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III Simpósio Nacional de História Cultural Florianópolis, 18 a 22 de setembro de 2006 4480 O TEATRO “BRASILEIRO” DE JOSÉ DE ALENCAR E SUA RECEPÇÃO CRÍTICA POR MACHADO DE ASSIS Valdeci Rezende Borges(UFG/CAC/NIESC) José de Alencar, de 1857 a 1865, dedicou-se ao projeto de criar um teatro nacional escrevendo as peças O Rio de Janeiro, Verso e Reverso, O Demônio Familiar, O Crédito, As Asas de Um Anjo, Mãe, A Noite de São João, O Jesuíta, O Que é o Casamento? e A Expiação. A maioria delas é de cunho realista, repudiando a tragédia e a farsa. Como introdutor do realismo no teatro nacional, seu objetivo era educar o povo. 1) Como e Por que Alencar tornou-se Dramaturgo O escritor, após a encenação de suas duas primeiras comédias, que escreveu na intenção de “fazer rir, sem fazer corar”, redigiu o texto A Comédia Brasileira, conhecido por Como e Por que Sou Dramaturgo, refletindo sobre seu percurso inicial de dramaturgo e expondo as preocupações em introduzir, na Corte, a escola moderna nos palcos e criar um teatro nacional. 1 Teve a idéia de escrever para esse campo vendo “uma pequena farsa, que não primava pela moralidade e pela decência da linguagem”, mas, ainda sim, sendo aplaudida, “porque o riso é contagioso” mesmo que “o espírito e o pudor se revoltem contra a causa que o provoca.” A cena causou-lhe “um desgosto, [...] vendo uma senhora enrubescer”, ao ouvir uma graça livre, um dito grosseiro, levando-o a questionar se não era “possível fazer rir, sem fazer corar”. Daí, criou O Rio de Janeiro, espécie de revista ligeira. 2 Os teatros da Corte “desprezavam as produções nacionais, e preferiam traduções insulsas, inçadas de erros e galicismos”, mas Alencar insistiu em produzir peças conforme a escola moderna e edificar o teatro nacional, obra considerada “monumental”, que necessitava do esforço de muitos. No sentido de criar o teatro nacional _ “o teatro brasileiro, que ainda não existe”_ , escreveu, a seguir, O Demônio Familiar. Objetivava fazer “alta comédia” e, como na literatura dramática do país, não existia um modelo, “a verdadeira comédia, a reprodução exata e natural dos costumes de uma época, a vida em ação não existe no teatro brasileiro”, buscou-o na escola dramática “mais perfeita”, de Molière, aperfeiçoada por Alexandre Dumas Filho. Se “Molière tinha feito a comédia quanto à pintura dos costumes e à moralidade da crítica”, com “quadros históricos nos quais se viam perfeitamente desenhados 1 ALENCAR, Jose de. Como e Porque sou Dramaturgo. In: ___. Ficção Completa e outros escritos. Rio de Janeiro: Companhia Aguilar, 1965. p. 128. 2 Ibid., p. 123-4.

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Valdeci Borges. Teatro brasileiro de José de Alencar

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O TEATRO “BRASILEIRO” DE JOSÉ DE ALENCAR E SUA RECEPÇÃO CRÍTICA POR MACHADO DE ASSIS

Valdeci Rezende Borges(UFG/CAC/NIESC)

José de Alencar, de 1857 a 1865, dedicou-se ao projeto de criar um teatro nacional

escrevendo as peças O Rio de Janeiro, Verso e Reverso, O Demônio Familiar, O Crédito, As

Asas de Um Anjo, Mãe, A Noite de São João, O Jesuíta, O Que é o Casamento? e A

Expiação. A maioria delas é de cunho realista, repudiando a tragédia e a farsa. Como

introdutor do realismo no teatro nacional, seu objetivo era educar o povo.

1) Como e Por que Alencar tornou-se Dramaturgo

O escritor, após a encenação de suas duas primeiras comédias, que escreveu na intenção

de “fazer rir, sem fazer corar”, redigiu o texto A Comédia Brasileira, conhecido por Como e

Por que Sou Dramaturgo, refletindo sobre seu percurso inicial de dramaturgo e expondo as

preocupações em introduzir, na Corte, a escola moderna nos palcos e criar um teatro

nacional.1 Teve a idéia de escrever para esse campo vendo “uma pequena farsa, que não

primava pela moralidade e pela decência da linguagem”, mas, ainda sim, sendo aplaudida,

“porque o riso é contagioso” mesmo que “o espírito e o pudor se revoltem contra a causa que

o provoca.” A cena causou-lhe “um desgosto, [...] vendo uma senhora enrubescer”, ao ouvir

uma graça livre, um dito grosseiro, levando-o a questionar se não era “possível fazer rir, sem

fazer corar”. Daí, criou O Rio de Janeiro, espécie de revista ligeira.2

Os teatros da Corte “desprezavam as produções nacionais, e preferiam traduções

insulsas, inçadas de erros e galicismos”, mas Alencar insistiu em produzir peças conforme a

escola moderna e edificar o teatro nacional, obra considerada “monumental”, que necessitava

do esforço de muitos. No sentido de criar o teatro nacional _ “o teatro brasileiro, que ainda

não existe”_ , escreveu, a seguir, O Demônio Familiar. Objetivava fazer “alta comédia” e,

como na literatura dramática do país, não existia um modelo, “a verdadeira comédia, a

reprodução exata e natural dos costumes de uma época, a vida em ação não existe no teatro

brasileiro”, buscou-o na escola dramática “mais perfeita”, de Molière, aperfeiçoada por

Alexandre Dumas Filho. Se “Molière tinha feito a comédia quanto à pintura dos costumes e à

moralidade da crítica”, com “quadros históricos nos quais se viam perfeitamente desenhados

1 ALENCAR, Jose de. Como e Porque sou Dramaturgo. In: ___. Ficção Completa e outros escritos. Rio de

Janeiro: Companhia Aguilar, 1965. p. 128. 2 Ibid., p. 123-4.

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os caracteres de uma época”, Dumas “deu-lhe a naturalidade que faltava; fez o teatro

reproduzir a vida da família e da sociedade, como um daguerreótipo moral.”3

Alencar julgava que o público não estava “ainda muito bem disposto a favor desta

escola”; preferia encenações “fora do natural”, só aplaudia quando lhe chocavam os nervos,

não o espírito ou o coração. Mas preferia resistir, “ser natural, a ser dramático, [...] ser

apreciado por aqueles que sabem o que é uma comédia, a ser aplaudido com entusiasmo

pelas platéias”. Ficou feliz com “o público ilustrado”, que “foi mais benévolo do que

esperava e merecia” a peça, edificada “sem lances cediços, sem gritos, sem pretensão

teatral”, sem extravagância, sem suspense no fim dos atos, que a platéia via como “frieza e

talvez falta de imaginação”. Assim, “o tempo das caretas e das exagerações passou.”4

Ao intencionar produzir “uma alta comédia”, buscou afastar-se da tradição de Martins

Pena e Joaquim Manuel de Macedo. Procurou, na literatura dramática brasileira, um

modelo, não o achou; não existia “a verdadeira comédia”. Os autores acima escreveram

para o teatro, mas a época em que compuseram suas obras influiu sobre sua escola. Alencar

avaliava que:

Pena, muito conhecido pelas suas farsas graciosas, pintava até certo ponto os costumes brasileiros; mas pintava-os sem criticar, visava antes o efeito cômico do que ao efeito moral; as suas obras são antes uma sátira dialogada, do que uma comédia. [...] tinha esse talento de observação, e essa linguagem chistosa, que primam na comédia; mas o desejo dos aplausos fáceis influiu no seu espírito, e o escritor sacrificou talvez suas idéias ao gosto pouco apurado da época. [...] Se tivesse vivido mais alguns anos, [...] empreenderia uma obra mais elevada, e introduziria talvez no Brasil a escola de Molière e Beaumarchais, a mais perfeita daquele tempo.5

Já em Macedo, via “uns laivos de imitação estrangeira”, que lhe tirava “o cunho de

originalidade”:

... nunca se dedicou seriamente à comédia; escreveu em alguns momentos de folga duas ou três obras que foram representadas com muito aplauso. [...] Podemos dizer deste autor o mesmo que do primeiro: sentiu a influência do público; se continuasse, porém, o Sr. Dr. Macedo tem bastante talento e muito bom-gosto literário, para que conseguisse a pouco e pouco corrigir a tendência popular, e apresentar no nosso teatro a verdadeira comédia.6

Portanto, julgava não haver, na literatura dramática do país, um modelo e foi buscá-lo

na produção realista francesa. Escreveu, a seguir, As Asas de Um Anjo, que, encenada três

dias foi retirada de cena pela polícia sob alegação de conter aspectos “imorais”. Protestou no

Diário do Rio de Janeiro e no prólogo do texto em livro, reafirmando suas concepções

estéticas sobre a dramaturgia moderna e nacional, pautada na observação realista da natureza

3 Ibid., p. 124-6. 4 Ibid., p. 127-8. 5 Ibid., p. 125-6. 6 Ibid., p. 126.

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e da sociedade, afinada com “a tendência da literatura moderna” de tratar “A realidade, ou

melhor, a naturalidade, a reprodução da natureza e da vida social no romance e na comédia”

como “a alma” da literatura.7

Por esse vanguardismo e radicalidade realista na exposição de temas e questões do

momento, transformou seu teatro numa vitrine de tensões e no registro do cotidiano urbano,

observando a realidade ou naturalidade da vida social como matéria-prima para suas criações.

2) “O Teatro de José de Alencar”, por Machado de Assis

Em março de 1866, Machado de Assis, por meio de três ensaios críticos, expôs sua

avaliação do exercício intelectual de Alencar como autor dramático. Esses textos, reunidos

sobre o título O Teatro de José de Alencar, compõem uma parte importante da história

cultural do momento ao apresentar uma leitura interpretativa da atuação do dramaturgo,

constituindo em peça interessante da recepção crítica de sua produção. Machado, desde 1859,

como folhetinista, escrevia críticas literárias e teatrais para vários periódicos. Em 29 de março

de 1860, em suas revisões dramáticas nas páginas do Diário, refletiu sobre a peça Mãe, como

fazia com outras produções que vinham a público em forma de texto ou de encenação.8

Já o ano de 1866, iniciou com uma preocupação de pensar tais produções num âmbito

mais geral, isto é, no movimento de criação de um “teatro normal”. Em fevereiro, Machado

expressou essa visão mais alargada no texto O Teatro Nacional, fazendo um balanço da

situação dos poetas e da cena dramáticos do momento. Após refletir sobre a aceitação

triunfante da perspectiva romântica, de seus desatinos e “monstruosidades”, a qual, mesmo

sem findar, teve lugar tomado pela “reforma realista”, que também foi levada “à exageração”,

o autor defendeu que, para sanear a “doença”, para a renovação da literatura e da arte

dramática, tornava-se “indispensável a criação de um teatro normal” custeado pelo Estado.

Historicizando, expôs que a fundação de “uma academia dramática, uma cena-escola”, já era

preocupação do governo, que, em 1862, nomeou uma comissão, composta por Alencar,

Macedo e Meneses e Sousa, “para propor medidas tendentes ao melhoramento do teatro

brasileiro.” O parecer apontou a necessidade de “construção de um edifício destinado à cena

dramática e à ópera nacional”, e que esse “novo teatro” deveria chamar-se “Comédia

Brasileira”, sendo “o teatro da alta comédia”. Além disso, propôs “criar um conservatório

dramático”, presidido pelo inspetor-geral dos teatros, que tivesse “por missão julgar da

moralidade e das condições literárias das peças destinadas aos teatros subvencionados, e da

7 ALENCAR, As Asas de Um Anjo: advertência e prólogo da 1a edição. In: ___. Obra Completa. Rio de Janeiro: J. Aguilar, 1960. v. 4. p. 922-31. 8 MACHADO DE ASSIS, J. M. Crítica Teatral. In: ___. Obras Completas. Rio de Janeiro: W.M. Jackson, 1955-9. p. 144, 153, 162,179.

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moralidade, decência, religião, ordem pública, dos que pertencerem aos teatros particulares.”

Partindo do “estado precário da literatura e da arte dramática” no Brasil, a “idéia de um teatro-

modelo”, de criar o “Comédia Brasileira”, impunha-se como saída “formal e definitiva”.9

Em seguida, Machado anunciou a intenção de “fazer um estudo dos nossos principais

autores dramáticos”, realizando “uma espécie de balanço do passado”, pois, com a efetivação

do projeto “Comédia Brasileira”, iniciar-se-ia “uma nova era para a literatura”. Com tal

propósito, o folhetim de 27 de fevereiro teve como título O Teatro de Gonçalves de

Magalhães, que foi apontado como “o primeiro passo firme da arte nacional”. Já os três textos

seguintes versavam sobre O Teatro de José de Alencar e foram sucedidos, por dois outros

sobre O teatro de Joaquim Manuel de Macedo.10

Machado abriu a primeira parte de seu texto, de 6 de março de 1866, atribuindo a

Alencar lugar de destaque dentre os autores dramáticos do momento, surgidos nos últimos

dez anos. “Uma grande parte das nossas obras dramáticas apareceu neste último decênio,

devendo contar-se entre elas as estréias de autores de talento e de reputação”, tais como

Alencar, Quintino Bocaiúva, Pinheiro Guimarães e outros. Macedo veio, em seguida, como o

autor que apresentou ao público novos dramas e comédias, mas que, “desgraçadamente”, teve

cessado seu entusiasmo e a promessa que significava para a dramaturgia brasileira.11

Dos autores acima citados, Alencar foi considerado como “um dos mais fecundos e

laboriosos”, afinal entre 1857 e 1866, já havia escrito 9 peças teatrais dentre ópera, comédias

e dramas, as quais constituem a totalidade de sua produção. Se, Verso e reverso estreou sem

revelar sua autoria, estratégia que preservava o escritor diante de um fracasso possível, “os

aplausos com que foi recebida a obra animaram-lhe a vocação dramática”, e redigiu “uma

série de composições que lhe criaram uma reputação verdadeiramente sólida”. Era “o

prenúncio”, mesmo que não fosse “decerto uma composição de longo fôlego”, mas, sim,

“uma simples miniatura, fina e elegante, uma coleção de episódios copiados da vida comum,

ligados todos a uma verdadeira idéia de poeta”, qual seja “o efeito do amor no resultado das

impressões” de um homem. Na visão do protagonista, “o mesmo quadro aparece sob um

ponto de vista diverso”, pois “começa por achar no Rio de Janeiro um inferno” e “acaba por

ver nele um paraíso” devido à influência do amor. A ação, considerada “de extrema

simplicidade”, não possui enredo complicado, mas tem capacidade de manter o interesse do

público do princípio ao fim, com “alguns episódios interessantes” e “diálogo vivo e natural.”12

9 Ibid., p. 187-195. 10 Ibid., p. 196, 199, 206-7, 216, 224, 231, 247, 258. 11 Ibid., 207. 12 Ibid., p. 209.

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Para o crítico, a peça possuía valor e era recomendada não apenas por tais qualidades,

“mas também pela fiel pintura de alguns hábitos e tipos da época”, dentre eles, muitos que

tendiam a desaparecer, outros que já haviam desaparecido e que, assim, poderiam arrastar

consigo a obra, fazendo-a perder o interesse, “se ela não contivesse os elementos que guardam

a vida, mesmo através das mudanças do tempo.” Essa amostra já indicava o “talento

dramático” do autor, sua maneira, estilo, diálogo, “tudo quanto representa a sua personalidade

literária”, avaliada como “extremamente original” e “própria”, sobretudo, pelo traço vivo e

distinto proveniente da “observação das coisas, que vai até as menores minuciosidades da

vida”, com a virtude de não “cair em excesso”. Tal “qualidade preciosa” originou-se do autor

contemplar procedimentos estéticos estabelecidos na época e percebidos como indispensáveis

e necessários a uma obra dramática. Para “ser do seu tempo e do seu país”, deveria uma

composição conter e refletir “uma certa parte dos hábitos externos, e das condições e usos

peculiares da sociedade em que nasce; mas, além disso, quer a lei dramática que o poeta

aplique o valioso dom da observação a uma ordem de idéias mais elevadas e é isto justamente

que não esqueceu o autor.” Sendo o quadro da peça avaliado como “restrito demais para

empregar rigorosamente esta condição da arte”, ou seja, pôr em jogo os elementos da

sociedade, ainda assim, merecia a atenção do público graças “ao pensamento capital da peça,

ao desenho feliz de alguns caracteres, e às excelentes qualidades do diálogo.”13

Machado atribuiu o “bom acolhimento” da peça “também à novidade da forma” usada.

“Até então a comédia brasileira não procurava os modelos mais estimados; as obras do finado

Pena, cheias de talento e de boa veia cômica, prendiam-se intimamente às tradições da farsa

portuguesa...” Para o crítico, expressando uma perspectiva da historicidade da produção

cultural, essa característica não era um desmerecimento à obra de Martins Pena, mas elemento

que a definia, pois “se o autor do Noviço vivesse, o seu talento, que era dos mais auspiciosos,

teria acompanhado o tempo, e consorciaria os progressos da arte moderna às lições da arte

clássica.” Mas, se Alencar inovou na forma na peça de estréia, Machado considerou que ela

“não era ainda a alta comédia”, mas uma “comédia elegante”, na qual “a sociedade polida [...]

entrava no teatro, pela mão de um homem que reunia em si a fidalguia do talento e a fina

cortesia do salão”.14

Porém, para o crítico, “a alta comédia apareceu logo depois, com o Demônio familiar”,

vista como “uma comédia de maior alento”, em que abraçou “um quadro mais vasto” e teve

que vencer algumas dificuldades, como o assunto e o caráter do personagem principal, o

13 Ibid., p. 209-11. 14 Ibid., p. 211.

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moleque Pedro, “o demônio da comédia”. Pedro configurava como “o Fígaro brasileiro”, mas

sem “as intenções filosóficas e os vestígios políticos do outro”, sendo sua introdução em cena

marcada por “graves obstáculos”, que tiveram de ser superados “por meios hábeis e seguros”.

Era preciso tanto apresentá-lo ao espectador, com seu “caráter [de] intrigante doméstico, mola

da ação, sem fazê-lo odioso e repugnante”, quanto “fazer rir com indulgência e bom humor”

de suas intrigas. Alencar venceu tais dificuldades, atenuou suas atitudes, o que o levantou ante

a consciência do público. “Pedro é o mimo da família”, em conformidade com os costumes

sociais, revelando “um traço característico da vida brasileira”. Situado numa “condição

intermediária”, entre filho e escravo, “usa e abusa de todas as liberdades que lhe dá sua

posição especial”, e os motivos de sua ação são vistos como “realmente poderosos” e estando

“de perfeito acordo com o círculo limitado das suas aspirações e da sua condição de escravo”.

Assim, Alencar transportou “ao teatro aquele tipo eminentemente nosso”, apresentando “um

quadro de família, com o verdadeiro cunho da família brasileira”.15

Para Machado, a ação era “ligeira, interessante, comovente”, com atos “bem deduzidos

e bem terminados”, desfecho que trazia um “traço novo” e “lição profunda”, embora as

comédias do autor não tivessem “um caráter de demonstração”, pois outro o destino da arte.

“A peça acaba, sem abalos nem grandes peripécias”, como “na comédia de Shakespeare”, e as

conclusões dela tirada continham “um caráter social”, pois “um protesto contra a instituição

do cativeiro”. Além disso, a trama abrangia outros tipos bastante brasileiros “no espírito e na

linguagem”, possuindo o autor “talento brilhante” e “obra de gosto”.16

Na segunda parte do texto, no folhetim de 13 de março de 1866, Machado abordou as

peças Asas de um anjo e Mãe. Com relação à primeira, que debatia o problema da reabilitação

da “mulher perdida”, assunto presente em muitas formulações, no romance e no teatro,

considerou que autores não conseguiam fugir do inconveniente do tema em si, na “pintura da

sociedade que se transladava para cena”. Nesse contexto, Alencar, com “intenções morais

boas” e “idéias sãs”, não defendeu de modo afirmativo a restauração do crédito, da estima ou

do bom conceito de tais figuras perante a sociedade, recorrendo, na escolha dos costumes e

dos caracteres elementares da peça, aqueles que estavam em voga, os mesmos heróis que

sempre figuravam na cena. Assim, “só havia de mais o lustre” do nome estimado.17

Alencar quis “dizer a sua palavra” nesse debate, não cedendo somente à sedução do

momento, mas formulando também uma opinião. A comédia não conclui pela afirmativa da

tese, na época tão celebrada, e exprime a idéia de punição aos pais, que se descuidaram da 15 Ibid., p. 211-3. 16 Ibid., p. 214-5.

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educação moral da filha, ao sedutor que a arrancou do seio da família e ao segundo amante

que a acabou de perder. Mesmo que o epílogo da peça fosse o casamento da personagem,

Machado questionou o poder de reabilitação moral desse ato realizado para proteger a filha

dos erros de uma união sem o amor e a dignidade da família. A seu ver, com esse desenlace, o

autor não quis restituir à personagem os direitos morais que perdera, o que não consistia em

traço a ser criticado. Mas achou “reparável” a “situação de que nasce o desenlace; é o assunto

em si.” O que lhe “parece menos aceitável é o que constitui o fundo e o quadro da comédia”,

por mais que ela seja “cheia de interesse e de lances dramáticos”, que “a invenção” seja

“original, apesar do cansaço do assunto.” O problema localizava-se na “soma tão avultada de

talento e de perícia empregada em um assunto” que, em sua opinião, contrária àquilo que via

como excessos do realismo em avanço, “devia ser excluído da cena.”18

Machado discordava da teoria aceita na peça e recorrente em outras produções do

gênero, de que a arte, expondo tais problemas sociais, contribuiria para transformá-los.

Conforme tais princípios, “pintando os costumes de uma classe parasita e especial, conseguir-

se-ia melhorá-la e influir-lhe o sentimento do dever.” Ele julgava que “esta questão da

correção dos costumes por meio do teatro” era coisa duvidosa, não acreditando no resultado

positivo desse empreendimento nem na proposição de que a obra servia de “aviso à sociedade

honesta”, pois “a pintura do vício nessas peças (exceção feita das Asas de um anjo)”, era

realizada com “cores brilhantes, que seduzem, que atenuam, que fazem do vício um

resvalamento reparável”. Além disso, prevalecia, no campo literário, “a doutrina da arte pura,

que isola o domínio da imaginação, e tira do poeta o caráter de tribuno”.19

Alencar, em seu exercício de autor teatral, introduzia o realismo nos textos e

espetáculos da corte, batendo de frente contra a escola literária hegemônica, que defendia a

prática de uma arte pura, ao colocar sua pena como instrumento de combate e de crítica

social. Machado, que é considerado um dos marcos iniciais do realismo na prosa brasileira,

com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de 1881, quinze anos antes, ainda envolto pelo

romantismo, mesmo que, a seu modo, primeiro observou que a peça encerrava “muitas das

qualidades do autor, revelando, sobretudo as tendências dramáticas, tão pronunciadas como as

tendências cômicas do Demônio familiar e do Verso e reverso”. Mas, em seguida, se opôs aos

recursos utilizados pelo dramaturgo, advindos da proposta realista, que defendia uma

representação mais objetiva da realidade, a qual, no intuito de ser fiel a vida, trazia à cena

minúcias e detalhes que considerou excessivos, como o quase incesto entre o pai e a filha, que 17 Ibid., p. 216-7. 18 Ibid., p. 217-8.

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causou grande polêmica. Para ele, o “efeito é terrível, o contraste medonho” e “a cena é

demasiado violenta”, deixando “o coração do espectador sentir-se abalado” devido à

“inconveniência do lance, e dos sentimentos que ele inspira”. Coube à questão do incesto a

polêmica e a retirada da peça de cena, levando Alencar a declarar, com ironia, que quebraria

sua pena e faria dos pedaços uma cruz. Mas não o fez, e logo após, apresentou a peça Mãe.20

Conforme o folhetinista, com entusiasmo, esse novo texto, sim, era uma obra

relevante, que merecia destaque e “resgatava todas as divergências anteriores” ao redor de

Alencar como “o chefe de nossa literatura dramática”. Ele dizia:

O contraste não podia ser maior; saímos de uma comédia que contrariava os nossos sentimentos e as nossas idéias, e assistíamos ao melhor de todos os dramas nacionais até hoje representados; estávamos diante de uma obra verdadeiramente dramática, profundamente humana, bem concebida, bem executada, bem concluída.21

Mãe recebeu elogios por não se distanciar do preceito de se inspirar em fatos da vida

cotidiana da sociedade brasileira, ao escolher a escravidão como tema central e ter “um

caráter social”. O crítico ponderou que, “pela própria pintura dos sentimentos e dos fatos”, a

literatura dramática entrava, em grande parte, “na guerra feita ao flagelo da escravidão”,

sendo a peça um manifesto, um “protesto contra a instituição do cativeiro”. Ele refletia:

Se ainda fosse preciso inspirar ao povo o horror pela instituição do cativeiro, cremos que a representação do novo drama do Sr. José de Alencar faria mais do que todos os discursos que se pudessem proferir no recinto do corpo legislativo, e isso sem que Mãe seja uma drama demonstrativo e argumentador, mas pela simples impressão que produz no espírito do espectador, como convém a uma obra de arte.22

Ao abordar o tema da peça e sua forma, destacou as qualidades do texto e do autor:

A maternidade na mulher escrava, a mãe cativa do próprio filho, eis a situação da peça. Achada a situação, era preciso saber apresentá-la, concluí-la; tornava preciso tirar dela todos os efeitos, todas as conseqüências, todos os lances possíveis; do contrário, seria desvirginá-la sem fecundá-la. O autor não só o compreendeu, como executou com uma consciência e uma inspiração que não nos cansamos de louvar.23

Machado considerou, por fim, que do “patético” nascera “uma situação pungente e

verdadeira”, “belas cenas” de um drama “superior”. O texto trata do sacrifício de uma mãe

escrava que, diante da sociedade, de sua condição e raça, manteve segredo de sua maternidade

para o filho, pois, estando grávida ao ser comprada por um homem, quando o teve, este fora

reconhecido e adotado por aquele, que ainda o institui como herdeiro ao morrer. Assim, a mãe

ocultava do filho seu nascimento com receio de que a sociedade o desmerecesse por

19 Ibid., p. 218-9. 20 Ibid., p. 219-21. 21 Ibid., p. 221. 22 Ibid., p. 214, 221. 23 Ibid., p. 221-2.

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preconceito. Mas, quando este descobre o segredo, ela, ainda temendo por ele, pela sombra

que lançaria sobre sua felicidade, por escrúpulo, suicida-se. Para o crítico, a peça consagrava

o autor como dramaturgo; era obra “de mérito e de futuro”:

Não pode haver dúvida de que é esta a peça capital do Sr. José de Alencar: paixão, interesse, originalidade, um estudo profundo do coração humano, mais do que isso, do coração materno, tudo se reúne nesses quatro atos, tudo faz desta peça uma verdadeira criação. Desde então os louros de poeta dramático floresceram na fronte do autor entrelaçados aos louros de poeta cômico.24

Portanto, para o folhetinista, Alencar já tinha definido um “lugar nas letras

dramáticas”; mesmo que não houvesse produzido o Demônio familiar, “alta expressão dos

costumes domésticos”, e Mãe, “a imagem augusta da maternidade.”25 Já no último folhetim,

de 27 de março de 1866, Machado abordou O que é o casamento? e fez breve menção a O

crédito, O Jesuíta e Expiação. Sobre a primeira, declarou que a companhia teatral Ateneu

Dramático representara uma peça anônima, da qual o autor, “apesar de ser a obra bem

recebida, não apareceu, nem então, nem depois,” mas que, sendo o público “dotado de uma

admirável perspicácia, atribuiu a peça ao Sr. J. de Alencar, e a coisa passou em julgado.” A

seu ver, a peça “reúne todos os caracteres do estilo e do sistema dramático do autor das Asas

de um anjo”, havendo entre aquela e as outras do autor “uma semelhança fisionômica que não

pode passar despercebida aos olhos da crítica.” Portanto, atribuir a Alencar a comédia era “dar

a uma órfã tão bela um pai tão distinto.”26

A peça busca responder à pergunta expressa no título sem buscar “tirar conclusões

gerais” e “ter caráter absoluto”. Aí, “o autor imaginou uma situação dramática, desenvolveu-

a, concluiu-a”, referindo-se a “um caso de adultério suposto”, um fratricídio, pois é um irmão

que levantara os olhos para a esposa do outro, o qual, diante da desonra decidiu matar a

mulher, o que não ocorre por intervenção da filha. Este era o ponto de partida da peça, que

colocou a esposa entre o interesse da sua honra e o interesse do irmão do marido, numa

situação de sacrifício e abnegação, que a fez “uma verdadeira heroína”, aumentando o

interesse do enredo e tornando “mais profunda a comoção dramática”, pois esperava-se ouvir

dela “a narração fiel dos fatos, mas ela mantém-se na sua sublime reserva”, mesmo que

precisasse de sua reputação ao menos para a filha. Para o crítico, a trama possuía

“incontestáveis belezas” e revelava “altura dramática”, mas fazia um reparo no desenlace.

24 Ibid., p. 223-4. 25 Ibid., p. 224. 26 Ibid., p. 224-5.

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III Simpósio Nacional de História Cultural Florianópolis, 18 a 22 de setembro de 2006

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Porém o reparo não o impedia de reconhecê-la como “das mais dramáticas e das mais bem

concebidas do nosso teatro.”27

Machado destacou “o talento do autor”, que “valente de si, robustecido pelo estudo,

conseguiu conservar o mesmo interesse, a mesma vida, no meio de uma situação sempre

igual, de uma crise doméstica, abafada e oculta.” Sendo “a cor local [...] uma das

preocupações do autor”, o crítico ressaltou sua “habilidade [...] em distribuir as suas tintas de

acordo com o resto do quadro, evitando o sobrecarregado, o inútil, o descabido.” Além disso,

destacou “a perspicácia do drama”, que, acrescentado à peça, por meio de um dado “episódio

interessante, intimamente ligado” ao enredo, “produz uma cena violenta e uma situação

trágica”. Portanto, a peça foi avaliada como sendo um “drama interessante, bem desenvolvido

e lógico”. Mais do que isso: “É igualmente uma pintura da família, feita com aquela

observação que o Sr. Alencar aplica sempre aos costumes privados. Caracteres sustentados,

diálogo natural e vivo, estudo aplicado de sentimentos.”28

Machado chamou a atenção ainda sobre a peça O Crédito, a qual não viu em cena e

nem impressa, pois não havia sido publicada. Dela julgou que “o assunto, [...] é da mais alta

importância social” e que o autor, pela reminiscência que deixou os artigos do tempo em que

foi encenada, “soube tirar dele tão somente aquilo que entrava na esfera de uma comédia.”

Portanto, limitando a mencioná-la, bem com duas outras peças do autor, que constava existir

na pasta daquela, O Jesuíta e Expiação, clamava o crítico que gostaria de vê-la impressa.29

Finalizando, considerou “Alencar um dos mais fecundos e brilhantes talentos da

mocidade atual”, possuindo “duas qualidades tão raras quanto preciosas: o gosto e o

discernimento, duas qualidades que completavam o gênio de Garret.” Mesmo que, nem

sempre, estivesse de acordo “com o distinto escritor”, como nas divergências a respeito de

Asas de um anjo e a alguns tons na pintura dos costumes que iam além do limite, aplaudia

sem reserva o autor de Mãe e de Demônio familiar. “A posição que alcançou, como poeta

dramático, impõe-lhe a obrigação de enriquecer com outras obras a literatura nacional.”30

Assim, Alencar foi alçado à condição de “chefe de nossa literatura dramática”, por

quem chamou “de primeiro crítico brasileiro”, uma consagração para Machado, que vinha

cultivando esse gênero desde o início da década de 1860; ganhou lugar de destaque na

nascente dramaturgia brasileira e, ainda no século XIX, entrou para a História da Literatura

Brasileira, também como dramaturgo e comediógrafo, já por mão de Silvio Romero.

27 Ibid., p. 225-8. 28 Ibid., p. 228-9. 29 Ibid., p. 230. 30 Ibid., p. 230-1.