5 - Marluci Menezes - TEXTO

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1 Da conservação da paisagem urbana à luz da relação entre materialidade e imaterialidade Marluci Menezes 1 RESUMO: A partir de uma perspectiva antropológica, discutem-se algumas particularidades, dificuldades e potencialidades subjacentes à importância de uma abordagem multidimensional das questões e processos relacionados com a salvaguarda e a reabilitação da paisagem urbana. Abordam-se tais questões a partir da relação entre materialidade e imaterialidade. Como suporte desta reflexão recorre-se a estudos sobre a conservação do património arquitetónico em que se participou. PALAVRAS-CHAVE: paisagem urbana, conservação do património, materialidade, imaterialidade ABSTRACT: From an anthropological perspective, we discuss some peculiarities, difficulties and potentials underlying the importance of a multidimensional approach to the issues and processes related to the safeguard and rehabilitation of the urban landscape. We approach these issues thru the relationship between materiality and immateriality. In support of this reflection we refer to studies on conservation of the architectural heritage in which we participated. KEY WORDS: urban landscape, heritage conservation, materiality, immateriality 1. Introdução Como património urbano e cultural, os vários elementos que integram a cidade histórica testemunham como a sociedade e a cultura se relacionam com o ambiente envolvente ao longo dos tempos. Esta cidade define-se através de imagens peculiares que, por sua vez, se constituem pela especificidade da fisionomia arquitetónica e urbana, mas também através da forma e do modo como determinados aspectos socioculturais se encontram enraizadas – a par das suas dinâmicas –, bem como através da reprodução continuada – a par das suas reconfigurações – de determinados 1 Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC).

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Patrimônio cultural

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    Da conservao da paisagem urbana luz da relao entre

    materialidade e imaterialidade

    Marluci Menezes1

    RESUMO: A partir de uma perspectiva antropolgica, discutem-se algumas

    particularidades, dificuldades e potencialidades subjacentes importncia de

    uma abordagem multidimensional das questes e processos relacionados com a

    salvaguarda e a reabilitao da paisagem urbana. Abordam-se tais questes a

    partir da relao entre materialidade e imaterialidade. Como suporte desta

    reflexo recorre-se a estudos sobre a conservao do patrimnio arquitetnico em

    que se participou.

    PALAVRAS-CHAVE: paisagem urbana, conservao do patrimnio,

    materialidade, imaterialidade

    ABSTRACT: From an anthropological perspective, we discuss some

    peculiarities, difficulties and potentials underlying the importance of a

    multidimensional approach to the issues and processes related to the safeguard

    and rehabilitation of the urban landscape. We approach these issues thru the

    relationship between materiality and immateriality. In support of this reflection

    we refer to studies on conservation of the architectural heritage in which we

    participated.

    KEY WORDS: urban landscape, heritage conservation, materiality,

    immateriality

    1. Introduo

    Como patrimnio urbano e cultural, os vrios elementos que integram a cidade

    histrica testemunham como a sociedade e a cultura se relacionam com o ambiente

    envolvente ao longo dos tempos. Esta cidade define-se atravs de imagens peculiares

    que, por sua vez, se constituem pela especificidade da fisionomia arquitetnica e

    urbana, mas tambm atravs da forma e do modo como determinados aspectos

    socioculturais se encontram enraizadas a par das suas dinmicas , bem como

    atravs da reproduo continuada a par das suas reconfiguraes de determinados

    1 Laboratrio Nacional de Engenharia Civil (LNEC).

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    imaginrios urbanos. A paisagem desta cidade contribui para enriquecer o seu

    patrimnio cultural e urbano, evidenciando a importncia em articular as dimenses

    arquitetnicas, histricas, geogrficas, sociais e culturais que do consistncia aos

    valores urbanos e paisagsticos, com as qualidades e valores fsicos do espao edificado,

    as funes e as atividades que possam viabilizar a conservao integrada dos contextos.

    A complexidade inerente paisagem urbana exige uma abordagem multidimensional

    que considere a relao entre espaos exteriores e interiores, as dinmicas e as

    dimenses histricas que estiveram na base da sua prpria constituio, a sua

    qualidade artstica, bem como os distintos ambientes geogrficos, urbanos, sociais e

    culturais que nela se produzem e se constituem.

    premente pensar a paisagem urbana como parte integrante de uma paisagem

    cultural mais ampla e complexa. Os diferentes aspectos que compem a paisagem so

    interativos entre si, influenciando-se mutuamente e dinamicamente, podendo-se

    considerar que a imagem da cidade transforma-se em conjunto com a paisagem urbana

    e esta, entretanto se constri a partir da conjugao dinmica de variadas e mltiplas

    dimenses materiais e imateriais que, por seu lado, encontram-se intimamente

    relacionadas com as mudanas sociais. O conjunto variado destes aspectos permite

    detectar distintos ambientes sociais e urbanos, evidenciando modos especficos de

    viver, construir, percepcionar, usar, representar, imaginar a cidade, assim contribuindo

    para a composio da paisagem. As formas e os processos como as dimenses que

    integram a paisagem urbana se manifestam so definidores de peculiaridades sobre as

    quais, a priori, as dinmicas de interveno urbana incidem. Estas especificidades

    indiciam caminhos que podem contribuir para a conservao integrada dos elementos,

    materiais e imateriais, que constituem a paisagem urbana.

    Esta perspectiva fundamenta a reflexo que aqui se pretende dar expresso:

    Como conciliar a necessidade de conservar o patrimnio urbano e salvaguardar a

    diversidade dos elementos que compem a paisagem, com a necessidade de

    reabilitao e dinamizao sociocultural e econmica? Como dinamizar e reabilitar a

    paisagem da cidade histrica, sem transform-la num mero recurso de marketing

    urbano? Como promover a paisagem cultural das cidades histricas sem congelar

    determinados aspectos e manifestaes sociais e culturais?

    Em sntese, a partir de uma perspectiva antropolgica, visa-se discutir algumas

    particularidades, dificuldades e potencialidades subjacentes importncia de uma

    abordagem multidimensional das questes e processos relacionados com salvaguarda e

    a reabilitao da paisagem urbana. Para o desenvolvimento do argumento de reflexo,

    recorre-se a estudos em que participamos e que tratam da conservao do patrimnio a

    partir da relao entre materialidade e imaterialidade. Privilegia-se a experincia

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    relacionada com uma pesquisa sobre conservao de revestimentos exteriores

    histricos em cal.

    2. Materialidade e imaterialidade na rea da conservao da paisagem

    urbana

    Ainda que a vinculao entre paisagem e patrimnio cultural no seja recente,

    relevante como que, atravs da categoria paisagem cultural, paulatinamente esta

    associao tenha vindo a ter uma visibilidade operacional no mbito das lgicas

    poltico-institucionais e tcnicas nacionais e internacionais de salvaguarda do

    patrimnio como, por exemplo, transparece nas vrias convenes, recomendaes e

    cartas relacionadas com a conservao de contextos histricos. Todavia, no sendo

    objetivo deste texto discorrer sobre as categorias acionadas (e respectivas implicaes)

    no mbito das normativas e convenes que versam sobre a conservao do patrimnio

    histrico e cultural, reala-se, por agora, dois aspectos que decorrem dos referidos

    documentos e normativas: o efetivo reconhecimento da relao entre paisagem e

    patrimnio cultural; a complexidade abarcada pela categoria paisagem cultural,

    associada a no menos complexa e abrangente noo de patrimnio e que, como no

    poderia deixar de ser, remete para uma outra relao e que se reporta s questes da

    materialidade e imaterialidade. Como exemplo, e tendo por referncia as

    Recomendaes da UNESCO sobre a Paisagem Histrica e Urbana (2011),

    interessante destacar os seguintes aspectos no tpico que define o que se entende por

    paisagem urbana histrica: a rea urbana compreendida como o resultado de uma

    estratificao histrica dos valores e atributos culturais e naturais, assim incluindo o

    contexto urbano mais amplo e a sua localizao geogrfica, designadamente inclui a

    topografia do local, a geomorfologia, hidrologia e recursos naturais; o seu ambiente

    construdo, tanto histrico como contemporneo; as suas infraestruturas acima e

    abaixo do nvel do solo; os seus espaos abertos e jardins, os seus padres de uso da

    terra e organizao espacial; percepes e relaes visuais; bem como todos os outros

    elementos da estrutura urbana, bem como inclui as prticas e valores sociais e

    culturais, processos econmicos e as dimenses intangveis do patrimnio relacionado

    com a diversidade e identidade, pelo que a abordagem da paisagem urbana histrica

    inscreve-se na esteira das tradies e das percepes das comunidades locais,

    respeitando os valores das comunidades nacionais e internacionais.

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    Tambm no pretendendo aqui discorrer sobre o conceito de paisagem2, assume-

    se os seguintes pressupostos para discutir a questo da conservao da paisagem

    urbana (Menezes e Tavares, 2003, 2008) a partir da relao entre materialidade e

    imaterialidade:

    A paisagem urbana como um processo contnuo e dinmico de configuraes

    e reconfiguraes e expresso de uma variedade de aspectos histricos,

    polticos, ideolgicos, socioculturais, econmicos, geogrficos, construtivo-

    arquitetnicos e tecnolgicos.

    A imagem da cidade uma das dimenses que constituem a paisagem urbana,

    estando intimamente relacionada com as dimenses sociais, culturais,

    econmicas, construtivas, polticas e ambientais dos contextos que lhes d

    expresso.

    A leitura e interpretao da paisagem urbana so diversificadas em funo de

    quem as faz, relacionando-se com os significados, valores simblicos, sociais e

    culturais, a percepo das pessoas e as suas vises de mundo.

    Materialidade e imaterialidade so dimenses que se correlacionam na

    constituio da paisagem. A distino entre estas duas dimenses meramente de

    cunho operativo e, de modo algum, de contedo: a paisagem sustentada por

    elementos materiais e adquire valor e significado a partir de uma dimenso imaterial.

    Esta perspectiva apoia-se no que Meneses (2012: 31) considera sobre a relao

    materialidade e imaterialidade relativamente ao campo do patrimnio:

    Podemos concluir que o patrimnio cultural tem como suporte, sempre, vetores

    materiais. Isso vale tambm para o chamado patrimnio imaterial, pois se todo

    patrimnio material tem uma dimenso imaterial de significado e valor, por sua vez

    todo o patrimnio imaterial tem uma dimenso material que lhe permite realizar-se. As

    diferenas no so ontolgicas, de natureza, mas basicamente operacionais.

    Estes pressupostos de partida enquadram um percurso de trabalho que,

    gradativamente nos aproximou das temticas da paisagem cultural e urbana e da

    relao entre materialidade e imaterialidade no mbito da conservao do patrimnio

    arquitetnico e, em especfico, da conservao dos revestimentos exteriores histricos.

    2 Sobre o conceito de paisagem na geografia e a sua evoluo, consultar o n. 72 da Revista Finisterra de 2001. Recomenda-se ainda a sistematizao da relao entre paisagem e patrimnio cultural, conforme realizada por Rafael W. Ribeiro (2007).

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    3. Da imatria da paisagem a partir da matria da conservao dos

    revestimentos exteriores histricos

    Os revestimentos exteriores so elementos construtivos fulcrais na proteo das

    paredes. Dai a ideia dos mesmos como a pele dos edifcios. Todavia, os revestimentos

    condicionam fortemente o aspecto final das construes, influenciando a imagem dos

    contextos em que se inserem, participando da paisagem urbana (Veiga, 2003).

    Por exemplo, quando se observa a composio cromtica dos edifcios verifica-se

    que as cores das fachadas possuem uma estrutura que as ordena. A leitura do edifcio

    como um todo estabelece-se primeiro a um nvel cromtico, sendo seguidamente

    notados os elementos decorativos, os relevos, as cornijas, as varandas e colunas, assim,

    originando vrios planos cromticos que dotam de unidade a leitura de uma dada obra

    arquitetnica ou um conjunto de edifcios (Tavares: 1998). Mas essa leitura ainda

    influenciada por um conjunto de outros aspectos, de entre os quais destacam-se os

    significados socioculturais associados aos modos de viver e representar o ambiente, a

    paisagem (Menezes e Tavares, 2003). Assim, em determinados conjuntos de edifcios

    de arquitetura popular observa-se, por exemplo, relaes entre as cores adotadas, as

    manifestaes folclricas e religiosas, os modos de vida, de habitar e representar o

    mundo, bem como os materiais utilizados so contextuais e do lugar a tcnicas

    especficas na aplicao destes revestimentos.

    Olhemos em especfico aos revestimentos de cal, j que as paredes de muitos dos

    edifcios histricos nacionais, de arquitetura erudita ou vernacular, foram revestidas

    por um leque variado de solues tcnicas e artsticas executadas com recurso a este

    material, e que, em muitos casos, relaciona-se com culturas e tecnologias artesanais de

    cunho local. Estes revestimentos beneficiam do recurso a tcnicas sofisticadas ex. o

    esgrafito, o fingido de pedra ou de tijolo ou de tcnicas mais simples, como o

    barramento ou o reboco, ou ainda a modesta caiao. So muitas as referncias de

    revestimento cuja pobreza do material local foi engrandecida pela destreza tcnica dos

    artfices, pela simulao de materiais mais nobres e o uso de ornamentos peculiares

    (Aguiar, 1999; Tavares, 2009; Faria et al, 2010; Veiga, 2010).

    Por referncia ao Projeto LIMECONTECH (Conservation and durability of

    historical renders, compatible techniques and materials) coordenado pelo LNEC e co-

    financiado pela FCT cujo um dos estudos realizados foi sobre as tcnicas, materiais e

    ferramentas ligadas aos revestimentos de cal existentes em Portugal, realizou-se um

    estudo de caso em aldeias de Beja com o objetivo de conhecer o saber-tcnico

    tradicional. O estudo teve por base a recolha de testemunhos orais sobre o saber-fazer

    artesanal ligado s artes da cal. No desenvolvimento deste estudo, contou-se com uma

    equipa constituda por especialistas da antropologia e da engenharia (Menezes, Veiga e

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    Santos, 2012, 2012a). Considerou-se ainda que o saber-fazer tcnico tradicional

    relacionado com as artes da cal inscreve-se na definio de patrimnio imaterial (cf.

    Conveno da UNESCO de 2003). E, no seguimento do que refere Cabral (2010: 7),

    importou a ideia de que sem o patrimnio material, o patrimnio imaterial se torna

    demasiado abstracto; e sem o patrimnio imaterial, o patrimnio material transforma-

    se numa srie de objetos ou stios ilegveis.

    Essa experincia, contudo, apresentou-nos uma situao particularmente

    interessante e que aqui brevemente apresentada. Isto , observou-se que atravs do

    recurso de uma expresso popular especfica aos artesos da cal, no s o domnio

    tcnico revelado, como os valores e significados expressos pela destreza tcnica so

    acionados na interpretao feita do edifcio, da vila e paisagem que a enquadra.

    Fig. 1 Freguesia de Albernoa, Beja Fig. 2 - Freguesia da Salvada, Beja

    Ter opinio era a expresso usada para descrever quem detm a destreza

    tcnica, mas tambm para descrever o impacto sensitivo que essa mesma destreza cria

    em quem v e se apercebe da arte de quem cria paisagem. Quem tem opinio est

    legitimado a pintar do lado de fora do edifcio, j que o domnio da arte assume um

    sentido de lugar pblico: a fachada do edifcio, a face da vila. Ter opinio remete para

    o domnio da arte da cal e experincia, perfeio, higiene, tradio, conservao,

    sentido esttico dos edifcios e, num sentido mais abrangente, para uma determinada

    imagem urbana, assim, participando do processo de construo da paisagem. Ter

    opinio uma expresso que permite abordar os pormenores tcnicos do saber-fazer

    das artes da cal, bem como uma experincia afetiva, sensorial e sensitiva cuja

    complexidade no se traduz numa mera receita, revelando ainda um sentido crtico que

    fundamenta uma opo de trabalho.

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    4. Das dificuldades de conservao da paisagem a partir do caso

    especfico dos revestimentos exteriores histricos

    A conservao dos revestimentos exteriores no uma prtica comum hoje em

    dia, j que com frequncia so eliminados de modo indiscriminado e reparados com

    materiais incompatveis, o que pode comprometer o edifcio histrico e a sua imagem.

    par da importncia da conservao destes elementos construtivos relativamente

    sustentabilidade ambiental, histrica, tcnica (construo e materiais), esttica e

    paisagem urbanas, os obstculos que se colocam sua conservao so muitos, entre os

    quais destacam-se a falta de registo dos elementos e tcnicas preexistentes, o

    desconhecimento da composio e tcnicas envolvidas, a exposio a aes

    destrutivas/degradao, a falta de manuteno e dificuldade de reproduo das

    tcnicas construtivas, a reparao por meio da extrao/remoo dos elementos

    antigos, a substituio dos elementos antigos por modernos, a necessidade de utilizao

    de materiais compatveis com os originais, a dificuldade de estabelecimento de

    recomendaes prescritivas sobre a sua conservao no mbito dos planos de

    interveno em reas histricas.

    No menos importante o facto de que muitos dos obstculos que se colocam

    preservao dos revestimentos histricos so de cunho sociocultural, como por

    exemplo, a falta de sensibilidade e de conhecimento, o desprestgio social pelo uso de

    materiais naturais e o recurso ao trabalho artesanal, o gosto por materiais mais

    modernos, os efeitos de moda, o vandalismo, a falta de mo-de-obra especializada para

    a sua aplicao, a perda de conhecimento tecnolgico tradicional (em muito na posse

    de artesos idosos) e a dificuldade de transmisso deste mesmo conhecimento para as

    novas geraes.

    Ainda que de um ponto de vista tcnico e cientfico se tenha de aprofundar a

    investigao sobre a interveno fsica no campo do patrimnio, certo que muito se

    avanou nos ltimos anos. Mas, no que respeita dimenso sociocultural da

    interveno e conservao, subsistem lacunas que vo desde a formao para a

    sensibilizao para com o patrimnio s questes mais macro-estruturais, tais como a

    pobreza, o desemprego, o envelhecimento do tecido social, a falta de condies de

    habitabilidade (etc.). Ao que, sendo certo que de evitar-se o que Bourdin (1996)

    considerou por conservadorismo fundamentalista, assim precavendo as situaes em

    que o patrimnio cultural congelado, certo tambm que a conservao do

    patrimnio deve ser tomada como uma prioridade. Mas aqui confrontamo-nos com o

    desafio de gerir a relao entre criar condies de conservao do patrimnio e de,

    atravs da promoo do desenvolvimento sociocultural, envolver as pessoas na

    salvaguarda do que de todos.

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    O ato de intervir na cidade histrica e na sua paisagem exige uma cuidada e

    equilibrada gesto das partes interessadas, da que:

    preciso enfatizar que o patrimnio como recurso no se encontra necessariamente

    vinculado ao mundo dos grandes negcios e especulao. certo que grandes-

    empreendimentos imobilirios, urbansticos e tursticos se valem dessa tendncia e a

    estimulam. Mas tambm verdade que programas de gerao de renda, de

    consolidao da cultura pblica e da cidadania buscam eficcia no fortalecimento de

    tudo aquilo que a populao pode fazer, com os recursos de que dispe e que

    tradicionalmente acumulou, nos lugares onde vive e em seus modos de vida

    diferenciados. O patrimnio serve tambm para desenvolver a cultura pblica e por isso

    deve ser valorizado: o patrimnio urbano bom para o desenvolvimento sustentvel,

    para as festas, para a civilidade e tambm, porque no, para os negcios. O desafio que

    se apresenta ao sistema como um todo encontrar o ponto de equilbrio entre essas

    foras, ou seja, construir a sustentabilidade econmica e socio-ambiental da

    preservao. (Arantes: 2004)

    5. Contributos para pensar a relao entre materialidade e imaterialidade

    na rea da conservao da paisagem urbana

    Intervir no patrimnio cultural , como observa Meneses (2012:39), uma

    atividade complexa e trabalhosa que exige postura crtica rigorosa, sobretudo porque

    trata de uma matria-prima delicada: os significados, os valores, a conscincia, as

    aspiraes e desejos que fazem de ns, precisamente, seres humanos. Da que, como

    tambm salientado pelo autor, a relao entre materialidade e imaterialidade, esteja

    diretamente associada com a problemtica do valor, j que:

    () Falar e cuidar de bens culturais no falar de coisas ou prticas em que tenhamos

    identificado significado intrnsecos, prprios das coisas em si, obedientemente

    embutidos nelas, mas falar de coisas (ou prticas) cujas propriedades, derivadas da

    sua natureza material, so seletivamente mobilizadas pelas sociedades, grupos sociais,

    comunidades, para socializar, operar e fazer agir suas ideias, crenas afetos, seus

    significados, expectativas, juzos, critrios, normas, etc. () e, em suma, seus valores.

    S o fetiche (feitio) tem em si, por sua autonomia, sua significao. Fora dele, a matriz

    desses sentidos, significaes e valores no est nas coisas em si, mas nas prticas

    sociais. Por isso, atuar no campo do patrimnio cultural se defrontar, antes de mais

    nada, com a problemtica do valor, que ecoa enquanto esfera do campo (Meneses, 2012:

    32).

    Para o autor, as principais componentes do valor cultural, respeitam aos

    seguintes valores: cognitivos, formais, afetivos, pragmticos e ticos (ver Quadro 1).

    Meneses, ainda observa que estas componentes no esto isoladas, so

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    interdependentes, agrupando-se de diferentes formas na produo de combinaes e

    recombinaes, sobreposies, hierarquias, transformaes e conflitos.

    Quadro 1 Componentes do valor cultural (cf. Meneses, 2012: 35-38)

    VALORES CARACTRSTICAS PRINCIPAIS

    Cognitivos um valor de fruio intelectual, j que remete para uma conjuntura em que um dado objeto proporciona condies de conhecimento ou se estabelece como campo aberto com relevncia para o conhecimento. Por seu intermdio pode-se conhecer o conceito de espao que organizou o edifcio, seus materiais e tcnicas, seu padro estilstico (). Nesta perspectiva, o bem abordado como um documento, ao qual se dirigem questes para obter, como resposta, informao de mltipla natureza.

    Formais ou Estticos

    Relacionado com a experincia sensorial proporcionada pelo contato com o bem patrimonial e que no propriamente respeita a relao com o objeto enquanto documento. Esta experincia considerada como a ponte fundamental que os sentidos fornecem para nos possibilitar sair de dentro de ns, construir e intercambiar significados para agir sobre o mundo. Tal no necessariamente respeita aos estilos em si, mas sim aos atributos presentes nos objetos que, ao atiar a percepo, induzem a uma apreenso mais aprofundada e capaz de produzir e transmitir lgicas mais amplas de sentido. Isto no coincide com estilos, embora atributos formais dos estilos possam, precisamente, aguar a minha percepo, qualificando-a.

    Afetivos Respeita a memria. Ainda que usualmente se costume associar a memria ao valor histrico, a memria, na verdade, um valor afetivo. Isto , ao conceber-se a histria como a produo crtica de conhecimento, isto significa que aqui est-se no campo dos valores cognitivos. No entanto, os vnculos subjetivos e simblicos estabelecidos com certos bens associam-se memria, e esto relacionados com a formulao de autoimagem e reforo de identidade, assim respeitando ao campo dos valores afetivos.

    Pragmticos Considerados como os valores de uso percebidos como qualidade, ou seja, quando as condies disponveis de uso de um determinado bem viabilizam a qualificao de uma prtica social.

    ticos So os valores relacionados com as interaes sociais em que os bens so apropriados e postos a funcionar, tendo por referncia o lugar do outro. Remetem para a forma como as questes da diferena e da diversidade cultural so conduzidas.

    Por fim, o autor discute dois aspectos centrais sobre a problemtica do valor: o

    sentido de oposio que normalmente associado ao valor cultural e ao valor

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    econmico (enquanto valor de troca). Segundo o autor, estes dois valores no so

    antagnicos, na medida que existe uma dimenso cultural no bem econmico e vice-

    versa. Todavia, existe uma oposio relativamente a lgica da cultura, concebida como

    uma lgica de finalidade, em que a produo de sentido e da comunicao que

    constitui prioridade, como acentua Garca Canclini), e a lgica de mercado, j que esta

    tende a instrumentalizar a cultura, na obteno de lucro (Meneses, 2012: 38).

    Tendo presente as componentes de valor cultural acima salientadas, tendo ainda

    presente a problemtica da conservao dos revestimentos exteriores histricos, -se

    confrontado com a necessidade de estabelecer-se uma metodologia de interveno que

    leve em considerao as mltiplas dimenses de enquadramento da matria do

    patrimnio. Mas, que tipo de informao deve ser recolhida? Como classificar e

    delimitar valores multidimensionais que interagem entre si, que se sobrepem,

    combinam-se e voltam a recombinar-se, que criam hierarquias, se transformam e criam

    conflitos?

    Com base nessas questes, iniciou-se um processo de identificao das dimenses

    sobre as quais se deveria conferir ateno no processo de interveno (Veiga, Tavares e

    Menezes, 2011). Neste sentido, o quadro 2 corresponde a um primeiro ensaio, devendo

    ser melhor e mais aprofundado, sobre as (potenciais) dimenses a considerar no

    mbito da definio dos contedos de valor cultural de um determinado bem. As

    dimenses consideradas so: localizao e meio, arquitetnicas, construtivas,

    histricas, artsticas, socio-simblicas, cientficas.

    Quadro 2 (Potenciais) dimenses para a compreenso do valor cultural

    de um bem

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    Fonte: Veiga, Tavares e Menezes, 2011

    6. Concluses

    No campo da conservao da paisagem urbana, as distines ente materialidade e

    imaterialidade, somente fazem sentido em termos operativos. Para efeito de discusso

    recorreu-se a uma experincia especfica com artesos da cal, onde atravs do recurso a

    expresso ter opinio foi possvel observar a referncia a aspectos como: destreza,

    conhecimento, sensibilidade, afeto, sentido esttico e compositivo, noo de conjunto,

    de impacte visual e de paisagem.

    A expresso ter opinio permitiu-nos focar as experincias sensitivas de quem

    executa a arte da cal e atua na matria do patrimnio, contribuindo com o processo de

    construo de paisagem urbana. Mas esta expresso tambm informa, num sentido

    mais lato, sobre quem aprecia o panorama urbano proporcionado por uma dada

    experincia sensorial de leitura da paisagem.

    No campo da conservao da paisagem urbana histrica e, olhando em especfico,

    a problemtica do valor na matria da conservao dos revestimentos exteriores

    histricos, interessa, contudo, aprofundar o conhecimento sobre como melhor

    operacionalizar as componentes de valor cultural de que fala Meneses (2012) com uma

    metodologia de interveno que priorize o sentido multidimensional com que um dado

    bem adquire sentido, valor e significado.

    Adaptando a ideia de Amit-Cohen (2008) sobre a importncia da conservao

    dos tijolos em silicato no centro histrico de Telavive-Jaffa como paisagem (ao que o

    autor recorre a expresso de silicatescape), poder-se-ia considerar tambm a

    importncia de conservar as paisagens da cal (limescape). Para efeito, e na sequncia

    dessa perspectiva, existem cinco razes que fundamentam o interesse na conservao

    das paisagens de cal:

    A cal aparece na fachada de muitos dos edifcios histricos nacionais quer

    sejam de arquitetura nobre, quer sejam de arquitetura vernacular.

    Os revestimentos em cal so parte de estilos arquitetnicos.

    Os revestimentos so parte essencial da aparncia e ornamentao de

    determinados edifcios.

    Representam uma tecnologia construtiva que reflete a histria, bem como as

    mudanas socio-econmicas, culturais e ideolgicas.

    Representam formas especficas de saber-fazer, bem como de usar, representar,

    valorizar e significar a matria do patrimnio.

  • 12

    Por fim, as questes introduzidas nesta reflexo permitem observar que:

    O conhecimento cientfico disponvel no d conta, sozinho, de prescrever

    estratgias de conservao, manejo e uso sustentvel do patrimnio.

    A considerao da paisagem como construo social no d conta de resolver

    questes concretas de interveno e conservao.

    necessria a elaborao de novos parmetros de relao entre conhecimentos

    cientficos e no cientficos, que levem em conta os mltiplos sentidos que a

    ideia de valor pode conter.

    necessrio considerar as pessoas como parte ativa do processo de

    construo/destruio e de expresso sociocultural do patrimnio (material e

    imaterial).

    necessrio considerar as pessoas como um elo fundamental dos projetos de

    dinamizao, valorizao, conservao e de desenvolvimento dos lugares de

    patrimnio.

    Parafraseando os artesos cujos testemunhos sobre o saber-fazer inspiraram uma

    leitura especfica das paisagens de cal, talvez possa ter interesse a aprendermos a ter

    opinio no campo da conservao da paisagem urbana histrica.

    7. Bibliografia

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