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REVISTADO INSTITUTO HISTRICO E GEOGRFICO DE SERGIPE

No 36 2007

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undado em 1912, reconhecido como de utilidade pblica pela Lei Estadual no 694, de 9 de novembro de 1915, considerado de utilidade continental pela Resoluo no 58, do Congresso Americano de Bibliografia e Histria, de Buenos Aires, em 1916, e reconhecido de utilidade pblica pelo Decreto Federal no 14.074, de 19 de fevereiro de 1920.

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2007 Revista do Instituto Histrico e Geogrfico de Sergipe

FICHA TCNICA Coordenao Geral Samuel Barros de Medeiros Albuquerque Editorao Eletrnica Adilma Menezes CEAV/UFS Imagem da Capa Braso do Instituto Histrico e Geogrfico de Sergipe Tiragem 300 exemplares

Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central da UFS Revista do Instituto Histrico e Geogrfico de Sergipe/ Instituto Histrico e Geogrfico de Sergipe. Vol. 1, n. 1 (1913) . Aracaju: Instituto Histrico e Geogrfico de Sergipe, 1913-

1. Histria de Sergipe. 2. Geografia de Sergipe. CDU 91+94(813.7) (05)

REVISTADO INSTITUTO HISTRICO E GEOGRFICO DE SERGIPERua Itabaianinha, 41 Aracaju - Sergipe, 49010-190 Fundado em 06 de agosto de 1912

PRESIDENTE HONORRIO Governador do Estado Marcelo Dda Chagas PRESIDENTE DE HONRA Maria Thetis Nunes DIRETORIA BINIO 2006-2007 PRESIDENTE Jos Ibar Costa Dantas VICE-PRESIDENTE Terezinha Alves de Oliva SECRETRIO GERAL Lenalda Andrade Santos 1O SECRETRIO Tereza Cristina Cerqueira da Graa

2O SECRETRIO Jos Rivadlvio Lima ORADOR Luiz Antonio Barreto 1O TESOUREIRO Ancelmo de Oliveira 2 TESOUREIRO Saumneo da Silva Nascimento DIRETOR DO MUSEU E DA PINACOTECA Vernica Maria Menezes Nunes DIRETOR DO ARQUIVO E DA BIBLIOTECA Itamar Freitas de Oliveira

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COMISSES COMISSO DE HISTRIA Beatriz Giz Dantas Jackson da Silva Lima Ruy Belm de Arajo COMISSO DE GEOGRAFIA Adelci Figueiredo Santos Neuza Gis Ribeiro Vera Lcia Frana COMISSO DE ADMISSO DE SCIOS Gilton Feitosa Conceio Jos Arajo Filho Jos Maria do Nascimento COMISSO DE DOCUMENTAO E DIVULGAO Antnio Carlos Santos Jos Mrio dos Santos Resende Samuel Barros de M. Albuquerque COMISSO DE FINANAS E PATRIMNIO Joo Gomes Cardoso Barreto Jos Hamilton Maciel Silva Luz Eduardo de Magalhes COMISSO DE ESTATSTICA E INFORMTICA Antnio Bitencourt Jnior Lourival Santana Santos Suely Gleide Amncio da Silva

SCIOS BENEMRITOS 1. Antnio Carlos Valadares 2. Joo Fontes de Farias 3. Jos Carlos Mesquita Teixeira 4. Jos Eduardo Barros Dutra 5. Lourival Baptista 6. Marcelo Dda Chagas 7. Sebastio Celso de Carvalho SCIOS HONORRIOS 1. Jackson da Silva Lima 2. Manoel Cabral Machado SCIOS EFETIVOS 1 Acrsio Salustiano de Jesus 2 Afonso Barbosa de Souza 3 Agla DAvila Fontes 4 Airton Bezerra Lcio de Carvalho 5 Alexandre de Santana Magalhes 6 Amncio Cardoso dos Santos Neto 7 Ana Conceio Sobral de Carvalho 8 Ana Maria Fonseca Medina 9 Ancelmo de Oliveira 10 Antnio Bittencourt Jnior 11 Antnio Carlos dos Santos 12 Antnio Carlos Nascimento Santos 13 Antnio Fernando de Arajo S 14 Antnio Lindvaldo Sousa 15 Antnio Ponciano Bezerra 16 Antnio Porfrio de Matos Neto 17 Antnio Samarone de Santana 18 Aristela Aristides Lima 19 Beatriz Gis Dantas 20 Bemvindo Salles de Campos Neto

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Cliber Viera Silva Cristina de Almeida Valena Djaldino Mota Moreno Edmilson Menezes Ednalva Freire Caetano Eduardo Antnio Seabra Edvaldo Nogueira Filho Emmanuel Franco Eugnia Andrade Vieira da Silva Evande dos Santos Fernando Jos Ferreira Aguiar Francisco Jos Alves dos Santos Gerson Vilas Boas Gilton Feitosa Conceio Hlio Jos Porto Ilma Mendes Fontes Itamar Freitas de Oliveira Jean Marcel DAvila Fontes de Alencar Joo Costa Joo Francisco dos Santos Joo Gomes Cardoso Barreto Joo Hlio de Almeida Joo Oliva Alves Jorge Carvalho do Nascimento Jos Alberto Pereira Barreto Jos Anderson do Nascimento Jos Antnio Santos Jos Arajo Filho Jos Francisco da Rocha Jos Francisco de Menezes Jos Hamilton Maciel Silva Jos Hamilton Maciel Silva Filho Jos Ibar Costa Dantas Jos Lima Santana Jos Maria do Nascimento Jos Mrio dos Santos Rezende Jos Marques Vieira Macedo Jos Rivadlvio Lima Jos Thiago da Silva Filho Jos Vieira da Cruz Josu Modesto dos Passos Subrinho7

62 Juvenal Francisco da Rocha Neto 63 Lenalda Andrade Santos 64 Lourival Santana Santos 65 Lcio Antnio Prado Dias 66 Luiz Alberto dos Santos 67 Luiz Antnio Barreto 68 Luiz Eduardo de Magalhes 69 Luiz Fernando Ribeiro Soutelo 70 Luiz Vieira Lima 71 Manfredo Ges Martins 72 Manoel Alves de Souza 73 Marcelo Batista Santos 74 Margarida Arajo Costa 75 Maria da Glria Santana de Almeida 76 Maria Lgia Madureira Pina 77 Maria Lcia Marques Cruz e Silva 78 Maria Neide Sobral da Silva 79 Maria Nele dos Santos 80 Mary Nadja Freire de Almeida Seabra 81 Murilo Melins 82 Neuza Maria Gois Ribeiro 83 Osvaldo Novaes 84 Paulo Srgio da Costa Neves 85 Pedro dos Santos 86 Petrnio Andrade Gomes 87 Raylane Andreza Dias Navarri Barreto 88 Ricardo Santos Silva Leite 89 Robervan Barbosa Santana 90 Rogrio Freire Graa 91 Rmulo de Oliveira Silva 92 Ruy Belm de Arajo 93 Samuel Barros de M. Albuquerque 94 Saumneo da Silva Nascimento 95 Suely Gleide Amncio da Silva 96 Tadeu Cunha Rebouas 97 Tereza Cristina Cerqueira da Graa 98 Terezinha Alves de Oliva 99 Vanessa dos Santos Oliveira 100 Vera Lcia Alves Frana 101 Vernica Maria Menezes Nunes 102 Vilder Santos 103 Wagner da Silva Ribeiro

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SCIOS CORRESPONDENTES 1. A Nonato Marques 2. Acrsio Torres Arajo 3. Adilson Cezar 4. Adirson Vasconcelos 5. Agnaldo Marques 6. Almir de Oliveira 7. Antnio Vasconcelos 8. Arivaldo Silveira Fontes 9. Cleonice Campelo 10. Clvis Me 11. Dino Willy Cozza 12. Dionysia Brando Rocha 13. Edvaldo M. Boaventura 14. Elodia Ferraz Macedo 15. Elza Regis de Oliveira 16. Elze Bezerra 17. Eno Teodoro Wanke 18. Esther Caldas Guimares Bertoletti 19. Ewerton Vieira Machado 20. Fbio da Silva 21. Francisco C. Nobre de Lacerda Filho 22. Francisco de Albuquerque 23. Hlio Melo 24. Joo Carlos Paes de Mendona 25. Joo Feltre Medeiros 26. Joo Fontes de Faria 27. Joo Justiniano da Fonseca 28. Jorge Alecantro de Oliveira Jnior

29. Jos Arthur da Cruz Rios 30. Jos Otvio de Melo 31. Jos Passos Neto 32. Jos Sebastio Wither 33. Josu Modesto Passos 34. Junot Silveira 35. Lauro Fontes 36. Lilian Salomo 37. Lus Mott 38. Luiz de Arajo Pereira 39. Luiz Paulino Bonfim 40. Manuel Correia de Andrade 41. Mrcio Polidoro 42. Marco Antnio Vasconcelos Cruz 43. Marcus Odilon 44. Maria Neide Sobral 45. Mrio Cabral 46. Nassim Gabriel Mehedff 47. Nazir Maia 48. Omar MontAlegre 49. Ovdio Melo 50. Ricardo Teles Arajo 51. Rui Vieira da Cunha 52. Salime Abdo 53. Srgio Sampaio 54. Snia Van Dick 55. Stela Leonardos 56. Ulisses Passarelli 57. Victorino C. Chermont de Miranda

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QUADRO DE FUNCIONRIOS FUNO Oficial Administrativo Auxiliar Administrativo Auxiliar Administrativo Estagirio Estagirio Estagirio Estagirio Estagirio Estagirio Estagirio Executor de Servios Bsicos Mensalista FUNCIONRIO ngela Nickaulis Corra Silva Gustavo Paulo Bomfim Valdenir Silva Santos Analice Alves Marinho Santos Brbara Barros de Olim Gilsimara Andrade Torres Lvia Santana Guimares Lucas Galindo Santos Pinto Jos Alberto Caldas Jnior Maria Fernanda dos Santos Jos Carlos de Jesus Flvio Ferreira

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APRESENTAO

publicao do nmero 36 da Revista do INSTITUTO HISTRICO E GEOGRFICO DE SERGIPE (IHGSE) segue a tradio de peridico plural, dedicado a divulgar produes relacionadas ao nosso Estado. Desta vez, comea com artigos sobre educao e escrita autobiogrfica feminina, revelando aspectos significativos de personagens dos sculos XIX e XX. Os dois estudos seguintes abordam famlias. O primeiro nos d notcias da migrao de sergipanos para o Cear a partir do sculo XVIII. O outro continuao da pesquisa sobre troncos genealgicos, publicada em nmeros anteriores. Seguem trs trabalhos com a temtica poltica. O primeiro trata da instalao da Repblica em Sergipe. O segundo enfoca a imprensa oposicionista no governo de Pereira Lobo, especialmente no pequeno perodo de 1921/22, quando as matrias adquiriram certa veemncia por ocasio da Campanha da Reao Republicana. Por fim, aparece a questo sindical como subsdio ao debate contemporneo. Os textos subseqentes apresentam temtica variada. Um trata de religiosidade, outro de questes dentro de espaos municipais. Em seguida vm crticas de arte e resenhas. Na costumeira sesso de pginas da saudade, aparece uma palestra sobre o monsenhor Olmpio Campos, cujo centenrio de morte

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celebramos em novembro do ano passado. uma verso que tenta evitar o tom apologtico do seu principal bigrafo e a indisposio dos faustistas, tentando mostrar tanto suas realizaes importantes at 1902, quanto suas aes polticas negativas no perodo 1902/06. Por fim, o relatrio do 3 ano de gesto, onde so narrados alguns dados e acontecimentos considerados dignos de registro. Aracaju, 30 de janeiro de 2007 Jos Ibar Costa Dantas Presidente do IHGSE

SUMRIO

APRESENTAO Jos Ibar Costa Dantas ESCRITA DE SI NA CASA DE SERGIPE - A autobiografia de Emlia Rosa de Marsillac Fontes (1871-1948) Samuel Barros de Medeiros Albuquerque CARTAS DE EMLIA Jos Ibar Costa Dantas EDUCAO, MULHERES E IMPRENSA Paula Soraya Nascimento Lima O LEGADO DA JUZA um testemunho Job Lorena SantAnna A INSTALAO DA REPBLICA EM SERGIPE Maria Thetis Nunes

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A PARTICIPAO DE SERGIPE NA COLONIZAO CEARENSE 81 Luiz Eduardo de Magalhes FAMLIAS SERGIPANAS DO PERODO COLONIAL III Ricardo Teles de Arajo 97

REPRESENTAES DA REAO REPUBLICANA EM SERGIPE: a campanha oposicionista do Jornal do Povo ao Governo Pereira Lobo (1921-1922) Sayonara Rodrigues do Nascimento DO SINDICATO LIVRE E AUTNOMO AO SINDICATO MINISTERIAL. Subsdios histricos para reflexo sobre a reforma sindical Maria Izabel Ladeira Silva

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BREVE ANLISE SOBRE AS DOUTRINAS E PROFECIAS DO PADRE FELISMINO 145 Joo Hlio de Almeida POLTICAS PBLICAS DE COMBATE SECA EM MONTE ALEGRE DE SERGIPE Jos Hunaldo Lima e Josefa Eliana de Siqueira Pinto 155

REFLEXES TERICAS SOBRE O ECOTURISMO NO DOMO DE ITABAIANA/SE 177 Mrcia Carmelita Chagas Alves Santos MRIO JORGE: do tempo da revoluo ao da regresso Thiago Martins Prado RESENHA UMA VISITA A DONA SINH Giliard da Silva Prado PGINAS DA SAUDADE A TRAJETRIA POLTICA DE OLYMPIO DE SOUZA CAMPOS 1853/1906 Jos Ibar Costa Dantas RELATRIO 2006 Jos Ibar Costa Dantas 225 239 195

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ESCRITA DE SI EM REVISTA A autobiografia de Emilia Rosa de Marsillac Fontes (1871-1948)

SAMUEL ALBUQUERQUE(*)

RESUMO Vislumbrando as possibilidades de pesquisa lastreadas em escritos autobiogrficos, debruo-me sobre um texto a Auto-biografia de Emilia Rosa de Marsillac Fontes (1871 - 1953) veiculado na Revista do Instituto Histrico e Geogrfico de Sergipe, em 1948. Alm disso, analiso os interesses que levaram a divulgao do referido documento, bem como examino a proposta de educao e comportamento feminino nele presentes. PALAVRAS-CHAVE: Emilia Rosa de Marsillac Fontes, autobiografia, revista, Instituto Histrico e Geogrfico de Sergipe, educao feminina.

(*) Professor de Histria da Secretaria de Estado da Educao (SEED/SE) e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Histria da Educao (NPGED/UFS). E-mail: [email protected].

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Emilia Rosa de Marsillac Fontes ou, simplesmente, D. Emilinha Fontes. Esse o nome da sergipana que nos legou uma das poucas autobiografias femininas veiculadas numa revista, ganhando notoriedade nas pginas da tradicional Revista do Instituto Histrico e Geogrfico de Sergipe1. ESCRITA AUTOBIOGRFICA E HISTORIOGRAFIA A escrita de si2 tornou-se a matria-prima de muitos historiadores que enxergam nessas narrativas valiosos testemunhos, capazes de preservar, com riqueza de detalhes, inmeros aspectos da vida pblica e, principalmente, privada de determinados grupos que atuaram diretamente no processo histrico.3 A historiografia francesa tem demonstrado grande interesse pelos escritos autobiogrficos4. Dentre os inmeros estudiosos da es-

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FONTES, Emilia Rosa de Marsillac. Auto-biografia. Revista do IHGS, Aracaju, v. 14, n. 19, p. 127-132, [1948]. Termo utilizado pelos pesquisadores para designar dirios, memrias, autobiografias, sinopses, cartas, dentre outros escritos do gnero. Desde 1929, com a emergncia da chamada Escola dos Annales, movimento intelectual ligado revista francesa Annales dhistoire economique et sociale, fundada por Lucien Febvre e Marc Block, a historiografia foi marcada pela ampliao do conceito de fonte histrica. Segundo o historiador Peter Burke, este movimento a mais importante fora propulsora da chamada Histria Nova provocou, em oposio historiografia positivista do sculo XIX, uma verdadeira revoluo historiogrfica (BURKE, Peter. A Escola dos Annales 1929/1989: a Revoluo Francesa da historiografia. So Paulo: UNESP 1997). Podemos tomar o clebre estudo Histria e Memria, de Jacques Le Goff, como um , marco na divulgao dessas novidades no meio acadmico brasileiro. Nesse sentido, destaca-se o captulo intitulado Documento/Monumento (LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: _____. Histria e memria. Trad.: Bernardo Leito [et al.]. Campinas: UNICAMP 1990. p. 535-553). , desnecessrio ponderar sobre a grande influncia que a historiografia francesa exerceu e, em grande parte, ainda exerce no Brasil. Vrios intelectuais j observaram, alguns at gritando contra, essa influncia. Recentemente, Claude Lvi-Strauss, numa entrevista concedida ao jornal Le Monde, quando tratou das histricas relaes entre Frana e Brasil, conclui que a fundao da Universidade de So Paulo (USP) representa o pice do estreitamento dessas relaes. O forte vnculo da historiografia brasileira com a francesa pode ser ilustrado pela presena de Fernand Braudel, grande nome da segunda gerao da Escola dos Annales, entre os intelectuais europeus que estiveram envolvidos na gnese na universidade paulista (LVI-STRAUSS, Claude. Entrevista. Jornal Le Monde, Paris, 22 fev. 2005). 16

ESCRITA DE SI EM REVISTA

crita ntima na Frana, destacarei a contribuio de Phelippe Lejeune, professor de literatura da Universidade Paris XIII, e Jean Hbrard, historiador e professor da cole des Hautes Etudes em Sciences Sociales. Lejeune estudou mais de uma centena de dirios escritos por jovens francesas do sculo XIX, o que lhe rendeu a publicao de Le Moi ds Demoiselles5. Em portugus, um texto sntese dessa obra foi publicado pelo Cadernos Pagu. Lejeune nos ensina como mapear e dialogar com escritos memorialsticos.6 Por sua vez, Hbrard dedicou-se ao estudo dos diferentes suportes materiais da escrita autobiogrfica. Um dos textos mais conhecidos do autor pelos pesquisadores brasileiros compe a obra Refgios do eu, publicada em 2000.7 Alm disso, a coleo Histria da vida privada, organizada por Roger Chartier, consagrou um dos seus textos escrita de si. Orest Ranum, no artigo Os refgios da intimidade, dedicou-se ao estudo de escritos ntimos, como cartas, agendas, memrias e autobiografias, destacando a importncia dessas fontes para a produo do conhecimento histrico.8 No Brasil, a valorizao da escrita de si tem ecoado nos grandes centros de produo historiogrfica. Inmeros congressos, simpsios e seminrios tm sido organizados, sobretudo no Sul-Sudeste do pas, objetivando discutir a importncia das (auto)biografias nos mais variados campos da pesquisa. Entre 08 e 11 de setembro de 2004, foi realizado na PUC do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, o I Congres-

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LEJEUNE, Philippe. Le Moi ds Demoiselles. Paris: Du Seuil, 1993. _____. Dirios de garotas francesas no sculo XIX: construo e transgresso de um gnero literrio. Cadernos Pagu, Campinas, n. 8/9, p. 99-114, 1997. HBRARD, Jean. Por uma bibliografia material das escrituras ordinrias: a escritura pessoal e seus suportes. In: MIGNOT, Ana Chrystina V.; BASTOS, Maria Helena C.; CUNHA, Maria Tereza S. (Orgs). Refgios do eu: educao histria e escrita autobiogrfica. Florianpolis: Mulheres, 2000. p. 29-61. RANUM, Orest. Os refgios da intimidade. In: CHARTIER, Roger. Histria da vida privada. So Paulo: Companhia das Letras, 1991. v. 3: da Renascena ao Sculo d as Luzes. 17

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so Internacional sobre Pesquisa (Auto)Biogrfica9. Em setembro de 2005, a Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da USP realizou o Autobiografia 2005, simpsio internacional cujo tema foi Escrever a vida: novas abordagens de uma teoria da autobiografia. O evento reuniu conferencistas de notoriedade internacional, especialistas em temas como: as interfaces disciplinares na pesquisa sobre discursos autobiogrficos; o status epistemolgico da autobiografia; os aspectos da autobiografia e da teoria da narrativa; a problemtica do sujeito no processo histrico e nos discursos autobiogrficos; os discursos autobiogrficos nas culturas latino-americanas. Os referidos encontros tm logrado xito a medida que aprofundam as discusses sobre essa importante vertente terico-metodolgico. Surge, assim, uma rede que rene estudiosos das mais diversas procedncias institucionais. O estreitamento das relaes entre esses pesquisadores acaba forjando a idia de pertencimento a uma comunidade. Seriam eles os habitantes de um novo campo que est sendo delimitada na Repblica das Letras.10 O vigor desses estudos no Brasil tem motivado a publicao de importantes obras. Em 1995, foi publicado o livro Do sto vitrine: memrias de mulheres, de Maria Jos da Motta Viana11. A obra inventaria e analisa a memorialstica feminina brasileira j publicada, chamando ateno para o fato de que muitos escritos femininos permanecem esquecidos e por publicar. Outra pertinente discusso sobre esse tema apareceu em 1996, na Revista Brasileira de Educao, quando as professoras Denice Brbara Catani, Maria Ceclia C. Souza e Cynthia P de Souza trataram da histria da profisso docente atravs das me.

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CONGRESSO INTERNACIONAL SOBRE PEQUISA (AUTO)BIOGRFICA (Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul PUCRS), 1., 2004, Porto Alegre, 08 a 11 set. 2004 [divulgao em Cd-R: ISBN 85-7430-477-8)]. Sobre a idia de Repblica das Letras sentimento, nutrido pelos letrados, de pertencer a uma comunidade internacional de intelectuais , consultar a obra Uma histria social do conhecimento, do historiador ingls Peter Burke (BURKE, Peter. Uma histria social do conhecimento: de Gutenberg a Diderot. Trad.: Plnio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003). 18

ESCRITA DE SI EM REVISTA

mrias e autobiografias de professoras12. A j citada obra Refgios do eu foi publicada em 2000, reunindo textos de importantes estudiosos de escritos autobiogrficos femininos. 13 Muito recentemente, foi publicada a instigante Escrita de si, escrita da Histria, organizada por ngela de Castro Gomes, onde historiadores analisam dirios, correspondncias e at bilhetinhos da Diviso de Censura de Diverses Pblicas (DCDP) deixados nas redaes dos jornais poca do regime militar14. A segunda parte dessa obra traz artigos que tratam da memorialstica feminina15. O dirio da viscondessa do Arcozelo revela, por exemplo, detalhes de vida cotidiana da nobreza brasileira e ilumina cenrios pouco focados at ento. Em princpios de 2005, veio a pblico um precioso exemplar da memorialstica sergipana. No livro Memrias de Dona Sinh, apresento e analiso a autobiografia de Aurlia Dias Rollemberg (Dona Sinh), sergipana que viveu entre 1853 e 195216. A edio do referido documento, elaborada a partir da transcrio paleogrfica do manuscrito original17, constitui-se num brinde aos pesquisadores da rea.

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VIANA, Maria Jos da M. Do sto vitrine: memrias de mulheres. Belo Horizonte: UFMG, 1995. 12 SOUZA, Cynthia P. de; CATANI, Denice Brbara; SOUZA, Maria Ceclia C.; BUENO, Belmira. Memria e autobiografia: formao de mulheres e formao de professoras. Revista Brasileira de Educao ANPEd, n. 2, maio/jun./jul./ago. 1996 13 MIGNOT, Ana Chrystina V.; BASTOS, Maria Helena C.; CUNHA, Maria Tereza S. (orgs). Refgios do eu: educao, histria e escrita autobiogrfica. Florianpolis: Mulheres, 2000. 14 GOMES, ngela de Castro. Escrita de si, escrita da histria. Rio de Janeiro: FGV, 2004. 15 A escrita da intimidade: histria e memria no dirio de viscondessa do Arcozelo, de Ana Maria Mauad e Mariana Muaze; O dirio de Bernardina, de Celso Castro; Correspondncia familiar e rede de sociabilidade, de Marieta de Moraes Ferreira; Vozes femininas na correspondncia de Plnio Salgado (1932-38), de Ldia M. Vianna Possa. 16 ALBUQUERQUE, Samuel B. de M. Memrias de Dona Sinh. Aracaju/So Paulo: Typografia/ Scortecci, 2005. 176 p. 17 Para isso, empreguei o uso das normas tcnicas para edio de fontes manuscritas. Tais normas foram divulgadas a partir de algumas publicaes, como: Boletim da Associao dos Arquivistas Brasileiros. Rio de Janeiro, ano 4, n. 3. p. 2-3, jul./ago./set. 1994; Circular da ASBRAP. So Paulo, n. 2, s.n.p, 1993; BERWANGER, Ana Regina; LEAL, Joo Eurpedes F. Noes de Paleografia e de Diplomtica. 2. ed. Santa Maria: UFSM, 1995. p. 67-70. 19

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A verdade que nunca se publicaram tantos dirios, correspondncias, biografias, autobiografias, memrias, entrevistas e histrias de vida. Os escritos autobiogrficos sempre tiveram autores e leitores, mas, na ltima dcada, ganharam reconhecimento e visibilidade bem maiores.

A AUTORA E A REVISTA Alm da prpria autobiografia, foram poucos os dados que consegui coligir sobre Emilinha Fontes. O fato de ter falecido distante de sua terra natal dificultou a tarefa de rastrear documentos importantes, como o seu testamento e/ou inventrio post-mortem. Todavia, contei com dois importantes testemunhos, ambos da autoria de Epifnio Dria. O primeiro deles, intitulado D. Emilia Fontes18, serviu de apresentao para a Auto-biografia, e o segundo o necrolgio da autora, publicado na imprensa sergipana em maro de 195319. Tambm recorri ao Dicionrio bio-bibliogrphico sergipano de Armindo Guaran, onde pude confirmar dados referentes ao esposo da autobiografada, o magistrado Joaquim Martins Fontes da Silva.20 O cotejo do escrito autobiogrfico com as referidas fontes possibilitou avaliar a veracidade daquela narrativa21. Entretanto, no ambiciona desvendar a verdade sobre a trajetria de Emilinha Fontes. Interessa-me, sobretudo, a auto-representao construda.

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DRIA, Epifnio. D. Emlia Fontes. Revista do IHGS, Aracaju, v. 14, n. 19, p. 125-126 [1948]. DRIA, Epifnio. D. Emlia Fontes. Sergipe Jornal, Aracaju, 19 mar. 1953 (Necrolgio). JOAQUIM MARTINS FONTES DA SILVA. In: GUARAN, Manuel Armindo C. Dicionrio biobibliogrphico sergipano. Rio de Janeiro: Pongetti & C., 1925. p. 152-153. Dentre inmeras obras que abordam o trato das fontes pelo historiador, referenciaria a contribuio de Basselar na sua conhecida Introduo aos estudos histricos (BASSELAR, Jos van den. Introduo aos Estudos histricos. 5 ed. So Paulo: EDUSP 1994). , 20

ESCRITA DE SI EM REVISTA

Emilia Rosa de Marsillac Motta, como era chamada na solteirice, nasceu a 14 de junho de 1871, na vila de Laranjeiras, antiga Provncia de Sergipe. Filha do farmacutico Pedro Amncio de Almeida Motta e de Maria Emilia de Marsillac Motta, a jovem cresceu no seio de uma famlia catlica, fruto da unio de um ramo decadente da aristocracia local e os Marsillac, famlia cujo patriarca era o comerciante francs Jean Baptiste Aim du Verdier de Marsillac. Em 1877, aps a morte da av materna, com quem morava, Emilinha transferiu-se para a residncia dos pais em Aracaju, ingressando no curso primrio. Contudo, em virtude de um outro acontecimento fnebre que abalou sua famlia a morte da me, provavelmente, em 1879 teve de abandonar os estudos, passando a dedicar-se, integralmente, s tarefas domsticas.22 Aps um noivado de cinco anos, casou-se com Joaquim Martins Fontes da Silva23, em fevereiro de 1895, numa cerimnia conduzida pelo Monsenhor Olympio Campos. O esposo de D. Emilinha, alm da reconhecida competncia na magistratura, foi um famoso rodlogo, diplomado como membro titular da Sociedade Francesa de Roseiristas.24 Casada, D. Emilinha Fontes transferiu-se para So Paulo. Peregrinou por vrias cidades do interior paulista, lugares longnquos onde

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Tratava-se de uma famlia numerosa, composta, aps o falecimento da me da autora, por seu pai e seis irmos: o farmacutico Joo Alfredo de Marsillac Motta, Pedro Augusto de Marsillac Motta, Cristina de Marsillac Motta, Enquia de Arajo Motta e os mdicos Amncio de Marsillac Motta e Manuel de Marsillac Motta. Estando o ltimo presente nas notas biobibliogrficas de Armindo Guaran (MANUEL DE MARSILLAC MOTTA. In: GUARAN, Manuel Armindo C. Dicionrio bio-bibliogrfico sergipano. Rio de Janeiro: Pongetti & C., 1925. p. 214-215). Segundo Armindo Guaran, o bacharel teria nascido a 22 de agosto de 1866, no engenho Salobro, freguesia de Nossa Senhora do Socorro da Cotinguiba/SE. Filho do pernambucano Joaquim da Silva e da sergipana D. Joanna Narcisa Fontes da Silva, concluiu seus estudos na Faculdade de Direito do Recife, em 1890. Atuando na jurisprudncia local, foi promotor pblico na Comarca de Simo Dias, Maruim e So Cristvo. Em So Paulo, foi promotor e juiz em vrias comarcas do interior. Poeta e homem de letras, destacou-se como rodlogo. Faleceu em Bananal/SP a 09 de novembro de 1918 (GUARAN, op. cit.). GUARAN, op. cit., p. 152. 21

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o esposo desempenhou suas atividades na jurisprudncia25. Nesse meio tempo, deu luz aos seus seis filhos Epteto, Narbal, Lisete, Dahyl, Wladice e Maria Emilia e, posteriormente, transferiu-se, para a capital do Estado, onde passou a dedicar-se educao dos filhos e s atividades do lar. O longo perodo de viuvez, iniciado em 1918, levou D. Emilinha Fontes a dedicar-se a uma atividade pouco experimentada at ento a escrita de si. Em 1941, publicou o seu primeiro livro Joaquim Fontes, o jardineiro e as rosas do Brasil , biografando o venerado esposo e, indiretamente, produzindo sua primeira auto-imagem26. A segunda obra da autora, fico baseada, novamente, na vida do esposo, foi publicada em 1947 e intitulada Luz na Tormenta.27 A escritora, falecida em maro de 1953, contava 77 anos quando, atendendo ao pedido de Epifnio Dria, editor da Revista do IHGS, encaminhou sua autobiografia para publicao. *** Os peridicos, sobretudo as revistas28, tm se tornado objeto privilegiado nos estudos de Histria da Educao inspirados pela Nova

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Foi promotor nas comarcas de So Pedro e Tiet, juiz municipal de So Manuel e juiz de direito da comarca de Araraquara, onde esteve envolvido em muitas querelas com as elites locais. Afastado por algum tempo da magistratura, advogou em Tiet, Porto Feliz e Tatu, sendo, tambm, promotor da comarca de Faxina, entre 1908-1910, at reverter para magistratura como juiz de direito de Apia e, finalmente, em 1912, juiz em Bananal (GUARAN, op. cit., 152-153). FONTES, Emlia Rosa de Marsillac (org.). Joaquim Fontes, o jardineiro e as rosas do Brasil. So Paulo: So Paulo Editora, 1941. _____. Luz na Tormenta. So Paulo: [?], 1941. A revista, veculo intermedirio entre o jornal e o livro, consitui-se num importante indicador das transformaes sociais e dos novos rumos da produo do conhecimento. Ana Luiza Martins e outros estudiosos que elegeram a revista como fonte de pesquisa destacam caractersticas prprias desse tipo de peridico, como, por exemplo: o carter seriado e condensado, o propsito informativo, formador e de representao de grupo, alm de outros aspectos ligados edio, extenso, autoria, periodicidade e materialidade. Revista , enfim, um importante veculo utilizado para formar e legitimar interesses de grupos de intelectuais, delimitando milimetricamente os novos campos de pesquisa [MARTINS. Ana Luiza. Revista em Revista. Imprensa e prticas culturais em tempos de Repblica. So Paulo (1890-1922). So Paulo: EDUSP; Fapesp; Imprensa Oficial do Estado, 2001]. 22

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Histria Cultural29. Em Sergipe, os peridicos educacionais tm sido objeto de inmeras pesquisas, a exemplo daquela desenvolvida pelos professores Jorge Carvalho do Nascimento e Itamar Freitas no projeto Catlogo da revistas sergipanas. Os resultados dessa pesquisa foram publicados em 2002, na Revista de Aracaju30. No mesmo ano, Freitas publicou a obra A escrita da Histria na Casa de Sergipe31, desdobramento de uma dissertao defendida em 200132, ampliada com o Catlogo.33 A Revista do Instituto Histrico e Geogrfico de Sergipe foi instituda em 27 de setembro de 1912, com a publicao dos Estatutos do IHGS. O primeiro nmero circulou em 1913 e sua misso estatutria era a de divulgar as atas, os nomes dos scios, os discursos e trabalhos literrios dos membros da Instituio. No obstante a irregularidade das publi-

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Sobre Essa Vertente Historiogrfica, Consultar: Hunt, L. A Nova Histria Cultural. So Paulo: Martins Fontes, 1998. NASCIMENTO, Jorge C. do; FREITAS, Itamar. A revista em Sergipe. Aracaju, Revista de Aracaju, n. 09. p. 169-187. Nascimento e Freitas voltaram a tratar das revistas sergipanas em artigo publicado no jornal Gazeta de Sergipe. O escrito trata das abordagens educacionais na Revista de Instituto Histrico e Geogrfico de Sergipe (FREITAS, Itamar; NASCIMENTO, Jorge C. A temtica da educao na Revista do IHGS. Gazeta de Sergipe. Aracaju, 19 jan. 2002, p. 4). FREITAS, Itamar. A escrita da Histria na Casa de Sergipe (1913-1999). So Cristvo: UFS; Aracaju: Fundao Ovido Teixeira, 2002, 210 p. (Coleo Nordestina). _____. A Casa de Sergipe: historiografia e identidade na Revista do Instituto Histrico e Geogrfico de Sergipe. Rio de Janeiro, 2001. Dissertao (Mestrado em Histria Social), IFCH/ UFRJ. No podemos deixar de anotar a importncia de outros estudos que, diretamente ou no, trataram do IHGS. So eles, em ordem cronolgica: CARNEIRO, Magalhes. Panorama intelectual de Sergipe sob a administrao do Exmo. Sr. Eronildes Ferreiras de Carvalho. Aracaju: Imprensa Oficial, 1940; SILVA, Jos Calazans B. da. O desenvolvimento cultural de Sergipe na primeira metade do sculo XIX. Revista do IHGS, Aracaju, n. 26 b, v. 21, p. 48, 1965; LEITE, Gonalo Rollemberg. Expresso cultural de Sergipe. Separata de: Revista da Faculdade de Direito de Sergipe, Aracaju, n. 12, p. 18, 1970; SANTOS, Pedrinho. Instituies culturais de Sergipe. Aracaju. mimeo, 1984. v. 1; COSTA, Raimundo Nonato et. al. Instituto histrico e Geogrfico de Sergipe: centro de preservao da informao cultural. Aracaju, 1992. Trabalho Acadmico (Graduao em Comunicao Social), UNIT; BARRETO, Roseane Guimares Santos. O Instituto Histrico e Geogrfico de Sergipe e a idia de Centro Cultural. So Cristvo, 1996. Monografia (Licenciatura em Histria) DHI/CECH/UFS; SOUZA, Cristiane Vitrio de. A repblica das letras em Sergipe (1889-1930). So Cristvo, 1996. 23

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caes, trata-se da mais antiga revista que circula em Sergipe, seguida pela Revista da Academia Sergipana de Letras e pela Revista Aracaju.34 H poca da publicao da Auto-biografia, o IHGSE era regido a mo de ferro por Epifnio Dria. Sobre o ambiente da instituio nesse perodo, Freitas anota:Epifnio Dria j era, de direito e de fato, o guardio do Instituto e os membros ocupavam as longas mesas do grmio para conversar um pouco e ler os jornais dirios. Era o tempo de intelectuais como Sebro Sobrinho, Ferreira Neto, Urbano Neto, Jos Garcez Dria, Bonifcio Fortes, entre outros. O ambiente sisudo da sala de leitura era tambm um resqucio da dispora intelectual que se abateu sobre a casa. No estavam mais em Sergipe Mrio Cabral, Jos Calazans, Felte Bezerra, Carlos Garcia e Jos Sampaio. Ao silncio do rito, todavia, contrapunha-se o burburinho das reunies, prelees e festas realizadas no seu auditrio pela Faculdade de Direito, Faculdade de Medicina, Academia Sergipana de Letras, Sindicato de Construes Civis e Casa do Sargento.35

O texto de D. Emilinha Fontes representa a nica autobiografia feminina veiculada na Revista do IHGS36, o que se explica, possivel-

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At o presente, a Revista do IHGS publicou 35 nmeros. Desses, 32 foram devidamente analisados por Freitas, levando em conta a produo e circulao; o perfil dos autores/colaboradores; os tipos documentais produzidos, os temas e problemas predominantes; e as cores locais na produo do conhecimento geogrfico e histrico. FREITAS, op. cit., 2002. p. 18. Existem, contudo, dois outros textos autobiogrficos impressos neste peridico, cujos autores so Jos Pinto de Carvalho e Osas dos Santos. O escrito de Carvalho, publicado postumamente, chama ateno, entre outras coisas, por narrar a experincia poltico-econmica de Sergipe no perodo de sua emancipao poltica. J o escrito incluso de Osas dos Santos aborda, de forma envolvente, a trajetria desse professor e artista plstico sergipano [CARVALHO, Jos Pinto de. Apontamentos sobre alguns atos da vida pblica do cidado brasileiro. Revista do IHGS, Aracaju, v. 2, n. 3, p. 65-70, 1914/SANTOS, Isaura dos (orgs.). A vida de um pintor: Osas dos Santos. Revista do IHGS, Aracaju, v. 21, n. 26b, p. 134-166, 1965]. 24

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mente, pelo amistoso relacionamento entre a autora e Epifnio Dria, que esteve frente da edio do peridico entre os nmeros 10 e 26. Alm disso, o gosto de Dria pelas (auto)biografias pode ser constatado no fato dele prprio ter sido o grande feitor das histrias de vida publicadas no peridico, biografando dezenove pessoas, entre elas, todos os venerveis da Loja Manica Cotinguiba que atuaram entre 1872 e 1906.37 Vale mencionar que, at o final da dcada de 1970, a presena feminina na Revista foi bastante reduzida. Em 1948, quando D. Emilinha Fontes tomou as pginas daquele peridico, apenas duas mulheres tinham vivido a mesma experincia: Maria Alice Firpo e Carmen Sobral, ambas com textos veiculados no nmero 15 da Revista, publicado em 193938. Contudo, os dois breves discursos foram publicados numa edio comemorativa do centenrio de nascimento de Tobias Barreto, tendo o claro objetivo de enaltecer a figura do ilustre varo sergipano.39 A exgua e tardia participao feminina na Revista pode estar relacionada forte presena das idias manicas na Instituio, que pregavam prticas excludentes em relao ao sexo feminino. O prprio Epifnio Dria, segundo as fontes inquiridas por Freitas, fazia parte da instituio fraterna. O que levou, ento, Epifnio a publicar o texto de Emlia Rosa de Marsillac Fontes? Por que um membro da Maonaria, estando frente de um peridico institucional conservador e misgino, decidiu dar voz a uma mulher que sequer residia em Sergipe? Certamente, Dria tinha plena convico da autocrtica que a escritora empregaria a sua narrativa de vida. Tratava-se de uma mulher ajustada socialmente e na qual ele depositava grande confiana. Alm

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DRIA, Epifnio. Venerveis da Loja Cotinguiba. Revista do IHGS, Aracaju, v. 21, n. 26A, p. 127-165. 1961. FIRPO, Maria Alice. Discurso. Revista do IHGS, Aracaju, v. 10, n. 15, p. 161-163, 1939; SOBEAL, Carmem. Discurso. Revista do IHGS, Aracaju, v. 10, n. 15, p. 165, 1939. Logo no Prefcio no nmero, fica evidenciado o carter da publicao (Prefcio. Revista do IHGS, Aracaju, v. 10, n. 15, p. I-II, 1939). 25

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disso, fica subentendido na Auto-biografia que o esposo de D. Emilinha teria sido maom, o que poderia motivar ainda mais o apreo do editor pela viva. Para que no fiquemos somente no campo das hipteses, mencionarei uma preciosa informao colhida nas pginas do dicionrio biobibliogrfico de Armindo Guaran. Joaquim Martins Fontes da Silva, o venerado esposo da escritora, era scio correspondente do IHGS, existindo, portanto, um vnculo indireto entre D. Emilinha Fontes e a Casa de Sergipe40. O fato de dar voz viva de um falecido scio da Instituio era, tambm, permitir que a memria de um scio confrade fosse preservada. No tocante periodicidade, sabemos que, desde 1917, a Revista circulava anualmente, apesar do prolongado hiato entre os anos de 1929 e 1939 e do fato de alguns nmeros condensarem a produo de vrios anos41. Quanto tiragem, provvel que o nmero 19 da Revista tenha contado com 400 exemplares, como o foi entre os nmeros 15 e 18. A parca circulao ficava restrita distribuio gratuita de exemplares entre os scios, os demais Institutos do Brasil e agremiaes congneres. No conseguimos determinar a casa editorial onde o nmero estudado do peridico foi produzido. Sabemos que, desde 1920, a Revista deixou de ser impressa na Imprensa Oficial do Estado, passando aos cuidados de empresas particulares, como a tipografia do jornal A Cruzada e o estabelecimento de Jos Lins de Carvalho. O recorrente formato 22,5x15,5 e o texto de coluna nica, tambm, esto presentes no nmero 19 do peridico. Alm disso, suas 260 pginas esto dentro da mdia. Apesar da ausncia do uso da policromia, utilizou-se a cor vermelha para fixar o nome Revista na capa do peridico. Tambm se observa a incorporao de um smbolo impresso no centro da capa a fachada do prdio do IHGS. O mes-

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GUARAN, op. cit., p. 153. Como ocorreu com os nmeros relativos aos anos de 1921 a 1925, 1926 a 1927 e 1941 a 1942. 26

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mo nmero j contava com notas de rodap e recuos para citaes. As habituais reprodues fotogrficas em preto e branco, contudo, no so observadas42. Como ocorre em outros nmeros, aparecem os elementos pr-textuais (folhas de rosto, listagem dos membros da diretoria e comisses permanentes), seguidos dos elementos textuais (memrias, artigos, discursos, entre outros) e ps-textuais (transcrio de atas, listagem de scios e sumrio). O texto de D. Emilinha Fontes, assim como as demais (auto) biografias presentes na Revista, muito breve, com apenas seis pginas datilografadas, no formato j mencionado.43 O fato de tratar-se de um documento impresso acrescenta Autobiografia algumas peculiaridades que s podem ser enxergadas quando avaliamos a evoluo dos suportes materiais nos quais a escrita de si foi fixada ao longo de sua histria. Caso o texto de Emilia Rosa de Marsillac Fontes existisse numa verso manuscrita, o leitor faria uso de prticas especficas para sua leitura paleogrfica. Dessa forma, o manuscrito distanciaria o leitor dos hbitos mais ntimos, mais livres na relao mantida com o escrito. J a verso impressa permite usos, manuseios e intervenes que no poderiam ser pensadas pelo leitor, caso o texto utilizado fosse manuscrito.44 As informaes elencadas sobre a Revista do IHGS so de suma importncia nesta anlise, pois o suporte material da Auto-biografia interfere diretamente na leitura e na apropriao do texto.

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Segundo Freitas, essas reprodues fotogrficas, na maioria dos casos, estavam atreladas aos trabalhos de cunho biogrfico e a homenagens a presidentes do Estado e diretores/membros do prprio Instituto. Elas esto presentes nos nmeros 7, 9, 10, 12, 13, 15, 24, 27, 29, 30, 31, 32 e 33. Analisando a Revista atravs do critrio de espao ocupado, Freitas atenta para os desnveis entre a contribuio heurstica, geogrfica, biogrfica e memorialista expressas no peridico. Segundo ele, as biografias, incorporando a os discursos autobiogrficos, representariam apenas 26% da produo, o que preenche, efetivamente, 20% do corpo da Revista. Na verso impressa, por exemplo, o leitor pode insinuar sua escrita nos espaos deixados em branco, permanecendo uma clara diviso entre a autoridade do texto, oferecida pela composio tipogrfica, e as intervenes do leitor, necessariamente indicadas nas margens, como um lugar perifrico com relao autoridade. 27

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A MISSO DA AUTO-BIOGRAFIA Para Philippe Lejeune, a publicao de escritos autobiogrficos tem, quase sempre, um duplo objetivo: cultuar a memria do autor e, por conseguinte, dos seus familiares e grupos prximos; alm de instruir e educar moralmente os leitores.45 A autobiografia de Emilinha Fontes encarna fielmente o carter pedaggico mencionado por Lejeune. Na apresentao do texto, o editor da Revista no economizou nos adjetivos para caracterizar a amiga, segundo ele, uma mulher dotada de nobres sentimentos modstia, altrusmo, tolerncia, inteligncia, desprezo s glorias mundanas. Era, enfim, a pessoa na qual as suas irms de sexo encontrariam bons exemplos para sua conduta.46 As intenes de Epifnio Dria ficam claras quando levamos em conta a seguinte declarao: necessrio que se conheam dentro e fora de Sergipe os grandes dotes morais e intelectuais dessa nobre matrona que tanto sabe honrar as nossas tradies de inteligncia e de severidade de costumes.47 No podemos, contudo, saber se a estratgia de difundir o modelo da mulher perfeita teve a repercusso desejada. J assinalamos quo restrita era a circulao da Revista, garantida, sobretudo, aos scios da agremiao, homens em sua totalidade. O pblico alvo do texto as mulheres sergipanas deve ter tido pouca ou nenhuma notcia de sua existncia. Mesmo que no tenha alcanado o efeito desejado, a autobiografia de Emilinha Fontes constituiu-se na representao da mulher que os confrades do IHGS pretendiam formar. A boa sergipana seria aquela que devotaria sua vida famlia, cumprindo risca os papis de filha, esposa e me.

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LEJEUNE, Philippe. Dirios de garotas francesas no sculo XIX: constituio e transgresso de um gnero literrio. Cadernos Pagu, Campinas, n. 8/9, p. 99-114, 1997. DRIA, Epifnio. D. Emlia Fontes. Revista do IHGS, Aracaju, v. 14, n. 19, p. 125-126 [1948]. Idem, p. 125. 28

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Segundo Lejeune, a escrita de si, quando manifestada em manuscritos particulares, constitui-se numa representao mais genuna da realidade, registrando aspectos da vida cotidiana com uma liberdade maior que aquela observada em textos que nascem para o conhecimento pblico. Dessa forma, se compararmos a Auto-biografia de D. Emilinha Fontes com as j mencionadas Memrias de Dona Sinh, encontraremos duas perspectivas bem diversas de auto-representao. No primeiro caso, temos um texto encomendado por um editor e divulgado em um peridico. No segundo caso, temos um documento que, preservado h dcadas no acervo particular dos descendentes de Aurlia Rollemberg (Dona Sinh)48, veio a pblico muito recentemente, resultando de um trabalho de edio que consistiu na transcrio paleogrfica do manuscrito original.49 Encontraremos, nas reminiscncias de Dona Sinh, a auto-representao de uma mulher demasiadamente humana. Sutilmente, a autora deixa transparecer suas fraquezas, seus temores, seus desafetos, suas decepes. Trata-se, claramente, de uma mulher menos atormentada pela necessidade de se reinventar perfeita, pois, ao que tudo indica, a produo de seu escrito ntimo resultou de uma atividade diletante. Por sua vez, Emilinha Fontes coloca-se num pedestal. Afirma, por exemplo, que teria nascido com uma fora de vontade extraordinria e uma orientao sempre segura, sendo, ainda, muito prudente, muito ponderada e muito perseverante. Para ela, apenas humildade e herosmo fizeram-na suportar a dor provocada pela oposio inicial dos pais ao seu casamento. No caso de Aurlia Rollemberg, a escrita memorialstica vai alm das expectativas de uma mera histria de vida quando percebemos as referncias feitas a acontecimentos polticos, econmicos e sociais que

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ALBUQUERQUE, op. cit. p. 49-123. ROLLEMBERG, Aurlia D. Manuscrito, Aracaju, [19]. Arquivo particular da famlia Fonseca Porto. Aracaju-SE. 29

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marcaram o seu tempo. Assim o quando, por exemplo, trata da Abolio da escravido e da proclamao da Repblica. No texto de D. Emilinha Fontes encontramos uma mulher voltada, exclusivamente, para os problemas de sua famlia, pouco atenta aos acontecimentos que se desenrolavam fora dos limites de seu lar. Alm disso, mesmo importantes fatos da vida familiar, como o falecimento da sua me e o nascimento dos seus filhos, so registrados de forma lacunar, omitindo-se datas e locais. Outro aspecto que no pode ser esquecido que, apesar de ser uma mulher que nasceu, cresceu, casou-se e constituiu famlia no sculo XIX, a voz que se manifesta no texto a voz de uma mulher que vivia em meados do sculo XX. Nas palavras de Marina Maluf, lembrar uma atividade do presente sobre o passado, sofrendo as interdies e imposies sem que a escritora consiga evitar os artifcios, as interpretaes, os lapsos e os recalques de toda uma vida sempre to complexa e cuja totalidade constantemente lhe escapa50. Ecla Bosi tambm atentou para o fato de que a atividade de rememorar orientada pelas experincias, pelas predisposies culturais e pelas censuras a que a escrevente esteve exposta ao longo da vida e, sobretudo, no ato da escrita.51 O total silenciamento de D. Emilinha Fontes acerca de temas como a escravido e a sexualidade sintomtico do que chamamos de pacto autobiogrfico entre o eu autorizado e o prprio narrador, criando um discurso adaptado s necessidades do momento no qual foi produzido. At os 17 anos, a jovem Marsillac viveu numa sociedade escravocrata, impregnada pelos vcios de um sistema que, em meados do sculo XX, era tido como uma mcula na histria dos velhos troncos genealgicos de Sergipe. No existe, em seu texto, nenhum tipo de referncia Laranjeiras escravocrata do sculo XIX. O mesmo no

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MALUF, Marina. Rudos da memria. So Paulo: Siciliana, 1995. p. 30. BOSI, Ecla. Memria e sociedade: lembranas de velhos. 3 ed. So Paulo: Companhia das Letras, 1994 (passim). 30

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ocorre nas de memrias de Dona Sinh, que, mesmo construindo um quadro harmnico das relaes entre senhores e escravos, no deixou de tratar do tema. No tocante sexualidade, as abordagens dos dois escritos autobiogrficos se aproximam. Para Lejeune, a autocensura faz com que tudo que diz respeito ao corpo, sexualidade, permanea fora do alcance desses textos52. Perceberemos, nas duas autobiografias, um completo silenciamento acerca dessas memrias demasiadamente ntimas. A herana do universo patriarcal oitocentista est evidenciada, sobretudo, quando a autora revela os dois grandes heris que deram sentido sua vida: o av materno e o esposo. Nesse sentido, afirma que a nica cultura que possa ter o seu esprito proveio da convivncia, por longos anos, com seu marido que era uma fonte de sabedoria, um livro de ouro aberto s almas que tivesse vontade de aprender53. Em contrapartida, a autora sequer menciona o nome da av materna, por quem teria sido criada at os seis anos de idade. A senhora Maria Emilia de Marsillac Motta, me da autora, outro personagem bastante secundrio na narrativa. Contudo, o documento apresenta importantes fragmentos para reconstituio do universo das jovens sergipanas do oitocentos. Nele encontraremos preciosas referncias educao e ao comportamento feminino nas ltimas dcadas do sculo XIX e primeira metade do sculo XX. Mesmo atribuindo seus dotes intelectuais ao convvio com o marido54, a autora no omite a contribuio de alguns mestres para sua formao, a comear pelo prprio av materno, Jean Baptiste du

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LEJEUNE, op. cit., p. 103. FONTES, op. cit., 1948. p. 128. Aparece, na afirmao da autora, um outro elemento interessante acerca da educao feminina no oitocentos: a prtica epistolar. D. Emilinha Fontes informa ao leitor sobre a intensa correspondncia que mantinha com o noivo, dando conta da divulgao dessas cartas no seu livro Luz na Tormenta, publicado em 1948. Essas cartas podem constituir o corpus documental para uma pertinente pesquisa acerca da educao e do comportamento feminino no oitocentos sergipano. 31 croqui

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Verdier Marsillac, uma espcie de preceptor que teria instrudo a neta nas primeiras letras, no credo catlico, no francs, nas noes de etiqueta e prendas domsticas. Aos seis anos de idade, a jovem passou a residir na capital da provncia, onde iniciou seu curso primrio, tendo como mestra a professora Francina Muniz Telles de Menezes. Infelizmente, a autora nada esclarece sobre a mestra, que, ao que tudo indica, teria sido sua professora particular. Tambm teve como mestres o mdico Tomaz Diogo Leopoldo e professor Manoel Francisco Alves de Oliveira55. Deste ltimo, encontramos uma longa nota biobibliogrfica no dicionrio de Armindo Guaran. Tratava-se de um professor laranjeirense formado em Sciencias Ecclesiasticas pelo Seminrio de Santa Tereza na Bahia, em 1871. No tendo seguido o sacerdcio, consorciando-se com a senhora Matilde Adelaide Guimares antes da ordenao, passou a viver em Aracaju e tornou-se um afamado professor. Ainda sobre o dito Manoel Francisco, Guaran afirma ter sido professor dos mais antigos e conceituados no Estado, leccionou as cadeiras do ensino primario superior de Laranjeiras; de religio do antigo Atheneu, de pedagogia e methodologia, e de geografia da extincta Escola Normal e foi nomeado em 28 de Setembro de 1894 director geral da Instruo Publica, em que se aposentou56. Sobre a personalidade do mestre, destacou ser catlico fervoroso, homem de alma affectiva e corao de impulsos generosos compartilhava das infelicidades e soffrimentos alheios, como se fossem proprios, procurando minoral-os com phrases consoladoras e auxilios materiais.5755

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A autora declara um carinho especial para com esse mestre, tendo sido ele seu amigo dileto, seu grande benfeitor. Ao dito Manuel Francisco ela teria dedicado um soneto. GUARAN, op. cit., p. 208. Armindo Guaran apresenta maiores dados sobre a carreira desse mestre que, a partir de 1904, voltou a atuar como lente de geografia e histria na Escola Normal e, interinamente, lente de geografia e astronomia do Atheneu. Trata, ainda dos cargos ocupados pelo mestre no Governo Estadual depois de 1891. Tambm so anotadas as contribuies desse intelectual imprensa local, artigos e discursos tratando de temas interessantes da nossa histria da educao, como: instruo pblica primria em fins da dcada de 1870, a Escola Normal, a inaugurao do colgio Parthenon Sergipense, dentre outros. 32

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Um dos dados apresentados por Guaran foi precioso para esclarecer uma dvida acerca do modelo de Escola do qual desfrutou a literata. A hiptese de que D. Emilinha Fontes teria sido educada por professores particulares ganha fora quando deparamo-nos com a informao de que durante muitos anos [Manoel Francisco Alves de Oliveira] ensinou particularmente, quando lhe sobejava tempo das suas occupaes quotidianas.58 A autora informa, tambm, que chegou a estudar msica e piano com o professor Antonio Paz e com a exmia pianista D. Natalia Andrade. Mesmo sem maiores dados sobre os professores mencionados, necessrio assinalar a importncia das aulas de piano na educao feminina no Brasil do sculo XIX. Abundam as fontes e estudos que destacam a difuso dessa prtica. Segundo Luiz Felipe de Alencastro, comprando um piano, as famlias introduziam um mvel aristocrtico e o inauguravam no sobrado urbano ou nas sedes das fazendas: um espao privado de sociabilidade tornara visvel, para observadores selecionados, a representao da vida familiar. Saraus, bailes e seres musicais tomaram um novo ritmo59. Entretanto, apesar de ser uma aluna esforada, Emilinha no logrou xito em assimilar esses ensinamentos to recomendveis s moas bem nascidas da Provncia de Sergipe. Segundo ela, por conta de sua extrema miopia o aprendizado do piano ficou comprometido. Num balano geral da experincia educacional de Emilia Rosa de Marsillac Fontes, podemos concluir que esta usufruiu de um modelo escolar bastante comum s jovens das famlias mais aquinhoadas do Brasil de antanho.60

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GUARAN, op. cit., p. 209. ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Vida privada e ordem privada no Imprio. In: NOVAIS, Fernando de A. (Coord.). Histria da vida privada no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1997. v. 3: Imprio. Como era comum, a instruo dos vares da famlia foi bem mais promissora, a exemplo do que ocorrera com o caula Manoel de Marsillac Motta, que aps o curso secundrio feito em Aracaju, freqentou a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e fez carreira de mdico no Exrcito, onde foi destacado professor de Fisiologia da Escola de Veterinria [GUARAN, op. cit., p. 214-215] 33

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O universo educacional de uma jovem francesa do sculo XIX pouco difere daquele vivenciado por Emilinha e suas contemporneas em Sergipe. Segundo Lejeune, tratava-se de um processo de duas fases: at 14 ou 15 anos, estando em casa ou no internato, as jovens recebiam uma educao geral, baseada essencialmente no ensino da religio (catlica), lngua francesa, Histria, Artes e entretenimento leia-se piano, desenho e bordado. Na seqncia, vinha a educao profissional e, aos 15 anos, elas eram iniciadas pelas mes em seu futuro papel social. Aprendiam como administrar o lar e como se comportar em sociedade.61 A forte influncia do av catlico e do professor telogo manifesta-se claramente em sua autobiografia. Por exemplo, ao interpretar a viabilidade do seu casamento com Joaquim Fontes, ela afirma que rejeitou, com certa nobreza, a todos os oferecimentos [pedidos de casamento], preferindo apelar para o tempo e para Deus, em cujo poder confiava para o seguro triunfo de sua causa. E pacientemente, esperou cinco anos!. Sua confisso parece querer convencer s possveis leitoras de que uma mulher, para alcanar a felicidade almejada, precisava desenvolver sentimentos como a pacincia e a f. A autora prega, tambm, a necessidade de instruir as novas geraes de mulheres, pois s a educao garantiria dignidade s jovens, possibilitando-lhes triunfar nas luta pela existncia. Relata que, sob sua presena e direo, vislumbrou conseguir educar todos os seus filhos, informando orgulhosamente que: o filho Epteto, era engenheiro; Narbal era mdico e professor; as filhas solteiras Lisete, Dahyl e Waldice, eram professoras, enquanto a caula Maria Emilia teria sido agraciada com a sorte de um bom casamento. Para Emilinha Fontes, a boa sergipana seria, alm de uma filha de conduta irretocvel, uma esposa fidelssima e dedicada, acompanhando o marido em todos os transes de sua vida publica. Confessa que tinha uma alma de esposa e quo prazeroso era estar ao lado do

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LEJEUNE, op. cit., p. 108. 34

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varo ilustre que era o seu magnnimo esposo. Nesse aspecto forja-se, tambm, um modelo masculino. O marido representado como um exemplo para os filhos, sendo ele protetor do lar, ntegro, inteligente e trabalhador. Temos, ento, nessa narrativa de vida, uma fonte que ilumina nossa compreenso acerca da educao e do comportamento feminino no passado. Alm disso, a divulgao do escrito num tradicional peridico institucional denota o claro interesse de uma agremiao em conceder as diretrizes para formao das mulheres sergipanas. Este breve estudo no tem a inteno de esgotar as possibilidades de pesquisa com a Auto-biografia de Emilia Rosa de Marsillac Fontes. Pelo contrrio, tenciona chamar ateno para um documento pouqussimo explorado pelos pesquisadores. Apreendido por minha leitura, esse escrito autobiogrfico pode no ter o sentido que a autora ou o editor lhe atriburam, pois a leitura sempre uma apropriao, uma produo de significados. Roger Chartier nos ensina que toda histria da leitura supe, em seu princpio, essa liberdade do leitor, que desloca e subverte aquilo que o texto lhe pretende impor.62 Fao votos que a obra de D. Emilinha Fontes possa gerar, daqui por diante, outras tantas apropriaes, as mais diversas possveis. Somente dessa forma, sendo percebida e apreendida por olhares diversos, as muitas utilidades desse documento podero se manifestar.

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Id., p. 77. 35

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FONTES E BIBLIOGRAFIA

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CARTAS DE EMLIA

JOS IBAR COSTA DANTAS (*)

RESUMO Este artigo trata do romance proibido entre dois jovens apaixonados em fins do sculo XIX. Apesar da objeo do pai da noiva, a amizade prosseguiu, enquanto a moa resistia a romper com o ptrio poder. Somente depois de cerca de cinco anos de correspondncia, o casamento foi consumado. Juntos, viveram no interior de So Paulo, onde o marido escrevia poesias, cultivava rosas e ganhava a vida como promotor ou juiz. PALAVRAS-CHAVE: Cartas, Romance, Casamento, Sergipe - Sc. XIX

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Historiador e presidente do IHGSE (Instituto Histrico e Geogrfico de Sergipe).

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Na ltima dcada do sculo XIX, em Sergipe, nasceu e cresceu um grande amor entre dois jovens que se avistavam, mas eram impossibilitados de se encontrarem. Apesar de distanciados, a amizade foi alimentada atravs de copiosa correspondncia que, meio sculo depois, Emlia Rosa de Marsillac Fontes publicou no livro Luz na Tormenta.1 Apenas os nomes dos personagens foram alterados. Mas algum que leu a obra, possivelmente Epifnio Dria, identificou vrios deles e escreveu no prprio exemplar da biblioteca do IHGS as denominaes reais envolvidas no caso. A autora, filha do farmacntico Pedro Amncio de Almeida Mota, e de D. Maria Emlia de Marsillac Mota, nasceu, em 1871, em Laranjeiras em famlia afortunada. Em face de sua condio de mulher, o pai entregou-a aos avs maternos para cri-la.2 Quando a av faleceu, Emlia retornou para a casa dos pais. Estudou um curso bsico e um pouco de piano mas, com a morte da me, antes de completar 14 anos, teve que ficar com a responsabilidade da casa. Passado algum tempo, seu genitor casou-se novamente, mas no admitia que a filha contrasse matrimnio. Em maio de 1890, a referida jovem recebeu uma carta do acadmico de Direito Joaquim Fontes, que aparece no livro como Jocelin de Freitas, manifestando sua grande afeio pela moa e revelando suas intenes de despos-la. Joaquim Martins Fontes da Silva, nascido em 1866, no engenho Salobro do Municpio de Socorro, vinha de famlia da elite provinciana. Sua me, Joana Fontes da Silva, era filha do famoso capito-mor Joaquim Martins Fontes e de Ana Maurcia da Silveira Fontes. Seu pai, o Dr. Francisco Joaquim da Silva, embora fosse considerado talentoso na oratria, no deveria ser homem de grande fortu-

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Emlia Rosa de Marsillac Fontes. Luz na Tormenta, So Paulo, 1948, 383 pp. Seu av era um francs, Jean Batista Aim du Verdier de Marsillac, figura bem conhecida em Laranjeiras. Sobre a autora, ver Emlia Fontes. Auto-biografia. Revista do Instituto Histrico Geogrfico de Sergipe, No. 19, 1945/48, volume XIV. Ver tambm Epifnio Dria. D. Emlia Fontes, ibidem. 42

CARTAS DE EMLIA

na3. Mas encaminhou o filho nos estudos em Recife at quando bacharelou-se em 1890, fazendo parte do grupo que cultuava a figura de Tobias Barreto, falecido no ano anterior. Quando a carta do acadmico Joaquim Fontes chegou s mos da moa, Emlia Marsillac leu-a com emoo, ficou embevecida e consultou um parente que lhe deu boas referncias do rapaz. A essa altura, a jovem residia com o pai e a madrasta em Aracaju. Sabendo das restries de Pedro Amncio idia de casamento, ela no lhe revela seus sentimentos. Diante da manifestao do acadmico Joaquim Fontes, age com cautela. Primeiro, quer conhec-lo ao menos de longe. Sua vontade chega ao conhecimento do jovem, que procura atendla. O pretendente vestiu-se com aprumo e passou vrias vezes pela frente da casa dos pais de Emlia Marsillac para que ela o visse. Sorridente e feliz, Joaquim Fontes cumprimentou-a distncia, cena que repetiu-se em outros dias. A filha de Pedro Amncio considerou-o de boa aparncia, simpatizou com seus olhos grandes e negros, mas demora a demonstrar receptividade. Todavia, o jovem persiste, continuando a escrever-lhe e a remeter-lhe tambm suas poesias. Mas, Emlia Marsillac no tem pressa, consulta os irmos, reflete, investiga, mesmo porque seu consentimento significava considerar-se noiva. Decorridos quatro meses, a resposta to ansiosamente aguardada por Joaquim Fontes chegou de forma afirmativa. Com a cumplicidade mtua, o romance prosseguiu, revelando crescente paixo. Mas, o noivado transcorreu de longe, entremeado de tenses. Nas epstolas dos dois enamorados sensveis, as interpretaes das frases por mais bem intencionadas, por vezes, criavam dvidas, angstias, preocupaes, perda de sono. Mas, geralmente na carta posterior o mal entendido geralmente era desfeito. Coisas de gente

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Sobre Joaquim Fontes, estamos nos baseando nos ensaios publicados no livro: Joaquim Fontes, o jardineiro e as rosas do Brasil, So Paulo, Ed. Ltda, 1941, coletnea publicada por iniciativa da viva, Emlia Fontes. 43

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apaixonada de imaginao frtil e cheia de fantasias. As juras de amor sucederam-se, mostrando profundo comprometimento mtuo. Emlia Marsillac diz que, se no se casasse com Joaquim Fontes, iria para um convento, enquanto este no chega a dizer que pretendia viver num mosteiro, entretanto, prometia-lhe amor eterno. Ocorre que o pai de Emlia Marsillac no admitia o enlace. Joaquim Fontes formou-se, passou a trabalhar como promotor ou juiz em alguns municpios de Sergipe4, enquanto a permuta de cartas persistia, revelando seus sofrimentos com as dificuldades para realizarem o grande sonho. As correspondncias mostram tambm as personalidades fortes, resolutas de cada um e um pouco o ambiente da poca. Numa leitura panormica, no encontramos nenhuma referncia a qualquer encontro pessoal entre eles. um amor distncia, atravs das cartas, nas quais os valores da poca apareciam de forma eloqente, o que por si s justifica um estudo especfico por algum qualificado para tanto. Somente um exemplo: ambos condenavam radicalmente a infidelidade, defendendo a idia de que a mulher que trai o marido merece ser assassinada. Contudo, o que mais chama ateno no conjunto dos textos o sofrimento dos dois jovens diante da deciso de Pedro Amncio, proibindo-os de realizarem seus sonhos. As cartas expressam tambm um certa tenso na longa busca de alternativa para viabilizar o enlace. O caso se torna pblico, o padecimento dos dois jovens apaixonados, impedidos de casarem-se, passa a sensibilizar outras pessoas. Para superar o impasse, os noivos recorrem aos amigos do pai com o fim persuadi-lo a consentir o casamento. Mas o genitor aborrece-se e sempre reage negativamente. No h parente nem amigo que consiga demov-lo de sua objeo. A intransigncia do velho e o drama dos moos apaixonados passaram a ser discutidos por juristas, como

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No romance, depreende-se que foi juiz em Japaratuba, mas num captulo, escrito por Zzimo Lima, h a informao de que foi promotor pblico em Simo Dias, Maroim e So Cristvo, bem como juiz de Capela. Ver Joaquim Fontes, o jardineiro e as rosas do Brasil, So Paulo, Ed. Ltda, 1941. 44

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Gumercindo Bessa, e autoridades como o ento presidente do Estado, Vicente Lus de Oliveira Ribeiro (28.05.1891 a 24.11.1891). Essas e outras eminentes personalidades sugeriram ao rapaz que a noiva se refugie no Palcio do Governo e l, com o apoio das autoridades, seria celebrado o casamento. Mas Emlia Marsillac resistia. Sair da proteo do ptrio poder e ficar, num ambiente estranho, aguardando a cerimnia, ia de encontro aos seus valores. Somente aceita casar-se com o consentimento do pai, a quem revela ateno e estima, apesar de tudo. Joaquim Fontes angustia-se, sofre, duvida do grande amor que ela confessa por ele. Considera a fuga uma emancipao. A noiva tambm padece, mas no se dispe a transgredir os padres vigentes. Logo depois, Vicente Ribeiro deixou o governo e em meio instabilidade poltica que marcou a primeira dcada republicana, uma junta governativa, composta por trs pessoas, passou a administrar o Estado e tornou sem efeito vrios atos da gesto anterior. Com um desafeto, entre os membros da referida junta, o jovem foi demitido a bem do servio pblico. Sem vez em Sergipe, Joaquim Fontes deixou o Estado em fevereiro de 1892. Foi para o Esprito Santo, depois foi nomeado promotor e, posteriormente, juiz para atuar em pequenas cidades de So Paulo. A grande distncia se interpe entre os dois amantes. Mas, a correspondncia, a paixo e os padecimentos persistiram, decorrentes da proibio do matrimnio. Os meses e os anos foram transcorrendo, mas o amor revelou-se forte, enfrentando a distncia, as fofocas e outras adversidades. Para Emlia Marsillac, a alternativa era apelar para os amigos de seu pai, embora esse recurso tenha se revelado at ento incuo. Contudo, eles insistem, procurando outros personagens que pudessem ajud-los. Apelam para o Cnego Olympio Campos, religioso e poltico que j gozava de prestgio na sociedade aracajuana. Este foi a So Paulo, conversou com o magistrado Joaquim Fontes, sensibilizou-se com a causa e resolveu, em nome do noivo, pedir a mo de Emlia a Pedro Amncio de Almeida Mota. Mas, nem a fora da influncia, nem os argumentos do religioso conseguiram mudar a sua deciso. O velho permanecia irredutvel, inflexvel em sua determinao. E o tempo flua.45

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Em 1895, quando j se aproximava do quinto ano do grande amor, Joaquim Fontes veio a Aracaju e, com os papis encaminhados, conseguiu que Emlia Marsillac consentisse em casar-se no civil. E assim fizeram. Concluda a cerimnia, assistida por poucas pessoas, ela voltou para a casa do pai, como se nada tivesse ocorrido. Por esse tempo, o pai adoeceu, os filhos vieram visit-lo e resolveram lev-lo para outro Estado. Diante da perspectiva da morte, o velho Pedro Amncio cedeu, autorizando um filho a realizar o casamento de Maria Emlia de Marsillac Mota com Joaquim Martins Fontes da Silva. A cerimnia aconteceu na casa de Pedro Amncio em Aracaju, em fevereiro de 1895, celebrada pelo Cnego Olympio Campos com todos os ritos convencionais. Em seguida, o jovem casal tomou um vapor e foi se afastando da cidade, deixando ao longe as praias brancas, ricas de Cmoros de areais e de coqueiros com destino Salvador. A, tomaram um paquete com destino a Santos, depois seguiram para Tiet, onde o jovem sergipano era promotor. No interior de So Paulo, tiveram pelo menos seis filhos e foram felizes. Joaquim foi nomeado juiz, depois renunciou judicatura e foi advogar, retornou magistratura, mas continuou sempre produzindo poesias e a cultivar rosas. Sua produo potica foi reconhecida pelos patrcios ao ser homenageado como patrono de uma cadeira da Academia Sergipana das Letras, que hoje ocupada pela veneranda professora Maria Thtis Nunes, Presidente de Honra do IHGS. Com seu roseiral muito visitado, perfumando a cidade de Tiet, fez numerosas experincias, criando mais de cem tipos novos de rosas. Ao nome-las, servia da oportunidade para homenagear pessoas de sua admirao: Tobias Barreto, Fausto Cardoso, Rui Barbosa, a esposa e tantos outras. Com sua sensibilidade aguada, notabilizou-se como um dos maiores especialistas da poca, conhecido nos Estados Unidos e na Europa, onde tinha vrios admiradores. Homem austero e ao mesmo tempo magnnimo, avesso publicidade, segundo alguns depoimentos, era um grande sonhador, nem sempre lembrando-se de proporcionar famlia melhores condies de sobrevivncia. E assim passou as ltimas dcadas, embevecido com46

CARTAS DE EMLIA

as rosas e com as coisas do esprito, at quando faleceu serenamente, em 1918, em Bananal (SP), fato registrado inclusive pelo Correio da Manh, importante jornal do Rio de Janeiro. Emlia Fontes sobreviveu ao querido esposo por muitos anos. Mudou-se para a capital paulista, formou todos os filhos e prosseguiu cultuando a memria do seu inesquecvel marido. Primeiro, empenhou-se em reunir artigos sobre seu querido companheiro e, em 1941, publicou-os, incluindo seu depoimento de viva saudosa, resultando no livro: Joaquim Fontes, o jardineiro e as rosas do Brasil. Como se isso no bastasse, juntou as cartas do tempo do noivado proibido e, em 1948, divulgou-as, como exemplo de um grande amor: Luz nas Tormentas. Hoje, num tempo de amizades efmeras, velhas cartas do fim do sculo XIX podem parecer sem atraes e mesmo ridculas, fazendonos lembrar alguns versos da cano Mensagem, interpretada por Maria Bethnia:Todas as cartas de amor so ridculas. No seriam cartas de amor se no fossem ridculas. Tambm escrevi, no meu tempo, cartas de amor como as outras, ridculas. Afinal, s as criaturas que nunca escreveram cartas de amor que so ridculas.

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EDUCAO, MULHERES E IMPRENSA

PAULA SORAYA NASCIMENTO LIMA (*)

RESUMO Nas ltimas dcadas, assistimos a uma considervel alterao no papel social da mulher. Embora importantes transformaes polticas, econmicas e sociais tenham ocorrido, as mudanas referentes ao papel e a posio social da mulher podem tambm ser atribudas s presses exercidas pelo movimento feminista e pelas novas pesquisas acadmicas acerca da mulher. Diante desses fatores, os textos produzidos por mulheres e a elas dirigidos resultam em valiosos documentos sobre sua histria de represso e de confronto com a idia de Rainha do Lar. Assim, objetivo do presente trabalho analisar as revistas femininas como fonte para o estudo dos valores morais no Brasil no incio do sculo XX. PALAVRAS-CHAVE: Educao, Histria, Mulheres, Imprensa, Emancipao.

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Graduada em Histria pela UFS.

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Um dos fenmenos mais evidentes, do final do sculo XX e incio do sculo XXI no mbito dos estudos acadmicos principalmente nas reas de Cincias Sociais, Literatura e Histria o crescente interesse pelas pesquisas sobre as mulheres e o mundo feminino. No Brasil, estudos recentes indicam a importncia da escrita autobiogrfica feminina dirios, memrias, lbuns, cartas como tambm a relao desta com a presena da mulher na literatura, na imprensa educacional e feminina, nos jornais de grande circulao e nos centros urbanos. De acordo com Freitas1, isto permitiu a ampliao do campo de visibilidade para alm do espao domstico, contribuindo para perceber como algumas mulheres participavam da vida social na passagem do sculo XIX para o XX, atravs de vestgios acerca da sociabilidade, do cotidiano, das prticas de leitura, do seu progresso de educao e emancipao, de lutas e conquistas. Por sua vez, a escrita autobiogrfica ou biogrfica feminina, revela ainda, nas suas mais diferentes matizes, movimentos densos, da relao entre autoras e a vida social, poltica e cultural do seu tempo. Para Perrot:(...) os laos tecidos pelos meios de comunicao. Como as ondas, a palavra, a imagem, o escrito esfera do radio, do telefone, da televiso ... Subvertem as fronteiras cada vez mais permeveis e favorecem as incurses. Uma mulhe r na intimidade do seu quarto, pode escrever um livro ou um artigo de jornal que a introduziro no espao pblico. por isso que a escritura, suscetvel de uma prtica domiciliar (assim como a pintura), uma das primeiras conquistas femininas, e tambm uma das que provocaram mais forte resistncia2.

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FREITAS, Anamaria Gonalves Bueno de. Educao, Trabalho e Ao Poltica: sergipanas no incio do sculo XX. Campinas: Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educao. 2003. p. 17. PERROT, Michelle. Mulheres pblicas. So Paulo: Fundao Editora da UNESP, 1998. (Prismas). p. 10. 50

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O porqu desse interesse pelo mundo feminino extremamente evidente, pois, acompanhado das grandes mutaes poltico-econmico-sociais que se aceleram no sculo XX, as relaes homem-mulher foram profundamente alteradas e, consequentemente, se alterou o sistema familiar: a mulher transpe os limites do lar que o sistema patriarcal lhe destinara e ingressa no mercado de trabalho. J agora para cumprir o novo papel que o sistema econmico lhe exigia. Ingresso que, como sabemos, teve profundas conseqncias no apenas no mbito familiar, mas tambm no plano poltico-econmico. E dentro desse contexto, que ganham maior interesse s pesquisas que se vm desenvolvendo sobre a mulher e sobre a imprensa que surge no Brasil, entre a segunda metade do sculo XIX e primeira dcada do sculo XX, pois, ela uma das principais fontes onde podemos encontrar os testemunhos de tudo que fazia parte do cotidiano da mulher brasileira na poca, desde comentrios sobre moda, beleza, espetculos de teatro, culinria, romances, marido e filhos, at as reivindicaes feministas (ou pr-feministas).A imprensa feita por mulheres e para mulheres, fonte das mais ricas da historiografia, vem sendo objeto de tratamento vrios, descortinando, aos poucos, dimenses insuspeitas do universo feminino; mais reveladoras ainda quando enriquecidas pelos estudos de gnero, que tem norteado as anlises nesse mbito3.

Ao contrrio dos novos leitores que se inauguraram com a Repblica, de acordo com Martins4, a mulher leitora, desde o imprio fora presena assdua no contexto do impresso, apesar de um nmero limitado e circunscrita a grupos sociais elevados. Todavia, ainda segundo a

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MARTINS, Ana Luzia. Revistas em Revista. Imprensa e prticas culturais em tempos de Repblica. So Paulo (1890-1922). So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo; Fapesp: Imprensa Oficial do Estado de So Paulo. 2001. p. 371. Idem. p. 372. 51

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autora, a sua passagem como consumidora e produtora de impressos foi extremamente rpida. De leitora de folhetins e/ou romances, editados in 8, formato apropriado para as difanas mos femininas, passaram a colaboradoras e produtoras de revistas5". Embora as oportunidades educacionais para moas permanecessem limitadas mesmo nas cidades, alguns progressos ocorreram durante a segunda metade do sculo XIX. Mas apenas uma parte da populao do Brasil tornou-se alfabetizada. A educao era em grande parte prerrogativa daqueles que se outorgavam seus benefcios por nascimento ou posio.Em 1873, o imprio possua apenas 5.077 escolas primrias, pblicas e particulares. Essas escolas tinham um total de 114.014 alunos e 46.246 alunas nas famlias mais ricas, as crianas muitas vezes no eram educadas nas escolas (frequentemente mal dirigidas) seno em casa6.

A educao das meninas permanecia atrasada em relao dos meninos, uma vez que a elas era destinado o papel de me e de esposa. At a leitura das mulheres, no devia ir alm dos livros de oraes, porque seria intil para uma mulher, nem tampouco deveriam escrever, como era sabiamente ressaltado, a fim de que no fizesse um mau uso da arte7. Mas lentamente a idia de escolarizao para as meninas foi se acrescentando idia mais antiga de educao domstica, embora no se oferecesse ainda uma educao idntica quela ministrada aos meninos, as meninas aprendiam alm das prendas domsticas (trabalhos de agu-

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7

Idem. p. 373. HAHNER, June E. A Mulher Brasileira e suas lutas sociais e polticas: 1850-1950. So Paulo: Editora Brasiliense. 1980. p. 32. Idem. p. 33. 52

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lha), aprendiam algumas disciplinas como, por exemplo, as primeiras letras, as gramticas portuguesa e francesa, msica, canto e dana. Se a instruo feminina (mesmo quando ministrada por uma preceptora particular ou pela mestra da escola) era encarada com desconfiana por seus riscos potenciais, muito mais acirrado seria o policiamento ideolgico das leituras femininas que se realizaram, no raro, em carter privado, ntimo e secreto. Assim, a fiscalizao das leituras domsticas das jovens era recomendada. At mesmo pelos mdicos que alertavam os pais para o perigo representado pelos romances, literatura considerada malfica em razo de seu poder de excitar desejos de paixes. Da mesma forma que a leitura, a prtica da escrita pelas mulheres tambm no era bem vista. No sculo XIX, muitas mulheres, guiadas pela necessidade provocada pela prpria represso a que estavam sujeitas, apelaram para os dirios ntimos, confiando-lhes aquilo que estavam impedidas de confessar em pblico. Todavia, essa prtica feria os cdigos segundo os quais uma filha ou uma esposa jamais deveria manter segredos de seus tutores masculinos (pais ou maridos), desta forma, a utilizao feminina de um dirio tornava-se condenvel. Mesmo assim, apesar de todas as dificuldades foi a partir dessa poca que um grande nmero de mulheres comeou a escrever e publicar, tanto na Europa quanto nas Amricas. A participao feminina no periodismo brasileiro, ainda que de forma tmida, datam da primeira metade do sculo XIX, os quais eram abordadas questes sobre moda e ensaios de literatura, principalmente, poemas, contos e poesias. Durante a primeira metade do sculo XIX, existiram vrios jornais dedicados ao pblico feminino, todavia estes eram fundados e dirigidos por homens. A mulher leitora, delineava-se em algo oportuno para ser explorado pelo mercado editorial, ou seja, a mulher consumidora, informada dos produtos em voga, estimulada ao consumo, sensvel s ofertas do mercado. Diante disso, a editorao peridica investiu nesta demanda priorizando-a nas publicaes de todo o teor.53

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A leitora encontrou nas revistas outra alternativa de consumo impresso, uma leitura da fcil compreenso, prazerosa e mais acessvel em relao ao livro.A conquista dos novos pblicos, como o pblico feminino, est relacionada com estratgias editoriais que oferecem um conjunto de obras especialmente voltados para ele, como o da literatura de gua doce8.

As revistas femininas veiculam o que considerado prprio do mundo feminino pelos seus contemporneos, servindo de guias de ao, conselheiras e companheiras de lazer. Como uma das funes das revistas femininas era comercial, estas deviam ser vendidas e proporcionarem lucros. Sendo assim, tendiam a reproduzir idias predominantes em sua poca e o equilbrio da forma social. Grande parte destas publicaes femininas poderia ser considerada produto de elite, uma vez que, por essa poca, ainda era relativamente reduzido o nmero de mulheres que dispunham de tempo, dinheiro e instruo para adquiri-las e l-las. Durante a segunda metade do sculo XIX, um pequeno grupo pioneiro de feministas brasileiras proclamou sua insatisfao com os papis tradicionais atribudos pelos homens s mulheres. Principalmente por meio de jornais editados por mulheres, surgidos nessa poca nas cidades do centro-sul do Brasil, elas procuravam despertar outras mulheres para seu potencial de autoprogresso e para elevar seu nvel de aspiraes. Tentaram, por sua vez, incitar mudanas no status econmico, social e legal no Brasil. Data de 18529, o aparecimento no Rio de Janeiro do primeiro jornal feminino, que contava com a participao de mulheres em sua

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MARTINS, Ana Luzia. Revistas em Revistas. Imprensa e prticas culturais em tempos de Repblica. So Paulo (1890-1922). So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo; Fapesp: Imprensa Oficial do Estado de So Paulo. 2001. p. 372. HAHNER, June E. A Mulher Brasileira e suas lutas sociais e polticas: 1850-1950. So Paulo: Editora Brasiliense. 1980. p. 34. 54

EDUCAO, MULHERES E IMPRENSA

redao O Jornal das Senhoras, fundado e dirigido por Joana Paula Manso de Noronha. O Jornal das Senhoras tentou utilizar o papel da mulher como me de modo a elevar sua posio. A mulher cheia de instruo e da religiosidade que lhe sempre natural exercia melhor suas sagradas funes de me10. No Brasil, as primeiras dcadas da Repblica foram marcadas pelo incio da modernizao econmica e cultural brasileira, as cidades, principalmente foram responsveis pela construo de novos espaos de sociabilidade, como por exemplo, cinemas, cafs, entre outros. A imprensa tambm ganhava destaque, marcando presena na sociedade atravs dos jornais dirios ou mesmo das revistas ilustradas, ou da imprensa pedaggica, feminina, feminista, etc, ou seja, da imprensa especializada. De acordo com Priore:As revistas femininas revelaram um territrio frtil para pensar ou reler a histria das pequeno burguesas, das leitoras urbanas, fazedoras de uma cultura conservadora e identificada com as regras impostas pela Igreja e pelo Estado. Nas pginas coloridas dos magazines desfilam modelos enraizados em smbolos a rainha do lar, - a mam ideal, a abelhinha trabalhadora -, condutores de todas as formas de expresso que permitem as mulheres reificar, sem resistncias aparentes, saberes e atitudes diante da vida. As revistas femininas, invasoras dos espaos pblicos e dos privados, ajudam ainda a interiorizao da dominao masculina pela interferncia direta do imaginrio feminino11.

Em Sergipe, as primeiras dcadas republicanas tambm foram marcadas pelo incremento da grande imprensa em todo o Estado. Um grande nmero de jornais dirios e at mesmo revistas literrias foram

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Jornal das Senhoras 19 de setembro de 1852. p. 89-90, citado por HAHNER, p. 41. PRIORE, Mary Del. Histria das Mulheres: as vozes do silncio. In: FREITAS, Marcos Cezar de. (org). Historiografia Brasileira em Perspectiva. 2 ed. So Paulo: Contexto; Editora So Francisco, 1998. p. 229. 55

REVISTA DO INSTITUTO HISTRICO E GEOGRFICO DE SERGIPE

criadas. Alm da exibio de vrios filmes, espetculos teatrais, vrias associaes, educacionais, literrias e cientificas foram criadas com diversos fins, dentre elas: o Instituto Histrico e Geogrfico de Sergipe IHGS (1912), a Liga Sergipense contra o Analfabetismo (1916), o Club Esportivo Feminino (1919).

A IMPRENSA FEMININA EM SERGIPE Em Sergipe do final do sculo XIX e incio do sculo XX muitas autoras sergipanas estiveram presentes colaborando com a imprensa local em jornais dirios ou mesmo na imprensa especializada, literria, cultural, abolicionista, feminina e feminista. No diferindo das demais regies do Brasil em relao imprensa feita por mulheres, suas colaboraes a este veculo circulavam em torno de diferentes estilos, como a prosa, os contos, os poemas, as crnicas, as cartas, os editoriais, entre outros. Sabe-se que essas mulheres, quando comearam a estudar fizeram apenas o Curso Primrio e excepcionalmente o Curso de Formao de Professoras Primrias, o Curso Normal. Entretanto, so principalmente as professoras primrias que vo desencadear a luta da mulher por um lugar no mundo cultural. Assim, a literatura e a imprensa foram os caminhos que essas mulheres encontraram para alcanarem os seus objetivos. Apesar das dificuldades principalmente em relao ao acesso educao formal, garantido legalmente apenas o acesso s primeiras letras a partir de 1834, podemos perceber uma preocupao de um grupo de mulheres em torno da imprensa, quer na organizao e publicao de livros, quer na iniciativa de edio e manuteno de revistas e jornais femininos (...) em diversas regies do Brasil12.

12

FREITAS, Anamaria Gonalves Bueno de. Mulheres sergipanas e a imprensa: primeiras aproximaes. In: Revista Aracaju/Prefeitura Municipal de Aracaju (FUNCAJU). Ano IX. N 9. 2002. p. 158. 56

EDUCAO, MULHERES E IMPRENSA

As mulheres sergipanas tambm se fizeram presente neste perodo, apresentando suas colaboraes grande imprensa destacando-se algumas delas que colaboraram com jornais e revistas de outros estados. De acordo com Freitas13, em sua maioria as literatas sergipanas deste perodo exerceram magistrio: a professora Etelvina Amlia de Siqueira (1862-1935), catedrtica da Escola Normal, a mdica tala da Silva Oliveira (1897-?) e a advogada Maria Rita Soares de Andrade (1904-1998). Ainda segundo a autora, o destaque dado a essas trs mulhe