41203 Tiago de Quadros Maia Carvalho - Luciano Caroso
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CONSTATAÇÕES ACERCA DA DINÂMICA SOCIAL DE UMA COMUNIDADE MUSICAL VIRTUAL: O CLUBE CAIUBI DE
COMPOSITORES Tiago de Quadros Maia Carvalho1
Luciano Caroso2
Resumo: O Clube Caiubi de Compositores é uma comunidade virtual criada para a socialização de pessoas ligadas ao universo da música autoral. Contudo, não se pode afirmar que todas as relações que se constroem em seu espaço sejam homogêneas. O presente trabalho apresentará, numa perspectiva analítica, as principais características que delineiam as relações musicais/sociais dentro do Caiubi. Assim, discute-se a relação entre a rede virtual e a materialidade que lhe é própria, considerando que tal rede é composta de pessoas que se projetam no ciberespaço. Constata-se, assim que a dinâmica social – e musical – do Caiubi é marcada pelo exercício da diferença intracultural, demonstrada pela existência de discursos musicais fragmentados na estrutura interna da comunidade, mesmo que esta também se caracterize por sua homogeneidade. Palavras-chave: Clube Caiubi de Compositores, Comunidades Musicais Virtuais, Música e Dinâmica Social.
Introdução
O Clube Caiubi de Compositores3 é uma comunidade virtual – de adesão
gratuita – criada para agregar músicos, compositores, escritores, poetas e afins que
busquem divulgar suas produções, bem como fazer contatos de trabalho, discutir
questões relativas ao mercado da música, criação musical, entre outros. A estrutura de
seu site está voltada para atividades de criação, divulgação e discussão de música
autoral e permite a difusão da produção dos seus membros através de rádios online. Há
também a circulação de poemas através dos dispositivos comunicacionais do site. Além
disso, intensos debates ocorrem em fóruns, ou mesmo em chats, que, geralmente,
reúnem todos os membros que estão online e conectados ao site, ficando estes
disponíveis para conversação entre si. Desta forma, o Caiubi configura-se numa
comunidade específica, criada e mantida por princípios e ações – individuais e coletivas
– peculiares ao que as pessoas engajadas nesse meio desejam para si.
1Doutorado em Música (Etnomusicologia) pela Universidade Federal da Bahia. <[email protected]> 2 Professor da Universidade Estadual de Feira de Santana. <[email protected]> 3 Doravante “Caiubi”. Site oficial: < http://clubecaiubi.ning.com/>
Neste sentido pode-se olhar o Caiubi como uma rede pessoas que possuem
traços e objetivos em comum, promovendo ações que visam a legitimação da produção
musical de seus membros, tanto entre estes quanto para o público em geral.
Tal produção tem características reflexivas e generativas (BLACKING, 1995)
para os integrantes dessa rede. O site, por sua vez, é mais do que um mero dispositivo
tecnológico, cumprindo o papel de mediador e possibilitando as relações sociais
estabelecidas por seus usuários, na perspectiva de tecnologia como elemento gerador de
cultura (LYSLOFF, 2006). Sua dinâmica, formação e concepções, específicas de um
contexto ciberespacial, demonstram que
(...) a cibercultura não é um mundo acabado e ideal nem é naturalmente a configuração resultante do estágio do capitalismo contemporâneo; é antes o conjunto do emaranhado de códigos múltiplos e plurais, fruto de um constante apropriar e refazer social mediante as redes digitais (...) (SÁ, 2005, p. 24).
Este trabalho apresentará o Caiubi como uma comunidade virtual, definida aqui
como “agregados sociais que emergem na Internet quando um número suficiente de
pessoas leva a cabo discussões públicas longas o bastante, com suficiente sentimento
humano, para formar teias de relações pessoais no ciberespaço4” (RHEINGOLD, 2000,
p. xx, tradução nossa). Serão apresentadas, por meio de uma abordagem analítica,
algumas de suas características básicas, bem como sua relação com música e os
discursos dissonantes que a fragmentam. Entende-se aqui, portanto, que há uma série de
nuances que definem o Caiubi como meio de exercício de diferença intracultural
(NETTL, 2003), ao mesmo tempo em que tais embates garantem a sobrevivência do
grupo como um “todo”.
Uma comunidade virtual e sua materialidade
Não se pode dizer que o mundo virtual é desconectado do real ou do material.
Na verdade, um tem profunda relação com o outro. Nesse sentido, Lysloff (2003)
declara:
Turkle argumenta que vivemos em uma cultura de simulação, mas nós também vivemos em um mundo muito real de redes de hardwares feitas de computadores, telefones, máquinas de fax, televisões e sistemas estéreo – uma cultura material de dispositivos tecnológicos (...) – tudo preenchendo um espaço físico, quebrando ao longo do tempo e requerendo uma quantia considerável para manutenção e reposição. Entendimentos da tecnologia da mídia ou da Internet não
4 social aggregations that emerge from the Net when enough people carry on those public discussions long enough, with sufficient human feeling, to form webs of personal relationships in cyberspace.
deveriam estar divorciados das redes de materialidade construídas de dispositivos físicos e dos humanos que as usam5 (p. 237, tradução nossa).
A tecnologia não é a rede por si só, mas sim a sua relação com um mundo físico,
composto de pessoas. Estas, por sua vez, se projetam no ciberespaço, configurando
assim as comunidades virtuais.
Contudo, há comunidades e práticas musicais que só existem por intermédio de
tecnologias específicas. A comunidade musical descrita por Lysloff em seu artigo – a
“comunidade mod”6 – só existe porque há pessoas que lidam com programação e
criação musical, legitimando-se através de computadores e da possiblidade da criação
musical por intermédio de programação.
Da mesma forma, comunidades virtuais podem funcionar a partir de relações
que se delinearam por sua presença na grande rede. Carvalho afirma:
Pode-se considerar, portanto, dois tipos de relações socioculturais que acontecem através do ciberespaço: um que se desenrola quase que exclusivamente através da Web, ou seja, que não existiria sem a presença desse tipo de mediação e outro que funcionaria como uma espécie de extensão das atividades que ocorrem em meio físico (CARVALHO, 2011, p. 633).
O Caiubi vai além do que é apresentado virtualmente, mesmo que sua
virtualidade seja um fator fundamental para a compreensão de sua condição de
comunidade. Na verdade, o seu surgimento não se deu na Internet, mas aconteceu por
intermédio de um grupo de pessoas que compartilhava concepções em comum acerca da
música autoral, que se reunia num bar da rua Caiubi, em São Paulo (daí o nome da
comunidade). Lá idealizaram uma rede social em que pessoas com ideais comuns, em
outros lugares, pudessem integra-la. Dessa forma, o Caiubi, agora como site, se
desenvolveu.
Mas não é apenas o surgimento do Caiubi que se deu em meio físico. As ações
delineadas na rede se estendem a ambientes externos ao ciberespaço. Seus membros
promovem eventos que ocorrem em várias localidades do Brasil. Como a rede é
formada por compositores que, na maioria dos casos, são também intérpretes, músicos
5 Turkle might argue that we live in a culture of simulation, but we also live in a very real world of hardware networks made up of computers, telephones, fax machines, televisions, and stereo systems-a material culture of technological devices (…)-all filling physical space, breaking down over time, and requiring considerable money to maintain and replace. Understandings of media technology or the Internet should not be divorced from the networks of materiality made up of physical devices and the human beings who use them. 6 Vide LYSLOFF, 2003.
atuantes ou mesmo têm contatos com organizadores de shows, festivais, entre outros, é
comum que no espaço do Caiubi sejam divulgados tais eventos.
Um desses eventos tem um caráter muito importante de socialização presencial
dos usuários do Caiubi: as “Noites Autorais”. Estas ocorrem com certa regularidade em
várias cidades do Brasil onde residem pessoas que frequentam a comunidade virtual.
Nas Noites Autorais, músicos e autores encontram-se para compartilhar canções, trocar
ideias, se conhecerem pessoalmente, evidenciando que o potencial de sociabilidade do
site, exercitado na virtualidade, é estendido no meio físico.
Contudo, as Noites Autorais não são padronizadas. Em outras palavras, em cada
local que acontecem tendem a possuir uma natureza musical específica, baseada na
articulação regional dos compositores. Sendo assim, a noção de comunidade expressa
através do Caiubi denota unidade, ao mesmo tempo em que conota fragmentação.
Comunidade, em unidade?
A noção de cultura – ou de contexto cultural – em campos como a
Etnomusicologia, tem mudado drasticamente nos tempos atuais. Se antes se via o
contexto como uma unidade, agora, tende-se a observar as pessoas que integram esse
todo a que se chama “cultura” na perspectiva de que estas, na condição de
individualidades, têm diferentes relações com música, sendo interferida por esta de
maneira desigual. Em suma, como afirma Nettl (2003), deve-se pensar muito mais no
exercício da diferença intracultural do que na intercultural. Para Berger (1999), a cultura
não vem necessariamente de estruturas ou funções que estão “acima” das pessoas,
supostamente inacessíveis. Cultura, na verdade, emana de quem dela faz parte, de quem
a produz e regula, pelo exercício da diferença e/ou da semelhança. Assim, Berger
entende que os contextos culturais são formados através de concepções que são apenas
parcialmente compartilhadas.
É a partir daí que se percebe, numa perspectiva pós-moderna e com base nas
afirmações de Kotarba e Vannini (2009), que pessoas criam suas identidades e integram
comunidades através de escolhas. Para estes autores, a diferença social entre os tempos
passados e o atual é que a quantidade de escolhas pelas quais os indivíduos concebem o
que se totaliza como “cultura” aumentou consideravelmente, incluindo como fatores a
globalização da comunicação, do capital, entre outros. Tais fenômenos causaram um
grande fluxo de elementos (SLOBIN, 1992) – inclusive musicais – que tem mudado a
dinâmica cultural das pessoas:
(…) se existe uma característica distintiva do meio de vida dos nossos tempos é que temos uma quantidade de escolhas sem precedentes. Pergunte aos seus avós (...) sobre as escolhas deles quando eles tinham a sua idade, como quantos discos eles poderiam escolher na “loja de discos”. Você terá uma imagem diferente. E eles darão uma boa risada do seu questionamento. Eles rirão com você, é claro7 (KOTARBA; VANNINI, 2009, p. 7, tradução nossa).
Dessa forma, a música é vista aqui como um fator essencial, como uma escolha
que determina fortemente o posicionamento social das pessoas:
Escolhas musicais são escolhas culturais. Afinal música é parte do meio pelo qual escolhemos viver nossa vida. E se é de uma cultura da escolha que estamos falando, então talvez nós precisemos nos preocupar sobre quais são as consequências mais profundas dessas escolhas8 (Ibid.).
A música é, portanto, um elemento importante na definição da identidade, na
forma de vida das pessoas. Não é à toa que diversas comunidades, ao longo da história
da humanidade, surgiram com rótulos e motivações musicais, apesar de representarem
muito mais do que a música. Esse embate de escolhas musicais e, por conseguinte,
culturais, é o que marca a dinâmica de contextos como o Caiubi.
De que forma as pessoas se projetam no Caiubi? Como elas se apresentam na
rede? Turino (2008) apresenta dois conceitos que podem ajudar a esclarecer a forma
pela qual os membros do Caiubi se mostram. Trata-se dos termos self, (mantido aqui no
original) e “identidade” (identity). Self diz respeito à pessoa como um todo, numa
perspectiva analítica. Sendo assim, um compositor que faz parte do Caiubi é mais do
que isso, em se falando nele como uma pessoa em sua totalidade, que faz parte de vários
contextos e situações diferentes. Em outras palavras, esse compositor pode ser também
– por exemplo – um atleta, um pai de família, um estudante, advogado, professor, etc.
Tudo isso faz parte de um todo que se expressa em vários momentos diferentes e que
estão interligados. Identidade, por sua vez, marca a forma pela qual essa pessoa,
portadora deste self se apresenta a um contexto específico. Esse compositor que tem um
self tão variado, marcado por tantas escolhas – e imposições – demonstra parte dele,
apenas sua identidade. Assim, no contexto do Caiubi, essa pessoa cujo self se estende
7(…) if there is one distinguishing characteristic of the way of life of our times it is that we have an unprecedented amount of choice. Ask your grandparents (…) about their choices when they were your age, like how many recordings they could choose from at the “music store.” You’ll get a different picture. And they’ll get a good laugh out of your question. They’ll laugh with you, of course. 8Musical choices are cultural choices. After all music is part of the way we choose to live our life. And if it is a culture of choice that we speak of, then perhaps we need to wonder what the deeper consequences of choosing are.
aos exemplos que foram apresentados anteriormente (pai de família, advogado, etc.) se
atém apenas a uma parte dele, no caso, o que tange à sua relação com a rede
(compositor, músico, intérprete, etc.). Ou seja, no Caiubi, apesar de ser várias outras
coisas, em outros contextos dos quais também faz parte, ele se apresenta como um
compositor – e não como pai de família, advogado, etc., apesar de poder fazê-lo, se
julgar conveniente –, como alguém que se identifica – mas só em parte – com a
dinâmica social da rede.
O Caiubi, como uma rede, um meio tecnológico, se encaixa bem – através de sua
estrutura – como aporte para expressão das identidades dos seus membros. Isso fica
claro quando se percebe que as pessoas se apresentam na rede através de perfis. Numa
perspectiva cibercultural, o perfil é o meio pelo qual o membro do Caiubi demonstra
parte do seu self, ou seja, sua identidade. Lá, o compositor faz mais do que mostrar
quem é, mas ele se projeta através de suas produções, de materiais e descrições. Na
estrutura da página pessoal de cada membro há opções de se disponibilizar vídeos,
fotos, músicas, bem como apps9. O perfil pessoal também funciona como um
microblog, em que os compositores apresentam textos com reflexões, poesias,
descrições, entre outros. Todas essas ferramentas têm a função de mediar e projetar a
identidade dessas pessoas no ciberespaço, que se desdobra em aspectos sonoros,
iconográficos, textuais, funcionais, entre outros.
Considerando assim a plataforma pela qual se projetam os perfis dos usuários do
Caiubi, pode-se entender que eles são uma parte unitária da rede. Assim, uma das
principais formas de socialização que acontece no site vem a partir da interação entre os
perfis. Uma pessoa – mediada pelo seu perfil – pode estabelecer contato com outra. Em
se falando de uma rede voltada para práticas musicais, as relações acontecem por
afinidades ligadas com repertórios, práticas compositivas, inserção mercadológica,
amizades ou contatos existentes em outros espaços, entre outros. Todavia, o que importa
ressaltar é que as relações entre os perfis, com suas peculiaridades, marcam uma
fragmentação de concepções musicais dentro do todo que é o Caiubi. Apesar de não
haver a possiblidade de se criarem comunidades, as redes estabelecidas entre perfis de
usuários são agrupamentos musicais/sociais secundários à grande rede de pessoas que
integram todo o site. Cada rede de amigos é formatada por um compartilhamento de
concepções que não necessariamente tange ao universo do Caiubi como um todo.
9 Apps são softwares com funções muito específicas (GPS, jogos, leitores de notícias, conversores de medidas, entre outros) e que são agregados a dispositivos móveis, como smartphones ou mesmo sites e redes sociais.
Assim, além do discurso da rede, como uma grande comunidade de compositores, há
relações que são, ao menos em parte, dissonantes dessa perspectiva geral.
São os espaços de socialização mais abertos, que emanam da diretoria da rede
para os perfis, ou mesmo modalidades de comunicação no Caiubi que são abertas para a
participação de todos os membros, que tendem a demonstrar a variedade de discursos
presentes no site. Há ferramentas disponíveis, como chats e fóruns. O chat é aberto. Em
outras palavras, ele agrega todas as pessoas que fazem parte da rede que estão online e
disponíveis para bate-papo. Contudo, há duas formas de se usar o chat: uma primeira,
numa sala coletiva, em que todos os membros têm acesso às mensagens e outra privada,
em que duas pessoas conversam por intermédio de convite. Assim, o site oferece
suporte para relações sociais privadas, voltadas para discussões fechadas e alheias à
dinâmica “total” da rede, ao mesmo tempo em que oferece um meio totalizante de
relacionamento síncrono.
Os fóruns marcam ainda mais a variedade de discursos presentes no Caiubi. Essa
ferramenta é utilizada com vários propósitos, que vão desde a publicação de poemas,
avisos referentes ao Caiubi, notícias, divulgação de materiais, até discussões que
marcam embates de concepções musicais. As distintas formas de utilização dos fóruns
marcam discursos de como e para que se utilizar a rede. Alguns estão mais interessados
em divulgar materiais musicais, outros em compartilhar poemas. Há aqueles que travam
discussões acerca de temáticas caras ao universo musical (interpretação, influências
composicionais, direito autoral, entre outras). Tais discussões são marcadas, em muitos
casos, pela discordância, por pessoas que têm posicionamentos diferentes, mas que
integram a mesma rede. Ainda assim, pode-se dizer que a frequência de participação
nos fóruns depende do interesse de cada membro no que está sendo apresentado. Nem
todos os fóruns são visitados por todos. Sendo assim, a dinâmica desses espaços
também é fragmentada.
Por fim, vale apresentar mais um exemplo, relacionado com mais uma atividade
proposta para toda a rede e que, por sua vez, também é sintomática de uma comunidade
que apresenta em seu interior subdivisões muito específicas. O Caiubi está completando
10 anos de existência. Por isso, foi proposta pelos criadores e administradores do site a
realização de uma festa. Para angariar fundos, considerando que os membros, situados
no ciberespaço, advém de várias localidades no Brasil, foi adotado o modelo de
crowdfunding10. Assim, todos foram comunicados via fórum e e-mail. Contudo, tem
havido certa dificuldade para alcançar a quantia necessária para a realização da festa. De
acordo com e-mails que têm sido constantemente enviados para os membros do Caiubi,
a rede possui cerca de 7.500 usuários e apenas 150 pessoas – cerca de 2% de todos os
perfis – contribuíram com a festa. Quais seriam os reais motivos para a baixa
participação das pessoas? Ao que parece, nem todos os discursos que compõem o
Caiubi estão ligados com a mesma história do clube ou com a mesma dinâmica proposta
por seus idealizadores iniciais.
Considerações finais
Há outras formas de se perceber a heterogeneidade dos discursos musicais no
Caiubi. As rádios são bons exemplos disso. O site dispõe de três rádios, que são
playlists de músicas dos compositores participantes da rede. Basta ouvir as músicas de
uma das rádios – ou mesmo do playlist da página inicial do Caiubi para se perceber a
grande variedade de sonoridades e discursos musicais presente. Tais sonoridades podem
conotar gêneros musicais distintos. O conceito de gênero musical, como apresenta
Fabbri (2012) – “um gênero musical é um conjunto de eventos musicais, (reais ou
possíveis) cujo curso é governado por um conjunto definido de regras socialmente
aceitas11” (s.p, tradução nossa) – mostra que há tendências, pseudo-comunidades que
apresentam contextos musicais e concepções sociais/culturais idiossincráticas. Cada
uma parece ter a sua própria dinâmica, bem como seu próprio discurso musical.
Da mesma forma, os perfis componentes do Caiubi também apresentam
variáveis na sua compreensão. Nem sempre se trata de perfis que representam
compositores individuais. Há perfis de bandas, por exemplo. Nesses perfis coletivos a
própria ideia de autoria musical tende a se apresentar diferente dos compositores
individuais, uma vez que nem sempre a música pertence a um membro da banda, mas à
banda. O self apresentado anteriormente por Turino (2008), portanto, não é mais um,
mas são vários e a identidade não é a de uma pessoa, mas de um grupo que se diz
unidade através de uma banda. A identidade, nesse caso, parece ganhar um status de
10 Crowdfunding é um sistema de arrecadação de dinheiro. Tal prática é feita através da internet. Propõe-se algo, um evento, a compra de alguma coisa e são pedidas doações em dinheiro para outras pessoas, anônimas ou não. Aqueles que se interessam pela proposta fazem a doação através de transferências bancárias, boletos ou cartão de crédito. Geralmente, em troca da doação, dá-se um brinde. Há sites nos dias de hoje que são específicos para a prática do crowdfunding. 11A musical genre is ‘a set of musical events (real or possible) whose course is governed by a definite set of socially accepted rules’.
projeção, ou mesmo uma idealização de uma entidade que só existe através do suporte
da rede (COUTO; ROCHA, 2010).
Sendo assim, o Caiubi é mais do que o discurso que emana e figura através dos
seus idealizadores. Na verdade, há sim elementos que definem esta comunidade como
um todo. O site, antes de se ser algo que reflete diretamente as ideias de algumas
pessoas é também um espaço virtual voltado para o compartilhamento de informações e
socialização, em específico no que tange à música autoral, à composição musical, a um
posicionamento mercadológico específico, bem como à necessidade de divulgação de
materiais produzidos por essas pessoas. Contudo, é quando tais assuntos são diluídos no
cotidiano da rede que se percebe que eles são integrados a uma miríade de gêneros
musicais (FABBRI, 2012), de posicionamentos mercadológicos variados, formas de
composição peculiares, pessoas ou perfis com ideologias distintas e caminhos
específicos de divulgação de material produzido, bem como públicos restritos que se
identificam com uma música e não com outra. Tudo isso denota uma comunidade
virtual que, em suas estruturas internas, está condicionada a uma grande fragmentação
dos discursos que a compõe.
Enfim, a percepção do exercício da diferença intracultural no Caiubi é
sintomática de uma realidade que só em sua epiderme se mostra homogênea. Seu
cotidiano é marcado por cisões, rupturas, junções, concordâncias e discordâncias.
Entretanto, tais evidências não invalidam ou inviabilizam a existência dessa rede. Ao
contrário, isso apenas demonstra, a partir da perspectiva analítica apresentada neste
trabalho, que o Caiubi possui uma dinâmica específica que o constrói e reconstrói, a
todo o momento. Afirmar que o Caiubi não existe como um “todo” se mostraria
imprudente, equivocado, já que a mera existência do site, com todos os seus membros,
suas dinâmicas e discursos musicais específicos provariam o contrário.
Referências
BERGER, Harris. Metal, Rock, And Jazz: perception and phenomenology of musical experience. London: Wesleyan University Press, 1999.
BLACKING, John. Music, Culture & Experience. Chicago: University of Chicago, 1995.
CARVALHO, Tiago de Quadros Maia. Rock/metal Em Montes Claros e a Internet: espaços de interação e interatividade. In: CONGRESSO DA ANPPOM, 21., 2011. Uberlândia. Anais... Uberlândia: UFU, 2011. p. 632-637.
COUTO, Edvaldo Souza; ROCHA, Telma Brito. Identidades Contemporâneas: a experimentação de “eus” no Orkut. In: COUTO, Edvaldo Souza; ROCHA, Telma Brito
(org.). A Vida no Orkut : narrativas e aprendizagens nas redes sociais. Salvador: Edufba, 2010.
FABBRI, Franco. A theory of musical genres: two applications. Disponível em: <http://www.francofabbri.net/files/Testi_per_Studenti/ffabbri81a.pdf>. Acesso em: 20 abri. 2012.
KOTARBA, Joseph A.; VANNINI, Phillip. Understanding Society Through Popular Music. London: Routledge, 2009.
LYSLOFF, René T. A. Mozart in Mirrorshades: ethnomusicology, technology, and the politics of representation. In: In: POST, Jenifer (Ed.). Ethnomusicology: a contemporary reader. New York: Routledge, 2006.
______. "Musical Community on the Internet: An On-line Ethnography". Cultural Anthropology, v. 18 , n. 2, pp. 233-263, 2003.
NETTL, Bruno. “Reflexiones sobre el siglo XX: el estudio de los “Otros” y de nosotros como etnomusicólogos”. Transcultural Music Review, v. 7, 2003.
RHEINGOLD, Howard. The Virtual Community : Homesteading on the Electronic Frontier. Cambridge, Mass: The MIT Press, 2000.
SÁ, Simone Pereira de. O Samba em Rede: comunidades virtuais, dinâmicas identitárias e carnaval carioca. Rio de Janeiro: E-papers, 2005.
SLOBIN, Mark. Micromusics of The West: a comparative approach. Ethnomusicology, vol. 36, n 1, p. 1-87, 1992.
TURINO, Thomas. Music as Social Life: the politics of participation. Chicago: The University of Chicago Press, 2008.