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III Simpósio Nacional de História Cultural Florianópolis, 18 a 22 de setembro de 2006
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O TEATRO “BRASILEIRO” DE JOSÉ DE ALENCAR E SUA RECEPÇÃO CRÍTICA POR MACHADO DE ASSIS
Valdeci Rezende Borges(UFG/CAC/NIESC)
José de Alencar, de 1857 a 1865, dedicou-se ao projeto de criar um teatro nacional
escrevendo as peças O Rio de Janeiro, Verso e Reverso, O Demônio Familiar, O Crédito, As
Asas de Um Anjo, Mãe, A Noite de São João, O Jesuíta, O Que é o Casamento? e A
Expiação. A maioria delas é de cunho realista, repudiando a tragédia e a farsa. Como
introdutor do realismo no teatro nacional, seu objetivo era educar o povo.
1) Como e Por que Alencar tornou-se Dramaturgo
O escritor, após a encenação de suas duas primeiras comédias, que escreveu na intenção
de “fazer rir, sem fazer corar”, redigiu o texto A Comédia Brasileira, conhecido por Como e
Por que Sou Dramaturgo, refletindo sobre seu percurso inicial de dramaturgo e expondo as
preocupações em introduzir, na Corte, a escola moderna nos palcos e criar um teatro
nacional.1 Teve a idéia de escrever para esse campo vendo “uma pequena farsa, que não
primava pela moralidade e pela decência da linguagem”, mas, ainda sim, sendo aplaudida,
“porque o riso é contagioso” mesmo que “o espírito e o pudor se revoltem contra a causa que
o provoca.” A cena causou-lhe “um desgosto, [...] vendo uma senhora enrubescer”, ao ouvir
uma graça livre, um dito grosseiro, levando-o a questionar se não era “possível fazer rir, sem
fazer corar”. Daí, criou O Rio de Janeiro, espécie de revista ligeira.2
Os teatros da Corte “desprezavam as produções nacionais, e preferiam traduções
insulsas, inçadas de erros e galicismos”, mas Alencar insistiu em produzir peças conforme a
escola moderna e edificar o teatro nacional, obra considerada “monumental”, que necessitava
do esforço de muitos. No sentido de criar o teatro nacional _ “o teatro brasileiro, que ainda
não existe”_ , escreveu, a seguir, O Demônio Familiar. Objetivava fazer “alta comédia” e,
como na literatura dramática do país, não existia um modelo, “a verdadeira comédia, a
reprodução exata e natural dos costumes de uma época, a vida em ação não existe no teatro
brasileiro”, buscou-o na escola dramática “mais perfeita”, de Molière, aperfeiçoada por
Alexandre Dumas Filho. Se “Molière tinha feito a comédia quanto à pintura dos costumes e à
moralidade da crítica”, com “quadros históricos nos quais se viam perfeitamente desenhados
1 ALENCAR, Jose de. Como e Porque sou Dramaturgo. In: ___. Ficção Completa e outros escritos. Rio de
Janeiro: Companhia Aguilar, 1965. p. 128. 2 Ibid., p. 123-4.
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os caracteres de uma época”, Dumas “deu-lhe a naturalidade que faltava; fez o teatro
reproduzir a vida da família e da sociedade, como um daguerreótipo moral.”3
Alencar julgava que o público não estava “ainda muito bem disposto a favor desta
escola”; preferia encenações “fora do natural”, só aplaudia quando lhe chocavam os nervos,
não o espírito ou o coração. Mas preferia resistir, “ser natural, a ser dramático, [...] ser
apreciado por aqueles que sabem o que é uma comédia, a ser aplaudido com entusiasmo
pelas platéias”. Ficou feliz com “o público ilustrado”, que “foi mais benévolo do que
esperava e merecia” a peça, edificada “sem lances cediços, sem gritos, sem pretensão
teatral”, sem extravagância, sem suspense no fim dos atos, que a platéia via como “frieza e
talvez falta de imaginação”. Assim, “o tempo das caretas e das exagerações passou.”4
Ao intencionar produzir “uma alta comédia”, buscou afastar-se da tradição de Martins
Pena e Joaquim Manuel de Macedo. Procurou, na literatura dramática brasileira, um
modelo, não o achou; não existia “a verdadeira comédia”. Os autores acima escreveram
para o teatro, mas a época em que compuseram suas obras influiu sobre sua escola. Alencar
avaliava que:
Pena, muito conhecido pelas suas farsas graciosas, pintava até certo ponto os costumes brasileiros; mas pintava-os sem criticar, visava antes o efeito cômico do que ao efeito moral; as suas obras são antes uma sátira dialogada, do que uma comédia. [...] tinha esse talento de observação, e essa linguagem chistosa, que primam na comédia; mas o desejo dos aplausos fáceis influiu no seu espírito, e o escritor sacrificou talvez suas idéias ao gosto pouco apurado da época. [...] Se tivesse vivido mais alguns anos, [...] empreenderia uma obra mais elevada, e introduziria talvez no Brasil a escola de Molière e Beaumarchais, a mais perfeita daquele tempo.5
Já em Macedo, via “uns laivos de imitação estrangeira”, que lhe tirava “o cunho de
originalidade”:
... nunca se dedicou seriamente à comédia; escreveu em alguns momentos de folga duas ou três obras que foram representadas com muito aplauso. [...] Podemos dizer deste autor o mesmo que do primeiro: sentiu a influência do público; se continuasse, porém, o Sr. Dr. Macedo tem bastante talento e muito bom-gosto literário, para que conseguisse a pouco e pouco corrigir a tendência popular, e apresentar no nosso teatro a verdadeira comédia.6
Portanto, julgava não haver, na literatura dramática do país, um modelo e foi buscá-lo
na produção realista francesa. Escreveu, a seguir, As Asas de Um Anjo, que, encenada três
dias foi retirada de cena pela polícia sob alegação de conter aspectos “imorais”. Protestou no
Diário do Rio de Janeiro e no prólogo do texto em livro, reafirmando suas concepções
estéticas sobre a dramaturgia moderna e nacional, pautada na observação realista da natureza
3 Ibid., p. 124-6. 4 Ibid., p. 127-8. 5 Ibid., p. 125-6. 6 Ibid., p. 126.
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e da sociedade, afinada com “a tendência da literatura moderna” de tratar “A realidade, ou
melhor, a naturalidade, a reprodução da natureza e da vida social no romance e na comédia”
como “a alma” da literatura.7
Por esse vanguardismo e radicalidade realista na exposição de temas e questões do
momento, transformou seu teatro numa vitrine de tensões e no registro do cotidiano urbano,
observando a realidade ou naturalidade da vida social como matéria-prima para suas criações.
2) “O Teatro de José de Alencar”, por Machado de Assis
Em março de 1866, Machado de Assis, por meio de três ensaios críticos, expôs sua
avaliação do exercício intelectual de Alencar como autor dramático. Esses textos, reunidos
sobre o título O Teatro de José de Alencar, compõem uma parte importante da história
cultural do momento ao apresentar uma leitura interpretativa da atuação do dramaturgo,
constituindo em peça interessante da recepção crítica de sua produção. Machado, desde 1859,
como folhetinista, escrevia críticas literárias e teatrais para vários periódicos. Em 29 de março
de 1860, em suas revisões dramáticas nas páginas do Diário, refletiu sobre a peça Mãe, como
fazia com outras produções que vinham a público em forma de texto ou de encenação.8
Já o ano de 1866, iniciou com uma preocupação de pensar tais produções num âmbito
mais geral, isto é, no movimento de criação de um “teatro normal”. Em fevereiro, Machado
expressou essa visão mais alargada no texto O Teatro Nacional, fazendo um balanço da
situação dos poetas e da cena dramáticos do momento. Após refletir sobre a aceitação
triunfante da perspectiva romântica, de seus desatinos e “monstruosidades”, a qual, mesmo
sem findar, teve lugar tomado pela “reforma realista”, que também foi levada “à exageração”,
o autor defendeu que, para sanear a “doença”, para a renovação da literatura e da arte
dramática, tornava-se “indispensável a criação de um teatro normal” custeado pelo Estado.
Historicizando, expôs que a fundação de “uma academia dramática, uma cena-escola”, já era
preocupação do governo, que, em 1862, nomeou uma comissão, composta por Alencar,
Macedo e Meneses e Sousa, “para propor medidas tendentes ao melhoramento do teatro
brasileiro.” O parecer apontou a necessidade de “construção de um edifício destinado à cena
dramática e à ópera nacional”, e que esse “novo teatro” deveria chamar-se “Comédia
Brasileira”, sendo “o teatro da alta comédia”. Além disso, propôs “criar um conservatório
dramático”, presidido pelo inspetor-geral dos teatros, que tivesse “por missão julgar da
moralidade e das condições literárias das peças destinadas aos teatros subvencionados, e da
7 ALENCAR, As Asas de Um Anjo: advertência e prólogo da 1a edição. In: ___. Obra Completa. Rio de Janeiro: J. Aguilar, 1960. v. 4. p. 922-31. 8 MACHADO DE ASSIS, J. M. Crítica Teatral. In: ___. Obras Completas. Rio de Janeiro: W.M. Jackson, 1955-9. p. 144, 153, 162,179.
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moralidade, decência, religião, ordem pública, dos que pertencerem aos teatros particulares.”
Partindo do “estado precário da literatura e da arte dramática” no Brasil, a “idéia de um teatro-
modelo”, de criar o “Comédia Brasileira”, impunha-se como saída “formal e definitiva”.9
Em seguida, Machado anunciou a intenção de “fazer um estudo dos nossos principais
autores dramáticos”, realizando “uma espécie de balanço do passado”, pois, com a efetivação
do projeto “Comédia Brasileira”, iniciar-se-ia “uma nova era para a literatura”. Com tal
propósito, o folhetim de 27 de fevereiro teve como título O Teatro de Gonçalves de
Magalhães, que foi apontado como “o primeiro passo firme da arte nacional”. Já os três textos
seguintes versavam sobre O Teatro de José de Alencar e foram sucedidos, por dois outros
sobre O teatro de Joaquim Manuel de Macedo.10
Machado abriu a primeira parte de seu texto, de 6 de março de 1866, atribuindo a
Alencar lugar de destaque dentre os autores dramáticos do momento, surgidos nos últimos
dez anos. “Uma grande parte das nossas obras dramáticas apareceu neste último decênio,
devendo contar-se entre elas as estréias de autores de talento e de reputação”, tais como
Alencar, Quintino Bocaiúva, Pinheiro Guimarães e outros. Macedo veio, em seguida, como o
autor que apresentou ao público novos dramas e comédias, mas que, “desgraçadamente”, teve
cessado seu entusiasmo e a promessa que significava para a dramaturgia brasileira.11
Dos autores acima citados, Alencar foi considerado como “um dos mais fecundos e
laboriosos”, afinal entre 1857 e 1866, já havia escrito 9 peças teatrais dentre ópera, comédias
e dramas, as quais constituem a totalidade de sua produção. Se, Verso e reverso estreou sem
revelar sua autoria, estratégia que preservava o escritor diante de um fracasso possível, “os
aplausos com que foi recebida a obra animaram-lhe a vocação dramática”, e redigiu “uma
série de composições que lhe criaram uma reputação verdadeiramente sólida”. Era “o
prenúncio”, mesmo que não fosse “decerto uma composição de longo fôlego”, mas, sim,
“uma simples miniatura, fina e elegante, uma coleção de episódios copiados da vida comum,
ligados todos a uma verdadeira idéia de poeta”, qual seja “o efeito do amor no resultado das
impressões” de um homem. Na visão do protagonista, “o mesmo quadro aparece sob um
ponto de vista diverso”, pois “começa por achar no Rio de Janeiro um inferno” e “acaba por
ver nele um paraíso” devido à influência do amor. A ação, considerada “de extrema
simplicidade”, não possui enredo complicado, mas tem capacidade de manter o interesse do
público do princípio ao fim, com “alguns episódios interessantes” e “diálogo vivo e natural.”12
9 Ibid., p. 187-195. 10 Ibid., p. 196, 199, 206-7, 216, 224, 231, 247, 258. 11 Ibid., 207. 12 Ibid., p. 209.
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Para o crítico, a peça possuía valor e era recomendada não apenas por tais qualidades,
“mas também pela fiel pintura de alguns hábitos e tipos da época”, dentre eles, muitos que
tendiam a desaparecer, outros que já haviam desaparecido e que, assim, poderiam arrastar
consigo a obra, fazendo-a perder o interesse, “se ela não contivesse os elementos que guardam
a vida, mesmo através das mudanças do tempo.” Essa amostra já indicava o “talento
dramático” do autor, sua maneira, estilo, diálogo, “tudo quanto representa a sua personalidade
literária”, avaliada como “extremamente original” e “própria”, sobretudo, pelo traço vivo e
distinto proveniente da “observação das coisas, que vai até as menores minuciosidades da
vida”, com a virtude de não “cair em excesso”. Tal “qualidade preciosa” originou-se do autor
contemplar procedimentos estéticos estabelecidos na época e percebidos como indispensáveis
e necessários a uma obra dramática. Para “ser do seu tempo e do seu país”, deveria uma
composição conter e refletir “uma certa parte dos hábitos externos, e das condições e usos
peculiares da sociedade em que nasce; mas, além disso, quer a lei dramática que o poeta
aplique o valioso dom da observação a uma ordem de idéias mais elevadas e é isto justamente
que não esqueceu o autor.” Sendo o quadro da peça avaliado como “restrito demais para
empregar rigorosamente esta condição da arte”, ou seja, pôr em jogo os elementos da
sociedade, ainda assim, merecia a atenção do público graças “ao pensamento capital da peça,
ao desenho feliz de alguns caracteres, e às excelentes qualidades do diálogo.”13
Machado atribuiu o “bom acolhimento” da peça “também à novidade da forma” usada.
“Até então a comédia brasileira não procurava os modelos mais estimados; as obras do finado
Pena, cheias de talento e de boa veia cômica, prendiam-se intimamente às tradições da farsa
portuguesa...” Para o crítico, expressando uma perspectiva da historicidade da produção
cultural, essa característica não era um desmerecimento à obra de Martins Pena, mas elemento
que a definia, pois “se o autor do Noviço vivesse, o seu talento, que era dos mais auspiciosos,
teria acompanhado o tempo, e consorciaria os progressos da arte moderna às lições da arte
clássica.” Mas, se Alencar inovou na forma na peça de estréia, Machado considerou que ela
“não era ainda a alta comédia”, mas uma “comédia elegante”, na qual “a sociedade polida [...]
entrava no teatro, pela mão de um homem que reunia em si a fidalguia do talento e a fina
cortesia do salão”.14
Porém, para o crítico, “a alta comédia apareceu logo depois, com o Demônio familiar”,
vista como “uma comédia de maior alento”, em que abraçou “um quadro mais vasto” e teve
que vencer algumas dificuldades, como o assunto e o caráter do personagem principal, o
13 Ibid., p. 209-11. 14 Ibid., p. 211.
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moleque Pedro, “o demônio da comédia”. Pedro configurava como “o Fígaro brasileiro”, mas
sem “as intenções filosóficas e os vestígios políticos do outro”, sendo sua introdução em cena
marcada por “graves obstáculos”, que tiveram de ser superados “por meios hábeis e seguros”.
Era preciso tanto apresentá-lo ao espectador, com seu “caráter [de] intrigante doméstico, mola
da ação, sem fazê-lo odioso e repugnante”, quanto “fazer rir com indulgência e bom humor”
de suas intrigas. Alencar venceu tais dificuldades, atenuou suas atitudes, o que o levantou ante
a consciência do público. “Pedro é o mimo da família”, em conformidade com os costumes
sociais, revelando “um traço característico da vida brasileira”. Situado numa “condição
intermediária”, entre filho e escravo, “usa e abusa de todas as liberdades que lhe dá sua
posição especial”, e os motivos de sua ação são vistos como “realmente poderosos” e estando
“de perfeito acordo com o círculo limitado das suas aspirações e da sua condição de escravo”.
Assim, Alencar transportou “ao teatro aquele tipo eminentemente nosso”, apresentando “um
quadro de família, com o verdadeiro cunho da família brasileira”.15
Para Machado, a ação era “ligeira, interessante, comovente”, com atos “bem deduzidos
e bem terminados”, desfecho que trazia um “traço novo” e “lição profunda”, embora as
comédias do autor não tivessem “um caráter de demonstração”, pois outro o destino da arte.
“A peça acaba, sem abalos nem grandes peripécias”, como “na comédia de Shakespeare”, e as
conclusões dela tirada continham “um caráter social”, pois “um protesto contra a instituição
do cativeiro”. Além disso, a trama abrangia outros tipos bastante brasileiros “no espírito e na
linguagem”, possuindo o autor “talento brilhante” e “obra de gosto”.16
Na segunda parte do texto, no folhetim de 13 de março de 1866, Machado abordou as
peças Asas de um anjo e Mãe. Com relação à primeira, que debatia o problema da reabilitação
da “mulher perdida”, assunto presente em muitas formulações, no romance e no teatro,
considerou que autores não conseguiam fugir do inconveniente do tema em si, na “pintura da
sociedade que se transladava para cena”. Nesse contexto, Alencar, com “intenções morais
boas” e “idéias sãs”, não defendeu de modo afirmativo a restauração do crédito, da estima ou
do bom conceito de tais figuras perante a sociedade, recorrendo, na escolha dos costumes e
dos caracteres elementares da peça, aqueles que estavam em voga, os mesmos heróis que
sempre figuravam na cena. Assim, “só havia de mais o lustre” do nome estimado.17
Alencar quis “dizer a sua palavra” nesse debate, não cedendo somente à sedução do
momento, mas formulando também uma opinião. A comédia não conclui pela afirmativa da
tese, na época tão celebrada, e exprime a idéia de punição aos pais, que se descuidaram da 15 Ibid., p. 211-3. 16 Ibid., p. 214-5.
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educação moral da filha, ao sedutor que a arrancou do seio da família e ao segundo amante
que a acabou de perder. Mesmo que o epílogo da peça fosse o casamento da personagem,
Machado questionou o poder de reabilitação moral desse ato realizado para proteger a filha
dos erros de uma união sem o amor e a dignidade da família. A seu ver, com esse desenlace, o
autor não quis restituir à personagem os direitos morais que perdera, o que não consistia em
traço a ser criticado. Mas achou “reparável” a “situação de que nasce o desenlace; é o assunto
em si.” O que lhe “parece menos aceitável é o que constitui o fundo e o quadro da comédia”,
por mais que ela seja “cheia de interesse e de lances dramáticos”, que “a invenção” seja
“original, apesar do cansaço do assunto.” O problema localizava-se na “soma tão avultada de
talento e de perícia empregada em um assunto” que, em sua opinião, contrária àquilo que via
como excessos do realismo em avanço, “devia ser excluído da cena.”18
Machado discordava da teoria aceita na peça e recorrente em outras produções do
gênero, de que a arte, expondo tais problemas sociais, contribuiria para transformá-los.
Conforme tais princípios, “pintando os costumes de uma classe parasita e especial, conseguir-
se-ia melhorá-la e influir-lhe o sentimento do dever.” Ele julgava que “esta questão da
correção dos costumes por meio do teatro” era coisa duvidosa, não acreditando no resultado
positivo desse empreendimento nem na proposição de que a obra servia de “aviso à sociedade
honesta”, pois “a pintura do vício nessas peças (exceção feita das Asas de um anjo)”, era
realizada com “cores brilhantes, que seduzem, que atenuam, que fazem do vício um
resvalamento reparável”. Além disso, prevalecia, no campo literário, “a doutrina da arte pura,
que isola o domínio da imaginação, e tira do poeta o caráter de tribuno”.19
Alencar, em seu exercício de autor teatral, introduzia o realismo nos textos e
espetáculos da corte, batendo de frente contra a escola literária hegemônica, que defendia a
prática de uma arte pura, ao colocar sua pena como instrumento de combate e de crítica
social. Machado, que é considerado um dos marcos iniciais do realismo na prosa brasileira,
com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de 1881, quinze anos antes, ainda envolto pelo
romantismo, mesmo que, a seu modo, primeiro observou que a peça encerrava “muitas das
qualidades do autor, revelando, sobretudo as tendências dramáticas, tão pronunciadas como as
tendências cômicas do Demônio familiar e do Verso e reverso”. Mas, em seguida, se opôs aos
recursos utilizados pelo dramaturgo, advindos da proposta realista, que defendia uma
representação mais objetiva da realidade, a qual, no intuito de ser fiel a vida, trazia à cena
minúcias e detalhes que considerou excessivos, como o quase incesto entre o pai e a filha, que 17 Ibid., p. 216-7. 18 Ibid., p. 217-8.
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causou grande polêmica. Para ele, o “efeito é terrível, o contraste medonho” e “a cena é
demasiado violenta”, deixando “o coração do espectador sentir-se abalado” devido à
“inconveniência do lance, e dos sentimentos que ele inspira”. Coube à questão do incesto a
polêmica e a retirada da peça de cena, levando Alencar a declarar, com ironia, que quebraria
sua pena e faria dos pedaços uma cruz. Mas não o fez, e logo após, apresentou a peça Mãe.20
Conforme o folhetinista, com entusiasmo, esse novo texto, sim, era uma obra
relevante, que merecia destaque e “resgatava todas as divergências anteriores” ao redor de
Alencar como “o chefe de nossa literatura dramática”. Ele dizia:
O contraste não podia ser maior; saímos de uma comédia que contrariava os nossos sentimentos e as nossas idéias, e assistíamos ao melhor de todos os dramas nacionais até hoje representados; estávamos diante de uma obra verdadeiramente dramática, profundamente humana, bem concebida, bem executada, bem concluída.21
Mãe recebeu elogios por não se distanciar do preceito de se inspirar em fatos da vida
cotidiana da sociedade brasileira, ao escolher a escravidão como tema central e ter “um
caráter social”. O crítico ponderou que, “pela própria pintura dos sentimentos e dos fatos”, a
literatura dramática entrava, em grande parte, “na guerra feita ao flagelo da escravidão”,
sendo a peça um manifesto, um “protesto contra a instituição do cativeiro”. Ele refletia:
Se ainda fosse preciso inspirar ao povo o horror pela instituição do cativeiro, cremos que a representação do novo drama do Sr. José de Alencar faria mais do que todos os discursos que se pudessem proferir no recinto do corpo legislativo, e isso sem que Mãe seja uma drama demonstrativo e argumentador, mas pela simples impressão que produz no espírito do espectador, como convém a uma obra de arte.22
Ao abordar o tema da peça e sua forma, destacou as qualidades do texto e do autor:
A maternidade na mulher escrava, a mãe cativa do próprio filho, eis a situação da peça. Achada a situação, era preciso saber apresentá-la, concluí-la; tornava preciso tirar dela todos os efeitos, todas as conseqüências, todos os lances possíveis; do contrário, seria desvirginá-la sem fecundá-la. O autor não só o compreendeu, como executou com uma consciência e uma inspiração que não nos cansamos de louvar.23
Machado considerou, por fim, que do “patético” nascera “uma situação pungente e
verdadeira”, “belas cenas” de um drama “superior”. O texto trata do sacrifício de uma mãe
escrava que, diante da sociedade, de sua condição e raça, manteve segredo de sua maternidade
para o filho, pois, estando grávida ao ser comprada por um homem, quando o teve, este fora
reconhecido e adotado por aquele, que ainda o institui como herdeiro ao morrer. Assim, a mãe
ocultava do filho seu nascimento com receio de que a sociedade o desmerecesse por
19 Ibid., p. 218-9. 20 Ibid., p. 219-21. 21 Ibid., p. 221. 22 Ibid., p. 214, 221. 23 Ibid., p. 221-2.
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preconceito. Mas, quando este descobre o segredo, ela, ainda temendo por ele, pela sombra
que lançaria sobre sua felicidade, por escrúpulo, suicida-se. Para o crítico, a peça consagrava
o autor como dramaturgo; era obra “de mérito e de futuro”:
Não pode haver dúvida de que é esta a peça capital do Sr. José de Alencar: paixão, interesse, originalidade, um estudo profundo do coração humano, mais do que isso, do coração materno, tudo se reúne nesses quatro atos, tudo faz desta peça uma verdadeira criação. Desde então os louros de poeta dramático floresceram na fronte do autor entrelaçados aos louros de poeta cômico.24
Portanto, para o folhetinista, Alencar já tinha definido um “lugar nas letras
dramáticas”; mesmo que não houvesse produzido o Demônio familiar, “alta expressão dos
costumes domésticos”, e Mãe, “a imagem augusta da maternidade.”25 Já no último folhetim,
de 27 de março de 1866, Machado abordou O que é o casamento? e fez breve menção a O
crédito, O Jesuíta e Expiação. Sobre a primeira, declarou que a companhia teatral Ateneu
Dramático representara uma peça anônima, da qual o autor, “apesar de ser a obra bem
recebida, não apareceu, nem então, nem depois,” mas que, sendo o público “dotado de uma
admirável perspicácia, atribuiu a peça ao Sr. J. de Alencar, e a coisa passou em julgado.” A
seu ver, a peça “reúne todos os caracteres do estilo e do sistema dramático do autor das Asas
de um anjo”, havendo entre aquela e as outras do autor “uma semelhança fisionômica que não
pode passar despercebida aos olhos da crítica.” Portanto, atribuir a Alencar a comédia era “dar
a uma órfã tão bela um pai tão distinto.”26
A peça busca responder à pergunta expressa no título sem buscar “tirar conclusões
gerais” e “ter caráter absoluto”. Aí, “o autor imaginou uma situação dramática, desenvolveu-
a, concluiu-a”, referindo-se a “um caso de adultério suposto”, um fratricídio, pois é um irmão
que levantara os olhos para a esposa do outro, o qual, diante da desonra decidiu matar a
mulher, o que não ocorre por intervenção da filha. Este era o ponto de partida da peça, que
colocou a esposa entre o interesse da sua honra e o interesse do irmão do marido, numa
situação de sacrifício e abnegação, que a fez “uma verdadeira heroína”, aumentando o
interesse do enredo e tornando “mais profunda a comoção dramática”, pois esperava-se ouvir
dela “a narração fiel dos fatos, mas ela mantém-se na sua sublime reserva”, mesmo que
precisasse de sua reputação ao menos para a filha. Para o crítico, a trama possuía
“incontestáveis belezas” e revelava “altura dramática”, mas fazia um reparo no desenlace.
24 Ibid., p. 223-4. 25 Ibid., p. 224. 26 Ibid., p. 224-5.
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III Simpósio Nacional de História Cultural Florianópolis, 18 a 22 de setembro de 2006
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Porém o reparo não o impedia de reconhecê-la como “das mais dramáticas e das mais bem
concebidas do nosso teatro.”27
Machado destacou “o talento do autor”, que “valente de si, robustecido pelo estudo,
conseguiu conservar o mesmo interesse, a mesma vida, no meio de uma situação sempre
igual, de uma crise doméstica, abafada e oculta.” Sendo “a cor local [...] uma das
preocupações do autor”, o crítico ressaltou sua “habilidade [...] em distribuir as suas tintas de
acordo com o resto do quadro, evitando o sobrecarregado, o inútil, o descabido.” Além disso,
destacou “a perspicácia do drama”, que, acrescentado à peça, por meio de um dado “episódio
interessante, intimamente ligado” ao enredo, “produz uma cena violenta e uma situação
trágica”. Portanto, a peça foi avaliada como sendo um “drama interessante, bem desenvolvido
e lógico”. Mais do que isso: “É igualmente uma pintura da família, feita com aquela
observação que o Sr. Alencar aplica sempre aos costumes privados. Caracteres sustentados,
diálogo natural e vivo, estudo aplicado de sentimentos.”28
Machado chamou a atenção ainda sobre a peça O Crédito, a qual não viu em cena e
nem impressa, pois não havia sido publicada. Dela julgou que “o assunto, [...] é da mais alta
importância social” e que o autor, pela reminiscência que deixou os artigos do tempo em que
foi encenada, “soube tirar dele tão somente aquilo que entrava na esfera de uma comédia.”
Portanto, limitando a mencioná-la, bem com duas outras peças do autor, que constava existir
na pasta daquela, O Jesuíta e Expiação, clamava o crítico que gostaria de vê-la impressa.29
Finalizando, considerou “Alencar um dos mais fecundos e brilhantes talentos da
mocidade atual”, possuindo “duas qualidades tão raras quanto preciosas: o gosto e o
discernimento, duas qualidades que completavam o gênio de Garret.” Mesmo que, nem
sempre, estivesse de acordo “com o distinto escritor”, como nas divergências a respeito de
Asas de um anjo e a alguns tons na pintura dos costumes que iam além do limite, aplaudia
sem reserva o autor de Mãe e de Demônio familiar. “A posição que alcançou, como poeta
dramático, impõe-lhe a obrigação de enriquecer com outras obras a literatura nacional.”30
Assim, Alencar foi alçado à condição de “chefe de nossa literatura dramática”, por
quem chamou “de primeiro crítico brasileiro”, uma consagração para Machado, que vinha
cultivando esse gênero desde o início da década de 1860; ganhou lugar de destaque na
nascente dramaturgia brasileira e, ainda no século XIX, entrou para a História da Literatura
Brasileira, também como dramaturgo e comediógrafo, já por mão de Silvio Romero.
27 Ibid., p. 225-8. 28 Ibid., p. 228-9. 29 Ibid., p. 230. 30 Ibid., p. 230-1.