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Transformações nos saberes sobre arte e seu ensinoTransformações nos saberes sobre arte e seu ensinoTransformações nos saberes sobre arte e seu ensinoTransformações nos saberes sobre arte e seu ensino1111
Dra. Susana Rangel Vieira da Cunha2
(Trans)Formação (Trans)Formação (Trans)Formação (Trans)Formação
Meu trabalho como professora e pesquisadora tem como
proposta desestabilizar conceitos fixos sobre arte, provocar dúvidas
e curiosidade neste campo e buscar alternativas nos modos ensinar
arte. Procuro tecer fios com as alunas, mesclando o pensamento
sensível e conceitual, uma vez que não existe processo de
conhecimento em arte numa perspectiva apenas teórica/reflexiva
ou experiencial. O conhecimento neste campo necessita da
mediação entre os dois. É conhecendo e pensando sobre a produção
simbólica, vivenciando e entendendo os seus processos expressivos
que as pessoas ampliarão suas visões sobre a arte em sua dimensão
histórica, social, individual, expressiva, conceitual, cultural,
simbólica e técnica. Vasculhar o processo de expressão do adulto é
resgatar suas marcas, sua identidade, seu estar no mundo. É um
processo de (re)conhecimento das imagens internas e externas que
se inicia com a desestabilização das crenças essencialistas e
imutáveis sobre a arte.
O ensino da arte em qualquer nível deveria abranger tanto a
construção da linguagem visual quanto contribuir para que as
crianças realizem leituras cognoscentes, conscientes e sensíveis de
outras tantas imagens que estão aí sendo consumidas passivamente.
Segundo FUSARI e FERRAZ(1992, p. 74): “Uma educação do ver,
do observar, significa desvelar as nuances e características do
próprio cotidiano” e ir além, propondo rupturas com o instituído,
com aquilo que é oferecido pelas imagens veiculadas pelos meios
1 Artigo publicado na Revista de Educação Projeto: Artes Plásticas, v.3,n.5, 2001 e na .Revista Imaginar da Associação de Professores de Expressão e Comunicação Visual. , Lisboa:v.38, p.04 - 10, 2002. 2 Professora e pesquisadora da Faculdade de Educação da UFRGS, organizadora e autora de vários livros, entre eles: Cor, som e movimento: a expressão plástica, dramática e sonora da criança)
midiáticos como representações verdadeiras e únicas sobre o
mundo.
O ensino de arte poderia ser uma das vias de questionar o que
está estabelecido, aguçando os sentidos, aglutinando
expressão/vida, a fim de produzir propostas no campo da
visualidade que possibilitem indagações sobre a própria vida. Uma
das funções do ensino da arte seria o de anexá-la a outras formas de
atividades sociais, “incorporá-la na textura de um padrão de vida
específico” (GEERTZ, 1997. p.146) e não isolá-la como um fenômeno
mágico e inexplicável.
Diante desses pressupostos foi concebida a presente pesquisa
com contornos de investigação-ação a partir de uma abordagem
auto-biográfica. O trabalho iniciou em março de 1997 (oficialmente
foi concluída em 2000, mas até hoje continua em andamento) junto
às alunas que freqüentaram semanalmente e por um semestre a
disciplina Arte na Educação Infantil que integra o currículo do
Curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul.
As participantes da pesquisa tiveram o papel simultâneo de
"objetos" e de “sujeitos” da investigação (NÓVOA, p. 22.) ora como
fonte de informações, ora como direcionadoras do processo da
pesquisa. Foi um movimento de ir e vir entre teoria e prática, um
refazer-se a cada situação de desvendamento sobre o conhecimento
das alunas que passava a estruturar outros caminhos de investigação
e intervenção no próprio conhecimento produzido entre professora
e alunas. Com isso, a análise de dados percorreu todas as etapas de
uma forma interligada e analítica, refazendo o conhecimento e os
procedimentos durante todo o processo.
O projeto de pesquisa percorreu vários caminhos, às vezes
paralelos, entrecruzados ou circulares, no sentido de entender como
os processos expressivos individuais das alunas e crianças se
constituem historicamente, culturalmente e socialmente e por isso
os procedimentos metodológicos foram se constituindo pelas
transformações das etapas tendo em vista a multiplicidade dos
olhares e ações nas abordagens metodológicas que foram se
configurando na relação teoria/prática em situações de sala de aula.
Embora tendo um plano flexível e aberto, havia um desenho
básico de procedimentos composto de: entrevistas, leituras e
discussões de textos sobre arte, história da arte-educação e a
linguagem expressiva infantil, depoimentos analíticos enfocando as
histórias de vida das alunas; sessões de resgate do processo
expressivo; observações e análises do trabalho pedagógico em arte
em contextos escolares. Os procedimentos foram estruturados de
forma que as alunas tivessem possibilidade de refletir durante o
processo de pesquisa, participando de maneira ativa, produzindo
uma reflexão autoformadora durante todo o processo investigativo.
A investigação buscou:
• apreender a interação dos fatores de várias ordens que
concorrem para a configuração das concepções de arte e ensino de
arte da alunas;
• ampliar as concepções de arte e seu ensino levando em conta
os saberes trazidos pelas alunas;
• identificar os princípios constitutivos do processo de criação
buscando estabelecer relações entre estes e a prática docente com
vistas a um redimensionamento do fazer pedagógico fundamentado
na relação arte e educação.
Do pensar ao fazer
Do fazer ao pensar
Inicialmente foram utilizados questionários que procuravam
desvelar as concepções sobre arte e ensino de arte na Educação
Infantil. A maioria das respostas referia-se à arte como algo que
“transmite mensagens”, “como um meio de comunicação”, “como uma
produção expressiva do interior de cada um procurando reproduzir alguma
coisa externa ou interna”, “como uma forma de expressar sentimentos,
medos, incertezas para outros indivíduos”, “tudo que é feito
artesanalmante”, “formas de expressão espontânea”, “como algo bonito e
ao mesmo tempo difícil das pessoas copiarem”, “vem de um dom”, pode ser
manifestada através da linguagem do desenho, da argila, pintura, do
corpo”, “pode ser assistida, como a dança, pintura, cinema, exposição de
trabalhos”, “algo vinculado ao olhar, seja como forma de observação ou
admiração”, “aquilo que pode ser apreciado por outras pessoas.”
Essas afirmativas revelavam que os saberes trazidos pelas
alunas estavam ancorados em uma visão de arte centrada
exclusivamente na autonomia das obras, que por sua vez são
“belas”, encantam nossos sentidos e são portadoras de narrativas
subjetivas e visões particulares de mundo. Atribuem às obras um
sentido mágico de contemplação, segundo Canclini, (s/d.p.8.) essa
forma de encarar a arte “não oferece explicações racionais acerca do
processo de recepção da arte; apenas se interessa pela obra como
objeto fetichizado”. A arte, a que as alunas se referem, é um
conjunto específico da produção simbólica, aquela que foi
institucionalizada como arte pelos discursos e locais de exibição,
aquela que está posta de maneira incontestável como produção
artística. Ao elegerem um determinado tipo de produção como
sendo “a artística” deixam de perceber outras manifestações
produzidas por outros grupos sociais ou as colocam como
produções menores, pitorescas ou folclóricas. Mesmo dentro do
universo da arte com A maiúsculo, a produção artística referida
estava restrita ao realismo, aos materiais e modalidades
convencionais das artes visuais. Colada a essa visão, o artista é visto
como um ser de exceção, como alguém que tem um “dom natural”
para criar obras extraordinárias, realistas, narrativas, bem feitas
tecnicamente que serão admiradas por espectadores passivos.
Após o mapeamento das concepções, que davam conta de
respostas conceituais sobre o campo da arte, foi elaborado um
estudo reflexivo baseado em leituras de diferentes autores (Coli:
1992; Ostrower:1983; Camargo:1994; Canclini: s/d) a fim de
discutirmos e ampliarmos as idéias contidas nos questionários.
Durante as reflexões sobre como alguns meios - livros, programas
escolares, mídia, etc -legitimam certas produções simbólicas, as
alunas lembraram que os locais de exibição - galerias, museus,
centro culturais, feiras de rua – indicam atitudes frente à arte e
modos de validar e classificar os objetos como artísticos. Segundo
elas, os museus nos “ensinam “ a ver os objetos dentro de uma
hierarquia de valores. As alunas diziam: “quando entro num museu já
sei que aquilo é ARTE, não posso duvidar do que está ali, mesmo que eu
não entenda eu sei que é algo valioso...”; “...quando fui a Bienal do
Mercosul achei esquisita a maioria dos trabalhos: sala com luzinhas de
celulares, outra com uma cama, objetos que pareciam brinquedos e que a
gente podia mexer...e mesmo achando estranho sabia que aquilo tudo era
arte”; “ quando fui ao museu era a mesma coisa do que estar numa igreja,
tinha que andar devagar, em silêncio, olhar os quadros vagarosamente“;
“...quando vejo os trabalhos dos índios na rua nunca penso que aquilo pode
ser arte.”
Considero essas colocações como indicadores de uma grande
mudança no modo inicial em como elas percebiam a arte: se antes a
arte era tida como uma produção desvinculada de contextos sócio-
culturais, agora começavam a vê-la a partir dos significados
produzidos culturalmente em torno dos objetos artísticos. Os
depoimentos serviram para explorarmos as seguintes questões
emergentes: Existe algo nos objetos que “dizem” que ele é artístico,
ou o artístico está relacionado ao aparato de discursos produzidos
em nossa cultura? Existe autonomia para o espectador decidir o que
é artístico? Será que em nossas práticas cotidianas em sala de aula
não elegemos também modelos do que seja arte e trabalhamos a partir
deles? A partir de quais referenciais estruturamos um planejamento
em arte?
Concomitante às reflexões sobre arte, que permearam todo o
desenvolvimento da pesquisa, foi proposta a montagem de um
Museu Imaginário (adaptação que fiz das idéias de André Malraux)
a partir de um acervo de objetos considerados artísticos por nós para
que discutíssemos sobre os critérios que direcionavam nossas
escolhas por determinados objetos. Minha intenção com o museu
imaginário era fazer com que as alunas se perguntassem sobre as
idéias essencialistas sobre arte, como por exemplo, a capacidade dos
objetos artísticos terem uma imanência, ou uma aura que lhes
confeririam um significado independente das circunstâncias que os
geravam, um valor em si inscrito na materialidade do próprio objeto
que lhe dava o estatuto de “objeto artístico”.
O acervo do nosso museu possibilitou pensarmos
concretamente em cima dos objetos, das suas formas, história,
materialidade, técnicas construtivas e os significados e valores que
nós e os outros atribuímos a eles. De certo modo, manusear os
objetos, vê-los, compará-los, colocá-los lado a lado fez com que as
alunas reformulassem suas concepções iniciais sobre arte de um
modo mais aguçado e sensível do que aquelas realizadas no campo
teórico. Acredito que isso se deva ao fato de que o conhecimento
sobre a arte se faz tanto no campo conceitual quanto no campo
sensorial, ou seja, ao lermos sobre pintura temos um entendimento,
ao passo que o ato de pintar possibilita outra forma de conhecê-la.
Assim, o contato com a materialidade dos objetos exemplificou e
ampliou outros pontos importantes que não haviam aparecido nas
discussões a partir dos textos.
Os objetos do Museu Imaginário tinham a ver com os saberes
sobre arte já enunciados nos questionários (caráter narrativo,
figurativo, artesanal, estético, etc) e em sua maioria consistiam de
objetos que habitam nosso cotidiano. Em sua maioria, eram peças
decorativas como reproduções de obras de arte consagradas, peças
de cerâmica, porcelanas pintadas à mão, esculturas ou montagens
tridimensionais produzidas por familiares ou artesãos, azulejos
pintados, produções infantis, souvenir de viagem (industrializados
ou artesanais) ou objetos utilitários como panos de pratos
bordados ou pintados, almofadas de crochê, brinquedos antigos,
bandejas, copos, etc. Os critérios classificatórios elaborados foram
muitas vezes contraditórios, contudo conviviam pacificamente,
como por exemplo, o caráter artesanal e industrializado, ou a peça
única e a produção em série. Ao constatarem que haviam
contradições nos critérios, as alunas se davam conta do caráter
mutável que nós podemos dar aos objetos, ou seja, os objetos por si
só não têm marcas em si que os elevam à categoria “do artístico”.
Nós é que atribuímos significados a eles conforme nossos
referenciais sócio-culturais. Assim, o caráter fixo com que
qualificavam os objetos como artísticos foram relativizados e outros
critérios foram elaborados.
A etapa posterior ao museu imaginário teve dois enfoques
simultâneos: as histórias de vida das alunas (depoimentos auto-
biográficos enfocando as experiências familiares e escolares no
campo da arte) e as vivências expressivas. Os depoimentos tinham
como finalidade o entendimento das alunas sobre seus processos
educativos no campo da arte, uma vez que elas se viam como
“naturalmente incapazes” para apropriarem-se da linguagem
visual. Ao verem-se dentro de uma história educacional ora
tecnicista, ora essencialista, elas percebiam que a “incapacidade
para as artes” era em conseqüência dos modos como elas haviam
sido “ensinadas” e não uma deficiência “nata”. Alguns
depoimentos resumem o quanto as pedagogias em arte formataram
a idéia de que eram “incompetentes para as artes”: “lembro-me que
certa vez, tive que copiar uma gravura na qual havia um desenho de um
urso comendo mel. Tive muitas dificuldades em acertar o desenho, visto
que não conseguia demonstrar o mel escorrendo. De tanto apagar e tentar
desenhar o mel, minha folha rasgou. O resultado foi que minha professora
me xingou e me obrigou a fazer outro desenho durante o recreio”. “A livre
expressão foi propiciada durante boa parte da minha escolarização. A
professora, a partir da concepção do livre-fazer banalizava a criação dos
alunos, deixando-nos completamente soltos, sem perspectivas, sem exercer
o seu papel de mediadora”. “Apesar de pouquíssimas recordações lembro-
me que fazíamos trabalhos de arte de forma mecânica, onde o sentimento
era muito pouco usado como forma de expressão. Era tudo determinado
pela professora, tínhamos que fazer do jeito que ela achava certo. Até hoje
tenho dificuldade em me expressar”. “Tínhamos também um caderno de
desenho com sugestões de desenhos para colorir, desenho para completar e
“copiar igual”, desenhos em perspectiva – este eu tinha verdadeira aversão
ao realizar pois não conseguia fazer igualzinho ao desenho original.” A
professora trazia o modelo que era copiado por todos. Os melhores
trabalhos, cópias perfeitas dos modelos, eram expostos. Nós não tínhamos
condições de expressarmos nossa criatividade ou imaginação”.
No processo de entendimento de como elas foram se
constituindo nesta área do conhecimento, elas se davam conta
gradativamente que os modelos pedagógicos vivenciados haviam
produzido registros no modo delas se expressarem e no modo em
como elas ensinariam arte. A esse respeito Nòvoa diz que as
concepções e práticas pedagógicas resultam da escolarização dos
estudantes e que há uma estreita relação entre a maneira de como
aprendemos e o modo como ensinamos. Mesmo reconhecendo que
tais modelos haviam negado o conhecimento, a expressão,
imaginação e experimentação, estes eram os únicos modelos de
ensino de arte que as alunas conheciam. Ao se darem conta de que
aqueles modelos não tinham sentido, elas começavam a se
perguntar se haveriam outras possibilidades para ensinar arte.
Como seria possível elaborarem outras propostas pedagógicas que
contemplassem o conhecimento e vivências no campo da arte com
algum sentido para elas e para as crianças? Para esclarecermos estas
questões, estudamos autores de diferentes enfoques teóricos como
por exemplo: Luis Camargo (Arte-educação: da pré-escola à
universidade); Zélia Cavalcanti (Arte na sala de aula); Analice Dutra
Pillar (Desenho e construção do conhecimento na criança); Ana Angélica
Moreira (O espaço do desenho: a educação do educador); Sandra Richter
e Susana Vieira da Cunha (Cor, som e movimento: A expressão plástica,
musical e dramática no cotidiano da criança) e Edith Derdyk (Formas de
pensar o desenho) que propõem caminhos teórico-metodológicos
diferenciadas daqueles vivenciados pelas alunas durante suas
escolarizações. Minha intenção com as leituras não era a de
substituir os modelos pedagógicos formadores vividos pelas alunas
por outros modelos, mas sim de dar visibilidade a outras propostas
pedagógicas para que elas ampliassem suas referências e pudessem
compor outras possibilidades no modo de ensinar arte.
Paralelamente às histórias de vida, iniciei um trabalho que
também buscava, de um outro modo, trazer à tona fragmentos da
história expressiva das alunas a fim de que elas compreendessem
como esses processos foram se configurando. A primeira grande
barreira a romper era a idéia do “não sei desenhar” que a maioria
verbalizava antes de iniciarmos os trabalhos de resgate da
linguagem gráfico-plástica. Elas diziam “ não sei desenhar e quando
penso que nesta aula teremos que fazer alguma coisa quase desisto”.
“Nunca fiz nenhum desenho que gostasse”. “Nas aulas de artes sempre
pediam para que eu desenhasse um modelo que a professora colocava lá na
frente e eu nunca conseguia fazer parecido”. “Nunca gostei de artes”. “
Quando me pedem um desenho faço sempre a mesma coisa: uma casinha,
árvore com maças, nuvens e o sol. Parece desenho de criança.” Diante
destas afirmativas procurei fazer com que elas percebessem, através
de vários desafios expressivos, que a linguagem gráfico-plástica
depende de um conhecimento específico e que como conhecimento
deve ser aprendido de uma maneira prazerosa e significativa.
Pretendia que aprendessem a construir um olhar que capturasse as
sutilezas, percebendo que “cada vermelho é um mundo e há o
mundo do vermelho entre as cores” (CHAUÍ, 1988, p.58).
Queria que aprendessem que um olhar curioso poderá criar
repertórios singulares para outras configurações representativas e
que este olhar diferenciado buscará uma forma, um material e
modos de pensar através de imagens. Queria que elas se dessem
conta de que lidar com formas, cores, espaços, volumes, materiais
não é um “dom” com que alguns poucos nascem, mas sim uma
aprendizagem que parte de um olhar ativo, analítico, sensível e
poético sobre o mundo visível e invisível.
As propostas expressivas vivenciadas nessa etapa foram
trabalhadas na perspectiva de desvelar e ampliar os repertórios das
alunas, pois segundo Miriam Martins (1998, p162):
Quanto mais o aprendiz tiver oportunidade de ressignificar o mundo por meio da especificidade da linguagem da arte, mais poder de percepção sensivel, memória significativa e imaginação criadora ele terá para formar consciência de si mesmo e do mundo. Desvelar/ampliar, como termos interligados, são ações que se auto-impulsionam, como pólos instigadores para poetizar, fruir, conceituar e conhecer arte elaborando sempre novas relações com o já sabido.
As primeiras experiências gráficas tinham o intuito de trazer os
repertórios sem uma intervenção pedagógica mais contundente.
Além disso, pretendia que elas revivessem seus antigos processos
de uma forma reflexiva e prazerosa. Solicitava a elas que
desenhassem paisagens, pessoas, coisas que gostavam, que haviam
vivido, etc. Os desenhos realizados eram muito semelhantes no que
diz respeito à temática (árvores com maçãs, casinha, nuvem e sol,
figura humana de palito) às formas simplificadas e sem detalhes e à
pouca exploração dos materiais. Após esses registros, analisávamos
quais os motivos que as impediam de elaborarem outros desenhos e
as justificativas eram de que “não tinham habilidade” , “na escola
sempre faziam o mesmo tipo de desenhos”, “não tinham outras idéias além
daquelas”.
Sobre tais afirmação realizávamos uma reflexão na tentativa de
entenderem que não existe uma habilidade nata para o desenho ou
para a imaginação, mas que formas, temáticas mais elaboradas e
uso exploratório dos materiais dependiam em muito do desafio
imposto pelo mediador da proposta. No caso foram indicadas
algumas temáticas, mas sem haver a intenção de problematizá-las
para que elas vasculhassem livremente seus repertórios imagéticos.
Também nessa atividade nos reportamos em como as crianças
reagem quando solicitamos temas ou deixamos que elas criem sem
interferência da professora.
Depois dos primeiros registros, as propostas seguiam vários
percursos que envolviam a observação, imaginação, criação, leitura
de imagens e exploração de materiais. Uma das propostas
enfocando a observação foi a seguinte: solicitei às alunas que
desenhassem cabelos e coloquei vários materiais gráficos à
disposição (lápis de cor e aquarelado, giz de cera, canetinhas, lápis
6b), Não fiz nenhuma intervenção enquanto desenhavam. Quando
finalizaram os trabalhos perceberam que haviam desenhado cabelos
muito semelhantes e com poucos recursos expressivos: linhas da
mesma espessura, cores sem tonalidades, poucas soluções nos tipos
de cabelos, etc. Depois propus que “brincassem de cabeleireiras”
umas com as outras, explorando penteados inusitados.
Disponibilizei pentes, escovas, presilhas de cabelos, bico de patos,
rolos, grampos, prendedores, fitas, elásticos e outros adereços. Junto
com a brincadeira salientava que observassem como são os fios do
cabelo no seu conjunto, nos diversos locais da cabeça, o peso,
consistência, cor, textura, volume, etc.
Quando concluíram os penteados incentivei que os
desenhassem a partir da observação e do conhecimento físico-
sensorial que experienciaram durante a confecção dos penteados.
Durante a realização dos desenhos pedia que elas explorassem as
possibilidades do carvão e do suporte (papel kraft) e que
descobrissem como elas poderiam transpor o observado para o
representado, não de um modo fotográfico, mas que tentassem
“entender” o cabelo como um volume com características próprias
que deveria ser expresso num plano bidimensional.
Brincando de Cabelereira: O cabelo como suporte para imaginação/criação
Desenhando cabelos: o referente como suporte para criação
Ao concluírem o segundo
desenho, as alunas ficaram
satisfeitas e surpresas com
suas produções e
exclamavam: Nunca em
minha vida havia feito um
desenho que gostasse!!! Não
sabia que eu conseguiria
desenhar algo tão legal.”
Perguntava a elas: o que
havia mudado do primeiro
para o segundo desenho?
O que havia acontecido
naquele pequeno espaço de
tempo, uma habilidade
manual tinha sido
adquirida, ou outros
processos haviam sido
desencadeados? Segundo
os depoimentos, elas
diziam: O que eu descobri
com esta atividade é que o
nosso primeiro desenho, que
foi livre, é mais estereotipado.
O segundo é mais livre e
aberto, pois a arte é uma
produção e um
conhecimento.” Descobri que
sou capaz de arriscar e
aprender. A partir desta aula
vi que tenho condições de
criar meus próprios
desenhos”. “ Foi de grande valia a comparação entre o 1º e 2º desenho pois
pude avaliar o meu “crescimento”, pude analisar os dois tipos de material:
lápis/carvão e canson/kraft e isto enriquece muito a nossa prática.
Desenhos de cabelos
“Descobri que se pode criar mesmo em um desenho de observação, já que
cada um vê aquilo que mais lhe interessa e, sendo assim, nem todos têm a
mesma percepção diante de um mesmo objeto. Acredito que, mesmo que
todos tivessem tido como modelo o mesmo cabelo, os desenhos sairiam
completamente diferentes, pois cada um de nós imprime as suas marcas, as
suas aprendizagens e as suas diferentes visões de mundo em tudo que faz.”
Ao ampliarem seus repertórios iniciais, as alunas passaram a
ter confiança em sua capacidade de expressão e perceberam que as
mudanças nos desenhos não estavam restritas às habilidades
manuais, mas ao modo como elas tinham sido acionadas e
sensibilizadas em torno de um objeto de conhecimento. Por outro
lado, a crença que devemos deixar as pessoas se expressarem
livremente, sem uma estratégia pedagógica, caiu por terra quando
elas compararam o “desenho livre” dos cabelos com o desenho
posterior que mostrava avanços em termos de soluções gráficas e
criação, mesmo tendo sido realizado a partir de um trabalho
direcionado. Nesse sentido, aprenderam que o desenho de
observação, necessariamente não precisa ser “igual” ao observado,
mas poderá ser uma interpretação pessoal, uma autoria que é
marcada por um modo peculiar de expressão.
Após essa breve experiência gráfica, realizamos uma leitura
sobre as imagens produzidas. Assim, foi possível desmanchar a
idéia de que a representação de algo não precisa coincidir
necessariamente com a visão objetiva que temos da realidade.
Também foi interessante analisar como as alunas passaram a
entender a aprendizagem técnica: se antes os aspectos técnicos eram
vistos separados das modalidades expressivas, agora elas
percebiam que o domínio técnico da materialidade advém da
necessidade expressiva, ou seja, buscamos um manejo matérico –
uma técnica – para configurarmos nossos desejos expressivos.
Ao longo do semestre, continuamos com experiências
expressivas em diferentes modalidades e materiais, ora enfocando a
imaginação, ora a observação/percepção ou a exploração dos
materiais, ora aspectos específicos da linguagem visual. Junto ao
resgate expressivo começamos a traçar paralelos entre as
descobertas individuais e
coletivas e em como as
crianças pequenas vão
constituindo o “vocabulário”
gráfico-plástico. Minha
intenção nessa proposta era
trabalhar tanto com a
percepção das alunas sobre
seus próprios processos
expressivos quanto direcionar
esse novo olhar para a
expressão infantil.
A esse respeito Ana
Angélica Moreira (1984, p.127)
reflete dizendo: “recuperar o
ser poético que é a criança só
é possível quando os
professores se percebem como
pessoas ainda capazes de
viver o estranhamento, que é
o ser da poesia, quando o
professor descobre nele
mesmo o prazer da criação.”
Os estudos sobre a
constituição da linguagem
visual infantil foram estendidos a observações e análises de
atividades em arte nas escolas infantis, pois a meu ver não bastaria
compreendermos teoricamente como as crianças passam dos
rabiscos iniciais à representação, como vão separando o fundo da
forma, como vão das escolhas aleatórias da cor ao uso analógico,
sem entendermos como as professoras trabalham as diferentes
concepções imagéticas das crianças no cotidiano da sala de aula.
Sendo um dos últimos procedimentos, foi possível às alunas
analisarem as práticas em arte de um modo muito aguçado e crítico;
ao mesmo tempo constatavam que o que está ocorrendo atualmente
Experiências gestuais com tinta
na Educação Infantil é similar ao que elas viveram em suas
escolarizações em outros graus de ensino. Ou seja,
independentemente do grau de ensino, da temporalidade e dos
contextos educativos, os enfoques no modo de ensinar arte são
semelhantes e continuam produzindo um conhecimento superficial
no que diz respeito à própria arte, aos processos expressivos, à
pesquisa de materiais e principalmente no que se refere à produção
dos imaginários infantis.
Considerações (semi)finais
Os resultados parciais do presente trabalho indicam que as
alunas, participantes da pesquisa, formulam suas concepções sobre
arte e seu ensino durante o período escolar, anterior à entrada na
universidade. As experiências vivenciadas no ensino de arte de 1º e
2º graus, ainda centra-se na estética das belas-artes que dá um
sentido universal e imutável à produção artística e geram por sua
vez metodologias baseadas em abordagens empiristas e/ou
inatistas. Com isso, os conceitos de arte e seus modos de ensino
formam uma coerência de princípios impermeáveis a outras
propostas educacionais. Apesar disto, não é lícito colocar a escola
como a única responsável por propagar idéias sobre arte sob pontos
de vista pragmáticos ou essencialistas, muito aquém das propostas
contemporâneas nos campos da arte e da pedagogia. Entretanto, a
escola vai absorvendo e validando as idéias do senso-comum que se
refazem historicamente como um corpo organizado de
conhecimentos, que pode ser reafirmado, desenvolvido,
formalizado, observado e até ensinado. Os discursos sobre arte,
como símbolo de distinção social, e os artistas, como seres de
exceção, são produzidos por nossa cultura e aceitos nos contextos
escolares - da educação infantil ao ensino universitário - sem que
haja contestação ou um esforço analítico-crítico que provoque uma
mudança significativa em termos de outros conhecimentos sobre
arte e seu ensino.
Em sua maioria, as alunas tiveram em suas escolarizações,
modelos de ensino de arte do passado (Livre-expressão e
Tecniscismo) que foram recuperados e adaptados sem uma
discussão sobre a validade de tais enfoques na atualidade. Tais
modelos produziram registros equivocados no sentido de
impossibilitarem a experiência expressiva das alunas. Entretanto, a
partir de um conjunto de intenções, procedimentos metodológicos
e de propostas que contemplaram a reflexão teórica e experiências
sensíveis-expressivas em um processo contínuo de ação-reflexão-
ação foi possível romper os saberes instituídos. Estes movimentos
do fazer ao pensar, geraram deslocamentos, dúvidas, rupturas e
flutuações no próprio conhecimento.
No processo de recuperação expressiva, as alunas
desencadeavam também a transformação do pensamento conceitual
e vice e versa. Muitas vezes as descobertas vivenciadas no “fazer
expressivo” e/ou nas discussões de fundo teórico eram estendidas
para outras situações e áreas do conhecimento. As formas de pensar
a arte e seu ensino possibilitavam uma “abertura” para a
compreensão de saberes mais amplos no campo pedagógico.
Outro ponto que considero importante é que as alunas foram
extrapolando a idéia de arte e seu ensino centradas em objetos e
modalidades convencionais (pintura, desenho, recorte e colagem,
etc ) e passaram a entender o ensino de arte como também um
modo de “decifrar” a cultura visual. Elas foram se dando conta que
as imagens de um modo geral “ensinam” modos de ser e de estar
no mundo, constituindo uma pedagogia visual que atua como
qualquer outra estratégia de ensino. Se antes as imagens eram vistas
apenas como representações inocentes do mundo, agora passaram a
serem vistas como uma força educativa atuante no cotidiano e que
devemos criar modos de intervenção para esta força educativa não
determine os significados existenciais das crianças. Considero essa
forma de encarar o ensino de arte na Educação Infantil como um
avanço muito grande em relação ao que está ocorrendo ainda hoje
nas salas de aula, quando o trabalho em artes ainda é o “momento
do deixar fazer" ou o “momento de desenvolver habilidades
motoras”.
Creio que ao longo do trabalho houve mudanças significativas
tanto nas concepções sobre arte quanto nas possibilidades de
viabilizar propostas prazerosas, críticas e contextualizadas no
ensino da arte. Segundo os depoimentos das alunas, pode-se
constatar o modo como elas passaram a entender o ensino de arte:
“Pude perceber o quanto a arte amplia a consciência da gente sobre o
mundo e sobre nós mesmos. È uma visão a partir de outros referenciais que
não limita e padroniza os comportamentos, mas que respeita e valoriza a
diferença e a forma de expressão de cada pessoa.” “Com este trabalho revi
muito do que fui enquanto aluna nas aulas de Educ. Artística e percebi o
quanto é importante o educador ver as várias possibilidades dessa área, não
a vendo apenas como acessível para aqueles que têm um “dom”. Todos
podemos melhorar nossos desenhos, traços, porém é preciso que cada um
reencontre o seu traço perdido naquelas aulas de artes...” “Nós professoras
transmitimos a visão de arte que temos aos nossos alunos. Se acreditamos
que não somos capazes de desenhar ou que só é possível desenhar
estereótipos, estaremos permitindo que nossos alunos também pensem
assim.” “ Penso que as leituras e as atividades práticas foram muito
importantes pois através delas tive a oportunidade de resgatar a criança
que fui e verificar o quanto fui moldada, censurada, limitada em minha
expressão, e pude perceber a influência do professor no processo
expressivo.”
Saliento que minha intenção com este trabalho não foi de
“construir um modelo de ensino de arte” a ser seguido nos cursos
de formação de professoras mas dar visibilidade ao modo como
venho estruturando algumas propostas pedagógicas em que são
possíveis outras leituras sobre a arte e seu ensino. Como foi visto
anteriormente, a situação em que se encontra o ensino de arte na
Educação Infantil, e também em outros níveis de ensino, não está
contribuindo para que as crianças possam elaborar sua linguagem
expressiva entendida aqui como uma forma de ler e representar
suas relações singulares com o mundo. Dessa forma é necessário
que nos cursos de formação de professoras sejam repensadas as
formas de ensinar arte, para que os velhos modelos não sejam
transpostos para as salas de aula de hoje.
Referências Bibliográficas:
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(org). Metodologia da Pesquisa Educacional. São Paulo, Cortez,
1989.
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(org) O olhar. São Paulo, Companhia das Letras, 1988, p.58.
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GEERTZ, Clifford. O saber Local. Trad. Vera Mello Joscelyne.
Petropólis, RJ, Vozes, 1997.
NÓVOA, António. Os professores e as histórias da sua vida. In A.
Nòvoa, Vida de professores. Porto, Porto Editora, s.d, 2ª ed
CANCLINI, Nèstor. A socialização da arte. São Paulo, Cultrix, s/d.
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MOREIRA, Ana Angélica. O espaço do desenho: a educação do
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