3aEdiÇão - edisciplinas.usp.br

12
3aEdiÇão

Transcript of 3aEdiÇão - edisciplinas.usp.br

Page 1: 3aEdiÇão - edisciplinas.usp.br

3aEdiÇão

Page 2: 3aEdiÇão - edisciplinas.usp.br

Robert Soam

traduçãoFernando Mascarello

INTRODUÇAOATEORIA DO CINEMA

Coleção Campo Imagético

O cilzema possuí hde zzma dinâmica que muífas vezes extrapoZa as tradições

históricas dentro das qt4aÍs sejormou. O Campo Imagético, asdm perzsado, abre-sesobre horizontes diversos da expressão artística: a fotografia, a televisão, a vídeo-arte,

as médias digitais, o documentário, o $tme de ficção. Esta coteção pretende explorar o

eüo cÍlzematagr(ÍPco em sua tradição clássica ou de vanguarda, em sua express40autoras ou industrial, em sua forma documentário ou ficcional, em sua dimensão

historiográfica ou analítica. Interagindo com o conjunto das ciências humanas e com

as artes, o cinema situa-se em vórtice privilegiado para se pensar a criação artística

que tem como matéria a imagem/som mediada peh comera.t,.:S.ü..« Gnb. Bm-9''

ZO'?

Page 3: 3aEdiÇão - edisciplinas.usp.br

O romancista e cineasta Alexandre Astruc preparou o caminho para oautorismo com o seu ensaio de 1948 "Birth ofa new avant-garde: The camerapen'; no qual sustentou que o cinema estava se transformando em um novomeio de expressão análogo à pintura ou ao romance. O cineasta, afirmavaAstruc, deveria ser capaz de dizer "eu" como o romancista ou o poeta.' Afórmula da ca/Hera st7/o ("câmera-caneta") valorizava o afo de filmar; odiretor era não mais um mero serviçal de um texto preexistente (romance,

peça) mas um artista criativo de pleno direito. François TruHaut tambémdesempenhou um papel importante com suas agressões estratégicas contra ocinema francês institucionalizado. Em seu célebre ensaio-manifesto, "A

certain tendency of the French cinema'; publicado em 1954 nos Ccz/ziers du:Círzéma, TruHaut descompôs a "tradição de qualidade" que transformava osclássicos da literatura 6'ancesa em filmes previsivelmente bem-adornados ebem falados, seguindo estilisticamente sempre a mesma fórmula. Truüautchamava a esse cinema arcaico, de uma maneira bastante edipiana, cirzéma de

papa (os proponentes do Novo Cinema Alemão, em 1962 em Oberhausen,também se referiram a um l)addy's cinema ). Trudaut ridicularizava a tradiçãode qualidade como um cinema enfadonho, acadêmico e de roteiristas,celebrando, ao mesmo tempo, o mais vital cinema popular independentenorte-americano de Nicholas Ray, Robert Aldrich e Orson Welles. A tradiçãode qualidade, para ele, reduzia o cinema a uma mera tradução de um roteiropreexistente, quando deveria ser visto como uma aventura em aberto nocampo da /77íse-en-scêne criativa. Embora o cinema francês se orgulhasse deser "antiburguês': bradava Truffaut, era em última instância feito "por

burgueses para burgueses': a obra de /ífférateurs que desprezavam esubestimavam o cinema. Ê difícil superestimar a natureza provocativa da

intervenção de Truaaut, em especial o seu apoio ao cinema norte-americanona era do "engajamento" sartriano e do domínio da esquerda na culturafrancesa, quando os Estados Unidos, para os intelectuais ú'anceses, soavam a

macarthismo e guerra õ'ia, e Hollywood significava a poderosa fábrica desonhos que destruirá grandes talentos como von Stroheim e Murnau.

Para Truaaut, o novo cinema se assemelhada a quem o realizasse, nãotanto pe[o conteúdo autobiogránlco, mas pe]o esti]o, que impregna o Gumecom a personalidade de seu diretor. Os diretores intrinsecamente vigorosos,

0CULTOAOAUTOR

da Liberação.

1. O ensaio de Astruc foi originalmente publicado em Zcrarz Françafs, n. 144, 1948, tendo sidoincluída em Peter Graham (org.). 7be nm' Nave (Londres: Secker and Warburg, 1969), pp. 17 23.

Introdução à teoria do cinema 103

l02 Papirus Editora

Page 4: 3aEdiÇão - edisciplinas.usp.br

restúdios

talento sobressairá, nãoos filmes norte-

sua obra entrara em declínioseus filmes

Rohmer e Claude

Hitchcock era tantaobra desenvolvia-se

de culpa" à moda

de o princípio daHollywood, os filmes

novamente" (1973, P. 37)

195 1, os Cahíers du Cinema tornaram-autorismo. Seus críticos viam o

estética e pela pise-on-de entrevistas

Buóuel, Rossellini,

e Visconti se submeteram àde 1957,"La politique des

artística, do fatorde sua

': Os críticos da

ou seja, os que aderiam às

lhes eram passados, e autores, queuma auto-expressão.

nos anos 50, a idéia em sl

caracterização do cinema

aos artistas cinematográficos o

1921 , o cineasta mean Epsteln, emtermo "autor" em referência a

e Eisenstein haviamliterários de

Rudolf Arnheim (1997,

do pós-guerra, noestruturante para a

cinematográfico

"olhar" castrador do studio s7srem.

Enquanto isso, do outro lado do Atlântico, revistas de cinema norteamericanas do final dos anos 40 haviam antecipado a discussão autoral ao

polemizar sobre a importância relativa dos vários integrantes da equipe deprodução. Lester Cole defendia o roteirista; Joseph Mankiewicz, o diretor-roteirista, e Stanley Sho6ield comparou a arte cooperativa do cinema àconstrução coletiva de uma catedral. Todos esses argumentos eram esforços

para reivindicar origens artísticas, e se pautavam pelo desejo de mostrar que ocinema era capaz de transcender sua forma artesanal, industrial de produção,incorporando uma visão singular, "assinada': Também é possível identiâcarum impulso autoral romântico nos escritos de vanguardistas norte-americanos como Maya Deren e Stan Brakhage. A primeira, em um ensaio de1960, refere-se à "extraordinária amplitude expressiva" do cinema, às suas

afinidades não apenas com a dança, o teatro e a música, mas também com a

poesia, no sentido de que "pode justapor imagens'l e com a literatura emgeral, no sentido de que "pode conter em sua trilha sonora as abstraçõesexclusivas da linguagem': Brakhage, em um ensaio de 1963, projeta o artistanão tanto como um autor, mas como um visionário, o criador de um mundo

;sem palavras "resplandecendo em uma variedade infindável de movimentos e

'em gradações incontáveis de cor': O cinema, para Brakhage, é uma aventurano campo da percepção, em que o diretor pode se utilizar de técnicastransgressivas sobreexposição, 61tros naturais improvisados, cuspidas naslentes -- para provocar uma visão transperspectiva do mundo.

No período do pós-guerra, o discurso cinematogránlco, da mesmaforma como o literário, passou a orientar-se em torno de uma constelação deconceitos como escritura, escrita e textualidade. Esse trapo grafológico foi

predominante no período, da câmera-caneta de Astruc à posterior discussãode Metz de "cinema e escritura" em l,inguagenz e cinema ( 197 1 ). Os diretores

da Houve/Je pague eram particularmente adeptos da metáfora escritural -- o

que não surpreende, visto que muitos iniciaram suas carreiras comojornalistas que compreendiam os artigos e os filmes simplesmente como duas

formas possíveis. de expressão. "Estamos sempre sós': escreveu Godard ( 1 958)

algo melodramaticamente, "seja no estúdio ou diante da página em branco':

Agnês barda, logo antes de realizar l,a poinfe courfe, anunciou que iria "fazerum filme exatamente como se escreve um livro" (citado em Philippe 1983, p.

17). Os filmes dos diretores da Houve//e vague "encarnavam" essa teoriaescritural. Não por acaso, por exemplo, o primeiro filme de TruHaut, Osíncompreendfdos, está repleto de referências à escrita: o plano de abertura com

os alunos escrevendo; a imitação de Antoine da caligrafia de sua mãe; seu

l04 Papirus Editora

Introdução à teoria do cinema 105

Page 5: 3aEdiÇão - edisciplinas.usp.br

convencionais, o inimigo a ser repudiado.

Como produto da conjunção entre cineâlia (ceZluphagie) e uma veia

influências, combinando noções românticas de expressão artística, noçõesformalistas-modernistas de descontinuidade e â'agmentação estilística e uma

atração "proto-pós-moderna" pelas artes e gêneros mais "baixos". O pontoverdadeiramente escandaloso da teoria do autor estava não tanto na

glorificação do diretor como equivalente em prestqlo ao autor literário, masexatamente em qtzem era depositado esse prestígio. Cineastas como Eisenstein,1;=;=:'Üii:! fo« «Àp" "-;:d«,d.; ;«'.";, p''q" " "bi' q"'detinham controle artístico sobre suas produções. A novidade da teoria doautor estava em sugerir que também cineastas de estúdio como Hawks eMinnelli eram autores. O cinema norte-americano, que sempre foradassicamente o "outro" diacrítico da teoria francesa do cinema, aquele contra

o qual esta se definira, do mesmo modo como a suposta 'vulgaridade" dacultura no rte- americana de há muito fornecia o contraponto diacrítico para a

identidade nacional francesa, transformava-se agora, surpreendentemente,

em modelo para um novo cinema õ'ancês.

Surgida em um ambiente de intensa polemica, a poZifrque des aufezzrstraduz-se literalmente por "política dos autores': e não "teoria do autor't Na

França, o autorismo foi parte de uma estratégia para a.viabilização de umnovo tipo de cinema. Constituiu, portanto, tanto inspiração .quanto

rígidas hierarquias de produção, sua preferência pela filmagem em estúdio e

seus procedimentos narrativo.s convencionais. Estavam defendendo tambémos direitos do diretor perante o produtor. O desprezo, de Godard, que opõe o

poliglota, educado e humano autor Fritz Lang ao vulgar e ignorante produtorhollywoodiano Prokosch, traduz cinematogra6lcamente essa faceta da"liberação autoral" do diretor. Uma teoria com raízes ideológicas noexpressionismo romântico pré-modernista serviu, paradoxalmente, paramuniciar um cinema resolutamente modernista em sua estética e aspiração,

de que são exemplos filmes que deâniram uma época, como Hfros/cima, n7euamor e Acossado.

Em suas manifestações mais extremadas, o autorismo pode ser vistocomo uma forma antropomórfica de "amor" pelo cinema. O mesmo amoranteriormente devotado pelos fãs às estrelas ou pelos formalistas aosprocedimentos artísticos, os adeptos do autorismo agora devotavam aoshomens que em sua grande maioria eram, de fato, homens -- queencarnavam a idéia autoral de cinema. Ressuscitou se o cinema como uma

religião secular; a "aura" novamente estava em vigor, graças ao culto ao autor.Ao mesmo tempo, porém, Bazin tomava distância dos excessos coléricos dos

tjovens turcos. Com sua percepção costumeira, alertou, em 1957, contraiqualquer "culto estético da personalidade" que transformasse diretorespreferidos em mestres infalíveis. Indicou, também, a necessidade decomplementação do autorismo com outras abordagens tecnológicas,históricas, sociológicas. Grandes filmes, afirmou, são o resultado da interseçãofortuita de talento e momento histórico. Ocasionalmente, um diretor apenas

mediano -- Bazin cita Curtiz em CasabZanca é capaz de registrar vividamenteum momento histórico, sem por isso se qualificar como um verdadeiro autor.O controle de qualidade assegurado pela bem azeitada máquina industrial

hollywoodiana, além disso, praticamente garantia uma certa competência emesmo elegância. Bazin apontou o paradoxo de os críticos de orientaçãoautoral admirarem o cinema norte-americano, "onde as injunções sobre aprodução são mais significativas que em qualquer outro lugar'! mas, aomesmo tempo, deixarem de admirar o que, em última análise, era o maisadmirável de tudo: "A genialidade do sistema, a riqueza de sua tradiçãosempre vigorosa e sua fertilidade quando do contato com novos elementos"(Hillier 1985, pp. 257-258).

106 Papirus EditoraIntroducão à teoria do cinema 107

Page 6: 3aEdiÇão - edisciplinas.usp.br

ídante consciente, lançou as bases do estruturalismo.

cinema é o de arte.

A QUESTÃO DA LINGUAGEMCINEMATOGRÁFICA

75

A passagem da teoria clássica do cinema de Kracauer e Bazin para a

semiologia do cinema é reflexo de transformações mais generalizadas nahistória do pensamento. A semiologia do cinema resulta ainda detransformações nas instituições culturais francesas: a expansão do ensinosuperior e a abertura de novos departamentos e novas formas de investigação;novas editoras interessadas em publicar obras transdisciplinares comoMitologias, de Barthes; novas instituições como a École Pratique des HautesÉtudes (onde lecionaram Barthes, Metz, Genette e Greimas); e novosperiódicos como CommunÍcafions. O número 4 de Communícafíons, em 1964,apresentava o modelo lingüístico-estrutural como o programa do futuro, e oensaio EJenzelzros de semíología, de Barthes, seria o esquema preliminar para

um abrangente prometo de pesquisa. O número 8, dois anos mais tarde, sobre a"análise estrutural da narrativa'! formulou um projeto narratológico queseria desenvolvido ao longo de várias décadas.

Na esteira da obra de Lévi-Strauss, uma ampla gama de domínios

aparentemente não-linguísticos passou à jurisdição da lingüística estrutural.Na verdade, os anos 60 e 70 podem ser vistos como o apogeu do"imperialismo" semiótico, quando a disciplina anexou vastos territórios defenómenos culturais para investigação. Tendo em vista que o objeto dapesquisa semiótica poderia ser qualquer coisa passível de formulação como

um sistema de signos organizados segundo códigos culturais ou processossigni6lcantes, a análise semiótica podia ser facilmente aplicada a áreas até

126 Papirus EditoraIntrodução à teoria do cinema 127

Page 7: 3aEdiÇão - edisciplinas.usp.br

Tames Bond e o cinema comercial de entretenimento.

verdade, de qualquer outra lingüística).

Metz deu primazia a um vocabulário técnico retirado à linguística e ànarratologia(diegeds, paradigma, sintagma).

Com Metz, passamos do que Casetti( 1999) denomina o "paradigmaontológico" ao estilo de Bazin para o "paradigma metodológico': Embora sejaclara a sua fundamentação no trabalho precedente dos formalistas russos, eainda nos de Marcel Martin (1955) e François Chevassu (1963) e,

particularmente, no de Jean Mitry ( 1963, 1965), Metz aportou ao campo umnovo grau derigordisciplinar.

Em poucos anos, uma série de importantes estudos foram publicadostendo como objeto a linguagem cinematográâca, com destaque para as obras.4 segn@cação do cinema ( 1968) e l,ifzguagem e cilzema ( 1971), ambas de Metz;

Empirismo erefico, de Pasolini; .A estrtzMra az4senfe, de Eco; Semiofíca ed esfefica(1968), de Emiho Garroni; Cinema; l,irzgtla e scriüura (1968), de GianfrancoBettetini; e Sins and meaníng ín fhe c{/lema ( 1969), de Peter Wollen, todas as

quais abordavam, de alguma forma, as questões levantadas por Metz. (Otrabalho realizado pelos italianos, como assinalam Giuliana Muscio e RobertoZemignan, geralmente tem sido 61trado pelas instâncias 6ancesas.y

Dentre essas obras, a mais influente foi .A s@niWcação do cilzema, de

Metz. Conforme definiu o autor, seu objetivo principal foi "ir a ftJndo nametáfora lingüística': testando-a contra os conceitos mais avançados dalinguística contemporânea. Como base da discussão metziana, encontrava-sea questão metodológica ftJndante de Saussure com relação ao "objeto" do

estudo ]ingüístico. Metz procurou pela contrapartida, em teoria do cinema, aopapel conceptual desempenhado pela língua (langue) no esquema saussuriano.De modo bastante semelhante à conclusão de Saussure, de que o objetivo da

investigação lingüística deveria ser o de extrair, da plwalidade caótica da fda(paroZe), o sistema abstrato de significação de uma linguagem, isto é, suasunidades básicas e suas regras de combinação em um dado ponto no tempo,

Metz concluiu que o objetivo da cine-semiologia deveria ser o de extrair, daheterogeneidade de sentidos do cinema, seus procedimentos básicos designificação, suas regras combinatórias, com vistas a apreciar em que medida

essas regras se assemelhavam aos sistemas diacríticos de dupla articulação das

'línguas naturais't

Para Metz, o cinema é a instituição cinematográfica tomada em seusentido lato, como fato sociocultural multidimensional que inclui os

l Ver "Francesco Casetti and ltalian film semiotics'; CinemalozzrnaZ 30, n. 2(inverno de 1991)

128 PapirusEditoraIntrodução à teoria do cinema 129

Page 8: 3aEdiÇão - edisciplinas.usp.br

acontecimentos pré-fílmicos (a inca-estrutura económica, o sfudio s7stem, a

tecnologia), p6s-fílmicos (a distribuição, a exibição e o impacto social oupolítico do cinema) e a-Mmicos (a decoração da sala de cinema, o ritual socialda ida ao cinema). "Filme': por outro lado, é um discurso localizável, umtexto; não o objeto físico dentro de uma lata, mas o texto signi6cante. Aomesmo tempo, aponta Metz, a instituição cinematográâca também é parteconstitutiva da multidimensionalidade dos próprios filmes, como discursos

delimitados que concentram uma intensa carga de sentido social, cultural e

psicológico. Dessa forma, o autor reintroduz a distinção entre filme e cinemarzo interior da própria categoria "filme'! isolada agora como o objeto próprio e

específico da semiologia do cinema. O "cinematográfico" representa, nessesentido, não a indústria, mas a totalidade dos filmes. Assim como um romance

está para a literatura ou uma estátua para a escultura, argumenta Metz, o filmeestá para o cinema. Aquele se refere ao texto Hlmico individual, este a umconjunto ideal: a totalidade dos filmes e das suas características. No interior do

fümico, portanto, encontra-se o cinematográfico.

Portanto, Metz delimita o objeto da semiótica como o estudo dosdiscursos, dos textos, e não do cinema no sentido institucional mais amplo -

entidade por demais multifacetada para constituir o objeto próprio da ciência

nlmolingüística, da mesma maneja como a ída (parolo) fora para Saussure

um objeto excessivamente multiforme para constituir o objeto própjlio daciência linguística. O trabalho inicial de Metz orientou-se pela questão de se ocinema era uma língua (langt4e) ou uma linguagem (hngage). O autor começa

descartando a imprecisa noção de "linguagem cinematográfica" que até então

prevalecerá. Nesse contexto, explora a comparação, habitual desde osprimórdios da teoria do cinema, entre plano e palavra ou entre sequência e

oração. Para Metz, diferenças importantes tornam problemática a analogia:

4. O plano é uma unidade tangível, ao contrário da palavra, que é umaunidade lexical puramente virtual para ser usada conforme odesejo de quem fala. A palavra "cachorro" pode designar qualquertipo de cachorro, ao passo que um plano cinematográfico de umcachorro nos diz, ao menos, que estamos vendo um determinadotipo de cachorro com um determinado tamanho e aparência,amado de um ângulo específico com um tipo específico de lente.Mesmo que os cineastas possam "virtualizar" a imagem de umcachorro por meio de uma contraluz, um foco difuso ou umadescontextualização, o que Metz argumenta, de modo geral, é que oplano cinematográfico se assemelha mais a um enunciado ou 6'ase

("eis aqui a imagem de uma silhueta em contraluz do que parece serum enorme cachorro") que a uma palavra.

Os planos, ao contrário das palavras, não adquirem sentido por

meio do contraste paradigmático com outros planos que poderiamocorrer no mesmo ponto da cadeia sintagmática. No cinema, osplanos fazem parte de um paradigma que, de tão aberto, deixa de

ter sentido. (Os signos, no esquema saussuriano, mantêm dois tiposde relações: a paradigmática, relativa às escolhas com base em um

conjunto "vertical" virtual de "possibilidades comparáveis" -- por

exemplo, o conjunto de pronomes em uma oração easintagmática, relativa a uma disposição horizontal sequencial emum todo significante. As operações paradigmáticas dizem respeitoà seleção e as sintagmáticas, à combinação em seqüência.)

5

A essas discrepâncias entre planos e palavras, Metz acrescenta outra,

referente ao meio em seu conjunto: o cinema não constitui uma linguagemamplamente disponível como um código. Todos os falantes de inglês a partir

de uma certa idade aprenderam a dominar o código do inglês -- são capazes,portanto, de produzir orações -- mas a capacidade para produzir enunciados

Hlmicos depende de talento, formação e acesso. Em outras palavras, para falar

uma [íngua, basta usá-]a, ao passo que "falar" a linguagem cinematográfica é

sempre, em certa medida, inventa-la. Naturalmente, poder-se-ia argumentarque essa assimetria é historicamente determinada; pode-se cogitar de umasociedade futura na qual todos os cidadãos terão acesso ao código daprodução cinematográâca. Na sociedade tal como a conhecemos, porém, éválido o argumento de Metz. Existe, além disso, uma diferença fundamentalentre a diacronia da língua natural e a da linguagem cinematográfica. Esta

l Os planos são numericamente inânitos, ao contrário das palavras(tendo em vista que, a princípio, o léxico é finito), mas de formasemelhante às bases, as quais podem ser construídas infinitamentecom base em um número limitado de palavras.

Os planos são criações do cineasta, ao contrário das palavras(preexistentes nos léxicos), mas, uma vez mais, da mesma formaque as frases.

O plano oferece uma enorme quantidade de informação e deriqueza semiótica.

2.

3

130 Papirus Editora Introdução à teoria do cinema 131

Page 9: 3aEdiÇão - edisciplinas.usp.br

de um Picasso ou um Joyce.

Metz concluiu que o cinema não é uma língua, mas uma linguagem.

ordenatórios específicos.

Boa parte do debate inicial grava em torno da questão das unidades

cinematográfica, para Pasolini, consistia nos diversos objetos signiâcantes domundo real presentes no plano. Em seu entendimento, a linguagem dos im-signos era a um só tempo extremamente subjetiva e extremamente objetiva.Pasolini postulava como unidades mínimas do 61me os "cinemas'; isto é, osobjetos representados em um plano cinematográfico, os quais, diversamentedos fonemas, eram numericamente infinitos. O cinema explora e reapropriaos signos da realidade. Eco afirmava que os objetos não podem constituirelementos de uma segunda articulação por serem desde sempre elementoscom sentido.

Tanto Eco como Emilio Garroni criticaram a "ingenuidade semiótica'de Pasolini, que confundia artefato cultural e realidade natural. Uma série deanalistas recentes, porém, têm afirmado que Pasolini estava muito longe de ser

ingênuo, encontrando-se, na verdade, bastante à frente de seuscontemporâneos. Para Teresa de Lauretis, o teórico-cineasta não foi ingênuo,mas profético, antecipando o papel do cinema na "produção de realidadesocial". Como apontam Patrick Rumble e Bart Testa, Pasolini via oestruturalismo apenas como um interlocutor entre outros, como Bakhtin,

:Medvedev etc. Para Giuliana Bruno, o autor não é o teórico ingênuo retratado

)or Eco; em lugar disso, é capaz de perceber tanto a realidade quanto suarepresentação fHmica como discursivas e contraditórias. A relação entre ocinema e o mundo é de tradução. A realidade é o "discurso das coisas" que ocinema traduz em um discurso de imagens, o qual Pasolini designou como "alinguagem escrita da realidade': Como Bakhtin e Volochinov Pasolini estavamais interessado na fda do que na língua (ver Bruno, Rumble e Testa 1994).

Pasolini também demonstrou interesse pela questão das analogias ediscrepâncias entre cinema e literatura. Do mesmo modo como o discursoescrito reelaborava o oral, o cinema reelaborava o património comum dosgestos e das ações humanas. O autor preferia um "cinema de poesia" a umcinema de prosa': Tratava-se o primeiro de um cinema imaginativo, onírico,

subjetivo e forma]mente experimental, no qual autor e personagem sefundem, e o segundo de um cinema baseado nas convenções clássicas dacontinuidade espaço-temporal. Em Empirismo erefÍco, Pasolini também

discutiu suas noções de "discurso livre indireto" no cinema. Na literatura, osqZe ilzdírecf libra fazia referência ao tratamento da subjetividade na obra de

um escritor como Flaubert, por intermédio do qual a representação mediadatransmitida através de pronomes, como em "Emma pensou'; era moduladapara uma apresentação direta como "Que maravilhoso estar na Espanta!'l Nocinema, referia-se ao contágio estilístico mediante o qual a personalidade

(1

132 Papirus Editora Introdução à teoria do cinema 133

Page 10: 3aEdiÇão - edisciplinas.usp.br

autoral se fundida de maneira ambígua com a da personagem, cujasubjetividade se convertia em plataforma para a experimentação e ovirtuosismo estilísticos.

Umberto Eco, cujas reflexões sobre o cinema formaram parte de seutraba[ho mais abrangente sobre as articulações ]ingüísticas em geral, rechaçoua dupla articulação no cinema e propôs, em seu lugar, uma tripla articulação:a primeira, a das figuras icânicas; a segunda, a das figuras icânicas combinadasem semas; e a terceira, a dos semas combinados em "cinemorfemas': Garroni,

por sua vez, sustentou que Metz formulara uma questão equivocada; aquestão correta girava em torno da heterogeneidade constitutiva damensagem fílmica/artística. Bettetini optou por uma dupla articulaçãobaseada na "oração" cinematográfica, por um lado, e nas unidades técnicas (oquadro, o plano), por outro. Postulou o "iconema" como a unidadepreferencial da linguagem cinematográfica. Em l,'irzdice deJ realismo, aplicou atricotomia de Peirce ao cinema, visto como integrador das três dimensões dosigno: a indexical, a icânica e a simbólica. Para Bettetini, a unidade mínima designi6lcação no cinema, o "iconema" ou "cinema': é a imagem fílmica,correspondendo não à palavra, mas à oração. Também Peter Wollen, em Sjgnsand meatzíng ífz fhe cinema ( 1969), considerou as noções saussurianas de signodemasiado rígidas para um meio cujos "nichos estéticos" derivavam de umautilização calculada e instável de todas essas espécies de signos.

O cinema tornou-se um discurso, afirmou Metz, ao se organizar comonarrativa e produzir, assim, um conjunto de procedimentos significantes.Conforme aponta Warren Buckland, é como se a relação "arbitrária" entre osignificante e o significado de Saussure se transferisse a outro registro, ou seja,em lugar da arbitrariedade da imagem única, a arbitrariedade de uma trama, opadrão seqíiencial imposto aos acontecimentos em estado bruto. Também

encontramos, aqui, ecos da idéia sartriana de que a vida não conta histórias.Para Metz, a verdadeira analogia entre cinema e linguagem dizia respeito à sua

natureza sintagmática comum. Ao movimentar-se de uma imagem a outra, ocinema se transforma em linguagem. Tanto a linguagem como o cinemaproduzem discurso por meio de operações paradigmáticas e sintagmáticas. A

linguagem seleciona e organiza fonemas e morfemas para formar orações; ocinema seleciona e organiza imagens e sons para formar "sintagmas'! isto é,unidades narrativas autónomas nas quais os elementos interagemsemanticamente. Embora imagem alguma se pareça completamente comoutra, a maior parte dos filmes narrativos se assemelha em suas figurassintagmáticas principais, seu ordenamento das relações espaciais e temporais.

l

O sf/zíagmapaía/eZo: dois motivos em altemância sem uma relaçãoespacial ou temporal clara, como rico e pobre, cidade e campo.

2

134 Papirus EditoraIntrodução à teoria do cinema 135

Page 11: 3aEdiÇão - edisciplinas.usp.br

3 O sintagma pare/zféfico: cenas breves apresentadas como exemplostípicos de uma certa ordem de realidade, mas destituídas deseqüência temporal, freqüentemente organizadas em torno de um"conceito"l

O sílztagma descríül'o: objetos mostrados em sucessão e sugerindocoexistência espacial; empregado, por exemplo, para situar a ação.

O sínfagma aZternanfe: montagem narrativa paralela que implicasimultaneidade temporal como em uma perseguição na qual sealterna entre o perseguidor e o perseguido.

A ce/za: continuidade espaço-temporal percebida como desprovida

de falhas ou rupturas, na qual o significado (a diegesis implícita) écontínuo como na cena teatral, mas o significante é 6'agmentada

em diversos planos.

A seqiiéncia episódica: um resumo simbólico de etapas em evolução

cronológica implícita, geralmente implicando uma compressão dotempo.

A seqiiêncía ordinária: ação tratada elipticamente a flm de eliminarmaterial supérfluo, com saltos no tempo e no espaço ocultados pelamontagem em continuidade.

signi6lcativo de sintagmas parentéticos podem ser caracterizados comobrechtianos, precisamente porque o sintagma parentético é especialmenteajustado para representar o socialmente "típico': Tempo de gtzerra, a fábulabrechtiana de Godard sobre a guerra, mobiliza sintagmas parentéticos como

parte de uma sistemática desconstrução interna da abordagem tradicional docinema dominante ao conflito dramático. A ênfase do sintagma parentéticosobre o típico aqui, os comportamentos típicos da guerra -- é claramenteapropriada às intenções generalizantes de diretores poiitizados.

Como uma espécie de ilustração ao seu método, Metz procedeu a umadecomposição sintagmática do filme .Adietz Phí//cine (Jacques Rozier 1960)em 83 segmentos autónomos. Porém, em razão de suas restrições'metodológicas, a análise sintagmática metziana não contemplou diversos dos

aspectos mais interessantes da obra: sua representação do meio televisivo; as

implicações cronotópicas dos monitores de TV õ'eqüentemente presentes no

plano; as atitudes e os sotaques proletários das personagens; a guerra naArgélia (para a qual a personagem central se alista); e os papéis sexuais e asedução na França dos anos 60. Encerrada a análise linguística, quase tudo fica

For dizer, daí a necessidade de uma análise translingüística bakhtiniana doíílme como um enunciado historicamente localizado. Contudo, Metz propôsa Grande Sintagmática com um objetivo mais modesto do que seguidamenteé sugerido por seus detratores, ou seja, como um primeiro passo no sentido doestabelecimento dos principais tipos de ordenamento da imagem. À objeçãode que "fica tudo por dizer" pode-se, em primeiro lugar, retrucar que é danatureza da ciência eleger um princípio de pertinência. Falar do GrandCanyon em termos de estratos geológicos ou de Hamief em termos de suasfunções sintáticas dificilmente esgotará o interesse ou o sentido de uma visitaao Grand Canyon ou da leitura de Hamlef, o que não significa que a geologia e

a linguística sejam inúteis. Em segundo lugar, o trabalho de contemplar todosos níveis de significação em um íjlme não é tarefa da teoria do cinema, massim da análise textual.

4.

5

6

7

8

Não é este o local apropriado para inventariar os muitos problemasteóricos apresentados pela Grande Sintagmática (para uma crítica maisconsistente, ver Stam et a1. 1992). Basta dizer que alguns dos sintagmasmetzianos são convencionais e se encontram totalmente estabelecidos - o

sintagma alternante, por exemplo, é a tradicionalmente chamada montagemem paralelo -- ao passo que outros movam consideravelmente. O sintagmaparentético, por exemplo, fornece amostras típicas de uma certa ordem darealidade sem associa-las cronologicamente. Os logos visuais que abrem os

sifcoms (por exemplo, o segmento inicial de montagem mostrando asatividades típicas de um dia da vida de Mary Richards no Maré Tyler ÀtíooreShow) podem ser considerados sintagmas parentéticos. Da mesma forma, osplanos âagmentados de dois amantes na cama que abrem Uma muZ/zer casadade Godard oferecem uma típica amostra do "adultério contemporâneo"; defato, a falta de uma teleologia e de um clímax na seqüência íaz parte de uma

estratégia brechtiana de deserotização, uma colocação "em parênteses" doerotismo. Não por acaso, muitos dos filmes que exibem um número

Em l,{nguagem e cinema, Metz redefiniu a Grande Sintagmática comoum mero subcódigo da montagem em um corpus historicamente delimitadode filmes, ou seja, a tradição narrativa mairzsfream da consolidação do cinemasonoro nos anos 30 à crise da estética do sódio sysfem e ao surgimento das

diversas NouveUes pagues nos anos 60. O esquema metziano, sem dúvida omais sofisticado até então desenvolvido, foi subsequentemente aplicado (emincontáveis análises textuais) e também reconfigurado por Michel Colin daética chomskiana da gramática transformativa (ver Colin, em Buckland

136 Papirus Editora Introdução à teoria do cinema 137

Page 12: 3aEdiÇão - edisciplinas.usp.br

1995). Mas a teoria do cinema poderia explorar ainda abordagensmais

sofisticadas às questões levantadas pela Grande Sintagmática, quepromovessem uma síntese entre o trabalho de Metz e outras correntes. Entreestas, a sugestiva noção bakhtiniana do cronotopo, como: "a intrínsecaconexão das relações temporais e espaciais" em textos artísticos; o trabalho deNoêl Burch sobre as articulações espaciais e temporais entre os planos; otrabalho de Bordwell sobre o cinema clássico; e a narratologia de Genette, no

que fosse aplicável ao cinema.

Metz íoi criticado posteriormente por sub-repticiamente favorecer o

cinema narrativo mainstream e marginalizar formas como o documentário e a

vanguarda. Uma formulação translingüística bakhtiniana poderia terpoupado aos cine -semiólogos na tradição. saussuriana muitos pmblemasevitando o uso, desde o princípio, da própria noção de uma linguagem(cinematográfica) unitária. Antecipando os sociolingüistas contemp(lralleos-Bakhtin afirmou que todas as linguagens caracterizam-se pelo jogo diabético

clássico domlinante como uma espécie de linguagem padrão apoiada esubscrita pelo poder institucional, assim exercendo sua hegemonia sobre umasérie de "dialetos" divergentes como o documentário, o cinema militante e o

cinema de vanguarda. Uma abordagem translingüística seria mais relatiüsta e

pluralista com"respeito a essas diferentes linguagens cinematográficasprivilegiando o periférico e o marginal em oposição ao central e aodominante.

A ESPECIFICIDADECINEMATOGRÁFICA REVISITADA

16

Em seu empenho pela legitimação da arte cinematográfica, comovimos, os teóricos fizeram alegações confUtantes a respeito da "essência" do.cinema. Os impressionistas da década de 1920, como Epstein e Delluc,

!empreenderam uma jornada quasi-mítica em busca da quintessênciaíotogênica do cinema. Para teóricos como Arnheim, enquanto isso, a essênciaartística do meio estava associada à sua natureza estritamente visual e,portanto, às suas "carências"(os limites do quadro, a ausência de uma terceiradimensão etc.) que o definiam como arte. Outros, como Kracauer e Bazin,localizavam a "vocação para o realismo" do cinema em suas origens nafotografia. Também a semiologia cinematográfica interessou-se por essaeterna questão. Para Metz, a questão "0 cinema é uma linguagem?" erainseparável da questão "0 que é específico ao cinema?': Os traços sensoriaispertinentes da linguagem cinematográfica auxiliam-nos a distinguir o cinemadas demais linguagens artísticas; modificando-se um dos traços, modifica-se alinguagem. Por exemplo, o cinema tem um coeficiente mais alto deiconicidade que uma língua natural como o 6'ancês ou o inglês (embora sepossa argumentar que as línguas ideográficas ou hieroglíficas também sejamaltamente icânicas). Os 6llmes são compostos por imagens múltiplas,diferentemente da fotografia e da pintura que (em geral) produzem imagens

únicas. Os filmes são cinéticos, diferentemente das histórias em quadrinhos,

que são estáticas. A abordagem de Metz, portanto, envolvia a busca pelosprocedimentos significantes específicos da linguagem cinematográfica.Alguns dos materiais de expressão específicos do cinema são partilhados com

138 Papirus EditoraIntrodução à teoria do cinema 139