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5 Jardins Comunitários e Outros Espaços Públicos
Em Nova York, a história dos jardins comunitários teve início nos anos
1970, quando havia mais de 10 mil lotes vagos na cidade, principalmente nos
bairros onde os edifícios foram abandonados pelos senhorios e inquilinos, e
passaram por incêndios ou demolições. A comunidade do entorno dessas áreas se
organizou para trabalhar junto e transformar esses lotes em lugares para embelezar
o bairro, cultivar alimentos e manter olhos e ouvidos "na rua", uma forma de
combater o crime e as drogas.
O termo "jardim comunitário" pode ser definido de várias maneiras. A
American Community Garden Association (2014) descreve o jardim comunitário
como "qualquer pedaço de terra onde existe um jardim, e que pode ser
compartilhado por um grupo de pessoas”. Na cidade de Nova York, um terreno
que satisfaça essa definição, e que tenha permissão do proprietário para registrá-lo
no Greenthumb, programa da prefeitura, pode ser definido como tal. Na base de
dados da instituição, encontramos jardins de escolas, igrejas e muito mais.
Podemos definir os jardins comunitários como locais abertos para o público e
onde, em teoria, qualquer um pode participar de suas atividades.
Neste capítulo, serão discutidos o papel dos espaços públicos e, mais
especificamente, dos jardins comunitários, em recuperar o tecido social e
ambiental de uma cidade, fornecendo embasamento teórico para a adequação
dessas áreas como contexto sociocultural da pesquisa de campo desta tese.
5.1. A revolução verde nova-iorquina
O primeiro jardim comunitário da cidade de Nova York foi criado em
1973, com o grupo Green Guerrilla (figura 25), quando o Conselho de Meio
Ambiente da cidade decidiu iniciar um programa municipal para jardinagem,
conhecido como Operação Greenthumb. Essa organização foi fundada em 1978,
inicialmente, como parte do Departamento de Serviços Gerais, a agência da
cidade que administrava as propriedades da cidade. Usando recursos do Federal
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Block, o Greenthumb forneceu materiais e serviços para grupos das comunidades,
que receberam concessões provisórias relativas aos lotes vagos.
Figura 25 – Liz Christy, fundadora do Green Guerrilla (Copyright: City of New York/1975).
Grupos de defesa dos jardins comunitários negociaram ainda com a
prefeitura a proteção de contratos de longo prazo para os jardins. No início, foram
emitidas concessões provisórias de cinco anos, a um pequeno número de jardins,
com valor avaliado em menos de 20 mil dólares. Essas concessões eram
renovadas e estendidas para um período de dez anos. Entre as décadas de 1980 e
1990, uma porcentagem muito pequena de jardins comunitários não tinha
qualquer tipo de proteção, que eram ainda considerados de utilização temporária.
Muitos lotes foram alugados por grupos, e não cultivados durante um período de
seis anos, portanto perdidos.
Quando a cidade saiu da crise fiscal e o investimento habitacional cresceu,
em meados na década de 1990, os jardins passaram a ser vistos como locais de
desenvolvimento. A prefeitura migrou então o programa Greenthumb, do
Departamento de Serviços Gerais, para o Departamento de Parques, e o
arrendamento a longo prazo já não era mais oferecido. Acordos de licença
substituíram as concessões provisórias. Vários jardins foram transferidos para a
jurisdição do Departamento de Parques, mas não foram mapeados como tal.
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Algumas licenças de jardim foram ainda canceladas, e os terrenos destinados a
habitações de baixa renda.
O jardim mais valorizado, que passou a ser ocupado por habitações, foi o
D.O.M.E. Garden, no Upper West Side. Apesar de protestos, pressão da imprensa
e audições na justiça, ele foi destruído, e acabou se transformando no catalisador
de um movimento para aumentar o apoio aos jardins comunitários.
Grupos sem fins lucrativos começaram também a se reunir para colaborar
em estratégias de preservação. Membros dos jardins formaram inicialmente as
coligações na cidade de Nova York, para preservação dessas áreas, e formar uma
frente para impedir a perda de outros lotes.
Houve um grande movimento a favor e contra os jardins, entre os anos de
1997 e 2000. A cidade cancelou um grande número de licenças e, em seguida,
cancelou todas elas, e começou a fazer planos para criá-los e prepará-los para
outro uso.
Um caso notável foi o PS76 Jardim do Amor, no Harlem, utilizado por
crianças de uma escola primária. O prefeito Giuliani fez seu famoso discurso "...
bem-vindos à época depois de comunismo", comentário em resposta a protestos
na cidade, e apresentou seu plano para leiloar mais de cem jardins comunitários,
independentemente de como a terra era usada.
Ativistas participaram de manifestações e protestos, e muitos foram
presos. Nessa época, uma grande quantidade de dinheiro foi destinada a fim de
adquirir os jardins. O GrowNYC’s Community Garden Mapping Project fez
mapas e forneceu outras informações, disponíveis no site do OASIS
(http://www.oasiscommunitygarden.com), para adeptos que poderiam utilizar os
recursos para preservar os jardins (OASIS, 2014).
Associados e ONGs providenciaram ainda ações judiciais para impedir a
destruição dos jardins comunitários. O então procurador-geral Eliot Spitzer entrou
com uma ação judicial, para cancelar o leilão. No dia seguinte, a cidade chegou a
um acordo em relação à proteção da terra pública, e ao projeto de restauração de
Nova York, ao comprar 114 jardins de 4,2 milhões de dólares.
Essa compra interrompeu a venda de um grande número de terrenos, mas a
cidade continuou a destinar jardins para serem ocupados por habitações de baixa
renda. Trinta e dois jardins foram ainda transferidos para o Departamento de
Parques para preservação. Em fevereiro de 2000, o procurador-geral Spitzer
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concedeu uma ordem de restrição temporária para impedir ocupações de jardins
comunitários, e evitar tentativas posteriores da administração Giuliani para
destruir essas áreas.
A ordem de restrição temporária permaneceu em vigor até setembro de
2002, quando o então prefeito Michael Bloomberg e o procurador-geral Spitzer
chegaram a um acordo, que preservou quase 400 jardins comunitários na cidade,
permitindo ainda a implantação de mais de cem jardins, já incluídos no plano de
desenvolvimento proposto.
Um novo acordo protegeu mais jardins comunitários em setembro de
2010, quando novas regras foram anunciadas com formulação semelhante e mais
proteções foram garantidas. As discussões em curso procuravam certificar-se de
que eles teriam a melhor proposta possível de preservação de longo prazo.
Hoje, existem mais de 600 jardins comunitários, nos cinco bairros na cidade
de Nova York, e muitos outros em quintais e em propriedades de habitação
pública. São espaços onde os moradores da cidade podem se unir para construir e
desfrutar de uma área verde, cultivar alimentos, aprender mais sobre jardinagem,
conhecer os vizinhos, passar tempo juntos, e que acumulam, assim, um enorme
valor ambiental, social e econômico. Na cidade de Nova York, os jardins
comunitários contribuem para a melhoria da qualidade do ar, a diminuição do
calor, o acesso às suas hortas e uma maior proximidade com a natureza, além de
ser um local para ações de educação ambiental (figura 26).
Figura 26– Registro do jardim La Plaza Cultural no Greenthumb.
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Embora muito poucos jardins comunitários novos tenham sido criados desde
1999, muito esforço tem sido feito desde então para assegurar a sua viabilidade,
com a promoção de práticas de jardinagem sustentáveis como compostagem e
aproveitamento de águas pluviais. Associados e outras organizações sem fins
lucrativos também trabalharam no sentido de alcançar a sustentabilidade social,
dando apoio aos grupos dos jardins comunitários. Os membros dos jardins criaram
uma história de trabalho conjunto, para promover um impacto positivo no
ambiente da cidade.
5.2. A desconstrução do espaço comum
Qualquer tipo de espaço, e seus elementos constitutivos, revela as relações
sociais, experiências cotidianas, valores materiais e lutas que o reproduzem. As
considerações a seguir permitem desconstruir o espaço de jardins comunitários,
expondo as suas potencialidades como áreas comuns.
De acordo com Lefebvre (1991), o espaço envolve uma tríade de elementos
convergentes: espaço material (aquele que é real, com suas formas e objetos),
representações de espaço (o conhecimento sobre o espaço e a sua produção) e o
“espaço vivido” (a experiência emocional de espaço e as práticas subjetivas que
estão anexadas ao espaço). Espaço, portanto, é ao mesmo tempo um ambiente
físico para ser percebido, uma abstração semiótica, que informa o conhecimento
comum e científico, e um meio, por meio do qual o corpo vive a sua vida na
interação com outros organismos (Lefebvre, 2003). A descompactação do espaço,
que não é apenas intelectual, mas também uma tarefa política, pode oferecer
suporte à mudança social (Lefebvre, 1991), que revela as relações sociais que o
produzem, e ajuda ainda a explicar os mecanismos pelos quais as pessoas se
organizam coletivamente a fim de produzir, gerir e sustentar os bens comuns. A
análise a seguir usa os momentos da tríade do espaço, para desvendar o
funcionamento dos jardins comunitários, tecendo a imagem dos bens urbanos
comuns.
A literatura sobre jardins comunitárias permite analisá-los de, pelo menos,
três maneiras diferentes: primeiro, como espaços de contestação, uma construção
espacial de reação às injustiças sociais e ambientais, atingidas pela progressão da
neoliberalização do espaço urbano; em segundo lugar, como espaço controlado,
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em que os jardins e a jardinagem em si são usados como um mecanismo de
controle pelos governos municipais e outras instituições que "produzem" cidadão-
temas (Pudup, 2008), e terceiro, como um espaço de neoliberalização, situado no
interior do paradigma da gentrificação ecológica, nessa abordagem, o jardim é
visto como uma ferramenta para ganhos financeiros, sob o disfarce de uma
“agenda ambiental” (Quastel, 2009). Enquanto no primeiro tipo, os jardins são
considerados uma plataforma para formalizar e expressar um pensamento crítico,
nesses últimos dois casos são vistos como um mecanismo para reprimir a crítica
sobre as injustiças sociais e ambientais, e para avançar na neoliberalização urbana.
Não obstante essa recente cooptação descendente da comunidade de jardins
comunitários, esse trabalho concebe os jardins comunitários da cidade de Nova
York como parte de um fenômeno mais amplo de contestação urbana, pelo qual o
espaço é utilizado para lutar por alternativas sociais e políticas.
Os jardins comunitários são espaços abertos, localizados em lotes urbanos,
uma vez ocupados por edifícios que foram abandonados e desmantelados, durante
a crise econômica da década de 1970. Lidando com um ambiente devastado por
problemas sociais e físicos, grupos residentes limparam esses lotes, e cultivaram
uma área verde.
5.3. Jardins como portadores da cultura: viver o es paço
Espaço vivido é aquele vivenciado por imagens e símbolos, que não estão
submetidos a regras quantificáveis. É a qualidade emocional que é exercida no
espaço — valores emocionais e significados que são imateriais, mas objetivos. É o
berço de memórias coletivas, símbolos culturais e história pessoal (Harvey, 2006;
Lefebvre, 1991). "Como um espaço de 'temas', em vez de cálculos, como um
espaço representacional, temos uma origem, e essa origem é a infância, com sua
dificuldades, suas conquistas e sua falta (Lefebvre, 1991:362).”
A face que é vivenciada dos jardins comunitários tem várias expressões,
imagens, memórias, emoções, identidade e práticas diárias. Como a maioria das
pessoas que cultivam jardins, os associados são imigrantes internos ou externos à
cidade de Nova York, os jardins são espaços de experiências, simbolizando as
paisagens da infância que deixaram para trás. As experiências atuais são também
práticas antigas, reencenadas nos jardins comunitários, um local onde se
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desenvolve um forte apego e identificação com o ambiente, bem como um
sentimento de propriedade e controle sobre esse espaço. O espaço dos jardins é
um importante recurso comum para fazer sentido à vida comunitária, realçando
uma experiência emocional positiva do ambiente vivido.
O aspecto mais fisicamente perceptível do significado simbólico dos jardins
é sua constituição como portadores de cultura dentro da cidade. A cultura
hegemônica se manifesta no espaço, implantando mecanismos que marginalizam
as expressões de outras culturas. Apesar disso, o espaço dos jardins é reapropriado
e usado para celebrar essas culturas silenciadas. A maioria dos associados em
Nova York são chamados de latinos (principalmente, de Puerto Rico) ou
afroamericanos (primeira ou segunda geração na cidade, originários do Sul do
país). Os jardins são, portanto, locais estabelecidos pelos membros dos prédios do
entorno, seguindo uma segregação étnica, o que explica por que muitos jardins
são agrupados como étnicos (latinos ou afroamericanos). Jardins comunitários
estão localizadas em bairros etnicamente diversos, mas que refletem essa
diversidade em sua composição.
Uma das características mais marcantes dos jardins comunitários é a sua
variedade. Cada jardim permite uma experiência excepcionalmente diferente do
espaço com seu próprio arranjo, estética, uso e cores. Essa diversidade é possível
porque os jardins são expressões espaciais de um grupo específico, que não foi
formalmente treinado em planejamento urbano ou arquitetura, e não tenta
implementar princípios já pré-estabelecidos. Isso permite que o associado
expresse e experimente sua cultura coletivamente (e não em particular, em suas
próprias casas). E, de fato, vários aspectos da cultura realizam-se nos jardins, por
meio de uma experiência rica, que envolve preferências estéticas e culinárias,
rituais, costumes, expressões artísticas e interações sociais. Embora apresentando
uma diversidade impressionante, jardins podem ser divididos em três tipos: os
jardins casita, os jardins com hortas e os jardins de cultura eclética.
Os jardins casita são predominantemente latinos e simbolizados por uma
"casa pequena" (tradução de casita, em espanhol) — que imita as tradicionais
casas rurais porto-riquenhas, pintadas para evocar as habitações da ilha (Martinez,
2002:67). As casitas são usadas para armazenar alimentos e equipamentos
musicais, para realizar celebrações, e servem ainda como local confortável para
abrigar os membros. Os latinos geralmente percebem o jardim como local para
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agricultura, espaço importante para o desenvolvimento da comunidade, e como
lugar de reunião social e cultural, que garante a preservação do espaço aberto e
cívico.
Em alguns jardins casita, membros perceberam a força do jardim como um
espaço para a transmissão cultural, e o transformaram oficialmente em um centro
cultural. Um exemplo bem-sucedido é o Rincon Criollo Cultural Center, no sul do
Bronx. O esforço é reviver a cultura, a música e a dança porto-riquenha da classe
trabalhadora, dentro do contexto do jardim. A criação dos jardins casita, como o
Rincon Criollo, permite tomar o controle do ambiente imediato e, nesse processo,
redescobrir e reconectar com o seu próprio patrimônio cultural.
O segundo tipo, os jardins com hortas, são predominantemente
afroamericanos, e o seu espaço é organizado principalmente para a produção de
alimentos. Jardins comunitários afroamericanos manifestam sua cultura na prática
da jardinagem, e no nível da autossuficiência. A história de seus associados os
conecta com seu contexto familiar, e a experiência contida no jardim. A maioria
deles são orientados para a comunidade, embora sejam um pouco diferentes dos
jardins casita. Muitos membros organizam a distribuição de alimentos, brindes e
abastecem a comunidade, durante várias estações do ano. Outra forma de
engajamento da comunidade é a doação de alimentos frescos para a comunidade
pobre. Alguns jardins com horta organizam também oficinas gratuitas de tricô,
papel machê e fabricação de chapéus.
O que mais se destaca nos jardins do tipo casita são as hortas, onde há o
cultivo de legumes e ervas, que são a parte da culinária étnica, porém indisponível
ou inacessível. Para a cozinha afromericana, os jardins com hortas produzem
vegetais, como o repolho e a couve, e uma variedade de milho e tomate. Os
jardins casita são conhecidos pelas suas pimentas doces e fortes, e várias ervas.
Já os jardins de cultura eclética estão localizados em áreas em fase de
gentrificação. A criação desses jardins é geralmente mais recente do que nos
outros dois tipos de jardins. Eles apresentam uma mistura de espaço social e de
jardinagem, com mais áreas de exposição de plantas. Essa diferença
provavelmente está relacionada com o extrato socioeconômico mais elevado dos
membros; ao contrário do que nos outros dois tipos de jardins, aqui a produção
alimentar é menos necessária.
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Os jardins de cultura eclética do Lower East Side, em Manhattan, estão
localizados numa área que enfrentou intensiva gentrificação desde meados de
1980, e estão melhor conectados a diversas organizações verdes e de bairro, que
dão um maior apoio a esses jardins do que aos do tipo casita. Portanto, eles têm
mais recursos para investir tanto na concepção do jardim, quanto na quantidade de
eventos que eles oferecem (Martinez, 2002). Como o nome sugere, os jardins de
cultura eclética apresentam uma variedade de culturas, do ambientalismo até ao
paganismo (Hassell, 2002). O festival anual do Dia da Terra e o evento bianual de
solstício, celebrados nesses jardins, estão entre as festividades que se manifestam
ao longo do ano. No calendário de eventos desses jardins, há espaço para ioga, e
aulas de tai-chi, palestras sobre a natureza, performances de música eclética e
sessões de cinema.
É interessante notar que a primeira fase histórica de jardins comunitários
nos EUA pertence a um programa iniciado pelo próprio governo (inaugurado em
1894, em Detroit). Em contraste, a fase contemporânea dos jardins comunitários
reflete uma tendência oposta à assimilação cultural. Enquanto o mecanismo de
melting pot visa, de fato, um achatamento das diferenças, e a assimilação de uma
cultura hegemônica, em seu estágio atual, jardins ajudam a comemorar
experiências passadas, em reviver as práticas culturais, ao invés de reprimi-las.
Jardins comunitários oferecem uma experiência diária e direta de uma
multiplicidade de culturas, expressa no ambiente físico e social, práticas que são
gravadas na paisagem da cidade, além de serem uma oportunidade de culturas
reprimidas realizarem uma vivência de espaço que enfatiza a diversidade, a
celebração, as expressões estéticas e a conexão com a história individual e
coletiva. Compreendido através da lente do espaço vivido, os jardins dão apoio à
produção contínua de uma comunidade de residentes, e permitem uma alternativa
de experiência dentro do ambiente urbano moderno, por meio da integração de
experiências históricas e culturais na vida cotidiana.
5.4. Nova estrutura, novo discurso: representações do espaço
Representações do espaço são dependentes do olhar, “do quadro de
referência do observador" (Harvey, 2006:122). São percepções abstratas do
espaço que são determinados por, ou em relação a ferramentas e frameworks
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usados para formulá-los. Representações neoliberais de espaço são produzidas
pelo olhar científico de planejadores, engenheiros e urbanistas. Essas
representações giram em torno do valor de troca do espaço, e suas qualidades
mensuráveis (Harvey, 2006; Lefebvre, 1991).
Representações do espaço são o resultado de atos cognitivos, esquemas,
ideias e entendimentos, formando um corpo de conhecimento que está
impregnado nos campos formal (na educação) e informal (ou seja, na cultura, na
mídia e no senso comum). A produção de conhecimento nos jardins comunitários
é uma atividade social que engloba tanto o aprender, quanto o comunicar ideias
sobre o mundo. Representações dos jardins não seguem a lógica neoliberal. Eles
se desenvolvem de acordo como os membros aprendem a ver juntos, trocar seus
sentimentos, valores, categorias, memórias, esperanças e observações, como eles
vão construir e formalizar assuntos todos os dias. Os jardins são lugares onde o
conhecimento local e o conhecimento de uma multiplicidade de grupos são
exclusivos, construídos no contexto cotidiano de suas vidas, e se tornam
conscientes e expressos.
Existem várias maneiras pelas quais a troca de memórias, valores,
sentimentos e práticas cotidianas permitem formar conhecimento para
desenvolver, infiltrar e aprofundar uma raiz, entre seus associados, nos jardins
comunitários. Alguns desses mecanismos são formais, enquanto outros são
informais e espontâneos. Esse conhecimento pode ser prático, baseado em
habilidades expostas de maneira discursiva e abstrata. Do rico e diversificado
âmbito de novas representações do espaço que se desenvolvem dentro dos jardins
comunitários, a próxima seção irá se concentrar em dois exemplos: o
desenvolvimento de habilidades práticas e a produção de representações
alternativas da comunidade e do olhar urbano. Os corpos de conhecimento
práticos e discursivos servem como importantes recursos coletivos para os
membros, e ambos, como veremos, são cruciais para a reprodução do espaço
comum.
5.5. Conhecimento prático: o know-how de produção d o espaço
Existem maneiras formais para a produção de conhecimento prático que são
orquestradas pelos membros dos jardins comunitários, o que inclui oficinas
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gratuitas, palestras, programas da tarde e acampamentos de verão. Uma pesquisa
realizada em 114 jardins em 2007, por exemplo, indica que 42 dos jardins estão
trabalhando com escolas do bairro, ensinando aos alunos sobre plantas, animais e
jardinagem. Alguns jardins estão envolvidos com programas de alimentação
sustentável, onde jovens são ensinados sobre como produzir frutas e vegetais
frescos. Outros jardins têm programas para mulheres e jovens, facilitando a
conscientização ambiental e a capacitação no bairro, e aprimoram algumas
habilidades para melhorar a competência em lidar com o ambiente urbano. Ao
mesmo tempo, esses programas oferecem um conjunto alternativo de
representações, que possibilitam questionar o processo para repensar o lugar e o
papel dos jardins dentro do ambiente urbano.
Além de oferecer programas de aprendizagem formal, os jardins também
constituem um recurso informal urbano para aprender; eles servem como um
fórum para uma aprendizagem espontânea, facilitada pela contínua interação com
a natureza e as pessoas que se relacionam com ela. Um exemplo é a utilização dos
jardins para brincar, onde as crianças contam com elementos naturais (como areia,
água, galhos) e interagem com pessoas de várias idades, uma alternativa para um
playground isolado, designado para cada idade (Hart, 2002). Sutilmente, uma
produção espontânea e um compartilhamento de conhecimento ocorrem naquelas
interações diárias não-planejadas no jardim.
São três as potencialidades significativas dos espaços como jardins
comunitários: os diversos grupos coletivos, cooperando e comunicando-se para
produzir um recurso coletivo, uma configuração de todos os dias; a relativa
ausência de espaços que são seguros e abertos o suficiente para tal aprendizagem
espontânea; e a partilha de conhecimentos, que ressalta a contribuição única de
jardins comunitários.
Além do conhecimento prático, a produção coletiva do espaço impulsiona o
desenvolvimento social e espacial do olhar dos moradores, que equivale a um
quadro conceitual sobre o espaço e seus usuários. O espaço dos bens comuns
permite uma experiência alternativa do cotidiano, que se choca com a experiência
dominante. Como resultado, uma nova consciência é desenvolvida. De um âmbito
mais vasto de representações alternativas dos associados dos jardins comunitários
de Nova York, esse texto expõe uma visão das relações sociais desenvolvidas nos
jardins comunitários, e aquelas que poderiam ser reforçadas na vida urbana, além
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de alternativas de práticas espaciais, que são elementos construtivos dos bens
comuns.
5.6. Novas representações da comunidade e o olhar u rbano
Novos conhecimentos e entendimentos sobre o significado e os aspectos
práticos das comunidades são evidentes no discurso de associados Eles
reconhecem a contribuição dos jardins para a segurança e o embelezamento dos
bairros, e para a coesão social e o capital social das comunidades. Mas, além
disso, os associados desenvolvem novas representações de espaço, que dependem
de exames críticos das noções de bairros, comunidades, cidade, descobrindo seu
desenvolvimento desigual e injusto.
Os jardins oferecem uma certa experiência que tem sido corrompida na vida
urbana, uma experiência que foi dominada pela importância do hiperespaço, e é
assim bem orquestrada. Essa descrição não deve ser vista como um anseio
nostálgico, em vez disso, precisa descrever experiências que ocorrem nesses
locais. Os jardins negociam esse domínio de experiências, permitindo uma
alternativa de experiência diária, de uma comunidade forte e que recebe apoio. Os
jardins fazem isso naturalmente, permitindo o plantio, o posicionamento de
esculturas, apresentações de teatro e outras manifestações artísticas, as crianças
podem crescer nesses locais. É, por isso, que todas as pessoas compartilham sua
visão do que acreditam, e do que querem. Essa discussão apresenta uma
abordagem alternativa e uma crítica sobre a condição das comunidades na cidade
neoliberal contemporânea. De acordo com esse novo significado, eles constituem
uma comunidade não porque compartilham uma característica comum, como
ambiente de vida, crença ou profissão. Em vez disso, eles são uma comunidade
porque eles cooperam, colaboram e comunicam sobre o uso, a produção e a
manutenção de um recurso comum (De Angelis, 2003). Ao invés de aceitar a
modalidade predominante de competição e o desejo de ceder a interesses pessoais,
os associados facilitam novas modalidades que permitem a coesão social, algum
nível de autonomia e a intensidade dos laços sociais.
De acordo com essas novas representações do espaço, a produção de espaço
e a definição de uma comunidade estão fortemente interligados; a comunidade não
é um grupo de pessoas que ocupa um determinado ambiente e opera dentro dela,
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de acordo com sua finalidade estabelecida (por exemplo, clubes, instituições
religiosas, parques) ou mesmo um grupo que apresenta algumas práticas de
resistência no sentido do seu ambiente, pelo contrário, é um grupo que participa
da produção de seu próprio ambiente material, de acordo com sua própria cultura,
a história, o desejo e a visão e, portanto, é construída como uma comunidade.
Muito do conhecimento sobre a economia da cidade política é produzido e
divulgado como resultado da luta, que tem sido travada desde 1999, para
preservar os jardins. Novas representações do espaço foram produzidas por grupos
de jardim e coligações dos jardins que lutaram por seus lotes nas reuniões do
conselhos comunitários, mobilizando o apoio da comunidade e de políticos,
trabalhando com advogados para desafiar decisões nos tribunais, organizar
protestos, comícios e manifestações. Um novo corpo de conhecimento emerge
quando os associados percebem sua própria posição dentro da estrutura urbana do
poder e dos processos de desenvolvimento.
Associados perceberam que seus bairros são excessivamente densos, e há
pouco espaço aberto per capita na cidade, e poucas amenidades públicas. Eles
afirmam ainda que, apesar de sua contribuição para seus bairros, os jardins são
tidos como uma ameaça para a comunidade. Os associados também aprenderam
que os investimentos públicos ou privados não são destinados a melhorar as suas
condições mas, na verdade, para marginalizá-los. Os membros dos jardins
protestam a condição de gueto e o excesso de seus bairros, resultantes da
construção de prédios públicos e de habitação (que são abundantes em suas
proximidades), a falta de mantimentos, escolas e parques, e a gentrificação
alimentada pelo município, além da máquina de crescimento local que ameaça
seus jardins e a eles próprios com seus deslocamentos.
O conhecimento produzido coletivamente é traduzido em poder; é um
recurso para a comunidade proteger seus interesses, e transformar a posição do
associado na estrutura política local. Por anos eles eram vistos simplesmente
como associados, ao invés de ativistas, eles pertenciam a grupos sociais com
nenhum meio e pouca influência política. Desenvolver um olhar melhor para a
estrutura de poder urbano foi o primeiro passo necessário para serem
transformados em militantes e atores sociais mais significativos.
Percebendo a posição dos jardins no contexto mais amplo da política e da
economia urbana, eles tornaram-se um bem construído, uma parceria entre a
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prefeitura e o mercado privado. Membros aprenderam um novo conjunto de
conceitos e práticas, que lhes permitam lutar por seus jardins e desenvolver uma
visão alternativa para o desenvolvimento urbano.
A importância das coligações está relacionada com as mudanças políticas
que aconteceram na cidade na década de 1990, quando membros de jardins
comunitários foram isolados uns dos outros. Isso não estava os ajudando com a
preservação de seus jardins para o futuro. Trabalhando em coligações, eles
lutaram por seus ideais com seus pares, lado a lado. Foi a progressão do tempo e
da política de Nova York que permitiu que os grupos comunitários se tornassem
uma necessidade para os jardins interagirem uns com os outros, em alguns níveis,
nem todos. Eles são ainda independentes, diferentes entre si, com diversas formas
de executar seus programas. De alguma forma, as coligações, que começaram nos
diferentes bairros, foram um ato político para endireitar a voz dos jardins, em um
tempo em que foram atacados pela prefeitura.
Um processo dialético de ação e conhecimento, por meio do qual um
aumenta a produção do outro, e encerra seu espaço material. Associados tinham
que aprender os meandros da cidade a fim de enganá-la. Eles desenvolveram
habilidades e um conhecimento crítico, tornaram-se cidadãos conscientes, que
poderiam ler na máquina política local as reivindicações como justiça social e
processual. Associados desenvolveram uma compreensão ampla das
representações dominantes do espaço, bem como representações alternativas. Eles
também desenvolveram mecanismos que mantêm a produção de conhecimento, de
traduzir e proteger os jardins no futuro. Eles se organizaram em coligações de
bairro e em uma coalizão municipal de associados, o papel principal deles era
manter o diálogo sobre movimentos dos jardins comunitários, desenvolver um
sentimento coletivo forte e promover a educação, além de manter organizações
existentes que agiam de acordo com o interesse dos jardins.
Essas novas representações do espaço desafiam algumas noções bem
estabelecidas de desenvolvimento urbano (irregular) historicamente, e a injusta
distribuição dos recursos entre os bairros urbanos. Em vez disso, propõem um
conjunto alternativo de valores com base no valor de uso de espaço, ao invés de
seu valor de troca, tais como o alto valor que jardins oferecem para a subsistência
das pessoas, sua contribuição para a vida social e cultural, o seu papel na melhoria
de bairros, e na criação de espaços significativos para os residentes. Com isso,
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eles também carregam princípios de acumulação e valores da prática capitalista.
Este novo conhecimento é um recurso coletivo para proteger os bens comuns.
É, portanto, revista a noção de bens comuns, não apenas como uma utopia,
mas como um fato existente de espaço, em meio à cidade neoliberal. Os bens
comuns podem ser reproduzidos por três elementos interligados: espaço material,
conhecimento e significado. O espaço material dos bens comuns é produzido,
mantido e protegido coletivamente por seus usuários. O seu valor exercido no
espaço inclui suplementos necessários e recursos disponíveis. O conhecimento
prático permite a produção contínua dos bens comuns e a estrutura discursiva que
os define. O espaço vivido dos comuns, aqui exemplificado pela celebração de
várias culturas, também engloba a experiência estética alternativa, que desafia as
normas de estética, a experiência social que destoa da alienação predominante das
pessoas em seus ambientes físicos e sociais, e a experiência psicológica
alternativa, que prospera num maior senso de controle e de pertencimento. A
existência e a persistência dos bens comuns dependem desses três elementos
interrelacionados, cada elemento constitui e impulsiona os outros, juntos eles
permitem constituir uma experiência urbana alternativa.
A existência dos bens comuns acontece como algo "realmente existente
dentro neoliberalismo" (Brenner e Theodore, 2002), constitui a localidade como
uma arena impugnada de opostos, ambiguidades e como um sítio paradigmático
para o exame de lutas no espaço, e as potencialidades espacialmente incorporadas
que permitem a mudança social. Podemos compreender as práticas de produção
comuns em dois diferentes níveis. Primeiro, eles podem ser entendidos como
atores de uma ação coletiva, visando receber uma parte maior de bens, sem
desafiar os mecanismos sociais e instituições que produzem desigualdade. Bens e
direitos, tais como espaço aberto, bairros limpos, alimentos saudáveis e
apropriação, foram desigualmente distribuídos e privados do uso coletivo de
associados. Os bens comuns são, então, um mecanismo de redistribuição, por
meio dos quais os moradores compensam o desenvolvimento urbano desigual.
O segundo nível no qual se compreende a produção dos bens comuns é
como uma ação coletiva, que desafia a ordem social hegemônica e segue em vez
disso uma lógica de justiça alternativa (Aronowitz, 2003). Dessa forma,
produzindo o espaço dos jardins, os associados apresentam uma alternativa
provocadora e desafiadora ao espaço social dominante; uma alternativa que
100
corrige o direito ao espaço público, não só no seu sentido concreto, mas no
sentido de "o direito à cidade". É uma alternativa para a lógica de organização e
do planejamento do espaço, para a distribuição do controle sobre ele e seu
significado e experiência. Com a introdução de valores e práticas alternativas do
capitalismo, os bens comuns são desempacotados, e o modo dominante de
produção é desafiador.
Como afirma De Angelis (2007), alternativas ao capitalismo, tais como os
bens comuns, estão constantemente sob ameaça de serem encerrados, de se
tornarem uma força de reprodução capitalista. Nas obras de Quastel (2009) e
Pudup (2008), há exemplos de como os jardins são despojados de seu potencial
crítico, e tornam-se mecanismos de reprodução social, ao invés de transformação.
No entanto, ambos De Angelis (2007) e Hardt e Negri (2009) argumentam que
estamos agora em um limiar de uma nova era. Cada vez mais, vemos modalidades
alternativas de reprodução social, que desafiam o modelo dos bens comuns.
Jardins comunitários, na verdade, oferecem um vislumbre do tipo de relações
sociais e práticas espaciais e valores que podem trazer de volta os bens comuns ao
nosso cotidiano urbano. Elas facilitam uma cooperação e a participação da
comunidade, reunida em torno de atividades, produzindo coletivamente o espaço
de acordo com suas necessidades e visões.
Os jardins comunitários não devem ser vistos como um "retorno" de um
ideal arcaico de área verde, mas como um trampolim para criticar as relações
sociais contemporâneas, e a produção de uma nova espacialidade, iniciando a
transformação de alguns aspectos fundamentais da vida cotidiana, e as práticas
sociais de organização e pensamento.
5.7. Cultivando a resiliência: preservação das área s verdes, saúde e bem-estar
A noção de que o espaço urbano aberto pode ser um catalisador para
melhorar a saúde humana e o bem-estar da sociedade é um conceito incorporado
ao longo da história dos assentamentos humanos. O espaço público é parte da
história da cidade dinâmica, como também é o lugar de coesão e protesto social,
de lazer e recreação, dos valores de troca e uso. No entanto, existem momentos
particulares, onde certas características da natureza devem ser seletivamente
101
discutidas dentro do discurso público, desse modo, é preciso dar forma a
momentos distintos do contexto urbano e do desenvolvimento do espaço aberto.
Essas características frequentemente estão baseadas em propriedades da natureza
que são tranquilizadoras, restauradoras, ou que possuem características redentoras,
em oposição a aspectos selvagens, perigosos e interrupções inesperadas, que ela
também promove (Campbell e Wiesen, 2006).
A história dos parques e espaços abertos dentro das cidades americanas, por
exemplo, são episódicas, com períodos distintos, respondendo a certas crises, e
com uma percepção de risco ou perturbação da ordem social. Durante o século 19,
a sociedade juntou forças com autoridades de saúde pública para apoiar o uso dos
parques como uma forma de reduzir as consequências negativas da cidade
industrial, que crescia rapidamente. O crescimento industrial, sem precedentes,
criou as condições de vida insalubres, a degradação ambiental e os locais de
trabalho inseguro (Duffy 1968, Hall 1998). Na virada do século 19, os líderes do
movimento progressivo estavam ativamente chamando para um “retorno à
natureza” como solução à privação moral percebida dos pobres e, para melhor
integrá-los na sociedade civil. Mais tarde, planejadores urbanos, na década de
1960, utilizaram parques centrais e regionais, para recuperar espaços abertos de
bairros em áreas vulneráveis, como forma de promover a inclusão social e a
renovação urbana. Na década de 1970 e 1980, o movimento de justiça ambiental
argumentou que o acesso a bens conservados, ou seja, parques e espaços verdes,
foi sistematicamente negada a determinados grupos, e foi também um exemplo
visceral da desigualdade urbana (Francis et al., 1984, Fox et al. 1985). Refletindo
sobre essa história, quase todas as gerações de parques e espaços abertos têm sido
impulsionadas pela busca e manutenção da saúde e do bem-estar.
Hoje, planejadores urbanos, arquitetos e profissionais de saúde estão
transformando certas noções do século 19: a “cidade sanitária”, por exemplo,
passa a ser considerada a “cidade sustentável”, onde parques e arredores de
espaços abertos são entendidos como parte de um sistema maior, oferecendo uma
ampla gama de benefícios interdependentes, que incluem fatores socioeconômicos
e biofísicos.
Esses benefícios múltiplos são importantes enquanto tentamos compreender
ambientes urbanos, e podemos ainda contribuir para etapas variadas de bem-estar.
As lições sobre nossa saúde e o ambiente construído do século 19 são relevantes
102
ainda hoje, já que populações, em muitas partes do mundo, continuam doentes de
febre tifóide e cólera, enquanto outros sofrem de uma série de novos problemas de
saúde relativos a obesidade e doenças cardiovasculares. Em última análise, o que
podemos descobrir é que não só precisamos de edifícios com projetos
arquitetônicos inovadores, como também de espaços abertos bem conservados,
para manter a conexão com a saúde pública, além da divulgação de informações
sobre como os diferentes projetos, programas e níveis de manejo contribuem para
a saúde e o bem-estar coletivo.
O aspecto restaurador dos bens comuns pode depender, em parte, das
características de um lugar e, em parte, de nós mesmos. O uso do espaço, de
acordo com pesquisas de longo prazo em psicologia ambiental, muitas vezes
dependem da idade e do estilo de vida dos pesquisados, tanto quanto do projeto
local e das espécies. Ou seja, diferentes tipos de espaços são necessários em
diferentes fases da vida, e o seu uso depende de preferência pessoal. Um dia, um
indivíduo pode preferir a experiência de um sereno passeio pela floresta e, no
outro, desejar uma experiência social animada em um jardim comunitário.
Howard Frumkin sugere que o sentido do lugar é uma construção da saúde
pública:
"As pessoas são heterogêneas, com resposta distintas para lugares diferentes. Alguns gostam de florestas, outros de desertos, alguns preferem quintais bem cuidados, e outros ruas movimentadas na cidade. O ‘lugar de uma pessoa no mundo’, incluindo fatores como status socioeconômico, senso de oportunidade e eficácia e cultura, afeta a experiência do local (Frumkin, 2003:1451).”
Resiliência, ao invés de “boa saúde”, é considerado um indicador mais
eficaz para medir o bem-estar comunitário, particularmente como nós percebemos
que a saúde do ecossistema global e humano não é estático, mas muda ao longo
das décadas. Ao mesmo tempo, comprometimento e a ativa fruição do espaço
urbano aberto podem produzir relações sociais e espaciais que nos ajudam a
suportar episódios e condições estressantes, na sociedade.
Palavra de origem latina, o significado de “resiliência” é literalmente “saltar
ou pular de volta” para um estado anterior do ser. Nós, frequentemente, nos
maravilhamos com a capacidade de recuperação da natureza, após danos causados
por incêndio, inundação ou vento. Ao mesmo tempo, também reconhecemos a
capacidade da nossa própria espécie em se recuperar de infortúnios, provocados
por transtornos de saúde, alterações no status social ou na segurança financeira.
103
Porém, a capacidade de restaurar todo o sistema a um ponto prévio de existência,
depois de uma perturbação ou de uma experiência traumática, é enganosa. Em vez
disso, o nosso sistema é dinâmico, parte de um continuum dinâmico. Ecologistas
urbanos se referem a esse sistema como o “paradigma de não-equilíbrio”. Apesar
de todas as nossas conquistas tecnológicas, os seres humanos — juntamente com
todas as outras espécies na terra — em última análise, coexistem dentro de um
mundo obscuro de fartura e escassez, triunfos e fracassos, dias bons e ruins. No
entanto, há uma esperança em atenuar nossas desgraças com teorias, métodos e
ferramentas, desenvolvidas para aprofundar nossa compreensão da ligação
benéfica entre a saúde humana e o ambiente. Por exemplo, um componente chave
dessa nossa busca individual e coletiva, de uma vida saudável em sociedade e no
ecossistema, é o que muitos campos da ciência se referem como nossa
“capacidade adaptativa” (Olsson et al., 2004).
Ou, em outras palavras, como nos adaptamos em relação às mudanças?
Quanto mais resilientes formos, maior a nossa capacidade de sucesso, e de nos
adaptarmos a mudanças inerentes a um sistema dinâmico. No entanto, há uma
ampla gama de fatores sociais e biofísicos envolvidos nesse processo. Nossa
probabilidade de melhorar a saúde e o bem-estar depende de nossas histórias
passadas, mas também de nossas situações atuais e futuras. A recuperação de uma
doença, semelhante à recuperação de funções de um ecossistema, depende muitas
vezes do que os investigadores da saúde pública definem como “curso de vida”
(Ben-Shlomo e Kuh, 2002), e os que ecologistas urbanos têm denominado como
“efeitos humanos sutis” (McDonnell e Pickett, 1993). A abordagem do curso de
vida centra-se em efeitos a longo prazo da exposição física e social, por meio do
curso de vida, da gestação à terceira idade. Ela considera os caminhos biológicos,
comportamentais e psicossociais, que têm o potencial de afetar a saúde ao longo
do tempo. Da mesma forma, a abordagem ecológica considera efeitos históricos,
que são essencialmente legados biológicos de um determinado sistema, efeitos
acumulados, que são o resultado de eventos passados, e ações inesperadas à
distância, ou seja, impactos causados por uma ação distante (impactos de poluição
são um excelente exemplo). Juntos, se considerarmos o curso de vida e efeitos
humanos sutis, começamos a entender que a resiliência e a adaptação de nossa
espécie são importantes, não como eventos singulares, mas como ocorrências
multidimensionais, ao longo do tempo e do espaço.
104
Sistemas urbanos são, naturalmente, muito complexos. Northridge et al
(2003) sugerem um modelo desse sistema complexo com quatro níveis de
interação: um fundamental, em nível macro, com o ambiente natural e fatores
sociais, como a estrutura econômica; um nível intermediário, que se refere ao
ambiente construído e ao contexto social; o nível interpessoal e, finalmente, a
escala de saúde e bem-estar. Urbanistas, muitas vezes, trabalham com fatores
intermediários dos sistemas sociais (ou seja, uso da terra, transporte, condições
ambientais), enquanto profissionais de saúde pública e ambiente construído
concentram seu trabalho em fatores que incluem características que produzem
estresse, como insegurança financeira, toxinas ambientais ou tratamento injusto,
bem como consideram comportamentos relativos à saúde (práticas alimentares e
atividade física).
Por meio desse modelo, podemos ver as relações entre espaço aberto e bem-
estar, como parte dessa abordagem de sistemas. Esse quadro interdisciplinar
enfatiza o domínio intermediário do planejador urbano (ou seja, o ambiente
construído) e o domínio interpessoal do profissional da saúde pública, aquele que
leva em conta os fatores que causam estresse, considerando componentes críticos,
diretamente relacionados à melhora do bem-estar e da saúde do indivíduo e da
coletividade. Visto dessa forma, podemos começar a entender como bens
públicos, tais como parques e espaços abertos, são recursos críticos que podem
afetar positivamente ou negativamente seu público, em níveis interpessoais,
habilitando ou desencorajando determinados comportamentos, e tornam-se locais
que afetam a integração social de mediação.
No entanto, provisão de espaço aberto é necessária, mas não suficiente, para
fornecer ambientes restauradores. Projeto, capacidade de comprometimento e
engajamento com espaços abertos podem potencializar elementos restauradores de
espaços abertos. Esse texto apresenta considerações que incidem sobre um aspecto
dessa experiência de lugar: engajamento ativo, o que inclui uma ampla gama de
interações humanas, de associações e tomadas de decisões direcionadas ao
trabalho participativo em um lugar. A diferença entre as formas mais passivas e
ativas de engajamento é que o último requer um nível maior de responsabilidade,
direitos e deveres, dentro de um sistema interdependente. O engajamento ativo é
uma forma de contribuir e encontrar significado individual e cívico dentro de um
sistema maior. Por exemplo, estudos sobre voluntários ambientais revelam que as
105
atividades de manejo ativo ajudam a diminuir os sentimentos de isolamento e
impotência que podem levar à depressão e à ansiedade (Sommer et al 1994,
Svendsen e Campbell 2006, Townsend 2006). Muitos desses estudos são baseados
em dias de trabalho simples ou durante períodos específicos ou extremos de crise.
Muitas vezes um mesmo espaço pode oferecer diferentes qualidades
restauradoras para cada indivíduo. O engajamento ativo é uma experiência que
envolve todos os sentidos, e auxilia as pessoas a relaxar. O engajamento ajuda a
restabelecer a confiança, as redes sociais e a eficácia, entre parceiros, para reforçar
a coesão social, a resiliência, e mantendo ainda uma sensação de bem-estar na
comunidade: Baseado nesse entendimento, a reciprocidade que existe entre os
indivíduos e seus ambientes, por meio de atividade pública, é tangível, visível e
não abstrata. O engajamento é comumente desencadeado por uma necessidade ou
desejo, seu resultado muitas vezes beneficia tanto a pessoa como um grupo maior.
A satisfação e a realização de uma atividade coletiva, muitas vezes, leva a
uma perspectiva positiva sustentada, e a autoconfiança é essencial para a tomada
de decisões e medidas de cuidados com a saúde. Nas paisagens urbanas
devastadas da década de 1970 e 1980 da cidade de Nova York, comunidades
recuperaram um senso de controle por meio dos espaços abertos dos jardins
comunitários. Esse ato de engajamento está intimamente ligado à abordagem do
impacto psicossocial e biofísico das ruas abandonadas, bem como a uma
necessidade individual para controlar a própria vida e arredores. "Controlar" aqui
se refere à fundamental necessidade que os seres humanos têm para criar
mudanças no meio ambiente ou em suas vidas, ao invés de manter o controle
sobre eles. Jardins tornaram-se importantes expressões individuais e coletivas de
uma comunidade.
Portanto, a diversidade de funções dos projetos de jardins comunitários em
Nova York sugere que a jardinagem não é definida apenas pelo crescimento ativo
de frutas, legumes e flores, mas também está relacionada com questões de
identidade, economia e eficácia. Esse sentido de agência individual-coletiva tem
uma capacidade única para unir o ambiente construído e o contexto social mais
amplo, expressa em níveis interpessoais relativos a estresse humano,
comportamentos e integração social.
A natureza continua a definir a paisagem restauradora. Assim como em
nossas primeiras áreas públicas, por exemplo, campos centrais compartilhados
106
para pastagens ou cultivo, nossa infraestrutura urbana é uma necessidade que tem
paralelo com o crescimento das cidades, e que carrega funções remanescentes
desses primeiros bens comuns. Em Nova York hoje, os bens comuns podem ser
uma memória pastoral de um campo, o Central Park, uma abertura pavimentada
entre edifícios, o Rockefeller Plaza, ou uma rua repleta de lojas e vendedores de
varejo. A infraestrutura não é, muitas vezes, pensada em termos de tecido vivo,
como um sistema vascular das nossas cidades.
Os bens comuns procuram utilizar certas qualidades restauradoras da
natureza na paisagem urbana, para melhorar o bem-estar e a saúde humana e
ecológica. Essa possibilidade deve muito aos jardins comunitários, que
reconstruíram as paisagens abandonadas da década de 1970, e a um grupo de
artistas ambientais que, na mesma época, criaram obras construídas em grande
escala, que tinham como tema a relação do homem com a terra e a natureza. Os
primeiros elementos de infraestrutura verde já existiam na rede celular dos
quadrados verdes de James Oglethorpe, projetados para Savannah, na Geórgia, e
no colar de esmeraldas do Frederick Law Olmstead, em Boston, e em muitos
outros parques urbanos, cujas paisagens não foram moldadas pela cultura de
cidades. Até que surgiram os primeiros jardins de grande escala, os jardins
comunitários, que ofereceram apoio a valores de vizinhança, coleta e produção de
alimentos, bem como lugares para a restauração humana e cura. A natureza era
para ser vista, fixa na aproximação de um ideal pastoral e ocupada de maneira
igual. Os membros dos jardins comunitários e artistas mudaram esse paradigma, e
elementos de uma infraestrutura mais descentralizada, interativa e restauradora
começaram a aparecer em nossas cidades.
Na base evolutiva do campo da biofilia, por exemplo, o contato com a
natureza é uma necessidade humana básica: não uma amenidade cultural, não uma
preferência individual, mas uma necessidade primária universal. Assim como
precisamos de uma alimentação saudável e exercício físico regular para florescer,
necessitamos de conexões com o mundo natural.
Felizmente, nossas conexões com a natureza podem ser fornecidas em uma
infinidade de maneiras: por meio da jardinagem, andando em um parque,
banhando-se na praia, observando os pássaros pela nossa janela, ou em um buquê
de flores. A experiência de vivenciar a natureza deixou sua marca em nossas
mentes, em nossos padrões comportamentais, em nosso funcionamento
107
fisiológico. Vemos os fantasmas das experiências dos nossos antepassados no
ambiente, e o que elas significam para nós. A hipótese de biofilia é apoiar a
investigação de que, como espécie, somos ainda poderosamente sensíveis às
formas da natureza, aos seus processos e padrões (Kellert Wilson 1993, Kellert et
al 2008).
Usando o conhecimento de nossa afinidade com a natureza, adaptado e
refinado ao longo de milhões de anos, podemos gerar experiências de saúde e
bem-estar por meio dos ambientes que criamos. Ambientes de trabalho podem ser
transformados em espaços mais descontraídos e produtivos, as casas em locais
mais harmoniosos, e os espaços públicos podem se tornar mais inclusivos;
oferecendo um sentido de pertencimento e segurança, mesmo para uma variedade
maior de pessoas.
Para entender as bases profundas da biofilia e sua manifestação na paisagem
física e cultural de hoje, precisamos voltar no tempo para a nossa vida ancestral.
Para a maioria da existência humana, a paisagem natural forneceu os recursos
necessários para a sobrevivência humana, como água, luz solar, alimentos
vegetais e animais, materiais de construção, abrigo e fogo. O sol forneceu calor e
luz, bem como informações sobre a hora do dia. Grandes árvores permitiram
abrigo para o sol do meio-dia, e lugares para dormir à noite para evitar predadores
terrestres. Flores e vegetação sazonal possibilitaram acesso a alimentos, materiais
e tratamentos medicinais. Rios e poços forneceram a água para beber e tomar
banho, peixes e outros recursos animais para alimento. Vias navegáveis criaram
condições para navegação, e acesso a terras distantes.
A ideia de restaurar os bens comuns representa uma nova abordagem
significativa para o desenvolvimento dos espaços urbanos. O projeto restaurador
do jardim incorpora conclusões de pesquisas recentes e interdisciplinares sobre
experiências humanas com o ambiente natural. A abordagem restaurativa dos bens
comuns se baseia em melhores práticas na ecologia de restauração urbana, bem
como em preocupações persistentes para um acesso igual aos ambientes ricos em
natureza, nas áreas urbanas. Natureza é benéfica para todos, independentemente
da idade, sexo, raça ou etnia, e deve estar disponível para todos os moradores dos
centros urbanos, não apenas para aqueles que podem pagar para viver em áreas
próximas a parques e espaços abertos. Contato com a natureza diariamente reforça
108
os valores de respeito e cuidado com o ambiente, que são indispensáveis para
comunidades sustentáveis.
No entanto, nem toda natureza é igualmente atraente ou benéfica. Espaços
com árvores e plantas mortas e moribundas são um sinal de destruição de um
habitat a ser evitado. Em contraste, lugares com vegetação abundante, flores,
árvores de grande porte, água e caminhos sinuosos, que se abrem de repente para
serem vistos, são procurados por muitos, como locais para relaxamento e
diversão. Esses recursos caracterizam os parques urbanos de maior sucesso. Mas
até mesmo em pequenas “amostras” de natureza — um vaso de flor, árvore, ou
um pequeno jardim — é possível também deliciar-se. É uma história real de nossa
ligação com a natureza — com muitas faces e muitas maneiras de criar
experiências positivas em nossas casas, escritórios, pátios ou espaços comuns.
A base da biofilia se expressa de acordo com a especificidade cultural ou
geográfica de um lugar. Na verdade, usar a inspiração do ambiente natural local e
das expressões culturais para a criação do sentido de um lugar é ponto crítico para
o sucesso de um projeto de biofilia.
As melhoras de autoestima e a redução do estresse são os benefícios mais
consistentes do contato com a natureza. Além disso, o contato com a natureza
pode ser puramente visual ou sensorial, com participação ativa (caminhada,
corrida, jardinagem) ou passiva (apenas de visualização). Benefícios são
encontrados em várias configurações, múltiplas culturas e em toda a extensão da
idade, da infância à idade adulta.
Todos os habitats naturais mostram ciclos de nascimento, morte e
regeneração. Alguns processos, como tempestades e o ciclo diurno da luz,
também podem mostrar sequências do desenvolvimento. Quando estressados,
espaços naturais mostram sinais notáveis de resiliência. Muitas vezes, em nossos
ambientes construídos, o estresse leva ao aparecimento de deterioração (por
exemplo, edifícios vazios e abandonados), que parecem incapazes de se renovar.
A resiliência é afetada pela teia de relacionamentos que se conectam na
composição de espécies dentro de uma comunidade ecológica.
Elementos naturais — árvores, flores, animais, conchas — mostram tanto
variação, quanto semelhança, em forma e aparência, devido a seus padrões de
crescimento. Nicholas Humphrey (1980) refere-se a esse fenômeno como "rimas"
e afirma que é a base para a apreciação estética — uma habilidade que evoluiu
109
para permitir a compreensão sensorial. Ele afirma que “belas estruturas” na
natureza e na arte são aquelas que facilitam a tarefa de classificação, ao apresentar
provas das relações taxonômicas entre os elementos de uma forma, que é
informativa e fácil de apreender.
Todos os organismos vivos exibem projeto complexo, que pode não ser
aparente à primeira vista, mas é descoberto por meio da exploração sensorial. O
desejo de saber mais sobre um espaço ou objeto com maior exploração é
considerado por muitos o cerne do aprendizado: quanto mais você sabe, mais você
quer saber, e mais profundo o mistério se torna. Em contraste com os espaços e
formas de vida, a maioria de objetos e espaços construídos são prontamente
reconhecíveis, à primeira vista, e assim podem não motivar a aprendizagem e a
exploração. Embora a complexidade seja uma característica desejável, espaços e
objetos que são demasiadamente complexos são difíceis de serem compreendidos.
A chave pode ser a combinação de ordenação e complexidade, que permite a
compreensão em níveis mais gerais, e envolve ainda nossos sistemas sensoriais,
em um nível mais detalhado.
Os habitats naturais são ricos em aspectos sensoriais, e transmitem
informações para todos os sistemas sensoriais humanos, incluindo visão, audição,
tato, olfato e paladar. Muitos dos nossos ambientes construídos apresentam um
aspecto sensorial, embora a grande maioria das pesquisas em estética ambiental
considere apenas o aspecto visual.
Hoje há também um interesse crescente na compreensão de como o projeto
de áreas verdes apela aos sentidos múltiplos. Tanto a prática japonesa do Kansei,
assim como o design centrado na emoção, por exemplo, baseiam-se nas ligações
entre a percepção sensorial e a respostas emocionais às características do projeto
(McDonagh et al., 2004). A pesquisa de campo descrita no próximo capítulo
concentra-se justamente na interação do público com os jardins comunitários da
cidade de Nova York, recuperando informações da relação entre membros dos
jardins e esses espaços..