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1 Comunicação produzida para ser comentada no encontro promovido pela Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), por ocasião da organização do Distrito Sanitário Leste de Roraima, em 14/08/2000, em Boa Vista. 2 Mestre em Antropologia Social, Setor de Antropologia/Museu Integrado de Roraima - MIRR Av. Brigadeiro Eduardo Gomes s/n Parque Anauá 69305-010 Boa Vista, Roraima, Brasil. Nota do autor: Agradeço à Professora, Dra. Alcida Rita Ramos (UnB) por ter realizado uma leitura preliminar deste artigo. WAIWAI: UMA DESCRIÇÃO MÍNIMA À HISTÓRIA DO CONTATO 1 Jorge Manoel COSTA E SOUZA 2 RESUMO: Os Waiwai, índios de filiação karib, habitam atualmente aldeias localizadas ao norte do Brasil, nos Estados do Pará e Roraima, além do grupo localizado no rio Essequibo, na República Cooperativista da Guiana. A população atual dos Waiwai é superior a duas mil pessoas. Neste artigo, relato o processo de contato do grupo com a sociedade ocidental, em especial, a abor- dagem realizada por pesquisadores e estudiosos da questão indígena. O tema permite conhecer a origem da etnografia waiwai, a participação e a influência dos missionários entre esta sociedade, a movimentação dos grupos locais e, por fim, conseqüências advindas do contato. Palavras-chave: Waiwai, Amazônia, índios, contato, etnografia, migração, aldeia, etnicidade. Waiwai: A little description at contact history. ABSTRACT: Waiwai, Indian of filiation karib, inhabit nowadays villages lo- cated in the north of Brazil, in state lands of Pará and Roraima, besides the group located in the river Essequibo, in Guiana. Waiwai’s current population is superior to two thousand people. In this paper report the contact process of the group with the western society, especially, the boarding accomplished for indigenous matter searching and studious. The theme allows to know the ethnography waiwai origin, the participation and missionaries’ influence in this society, the movement of the local groups and, finally, the consequences and effects of the contact. Key-Words: Waiwai, Amazonian, Indian, contact, ethnography, migration, vil- lage, etnicidade.

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1 Comunicação produzida para ser comentada no encontro promovido pela FundaçãoNacional de Saúde (FUNASA), por ocasião da organização do Distrito SanitárioLeste de Roraima, em 14/08/2000, em Boa Vista.

2 Mestre em Antropologia Social, Setor de Antropologia/Museu Integrado deRoraima - MIRR Av. Brigadeiro Eduardo Gomes s/n Parque Anauá69305-010 Boa Vista, Roraima, Brasil.

Nota do autor: Agradeço à Professora, Dra. Alcida Rita Ramos (UnB) por terrealizado uma leitura preliminar deste artigo.

WAIWAI: UMA DESCRIÇÃO MÍNIMA À HISTÓRIA DO CONTATO1

Jorge Manoel COSTA E SOUZA2

RESUMO: Os Waiwai, índios de filiação karib, habitam atualmente aldeiaslocalizadas ao norte do Brasil, nos Estados do Pará e Roraima, além do grupolocalizado no rio Essequibo, na República Cooperativista da Guiana. A populaçãoatual dos Waiwai é superior a duas mil pessoas. Neste artigo, relato oprocesso de contato do grupo com a sociedade ocidental, em especial, a abor-dagem realizada por pesquisadores e estudiosos da questão indígena. O temapermite conhecer a origem da etnografia waiwai, a participação e a influênciados missionários entre esta sociedade, a movimentação dos grupos locais e, porfim, conseqüências advindas do contato.

Palavras-chave: Waiwai, Amazônia, índios, contato, etnografia, migração,aldeia, etnicidade.

Waiwai: A little description at contact history.

ABSTRACT: Waiwai, Indian of filiation karib, inhabit nowadays villages lo-cated in the north of Brazil, in state lands of Pará and Roraima, besides thegroup located in the river Essequibo, in Guiana. Waiwai’s current populationis superior to two thousand people. In this paper report the contact processof the group with the western society, especially, the boarding accomplishedfor indigenous matter searching and studious. The theme allows to know theethnography waiwai origin, the participation and missionaries’ influence inthis society, the movement of the local groups and, finally, the consequencesand effects of the contact.

Key-Words: Waiwai, Amazonian, Indian, contact, ethnography, migration, vil-lage, etnicidade.

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4 COSTA E SOUZA, J. M.

Este artigo alude acerca dahistória do contato que conduziua sociedade indígena waiwai à in-terface permanente e crescente deenvolvimento com o mundo dosbrancos. Em particular, tentoresenhar o encontro dos Waiwai compesquisadores e exploradoreseuropeus que excursionaram pelachamada área cultural das guianas(Rivière, 1984), a partir do séculoXIX. Esse tipo de contato possuiperfil próprio. Ele permitiuproduzir as primeiras referênciasocidentais do grupo. Taisobservações evoluíram da formaincipiente de relatos de viagensà condição de narrativasetnográficas, base de construçãode etnografias propriamente ditas.O decorrer deste séculoproporcionou a pesquisadores daAmérica do Norte, da América Cen-tral e da América do Sul umainvestigação razoável a respeitodo grupo. Trabalhos etnográficosrealizados por pesquisadoresbrasileiros entre os Waiwai aindapodem ser dados como tímidos.Poder-se-ia afirmar que taisestudos contemplam mais finsestatísticos e menos etnológicos,haja vista suas característicasfragmentárias, portanto, resumidoscomo contribuição significativa àextensão do corpo etnológicoliterário produzido pelaantropologia brasileira. Ainda que“ausentes” da tradição etnológicanacional, os Waiwai representam umexpoente étnico e social naAmazônia oriental brasileira dofinal do século XX (Costa e Souza,1988). Os Waiwai pertencem àfamília lingüística karib – hojepossuem uma população superior a2 mil pessoas –, vivem em suamaioria em um aldeamento chamadona língua de Yxamna com altaconcentração demográfica, e emoutras três principais malocas(Anauá, Titkoñeri e Aaku), compopulações que oscilam entre 100e 250 pessoas. São aldeias que

contrastam com os padrões de suastradicionais habitações (mîîmo) eas formas primordiais daorganização social do grupo. Emoposição à ocupação dispersa deambientes da floresta e a altamobilidade característica dosgrupos locais ancestrais,atualmente os Waiwai desenvolveramnúcleos comunitários de poucamobilidade no estado de Roraima eao norte do estado do Pará, alémdo grupo local do alto Essequiboda Guiana, este último ocupantede uma parte do território ances-tral setentrional.

A sociedade majoritária, emespecial à dos regionais e aspolíticas desenvolvimentistaslocais, projeta expectativas de queos Waiwai muito brevemente engajar-se-ão às relações de produçãoeconômica e sociais periféricas,a exemplo do que ocorreu aos Makuxide Roraima, de modo semelhanteàquele relatado em Diniz (1972).No entanto, penso que tal projeçãoé equivocada. Tal expectativaignora uma condição êmica waiwaifundamental: o ethos waiwai. Eleenvolve, além de fundamentoscosmológicos, a tradição daexclusão e inclusão condicionantes,características muito fortes daetnicidade e da fronteira étnicaperseguidas do grupo em relaçãoaos não-índios. Nesse sentido, háque se perceber uma reunião decontingências e condiçõesidentitárias razoavelmentedefinidas e orientadas por umapolítica social elaborada pelosWaiwai que, de certa forma, geraparâmetros aos vínculos deaproximação deles ao mundo dosbrancos.

Na década de 1890 os Waiwaiestavam quase extintos. Após esseperíodo, seu reconhecimento étnico-identitário decorreu de um longoprocesso de assimilação eintercasamentos iniciadosprimordialmente com parucoto etarumã. Nos últimos trinta anosos Waiwai assumiram a hegemonia

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3 A região norte da serra Acarai pertence à República Cooperativista daGuiana; a região sul, pertence ao Brasil, e se estende pelo médio e alto cursosdo rio Mapuera e seus formadores, compreendendo áreas a sudeste de Roraima enorte do Pará.

ante seus vizinhos étnicos.Construíram para si um status queatribui grau de importância aogrupo, ao mesmo tempo em que fazdele o caminho para o conhecimentoda região, da interface do contatocom outros povos internados nafloresta e envolvidos ouperseguidos pelos Waiwai no seuintermitente processo de atração.O processo de assimilação de triboscomo karafawyana, hiskariana,xereu, mawayana, katuena, tiryo,entre outras, pelos Waiwai podeser entendido como um fator decatarse (Howard, 1993: 257-59). Nãoé um processo explicado atravésda incursão belicosa ou guerreira.Diferentemente do que costumaacontecer entre grupos vizinhosarredios ou, por exemplo, oswaimiri-atroari (cf. Baines, 1990;Sabatini, 1988) envolvidoshistoricamente em tradiçõesguerreiras. Os Waiwai costumamutilizar-se da persuasão estéticae do status que lhes são atribuídospara persuadir seus vizinhos. Hádécadas eles vivenciam longosperíodos não marcados porenfrentamentos guerreiros ou

litigiosos.

Relatos de viagens e etnografia

A revelação da existência detrês aldeias waiwai em 1837 por H.R. Schomburgk (Fock, 1963: 5, 7),parece se constituir no primeirodado informando da presença waiwaina região da serra Acaraí que, ajulgar pelas informaçõeshistóricas, pode ser caracterizadacomo verdadeiro território ances-tral do grupo, reconhecendo o altocurso do rio Mapuera e formadores(porção meridional); o alto cursodo Essequibo e as drenagensadjacentes (porção setentrional).3

Tais marcos referenciais,entretanto, parecem nunca terdelimitado a movimentação do grupo.Os Waiwai efetivamente estãoenvolvidos em uma vasta rede decomércio. Assinalada pelainteretnicidade, a rede baseia-seem trocas diversas. O exercíciodessa atividade atinge grande áreadas Guianas e envolve umacomplexidade de relações (Dreyfus,1993).

Henri, A. Coudreau contatouos Waiwai em 1884, quando produziudescrições a respeito do grupoestabelecido na serra Acaraí, noalto rio Mapuera, em seus afluentese no Essequibo. William C. Farabeeesteve entre os Waiwai na regiãoAcaraí em 1913-14, cujas pesquisassão publicadas em The CentralCaribs (1924). Farabee descreve aocupação waiwai em ambos os ladosda montanha. Walter E. Roth, em1925, encontrou-se com os Waiwaique viviam junto ao Essequibo,resultado de um movimento que osteria deslocado do Mapuera paraaquela região por volta de 1920. Aexpedição de Terry-Holden (1937)relata que os Waiwai advindos doBrasil para a Guiana se instalaramnas proximidades de Yakayaka,abrigando-se em duas aldeias(Holden, 1938: 239; Fock, 1963:8). Os dados de Terry-Holdenidentificam ainda quatro aldeiasao sul da montanha Acaraí, nasadjacências de rios formadores doMapuera, mais especificamente acimado encontro do rio Urukurin(Urucurina) com aquele. Braz Diasde Aguiar, chefe da ComissãoBrasileira Demarcadora de Limites(1930-40), faz referências àpresença de pequenas malocas waiwainas terras fronteiriças do Brasile da Guiana Inglesa, em ambas asfaces da serra Acaraí. Os trabalhosda Comissão anglo-brasileira,

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5 C. Howard defendeu recentemente (nos Estados Unidos) tese de doutoramentocujo tema central envolve os Waiwai, entretanto, até a data de elaboraçãodesta nota não tive acesso ao referido trabalho.

merecem uma menção rápida de Fock(1963: 8). Wai-Wai, publicado porNicholas Guppy em 1958, reúnedescrições aterradoras dascondições epidêmicas e lastimáveisvividas pelos Waiwai do lado me-ridional da serra Acaraí,precisamente no alto Mapuera. Éuma espécie de relatório do pa-vor, do medo e do terrorocasionados pelo contato, à modaTaussig em Xamanismo, Colonialismoe o Homem Selvagem do valecolombiano do Putumayo (Taussig,1993).

Estudos da imemorialidade daocupação waiwai no Brasil,cosmologia, organização social,xamanismo, cultura material, etc.devem ser considerados nos dadosetnográficos presentes nostrabalhos de Niels Fock: Waiwai.Religion and Society of an Amazo-nian Tribe (1963), e de J. Yde emMaterial Culture of the Waiwai(1965). Admito serem esses ostrabalhos mais amplos e abrangentesa respeito do grupo. Ambos osautores pertencentes a uma equipede etnógrafos do Danish NationalMuseum, estiveram em visita aosWaiwai entre agosto de 1954 ejaneiro do ano seguinte; entreagosto e dezembro de 1958 (CEDI,1983, v.3 :233-40; Queiroz, 1996:215). Uma outra fonte interessantepara conhecer a trajetória waiwaifoi escrita pelo repórterestadunidense Homer E. Dowdy (1963,editora Harper and Row) intituladaChrist’s Witchdoctor. Permiteconhecer facetas da relação dosmissionários da UnivangelizedFields Mission – UFM4 com o grupo,assim como traz informações quefacilitam reconhecer os antigoslimites do território ancestral ede perambulação efetiva dos Waiwai.“Wai-Wai”, artigo publicado pelaFUNAI na revista “Atualidade

Indígena” (FUNAI, 1978: 42-4),traz relatos ligeiros desertanistas conhecedores daregião, entre eles, Otávio PinheiroCanguçu, que atuou entre os Waiwai,e Gilberto Pinto Figueiredo,responsável pela frente de atraçãowaimiri-atroari. No mesmo artigoé narrado, pelo antropólogo CélioHorst, um pouco da história arespeito da conversão e da sagade Ewka, o grande xamã waiwai,tido como principal responsávelpela conversão do grupo aocristianismo. Também discorresobre a situação dos Waiwai dorio Anauá da aldeia Caxmi.Individual and Society in Guiana(1984) de Rivière, me parece sero que há de mais aglutinador emse tratando de resenhas acerca daliteratura antropológica jáelaborada e enfocando temasrelacionados a grupos waiwailocais contemporâneos. ‘Pawana: aFarsa dos “Visitantes” entre osWaiwai da Amazônia Setentrional’(1993), é um artigo escrito porC. Howard (Universidade de Chicagoe Museu Nacional do Rio deJaneiro). Howard trata da vocaçãowaiwai no processo de assimilaçãoe contato intertribal, datradicional festa de waiwaizaçãoda pessoa envolvendo a farsa, aparódia, a pantomima, adramatização..., além de explorarargumentos que levaram uma facçãodo grupo à construção do aldeamentodo rio Jatapuzinho, ajudados porparentes estabelecidos nas margensdo rio Anauá e afluentes. Explora,em especial, a chamada construçãodo sentido envolvendo a waiwaizaçãoda pessoa e a noção de tribo, aoestabelecer homologias entrecaricaturas socializantes e omundo cosmológico do grupo.5

Estudos relacionados aoparentesco, à organização social

4 Traduzida como “Missão para os Campos não Evangelizados”.

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e a relações de gênero entre osWaiwai podem ser vistos em G.Mentore (1983-4). Mentore é hábilao explorar tais característicasda vida social waiwai.Investigações etnográficas deigual importância considerandoaspectos diversos do grupo sãoencontradas em P. Frikel (1957),Evans & Meggers (1960-4, 1971),R. Dogon (1967), J. Morton (1979)e Queiroz (1996). Atualmente C.Machado (Universidade de São Paulo)desenvolve pesquisa entre os Waiwaide Titkoñeri (Jatapuzinho).

O contato missionário e amovimentação transnacional Waiwai

A imigração massiva dosWaiwai para a ex-Guiana Inglesateve início na primeira metade dosanos cinqüenta com a instalaçãoda “Missão Canashen”, no Essequibo.Mantida pela Univangelized FieldsMission, com sede em Baltimore,nos Estados Unidos (Dowdy, 1997:nt), a Missão não perece tersofrido impedimentos maiores quedificultassem a atração e aimigração de índios que habitavama calha dos rios Mapuera,Trombetas, Nhamundá e Paru de Oestepara a Guiana. Muito pelocontrário, a política indigenistabrasileira até colaborou, à medidaque impunha um estado de abandonoaos índios, largando-os à própriasorte; por outro lado, a persuasãomissionária estabelecida no altoEssequibo convencia os índios deque Canashen era melhor para eles.O êxodo contínuo das populaçõesindígenas do Mapuera, Trombetas,Nhamundá e de seus formadoresensejou o envio de uma comissãomilitar brasileira à região defronteira para averiguar asituação. Em 1959 ocorreu umaimportante expedição de interessemilitar, do Serviço de Proteçãoaos Índios – SPI e dos religiososfranciscanos da Sociedade dos Pa-dres Missionários da Prelazia deÓbidos que, juntos, estabeleceram

a “Missão Erepecuru” entre os tiryóno alto rio Paru de Oeste, nafronteira do Brasil com oSuriname. Chamada “OperaçãoMapuera”, reconhecida como operaçãoMapex, a comissão visitou a regiãoao final do ano de 1962 e março doano seguinte, comandada peloBrigadeiro João Camarão TellesRibeiro. O resultado do encontroentre a Comissão e a Missão emCanashen não inverteu nem modificoua situação de “fuga” dos índios“brasileiros” para a Guiana, àépoca motivados por uma propostamissionária salvacionista. Aexpedição do Brigadeiro JoãoCamarão Teles Ribeiro (“BrigadeiroCamarão” como era conhecido pelosíndios da região, denotado por suafilosofia e ética durante contatos,organizador dos chamados trinômiosFAB, índios, missão) não obtevesucesso nessa empreitada, por contada já citada malograda políticanacional indigenista (cf. CEDI,1983, v. 3: 190,91-233).

A ‘Missão entre os Waiwai’,instalada na Guiana, reuniu osWaiwai por quase 20 anos. Empenhou-se em formar lideranças espirituaisque influenciariam definitivamenteos rumos futuros do grupo.Lideranças como as de Ewka, Yukuma,Mawaxa, Yakuta, Kirpaka, Xexeua,Tamokrana, foram “preparadas” aolongo desse tempo para fazer dopovo Waiwai uma nação de “crentes”por excelência, com um propósito:contatar e converter outros gruposindígenas dispersos pela Amazôniaoriental, tomados pelos waiwai comotirwoñe (ferozes e irados),carentes de civilidade e daverdadeira condição humana. OsWaiwai utilizaram-se do acessoprivilegiado aos bens de trocaoferecidos pelos missionários, doconhecimento da escrita, da terapiamédica ocidental, entre outros eassumiram a eminência dentro dosistema regional aumentando, destaforma, rapidamente a dimensão deseus aldeamentos compósitos(Howard, 1993: 229-235; Frikel,

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6 Trata-se de um movimento armado, de orientação política contrária ao modelosocialista perseguido ou sugerido pelo governo local para o país à época. Omovimento armado foi protagonizado por um pequeno grupo de famílias brancasimigrantes ou de ascendência européia, residente em Lethem e arredores.Ideologicamente o grupo supunha que o governo de Gerogetown estatizaria apropriedade, confiscaria bens particulares e hostilizaria a iniciativa pri-vada. O movimento foi esmagado pelo governo, seus mentores refugiaram-se naVenezuela e no Brasil e suas propriedades e riquezas foram apropriadas pelo

Estado.

1970: 29-30, citado em CEDI: 1983;Guppy 1958: 19-20, citado em CEDI:1983).

Em 1971, em conseqüência domovimento revolucionário6 ocorridoentre os anos de 1968/69, e oabandono do interesse inglês pelaex-Colônia, manifestadoformalmente a partir de 1966, ogoverno de tendências socialistasinstalado na Guiana inviabilizoua permanência da Missão no inte-rior do país (CEDI, 1983, v.3:234). Uns poucos índiospermaneceram no Essequibo, amaioria envolveu-se em um outromovimento migratório de volta aoBrasil, dispersando-se através doantigo território ondetradicionalmente viviam. O Surinameacolheu parte desse contingente ,vez que também havia contribuídopara o primeiro processo migratórioque levou à construção de Canashen,com populações de tiriyo. Os Waiwairegressaram para o Pará e Roraima.(CEDI, 1983, v.3: 234-8). Amovimentação dos índios foi seguidapelos missionários que se dividirame optaram por integrar aorganização missionária MissãoEvangélica da Amazônia - MEVA,estabelecida em Boa Vista, e àMissão Cristã Evangélica do Brasil- MICEB, a qual se estabeleceu noMapuera, em 1976 (id.). Gruposwaiwai passaram então a empreenderexpedições à procura de índiosisolados para contatá-los eevangelizá-los. Vasculharam oNhamundá, o vale do Jatapu, regiõesdo Anauá e rio Novo. As expediçõesindígenas lideradas por Ewkacontataram, principalmente, oskarafawyana autocontidos noterritório de influência dos

Waiwai, quando algumas famíliasforam conduzidas para a aldeiaYxamná ou Mapuera, no médio cursodo rio do mesmo nome.

O estabelecimento das duasprincipais aldeias waiwai numadistância aproximada de 300km emlinha reta, no sentido Sul-Noroeste, onde Yxamná está ao sul,no estado do Pará e Kaxmi anoroeste, em Roraima, no rio Novo,afluente do Anauá (cf. FUNAI, 1978;CEDI, 1983, v.3) fez crescer amovimentação waiwai na área. Apartir de 1981 os Waiwai do Mapuerapassaram a utilizar com maiorfreqüência esse espaço territorialao empreenderem suas longas viagensque chegam a durar semanas. Oitinerário dessas viagens no in-terior do território descreve umatrajetória sinuosa cujo curso seconfunde com a sinuosidade dosigarapés Itxawau, Yukutu; dos riosBaracuxi, Jatapuzinho Jatapu;veredas abertas da BR 210 e, porfim, o rio Novo (Id).

A experiência waiwai emCanashen, que concentrou ademografia de grupos domésticos,contrária aos padrões tradicionaisde ocupação da floresta e aecologia do grupo, intensificou apulverização de sua organizaçãosocial, já atingida pelas amplasalianças de casamentosinterétnicos, desde quando osWaiwai espalharam-se em pequenosgrupos localizados ao longo dasbacias do Trombetas, Mapuera eNhamundá. As grandes aldeiascompósitas pós-contatoconcentraram-se em locaisestratégicos, entretanto, sem adevida assistência do órgão oficiale sem o acompanhamento missionário

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diário ao qual estavam submetidosnos anos seguintes à imigração paraa Guiana. Conclui-se que a formade ocupação do territóriomodificou-se profundamente, emdecorrência da experiência vividanos aldeamentos artificiais.Inúmeras características queorientavam a vida social,religiosa, cultural e político-econômica organizada nos settle-ments “primitivos” desapareceram.

Os Waiwai como grupo têmcrescido em população e emparticipação na economia informala que estão sujeitos nas suasrelações de troca, comércio eserviços com o mundo dos brancos,mas estão longe de assimilar ditasrelações como configuraçõesavançadas de suas sociedades.Expressam tão-somente umaexperiência ou fase pronunciada desua história do contato. Trata-sede uma experiência de trocassimbólicas e reais. Uma marcanteinterface do contato, explicitadana forma de interagir em umafronteira de tensão permanente eexcludente. O processo que seestabelece nesta relação tensa onborder “prepara” o Waiwai que sesente atraído irresistivelmentepelo mundo dos brancos (percebeque não há equivalências ouhomologia no plano socioeconômicoentre ambas as sociedades). Sériosabalos têm recaído sobre aestrutura da organização socialpolítica e econômica waiwai.Induzidos pelos brancos e tentadospela necessidade, os Waiwaiintroduziram outras práticasrelacionadas à obtenção de recursoscompensatórios e coadjuvantes à suaeconomia baseada na horticultura,complementada através da caça eda pesca, além das coletas sazonais(Costa e Souza, 1988).

Conseqüências e assimilaçõesdecorrentes do contato

Analisando o conjunto deinfluências e interações que

afetaram o ethos e a vidatradicional dos Waiwai a partirdo início dos anos cinqüenta,período de maior ampliação dosníveis do contato é possível, demaneira sintética, relacionar umaseqüência de mudanças: 1) a trocada habitação comunal ocupada peloepeka (grupos de irmãos) para omodelo ocidental da casa ocupadapela família nuclear; 2) a anulaçãoda figura política e espiritualdo xamã, fundamentada e diretamenterelacionada ao sistema de crençase da própria cosmologia do grupo,substituído pelos kamuñimune(pastores índios), imbuídos dareorganização da vida social naaldeia, através da criação deconselhos (instituição compostasde Kamuñimune) que deliberam acercadas regras sociais, considerandoa doutrina e a moral missionadas;3) o surgimento de grandes aldeiascompósitas, o que envolve o grupolocal numa preocupação extra, ada escassez precoce daspotencialidades e dos recursosnaturais dispostos à sua volta,considerando também a dependênciado grupo aos produtos origináriosda sociedade ocidental; 4) aintrodução irreversível deinstrumentos e artefatosculturalmente desenvolvidos pelasociedade ocidental, e a fomentaçãoirresistível às coisas damodernidade (motores de popa,motosserras, indumentária,utensílios de pesca, arma de fogo,tv e vídeo, e outros hábitosalimentares incluindo o açúcar eo sal; 5) a sustação da exibiçãode rituais e festas manifestas natradição cosmológica e mítica, comoas festas, danças e rituais designificado profundo para o sistemasimbólico do grupo, e a proibiçãoconseqüente da ingestão de bebidasfermentadas utilizadas nosfestivais; 6) a supressão damitologia e da etnociência waiwai,entre os “convertidos”, e adependência aos conhecimentosocidentais como os da medicina,

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por exemplo; 7) a interferêncianas regras tradicionais do sistemade parentesco, modelostradicionais de união entrecasais; 8) a proibição dos tabuse evitações relacionados à dieta;9) a memória, por parte dos índios,do vigor da política protestanteanti-fetichista (cf Costa e Souza,1988: 188-9; Fock, 1963: 126;Queiroz, 1996: 225; CEDI, 1983,v.3: 233).

Ademais, como diz CalaviaSaéz (1998: 1-30) “... se já fala-mos em ‘encontro de cosmologias’e ‘encontro de sociologias’ pode-ríamos qualificar o acontecidoentre o MNTB e os Wai-wai como um‘encontro de políticas’ (...) ‘Ín-dios crentes’ ou ‘índios missio-nários’, os Wai-wai têm achado nanova religião um meio de arcabouçaruma sociedade mais ampla, e paradefinir um lugar no desconcertointerétnico do norte amazônico” .

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