglaterra. Ao trazer esse referencial para o Brasil,
Carvalho chama a atenção para o fato de que a cidadania é um fenômeno
histórico. Apesar de que o ponto de chegada possa ser, na tradição ocidental,
semelhante, os caminhos percorridos podem ser diferentes e não seguem
obrigatoriamente um mesmo traçado. “Pode haver também desvios e retrocessos,
não previstos por Marshall” (Carvalho, 2002: 11). Uma das importantes
diferenças entre a nossa cidadania e a dos ingleses está no fato de que lá, os
direitos políticos, civis e sociais foram sendo conquistados pela sociedade,
enquanto que no Brasil, como “em alguns países, o Estado teve mais importância
e o processo de difusão dos direitos se deu principalmente a partir da ação estatal”
(Carvalho, 2002: 12).
O governo Vargas pregava o desenvolvimento econômico, o industrial, a
construção de estradas de ferro e o fortalecimento das Forças Armadas. Uma
economia até então dirigida para a exportação passou a criar, fortalecer e
nacionalizar os mercados de trabalho e de consumo. Apesar do avanço, havia
injustiças: o sistema excluía os autônomos, os empregados domésticos e os
trabalhadores rurais.
Ao lado do grande avanço que a legislação significava, havia também aspectos
negativos. O sistema excluía categorias importantes de trabalhadores. No meio
urbano, ficavam de fora todos os autônomos e todos os trabalhadores (na grande
maioria, trabalhadoras) domésticos. Estes não eram sindicalizados nem se
beneficiavam da política de previdência. Ficavam ainda de fora todos os
trabalhadores rurais, que na época ainda eram maioria. Tratava-se, portanto, de
uma concepção da política social como privilégio e não como direito. Se ela fosse
concebida como direito, deveria beneficiar a todos e da mesma maneira. Do
31
Thomas Humprey Marshall (1893-1981) nasceu em Londres e morreu em Cambridge.
Sociólogo, foi Chefe do Departamento de Ciências Sociais da London School of Economics de
1939 a 1944, e Chefe do Departamento de Ciências Sociais da UNESCO de 1956 a 1960. Os
estudos de Marshall sobre os direitos civis, sociais e políticos na Inglaterra estão em: Marshall,
Thomas Humphrey. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
110
modo como foram introduzidos, os benefícios atingiam aqueles a quem o governo
decidia favorecer, de modo particular aqueles que se enquadravam na estrutura
sindical corporativa montada pelo Estado. Por esta razão, a política social foi bem
caracterizada por Wanderley G. dos Santos como “cidadania regulada”, isto é, uma cidadania limitada por restrições políticas (Carvalho, 2002, 108-109).
Santos sugere que o conceito de cidadania é fundamental para
compreender as políticas econômicas e sociais dos anos que se seguiram à
revolução de 1930. No entanto, seria uma cidadania regulada
[...] cujas raízes encontram-se, não em um código de valores políticos, mas em
um sistema de estratificação ocupacional, e que, ademais, tal sistema de
estratificação é definido por norma legal. Em outras palavras, são cidadãos todos
aqueles membros da comunidade que se encontram localizados em qualquer uma
das ocupações reconhecidas e definidas em lei. A extensão da cidadania se faz,
pois, via regulamentação de novas profissões e/ou ocupações, em primeiro lugar,
e mediante ampliação do escopo dos direitos associados a estas profissões, antes
que por expansão dos valores inerentes ao conceito de membro da comunidade
(Santos, 1979: 75).
A instituição da carteira de trabalho em 1932, que seria “a evidência
jurídica fundamental para o gozo de todos os direitos trabalhistas” (Santos, 1979:
76), é, junto com a regulamentação das profissões e com a existência de sindicatos
que necessitavam ser reconhecidos pelo Estado, o tripé desta cidadania regulada
pelo Estado. Os direitos estão vinculados às profissões, e estas precisam ser
reconhecidas através de regulamentações.
A ênfase nos direitos sociais encontrava terreno fértil na cultura política da
população, principalmente na dos pobres dos centros urbanos.
Ao período laissez-fairiano repressivo da República Velha sucedeu a época da
simultânea ênfase na diferenciação da estrutura produtiva, na acumulação
industrial, e na regulamentação social [...]. O sistema foi rapidamente montado
nos primeiros quatro anos da década de 30 e solidamente institucionalizado. É ele
que condiciona a estrutura do conflito social desde o fim do Estado Novo até o
movimento de 1964 (Santos, 1979: 78).
Estava sendo formado um tipo de relação do Estado com a sociedade
brasileira que se fortaleceria com o passar das décadas, o corporativismo. Em A
gramática política do Brasil: clientelismo e insulamento burocrático, Edson
Nunes defende que clientelismo, corporativismo, insulamento burocrático e
universalismo de procedimentos são os quatro principais aspectos que
caracterizam a relação entre Estado e sociedade no Brasil. Nunes argumenta que o
corporativismo e o clientelismo têm sobrevivido à nossa industrialização e
buscam o controle dos recursos disponíveis. “Tal como o clientelismo
111
contemporâneo, o corporativismo é uma arma de engenharia política dirigida para
o controle político, a intermediação de interesses e o controle do fluxo de recursos
materiais disponíveis” (Nunes, 1997: 37).
Como destaca o autor, as trocas no capitalismo moderno são caracterizadas
pelo impersonalismo, que seria um fator básico para o livre mercado e para a
noção de cidadania, diferentemente do clientelismo, em que as trocas de bens
ocorrem em um mercado marcado pelas relações pessoais, e em que existe uma
expectativa de retornos futuros. “A relação conhecida como ‘compadrio’, por
exemplo, inclui o direito do cliente à proteção futura por parte do seu patron”
(Nunes, 1997: 27). O corporativismo é entendido como um sistema de
intermediação de interesses “baseado em número limitado de categorias
compulsórias, não-competitivas, hierárquicas e funcionalmente separadas, que são
reconhecidas, permitidas e subsidiadas pelo Estado” (Nunes, 1997: 37).
Leôncio Martins Rodrigues, em Partidos e sindicatos: escritos de
sociologia política, destaca que o modelo sindical implantado por Vargas teria
vida longa em nossa sociedade, apesar das críticas a ele realizadas: “Criticado na
época pelos socialistas, anarquistas, comunistas e liberais e visto com suspeição
pelas classes empresariais, [...] acabou por revelar-se uma das instituições mais
estáveis da sociedade brasileira” (Rodrigues, 1990: 47).
Rodrigues considera que o corporativismo no Brasil apoiou-se em três
elementos, que o caracterizam. Em primeiro lugar, estaria “o papel desempenhado
pelo Estado no estabelecimento das estruturas sindicais e na organização
compulsória das ‘classes produtoras’” (Rodrigues, 1990: 59). O Estado não
transformou essas entidades associativas em órgãos da administração pública, mas
dotou-as de representatividade e regulou o seu funcionamento. Os sindicatos
tinham o direito de representar as categorias organizadas dentro das normas
definidas pelo Estado.
O segundo elemento por ele considerado seria “o monopólio da
representação que se expressa na existência do sindicato único ou, mais
exatamente, na unicidade sindical” (Rodrigues, 1990: 59). Na prática, o que
ocorreu foi que a representação por associação gerou um monopólio
representativo, tendo em vista a subordinação dos sindicatos e das associações ao
112
Estado. Finalmente, Rodrigues menciona “[...] a concepção doutrinária que
presidiu a criação da estrutura corporativa, fundada na eliminação do conflito e na
colaboração entre as classes e delas com o Estado” (Rodrigues, 1990: 60).
O modelo corporativo implantado no governo Vargas através da CLT
atravessou décadas e mudanças constitucionais. O sindicalismo corporativo daí
decorrente conviveu com a Constituição de 1946 e a pluralidade partidária, “com
o ‘bipartidarismo’ dos regimes militares posteriores a 1964 e com o
pluripartidarismo dos nossos dias. Mudam as constituições da República e os
partidos, mas a CLT permanece” (Rodrigues, 1990: 49). Essa dependência é
bastante confortável, até os dias de hoje, para os estamentos protegidos pela nossa
legislação sindical. Seus grandes beneficiários são os servidores públicos e
empregados de estatais, e Rodrigues considera que essa dependência perdurará,
uma vez que
as facções mais radicais do movimento sindical, que anteriormente se mostravam
bastante críticas à estrutura sindical corporativa, perderam muito do fervor crítico
ao conquistarem direções e posições no sindicalismo oficial. Nesse sentido, a
Constituição de 1988, ao limitar drasticamente o poder de intervenção do
Ministério do Trabalho nos assuntos internos dos sindicatos, eliminou um dos
aspectos que os dirigentes sindicais consideravam mais negativos no modelo
corporativista. Consequentemente, arrefeceu os ímpetos mudancistas e aumentou
a importância dos sindicatos oficiais como um instrumento de pressão dos
trabalhadores, de ascensão social dos diretores de sindicatos e de emprego para os
burocratas das federações e confederações. Paradoxalmente, a Constituição
reforçou as estruturas corporativas ao lhes conceder autonomia ante o Estado
(Rodrigues, 1990: 71).
A Constituição de 1946 (Baleeiro e Lima Sobrinho, 2012) assegurava, em
seu artigo 159, que “é livre a associação profissional ou sindical, sendo reguladas
por lei a forma de sua constituição, a sua representação legal nas convenções
coletivas de trabalho e o exercício de funções delegadas pelo poder público”
(Baleeiro e Lima Sobrinho, 2012: 87). Em seu artigo 156, acenava com o
aproveitamento de terras públicas para facilitar a fixação do homem no campo. E
nos artigos 157 e 158, mantinha e aumentava a proteção aos trabalhadores do
meio urbano, explicitando o direito de greve.
José Murilo de Carvalho chama atenção para o fato de que, nos governos
do regime autoritário que vieram após 1964, houve aumento dos direitos sociais,
113
em um avanço, nesse aspecto, em relação aos governos de Getulio Vargas e de
João Goulart:
ao mesmo tempo em que cerceavam os direitos políticos e civis, os governos
militares investiam na expansão dos direitos sociais. O que Vargas e Goulart não
tinham conseguido fazer, em relação à unificação e universalização da previdência, os militares e tecnocratas fizeram após 1964 (Carvalho, 2002: 170).
Houve também um abalo na estrutura corporativista da previdência social,
pela criação do INPS, que unificou o sistema para os trabalhadores do setor
privado:
em 1966 foi afinal criado o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), que
acabava com os IAPs e unificava o sistema, com exceção do funcionalismo
público, civil e militar, que ainda conservava seus próprios institutos. As
contribuições foram definidas em 8% do salário de todos os trabalhadores
registrados, descontados mensalmente da folha de pagamento; os benefícios,
como aposentadoria, pensão e assistência médica, foram também uniformizados.
Acabaram os poderosos IAPs, e os sindicatos perderam a influência sobre a
previdência, que passou a ser controlada totalmente pela burocracia estatal
(Carvalho, 2002: 171).
E, enfim, os direitos sociais foram expandidos para o campo, pela criação
do Funrural. Houve, no entanto, o cuidado de não onerar os proprietários rurais,
dentro da tradição brasileira:
o objetivo da universalização da previdência também foi atingido. Em 1971, em
pleno governo Médici, ponto alto da repressão, foi criado o Fundo de Assistência
Rural (Funrural), que efetivamente incluía os trabalhadores rurais na previdência.
O Funrural tinha financiamento e administração separados do INPS. É
sintomático que nem os governos militares tenham ousado cobrar contribuição
dos proprietários rurais. Mas não cobraram também dos trabalhadores. Os
recursos do Funrural vinham de um imposto sobre produtos rurais, pago pelos
consumidores, e de um imposto sobre as folhas de pagamento de empresas
urbanas, cujos custos eram também, naturalmente, repassados pelos empresários
para os consumidores. De qualquer maneira, os eternos párias do sistema, os
trabalhadores rurais, tinham, afinal, direito a aposentadoria e pensão, além de
assistência médica. Por mais modestas que fossem as aposentadorias, eram
frequentemente equivalentes, se não superiores, aos baixos salários pagos nas áreas rurais (Carvalho, 2002: 171).
E mesmo na área urbana, mais trabalhadores foram incorporados à
previdência social:
as duas únicas categorias ainda excluídas da previdência - empregadas
domésticas e trabalhadores autônomos - foram incorporadas em 1972 e 1973,
respectivamente, tudo ainda no governo do general Médici. Agora ficavam de
fora apenas os que não tinham relação formal de emprego. A avaliação dos
governos militares, sob o ponto de vista da cidadania, tem, assim, que levar em
conta a manutenção do direito do voto combinada com o esvaziamento de seu
114
sentido e a expansão dos direitos sociais em momento de restrição de direitos civis e políticos (Carvalho, 2002: 172).
Temos um quadro em que, sem que se abandone o caráter corporativista
das nossas políticas sociais, começa-se a dar alguns passos no sentido da
universalização. Para Santos, o Funrural é emblemático, pois foi criado para os
trabalhadores rurais décadas depois que os trabalhadores das áreas urbanas foram
contemplados com políticas sociais. Além disso, tinha uma característica
inovadora porque “não estando vinculado o esquema de benefícios a contribuições
pretéritas [...], impôs-se a busca de outros critérios para a definição de direitos que
seria equitativamente justo distribuir a todos os membros da coletividade agrária”
(Santos, 1979: 76). Emblemático porque explicita os direitos sociais básicos,
vinculado ao trabalhador quase unanimemente informal das áreas rurais. É aqui
que o conceito de proteção social, “por razões de cidadania, sendo esta definida
em decorrência de cada cidadão à sociedade como um todo, via trabalho, é mais
integrado e complexo. [...] Trata-se de promover direitos que são direitos do
trabalho, simplesmente” (Santos, 1979: 116-118).
Escrevendo em 1979, Santos enfatiza que:
os períodos em que se podem observar progressos na legislação social coincidem
com a existência de governos autoritários. [...] No primeiro momento,
caracterizou-se a relação entre o poder e o público pela extensão regulada da
cidadania. Caracteriza-se o segundo pelo recesso da cidadania política, isto é,
pelo não-reconhecimento do direito ou da capacidade da sociedade governar-se a
si própria (Santos, 1979: 123).
Em suma, Santos argumenta que em função do ingrediente ideológico dos
governos revolucionários, segundo o qual estava implícita a ideia de que primeiro
seria necessário “fazer o bolo crescer para depois distribuí-lo”, não seria racional
esperar grandes avanços nas políticas sociais. “[...] pode-se concluir que
permanece a noção de cidadania destituída de qualquer conotação pública e
universal. Grande parte da população é pré-cívica e nela não se encontra ínsita
nenhuma pauta fundamental de direitos” (Santos, 1979: 104).
A Constituição de 1988 tem importantes aspectos universalistas, mas
manteve muitas características do modelo corporativista. Escrita poucos anos
antes da queda do muro de Berlim, e com os anseios democráticos reprimidos no
Brasil por décadas de regimes autoritários, visava a um modelo de sistema de
115
bem-estar social típico do descrito por Gøsta Esping-Andersen 32
como o social-
democrata presente nos países escandinavos.
Os direitos sociais, agora, passaram a ter um capítulo próprio na
Constituição “Capítulo II – Dos Direitos Sociais” (Tácito, 2012: 62). Os artigos 6
e 7 deste capítulo enumeram uma série de direitos tanto para os trabalhadores da
área urbana como para os rurais e afirmam a “igualdade de direitos entre o
trabalhador com vínculo empregatício permanente e o trabalhador avulso”
(Tácito, 2012: 63). Já o modelo corporativista foi agraciado com os artigos 8, 9,
10 e 11, com diversas determinações dentre as quais destaco: “É vedada a criação
de mais de uma organização sindical, em qualquer grau, representativa de
categoria profissional ou econômica, na mesma base territorial” (Tácito, 2012: 64)
e “ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da
categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas” (Tácito, 2012: 64).
Esperava-se que a redemocratização trouxesse as soluções para os nossos
problemas, e a Constituição de 1988 determinava, no papel, avanços na política de
proteção social. Como destaca Mariana Bittar:
a Constituição consagrou novos direitos sociais e princípios de organização da
política social que, ao menos no nível formal, consolidaram a tendência
universalizante da proteção social. A ampliação e extensão dos direitos sociais a
parcelas da população até então excluídas, o afrouxamento do vínculo
contributivo como princípio estruturante do sistema, a adoção do conceito de
seguridade social como forma mais abrangente de proteção e a redefinição dos
patamares mínimos dos valores dos benefícios sociais foram algumas das
características reforçadas pela carta constitucional (Bittar, 2002: 34).
Acontece que as condições da economia brasileira na década de 1980 e
início dos anos 1990 não permitiriam que fosse sequer planejada tal inflexão nas
nossas políticas sociais. A presença de um contingente de pobres e miseráveis que
sofriam com os males da inflação, com o desemprego conjuntural após anos de
baixos investimentos motivados pela expectativa negativa dos agentes
econômicos na sociedade brasileira, e com o desemprego estrutural causado pelos
avanços tecnológicos, eliminando definitivamente significativa parcela de postos
de trabalho, indicava que o caminho universalista não teria naquele momento sua
oportunidade. José Murilo de Carvalho comenta que, apesar da qualidade da nossa
32
Para mais informações sobre os modelos de sistema de bem-estar no capitalismo por ele
descritos, ver Esping-Andersen, Gøsta. The three worlds of welfare capitalism. Princeton:
116
Constituição, ainda existiam problemas sérios como desigualdade e desemprego, e
previa dificuldades a partir das transformações que ocorriam na economia
internacional:
a constituinte de 1988 redigiu e aprovou a constituição mais liberal e democrática
que o país já teve, merecendo por isso o nome de Constituição Cidadã. Em 1989,
houve a primeira eleição direta para presidente da República desde 1960. Duas
outras eleições presidenciais se seguiram em clima de normalidade, precedidas de
um inédito processo de impedimento do primeiro presidente eleito. Os direitos
políticos adquiriram amplitude nunca antes atingida. No entanto, a estabilidade
democrática não pode ainda ser considerada fora de perigo. A democracia política
não resolveu os problemas econômicos mais sérios, como a desigualdade e o
desemprego. Continuam os problemas da área social, sobretudo na educação, nos
serviços de saúde e saneamento, e houve agravamento da situação dos direitos
civis no que se refere à segurança individual. Finalmente, as rápidas
transformações da economia internacional contribuíram para pôr em xeque a
própria noção tradicional de direitos que nos guiou desde a independência (Carvalho, 2002: 199).
A estabilização da moeda via Plano Real trouxe a questão da pobreza para
os temas prioritários da nossa agenda de políticas sociais. Conforme a economista
Sonia Rocha, formada pela PUC-RJ com doutorado pela Universidade de Paris I,
embora desde o início da década de 1990 a persistência da pobreza tenha sido
uma das preocupações centrais no país, a temática ganha clara primazia depois da
estabilização. Resolvido o problema básico da inflação, parece haver consenso
nacional de que o objetivo prioritário da sociedade brasileira é reduzir a
desigualdade entre pessoas, da qual a persistência da pobreza absoluta é um
corolário (Rocha, 2003: 7).
Os anos 1990 foram ricos em relação ao debate sobre as formas para
combater a pobreza e a desigualdade no Brasil. A questão do combate à inflação
obrigava que fosse dada prioridade à politica econômica, condicionando as
demais políticas. A discussão sobre a eficiência de qualquer política social surgia
em um ambiente de escassez e restrição orçamentária, e com a influência das
políticas liberais apontando para uma redefinição das funções do Estado, abrindo
espaço para a iniciativa privada. Fernando Henrique Cardoso lembra que o
Estado, em função do modelo de desenvolvimento dos governos que antecederam
o seu, “desviou-se de suas funções básicas para ampliar sua presença no setor
produtivo, o que acarretou, além da gradual deterioração dos serviços públicos
[...], o agravamento da crise fiscal e, por consequência, da inflação” (Cardoso,
1996: 9).
Princeton University Press, 1990.
117
Em se tratando de como se deveria conduzir a implantação das políticas
públicas, outra questão era o papel das instituições. Conforme Celina Souza havia
discordâncias teóricas quanto ao seu papel. A Teoria da Escolha Pública é, por
princípio, cética em relação “à capacidade do governo de formular políticas
públicas devido a situações como auto-interesse, informação incompleta,
racionalidade limitada e captura das agências governamentais por interesses
particularistas” (Souza, 2007: 82).
A Teoria Neo-Institucionalista, mesmo sem negar a existência do auto-
interesse ou do cálculo racional dos atores envolvidos, argumenta que “interesses
(ou preferências) são mobilizados não só pelo auto-interesse, mas também por
processos institucionais de socialização, por novas ideias e por processos gerados
pela história de cada país” (Souza, 2007: 82). Dessa forma, “a teoria neo-
institucionalista nos ajuda a entender que não só os indivíduos ou grupos que têm
força relevante influenciam as políticas públicas, mas também as regras formais e
informais que regem as instituições” (Souza, 2007: 82). Celina destaca ainda a
relevância dessa teoria para a formulação da agenda das políticas públicas:
a contribuição do neo-institucionalismo é importante porque a luta pelo poder e
por recursos entre grupos sociais é o cerne da formulação de políticas públicas.
Essa luta é mediada por instituições políticas e econômicas que levam as políticas
públicas para certa direção e privilegiam alguns grupos em detrimento de outros,
embora as instituições sozinhas não desempenhem todos os papéis (Souza, 2007:
83).
Em 1993, em O welfare state no Brasil: características e perspectivas,
Sônia Draibe atentava para a emergência de mecanismos que diminuiriam os
efeitos negativos das ações sociais do Estado, centralizadas e burocratizadas.
Esses mecanismos estavam relacionados à ajuda às famílias de baixa renda,
aumentando a eficiência e diminuindo ao máximo os desperdícios causados pelas
intermediações.
Essas formas que foram, no passado monopólio da concepção liberal, têm sido
incorporadas, defendidas e disseminadas nas mais diversas situações político–
ideológicas, inclusive socialistas e social-democratas. E têm sido justificadas
tanto pela vontade de desburocratizar e desestatizar a política, quanto pelo fato de
ampliar o grau de individualização e liberdade do usuário quanto, finalmente, por
razões econômicas: a monetização de tais relações ampliaria o grau de demanda
solvável das famílias, introduzindo mais energia às famílias e a economia
(Draibe, 1993: 35).
118
Ricardo Paes de Barros e Miguel Nathan Foguel, relatando em 2000 o
debate existente com respeito à erradicação da pobreza, ressaltavam a necessidade
da focalização em seu artigo Focalização dos gastos públicos sociais e
erradicação da pobreza no Brasil.
[...] a combinação da má focalização dos gastos públicos sociais com o fato de
esses gastos representarem cerca de três a quatro vezes do que se necessita para
erradicar a pobreza no país permite concluir que é possível eliminar a pobreza
sem a necessidade de qualquer aumento no volume total de gastos na área social.
Embora se reconheça que o (re)desenho de programas públicos adequadamente
focalizados é uma tarefa complexa, essa conclusão nos parece auspiciosa na
medida em que aponta para uma solução da pobreza que depende mais do
aperfeiçoamento das políticas públicas do que da elevação dos gastos (Barros &
Foguel, 2000: 739).
A nossa economia atingiu um grau de crescimento que nos permite afirmar
que a ausência de recursos não é o nosso maior problema, pois não somos um país
pobre, embora tenhamos muitos pobres. Para vencermos a pobreza, faz-se
necessário que os recursos cheguem efetivamente aos necessitados. A focalização
das políticas sociais é uma opção que quase não gera oposições significativas no
Brasil, atualmente. É, possivelmente, a melhor ferramenta com que contamos para
acelerar nosso desenvolvimento e melhorar o bem-estar das pessoas. Entretanto,
para que possamos ter um desenvolvimento sustentado, há que se quebrar o ciclo
de reprodução da pobreza: aos filhos dos pobres devem-se oferecer as
oportunidades e a educação necessárias para sua inserção no mercado de trabalho.
Entretanto, a opção pela focalização ainda não estava clara, no Brasil, na
virada do milênio. Ricardo Paes de Barros e Mirela de Carvalho analisam, em
Desafios para a política social brasileira, a política social brasileira, entendendo
que, nos últimos anos do século XX, ela passou por transformações que a fazem
moderna e descentralizada. No entanto, alguns problemas permanecem e, entre
eles, o mais grave seria o fato de que a focalização ainda estar-se-ia dando de
forma precária e com pouca efetividade. “A pequena atenção dispensada à
focalização nos mais carentes [...], entre outros aspectos, são identificados como
potenciais causas da baixa efetividade” (Barros & Carvalho, 2004: 434).
Com dados de 2004, os autores afirmam que uma das marcas da sociedade
brasileira é haver uma grande proporção da população vivendo na pobreza (34%)
e na extrema pobreza (15%), apesar de a nossa renda per capita ter capacidade de
119
suprir nossas necessidades nutricionais e nossas necessidades básicas. Com a
transferência de 18% dos gastos federais com programas compensatórios, dentre
os quais a Previdência Rural e o Programa Bolsa Família, seria possível erradicar
a extrema pobreza. A redução da desigualdade seria fundamental para a
diminuição da extrema pobreza “porque quanto mais se utilizarem as reduções no
grau de desigualdade, menor será o requerimento mínimo de crescimento para se
atingir uma meta determinada de redução na extrema pobreza” (Barros &
Carvalho, 2004: 437).
Os autores criticam a política social brasileira pelo fato de que ela tem
falhado de forma sistemática no objetivo de atingir os mais pobres. “Em geral,
grande parte dos programas sociais deixam de beneficiar os segmentos mais
pobres da população em favor dos segmentos não-pobres” (Barros & Carvalho,
2004: 439). Apesar de a quantidade de recursos disponíveis ser suficiente para
eliminar a pobreza, não o é em quantidade suficiente para atender à parcela não-
pobre. Em outras palavras, as políticas sociais têm que ser focadas, e não podem
ser universalizadas, ao menos na atual conjuntura:
qualquer mudança na política social brasileira será incapaz de elevar sua
efetividade no combate à pobreza enquanto não se adotar uma clara opção pelos
mais pobres. Somente com a garantia de prioridade para este grupo é que a
política social brasileira será capaz de ter o impacto sobre a extrema pobreza que
todos nós esperamos (Barros & Carvalho, 2004: 435).
A prioridade absoluta aos mais pobres precisaria dar atenção a três níveis
de focalização: o primeiro teria que levar em consideração que as transferências
de recursos da União para os estados e municípios devem ser proporcionais aos
graus de carência; em adição, seria necessário rever as regras que definem a
população-alvo dos programas federais, pois em vários casos “a própria regra
discrimina a população mais pobre, impedindo que a mesma tenha acesso
prioritário” (Barros & Carvalho, 2004: 452); finalmente, faz-se necessário
aprimorar o cadastramento das famílias pobres, porque “as camadas mais carentes
da população tendem a estar fora dos cadastros administrativos existentes”
(Barros & Carvalho, 2004: 452). Fica clara a mudança que tem ocorrido nas
últimas décadas na agenda dos direitos sociais no Brasil. Passamos das garantias
aos trabalhadores urbanos com carteira assinada para garantias a um contingente
até então excluído, o daqueles que fazem parte dos cadastros de pobreza.
120
5.2. O debate sobre os programas de renda mínima no Brasil
Na década de 1990, começou a prosperar no Brasil a ideia de que um
programa de transferência de algum tipo de renda seria uma política pública
eficiente no combate à pobreza. Um fator importante para que os programas de
renda mínima passassem, nas últimas décadas do século XX, a ser vistos como
alternativas para as políticas de proteção sociais universalistas foi o
enfraquecimento do Estado de bem-estar social nos países desenvolvidos.
Carlos Alberto Ramos, Doutor em Economia pela Universidade de Paris
XIII, destaca que nos anos 1980, na Europa e também nos Estados Unidos,
ampliou-se o debate sobre a viabilidade da manutenção dos sistemas de proteção
social em vigor. Estes passaram a ser criticados por sua ineficiência e por sua
duvidosa viabilidade econômica. A crise econômica dos anos 1970 estava
colocando obstáculos ao Estado de bem-estar social, que se apoiava em contínuo
crescimento econômico e em baixas taxas de desemprego.
Observamos, assim, [...] que o antigo sistema de proteção social não é mais
funcional ao novo contexto econômico e social. Na perspectiva dos trabalhadores,
o crescente desemprego e sua permanência no tempo levam a uma paulatina
perda dos direitos sociais, visto que os benefícios estavam atrelados à integração
no mercado de trabalho. Do ângulo dos gestores de política, o equilíbrio
financeiro do antigo Welfare State é cada vez mais problemático, já que
aumentam as demandas (por elevação do desemprego, crescimento da expectativa
de vida, etc.) e se reduzem as fontes de arrecadação (por redução do mercado de
trabalho tradicional, assalariados a tempo integral e dedicação exclusiva) (Ramos,
1998: 27).
Em Família e política de renda mínima, a historiadora Ana Maria
Medeiros da Fonseca defende que, no Brasil, a proposta de um programa de renda
mínima condicionado à obrigatoriedade de ingresso e permanência dos filhos na
rede pública de ensino foi vitoriosa no debate que se seguiu às propostas
universalistas e ao projeto de lei do senador Eduardo Matarazzo Suplicy da
década de 1990. “Assim, aqueles que eram projetos ou programas, principalmente
municipais, e, em geral, em execução em municípios com maiores recursos,
transformaram-se em modelos para o ‘programa federal’ de garantia de renda
mínima” (Fonseca, 2001: 27).
121
De acordo com Fonseca, as discussões sobre programas de renda mínima
como ferramentas para eliminar a pobreza começaram, no Brasil, na década de
1970. O engenheiro e economista Antonio Maria da Silveira publicou o artigo
Redistribuição de renda (Silveira, 1975), em que defendia a ideia de que não
poderíamos esperar os frutos do crescimento econômico para extinguirmos nossa
pobreza. Seria necessário que fosse implementado um programa governamental
que, com a menor interferência possível na economia de mercado, não sofresse da
falta de eficácia dos métodos até então utilizados. O imposto de renda negativo
permitiria que os indivíduos fizessem suas escolhas livremente e não sofreria dos
custos burocráticos característicos dos programas governamentais da época. 33
A redistribuição em termos monetários costuma impressionar negativamente a
muitos. Lembremos que é a mais eficiente, a menos custosa. Lembremos também
que é a mais eficaz e que é a forma que levará maior satisfação aos beneficiados.
Realmente, os beneficiados poderão adquirir o que melhor lhes aprouver e isto é
certamente salutar, menos em casos patológicos que devem ser tratados à parte.
Os gastos da classe pobre podem não parecer racionais a observadores de outras
classes, mas acreditamos que isto é devido ao verdadeiro desafio que é a
existência na pobreza, ao horizonte necessariamente curto do pobre, pois seu
problema é conseguir o mínimo de cada dia. Os gastos de consumo serão
necessária e automaticamente modificados se a garantia de sobrevivência lhes for
proporcionada (Silveira, 1975: 14).
Em Da assistência social aos programas de renda mínima garantida,
Sônia Miriam Draibe afirma que “tanto a ancoragem teórica quanto a lógica
subjacente à proposição de uma renda mínima garantida têm origem liberal”
(Draibe, 1992: 265). Para os liberais, a renda mínima estaria de acordo com sua
concepção das funções do Estado, e serviria para “complementar aquilo que os
indivíduos não puderem solucionar via mercado ou através de recursos familiares
e da comunidade” (Draibe, 1992: 265).
Silveira, à frente do seu tempo, já enxergava o avanço tecnológico como
um aliado contra a burocracia no objetivo de minimizar os custos de implantação
do programa que estava propondo.
33
Estas ideias estavam provavelmente apoiadas nas teses do economista norte-americano Milton
Friedman, da Universidade de Chicago, que, em seu livro Capitalismo e liberdade, defendia que a
pobreza deveria ser combatida através da ajuda direta aos indivíduos. Friedman menciona as
vantagens de um programa de renda mínima: está diretamente dirigido para o problema da
pobreza; a ajuda é dada da forma mais útil, o dinheiro; é de ordem geral; e deixa transparente o seu
custo para a sociedade. As famílias teriam a liberdade de alocar o dinheiro recebido em função de
suas decisões e do que for oferecido pelo mercado. Esta ajuda dada diretamente em dinheiro
evitaria a burocracia, seus gastos e sua tendência ao uso político, e seria focada nos pobres e
jamais nas categorias, como classe, etnias etc (Friedman, 1977).
122
As dificuldades de implementação da proposta não podem ser desprezadas. A
Receita Federal teria que estender o sistema de informações e análise a toda
população adulta ou, mais provavelmente, a todas as unidades familiares.
Entretanto, observemos que estes custos tendem a decrescer substancialmente,
dado o progresso tecnológico recente. [...] Observemos que os custos são
certamente bem menores do que os envolvidos nos sistemas alternativos
existentes ou propostos (Silveira, 1975: 14).
O argumento de que em uma democracia só pode haver continuidade caso
a desigualdade seja limitada e a miséria não castigue grande parte dos indivíduos
foi desenvolvido por Edmar Lisboa Bacha e Roberto Mangabeira Unger em
Participação, salário e voto: um projeto de democracia para o Brasil. Visando a
diminuir a nossa forte concentração de renda, previa que o financiamento deste
programa viria de uma revisão no sistema de imposto de renda, da criação de um
imposto sobre a riqueza líquida e da implementação do imposto sobre doações e
heranças.
Em 1991, o senador Eduardo Matarazzo Suplicy apresentou o projeto de
lei 80/91 que objetivava fornecer uma complementação de renda aos maiores de
25 anos com rendimentos mensais abaixo de um determinado patamar. O valor
dessa complementação seria de 30% da diferença entre sua renda e o patamar
considerado. Aqui a prioridade seria dada aos maiores de 60 anos. Suplicy
propunha, paralelamente à implantação desse programa, a supressão de grande
parte dos programas assistenciais, visto que ineficientes e perdulários. Chamava a
atenção para o fato de que a forma de garantir uma renda mínima aos adultos que
não conseguiam rendimentos para suas necessidades básicas era defendida pelos
mais diversos pensadores:
simples na sua concepção, este instrumento tem sido defendido por alguns dos
mais conceituados economistas de diferentes tendências, como John Kenneth
Galbraith, James Tobin, Robert Solow e Milton Friedman. Reconheço a
persistência do brasileiro Antonio Maria da Silveira, que o defende há vinte anos.
Edmar Lisboa Bacha e Roberto Mangabeira Unger já defenderam a sua
introdução, e Paul Singer também o tem defendido, na forma de um mínimo
familiar (Suplicy, 1992: 51).
Suplicy, ao encerrar a justificativa em defesa de seu projeto de lei,
pontuava as diversas tentativas que o país tinha feito para diminuir a miséria e
clamava que essa era uma rara oportunidade para se alcançar este objetivo:
123
para uma sociedade que hoje se caracteriza por ser uma das que apresentam
disparidades sócio-econômicas das mais intensas e graves do mundo, que tem
repetidamente fracassado em suas tentativas de diminuir a pobreza e as
desigualdades, a determinação expressa de erradicar a miséria, e suas
consequências, deve constituir-se em vontade maior. Faz-se então necessária a
criação de um instrumento de política econômica que cumpra tal objetivo da
melhor e mais eficiente maneira (Suplicy, 1992: 53).
O artigo Pobreza e garantia de renda mínima, do economista José Márcio
Camargo, trouxe um novo enfoque à discussão. Sua preocupação estava em
estudar a elaboração de políticas sociais que, ao mesmo tempo em que reduzissem
a pobreza no curto prazo, diminuíssem a reprodução da pobreza também no longo
prazo. Camargo argumentava que “após mais de quatro décadas de crescimento
acelerado, a economia brasileira atingiu um nível de renda per capita bastante
acima daquele característico dos países considerados pobres” (Camargo, 1991).
No entanto, iniciávamos os anos 90 com o desafio de tirarmos da miséria quase
metade de nossa população. Haveria, segundo Camargo, cinco causas para essa
situação:
primeiro, a própria pobreza gera mecanismos que a reproduzem; segundo, as
enormes deficiências do sistema público de educação básica; terceiro, a
excessivamente concentrada distribuição da propriedade da terra; quarto, a
estrutura de incentivos fiscais e monetários que favorece os postos de trabalho
ocupados por trabalhadores mais qualificados, em detrimento dos postos de
trabalho ocupados por trabalhadores menos qualificados e, finalmente, a
legislação trabalhista, que incentiva a superexploração e relações de trabalho de
curto prazo para os trabalhadores não qualificados e desincentiva o investimento
em treinamento pelas empresas (Camargo, 1991).
Para o autor, uma característica marcante do nosso mercado de trabalho
seria o fato de que a pobreza do presente se refletiria em uma reprodução da
mesma no futuro. Ele enfatiza a presença de maus empregos em que, após 35 anos
de trabalho, o trabalhador receberia um salário semelhante a outro que viesse a se
integrar no mercado naquele momento. A perversa consequência desse fenômeno
seria que “uma criança que entra cedo no mercado de trabalho contribui com uma
parcela substancial da renda familiar. Ou seja, nas famílias pobres, o valor da
força de trabalho das crianças é maior que nas famílias ricas” (Camargo, 1991).
Ao entrarem cedo no mercado de trabalho, as crianças pobres sairiam cedo da
escola, obrigando-se a aceitar empregos em trabalhos que não exigem maiores
qualificações, reproduzindo assim a pobreza da geração anterior.
124
Camargo defendia o seu apoio ao Programa de Renda Mínima do senador
Suplicy, que teria a vantagem de não “criar uma burocracia paralela para distribuir
bens e serviços que, no Brasil, nunca chegam realmente aos pobres” (Camargo,
1991). Apresenta, no entanto, duas sugestões. Na primeira, e pelas razões
explicitadas, Camargo não recomenda que o programa dê prioridade aos idosos.
Na segunda, preocupado com a dificuldade de se fiscalizar um programa deste
alcance, sugere a exigência de que os beneficiados tivessem todos os filhos
matriculados em escolas públicas. Essa exigência traria uma restrição ao projeto
do senador Suplicy, uma vez que só as famílias com filhos em idade escolar
teriam acesso ao benefício.
Fonseca ressalta que esse formato acabaria sendo a referência para os
primeiros programas de renda mínima no Brasil, porque a ideia de que eles
fossem condicionados “à obrigatoriedade de ingresso e permanência dos filhos,
em idade escolar, na rede pública de ensino representou uma mudança radical em
relação ao projeto original e ao debate da década de 1970” (Fonseca, 2001: 105).
É provável que as inseguranças econômicas e políticas do período que vai de 1991
a 1995 possam ter motivado o fato de que “entre o projeto de 1991 e as primeiras
experiências, em 1995, houve um vazio de iniciativas” (Fonseca, 2001: 109).
Ressalta, porém, que a formatação dos projetos legislativos que foram
apresentados a partir de 1995 trouxe o impacto dos programas que estavam em
execução em Campinas, Ribeirão Preto e Distrito Federal. O projeto do senador
Suplicy recebeu emendas em 1996 na Câmara de Deputados, sendo que algumas
delas “condicionam o recebimento da renda mínima à vinculação das crianças e
adolescentes à rede escolar, mas garantem o acesso aos cidadãos pobres e sem
filhos ou dependentes” (Fonseca, 2001: 109).
No final de 1997 foi sancionada a Lei n° 9.533, que dava autorização ao
poder Executivo para apoiar financeiramente programas de garantia de renda
mínima uma vez que estivessem associados a ações sociais e educativas. Esse
apoio seria dado aos municípios que não tivessem recursos para cobrir suas ações
integralmente. Tratava-se de um programa apoiado na ação dos municípios:
125
é importante ressaltar que o modelo adotado, fortemente inspirado nas
experiências das instâncias subnacionais ou nas estratégias de combate à pobreza
no plano local, depende da adesão dos municípios que se enquadrem nos critérios
de seleção – os demais não contam com apoio financeiro – e requer, de todos os
municípios que atendem aos requisitos, a mesma contrapartida (Fonseca, 2001:
118).
As discussões em todo o mundo, nas últimas décadas, em relação a
programas de garantia de algum tipo de renda mínima, refletem algumas das
novas questões que vêm sendo criadas em função das modificações nas atividades
produtivas. Com efeito, os postos de trabalho, tendo em vista o surgimento e a
disseminação de novas tecnologias, não acompanharam o vertiginoso crescimento
dos níveis de produtividade que foram alcançados. Consequentemente, o acesso à
renda através do trabalho remunerado sofreu um declínio acentuado. Esse
desemprego continuado provoca, ao mesmo tempo, outro efeito perverso: o da
crise dos sistemas de seguridade social, uma vez que a quantidade de
contribuintes cai dramaticamente, e aumenta a base dos que deles dependem.
Assim, seja em decorrência do excedente de trabalho, da geração de postos de
trabalho precários, de trabalho com baixo grau de formalização contratual, e do
distanciamento das redes de proteção, ou da combinação destes elementos que
caracterizam as vulnerabilidades sociais, coloca-se a exigência de mecanismos
novos de proteção social. É nesse quadro da chamada crise da sociedade salarial
que o debate internacional sobre programa de renda mínima ganha vigor
(Fonseca, 2001: 122).
Samuel Pessôa ressalta a importância da condicionalidade, exigindo a
contrapartida dos beneficiários dos programas de transferência de renda:
eu acho que tem uma coisinha aqui muito importante, que é o seguinte: essa ideia
aqui do programa condicionado, a origem do programa condicionado de
transferência de renda, o objetivo não era diminuir a desigualdade no curto prazo.
A transferência de renda era muito pouco importante. O importante era educar as
crianças, pra que você tivesse pouca desigualdade, e pouca pobreza na geração
futura. É verdade que era bom você diminuir a desigualdade na geração presente.
Mas não importava: eu me lembro de ter participado de discussões em que algumas
pessoas na mesa diziam: a pessoa vai ganhar dinheiro e não vai querer trabalhar.
Vai gastar em cachaça e tal. Eu falava: Isso não me importa. O cara pode gastar
tudo em cachaça. Para mim, não faz a menor diferença. Isso não é nada importante.
O importante é que ele coloque os filhos na escola, e que o Estado dê escola
pública e de qualidade para essas crianças. Se eu conseguir isso, o programa é
100% bem sucedido. As pessoas tinham que dar uma contrapartida para a
sociedade, porque a ideia era o seguinte: que a sociedade não é responsável pela
desigualdade e pela pobreza. Responsável pela desigualdade e pela pobreza é todo
mundo. Inclusive o pobre. Consequentemente, se ele está ganhando algum
dinheiro, é importante que ele dê uma contrapartida pra sociedade, seja lá de que
forma for. Que ele faça trabalho social, que ele coloque o filho na escola. Não
126
importa. Mas ele deveria dar uma contrapartida, porque senão, não fazia muito
sentido (Pessôa, 2013).
Para Pessôa, ainda existe uma clivagem, mas caminharíamos lentamente
para um consenso quanto à importância relativa maior da educação:
eu acho que a clivagem persiste. Eu acho que nos estudantes do mainstream esse
é um ponto pacífico. Acho que todo mundo concorda que isso, hoje, é um ponto
central. Mas eu acho que as pessoas que abraçam uma visão mais estruturalista
são críticas. Mas eu acho que, até nessas pessoas, nessa visão, há uma percepção
que, de fato, a educação tem uma importância maior do que se acreditava há 20,
30 anos atrás. Eu acho que lentamente está virando um consenso (Pessôa, 2013).
O filósofo e cientista social belga Philippe Van Parijs 34
é um importante
defensor dos programas de renda mínima. Considera que não é necessário ter
trabalhado, ter efetuado contribuições, estar passando por necessidades ou estar
em busca de emprego para ter direito a esta renda mínima. Seria uma renda básica
incondicional para todos os cidadãos. Van Parijs está apoiado nas ideias que
Thomas Paine 35
apresentou em Agrarian justice. Segundo Draibe, Paine é
frequentemente “lembrado como o primeiro defensor da ideia de um direito à
renda absolutamente incondicional” (Draibe, 1992: 265).
Paine defende a realização, a todas as pessoas, de um pagamento mínimo,
tendo em vista que: “every individual in the world is born therein with legitimate
claims on a certain kind of property, or its equivalent” (Paine, 2011: iii). Para
isso, propõe ao Diretório da Revolução Francesa a criação de um Fundo Nacional,
que objetivaria compensar a propriedade não recebida, bem como prover uma
renda adicional aos maiores de cinquenta anos:
to create a National Fund, out of which there shall be paid to every person, when
arrived at the age of twenty one years, the sum of fifteen pounds sterling, as a
compensation in part, for the loss of his or her natural inheritance, by the
introduction of the system of landed property: And also, the sum of ten pounds
per annum, during life, to every person now living, of the age of fifty years, and
to all others as they shall arrive at that age (Paine, 2011: 10).
Não deveria haver nenhuma condicionalidade para esses pagamentos, e os
que preferissem não recebê-los devolveriam o valor ao Fundo Nacional:
34
Philippe Van Parijs (1951- ) nasceu em Bruxelas. Possui doutorados em Ciências Sociais pela
Universidade Católica de Louvain e Filosofia pela Universidade de Oxford. 35
Thomas Paine nasceu em Thetford, na Inglaterra, em 1737 e morreu em Nova York, nos Estados
Unidos da América, em 1809. Teve participação nas revoluções americana e francesa, tendo sido
eleito para a Convenção em 1792. Escreveu Agrarian justice em 1795.
127
it is proposed that the payments, as already stated, be made to every person, rich
or poor. It is best to make it so, to prevent invidious distinctions. It is also right it
should be so, because it is in lieu of the natural inheritance, which, as a right,
belongs to every man, over and above the property he may have created, or
inherited from those who did. Such persons as do not choose to receive it can
throw it into the common fund (Paine, 2011: 11).
Van Parijs considera que nas sociedades desenvolvidas o emprego é um
recurso escasso. Atualmente, os postos de trabalho estariam mal distribuídos e far-
se-ia necessário um tipo de pagamento para reparar esse problema:
le point de départ, ici, réside dans l’observation que dans nos sociétés fortement
organisées et technologisées une bonne partie de ce qui nous est donné l’est sous
la forme d’emplois. Dans nos sociétés, en effet, les emplois constituent des
ressources rares. [...] Cette rareté se manifeste de la maniére la plus évidente dans
le fait que, pour des raisons complexes et fondamentales, il existe dans nos
économies un important chômage involontaire. Mais elle se manifeste aussi dans
le fait que les emplois existants sont trés inégalement attrayants – que ce soit en
raison du revenu trés inegal qui leur est attaché, des possibilités de promotion qui
leur sont liées ou de leurs caractéristiques intrinsèques - de telle sorte que certains
préféreraient à leur propre emploi celui occupé par d’auters, qu’ils en soient
exclus du fait qu’ils ne disposent pas des talents ad hoc ou pour toute autre raison.
Cette rareté des emplois – globalement ou pour les catégories d’emplois les plus
attrayantes – peut aussi s’exprimer en disant qu’il existe de rentes d’emploi - et
de rentes autrement massives que celles qui apparaissent sous la forme d’héritage
– qui sont aujourd’hui appropriées, du reste de manière très inégale, par ceux-là
seuls qui ont un emploi (Van Parijs, 1996: 39).
Assim como Paine, Van Parijs crê ser legítimo o recebimento de uma
prestação universal, baseada na existência de um patrimônio comum. Seu
raciocínio afasta a necessidade de se observar a crise que, a partir dos anos 1970 e,
com mais intensidade a partir da década de 1990, vem minando os Estados de
bem-estar social das nações mais desenvolvidas. A implantação de uma renda
mínima pessoal não dependeria de crises para justificar sua implantação.
Van Parijs esteve presente na formação da agenda do combate à pobreza
no Brasil. Conforme o depoimento de Suplicy:
em 1996, levei o Professor Philippe Van Parijs, filósofo e economista que tão
bem tem defendido a Renda Básica de Cidadania, para uma audiência com o
Presidente Fernando Henrique Cardoso e o Ministro da Educação, Paulo Renato
Souza; presente, o Dep. Nelson Marchezan, um daqueles proponentes. Van Parijs
salientou que o objetivo melhor seria a renda básica incondicional, mas que se
iniciar a garantia da renda mínima associando-se às oportunidades de educação
era um bom passo, pois estaria relacionando-a ao investimento em capital
humano. Foi então que o Presidente Fernando Henrique Cardoso deu o sinal
verde para que fosse aprovada a Lei 9.533, de 1997, que autorizava o governo
federal a conceder apoio financeiro, de 50% dos gastos, aos municípios que
128
instituíssem programa de renda mínima associado a ações socioeducativas (Silva
e Silva, 2012: 237).
Fonseca ressalta as diferenças entre os novos pobres europeus e os pobres
brasileiros. Na Europa, a imagem dos pobres, em função da expulsão da mão de
obra mais qualificada do mercado de trabalho, não é a de idosos, incapazes, ou de
baixa escolaridade e qualificação. Esse estoque de adultos qualificados e
residentes em áreas economicamente pujantes aumenta a quantidade de pobres.
Ao lado deles estão os jovens, parcial ou definitivamente excluídos do mercado de
trabalho. Quanto ao Brasil,
observa-se que aqui não se alude à desestruturação do mercado de trabalho, com
altas taxas de desemprego, à geração de postos de trabalho precários, às
ocupações subcontratadas, à exclusão do mercado de trabalho de um importante
contingente da população ativa. Certamente, entre nós, não se trata apenas destes
novos pobres – nossa pobreza não é nova e jamais foi residual (Fonseca, 2001:
139).
A partir dos anos 1980 vários países da Europa estudaram a utilização de
programas de renda mínima no combate à pobreza. Em 24 de junho de 1992, uma
Recomendação das Comunidades Europeias (92/441/CEE) menciona os critérios
comuns que se relacionam com os recursos e sistemas de proteção social. É
recomendado aos Estados-membros que
reconheçam, no âmbito de um dispositivo global e coerente de luta contra a
exclusão social, o direito fundamental dos indivíduos a recursos e prestações
suficientes para viver em conformidade com a dignidade humana e,
consequentemente, adaptem o respectivo sistema de protecção social, sempre que
necessário, segundo os princípios e as orientações a seguir expostos (CCE, 2011).
A implementação desse direito deveria seguir algumas orientações
práticas: fixar, em função do nível de vida e do nível de preços no Estado-membro
considerado, e para diferentes tipos e dimensões de agregados familiares, o
montante dos recursos considerados suficientes para uma cobertura das
necessidades essenciais no respeito à dignidade humana; adaptar ou completar os
montantes de forma a satisfazer necessidades específicas; definir modalidades de
revisão periódica desses montantes, de acordo com indicadores claramente
definidos, para que continue a ser assegurada a cobertura das necessidades (CCE,
2011).
Fonseca observa que a grande maioria dos países da Europa conta com
programas de garantia de renda mínima. Essas experiências são variadas e se
129
diferenciam principalmente pelas condições de acesso, tais como a nacionalidade,
a idade, a residência etc. Também não são uniformes a fórmula de cálculo do
benefício e as contrapartidas exigidas. Os programas são complementares, pois
não são substitutivos de outros direitos sociais.
O valor da renda mínima é definido a partir da renda do demandante, se for uma
pessoa só; ou de sua renda e dos demais membros de sua família. Assim, a
complementação permite que o indivíduo ou o grupo familiar atinjam o patamar
mínimo de renda. Essa é a forma de garantir a cada individuo, ou a cada grupo
familiar, um rendimento adequado ao atendimento de suas necessidades
(Fonseca, 2001: 151).
Essa política de distribuição de recursos monetários aparece, em todos os
países, associada a outros benefícios e serviços. Entre eles estão a assistência
médica, subsídios para a habitação e políticas de formação e qualificação
profissional. Esses programas são universais, pois se destinam a todos que se
encontram abaixo de certo patamar de renda, ou que estiverem passando por
dificuldades decorrentes de insuficiência de renda.
A renda é um direito, e o cidadão ou cidadã podem requerer o acesso à renda; ao
direito à renda estão associadas outras prestações e serviços, indicando a
compreensão de que a pobreza tem outras formas de expressão, além da renda; a
renda é um direito constitucional no sentido que depende de certos pré-requisitos
ou da aceitação de certas condições (disponibilidade para o trabalho, contrato de
inserção). Lembrando das posições em debate, e tendo em conta os programas em
curso, verifica-se uma grande diversidade tanto no debate como nas experiências
em desenvolvimento (Fonseca, 2001: 152).
Essa constatação, no entender de Fonseca, não obscurece a distância entre
essas posições e as experiências então em andamento no Brasil. A principal
diferença estaria na focalização nas famílias pobres, residentes há alguns anos em
alguns dos mais de cinco mil municípios brasileiros, com crianças e adolescentes,
contrariamente à universalização da experiência internacional.
Nossos programas, mesmo que no presente minorem as condições de privação de
algumas famílias, são para o futuro – para que a pobreza de hoje não estimule a
de amanhã, e deixam à margem milhões de brasileiros. Nossos programas
pretendem combater a pobreza, evitando o trabalho infantil e aumentando o grau
de escolaridade das crianças e adolescentes das famílias pobres residentes em
alguns municípios. A ideia que os sustenta é que a elevação do nível de
escolaridade das crianças e dos adolescentes das famílias beneficiadas lhes dará
melhores condições de geração de renda, rompendo, dessa maneira, com a
reprodução intergeracional da pobreza (Fonseca, 2001: 152-153).
130
5.3. O pioneirismo das unidades subnacionais no combate à pobreza
Em Campinas, foi criado através da Lei n° 11.471, de 03/03/1995, o
Programa de Garantia de Renda Familiar. Esse programa, dirigido às famílias em
situação de extrema pobreza e que tenham em sua composição crianças e
adolescentes, considerava elegíveis as famílias que tivessem filhos entre zero e 14
anos, ou maiores desde que portadores de deficiências físicas ou mentais que os
incapacitem para o trabalho; residissem em Campinas há pelo menos dois anos da
data da publicação da lei; tivessem renda mensal inferior a R$ 35,00 por pessoa da
família; concordassem em atender às obrigações estabelecidas em um Termo de
Responsabilidade e Compromisso.
O Termo de Responsabilidade e Compromisso, assinado pelos responsáveis pelas
famílias que atendam aos critérios estabelecidos, tem por finalidade, no desenho
do Programa, comprometê-los na garantia da frequência das crianças e
adolescentes nas escolas, no atendimento regular à saúde dessas crianças e
adolescentes e na sua não permanência nas ruas. Pelo Termo, o responsável
familiar também se compromete a participar de uma reunião mensal (Fonseca,
2001: 157).
O Programa do Distrito Federal, Bolsa Família para a Educação, foi
instituído pelo Decreto n° 16.270, de 11 de janeiro de 1995, e regulamentado pela
Portaria n° 16, de 9 de fevereiro de 1995. Pelas regras do programa, seriam
elegíveis as famílias que tivessem crianças entre 7 e 14 anos de idade; cuja renda
familiar per capita fosse inferior a meio salário mínimo; que residissem há pelo
menos cinco anos no Distrito Federal; que tivessem as crianças em idade escolar
matriculadas na rede pública de ensino.
“O programa Bolsa Família para a Educação (Bolsa Escola) determina que as
mulheres sejam responsáveis pela família e apenas em situações especiais essa
atribuição pode recair sobre os homens. O suposto é que a mulher zelará melhor
pelos interesses da família. As mulheres, sobretudo as mães, agiriam de forma
menos egoísta, individualista e assim os recursos estariam em ‘boas mãos’ e os
compromissos previstos nos termos de responsabilidade seriam cumpridos. É
certo que se esta pode ser uma boa percepção no plano da cultura, embora pareça
fundada na natureza ou na biologia, ela passa ao largo de questões cruciais como
as hierarquias, as distribuições de poder no interior das famílias” (Fonseca, 2001:
165).
Um terceiro programa implementado em 1995 foi o programa de garantia
de renda Familiar Mínima do município de Ribeirão Preto, instituído pela Lei n°
7.188, de 28 de setembro de 1995 e pelo Decreto n° 283, de 19 de dezembro de
131
1995. Esse programa tinha como objetivos manter as crianças e adolescentes nas
escolas e creches; combater o trabalho infantil e a desnutrição; reduzir a
mortalidade infantil e garantir oportunidades iguais para crianças e adolescentes
portadores de deficiências. As condições de elegibilidade das famílias eram que:
tivessem filhos ou dependentes entre 0 e 14 anos; residissem em Ribeirão Preto há
pelo menos cinco anos; tivessem renda mensal inferior a R$ 240,00; estivessem
dispostas a atender às obrigações estabelecidas em Termo de Responsabilidade e
Compromisso.
O combate à pobreza na década de 1990 teve, portanto, início em
municípios. Tal fato está aliado à ideia de eficiência, mais do que à de
disponibilidade de recursos. De acordo com Sonia Rocha,
o gasto social no Brasil – que inclui a totalidade dos gastos da previdência, da
saúde, da educação – equivale a cerca de 20% do PIB. É evidente que a
persistência da pobreza não está vinculada à insuficiência do gasto público, e que,
por consequência, não se trata apenas da mobilização de recursos adicionais, mas
de mudança na natureza do gasto social e da melhoria da sua eficiência, em geral
(Rocha, 2003: 192).
Para Rocha a focalização deve levar em conta que, por existirem
desigualdades de distribuição de renda, a operação deveria ter prioridades
claramente definidas:
adotar o combate à pobreza como bandeira política consequente requer a
reestruturação do gasto social, em geral, e o redesenho dos mecanismos voltados
especificamente ao atendimento dos pobres. Implica ainda que os mecanismos de
financiamento do gasto público levem em conta, explicitamente, as desigualdades
da distribuição de renda no país. Especificamente, na operacionalização de
políticas antipobreza, é indispensável concentrar o uso de recursos, antigos ou
novos, em políticas de objetivos claros e focalizados em populações bem
definidas. É essencial priorizar o atendimento aos mais pobres, mas garantindo a
eficiência operacional, tanto de medidas assistenciais, que apenas amenizam os
sintomas presentes na pobreza, como daquelas que têm o potencial de romper de
forma definitiva o círculo vicioso da pobreza (Rocha, 2003: 193).
5.4. O programa Bolsa Família e a interrupção do ciclo intergeracional de reprodução da pobreza
Fica clara a mudança que tem ocorrido nas últimas duas décadas na agenda
dos direitos sociais no Brasil. Passamos das garantias aos trabalhadores urbanos
com carteira assinada para garantias a um contingente até então excluído, o
132
daqueles que fazem parte dos cadastros de pobreza. O Bolsa Família é a
consolidação de diversos programas de transferência de renda focalizada que
foram iniciados, na esfera federal, no governo de Fernando Henrique Cardoso.
Trata-se de um programa de transferência direta de renda que beneficia famílias
em situação de pobreza e de extrema pobreza e que atende mais de 14 milhões de
famílias (Ismael, 2014).
A condição de aliar a transferência de renda à ideia de melhorar a
educação dos dependentes dessa ajuda estava clara nos programas pioneiros.
Percebe-se que não prosperou, no fortalecimento da agenda das políticas sociais
no combate à pobreza no Brasil, o viés da transferência incondicional de renda.
Com o Programa Bolsa Família, implantado no governo Lula, a exigência de
presença nas escolas públicas consagrou a linhagem de pensamento que defendia
a necessidade de se melhorar a educação das famílias pobres para se tentar
quebrar o ciclo da pobreza.
O Programa Nacional de Renda Mínima vinculada à educação - Bolsa
Escola Federal (Brasil, 2001) foi criado no segundo governo Fernando Henrique
Cardoso através da Lei nº 10.219, de 11 de abril de 2001. Inspirado em
experiências similares que tiveram início em Campinas, Distrito Federal e
Ribeirão Preto, tinha como objetivos declarados assegurar a educação para
crianças de baixa renda e realizar transferências diretas condicionadas de renda.
Foram criados apenas dois parâmetros, faixa etária e renda, visando a
disponibilizar o benefício para todos que se enquadrassem na linha de
atendimento.
Sendo assim, todas as crianças entre 6 e 15 anos que frequentassem o
ensino fundamental e cujas famílias tivessem renda per capita de até R$90,00
poderiam receber o benefício do Bolsa Escola Federal. Foi dada também
importância aos municípios. Os municípios que quisessem adotar o Programa
Nacional de Bolsa Escola assinariam um termo de adesão e cadastrariam todas as
famílias que tivessem direito ao benefício. É importante salientar que o programa
não exigia contrapartida financeira dos municípios.
O Programa Bolsa Família (Brasil, 2004) foi criado no primeiro governo
Lula através da Lei nº 10.836, de 9 de janeiro de 2004. O Programa tinha por
133
finalidade a unificação dos procedimentos de gestão e execução das ações de
transferência de renda do Governo Federal, tais como o Programa Nacional de
Renda Mínima vinculado à Educação - Bolsa Escola; o Programa Nacional de
Acesso à Alimentação; o Programa Nacional de Renda Mínima vinculada à Saúde
- Bolsa Alimentação; o Programa Auxílio-Gás; e o Cadastramento Único do
Governo Federal, todos esses instituídos nos governos Fernando Henrique
Cardoso.
O programa apresentava como condicionalidades na área da educação a
obrigatoriedade de matricular as crianças e adolescentes de 6 a 15 anos em
estabelecimento regular de ensino e garantir a frequência escolar de no mínimo
85% da carga horária mensal do ano letivo. As condicionalidades na área da saúde
para gestantes e nutrizes eram inscrever-se no pré-natal, comparecer às consultas
na unidade de saúde mais próxima da residência e participar das atividades
educativas ofertadas pelas equipes de saúde sobre aleitamento materno e
promoção da alimentação saudável. Os responsáveis pelas crianças menores de 7
anos deveriam levar a criança às unidades de saúde ou aos locais de vacinação e
manter atualizado o calendário de imunização.
Conforme Ricardo Ismael, essas condicionalidades visavam a atender dois
objetivos principais: “reduzir a pobreza no Brasil, especialmente a pobreza
extrema, através de transferências monetárias, e interromper o ciclo
intergeracional de reprodução da pobreza, através das condicionalidades de saúde
e, muito especialmente, de educação” (Ismael, 2014).
Celia Lessa Kerstenetzky, em Redistribuição e desenvolvimento? A
economia política do Programa Bolsa Família, considera que houve efetiva
contribuição do Programa para a redução da pobreza:
as transferências representaram [...] um importante mecanismo de alívio à
pobreza para famílias muito pobres e podem ter tido efeitos significativos sobre a
subnutrição infantil. De fato, estima-se que 87% das transferências foram
utilizadas pelas famílias para comprar alimentos (Kerstenetzky, 2009: 58).
Também em relação à desigualdade de renda, Kerstenetzky vê influência
positiva do nosso programa de transferência direta de renda:
134
depois de oscilar por décadas em torno de um coeficiente de Gini de 0,60, a
desigualdade na distribuição pessoal da renda no Brasil vem cedendo de modo
inequívoco ao longo dos últimos seis anos (2001-2006), alcançando em 2006 um
Gini de 0,56, o que representa uma variação negativa de 6%. [...] O efeito
significativo sobre a desigualdade total pode então ser atribuído ao fato de que
um número substancial de pessoas na cauda inferior da distribuição está
complementando sua diminuta renda com esses benefícios monetários
(Kerstenetzky, 2009: 56-57).
Também Marcelo Neri, em O Rio e o novo federalismo social, comenta a
importância do programa para a redução da pobreza e da desigualdade de renda:
durante seus nove anos de existência, o programa BF passou por expansões e foi
alvo de uma séria de estudos empíricos, que demonstraram seu elevado grau de
focalização e um forte impacto na pobreza e na desigualdade de renda propiciado
pela estrutura e capacidade do programa de chegar aos mais pobres (Neri, 2012:
477-479).
No entanto, Neri vê deficiências flagrantes na qualidade do nosso ensino
na faixa etária-objeto do programa. Creio que esse é um óbice quando pensamos
no objetivo de quebrar o ciclo intergeracional de reprodução da pobreza:
dados o desempenho brasileiro e as estatísticas de frequência escolar e tempo de
permanência na escola para essa faixa etária, percebe-se que o grande problema
da educação fundamental brasileira é a qualidade, e por trás dela, a gestão
escolar, a proficiência dos alunos e a jornada escolar insuficiente (Neri, 2012;
482).
Para Lena Lavinas, a importância maior do Bolsa Família é na redução da
indigência:
o Bolsa Família tem impacto relativamente modesto em retirar da pobreza seus
beneficiários. Mas sua incidência na redução da indigência é significativa e
valiosa. É um Programa que pode ser aprimorado, antes de mais nada tornando-o
um direito de todos que preenchem os requisitos de elegibilidade (Lavinas, 2010).
Quando nos referimos ao custo para a sociedade do Programa Bolsa
Família, constatamos que seu peso relativamente ao PIB é baixo. “O Programa
Bolsa Família custou em 2013 aproximadamente 0,5% do PIB (R$
23.997.460.000,000), e contemplava em dezembro de 2013 um total de
14.086.199 famílias” (Ismael, 2014). Esse valor equivale a uma transferência
direta mensal média de aproximadamente R$ 142,00. Sem dúvida, temos muito
espaço para avançarmos nos valores do Programa. A questão é como melhorar a
inércia na melhora do ensino para quebrarmos o ciclo intergeracional de pobreza.
“A constatação de que a pobreza extrema pode tornar-se residual no país, até o
final dessa década, deve ser comemorada. Mas isso não significa que a sexta
135
economia do mundo já mobilizou os meios necessários para a erradicação da
pobreza no Brasil” (Ismael, 2014).
Papel importante devem ter as instancias subnacionais. Marcelo Neri
lembra que durante o governo Dilma “até maio de 2012, nove parcerias distintas
haviam sido firmadas entre estados e o governo federal em torno de programas
complementares de combate à pobreza" (Neri, 2012: 469). No entanto, “no
Programa Bolsa Família predomina a parceria entre o governo federal e as
prefeituras, de modo que são estas unidades subnacionais que recebem a maior
parte de recursos da União relativas ao PBF” (Ismael, 2014). A descentralização é
fundamental para garantir eficiência ao Programa, mas a parceria com os estados
deveria ser priorizada, uma vez que também cabe a estes a responsabilidade pelo
ensino fundamental.
De acordo com Samuel Pessôa, o programa Bolsa Família não é uma
garantia de autonomia futura, mas um passo nesse sentido. No entanto, considera
que a saída para as famílias na pobreza é a educação de qualidade:
eu acho que ele é um elemento importante, imprescindível. Acho que é um
programa, uma política pública maravilhosa. Eu não gosto dessa história (de)
“precisa ter uma porta de saída”. O Bolsa Família é para aliviar as pessoas de
uma situação de pobreza muito extrema. As pessoas aliviaram, elas já vão ser
melhores. Elas já vão ser melhores mães, melhores pais, só por terem aquilo ali.
A porta de saída do Bolsa Família, no meu entender, é a educação básica de
qualidade. Não mudou nada. É a educação. Eu acho que a única saída para
autonomia, para desenvolvimento econômico, para igualdade, é educação
(Pessôa, 2013).
Pessôa vê inúmeros aspectos positivos no Programa, como a focalização, o
baixo custo e o pequeno índice de fraudes:
eu acho é que o Bolsa Família é um instrumento importante pra que as famílias
que estejam na linha de pobreza tenham um fôlego para se organizarem melhor. E
tocarem melhor a sua vida. Nesse sentido, eu acho que é um programa muito bem
sucedido. É um programa barato, que vai nas pessoas certas. Acho que a fraude é
pequena, e, até hoje, eu não vi nenhum efeito ruim do Bolsa Família (Pessôa,
2013).
Quanto às críticas das quais Pessôa tomou conhecimento, relativas a uma
possível redução na oferta de trabalho, considera que não há nenhum aspecto
negativo, nem mesmo pelo fato de algumas mães optarem por cuidar de seus
filhos ao invés de ingressar no mercado de trabalho:
136
há pessoas que dizem que há algum sinal de reduzir oferta de trabalho. O que eu
vi, o Bolsa Família reduz oferta de trabalho feminino. Como os salários de
pessoas com essa qualificação, de pessoas foco do programa, é muito baixo, o
custo de oportunidade de você parar de trabalhar e ficar em casa é baixo. Agora,
se você é mãe, parou de trabalhar e ficou em casa cuidando dos filhos, talvez seja
isso que eu queira que aconteça. O salário que você comanda, no mercado, é tão
baixo, que a melhor coisa que você pode fazer é ficar próxima dos seus filhos. E
isso vai ser para o país, a longo prazo, melhor, porque crianças que cresceram
com a mãe em casa recebendo o Bolsa Família e o pai trabalhando, do que o pai e
a mãe fora e a criança mais solta. Então, nem nesse aspecto eu consigo ver um
efeito ruim do Bolsa Família (Pessôa, 2013).
Apesar disto, considera que o programa pode ser melhorado, mas sem a
preocupação com uma “porta de saída”. Insiste que a solução é uma boa escola:
eu acho que a gente pode é pensar maneiras de melhorar esses programas. Eu
acho de tudo o que eu conheço que eu vi até hoje, o programa Bolsa Família só
tem efeitos positivos. Isso não quer dizer que ele não possa ser melhorado. Eu
não acho que a gente tem que pensar uma porta de saída pra ele. Isso eu acho
errado. Acho que é um programa de compensação. Tem gente que vai ficar a vida
toda. E tudo bem. Eu acho que a porta de saída do programa Bolsa Família é uma
escola boa para os filhos daquelas famílias. Para quebrar o círculo vicioso da
pobreza (Pessôa, 2013).
Pessôa comenta ainda sua experiência quando trabalhou com o governo do
Ceará, e a resistência que encontrou ao tentar implantar um sistema que premiasse
o mérito na educação:
agora, para que isso seja mais eficiente, a gente pode pensar coisas. Quando eu
estava lá com o Tasso, o Tasso tinha muita preocupação. E tem muita evidência
anedótica de que o Bolsa Família reduz oferta de trabalho no sertão. “Mas
Samuel, não tem alguma coisa que a gente possa fazer, pra melhorar? Um 2.0?”.
Acho que tem. Bolei um programa que seria um 2.0, que seria assim: já tem o
Bolsa Família. Os grupos que ganham Bolsa Família 1 vão ser elegíveis a um
Bolsa Família 2.0. A gente vai dobrar o benefício para as crianças progredirem
mais rápido na prova Brasil. Então a ideia era: você tem o básico, continua do
mesmo jeito, igual, não muda nada. E a gente vai criar outro por mérito. Ele
gostou, fizemos projeto de lei. Quando mandamos projeto de lei, as pedagogas
“caíram de pau”: “É competição! A gente quer formar cidadãos autônomos!
Vocês vão trazer a competição pra dentro da escola, que coisa feia! O aluno agora
vai estudar só porque vai ganhar dinheiro, não! Ele tem que estar imbuído”.
Aquela visão romântica que pedagogo tem. Depois, eu vi uns trabalhos, você
tentou isso de dar dinheiro nos Estados Unidos. Não funcionou muito porque,
nessas famílias, o desconhecimento é tão grande que você oferece dinheiro para o
cara que for bem na prova, não funciona, porque o cara não sabe o que ele tem
que fazer para ir bem na prova. Uma loucura (Pessôa, 2013).
Pessôa vê na nossa dificuldade de assumirmos nossos erros um grande
entrave para o nosso desenvolvimento:
137
aí surgiu uma alternativa que é o seguinte: não era dar dinheiro para o cara que ia
bem na prova. Você dava dinheiro para o cara que lia livro. Quer ler o livro?
Você lê, depois você tem que preencher um questionário. Pagava para os caras
lerem livro. E aí esse programa deu um impacto legal. Porque ler livro é uma
coisa que o cara “saca”. “É, tem que ler”. O cara lia, respondia lá uma prova.
Você percebia, fazia umas questões que o cara tinha que ler. E a gente sabe que
ler é superlegal. Quem lê muito vai bem na escola. Em qualquer matéria, em
qualquer coisa. É muito difícil alguém ser um bom leitor e não ser um bom aluno.
É raríssimo. É uma coisa que é correlacionada com o aprendizado, e que o cara
sabe fazer. Ele sabe o caminho que ele tem que fazer para conseguir. Então, eu
acho que coisas assim a gente tem que pensar. Eu sou um economista liberal, da
tradição smithiana. Eu acho que o subdesenvolvimento está dentro da casa das
pessoas. Ele não está nos Estados Unidos, que explora a gente, ele não está no
capitalismo, o subdesenvolvimento está dentro de casa. E se a gente não criar um
mecanismo de mudar a casa, é muito difícil quebrar o círculo vicioso da pobreza
(Pessôa, 2013).
De acordo com Camargo, só no final de 2003 e, mais especificamente, em
2004 é que o governo Lula faria a unificação daqueles programas. Uma das
marcas do governo é a universalização do programa. Camargo relata como vê a
forma com que se deu essa unificação e, ao mesmo tempo, faz uma análise crítica
do atual estado do programa:
na verdade essa unificação tem uma história. Essa história é muito engraçada.
Realmente, eu e André Urani e tinha mais um. Ricardo Enriques que foi quem
chamou essas pessoas, dizendo: “Escuta, vamos ver como é que a gente faz com
esses programas todos que tão aqui?”. E eu e o Chico tínhamos escrito um artigo,
e nesse artigo, a gente propunha a universalização do programa. A gente tinha
proposto um Benefício Social Único. “Vamos fazer aquilo que a gente propôs lá
no artigo, “cara”. Ótimo. Lá atrás, a gente conseguiu operacionalizar o Bolsa
Escola, e agora a gente vai operacionalizar o Benefício Social Único, onde todo
mundo ganha”. A posteriori, foi um erro. Para mim, foi um erro. Por que é que foi
um erro? Porque você tirou completamente a importância da educação. Quase
toda a importância, hoje, está na transferência de renda. O programa é bom
porque reduz a desigualdade. O programa é bom porque diminui pobreza. O
programa não é bom porque educa mais as crianças. O programa é bom porque
diminui a desigualdade e diminui a pobreza. Que era exatamente o que eu queria
evitar com a ideia do programa condicionado. Colocar a criança na escola. Então
virou um programa assistencialista, como outro qualquer. O cara ganha remédio.
Ganhar remédio é igual a colocar o filho na escola. Mas a ideia do programa é
que não é igual! A ideia do programa, do Bolsa Escola, é que colocar o filho na
escola é que fundamental. A notícia que eu tenho é que as escolas são péssimas.
O passo seguinte era: melhorar as escolas públicas. Que não foi dado. Por que
não foi dado? Não foi dado porque se passou a gastar dinheiro com outras coisas.
Você tem 35 tipos diferentes de bolsa. É remédio, é idoso, é penitenciário, é
prostituta, não sei, virou um programa assistencialista como outro qualquer! A
ideia aqui era evitar o assistencialismo. Essa é que era a novidade do programa
condicionado. Era evitar o assistencialismo dos programas de transferência de
renda. E acabou caindo no assistencialismo. Tanto que a ideia inicial era a
seguinte: toda família que colocasse todos os seus filhos em escolas públicas
tinha o direito ao programa. Todos os filhos em escola pública. Sem corte de
renda. Todas as famílias que colocassem todos os seus filhos. Não são um, dois,
138
três. Tem dez filhos, tem que colocar os dez em escolas públicas. Mesmo os
ricos. Esse é o ponto. Tem que colocar todas. O objetivo não é combater pobreza.
O objetivo é colocar as crianças na escola e forçar o governo a melhorar a escola
pública. Então o objetivo era esse, mas foi desvirtuado. Porque na hora que você
juntou tudo, você perdeu o foco na educação. Agora é tudo junto. É tudo a mesma
coisa. Transferência de renda passou a ser o objetivo do programa (Camargo,
2013).
Em entrevista recente, Cristovam Buarque fez algumas críticas em relação
à forma como o programa foi implementado, criticando a escolha do nome e a
forma como tem sido gerenciado:
o nome em primeiro lugar. A Bolsa Escola era diferente da Bolsa Família.
Quando a mãe recebia a Bolsa Escola, pensava: “eu recebo este dinheiro para que
meu filho vá à escola, e pela escola a gente vai sair da pobreza”. Quando ela
recebe a Bolsa Família, pensa: “eu recebo este dinheiro porque a minha família é
pobre, e se eu sair da pobreza eu perco”. Foi um erro grave do Lula, do ponto de
vista conceitual, embora um acerto do ponto de vista eleitoral. Portanto, primeiro,
o nome. Segundo, a gestão. A gestão, no meu governo e no do Fernando
Henrique, quando ele expandiu o programa, era ligada ao Ministério da
Educação. Isso dava uma dimensão educacional forte ao programa. Terceiro, foi
misturar a Bolsa Escola, que era um programa vinculado à educação, com vale-
alimentação, vale-gás. Ao misturar, não tem diferença entre a bolsa ir para uma
família com criança ou sem criança. Perdeu-se, portanto, a conotação
educacional. Primeiro formulei o Bolsa Escola quando era reitor. Depois, como
governador, a ideia ao implementá-lo é de que duraria 11 anos, que era o tempo
que a criança iria da primeira série até a última do segundo grau. Aí não mais
precisaria da bolsa. É preciso lembrar também que eram dois programas que eu
deveria ter chamado por um nome só — foi um erro do marketing. Bolsa Escola
não era só uma ajudazinha, não, era um salário mínimo por mês, contra a
presença da criança na escola. Mas tinha outro, que era um depósito, uma vez por
ano, se o aluno passasse de ano, e que ele só receberia se terminasse o segundo
grau. Esses dois juntos é que eu acho que segurariam o menino até o final do
ensino médio. Investimos muito em educação, em salário e formação de
professor, em construção de escolas, ensino à distância para os professores,
embora naquela época não ainda para crianças. A meu ver, tudo isso ia fazer um
Bolsa Escola libertador. Nós, hoje, temos um Bolsa Família assistencial. Essa é a
grande diferença: de libertador, de emancipador, para assistencial. Criou-se essa
situação do Bolsa Família, que é necessária, da maneira como é não é mais
possível extingui-la. Eu tenho dito que se acabássemos o Bolsa Família, hoje,
seria um crime contra a humanidade. Se daqui a 20 anos ainda tiver Bolsa Família
é porque cometemos um crime contra o Brasil, não conseguindo libertar o país
dessa necessidade (Buarque, 2013: 307).
Os programas de transferência de renda condicionados à presença dos
filhos nas escolas, seja sob a perspectiva do PSDB, com o Bolsa Escola Federal,
seja na perspectiva do PT, com o Bolsa Família, contemplam os argumentos
fundamentais da Teoria do Capital Humano. O Programa Bolsa Família, ao
condicionar o recebimento dos benefícios às famílias que cumprirem exigências
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que dizem respeito à educação e à saúde, procura reduzir a pobreza extrema,
assim como interromper o vicioso ciclo intergeracional de pobreza.
Observamos que somente a universalização da frequência escolar não tem
produzido resultados que nos permitam vislumbrar a quebra do ciclo mencionado.
Há que se investir na melhoria da qualidade do nosso ensino básico, e esse
investimento provavelmente está mais ligado à melhoria da gestão do que à
necessidade de mais recursos financeiros.
O Programa Bolsa Família é o estágio atual de políticas sociais de
transferência direta focalizadas nos pobres. Essas políticas começaram na década
de 1990 em algumas unidades subnacionais e se expandiram para o Governo
Federal. É possível que uma descentralização que levasse a uma maior atuação
dos governos estaduais e municipais, responsáveis pela educação fundamental,
nos auxiliasse a alcançar o objetivo da quebra do ciclo intergeracional de pobreza.