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    GIORGIOAGAMBENARQUEOLOGIA DA OBRA DE ARTE

    Transliterao e traduo de Vincius Nicastro HoneskoUniversidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

    Natal (RN), v. 20, n. 34Julho/Dezembro de 2013, p. 349-361

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    Giorgio Agamben

    Conferncia de Giorgio Agamben em Scicli, Siclia, no dia 06 deagosto de 2012. A conferncia ainda se encontra indita em italianoe tem nesta publicao em portugus (autorizada pelo autor) suaprimeira verso escrita. O arquivo aqui transliterado e traduzidoesteve disponvel durante o primeiro semestre de 2013 no endereoeletrnico: http://www.youtube.com/watch?v=A7NrMgIoEfg. Porse tratar de transliterao de uma conferncia, algumas passagens

    apresentam um tom coloquial; ademais, procurei evitar, medidado possvel, as repeties e retomadas comuns aos discursos econferncias. Ainda assim, o leitor poder constatar, de certo modo,algumas diferenas estilsticas em comparao aos textos deAgamben.

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    http://www.youtube.com/watch?v=A7NrMgIoEfghttp://www.youtube.com/watch?v=A7NrMgIoEfg
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    Arqueologia da obra de arte

    Temo que o que iro escutar no corresponde exatamente ao ttuloum tanto pomposo Lectio magistralis. Eu me limitarei a partilharcom vocs algumas reflexes sobre a situao da obra de arte hoje.Por isso, da minha parte, gostaria de ter intitulado aconferncia Arqueologia da obra de arte. A ideia que guia asminhas reflexes que a arqueologia e no a futurologia a nicavia de acesso ao presente.

    Como certa vez sugeriu Michel Foucault, as pesquisas sobreo passado, as pesquisas histricas que fazemos sobre o passado, soapenas a sombra que paira sobre uma interrogao dirigida aopresente. procurando compreender o presente que ns, europeus,encontramo-nos constrangidos a interrogar o passado. Especifiqueins, europeus porque me parece que, admitindo-se que a palavraEuropa tenha um sentido o que no seguro , este, como hoje evidente, no pode ser nem poltico, nem religioso, e muito menos

    econmico; no entanto, talvez, consista nisto: que o homemeuropeu, de modo diverso dos asiticos ou dos americanos, para osquais a histria ou o passado tm um significado completamentediferente, pode ter acesso sua verdade apenas por meio de umconfronto com o prprio passado, somente acertando as contas coma prpria histria. Por isso, creio que a crise que a Europa estatravessando , antes de mais nada como deveria ser evidente nodesmantelamento das instituies universitrias e na museificao

    crescente da cultura , no um problema econmico, mas uma criseda relao com o passado.

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    Vocs sabem que hoje se fala muito de crise, de economia, epenso que quem quer que tenha um pouco de inteligncia deve

    saber que essas palavras no so usadas como conceitos, mas comopalavras de ordem para impor e obter restries e sacrifcios que, deoutro modo, e com razo, as pessoas no gostariam de fazer; ou,ainda, crise, no fundo, hoje uma palavra de ordem que significaapenas obedea!, uma palavra vazia de sentido. E, portanto, se huma crise, se uma crise tem sentido, justo a crise da relao com opassado. Uma vez que, obviamente, o nico lugar em que o passadopode viver o presente, e se o presente no sente mais o prprio

    passado como vivo, as universidades e os museus tornam-se lugaresproblemticos. Se a arte se tornou para ns hoje uma figura, ou,talvez, a figura eminente desse passado, ento a pergunta que preciso ser colocada : Qual o lugar da arte no presente?. Soessas as consideraes que procurarei fazer.

    A expresso Arqueologia da obra de arte, a qual gostariaque tivesse sido o ttulo da conferncia, pressupe que a relaocom a obra de arte tenha se tornado hoje problemtica. E se, como

    estou convencido como dizia Wittgenstein , os problemasfilosficos devem ser colocados como perguntas sobre o significadodas palavras, o verdadeiro problema filosfico : O que significaessa palavra?. Ora, isso quer dizer que hoje a expresso obra dearte tornou-se opaca ou mesmo ininteligvel. A sua obscuridade nodiz respeito apenas ao termo arte, que dois sculos de reflexoesttica tornaram problemtico, mas tambm, e acima de tudo, aotermo obra. At mesmo de um ponto de vista gramatical a

    expresso obra de arte, que usamos com tanta desenvoltura, no nada fcil de entender. De fato, no est claro se, por exemplo,trata-se de um genitivo subjetivo, isto , se a obra feita da arte,pertence arte, ou de um genitivo objetivo, no qual o importante a obra e no a arte. Em outra palavras, se o elemento decisivo aobra, a arte, ou a no bem definida mistura das duas. Alm disso,vocs sabem que hoje a obra parece atravessar uma crise decisivaque a fez desaparecer do mbito da produo artstica, na qual a

    performance e a atividade criativa do artista tendem cada vez maisa tomar o lugar daquilo a que estvamos habituados a chamar obrade arte. Ou seja, se hoje a arte se apresenta como uma atividadesem obra hoje, como vocs sabem, os artistas contemporneos so

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    artistas sem obra, que exibem documentos de uma obra ausente ,isso pde acontecer porque o ser obra da obra de arte permanecia

    no pensado. Por isso, penso que apenas uma genealogia doconceito de obra conceito que julgo fundamental, mesmo se nose apresenta assim nos manuais de filosofia pode tornarcompreensvel tal processo (que, creio, segundo o notrioparadigma psicanaltico do retorno do reprimido vocs sabem queFreud dizia que h um trauma, em seguida um recalque e, depoisdesse recalque, o trauma reaparece na forma mitolgica comosintoma , faz da obra, hoje, o grande reprimido da arte

    contempornea, o reprimido que retorna em formas patolgicas).Naturalmente no posso fazer uma genealogia desseconceito mas, no entanto, limito-me a apresentar-lhes algumasreflexes sobre trs momentos que me parecem extremamentesignificativos. Para comear, ser preciso que nos desloquemos Grcia clssica, grosso modo, aos tempos de Aristteles, isto , aosculo IV a.C.. Qual a situao da obra de arte de modo geral,das obras e dos artistas nesse momento? Muito diferente daquela

    a que estamos habituados. O artista, como qualquer arteso, estclassificado entre os teknites, isto , entre aqueles que, praticandouma tcnica, produzem coisas, produzem objetos. No entanto, a suaatividade jamais tomada como tal, mas sempre e apenasconsiderada do ponto de vista da obra produzida. Esse um fatodifcil de ser compreendido por ns p.ex., temos muitostestemunhos de contratos de trabalho de artesos e artistas: otrabalho e o tempo empregado jamais so levados em considerao;

    trata-se apenas de fornecer a obra em questo. Por isso, oshistoriadores modernos com frequncia repetem que em grego faltao conceito de trabalho. Com efeito, um conceito de trabalho e deatividade artstica como o nosso no aparece em absoluto. Creio,entretanto, que seria preciso dizer que no que aos gregos faltecompletamente o conceito, mas que eles no distinguem o trabalho,a atividade produtiva, da obra. Aos seus olhos, a atividadeprodutiva est por inteiro na obra e no no artista que a produziu.

    H uma passagem de Aristteles em que isso expresso claramente(trata-se de um trecho da Metafsica dedicado aos seus doisconceitos to importantes: potncia e ato, dynamis e energeia). Otermo energeia apenas um termo criado por Aristteles (e

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    tambm os filsofos, como os poetas, precisam inventar palavras; oumelhor, creio que se deveria dizer que a terminologia o momento

    potico do pensamento). Como Plato inventa a palavra ideia,Aristteles inventa essa palavra, energeia, proveniente de ergon termo este que significa obra; desse modo, portanto, energeiasignifica o ser em obra, ser em ato, operao, o ser em obra dealgo. E curioso que para sublinhar a oposio entre potncia e ato,Aristteles se sirva exatamente de um exemplo retirado de umaatividade definida como artstica. Ele diz que Hermes encontra-seem potncia na madeira ainda no esculpida e, ao contrrio,

    em energeia, em obra, na esttua esculpida. A obra de artepertence de modo constitutivo esfera do ser em obra,da energeia. Leio, aqui, rapidamente com vocs a passagem.Aristteles escreve que o fim sempre a obra (o ergon), e que aobra sempre energeia, sempre ser em obra, operao. Defato, o termo energeia, escreve Aristteles, deriva de ergon (deobra) e tende, por isso, completude a um estado em que atingea prpria completude. H casos nos quais o fim ltimo se exaure no

    uso. Por exemplo, na vista, quando usamos os olhos, tudo se exaurena viso; no h produo de qualquer outra coisa. H ainda outroscasos, por exemplo, a arte de construir, na qual alm da operaodo construir produz-se tambm outra coisa: a casa. Nesses casos, oato de construir reside na coisa construda. Ela vem a ser e estjunto da casa. Em todos os casos em que produzido algo alm douso, a energeia, o ser em obra, est na coisa feita. Como o ato deconstruir est na casa construda, assim tambm o ato de tecer est

    no tecido. Quando, ao contrrio, no surge uma obra externa, almdo uso, ento a energeia, o ser em obra, estar nos prpriossujeitos. Como, por exemplo, a viso naquele que v e a cognionaquele que conhece.1

    Paremos por um momento nessa passagem extraordinriaque, creio, mostra o quanto a concepo grega de uma obra de arte diferente da nossa. Est claro que os gregos privilegiam a obra em

    1

    N.T.: Optei por traduzir diretamente as citaes feitas por Agamben, mesmo que,porventura, por se tratar de uma conferncia e, ademais, por conta do carteroral do documento aqui traduzido (trata-se de uma transliterao de um arquivode udio) isso implique algumas possveis imprecises no que diz respeito aostrechos citados.

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    relao ao artista ou ao arteso. Nas atividades que produzemalguma coisa, a verdadeira atividade produtiva, diz Aristteles, no

    est no artista, mas na obra. A operao de construir uma casa, nacasa, a operao de fazer uma esttua, na esttua, e no no artista.Portanto, compreendemos tambm por que os gregos, em geral, nopodiam levar em grande conta o artista ou o arteso. Enquanto acontemplao, o ato do conhecimento, est no contemplador e nocognoscente, o artista, para os gregos, um ser que tem o seu fimfora de si, na obra. Isto , ele um ser constitutivamenteincompleto, que jamais possui o seu fim e ao qual falta o seu fim.

    Por isso, os gregos consideravam o teknites o arteso e o artista como um banausos, um termo que significa pessoa vulgar, noexatamente decente. Isso no significa que os gregos no poderiamver a diferena entre um sapateiro e Fdias, mas, aos seus olhos, elestinham seu fim fora de si: no sapato e na esttua do Parthenon,respectivamente. Em todo caso, a sua energeia no lhes pertencia.Essas so as atividades que produzem obra. H outras que so semobra e que Aristteles exemplifica, como vimos, na viso e no

    conhecimento. evidente que, para um grego, estas so superioress outras. Mais uma vez: no por que no fossem capazes deapreciar a obra de arte em relao ao conhecimento ou aopensamento, mas por que nas atividades improdutivas como opensamento, o sujeito possui perfeitamente o seu fim. A obra,o ergon, de algum modo um ultraje, que expropria o agente dasua energeia esta, portanto, no est nele, mas nas obras. Por issoa praxis, a ao, que tem em si mesma o seu fim para Aristteles

    de algum modo superior poiesis, atividade produtiva cujo fimest na obra. A energeia, a operao perfeita, sem obra e temseu lugar no agente.

    Parece-me que essa concepo do agir humano contenha emsi o germe de um problema, de uma aporia, que diz respeitoexatamente ao lugar da atividade humana: em um caso,na poeisis, est na obra e, no outro, no agente. Que se trate de umproblema no supervel, provado pelo fato de que, em uma outra

    passagem de outra obra, Aristteles se pergunta pela existncia dealgo como um ergon, uma obra, prprio do homem. Existe umaobra do homem enquanto tal (assim como existe a obra dosapateiro, que faz o sapato, uma obra do flautista, que toca a flauta,

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    uma obra do carpinteiro, que faz a cama)? Aristteles cr quetambm existe uma obra do homem em si, do homem enquanto tal,

    e, logo na sequncia, deixa a hiptese de que o homem seja um sersem obra de lado. Eu, da minha parte, acho tal ideiainteressantssima. Ou ainda, diria que o homem um animalconstitutivamente sem obra e que lhe falta, de maneira diversa dosoutros animais, uma vocao especfica inscrita no seu destino,assinalada pela espcie. O homem um animal que no tem umaatividade prpria. E , talvez, justo por isso que, diferentemente dosoutros animais, pode encontrar a prpria verdade em uma atividade

    como a arte que, como notrio, privada de uma finalidade (deuma finalidade ao menos definvel).Dizia-lhes que Aristteles deixa de lado o problema de ser o

    homem sem obra ou de ter ele uma obra, e responde que a obra dohomem existe e ser uma obra da alma segundo a razo. Mas, senos perguntarmos, por outro lado: o que do homem enquanto tal?Existe uma obra do homem enquanto tal? Ou ainda: o homem umser condenado ciso, porque h nele duas obras diversas (uma que

    lhe compete enquanto homem e outra, mais segura, que lhecompete enquanto sapateiro, flautista, escultor etc.)? Seconfrontarmos tal concepo da obra de arte com a nossa, podemosrapidamente dizer que o que nos separa dos gregos que, numcerto ponto e podemos faz-lo grosso modo coincidir com amodernidade , a arte saiu da esfera das atividades que tm asua energeia fora de si, numa obra, e se deslocou ao mbito dasatividades que, como o conhecimento, tm em si mesmas seu ser em

    obra. O artista no mais um banausos, um arteso, obrigado aperseguir a sua completude fora de si na obra mas, como filsofo,como pensador, reivindica o domnio e a titularidade da suaatividade criativa. Mas o que ganhou de um lado, a independnciaem relao obra, vem, por assim dizer, pela falta do outro. Se elepossui em si mesmo a sua energeia, e pode assim afirmar a suasuperioridade, de certa maneira, sobre a obra, esta torna-se para elede certo modo acidental. Transforma-se em um resduo em certa

    medida no necessrio sua atividade criativa. Enquanto na Grciao artista uma espcie de resduo embaraante, um pressuposto daobra, na modernidade a obra de algum modo um resduoembaraante da atividade criativa e do gnio do artista. como se o

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    gnio, a atividade criativa, procurasse firmar-se para alm daquiloque produz, ou seja, firmasse seu valor alm da obra que produz.

    A hiptese que gostaria de sugerir que obra e operaocriativa so duas noes complementares que formam com o artistacomo seu meio o que lhes proponho chamar de mquina artstica damodernidade. E jamais possvel separar um desses trs elementos.Juntos formam algo como os anis de Borromeo (trs crculosunidos de tal modo que nenhum deles pode ser separado sem quesepare tambm os outros). Obra, artista e operao criativa estoligados juntos numa espcie de mquina de trs faces que hoje, de

    alguma maneira, gostaria de colocar em dvida.Gostaria de fazer um salto de vrios sculos e da Grciadeslocar-nos para a Alemanha, ao incio dos anos vinte do sculoXX. No s desordens e tumultos que, como vocs sabem, naquelesanos marca a vida das grandes cidades alems, mas ao silncio erecolhimento da abadia beneditina de Maria Lach, na Rennia. Alium obscuro monge chamado Odo Casel publica, em 1923 mesmoano em que Duchamp termina, ou melhor, abandona em estado de

    incompletude definitiva o Grande Vidro , um livro denominado ALiturgia como festa mistrica, que se tornaria uma espcie demanifesto daquilo que seria depois chamado de movimentolitrgico. Vocs sabem que os primeiros trinta anos do sculo XXforam corretamente batizados de A idade dos movimentos. Tanto direita quanto esquerda do quadro poltico, os partidos cedemlugar aos movimentos (vocs sabem que tanto o nazismo quanto ofascismo se definiram sobretudo como movimento). Mas isso se d

    tambm na arte e nas cincias (por exemplo, quando em 1914Freud procurava um nome para sua criao, no sabia se achamaria de escola psicanaltica at que, a um certo ponto, decidiucham-la de movimento psicanaltico). Em todo aspecto da culturaos movimentos substituem as escolas e as instituies. nessecontexto que tambm na Igreja Catlica comea esse grandemovimento chamado movimento litrgico. A aproximao que fizentre a prtica das vanguardas e a liturgia, entre os movimentos da

    vanguarda e o movimento litrgico, no um pretexto. Na base dadoutrina desse monge, Casel, est a ideia de que a liturgia, aatividade litrgica notem que a palavra pertence, na origem, aovocabulrio poltico; etimologicamente significa obra pblica, obra

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    para o povo , seja de modo essencial um mistrio. Mistrio, noentanto, no significa um ensinamento escondido, uma doutrina

    secreta e assim por diante. Na origem, segundo Casel, como nosmistrios de Elusis que eram celebrados na Grcia, mistriosignifica uma atividade, uma praxis, uma espcie de ao teatralfeita de gestos e palavras que se realizam no tempo e no mundopara a salvao do homem. Segundo Casel, o cristianismo no uma religio, uma confisso no sentido moderno do termo, isto ,um conjunto de verdades e de dogmas que se trata de reconhecer eprofessar. Em absoluto no; a religio crist um mistrio, isto ,

    uma ao litrgica, uma performance cujos atores so Cristo e seucorpo mstico, ou seja, a Igreja. E tal ao simuma praxis especial, mas, ao mesmo tempo, constitui a atividadehumana mais universal e mais verdadeira, na qual est em jogo asalvao dos que a realizam e daqueles que dela participam.

    Vejam que a liturgia, nessa situao, deixa de ser acelebrao de um rito exterior que tem a verdade em outro lugar,num dogma. Ao contrrio, segundo Casel, apenas na realizao aqui

    e agora dessa ao absolutamente performtica, que realiza a cadainstante o que significa, o crente pode encontrar a sua verdade e asua salvao. De acordo com Casel, por exemplo, a missa, acelebrao do sacrifcio eucarstico, no uma representao ouuma comemorao do evento salvfico, mas ela mesma oevento. No se trata de uma representao [rapresentazione] emsentido mimtico, mas de reapresentao [ripresentazione], naqual a ao salvfica de Cristo tornada efetivamente presente por

    meio dos smbolos e das imagens que a significam. Por isso se dizque a ao litrgica age ex opere operato, pelo prprio fato de serrealizada, naquele momento e naquele lugar, de modoindependente, por exemplo, das qualidades morais do celebrante(vocs sabem que, por exemplo, se um padre um criminoso e querbatizar uma mulher para abusar dela, o batismo , entretanto,vlido justo porque independente do ator, age de maneiraperformtica).

    a partir dessa concepo mistrica da religio, segundoCasel, que gostaria de lhes propor minha hiptese de que entre aao sagrada da liturgia e a praxis das vanguardas artsticas daassim chamada arte contempornea haja algo mais do que uma

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    simples analogia. fato que, em relao a isso, uma especialateno por parte dos artistas j havia aparecido nos ltimos

    decnios do sculo XIX, em particular nos movimentos artsticos eliterrios que se definem absolutamente com termos vagos comosimbolismo, estetismo e decadentismo que, como vocs sabem, soparte do caldo cultural do qual nascero as vanguardas. Paripassu ao processo que, com a primeira apario da indstriacultural seguidora de uma arte pura em direo s margens dasprodues sociais , artistas e poetas, basta tocar no nome deMallarm, comeam a observar a sua prtica como a celebrao de

    uma liturgia. No sentido prprio do termo, liturgia comporta tantouma dimenso soteriolgica de salvao, em que estar em questoa salvao espiritual do artista, quanto uma dimenso performtica,na qual a atividade criativa assume a forma de um verdadeiro ritual,desvinculado de todo significado social e eficaz pelo simples fato deser celebrado. Em todo caso, justo esse segundo aspecto que foiassumido de modo decidido pelas vanguardas do sculo XX, estasque constituem a extremizao daqueles movimentos e, algumas

    vezes, so tambm uma pardia dos movimentos. Creio noanunciar nada de extravagante sugerindo a hiptese de que avanguarda e os seus modelos contemporneos devem ser lidos comoa lcida, e com frequncia consciente, retomada de um paradigmaessencialmente litrgico. Como, segundo Casel, a celebraolitrgica no uma imitao ou uma representao do eventosalvfico, mas ela mesma o evento, do mesmo modo, o que definea praxis da vanguarda do sculo XX e de seus modelos

    contemporneos o decidido abandono do paradigma mimticorepresentativo em nome de uma pretenso genuinamentepragmtica. Trata-se de uma performance, de uma ao. A ao deum artista se emancipa do seu tradicional fim produtivo, oureprodutivo, e torna-se uma performance absoluta uma puraliturgia que coincide com a prpria celebrao e eficaz ex opereoperato e no pelas qualidades do artista.

    Numa clebre passagem da tica, Aristteles havia

    distinguido o fazer, a poiesis, que objetiva um fim externo, umaobra, da praxis, que tem em si mesma o seu fim. Entre esses doisncleos, liturgia e performance artstica, insere-se uma forma de

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    hbrido, de terceiro, no qual a prpria ao quer representar-secomo obra.

    Neste ponto, para o terceiro e ltimo momento desta minhasumria arqueologia, gostaria de convid-los a ir a Nova Iorque, porvolta de 1916. A h um senhor, que no saberia como definir talvez um monge, como Casel , de nome Marcel Duchamp que comuma escolha por certo, nesse ato no um artista inventao ready-made. Vocs sabem que Duchamp, propondo aqueles atosexistenciais e no obras de arte, que so os ready-made, sabiaperfeitamente que no operava como um artista. Sabia tambm que

    a estrada da arte tinha sido bloqueada por um obstculointransponvel que era a prpria arte, ento constituda pela estticacomo uma realidade autnoma. Nos termos desta minhaarqueologia, diria que Duchamp havia compreendido que o quebloqueava a arte era justo o que defini como mquinaartstica, que havia atingido, a partir da liturgia da vanguarda, asua massa crtica. O que faz Duchamp para explodir ou ao menosdesativar a mquina obra-artista-operao criativa? Ele toma um

    objeto qualquer de uso, isto , um mictrio, e, introduzindo-o nummuseu fora-o a apresentar-se como obra de arte. Naturalmente,exceto pelo breve instante que dura no efeito de estranhamento eda surpresa, na realidade, nada aqui vem presena. No a obra,pois se trata de um objeto de uso comum produzidoindustrialmente, nem a operao artstica, porque no h de modoalgum poiesis, produo, e nem mesmo o artista, pois aquele queassina com um irnico nome falso o mictrio no age como artista,

    mas como filsofo, como crtico ou, como Duchamp amava dizer,como algum que respira, um simples vivente.Como vocs sabem, o que ao contrrio depois surgiu uma

    associao, infelizmente at agora ativa, de hbeis especuladorese espertalhes que transformaram o ready-made em uma obra dearte. No que eles tenham conseguido recolocar verdadeiramenteem movimento a mquina artstica e esta, diria, gira hoje no vazio, mas a aparncia de movimento consegue movimentar, espero que

    ainda no por muito tempo, os templos do absurdo que so osmuseus de arte contempornea.Gostaria agora de concluir esta minha brevssima

    arqueologia sugerindo-lhes, de algum modo, abandonar um pouco a

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    mquina artstica ao seu destino. E, com isso, abandonar tambm aideia de que haja alguma coisa como uma suprema atividade

    artstica do homem que, por meio de um sujeito, realiza-se numaobra ou numa energeia e que extraia destas o seu incomparvelvalor. Diria que preciso redesenhar desde o incio o mapa doespao em que a modernidade situou o sujeito e as suas faculdades.Artista ou poeta no quem tem a potncia ou a faculdade de criare que, um belo dia, por meio de um ato de vontade ou obedecendouma injuno divina, decide, como o deus dos telogos, no se sabecomo e por qu, executar algo. Assim como o poeta e o pintor,

    tambm o carpinteiro, o sapateiro, o flautista, enfim, todo homem,no so os titulares transcendentes de uma capacidade de agir oude produzir obras. Ao contrrio, so viventes que no uso, e apenasno uso, de seus membros como do mundo que os circunda fazem experincia de si e constituem-se como formas-de-vida. A arte apenas o modo no qual o annimo que chamamos artista,mantendo-se em constante em relao com uma prtica, procuraconstituir a sua vida como uma forma-de-vida. A vida do pintor, do

    msico, do carpinteiro nas quais, como em toda forma-de-vida, estem questo nada menos do que a sua felicidade. Gostaria deconcluir com as palavras de um grande pintor de Scicli, que pergunta para o senhor, Piero Guccione, pintar mais que viver?,apenas respondeu: Pintar certamente para mim a nica forma devida, a nica forma que tenho para defender-me da vida.

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