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O lugar da

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na construo de uma fama dois perfis no New York Times ou trs reportagens num jornal latino-americano, o quanto utn Oscar pesa mais que um prmio em Cannes, ou vice-versa. De modo algum tais afirmaes do mercado esto isentas de transcendncia: tudo isso faz parte de um mapa cujos marcos dependem dos costumes e das instituies; o pblico se desloca por essa cartografia cambiante, s vezes seleciona um certo territrio, noutras vezes deportado para outras zonas, conforme a convenincia do mercado; certos pblicos ocupam sempre as mesmas fileiras, como se estivessem confinados; outros aprenderam a desocar-se entre regies diferentes e a decidir seu prprio rumo. Ningum se mexe na base de uma liberdade sem limites; os mais pobres, menos favorecidos, so prisioneiros de seu local de origem. A neutralidade valorativa indica que mais democrtico pensar que tudo possvel e igualmente legtimo. O passado da arte um grande depsito, ao qual se pode recorrer a fim de buscar o que for necessrio, e no existe outra regra que governe a entrada e a sada de mercadorias. Entretanto, a situao no nos autoriza a sermos otimistas: criou-se uma fratura entre os artistas e o pblico de massa que as vanguardas cultivaram como sua marca de distino, mas que, ao mesmo tempo, pretenderam exorcizar violando os limites estabelecidos institucionalmente para a arte. Nessa fratura, o mercado trabalha para si e no para uma utopia de igualitarismo esttico. Nessa fratura, h pouco que possa interesar a uma discusso sobre a arte. O absolutismo implantado pelo relativismo esttico umdos paradoxos da modernidade, etalvez o ltimo. Tambm nes-

rrrr,r, rl:r rrrtlia). Se antes era preciso buscar legitimidade em

no interior do campo artstico, hoje ela pode , r ,rlrtitlir crl instituies menos interessadas pelas perspecrrr.r', t'stticas. Enquanto se afirma a soberania do pblico' essa 1, lorlrrr-sc as balizas que designam os territrios ondel,,rr),,r:. tlisltutas

,illrr'|lrniu supostamente exercida.rr,r

A

discusso sobre valores

.rrlt' cxcluiu milhes de pessoas porque' efetivamente' era rrrrr,r rliscltsso entre protagonistas. O fato de que hoje essa ,lr'., rrssro tenha sido riscada da agenda (de que ela seja con.r,l, rrtlu fbra de moda ou de que lhe seja imputada uma vocao

rlr' :rlrsoluto tpica da modernidade que se pretende superar) Seja como for' 1,,rrh'Set um sinal da democracia dos tempos' r,rnrlrnr seria preciso consider-la como um resultado da exna esfera das l.rrsro sem precedentes do mercado capitalista .rrtt's. ll bem sabido que o mercado cego perante as difer, n\-is, como a imagem mtica da justia'O pluralismo e a neutralidade valorativa, por outro lado' rr,r,, significam a mesma coisa na esfera da arte ou na perspectrvrr rr partir da qual so julgadas as diferenas entre os po-vos , os costutres. Pode-se afirmar, ainda, que a arte'no vive da ,,,t'ristncia das diferenas e sim da utopia de um absoluto'

():

lrstados e as instituies so os guardies da eqanimidade: posies exclul)iil('cc que os artistas se adequaram melhor s perspectiva do plurar lt'rrtcs. Talvez abordar a esfera esttica dalr:,rrrrrr

religioso ou poltico signifique, em vez de coloc-la sob

lrrrrrinao sociolgica verdadeiramente inovadora, obscurecer

te caso, no reverso de uma posio triunfante, por mais justa que ela parea, poderia ser descoberto um fato de barbrie. Solapados os fndamentos do valor esttico, aumenta como nunca a fora dos especialistas (do mercado, da acade-

,rlritrrts dos traos que realmente a definem' O fato de os valores serem relativos a suas respectivas icclades e pocas no deve excluir o interesse pelo debate ',,rlrlc quais seriam, para ns, esses valores. Saber que eles nllo rlt,vct ser impostos a outras culturas um obstculo ao abstl',,re

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como as vanguardas, contra o sentido comum do pblico. Tam_ pouco que sua arte pura negatividade, crtica esttica que se converte em crtica ideolgica. pelo contrrio, Ozu e Ford no s nunca se colocaram fora da indstria cinematogrfica, como

urn lado, a indstria cultural no tinha acabado de rrrrpl:rrrlll sua hegemonia sobre todas as formas culturais anteu,)r('s. l)or'outro, as vanguardas no tinham dividido por com-

lrr

afinal foram pilares da credibilidade de um cinema de massanas dcadas de 30 e 40. Junto com as banaliclades que os gran_ des estdios atiravam sobre as telas de todo o planeta, os filmes

I'lr'to, nuna ciso definitiva, o campo da arte. Quando essas rrrrrtlrrrrus aconteceram, na segunda metade do sculo XX, a,rrrrpliirho estratificada dos pblicos e a experimentao esttica a trilhar caminhos distintos, que se cruzam apenas

Griffith e Chaplin, mas tambm os de Hitchcock, para irmos direto ao assunto)so obras perfeitas, em que a linguagem do cinema est desen_ volvida a ponto de alcanar seu estgio clssico. So filmes per_

de Ozu e Ford (ou os de Wyler, ou antes de

l,r',siriur

, n ('irsos inteiramente excepcionais. Com a msica e a literatu-

r.r, isso aconteceu antes do que com o cinema. l)or que devemos nos preocupar com um processo quep,u('cc irreversvel e que, alm disso, apresenta aspectos demo, r irticos' Com efeito, a implantao das indstrias culturais tem

feitamente reconhecveis: os planos gerais de Ford e os enqua_ dramentos de Ozu hoje so considerados marcas pessoais que passaram a fazer parte da gramtica do cinema.

A pergunta sobre Ozu e Ford poderia ser multiplicada indefinidamente: por que temos a convico de que Canrando na chuva est to longe de Fama ou Embalos cle sbado noite? O filme de Stanley Donen e Gene Kelly foi, de imediato, um grande sucesso e um modelo de musical, cuja obsessivi_dade detalhista construa uma forma impecvel. O que conver_ tia esses diretores e esses filmes, de uma vez por todas, em

,,,rrscrltincias niveladoras e levanta um marco de ferro para ,rr;rrilo que muitos se comprazem em chamar de "cultura corrrrn". Ningum pretende colocar-se nas antpodas desse otirrrisrrro, e muito menos fazer a crtica elitista desses protestos. Nas pginas seguintes, contudo, tratarei de apresentar, ,rtrrvs ile uma srie de retratos de escritores e pintores, os tr:ros tipicamente modernos da arte, que a cultura audiovisual rl(' rorcado parece destinar a um desvo visitado apenas pelos ( ,il)ccialistas ou por pblicos muito vocacionais. Embora suas ,,lrnrs sejam expostas ou publicadas, o modelo de artista que { r,s('s retratos apresentam foi tocado por uma clara margirrrrlitlacle. Existem, sem dvida, grandes escritores cujos livros .rtrr(rn centenas de milhares de leitores; mesmo assim, um movrrrcnto como o boom da literatura latino-americana, nos anos t,{ ) r' 70, hoje atravessa uma fase quase residual, em que apenas ('', llrtores consagrados naquele tempo conservam o pblico rrr:rssivo que ento se constituiu. Os retratos que proponho tentam provar a variedade com

faanhas estticas singuares e grandes favoritos de todos os pblicos? Talvez a pergunta no esteja bem posta. provavelmente,

Hitchcock e Wyler fossem compreendidos por um pblico de massa, que consumia o cinema mais banal mas tambm Rio Grande c Hi.tria em Tquio? O que se passava com a cultura desse pblico? Sob que condies Ozu e Ford conseguiramno ser tolcradcls r margem (um no Japo e o outro nos Estados

a formulao correta seria: o que permitia que Ford ,

OzLt,

Unidos) e sim manter-se no centro de um sistema de produo

e consagrao'l

rlil(' ir irte opera. Ela cruza e superpe faixas bem diferentcs:

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tintas para obter os cinzas que se distinguem, numa escaa sutilssima, a partir dos pretos mais intensos. Suas opinies so_ bre pintura so mais breves que suas discusses sobre cinema.Decerto sua formao tcnica mais competa que sua cultura esttica. No v toda a pntura como especialista, mas conhece bem o que conhece. euando fala de pintura boa ou ruim suas opinies tm um tipo de densidade compacta e nenhum esprito de conciliao.

com que se concentra. Explica em detalhes questes tcnicas: como feito o trao do junco na pintura chinesa, quais os melhores papis para trabalhar com aquarela, como mistura as

turas. seus refinados cinzas e pretos evocam um cromatisrno que se resolve, como no cinema ou na histria em quadrinhos, de um ima_ ginrio cultural que a composio do desenho nunca teria permitido supor. A mistura de abstrao e imaginrio ficcional no causa conflito. As duas perspectivas integram diferenasem branco e preto. A abstrao dos grafismos, vistos de longe, revela, quando a perspectiva prxima, citaes

e permitem ver no vrias coisas ao mesmo tempo, mas sim, conforme o lugar a partir do qual se ajusta o foco, dois sistemas de representao que conservam o rastro de suas diferentes origens culturais.

Da mistura catica de seus gostos, seus desenhos con_ servam provas quase invisveis. Durante anos, desenhou perso_ nagens pequenos que, vistos a uma distncia .,normal,,, pare_cem meros grafismos. Tais desenhos tm uma dupla perspec_ tiva: de longe so composies abstratas, pelas quais se esten_ dem grandes massas vaporosas que formam espirais interrom_ pidas, crculos incompletos ou superfcies que no evocam ne_ nhuma geometria, mas somente a ocupao livre do plano que, por vezes, parece o grande fragmento de uma composio au_ sente; de longe, esses desenhos conseguem um movimento amplo e desenvolto sobre a base de grafismos muito pequenos.

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Vistos de perto, os grafismos revelam_se como personagens diminutos, paisagens, casteos, monstros, cavalos, moinhos, vegetaes de fico cientfica, heris de histrias em quadri_ nhos sobre a idade da pedra. Esto saturados de significao cultural, fices de terceira, cones que evocam uma espcie original de rctr pop, ou sci-fi ott contos de fada. Tolkien visi_ tando a abstrao.

lazia do diogo uma forma do conflito esttico e no uma c,rnunicao de informaes sobre o mercado de arte ou osprmios.Preservava do passado a tenso poltica (uma espcie de l)cnnanente alerta ideolgico) e o estilo de interveno vanguar_

scu territrio preferencial: ela permitia que ele empregasse uma artilharia de motivos sem sacrificar seu gosto pela hiprbole.

roga, contradiz. Diante de sua prpria obra discorria como um intelectual. Nada nele evocava a imagem clssica do pintor cntregue sua pulso como que mergulhado em guas luase clesconhecidas, nem a magem mais atual do indiferente que clesconfia da polmica e das posies fortes. A polmicaera

Pintura e razo. Falava cliante de seus quadros e no admitia que o espectaclor ficasse ensimesmado nas peripcias de sua viso. Acreditava que preciso falar da pintura e que a arte (no s a pintura, mas tambm o cinema, os romances, a msica) uma matria que o discurso captura, rodeia, inter_

As duas perspectivas desses desenhos podem ser inter_ pretadas como uma hiptese esttica sobre a mistura de cul-

rlista. Foi invariavelmente excessivo e desconheceu as estratgias de poupana do capital esttico, de reaplicao do pres_ lgio acumulado e de moderao elegante em face dos clonos rlt. galerias, colecionadores ou crticos.

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Referia-se prpria obra com a ceteza paradoxal de que no estava falando dele mesmo: tratava-se, pura e simplesmente, de pintura. Passava de seus quadros histria da pintura num gesto que tambm explica quanto de histria da pintura existe em seus quadros. Mas era totalmente hostil ao colecionismo ps-moderno da citao decorativa. No visitava o passado como um arquelogo, para inscrever em seus quadros os restos de encontros caprichosos. Como um verdadeiro moderno, conhecia a tradio a ponto de arriscar-se a parecer erudito ou

corno se fossem motivos geomtricos; as brihantes estrelas cla so atravessadas por pranos que destroem a estabi'cvoluo liclade das cinco pontas perfeitas; os vermelhos mais ricos e tlcorativos recobrem somente a metacle da tela; sobre a outra rrrctade, como um esqueeto traado prosaicamente a lpis, nlostra-se o futuro do quadro que no chegou a ser pintaclo; rr rrrtificiosa fotogenia de grupos famiriares questionacla por

pedante. Suas decises seguiam uma linha bem pensada. Escolhia suas citaes para demonstrar que o ato de pintar inclui uma reflexo sobre os procedimentos e sobre o passado da pintura. Trabalhou com as estrelas das vanguardas russas,os cones expressionistas, as naturezas mortas da representao

cspclhos que nos impedem de contemplar tranqilamente o rrrotiv