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Homo Academicus Em discurso directo Luís Grosso Correia Estudos em Homenagem a Luís António de Oliveira Ramos Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004, p. 29-57

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  • Homo Academicus Em discurso directo

    Lus Grosso Correia

    Estudos em Homenagem a Lus Antnio de Oliveira Ramos Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004, p. 29-57

  • Homo Academicus Em discurso directo

    Lus Grosso Correia *

    O presente trabalho o resultado da transcrio de parte da entrevista sobre a histria de vida do Professor Doutor Lus Antnio de Oliveira Ramos, realizada nos dias 9 e 18 de Abril de 20021.

    O trajecto aqui dado a lume diz respeito ao perodo de vida menos conhecido do Professor Lus de Oliveira Ramos, ou seja, aquele que antecedeu a fase em que o seu nome ganhou maior visibilidade a nvel acadmico, poltico e social: o do seu reitorado da Universidade do Porto entre 1982 e 1985.

    Trata-se de uma entrevista sobre a histria de uma vida acadmica marcada, contempornea e convergente com a histria da prpria Faculdade de Letras da Universidade do Porto. A perspectiva biogrfica do trabalho ser, posteriormente ampliada, atravs de uma abordagem etnobiogrfica da narrativa aqui registada. No consideramos a entrevista como um fim em si mesma ou um produto acabado, mas sim como uma matria-prima, uma fonte de histria imediata, que iremos integrar e desenvolver em trabalhos ulteriores2.

    O trabalho de preparao da entrevista foi facilitado pelas conversas prvias que tivemos com o nosso interlocutor, pelos dois curricula vitae que nos facultou e pela pesquisa das suas obras publicadas. Estes foram como que o mapa necessrio para preparar e orientar a entrevista. Porm, a nossa finalidade era mais vasta, pois visava conhecer o terreno que foi, at presente data, a vida deste actor social na histria recente da Faculdade de Letras, da Universidade do Porto, do ensino superior universitrio e da vida poltica, cvica e cultural portuguesa. Interessou-nos conhecer, per-doem-nos a metfora do terreno, os caminhos trilhados, os atalhos que estrategicamente seguiu, a orografia das paisagens, as cores, os aromas, os miradouros, os amores, os conflitos, os encontros e desencontros da sua vida, tendo sempre por referncia axial as experincias e representaes desenvolvidas ao longo do seu trajecto escolar e acadmico.

    O Professor Lus de Oliveira Ramos foi, ao longo de toda a entrevista, igual imagem que dele sempre fizemos desde o tempo de estudante: aberto, frontal, polido, corts, sem reservas de qual-quer espcie em relao aos assuntos abordados, de raciocnio claro e sinttico e com muitas hist-rias para partilhar. Estas suas atitudes so aqui referenciadas para melhor se compreender o esfor-o cientfico desenvolvido no sentido de se superar o excesso de proximidade profissional e acadmica entre os interlocutores, o qual, avisados como estvamos pela literatura cientfico-

    * Universidade do Porto, Faculdade de Letras

    1A entrevista foi gravada em trs MiniDiscos com um equipamento digital da marca Sony, modelo MZ-R5ST. O tempo aproxi-mado da entrevista foi de 290 minutos. A transcrio da mesma foi realizada pelos estudantes da FLUP Mrcio Oliveira e Sara Antas. A reviso da transcrio foi feita pelo entrevistador. 2 Apresente entrevista marca, simbolicamente, o incio dos nossos trabalhos de estudo histrico-educativo do ensino universi-trio portugus, domnio de investigao que desejamos desenvolver em futuros trabalhos. Da que, combinando a oportunida-de desta homenagem com os nossos objectivos de investigao, nos tenhamos decidido pela entrevista como melhor metodologia para abordar a histria de vida de um dos mais destacados acadmicos da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, refundada pelo Decreto ns 43.864, de 17 de Agosto de 1961. Poder-se-ia analisar a entrevista luz de vrias utensilagens metodolgicas (como a anlise de contedo, por exemplo), mas esse no o nosso propsito, nem este o local indicado para semelhante trabalho, pois o momento de homenagem.

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    metodolgica da especialidade, poderia toldar ou enviesar o objectivo e o contedo da nossa inves-tigao. Fomos, assim, encorajados a abordar o indivduo concreto e no um outro sincreticamente apreendido ou cientificamente construdo no espao terico das relaes de identidade e diversida-de que, pela regularidade das propriedades comuns, poderiam caracterizar outros indivduos3.

    Procurmos, atravs da entrevista, descobrir o percurso acadmico do Professor Lus de Oliveira Ramos desde a escolaridade pr-primria at formao ps-graduada, em ordem a compreender de que forma ele incorporou e inscreveu4 na sua personalidade o saber, o saber-fazer, o saber-desenvolver e o saber-estar no quadro da Universidade portuguesa. O Professor Lus de Oliveira Ramos , segundo a nossa avaliao, um desses casos raros em que se combinam as qualidades de testemunha estratgica e de actor social privilegiado para a anlise da evoluo do mnus do docente universitrio, nas cambiantes da sua misso educativa, investigatva, cvica, poltica e cultural, desde a dcada de 1960 at aos nossos dias. Com ele aprenderemos que, tomando por referncia a histria da Faculdade de Letras da Universidade do Porto entre 1919 e 2002, o passado a cauo e o garante do presente e a histria perde o seu sentido arqueolgico em proveito de uma reactualizao perene, sustentada por rituais apropriados5.

    Pelas razes aduzidas, ousmos apelidar o Professor Lus Antnio de Oliveira Ramos de homo academicus. Pelas mesmas razes, definimos a entrevista como a melhor metodologia de trabalho.

    O resultado o que a seguir se d conta. Um trabalho a quatro mos, em linguagem coloquial, a partir da forma mais bsica e fundamental da comunicao humana.

    Senhor Professor, gostava de conhecer os seus dados biogrficos pessoais. Sei que nasceu em Braga a 7 de Maio de 1939 e depois, da para a frente, foi uma grande aventura at ao dia de hoje.

    Bem, foi um trajecto por vezes variado, por vezes mais montono, Mas acontece que nasci em Braga, em casa do meu av materno, professor do Liceu de Braga e grande proprietrio rural. O meu pai era oriundo de uma famlia de proprietrios, lavradores, da Maia, como se costuma na regio dizer. Tambm professor de liceu, estava em Chaves como reitor, e minha me veio para junto da famlia, porque em Chaves estava naturalmente isolada. De maneira que nasci num ambi-ente com tradio no professorado liceal. Tenho tios, uma irm, primos vrios, e em diferentes geraes, que continuaram esse caminho - alguns ensinam no superior, quer na Universidade do Minho, quer na Universidade do Porto, como aconteceu comigo. Tambm passei por Lisboa, mas muito mais tarde. Bem... ao sabor das mudanas que o exerccio do professorado ento implicava, morei em Guimares, onde brinquei muito no Castelo, prximo da nossa casa -um bom stio para se apanhar ar. Depois fui para Coimbra, com muitas idas a Lisboa, por fora das funes que o meu pai desempenhava em Coimbra, enquanto reitor do liceu normal (normal por causa do estgio), que na altura se chamava D. Joo III e agora tem o nome primitivo do republicano Jos Falco. Foi a que, de facto, iniciei os meus estudos... um pouco foradamente, com cinco anos, porque no me confinava ao andar e tendia a vir para a rua, numa zona perifrica da cidade, hoje quase central, mas na altura era perifrica. Gostava muito de brincar, como gostava imenso de passar as frias grandes (como ainda hoje gosto!) na aldeia e no mar. Na Pscoa, visitava a casa de um tio, mdico em Ermesinde, irmo do meu pai, que residia numa moradia com uma quinta adjacente. Vivi, ora na cidade, ora na aldeia, com uma passagem pelas praias, no tempo prprio, em Agosto ou em Setem-bro. Cresci numa casa cheia de livros e de algum que escrevia e publicava regularmente, quer nos jornais quer em revistas conhecidas desse tempo, e, inclusive, tem alguns livros e ensaios editados pela Universidade de Coimbra - estou a referir-me ao meu pai. Desta maneira cresci numa ambincia entre o campo, com tradies ancestrais, e uma vida intelectual citadina muito intensa, caras a meu pai, marcada ainda pela regularidade do ensino e do exerccio de funes directivas.

    3 A este propsito de assinalar a distino que Pierre Bourdieu faz entre indivduos empricos e indivduos epistmicos (cf. BOURDIEU, Pierre, Homo academicus. Paris: ditions de Minuit, 1984, p. 34-52). 4 Mobilizamos aqui a definio de inscrio e incorporao definida por Paul Connerton (cf. CONNERTON, Paul, Cornos as sociedades recordam, 2~ ed., eiras: Celta Editora, 1999, especialmente p. 83-119). 5 Cf. POIRIER, Jean et alii, Histrias de vida: teoria e prtica, 2- ed., Oeiras: Celta Editora, 1999, p. 29.

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    A sua me confinava-se ao espao domstico? A minha me dedicava-se exclusivamente e a srio educao dos filhos. Acompanhou sempre

    o meu pai nas suas andanas, desde os Aores at Covilh, passando por Chaves, por Coimbra, enfim, por todo o lado. Finalmente instalaram-se em Braga, sua terra de origem.

    A sua me chegou a frequentar o ensino secundrio? No, minha me estudou sempre em casa com as irms. Tinha cinco irms e estudaram sempre

    em casa, porque viviam fora da zona urbana da cidade, em Braga. Um grupo de professores ia l a casa ensinar-lhes aquilo o que as meninas aprendiam naquele tempo: Portugus, Francs, Lavores, Msica, Histria...

    Mas chegou a autopropor-se para fazer exames do ensino liceal? No, nunca. A minha me era uma pessoa culta e muito avisada, mas isso resultou de boas

    leituras e de um excelente ouvido. Alm de boa conversadora, tinha um grande sentido de humor. Provinha, pelo lado do pai, de uma famlia no s de grandes proprietrios rurais mas tambm de polticos que fundaram a Repblica. Viveu em Lisboa boa parte da I Repblica com um tio deputa-do e, em 1919, ministro. O seu mundo girava um pouco em torno destes eixos de memria, a que somava as vivncias da carreira do marido, a mesma de seu pai. Simplesmente o meu av, que eu saiba, nunca desempenhou lugares de direco no Liceu de Braga, ou no Liceu Gil Vicente, em Lisboa, onde acabou a carreira, nem teve de procurar outras cidades para efectivar.

    Mas, de qualquer das formas, no estava unicamente confinado cidade de Braga? No, ns amos com frequncia a Lisboa porque, a partir dos meus trs anos, o meu av transfe-

    riu-se para o Liceu Gil Vicente na altura em que o primeiro dos meus tios entrou para a Universida-de. Depois a casa ficou... eu prprio a residi quando estudante em Lisboa...

    Ento criado numa dinastia de professores? Exactamente. Sei que o seu pai, Feliciano Ferreira Ramos, nasceu em 1904. No sei se ainda vivo? No. 0 meu pai morreu em 1972, depois de estar cinco anos doente, com um problema grave,

    estava afectado por uma dislogia, resultante de ictus cerebral. Pensava bem, percebia tudo, mas tinha dificuldades em exprimir-se, quer dizer, as palavras no lhe ocorriam. Para um professor e escritor terrvel, no ?

    O seu pai formou-se na Universidade de Coimbra? No, o meu pai formou-se aqui, na primitiva Faculdade de Letras do Porto. Trata-se de um dado

    importante porque tinha sido discpulo do Leonardo Coimbra, do Damio Peres, do Professor Hernni Cidade, mas tambm de muitos homens, de que hoje se fala menos, como, por exemplo, Newton de Macedo, Aaro de Lacerda, Francisco Torrinha... Estudara Literatura e, ao mesmo tempo, Histria e Filosofia na primitiva Faculdade de Letras. Tal facto marcou-o profundamente. Integrava o ncleo conhecido dos antigos alunos da primitiva Faculdade de Letras. Quando se reunia com um ou outro, sempre se falava do aprendizado muito livre e estimulante recebido dos seus mestres.

    Como foi o seu percurso acadmico? Sei que vai frequentar o ensino pr-primrio em Coimbra durante um ano. Da a curiosidade de dizer que foi estudante de Coimbra?

    Exactamente. Comecei os meus estudos em Coimbra, primeiro na pr-primria do Colgio das Freiras da Conchada, que ainda existe, segundo me dizem, e depois no Colgio Antero de Quental, muito prximo da nossa casa e no caminho para o liceu. 0 meu pai deixava-me l... A fiz a l classe e muito bem. Tinha um bom professor, o Senhor Geraldo, de quem nunca mais ouvi falar. Portanto, fui um estudante de Coimbra [Risos] no princpio, ao contrrio dos outros que costumam formar-se em Coimbra.

    Comea pela base... Comeo pela base. Depois frequentei a 2 classe na aldeia, em Marrancos, Vila Verde (Braga).

    Meu efectivou no Liceu de Braga... estava hesitante entre ficar em Braga ou vir para o Porto e, durante um ano, aproveitou a casa de campo do meu av para tomar uma deciso. No ano seguinte optou, at por razes de sade, uma vez que no passava bem na sua cidade, no na sua cidade natal, mas a cidade em cujo termo ele nasceu, em Folgosa da Maia, cujo extremo, dizem os velhos mapas, fica a uma lgua do Porto. Eu no entendo bem isso, parece um pouco mais longe... Nessa

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    aldeia fica um dos apeadeiros da linha do Minho, o que lhe permitiu fazer os estudos no Porto utilizando, diariamente, o comboio. Saa de l de madrugada e voltava noite. Estudava sobretudo na hora do almoo e ao princpio da tarde na Biblioteca Pblica; depois voltava a casa.

    Disse que o seu pai estava hesitante em vir para o Porto. Por alguma razo especial? Eu creio que por duas razes. Por razes de famlia: tinha c os irmos - se no no Porto, nos

    arredores, em Ermesinde e Folgosa da Maia. Em segundo lugar, porque o meu pai dizia sempre que a Biblioteca Pblica do Porto fora o lugar onde aprendera muito do que sabia, embora dispu-sesse de alguns meios para comprar livros. Isso verifica-se quando se v as datas escritas nos seus livros antigos, ainda existentes na biblioteca da nossa casa de Braga. Mas, segundo dizia, acontecia o seguinte: almoava um po comprido com qualquer coisa para ficar na Biblioteca a estudar. Por outro lado, com esse dinheiro comprava livros. Julgo que eram essas duas razes: a possibilidade de ter uma boa biblioteca mo e a possibilidade de estar prximo da sua famlia. Nessa altura no viviam muitos familiares em Braga, pois tinham-se mudado relativamente cedo para Lisboa. As frias continuvamos a pass-las em casa do meu av, onde o meu pai escreveu ou acabou de redigir, de resto, alguns dos livros, pois tambm trabalhava em casa durante o ano. Lembro tal facto desde os tempos de Coimbra. Era uma tarefa pesada, a da reitoria do liceu. Mesmo assim, quando vinha para casa estava sempre a trabalhar. At hora do jantar no fazia outra coisa. Antes de adormecer lia jornais literrios.

    Mas o seu pai, quando vai para Braga, no vai desempenhar a funo de reitor do liceu? No, vai como professor regular. Depois chega a ser reitor do Liceu de Braga na sequncia de

    uma crise no reitorado. Por isso comeou como vice-reitor para, no ano seguinte, subir ao reitorado e, enfim, estabelecer um ritmo certo no funcionamento do Liceu, libertando-o de estabelecimentos anexos, sem razo de ser.

    O que que aprendeu com essa actividade intelectual e de direco do seu pai? Aprendi muito, por vrias razes. Em primeiro lugar... grande parte do perodo final do liceu, a

    partir do 3Q ano, vivi com os meus pais e os meus irmos numa quinta - ainda dentro do permetro de Braga. O facto no dava margem para eu estar na cidade at muito tarde. No dava margem para frequentar noite, como muitos dos meus colegas, os cafs, os cinemas, ou isto ou aquilo, porque era longe e no havia transportes. Enfim, o tempo frio, pelo menos at ao princpio de Junho e, portanto, ficava em casa. Li muito. Entre os 14 e os 25 anos. Quando estava em casa, lia tudo o que tinha mo: comecei pelos romances, passei para a Histria, entrei na Filosofia, li os cronistas, li alguns dos auto-res clssicos, o que ia saindo e que o meu pai procurava comprar na sua rea de especialidade. Ele gostava muito de Filosofia e de Literatura, mas tambm de Histria... Por exemplo, estava a sair a nova edio do Gama Barros, uma edio anotada que amplia o livro para mais do dobro. Meu pia leu-a enquanto os livros chegavam. Pela minha parte, como tinha, e tenho ainda, uma grande sede de leitura, acabava por ter muito tempo para ler. Cheguei Faculdade de Letras com um cabedal de saber que poucos teriam. E que me foi muito til... Lembro, por exemplo, (o facto est um pouco na base da minha carreira) que quando se discutiu Ferno Lopes na aula de Histria de Portugal Medi-eval, com o Professor Oliveira Marques, assistente da Professora Virgnia Rau, eu no s conhecia Ferno Lopes directamente como tambm conhecia os trabalhos mais recentes de Antnio Jos Saraiva sobre o mesmo Ferno Lopes e possua ideia segura do que pensavam outros autores. A partir da, fui notado pois dispunha de uma srie de leituras complementares que me permitiam intervir, no sei se com grande originalidade ou no, mas, pelo menos, sabia do que estava a falar - e no estava a falar propriamente em segunda mo. Alm disso, o meu pai conversava muito, vivia o que estava a fazer, acreditava na sua profisso, e gostava de falar, sobretudo, de cultura. Assim, quer ao passear no quintal (uma reserva de meio hectare), quer mesa, abordava os mais diferentes assun-tos. Tudo girava volta das suas preocupaes intelectuais. curioso, no se falava muito de poltica, salvo de poltica estrangeira, pois a famlia devia saber o que se passava no mundo de ento.

    Seria mais colorida? Se calhar era aquilo que se sabia mais atravs dos jornais. Eu julgo que era um pouco isso. De

    maneira que falvamos de poltica estrangeira. Assinava jornais... E isso tambm me abriu hori-zontes. O facto de eu ter em casa uma boa biblioteca e de, s vezes, o meu pai trazer da biblioteca do Liceu livros que no tinha em casa, para eu ler foi excelente. A determinada altura tive a escarlatina

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    e fiquei um ms isolado dentro do quarto - uma vez sem febre alta passei a ler e li o Ferno Lopes todo, entre outras coisas. Tinha 14 anos e li com gosto... Portanto, disfrutava de alguma propenso para a Histria, j nessa altura.

    A vertente de intelectual e a vertente de administrador de uma escola do seu pai... Bom... a verdade esta: o meu pai no gostava de falar em casa do liceu propriamente dito mas

    isso acabava por acontecer. Enfim: ele reinava no Liceu, a minha me reinava em casa. Ele no queria ter preocupaes nenhumas de gesto ou de opes no dia-a-dia familiar, queria estar livre. E, portanto, no gostava de viver dentro ou prximo do Liceu, como podia ter acontecido, nalguma circunstncia. Gostava de viver, digamos, no lugar ambicionado - a sua quinta murada, fora da cidade. Mesmo assim, pelo que referia, via-se que tinha grande experincia de decises.

    Pergunto isto atendendo ao facto de ele, no incio da dcada de 40, ter vindo a ocupar a reitoria do liceu D. Joo III. Era, no fundo, um dos reitores mais destacados no quadro do ensino liceal portugus.

    Sim, mas nessa altura eu era muito pequeno. De maneira que no me apercebi de nada, seno que ele era a pessoa que mandava no liceu, mais nada. Agora em Braga, no. H, evidentemente, uma experincia que fica. Mesmo as pessoas no querendo falar, sendo bons conversadores, aca-bam por contar histrias... se no gente mais nova, aos familiares ou mulher.

    Tambm me contou anteriormente que o seu pai chega a ser sondado, talvez em 1966, para vir substituir aqui no Porto o reitor do Liceu Normal D. Manuel II.

    Exactamente. O meu pai nunca teve vontade de sair de Braga. Apreciava viver em Braga e considerava-se um cidado bracarense. Tinha ido l parar por acaso. Soube que havia uma vaga em Braga... Os seus antigos professores e amigos, o Doutor Damio Peres e o Doutor Hernni Cida-de, na altura eram pessoas influentes, como o foram at morrer (passaram da Universidade do Porto para as Universidades de Coimbra e de Lisboa), deram-lhe uma carta de apresentao para o reitor do Liceu de Braga e foi contratado. Esteve l daquela vez, depois foi fazer o estgio pedaggi-co, regressou a Braga e a casou. Gostava de viver numa cidade pequena, desde que tivesse meios para trabalhar. Quando pde, arranjou uma casa nos arredores - dentro da cidade, mas j na zona rural. E assim vivia... podendo estudar...

    Parmos, ao nvel da sua formao acadmica, na 2- classe da escola primria. E da para a frente?

    Da para a frente... na aldeia e depois na cidade de Braga continuei a frequentar a escola oficial. Algum tinha convencido o meu pai que essa era a melhor soluo. A senhora que me ensinou era uma professora distinta, mas demasiado bondosa. De maneira que, a partir da, eu comecei a saber menos. Fui para Braga e o professor tambm considerado distinto no ensino primrio, na minha perspectiva no tinha grande jeito para se saber moldar a cada aluno. 0 grosso da turma era cons-titudo por rapazes das famlias operrias da zona. Havia trs ou quatro rapazes que vinham dos meios mais elevados: dois formaram-se e poucos ultrapassaram o seu meio. Havia pouca gente das famlias gradas da cidade. Imperava o sistema da vara, da rgua e do berro como grande argumento para se estudar. Ora, eu confesso que em tempo nenhum gostei de ser mandado fora ou de estar comandado sem alternativa, de modo que se criou uma retraco natural. A partir da, embo-ra eu tenha feito o exame da 4 classe com distino, como quase toda a gente da minha roda, a verdade esta: no era um aluno distinto. Depois fui para um colgio particular.

    Mas chegou a fazer o exame de admisso aos liceus? Fiz o exame de admisso no liceu de Guimares, onde o meu pai fora reitor, onde um primo meu

    vivia com a famlia e tambm fazia exame nesse ano. 0 meu pai sara h poucos anos de Guimares, estava l o meu primo com a mesma idade. Pareceu-lhe que seria um clima bom para os dois...

    Foi uma estratgia? Foi uma estratgia para criar um ambiente propcio, porque realmente era um choque muito

    grande. Vinha de um ambiente escolar familiar, apesar das palmatoadas, de que eu nunca fui vtima - o meu pai no deixava bater nos filhos. Achava que se tratava um erro bsico de ento, no por proteco, mas por princpio. Subitamente ao clima paternal da escola primria sucedia a rigidez do liceu: havia o rigor dos horrios, dos contnuos, daqueles professores antigos instalados, sobretudo numa cidade pequena, onde toda a gente se conhecia. Bom... depois entrei para um colgio par-

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    ticular em Braga. A foi deliberadamente... O meu pai no quis que eu fosse aluno de colegas que ele no apreciava ou com quem no se dava. Que eu saiba, no tinha ms relaes com nenhum colega... Ento, fui para um colgio, em Braga, com esta particularidade: todos os indivduos que l estavam ou tinham mais de 13 anos ou no conseguiam entrar no liceu - que era acessvel, apesar de tudo, enquanto o ensino particular era caro. A no tive maus professores, com uma ou outra excepo. Alguns deles no possuam formatura, no pareciam docentes, mas eram pessoas competentes... Havia antigos seminaristas, havia indivduos com meio curso na Universidade ou ento que exerciam profisso liberal c fora. No tive maus professores, mas tinha uma srie de colegas pouco estudiosos, de quem sou amigo ainda hoje, de quem tenho boas recordaes... mas, realmente, reinava a cabulice [Risos]. Parecia mal estudar com aqueles matules todos que se tinham atrasado na Primria. Em todo o caso alguns colegas venceram na vida, a tirarem os seus cursos. Depois, a partir do 2Q, 3Q, 4Q e 5Q ano, apareceram outros. Tal clima no era bom e tambm no gostei especialmente de l andar, embora no haja nada de especial a referir. Em contrapartida, quando no 6Q ano entrei para o Liceu... porque escolhi Histrico-Filosficas e devia estudar Grego, disciplina que s no liceu era ministrada... gostei imenso, agradou-me o Liceu. J ento conhecia boa parte dos estudantes desse estabelecimento, que funcionava junto ao Colgio, na mesma rua...

    Eu no tenho recordaes ms do Colgio, mas deveras gostei de frequentar o Liceu. At por isto: no 6 e 7Q ano comecei a estudar s as matrias de que gostava. Por exemplo, eu nunca me entendi muito bem com a Matemtica (embora tenha tirado uma nota muito alta, a melhor nota desse ano, em Lgica Matemtica na Faculdade), mas a verdade esta: no 1Q e no 2Q ano do Colgio tive um professor, coronel no Exrcito, com pouco jeito para ensinar, e que estragou tudo definitiva-mente. Aprendi Matemtica para fazer o exame ao ouvir as orais dos outros, j no 5Q ano.

    Depois entrei para o Liceu, fiz as disciplinas de Letras, acabei com distino, obtendo dezasseis valores e entrei automaticamente na Faculdade. H duas coisas importantes a referir: no Liceu as turmas no eram propriamente mistas, mas havia cadeiras em que o ensino era misto. Havia boas relaes entre rapazes e raparigas. Fazamos uns bailaricos, uns piqueniques, umas coisas que estavam na moda naquela altura. Tinha colegas de bom gabarito, acho que toda a gente da turma venceu na vida. Foi muito agradvel, havia uma certa emulao entre rapazes e raparigas que tinham gosto pelos estudos. Foi bom em todos os aspectos.

    H um segundo dado que ia enunciar, mas queria fazer aqui um parntesis para no deixar escapar esta sua formao liceal. Vai cursar a alnea d) do 3- ciclo liceal que tinha como sada a licenciatura em Cincias Histrico-Filosficas. Como que decidiu seguir essa alnea curricular no liceu?

    Bem, eu decidi por duas razes. Em primeiro porque gostava de Histria e tinha facilidade em Filosofia. Meu pai tinha pensado em tempos formar-se em Filosofia, e s depois que passou para Romnicas. Eu gostava claramente mais de Histria do que de Romnicas. Apesar de todos os rapazes da minha idade terem ido para Direito, eu fui para Letras, porque estava convencido, e o meu pai tambm, que tinha boas hipteses de fazer um bom curso naquilo de que gostava. Eu no pensava ser professor universitrio mas seguir a carreira diplomtica. No meu horizonte no esta-va o magistrio.

    Mas quando sopesou essa... Muito mais tarde. Ento pensava na carreira diplomtica. Ento, quando acaba o 5Q ano do liceu e vai matricular-se no 62 ano, no teve qualquer

    dvida em saber qual a alnea curricular que queria? No. Sabia que era a alnea d)... de Histrico-Filosficas, que obrigava a frequncia de Latim,

    Grego, Organizao Poltica, Histria, Filosofia e Literatura. Acho que eram estas seis cadeiras. De maneira que fui... porque por a chegava carreira diplomtica da melhor maneira. Quem alcan-asse catorze em Histrico-Filosficas podia automaticamente concorrer, o mesmo sucedendo em Direito e, a partir de determinada altura, em Economia. Foi o caminho de muitos embaixadores que muitos julgam formados em Direito quando, afinal, so licenciados em Histrico-Filosficas.

    Teve tambm a sua primeira experincia de co-educao no 6- e 7- ano do liceu. Vai ter raparigas como parceiras de sala de aula. Isso no representou algo de inovador para si?

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    No, porque nas frias eu dava-me com outras raparigas de famlias conhecidas que passavam o tempo de praia no mesmo lugar. A partir da tornou-se mais regular.

    S pergunto isto porque disse que veio de um colgio particular onde estava habituado convivncia com rapazes.

    Sim, no h dvida nenhuma que muito melhor uma situao de vida real. A situao de ento era forada. Num caminho normal: as pessoas devem viver, como afinal vivem em sociedade.

    S um aparte. Como que se namorava no seu tempo de liceu? Namorava-se normalmente, mas na praa pblica, no ? [Risos]. No cinema, nas ruas das cida-

    des, nas casas de ch ou nalgum caf mais sossegado onde houvesse mesas vagas... onde se estudava, alis. Lembro-me que quando fiz a licenciatura estudava com rapazes e raparigas, inclusi-ve em casa de uma das minhas colegas, que hoje professora catedrtica. Tnhamos relaes bastante desinibidas, mas no propriamente libertrias como o so no nosso tempo... Por exem-plo, estou a lembrar-me de uma das nossas colegas que andava na altura deliciada com a Simone de Beauvoir - mas era mais teoria do que prtica [Risos]...

    Ia enunciar um segundo ponto que se prendia com o seu acesso ao curso superior de Cincias Histrico-Filosficas. Um era o facto de ter estudado no liceu as disciplinas e ter cursado o que mais lhe interessava e, por outro lado, era o segundo ponto que ia enumerar...

    Mas eu j lhe referi que foi devido minha inteno de entrar na carreira diplomtica. Mas quando que esse projecto comea a surgir? No final do liceu? Sim, nessa altura eu interessava-me por duas coisas. Pensava na carreira diplomtica, que era

    uma maneira de conhecer o mundo e, talvez devido a esse ambiente de ateno para com a poltica internacional existente em casa. E interessava-me por outra coisa, que era pela Marinha, pelos navios de guerra.

    Isso era um hohby* No. Era outra hiptese que eu punha. Simplesmente como eu era fraco a Matemtica, foi coisa

    posta de lado, imediatamente. Mas pensou ir para a Escola Naval? Sim, mas a coisa nem chegou sequer a prefigurar-se. Ainda hoje gosto de saber coisas da Mari-

    nha. Acabei por ir parar Academia da Marinha sem nunca ter feito nada de especial em termos de estudos sobre a Marinha. Mas acho que estou bem l, porque ensinei, longos anos, Histria dos Descobrimentos e gosto de cobrar saber sobre a matria. De vez em quando, fao as minhas comu-nicaes.

    Nessa altura, quando optei por Letras, fi-lo com a ideia de seguir a carreira diplomtica. Entrava com os tais catorze valores automaticamente e depois importava realizar uma prova de protocolo.

    Acabou o liceu com a classificao final do 7- ano de dezasseis valores, o que fez com que fosse dispensado das provas de aptido Universidade. Porque que se vai matricular na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa?

    Matriculei-me na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa por vrias razes, mas a prin-cipal julgo que advinha da circunstncia de haver uma casa de famlia em Lisboa. Eu costumava passar as frias com o meu av e com as minhas tias e, assim, continuaria, de certa maneira, em casa. Era uma casa grande onde havia condies para trabalhar. Demais, um dos meus tios tam-bm frequentara Histrico-Filosficas antes de ficar doente ainda muito novo e organizara uma boa biblioteca. Esta era a parte mais prtica, digamos, mais acessvel, em termos econmicos, de ida para fora, a qual, nessa altura, pesava no oramento de quem vivia de um ordenado de funcionrio pblico. Por outro lado, havia uma tradio de famlia... Meu av, os meus tios e o meu pai (numa fase de formao pedaggica) tinham andado em Lisboa. O meu pai, particularmente, soube-o atravs dos meus tios, dizia expressamente que eu devia ir para Lisboa para conhecer os novojs mtodos da Histria que nessa altura eram praticados pela professora Virgnia Rau e que, depois, vieram a ser ministrados tambm pelos Drs. Borges de Macedo e Oliveira Marques, que entraram para assistentes da Faculdade a partir do meu 2Q ano. De maneira que foi tambm uma escolha contra a Histria Poltica dominante em Coimbra. Embora o meu pai se desse particularmente bem com algumas pessoas de Coimbra, a comear pelo Professor Joaquim de Carvalho (decano da Filosofia em Coimbra e um grande republicano)... a verdade esta: achava fundamental que eu me

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    especializasse em Histria numa escola de vanguarda. Mais virada para os estudos da sociedade? E da Histria Econmica, sobretudo. Coisa que eu depois no segui. Fui o melhor aluno daquela

    altura, mas tive sempre a minha maneira de fazer Histria, muito influenciado pelos conhecimen-tos de leituras que realizava na rea da Literatura, que me levavam mais para o campo da cultura e no para os temas predominantes na escola, isto , na Faculdade.

    Isso reflecte-se em trabalhos iniciais seus... pelo menos naqueles em que faz incurses ao nvel de personagens de textos fundamentais da literatura Portuguesa.

    Pois. A formao literria pesou; depois aconteceu o seguinte: quando me formei, o nico lugar vago na Faculdade era o de assistente de Cultura Portuguesa, cadeira regida pelo Doutor Vitorino Nemsio, catedrtico de Romnicas. Mas normalmente o assistente deveria ser de outra rea, se-gundo um acordo existente. Como licenciado em Cincias Histrico-Filosficas poderia trabalhar como Assistente de um Professor de Romnicas. No meu caso, como noutras situaes, um assis-tente de Histria formado em Histrico-Filosficas acompanha um professor de Romnicas. Devo dizer que nos entendemos muito bem.

    Que professores que o marcaram na Faculdade de Letras enquanto aluno? De uma maneira notria o grupo que apontei h pouco. A Professora Virgnia Rau, o Professor

    Borges de Macedo, o Professor Oliveira Marques, com quem fiz tese... sob a gide daquela Profes-sora Catedrtica. Apesar de no ser um assunto de Histria Medieval, ele era um assistente novo e que dirigiu, de facto, todos os alunos que nessa altura fizeram dissertao em Histria - o Baquero Moreno, a Iria Gonalves, o Vieira de Carvalho... A Professora Rau arguiu depois as dissertaes no acto de licenciatura.

    Foi seu orientador por ser o professor que estava mais disponvel? No, na altura ele e o Borges de Macedo estavam em situao idntica. Simplesmente o Borges

    de Macedo era muito dirigista: o trabalho obedecia exactamente s regras por ele impostas e aos temas da sua preferncia. J doutorado, Oliveira Marques dava mais liberdade, inclusive na esco-lha de temas. Eu pretendi elaborar uma introduo histria do Liberalismo em Portugal, um estudo sobre heterodoxos, maes, jacobinos e leitores de livros proibidos no sculo XVIII...

    A tese de licenciatura que fez um prenncio da rea onde se vai destacar mais tarde como acadmico? Apesar de ter tido muitas derivaes ao longo do seu percurso...

    As derivaes resultam da fora das circunstncias, de conferncias que nos pedem e de coisas que somos obrigados a estudar. Mas o ponto base esse. Eu tenho duas ou trs grandes investigaes, uma volta dessa gente e do tema conexo Portugal e da Revoluo Francesa, outra volta de uma figura, o Cardeal Saraiva, porque no me deixaram fazer a tese sobre Portugal e a Revoluo Francesa. Ento, contornei a proibio e estudei um homem que realizou o percurso do Antigo Regime para o Liberalismo. Um homem que at aos 54 anos foi um monge beneditino e exerceu toda a sorte de funes de servios dentro da ordem. Plebeu, entrou na ordem porque cantava bem, sabia tocar rgo e cantocho. A partir dos 54 anos, torna-se um poltico famoso. Membro da Junta de 1820, chega a regente do reino no ano seguinte. Depois ascende a reitor da Universidade e bispo de Coimbra. A seguir, com o regresso do absolutismo, vai para o exlio na Batalha. A seguir volta cena pblica, regressa ao Parlamento, para de novo o presidr. Com o Miguelismo vai preso seis anos para o Mosteiro da Serra d'Ossa. Depois tudo quanto se pode ser: Ministro, Conselheiro de Estado, Guarda-Mor da Torre do Tombo, membro de variadssimas comisses, vice-presidente da Academia de Cincias e por ltimo Cardeal Patriarca de Lisboa, quase a chegar aos setenta anos - trabalhou intensamente durante cinco anos. Portanto, um liberal, um homem da Igreja que fez um percurso a partir do advento do Liberalismo, at ao seu apogeu, na fase inicial.

    Referiu tambm um terceiro plo em que podemos centrar as suas investigaes. O terceiro plo continua a ser principalmente no sculo XVIII e tem a ver com duas coisas

    complementares, uma o Brasil do sculo XVIII, com o estudo de Frei Caetano Brando, cujas visitas pastorais descrevem o Amazonas em pormenor. Ele viajou por todo o Amazonas em visita pastoral, mas tomava nota do que via em cada terra: apontava, inclusive, as perspectivas de desen-volvimento, relacionamento entre autctones e autoridades... Enfim, o espiritual um dos aspec-

  • 39 Homo Academicus

    tos a par de muitos outros. Por outro lado, estudei um homem que trabalhou com Frei Caetano Brando, enquanto exemplar

    arcebispo de Braga, lugar a que ascendeu pelos servios prestados na Amaznia. O Procurador-Geral da Mitra de Braga, nessa altura, Incio Jos Peixoto, possua um dirio secreto, que eu tambm prefaciei, a pedido do Professor Eiras Capela... Isso deu-me margem para estudar uma sociedade local nas suas relaes com o mundo exterior. De facto, relata o que aconteceu em Braga e em Portugal e conta tambm o que se passa em todas os pases do mundo da altura, j que lia gazetas. Visto que se tratava de um dirio secreto, conta muita coisa importante, quer sobre a Braga daquele tempo quer sobre a situao na Europa, nomeadamente sobre a Revoluo Francesa.

    Do ponto de vista historiogrfico essas temticas eram ousadas para a poca?... Sim, isso trouxe at algum dissabor. Em primeiro lugar, no tratei de histria econmica, que

    estava na moda. Segundo, tal como vem no prefcio da Histria da Maonaria, de Oliveira Marques, eu fui a primeira pessoa que, digamos, me meti a fundo nos arquivos da Inquisio procura de maes. No tenho nada a ver com a Maonaria em si, mas interessavam-me esses homens pela sua influncia poltica, pelo que fizeram, muitas vezes, fora do que se decidia na prpria loja... num esprito de tolerncia e fraternidade, de leitura aberta, num espao de convivncia. Depois estudei tambm os jacobinos nos arquivos da Intendncia Geral da Polcia. Estudei os livros proibidos pela Mesa Censria e a literatura dos chamados homens das novas ideias: desde Verney, passando por Ribeiro Sanches, para chegar a Cavaleiro de Oliveira, aos precursores do Romantismo - Jos Anastcio da Cunha, Marquesa de Alorna, Bocage, Filinto Elsio, etc

    No fundo, interessava-mea Revoluo Francesa e a cultura do Iluminismo, ou da Ilustrao, como costumo dizer, movimento que lhe subjaz. A seguir vem o Cardeal Saraiva, homem que fez esse percurso, educado numa congregao avanada, pombalista, em que a razo assume um pa-pel primordial; a razo leva-o, assim como leva outros monges, a seguir caminhos livres. Isto algo muito curioso porque os estatutos pombalinos so o texto mais dogmtico que se pode imaginar. Simplesmente encomiam a razo... levando os que seguem esse mandamento a pensar livremente. No no sentido democrtico actual; os liberais no acreditam no povo; acreditam, sim, na elite instruda, numa oligarquia, que tem um certo rendimento e uma certa educao.

    Sentiu alguma vez dificuldades em desenvolver este tipo de estudos, quer na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, quer na Faculdade de Letras do Porto?

    Na Faculdade de Letras de Lisboa ningum me ps dificuldades, ningum. No Porto o Doutor Lus de Pina no gostava do tema Portugal e a Revoluo Francesa. Assim, para obter uma bolsa de estudo impunha-se arranjar um tema que o Prof. Pina, Director do Centro de Estudos Humansticos, aprovasse. Nunca usou termos desagradveis, mas dizia-o claramente. Como, ao optar pelo Porto, perdera a minha orientadora de tese, a Professora Virgnia Rau, procurei adaptar-me s circunstn-cias contornando... o problema.

    Arranjou o Cardeal Saraiva como arete. Exacto. O Cardeal Saraiva, embora mal visto pela fama de mao, sempre era Cardeal... [Risos].

    Foi exactamente assim. Mas no houve qualquer reserva de natureza intelectual ou at ideolgica em relao

    ao tema? No Porto ou em Lisboa? Posta a questo assim... Em Lisboa ningum me ps... No fundo, estava a falar de liberdades. Liberdades. Mas, enfim, a Doutora Virgnia mandava na sua rea e dispunha de fora e influncia

    no mundo intelectual e no mundo oficial; embora no fosse poltica, tinha peso. O facto de no se intrometer na poltica era apreciado no Ministrio.

    Acaba, ento, o curso de Cincias Histrico-Filosficas... Onde fru de um ambiente de estudo muito bom. Convivi intelectualmente com uma srie de

    colegas, rapazes e raparigas estudiosos, inteligentes, dados cultura. Custou-me um pouco adap-tar-me a Lisboa nos primeiros meses, mas depois integrei-me no ambiente da Faculdade de Letras. Apercebi-me da luta de faces entre professores que remontava aos choques entre Adolfo Coelho e Tefilo Braga e chegara aos meados do sculo, camuflando problemas de relaes pessoais e de conquista de poder.

  • Lus Grosso Correia 40

    Mas isso verificava-se mais no Porto ou em Lisboa? Em Lisboa, claramente. Como aluno nunca o senti, fui sempre bem tratado por toda a gente. Um

    professor, que no citei, exerceu grande influncia na minha maneira de pensar: refiro-me ao Pro-fessor Vieira de Almeida, catedrtico de Filosofia. O mesmo aconteceu com o seu assistente, Rog-rio Fernandes, com quem estudei filsofos actuais, como Mounier ou Sartre. Tambm recordo o professor de Filosofia Antiga, Dr. Ribeiro Soares, que obrigava ler os pr-socrticos e Plato. Deles guardo recordaes imperecveis.

    Os princpios de emulao entre os alunos mantinham-se? Mantinham-se, mas as pessoas respeitavam-se e ainda hoje se respeitam umas s outras. Havia uma certa etiqueta nessa emulao? Havia respeito, sobretudo. Havia o grupo de Filosofia (alguns preferiam a Filosofia, outros a

    Histria) e havia depois o grupo que optou pela carreira diplomtica. Mas, para alm desses gru-pos organizados, as pessoas respeitavam-se, como se verificou ao longo da vida. Posso diz-lo e isso viu-se, de uma maneira geral, ao fim de 40 anos.

    No Porto sempre me dei com toda a gente. Procurei manter-me acima das faces, como ficou provado quando da minha candidatura a reitor, que toda a Faculdade apoiou. Bem sei que foi um acto estratgico da Faculdade, naquela altura, empenhada no acesso a um lugar na Reitoria medi-da da sua dimenso...

    Podemos voltar a Lisboa? convidado para Assistente da Faculdade de Letras da Universidade de lisboa num ano particularmente quente.

    Na altura do convite no era nada quente, pelo contrrio. O ano de 1961/62 estava a acabar, com aulas a funcionar com regularidade, um ano absolutamente vulgar. Em finais de 1961 inaugurou-se a nova Reitoria da Universidade de Lisboa, um edifcio fantstico, mais a Cantina, decorada por Almada Negreiros de forma espantosa. Alm disso, a Cantina era servida, mal servida, pela mais requintada pastelaria do Chiado; Marcello Caetano dera-lhe a concesso, mas a comida no agrada-va aos estudantes; talvez para senhoras de idade no estivesse mal [Risos], Durante o acto da inaugurao da Reitoria o Doutor Nemsio perguntou ao Doutor Oliveira Marques se ele lhe indi-cava um assistente. Eu estava entretanto a fazer provas de licenciatura que duraram, nessa poca, at princpio de Dezembro. J se andava a pensar nisso. A Doutora Virgnia Rau escrevera uma carta a meu pai (agradecendo e retribuindo uma oferta de livros), onde afirmava que tencionava convidar-me para assistente.

    Na altura o problema que se punha era arranjar dinheiro, como agora acontece, para contratar mais um. Lembro-me de ter ido Faculdade ver os horrios. Por eles verifiquei que s existia uma vaga de assistente na cadeira do Doutor Nemsio. Pelos vistos no havia qualquer candidato vista. Inquirido o Doutor Oliveira Marques por aquele catedrtico, este indicou-lhe o meu nome e, nesse mesmo dia, o Professor Nemsio falou com a Doutora Virgnia Rau, a cujo grupo eu perten-cia. Ela disse-lhe que j tencionava convidar-me - dizia-o h muitos anos. Dias depois terminei as provas de licenciatura e afixadas as notas, aquela catedrtica chamou-me e convidou-me. Entrei para assistente de Cultura Portuguesa para trabalhar com um professor desconhecido. Por acaso, nem sequer lera o Mau tempo no canal e os seus escritos existentes na biblioteca familiar...

    Para um apaixonado nela Marinha... H coisas inexplicveis. to inexplicvel no ter lido nada at essa data deste grande da litera-

    tura, como parece inexplicvel eu ter sido assistente de Vitorino Nemsio. Bem... comecei imedi-atamente a assistir s aulas tericas, pois no fazia a mnima ideia do que Nemsio tratava nas aulas de Histria da Cultura Portuguesa. No fora seu aluno e a cadeira funcionava pela primeira vez sob a sua regncia.

    Era mesmo assistente. Tinha mesmo de assistir. O Professor pensava o que intua e sabia sobre a matria. Ao tratar a

    cavalaria medieval... o Doutor Nemsio ora podia falar dos ideais da cavalaria medieval, dos cavaleiros na literatura, ora podia fazer uma digresso acerca dos campinos do Ribatejo, os ltimos cavaleiros dos tempos modernos. Homem muito inteligente, muito culto, muito erudito, funcionava por associao, e estabelecia as ligaes mais inesperadas. Para mim, tal experincia de trabalho

  • 41 Homo Academicus

    revelou-se fora do comum, por quanto funcionava como contraponto cultural da uma formao muito positivista na Filosofia e muito economicista na Histria.

    Esta Histria da Cultura Portuguesa, orientada pelo professor Nemsio, foi um grande desafio?

    Foi um grande desafio e um desafio fundamental. Nesse ano, entrei para assistente no dia 12 de Maro e parece que foi no dia 19 ou 21 que comeou o Dia do Estudante e nunca mais houve aulas. Se houve aulas, decorriam com um aluno ou dois, o que obrigava a cumprir esse tempo lectivo. Ainda assim, dei matria de Histria... os textos de Alexandre Herculano, de Oliveira Martins, de Antnio Srgio e de Jaime Corteso sobre as origens de Portugal. O Doutor Nemsio deixou-me escolher. No ano seguinte, no me lembro j qual o primeiro ponto do programa. Existe algures em casa. No segundo ponto ps-me a dar um assunto muito curioso: a comparao entre a projeco, na literatura, do Minho e do Alentejo, precedida de um estudo etnogeogrfico.

    Um pouco na esteira dos estudos de Orlando Ribeiro? Comeava-se por definir o quadro geogrfico com Orlando Ribeiro, depois passava para a carac-

    terizao de Jorge Dias, em termos de antropologia, sobre o modo de ser e viver dos alentejanos e dos minhotos, e finalmente viam-se as repercusses na literatura. Deu-me trabalho. Para o Alentejo h uma antologia muito bem feita, que deveria ser republicada, de Urbano Tavares Rodrigues, que tem os textos fundamentais: desde o Conde de Monsaraz at aos mais actuais, passando pelos homens do princpio do sculo... uma antologia exemplar. Para o Minho a antologia existente pareceu-me fraca. Tal facto obrigou-me a realizar uma vasta pesquisa. Alm disso, trabalhava nos seminrios de Histria dos Descobrimentos, com o Doutor Verssimo Serro e o Doutor Manuel Heleno, o catedrtico, e de Histria de Portugal orientado pela Doutora Virgnia Rau, coadjuvada pelos doutores Oliveira Marques e o Borges de Macedo. Foi assim o meu primeiro ano lectivo, disperso entre o ensino das prticas de Cultura Portuguesa e a assistncia nos seminrios de Hist-ria, onde os alunos preparavam as suas teses de licenciatura.

    No segundo ano, deram-me logo as regncias da Antiguidade Oriental e de Numismtica, ines-peradamente. Eu sabia muito pouco de Numismtica..., mas encontrei um programa com a ajuda dos colegas mais velhos - no com a dos catedrticos. Esses queriam que se desse a moeda dura e crua. Encontrei uma soluo: dei histria monetria. Regi essa cadeira por necessidade de servio. Depois o saber revelou-se til quando argumentei no concurso do Doutor Xavier Coutinho, um bom numismata, desconhecedor da histria monetria.

    Mas no continuou com a cadeira de Histria e Cultura Portuguesa? Sob a orientao do Doutor Vitorino Nemsio?

    Continuei. Acumulei com as outras cadeiras. Sentia-se mais aluno ou mais professor quando eclode o movimento de contestao? Eu estava ainda a meio caminho. Tinha muitos colegas e amigos ainda estudantes, a comear pela

    minha irm, aluna do 1Q ano da Faculdade. Sabia o que se passava nos lares pela minha irm. Tinha um primo em Direito que me dizia o que se passava na sua Faculdade. Por outro lado, como me dava muito bem e fui sempre bem recebido pelos assistentes de ento e alguns deles tomaram parte na vanguarda do movimento de contestao - homens como o David Mouro-Ferreira, Borges de Macedo, Oliveira Marques -, participei em todas as reunies. At visitei os estudantes em greve da fome ao lado de outros professores, alguns eminentes. Possua informao e h, e ainda guardo, muita pape-lada de tal perodo, a papelada que corria. Nesse tempo acentuou-se a minha admirao, no s intelectual como pessoal, pelo Doutor Marcello Caetano... Conhecera-o em Braga, no falado Con-gresso do Portugal Medievo. Em 1962, impressionou-me a sua atitude na qualidade de reitor.

    Mas, greves s aulas, manifestaes, choques com a polcia, greves de fome, ocupao da emblemtica Cantina... isso mexeu consigo?

    Sim, estvamos convencidos que derrubaramos o governo [Risos]. Mas a verdade que estvamos longe disso, o governo permanecia bem estribado. Na provncia, com excepo de Coimbra e de poucas pessoas do Porto - entre as quais professores hoje, em exerccio na Universidade -, a Situao permanecia relativamente calma.

    Havia outros movimentos de inspirao poltica, ou poltico-ideolgica, concorrentes

  • Lus Grosso Correia 42

    da influncia do Partido Comunista nessas movimentaes. Havia os designados humanistas leigos, por exemplo, os catlicos progressistas...

    Sim, a par dos comunistas figuravam estudantes que se ordenavam em torno do jornal O Encon-tro, cujo mentor era o depois bispo castrense, o Doutor Antnio dos Reis Rodrigues, sacerdote deveras aberto, enquanto assistente da JUC [Juventude Universitria Catlica].

    Existe algo mais que o tenha marcado em Iisboa? As formas de trabalho, de organizao do trabalho ou at de direco de unidades orgnicas...

    Sim, por exemplo, o trabalho de grupo que o meu curso realizou logo no 2S ano, sobre a Peste Negra, e do qual eu, o Baquero Moreno e a Iria Gonalves fomos os relatores escolhidos pelos colegas. A sua apresentao pblica configurou um acontecimento na vida universitria. Foi a primeira vez que um grupo de alunos, levado pela mo de uma catedrtica ilustre, Virgnia Rau, apresentou um trabalho colectivo num congresso internacional onde foi discutido. Fui o apresentador, enfrentando homens da Sorbonne, da Universidade de Madrid, da Universidade de Coimbra... Assumiu talvez mais importncia pelo clima de trabalho e de aprendizado em que se desenvolveu.

    E era um estudo original. Era um estudo original, porque praticamente pouco havia sobre a Peste Negra em Portugal:

    uma entrada no Elucidrio de Viterbo do sculo XVIII, uma informao aqui, outra ali e um ensaio muito importante do Antnio Srgio. Havia ainda a tradio do ensino do Doutor Jos Antnio Ferreira de Almeida, ento professor da Faculdade de Letras de Lisboa, o qual chamara, em tem-pos, a ateno para o estudo da Peste Negra que se estava a fazer noutros pases.

    A revista Population sobre a Peste Negra, o respeito do assistente da Virgnia Rau, Doutor Oli-veira Marques, por Antnio Srgio e o precedente magistrio de Ferreira de Almeida foram decisi-vos na escolha do tema. Depois, existia um clima de dilogo entre alunos e professores na Faculda-de, mesmo com professores conservadores, no todos, com quem no era possvel entrar em discusso. Os professores estavam prximos dos alunos - talvez mais prximos do que actualmente esto aqui - numa Faculdade aberta e menos formalista do que a Faculdade de Coimbra.

    Depois, ao realizar a tese de licenciatura fui super visado, no controlado... E exigia-se trabalho e resultados. Com outro mestre, qualquer indivduo, melhor ou pior, acabava por fazer a tese que ele quisesse, porque ele lia e relia, mandava fazer outra vez... Eu no passei por isso.

    Do ponto de vista docente, importante foi a ligao Histria da Cultura, depois do neo-positivismo lgico e do economicismo dominante no curso. Durante a crise aprendi a conhecer as pessoas... Foi uma experincia maquiavelicamente extraordinria... [Risos]

    Como assim? Passei a conhecer no apenas a pessoa que est no pedestal, mas a pessoa tal como nas suas

    fraquezas do dia-a-dia, embora a vida no se reduza poltica, marcante durante a crise. Mas, para si, foi uma boa lio do ponto de vista tico e moral esse perodo crtico da

    contestao? Do ponto de vista tico ou da relatividade da tica condicionada pelas condies sociais. A rela-

    tividade das coisas veio muito tona e impressionou-me enquanto indivduo com outra formao. Levou-me depois, noutras situaes complicadas, a ficar sereno. Aprendi mais em dois anos em Lisboa, no meio da crise, da barafunda [Risos], do que no Porto, durante estes trinta e oito anos de vida quase sempre calma.

    Mas tambm tinha uma grande vantagem: era relativamente jovem e estava numa posio em que podia absorver...

    Absorve-se tudo e -se sensvel a tudo, com o tempo fica-se couraado frente s surpresas da vida. Mas tambm, pelo facto, de estar numa posio de charneira... ao saber o que se

    passava do lado estudantil. bvio, no ? Alis, nunca tinha reflectido sobre isso, mas parece-me essencial conhecer as

    vrias faces de uma questo, quando a vivemos. At em termos geracionais estava muito prximo... Tinha-me formado naquele ano. Em termos de clima de trabalho, entre os mestres existia uma

    emulao no mau sentido. Demais, tive a sensao de que no tinha nenhuma hiptese de fazer carreira, a menos que morresse muita gente, o que, de facto, nem aconteceu [Risos], felizmente.

  • 43 Homo Academicus

    Passei para o Porto, continuei a manter relaes com os vrios grupos existentes na Faculdade, pois estava fora. Doutra forma, seria obrigado a alistar-me num dos exrcitos. No havia outra hiptese.

    Mas essas faces de que fala eram assim to marcadas? Eram, eram. Mas qual era a linha de clivagem? A linha de clivagem, em boa parte, era poltica. Em boa parte era de concorrncia pelo controlo

    das poucas vagas, muitssimo poucas, que havia. Tal situao, em qualquer lugar, seja qual for a poltica, vem ao de cima.

    E como que surge o convite da Faculdade de Letras da Universidade do Porto? O convite da FLUP surgiu da maneira mais simples e por uma via inesperada. Eu gostava de vir

    para o Porto, conforme os meus colegas sabiam. Em Lisboa preparava o doutoramento, espera de uma oportunidade. Aconteceu que, logo no segundo ano da minha estadia docente em Lisboa, em Outubro, o Doutor Ferreira de Almeida, que tinha vindo para o Porto nesse ano, apareceu na sala dos professores e disse-me: Voc do Norte, no quer vir para o Porto? Eu meto-o l. Eu disse: 0 Doutor, no. Estou a preparar o doutoramento, j escolhi o tema...

    Peo desculpa. Estava a preparar o doutoramento em que rea? (Portugal e a Revoluo Francesa).... J tenho programa, Ah, mas pense nisso.... Fui para

    casa, pensei... No sei se foi naquele dia se no dia seguinte, houve na Faculdade mais uma histria que me fez lembrar o que aprendera no ano da crise.

    Esse acontecimento foi significativo? No. Era um episdio normal, dentro da casa, de concorrncia entre dois colegas mais velhos;

    no tinha a ver comigo. Mas tambm havia candidato ao meu posto, de que, na altura, no me tinha apercebido porque a pessoa nem sequer estava formada, formou-se dali a uns meses...

    Pensei maduramente no assunto da transferncia, fui ao cinema e depois, do prprio Cinema Tivoli... telefonei para o Professor Ferreira de Almeida e disse-lhe: Senhor Doutor, estou interes-sado, Bem, ento vamos l tratar disso, concluiu.

    O Senhor Professor vivia sozinho? No, vivia em casa dos meus avs. Mas j tinha compromisso com alguma rapariga? J tinha namoro com a minha mulher, desde o 3 ano. A Maria Angelina frequentava Direito em

    Coimbra. Era do Norte e tambm lhe interessava residir no Porto. No se importava de ir para Lisboa, mas, a possibilidade do Porto, era uma algo falado h muito tempo, e que devia ocorrer mais tarde.

    Entretanto em Lisboa diziam-me: Se voc se for embora ningum lhe dirige a tese. Bem, urgia ter cuidado, parecia uma aposta no escuro, mas, no Porto, ensinava o Doutor Ferreira de Almeida... A mudana demorou tempo. Ferreira de Almeida fez a proposta na nova Faculdade. Aqui havia pessoas que me conheciam ou que conheciam o meu pai, como o Dr. Srgio Pinto... o Doutor Antnio Cruz, director do Dirio do Norte e da Biblioteca Pblica, o Professor Lus de Pina ou o Dr. Ribeiro Soares, meu antigo professor de Filosofia Antiga em Lisboa..

    Mas eram da gerao do seu pai? Mais novos um pedao, salvo o Doutor Pina, responsvel pela direco da Faculdade. Resolve-

    ram informar-se... Por exemplo, houve quem interrogasse o Padre Avelino Jesus da Costa, de Coimbra, ou o director da Faculdade de Letras de Lisboa, o Professor Manuel Heleno. Uma vez este disse-me na Baixa: Perguntaram-me o que pensava a seu respeito. Disse-lhes que se no me reformasse dentro de dois anos, no o deixava ir, de maneira nenhuma. Agora, enfim, vou-me reformar e depois de reformado no sei o que se vai passar c. E as pessoas compreenderam... Em Lisboa usei um argumento verdico: a minha mulher, que se formaria em Direito no final desse ano, ia fazer os estgios no Porto para trabalhar com o pai em Barcelos. Mas, nunca chegou a fazer trabalho de barra. Aos tribunais preferiu a elaborao de pareceres como jurista da Comisso de Planeamento na rea do Direito do Urbanismo e do Ambiente. Depois do casamento, concluiu os estgios com algum sacrifcio, sobretudo, a partir do momento em que nasceram as minhas filhas. Temos quatro filhas... Quer dizer, em Lisboa, usei o argumento familiar, que apesar de tudo tinha peso e era verdadeiro. A minha mulher no tencionava propriamente trabalhar com o pai, mas

  • Lus Grosso Correia 44

    tencionava exercer a profisso, como notria ou jurista. Mas havia algum aliciante do ponto de vista de carreira em relao Faculdade de

    Letras do Porto? Havia dois aliciantes. Um, era a restaurao da antiga Faculdade, a refazer... Retomando a representao que o seu pai tinha... Por meu pai um forte elo prende-me antiga Faculdade. De maneira que uma das primeiras

    pessoas que visitei antes de vir para o Porto foi o Dr. Hernni Cidade, em Lisboa. Antigo Professor no Porto passara para Lisboa e, na altura, j estava reformado. Convidou-me para o visitar na sua casa de Azeito, onde estava a passar frias, e contou-me como se tinha passado a instalao da Faculdade de Letras... Nos primeiros anos de vida a Faculdade foi muito criticada na cidade. De-pois os nimos acalmaram quando comearam a sair os primeiros alunos e a ficarem bem coloca-dos nos concursos dos liceus, para dar aulas... Mas, uma das coisas que o Doutor Hernni Cidade me disse foi esta: O tempo se encarregar de escolher aqueles que so capazes de fazer carreira e os que no so. E assim foi. Por outro lado notou: S h uma maneira de o indivduo se afirmar, trabalhar bem, trabalhar exaustivamente e com qualidade. De maneira que isso que lhe aconse-lho. Andmos uma tarde inteira a passear. Com setenta e sete anos, muito experiente, deu-me esse conselho, um conselho magnfico.

    No Porto, tiradas as informaes que entenderam, a proposta do Doutor Ferreira de Almeida foi por diante.

    No foram pedir informaes Polcia Internacional de Defesa do Estado? No, isso veio a saber-se depois. Tive dificuldades em Lisboa... pois sob a capa de catlico era

    esquerdista e no podia exercer nenhuma funo pblica. O problema foi resolvido por o meu pai junto do Ministro da Educao Nacional, que me mandou prevenir pelo Doutor Justino Mendes de Almeida. O meu pai escreveu-lhe e ele resolveu o meu problema rapidamente.

    Mas esse episdio de que est a falar verificou-se enquanto aluno? No. Quando eu meti os papeis para ser Assistente. Mas a tal informao que a PIDE recolheu sobre a sua pessoa... A razo, como eu vim a saber anos mais tarde, no foi, como cheguei a pensar, a candidatura a

    presidente da Assembleia Geral de uma lista democrtica para a criao da Associao de Estudan-tes, mas a ida a casa do Professor Azevedo Gomes, ento chefe da Oposio e um dos autores do programa da reforma e democratizao da Repblica, por sugesto de um professor da Faculdade.

    Foi recomendado pelo Professor e ... Fui recomendado e fui a casa de Azevedo Gomes com o professor Oliveira Marques. Atravs de

    uma carta, de Oliveira Marques ao Doutor Azevedo Gomes, a PIDE, que lhe vigiava a correspon-dncia, tomou conhecimento desse encontro e do meu perfil. Por isso, a Polcia dizia ter dados seguros a meu respeito [Risos]. Quando eu vim para o Porto, a fim de evitar complicaes, usou-se uma cunha, do Dr. Baltasar Rebelo de Sousa, individualidade prxima do Ministro de ento, Professor Galvo Telles... Graas a Galvo Telles ou ao seu Secretrio de Estado, o meu processo foi despachado.

    Mas por aco do seu pai? Por aco do meu pai. O Dr. Baltasar era amigo do meu pai por relaes de servio. Foi o Dr.

    Baltasar que o nomeou reitor do Liceu de Braga para meter um pouco o liceu na ordem, reinava certo laxismo.

    Enfim, tomei posse na Universidade do Porto. Quando me candidatei a uma bolsa do Instituto de Alta Cultura (IAC), o Doutor Lus de Pina disse-me um dia:.. .Eu no sabia que voc... no era dos nossos, ou qualquer coisa assim... Recebi este ofcio onde se observa que no mostra prop-sitos de colaborar.

    Devo dizer que o Professor Pina, enquanto responsvel pelo Centro de Estudos Humansticos do IAC propusera mais dois colegas para bolseiro, mas no entrou ningum. No quis, obviamente, fazer excepes...

    Cortou rente? Cortou rente, pronto. No me prejudicou e quando saiu deixou um testemunho escrito nos

    papis da Faculdade sobre o meu servio. Foi absolutamente claro e sem reticncias de espcie

  • 45 Homo Academicus

    nenhuma na notao do meu servio. De resto, nunca deixou de me tratar de maneira positiva. Mas naquele momento ficou chocado? Naquele momento ficou chocado, porque era um convicto. Tem que se dizer em abono da ver-

    dade: ele acreditava na santidade do Doutor Antnio de Santa Comba... A bolsa era um instrumento importante na carreira? Era porque... eu ganhava 3.200$00,3.140$00 com descontos, mais ou menos isto. Commaisum

    conto da bolsa... ficava deveras melhor. E estava na cidade do Porto por sua conta e risco? Exactamente. No primeiro ano pagava a renda da casa e vivia com o ordenado e o montante de

    uma regncia, 1.100$00 ou coisa por a, feitos os descontos. No total, vencia 4.200$00, a que no segundo ano, a partir de Fevereiro se somou a bolsa, anulada a presso poltica, graas a um amigo da famlia da minha mulher, deputado influente... Naquela altura, os professores a par da situao ficaram todos surpresos... Algum, hoje h muitos anos afastado do corpo docente, tempos volvi-dos, produziu uma observao menos elegante. Mas, devo dizer, nunca retaliou. Nunca retaliou, nem teve razo para retaliar. Eu dava o que ele mandava nas aulas e, pela minha parte, comentava como queria. Nunca ningum me foi dizer: O Senhor deve explicar o tema desta e daquela manei-ra. Por exemplo, em Histria da Expanso utilizei amide os novos livros e artigos do Doutor Magalhes Godinho, que na altura fora demitido. Usei as obras do Doutor Antnio Jos Saraiva, quando entendi. Nunca ningum me ps restries.

    A sua situao na Faculdade de Letras da Universidade do Porto seria esta? - Tinha um quadro de carreira muito aberto, mas por outro lado sentia o nus, nos seus ombros, de que tinha de fazer um trabalho, se calhar, mais seguro, mais certo ainda, porque tinha defraudado as expectativas do Professor Lus de Pina e de outros?...

    No. A partir do momento em que optei pelo Cardeal Saraiva, nunca mais houve problemas. Tambm teve de fazer marcha-atrs em relao ao tema que tinha definido para a sua

    investigao. O tema mantm-se... 0 tema mantm-se. Claro, tive de estudar o Cardeal Saraiva. Curiosamente, o tema trouxe-me

    obrigaes para as quais no estava preparado. De facto, sabe-se, em pormenor, a sua vida mons-tica, mas torna-se dificlimo estudar o teor da maior parte das facetas da carreira poltica... Desapa-receram documentos governamentais. Existem, certo, as cartas, mas as pessoas no gostam de mostrar o que foi escrito a parentes seus. Ao contrrio da famlia do Saraiva, que me abriu o arquivo privado. O mesmo sucedeu com os monges de Singeverga, completamente abertos em relao aos documentos adquiridos indirectamente famlia, em tempos de dificuldades, no sculo XIX.

    Mas quando que amadurece essa linha de pesquisa? A partir de que ano mais ou menos?

    Logo, comecei logo. Logo que morreu transitoriamente a hiptese da Revoluo Francesa, optei pelo Cardeal Saraiva. Fui a Coimbra... o Doutor Lopes de Almeida, o catedrtico da rea, nessa altura, gostou do tema. Ele, que trata muito mal o reitorado do Cardeal Saraiva, na Histria da Universidade, disse-me: Gostava de rasgar pginas que escrevi. Era um homem srio, possua uma vasta leitura do sculo XIX, pesquisava nos arquivos... Era realmente um professor preparado.

    Foi ele o seu orientador? Foi o meu orientador at o Doutor Cruz se tornar catedrtico. Nessa altura, o Doutor Cruz

    proibiu-me os contactos com Coimbra... Os outros tambm entendiam a situao... O Porto * dispunha de um catedrtico de Histria e os assistentes da casa ficavam debaixo da tutela daquele que mandava.

    Mas isso no se quadrava muito com a sua personalidade? Eram as regras do jogo. A vantagem era esta: o Doutor Cruz no me dava instrues. Eu e o

    Doutor Cruz, mantinhamos excelentes relaes. Porqu? Isto tambm curioso. Quando ele fez o doutoramento (no gostando ele do Doutor Ferreira de Almeida, nem o Doutor Ferreira de Almeida do Doutor Cruz, eram como o gato e o rato) saram-lhe vrios temas dados pela Doutora Virgnia Rau. Um deles era este: Revoluo Francesa ou Revoluo Atlntica? Era o nome de uma comunica-o ao Congresso de Histria de Roma que a Virgnia Rau colocava como tema nas provas de licenciatura. Outro era O fim da Idade Mdia. Ora bem, eu conheci a matria porque a aprendi nas

  • Lus Grosso Correia 46

    aulas, porque tive de a estudar para as provas de licenciatura. O Doutor Cruz, srio na sua prepara-o.. . apareceu-me na praia, em Agosto, e disse-me: Olhe, eu tenho aqui dois ou trs pontos que foram dados pela Virgnia Rau.

    Os temas eram sorteados? Os temas eram afixados durante um certo prazo e sorteados quarenta e oito horas antes da

    prova, dispondo o candidato desse tempo para preparar o interrogatrio de uma hora. O Doutor Cruz quando me procurou, disse-me o que entendia sobre tais temas. Pela minha parte, notei que para Virgnia Rau nada disso servia ou correspondia ao que ela pensava e exprimia nas aulas. Sobre o assunto, disse, tenho os apontamentos e os livros, tenha as duas coisas. Para entender o tema Revoluo Francesa ou revoluo atlntica? importava ler Jacques Godechot, que eu conheci pes-soalmente, quando esteve na Universidade de Lisboa a convite da Professora Rau. Quanto ao fim da Idade Mdia disse-lhe que ela dava o assunto num dos seus cursos, cujo teor sabia. A partir da, como natural, ganhei um amigo para sempre.

    Apesar de ser assistente do Doutor Ferreira de Almeida. Sim. Depois, quando o Doutor Cruz passou a deputado, eu substitui-o em Histria de Portugal.

    Escolheu-me para o substituir em Histria de Portugal. Eu dei o que ele decidiu, a saber: a socieda-de portuguesa no sculo XVI. A matria no andava, como hoje anda, bem tratada nos grandes manuais. Fui obrigado a estudar muitssimo. Publiquei num manual alemo a smula das minhas observaes, bem mais tarde.

    Era uma personagem nica dentro da Faculdade de Letras, o Professor Antnio Cruz? Assim como o Professor Ferreira de Almeida?

    Completavam-se. No em termos de feitios, nem em termos polticos, eram homens completa-mente diferentes. O Ferreira de Almeida no era poltico e muito menos era fascista. O Doutor Antnio Cruz era um homem que tinha comeado por ser da esquerda, apoiado e metido na im-prensa da Universidade de Coimbra, porque tinha dificuldades econmicas, pelo Doutor Joaquim de Carvalho, mas depois tinha evoludo, como muita gente, para o salazarismo. Dirigiu, durante anos, o jornal da Unio Nacional no Porto, o Dirio do Norte. Mas, a verdade esta: na Faculdade entrou toda a gente que a est desse tempo, independentemente do que pensavam ou vieram a pensar, uns sem ele saber, outros sabendo... Neste aspecto fulcral, foi muito mais aberto do que algumas pessoas que tm fama de o ser...

    Mas completavam-se... Completavam-se. Um conhecia muito bem os arquivos do Norte, sobretudo, e o outro era um

    homem que sabia Histria Geral como ningum, integrando no seu processo a histria portuguesa. O primeiro era o Antnio Cruz e ... O segundo o Ferreira de Almeida. Como ningum conhecia a melhor bibliografia sobre os

    temas mais complexos Tambm ajudei o Doutor Cruz quando ele fez as provas do concurso, pois urgia, em quarenta e

    oito horas, produzir uma lio completa. Ajudei-o eu e outras pessoas. Por acaso saiu um tema que tinha sido preparado pelo Doutor Cruz. Nunca mais o esqueceu e nunca mais falmos do assunto.

    Era um dado adquirido. curioso porque mesmo depois de ele voltar Faculdade aps a Revoluo, nunca mais fal-

    mos no caso. Foi coisa que acabou. Mas teve um peso decisivo, no tenho dvida nenhuma, no estabelecimento de relaes que me beneficiaram e beneficiaram o clima entre os docentes da Faculdade.

    Na primeira parte desta entrevista falou, um pouco, do que tinha sido o seu percurso dentro da Faculdade de Letras. Foi professor de mltiplas disciplinas que recobrem diferentes perodos histricos da Humanidade. No vou estar aqui a apresent-las todas, mas h alguma destas reas do conhecimento histrico que o tenha apaixonado mais, para alm da sua rea cientfica de origem?

    Tenho de explicar um pouco o contexto em que aconteceu essa distribuio de servio. Eu no tinha nem em Lisboa nem aqui qualquer possibilidade prtica de vir a dar o assunto que tratei na minha dissertao de licenciatura, visto que havia professores catedrticos de Histria de Portugal e havia uma nica cadeira de Histria de Portugal, onde tambm no havia qualquer hiptese de

  • 47 Homo Academicus

    chegar ao sculo XIX. Lembro-me, por exemplo, que a professora Virgnia Rau chegou ao sculo XVII no meu ano, o que foi considerado espantoso. Noutras universidades ficava-se, muitas vezes, pela Idade Mdia. S existia uma cadeira de Histria de Portugal. O aluno aprendia, enfim, mto-dos, quando o professor era bom. De maneira que aconteceu-me aquilo que acontecia aos assisten-tes mais jovens: competia-lhes reger as cadeiras que os outros no queriam dar e conforme ia entrando mais gente a pessoa ia-se encaixando at atingir, eventualmente, o lugar para que estava preparado. Aqui no Porto quando cheguei as cadeiras que havia eram as Antiguidades. Eu no me interessava particularmente pela Civilizao Grega, por falta de meios, muito menos me interessa-va, como em Lisboa, dar Numismtica para a qual no tinha vocao e preparao. Concluso: fiquei com Histria da Antiguidade Oriental, e continuei um ano mais com a Civilizao Grega, uma cadeira difcil de dar, pois no faltam nem bibliografia, nem temas apaixonantes. Nessas cadei-ras, as mais distantes dos meus plos de saber, eu tive muito gosto no estudo e desenvolvi uma investigao mais aprofundada em Histria da Antiguidade Oriental, porque h o problema do mito, que um problema eterno e uma chave para se compreender as civilizaes orientais. A partir da procurei explorar o assunto, caminho para a Filosofia, caminho para compreendermos fenmenos contemporneos vrios. Regi outras cadeiras por razes de servio... Por exemplo, cheguei a dar aulas prticas de Arqueologia e a, enfim, decidi estudar a civilizao castreja, da qual eu no sabia nada. Foi uma boa ocasio entender o que se passava volta da minha terra natal, desta cidade e em todo o nordeste peninsular. O facto de, s vezes, se dar cadeiras que no esto ligadas directamente ao nosso objectivo principal, leva-nos a responder a algumas das nossas curi-osidades. Enfim, levei os alunos ao Museu de Guimares, levei-os Citnia de Briteiros. No dispu-nha de projeces, seno atravs de livros e acontecia que, no meio dos alunos, estava algum que sabia particularmente dessa matria. Refiro-me ao depois Professor Carlos Alberto Ferreira de Almeida, nessa altura estudante, que tinha uma biblioteca esplndida. Emprestou-me livros e, en-fim, trabalhmos em conjunto a partir de uma determinada altura. Na passagem por muitas cadei-ras nem tudo negativo. Esse tipo de servio, usava-se tambm para ver, por um lado, as capacida-des das pessoas. Era o principio do roulement, julgado positivo... o indivduo tinha que estar apto para dar uma cadeira qualquer numa emergncia... ou ento criticava-se o roulement dizendo que quem ensinava muitas cadeiras depois no tinha tempo, o que era verdade, para se especializar em determinada rea. Isto era a parte negativa, aquela que mais tarde se acentuava, esquecendo-se as pessoas responsveis, os mais graduados, pela disperso a que o indivduo era obrigado. Em regra, este fenmeno aconteceu com quase toda a gente, mas no aconteceu com todos. Houve gente que conseguiu ficar s na rea da sua especialidade. Eu guardo o exemplo de uma colega de Faculdade que deu sempre e s, com alguma rarssima excepo... a cadeira de que gostava. Teve sorte. Quando veio o tempo de ensinar, na Faculdade, a cadeira de Histria dos Descobrimentos, afinal uma cadeira de Histria de Portugal, procurei que me nomeassem para a reger. A seguir surgiu a oportunidade de tomar a prpria regncia de Histria do Portugal Moderno e Contemporneo. Por outro lado, tambm dentro das cadeiras gerais tentei e consegui saltar para a Histria Moderna e, depois do 25 de Abril, para a cadeira de Histria Contempornea. Fui avanando ao longo dos anos no sentido das cadeiras que me interessavam. No entanto, pelo caminho dei aulas prticas de vrias disciplinas e regi vrias cadeiras, enfim, com todas as dificuldades que derivam de um primeiro estudo como professor, porque uma coisa o que se aprendeu como aluno, outra, bem diferente, ter responsabilidades docentes. Dei muitas cadeiras que nunca tive, no existiam sequer no antigo curso de Histrico-Filosficas e fui, inclusive, professor de Histria da Educao (aulas prticas). Tambm tive, com essa passagem, a vantagem de ler autores que de outra maneira no teria conhe-cido. No dei por mal perdido o tempo em que exerci nesse domnio, mas, enfim, estou consciente da limitao dos meus conhecimentos. O enquadramento em Histria da Educao pertencia ao professor das aulas tericas, Doutor Ferreira de Almeida, que tambm estava numa rea distante das suas preocupaes. Digo-o para se ter ideia da situao patente no Porto, mas tambm em Lisboa e em Coimbra. Ainda h dias falava com um colega modernista de Coimbra que deu Hist-ria Romana, e foi assistente de Arqueologia uma data de anos... [Risos]

    Dessas cadeiras todas, gostei muito de dar Histria Oriental e, depois, empenhei-me na Histria dos Descobrimentos. Na altura estavam a sair livros novos, como os do Professor Magalhes

  • Lus Grosso Correia 48

    Godinho... eu fui o primeiro a us-los em Portugal, enquanto que noutras faculdades estudavam ainda pelo manual do Professor Damio Peres ou por estudos eruditos, que so evidentemente necessrios. Nalguns anos havia matrias novas, assuntos desconhecidos que passavam a esclare-cidos e era necessrio fazer conhecer aos alunos. Em Histria de Portugal sucedeu o mesmo... Se se comparar a Histria de Portugal do primeiro ano em que ministrei a cadeira e o programa do ltimo ano em que a regi... V-se que houve mudanas radicais graas investigao e teoria e mtodos da histria. Os estudos histricos desenvolveram-se muito.

    Essas disciplinas, um pouco arredias das suas reas de interesse, nunca foram distratoras em relao ao seu firme propsito de se doutorar?

    No. Existia uma obrigao lectiva, mas tambm o dever de chegar meta to cedo quanto possvel, at porque havia um prazo muito limitado. Eram seis anos e no havia tempo para grandes meditaes. Por outro lado, se no nera apetecvel o vencimento de um professor assistente pior era o de um professor do liceu.

    A carreira no era nada atractiva, ento? O incio de carreira no era atractivo, o indivduo estava na dependncia dos professores mais

    velhos, tinha de fazer o servio que lhe indicavam. Aqui no Porto ainda havia uma certa possibilida-de de dilogo, de se dizer que no se podiam dar mais cadeiras. Eram mais compreensivos. Trata-va-se de uma casa nova que funcionava com bastante abertura nesse aspecto. Afinal, as cadeiras tinham de ser dadas com as pessoas que havia.

    E depois do doutoramento? Eu lembro-me que depois do doutoramento tive uma conversa, talvez oito dias depois, com um

    professor de Filosofia, catedrtico contratado, da casa, que me perguntou: Ento o que tenciona fazer?. E eu disse-lhe que tinha vrios projectos em mos e passei sua explicao. A finalizar disse-me: J estou a ver que vai fazer carreira porque tem projectos. Comecei a preparar-me para produzir, no sentido de fazer currculo. Logo a seguir veio a Revoluo. Doutorei-me em 1972 e a Revoluo ocorreu em 1974, dois anos depois. Na altura, o grande problema era encontrar quem publicasse ou lugar onde publicar algumas das coisas que eu tinha escrito. Aqui na Faculdade estava tudo em ponto interrogao. Usei a revista Bracara Augusta, da Cmara de Braga, usei os Anais do Alto Minho, a Cmara Municipal do Porto... fui fazendo umas conferncias. Tambm publiquei em Paris, nos Arquivos do Centro Cultural da Gulbenkian. Tentei... Quando depois fiz concurso, imprimi a lio a custas minhas.

    Os canais de difuso da produo historiogrfica... Houve uma paragem, estava tudo em reforma, procuravam-se caminhos novos, viveis. Ns

    crimos o Centro de Histria, crimos uma revista e as coisas melhoraram sensivelmente. A Facul-dade comeou a publicar as suas revistas e a partir da nunca mais houve problema nenhum. Mas naquela altura, no espao que mediou entre a concluso de alguns trabalhos, que eu iniciara depois do doutoramento, e a ocorrncia... houve um perodo em que era difcil colocar textos, descobrir editor e revistas da especialidade com sada prevsivel.

    As outras Faculdades de Letras estariam melhor preparadas a esse nvel? No sei o que se passava nas outras Faculdades de Letras. O que eu sei que ningum chegou

    primeiro do que eu a catedrtico, em stio nenhum. Isso um facto. Talvez em Filosofia haja um caso de um colega de Lisboa que chegou primeiro a catedrtico. Agora, ns aqui no Porto e os de Coimbra fizemos o doutoramento mais ou menos nas mesmas pocas, antes ou depois da Revolu-o, e chegmos todos a catedrticos no mesmo ano.

    No houve nenhuma combinao entre vs? No, at nos conhecamos mal - curioso mas foi mesmo assim. Isto prova (porque h pessoas

    das mais diversas formaes e porque houve um perodo agitado) uma procura de caminhos, e um certo idealismo que ora se perdeu, ora se reforou. Depende do que cada um fez e pensou. Sabe que, na vida universitria, h ondas, h fluxos e refluxos como nas mars.

    Como que viveu o 25 de Abril na qualidade de Professor Auxiliar da Faculdade de Letras? Que transformaes que se verificaram?

    Houve mudanas radicais, algumas das quais j se perderam. Eu no estava em Portugal. Tinha sido convidado pelo governo do chanceler Willy Brandt, da Alemanha Ocidental, a fazer uma visita

  • 49 Homo Academicus

    de estudo a esse pas, para conhecer as universidades alems. Portanto, fui a Munique, a Bona e a Berlim. A viagem acabava em Bona. Quando estava em Bona, discuti em casa do Embaixador muito do que se passava em Portugal, porque ele no sabia quase nada pelo Ministrio dos Neg-cios Estrangeiros. Eu sabia o que constava: estava iminente uma revoluo, porque tratava-se da questo h umas semanas, desde a Revolta das Caldas; mas j antes disso falava-se disso boca cheia, nos cafs de Lisboa e daqui. Em Lisboa era mais fcil o acesso aos jornais estrangeiros. O que eu sabia de exacto era o mesmo que o embaixador conhecia atravs dos jornais franceses, que tinham em Portugal bons correspondentes, ou atravs de alguns jornais ingleses.

    O embaixador portugus em Bona vive numa casa esplndida, que, salvo erro, pertenceu ao fundador da Siemens. Convidou-me para jantar - como era costume quando ia algum ao estran-geiro, agora vai muita gente e j no h o mesmo cuidado ... Convidou tambm uma srie de portugueses e estivemos a falar francamente, porque todos os presentes estavam convencidos de que ia haver uma revoluo - era o que diziam em Lisboa. Conversmos at s duas da manh, o que contra todas as normas diplomticas, visto que um indivduo deve sair cerca da meia-noite da casa dos embaixadores. Fui s duas horas para o Hotel e logo s sete da manh estava o embaixa-dor a chamar-me ao telefone. Disse-me: Senhor Doutor, j foi. Aderiram no sei quantos regimen-tos. Depois, segui na chancelaria da embaixada a evoluo dos acontecimentos, conforme iam chegando por faxes de Lisboa (faxes que eles recebiam, curioso sublinh-lo, atravs de uma agn-cia, de que a embaixada se servia para mandar notcias para Lisboa e no do Ministrio dos Estran-geiros, que estava abandonado). De maneira que o embaixador no tinha instrues nenhumas e, logo nesse dia, decidiu que ia pedir o reconhecimento do novo regime. Logo depois da Junta de Salvao Nacional aparecer nos ecrs da televiso ele fui o primeiro embaixador a pedir o reconhe-cimento do novo regime. Na manh desse dia 25 de Abril eu ia visitar uma fbrica txtil e encontrar-me com um indivduo qualquer dos sindicatos alemes. O meu guia, um portugus residente na Alemanha, veio ter comigo e disse-me: As autoridades alems do-lhe a escolher: ou fica na Ale-manha, pede asilo poltico (se quiser ficar c fica mais uns dias e resolvemos qualquer desses assuntos); ou ento regressa a Portugal. Respondi: No tenho razo nenhuma para no regres-sar a Portugal - entretanto fecharam os aeroportos -, Quando houver avio regresso a Portugal, dado que a minha visita j est concluda. Sigo para Lisboa. E assim aconteceu.

    Quando c cheguei, no tinha acontecido nada de especial na Faculdade, mas nas vsperas do l de Maio (eu cheguei aqui para a no dia 28 ou 29 de Abril), iniciaram-se as reunies de professores, comeou-se a falar em saneamento, comeou-se a falar em novas contrataes, em nova direco para a Faculdade. Um grupo de professores foi a Lisboa pedir a nomeao do Doutor Oscar Lopes para director da Faculdade e a seguir ao 1Q de Maio comeou o processo revolucionrio, que corria todos os dias na Faculdade.

    O que que a Faculdade ganhou? Ganhou alguns professores que, apesar de tudo, foram escolhi-dos com critrio. Havia muitas propostas, inclusive de indivduos que estavam fora do pas, indivduos que nem eram portugueses mas que queriam vir para c. Das mais diversas nacionalidades... sul-americanos que estavam exilados na Europa ou no. Mas houve critrios, quer dizer, renovou-se o corpo docente, no veio para c quem quis. Alis, o prprio Doutor Oscar Lopes, s vezes, sobre pessoas das relaes dele opinava com muita pertinncia dizendo: Mais vale este do que aquele.

    Mas o que que representou o facto de o Doutor Oscar Lopes ter sido nomeado director da Faculdade de Letras e de ter transitado directamente de um liceu de cidade para a Faculdade?

    Como ele dizia na altura: Atiraram-me a um tanque sem eu saber nadar. Ele no estava prepa-rado. Era um homem que tinha vivido de lado e sem vocao para tarefas, j no digo de direco acadmica, porque ele ia desempenhando as suas tarefas, mas para um lugar iminentemente pol-tico. Era a ponta de lana de um partido poltico a que ele pertencia. Coisa que toda a gente sabia e que ele no negava - pelo contrrio, assumia. Como as seces passaram a ter grande independn-cia, alguns professores foram afastados, outros entraram atravs das assembleias. O facto abriu perspectivas. Havia um grupo de alunos bons, nos primeiros anos e at nos anos mais adiantados, que desempenharam uma funo de balano. Alguns, homens ou senhoras politizados, sabiam muito bem quem eram os bons e os maus, na perspectiva epocal.

  • Lus Grosso Correia 50

    Houve evidentemente um ou outro descarrlamento grande... Houve pessoas que foram natu-ralmente saneadas porque tinham funes que as identificavam com o Antigo Regime e nele acre-ditavam. Numa altura em que no se admitia que pudesse haver pluralismo, s havia revolucionri-os ou no revolucionrios, embora a liberdade estivesse sempre em primeiro lugar. Mas, evidente, nos movimentos revolucionrios h os nossos e os outros. Em princpio s h duas faces possveis.

    Mas esses saneamentos foram efectivos ou acabavam em reintegraes? No, aqui toda a gente foi reintegrada. Houve depois uma pessoa que acabou por nunca mais

    dar aulas: o Dr. Vieira de Carvalho, mas, numa primeira fase, no estava muito empenhado em voltar. Lembro-me que o convenci a no perder os vencimentos.

    Ento o Senhor Professor passou inclume a essa... Eu no passei inclume. Fui julgado numa Aula Magna ululante e levei a Declarao Universal

    dos Direitos do Homem, sobre a qual tinha pronunciado um discurso na Assembleia Nacional. Estava l tudo, s no estava o direito greve. De resto, todas as liberdades esto l. Alm disso, perguntei se havia algum c na Faculdade, que a no ser ao ouvido da esposa, ou nos cafs em segredo, tivesse defendido a democracia por escrito, como eu a havia defendido. Tambm utilizava nas aulas autores que quase ningum citava: Jaime Corteso, Antnio Jos Saraiva, Antnio Srgio e Vitorino Magalhes Godinho, por exemplo.

    Quem me estava a inquirir era um aluno de Economia, pois pedi para usar o direito de defesa, quando me atacaram por ter sido deputado. Eis a razo da discrdia.

    Isto numa aula sua? No, numa Aula Magna, com alunos de todas as Faculdades. Havia os de Letras e os de fora...

    Bem, os meus alunos davam ovaes. Depois apareceu esse indivduo de Economia... cujo nome ignoro...

    Era o arguente, vamos dizer. Era o arguente. Ele no sabia quem era o Antnio Srgio, nem o Jaime Corteso nem outros

    intelectuais. Perguntou ao Professor Oscar Lopes se eles eram progressistas e o Dr. Oscar Lopes disse-lhe que sim [Risos]. Oscar que presidia. Foi um dia mau.

    Simplesmente os alunos, e os colegas primeiro, aconselharam-me a ir l. E eu fui devidamente vestido de camisola... Quando pedi a palavra os alunos disseram: Est aqui um colega que quer falar, porque eu era novito... E eu l expliquei mais ou menos isto: Quem defendeu publicamente a democracia vai para a rua, quem nunca disse nada fica porque entrou agora em jogo. E acabou, a partir da nunca mais ningum me tocou. Este acontecimento deu-se depois das frias grandes, em 1974.

    Isso aconteceu no edifcio da Faculdade? Sim, no Salo Nobre da antiga Faculdade de Medicina. Uma sala que levava muita gente e

    estava cheia. A ento Faculdade de Medicina... a actual Biomdicas, edifcio onde as Letras comearam a funcionar. No me arrependi nada de ter comparecido. Quem no deve no teme. E a tive uma demonstra-

    o de solidariedade dos alunos. Sei quem foram e sei como que as coisas se passaram - porque depois me contaram... Numa reunio qualquer tambm me tentaram sanear, mas algum mostrou a Lei dos Saneamentos e a minha situao no estava contemplado. Com a argumentao que foi produzida tambm no conseguiram. No sei se antes, se depois houve uma manobra poltica, alis estimulada por um senhor, sucessivamente presente em partidos defensores da liberdade... En-fim, na altura queria mostrar servio.

    Seu colega na Faculdade? No. Era um aluno, um dos alunos mais velhos. De colegas no tenho nada a dizer, embora

    alguns que se davam muito bem comigo me tenham dito: O Senhor Doutor vai ser saneado. o que consta. V-se preparando.... Agora, nunca ningum props, nunca ningum votou, nunca ningum me atacou. Pelo contrrio, houve pessoas que me defenderam frontalmente. Essas coisas vinham a lume.

    Mas nessa Aula Magna chegou a ser votado o seu caso ou a sua resposta foi suficiente?

  • 51 Homo Academicus

    No, acho que votaram, j depois de eu ter sado, que me iam manter sobre observao, mais ou menos o que tinha feito a PIDE uns tempos antes. Mas enfim, o facto era assumido com o maior idealismo. Estava l um futuro colega de Histria, que eu vi, na altura, entre os alunos do exterior. Aps o seu doutoramento disse-lhe: Sabe desde quando eu o conheo? Conheo-o desde o dia daquela famosa Assembleia Magna. J no se lembrava. Tinha estado l, no meio da barafunda, como esteve muita gente...

    E eu apanhei uma data de ovaes. Eles a partir da desistiram porque eu tinha os alunos do meu lado, tinha o apoio implcito da esmagadora maioria dos colegas.

    Saiu reforado desse processo em termos de prestgio pessoal e em termos de afirmao...

    Acho que sim. Houve muita gente que nos crculos universitrios dizia que era indigno de um professor ir a uma Aula Magna. Acho o facto de ir a uma Aula Magna, onde estavam professores e alunos, normal naqueles tempos. Com os meus alunos falo em qualquer altura, tanto faz estarem a dizer bem como a dizer mal. Agora posso dizer isso vontade porque o fiz!

    E o seu passado de Deputado da Nao a partir de 1969? Como que o Senhor Professor chega Assembleia Nacional? Atravs de sufrgio...

    Naquelas eleies, com o parco caderno eleitoral que existia, elaborado pelas autoridades, os que l estavam inscritos e no eram muitos, vim a constatar, puderam votar como quiseram.

    Nunca pertenci a nenhum partido, nem antes nem depois, era independente. Sabia claramente o que ia defender: ia defender a democratizao do regime. Assumi o compromisso e tratei de ser coerente. Nesse aspecto, posso dizer, que o Doutor Marcello Caetano