343o da literatura infantil e juvenil.doc) · de qualquer espécie de provocação da minha parte....

10
A tradução da literatura infantil e juvenil portuguesa publicada na Galiza – alguns aspectos Carlos Castilho Pais UNIVERSIDADE ABERTA É impossível, no espaço, mesmo generoso, de um capítulo, tratar de toda a tradução da literatura infantil e juvenil portuguesa contemporânea. Irei, sim, ocupar-me da tradução da literatura infantil e juvenil portuguesa publicada na Galiza, mas apenas de alguns aspectos. Neste título, para além de limitar o domínio de estudo, como podem constatar, introduzi a palavra «publicada», e isso deve ser explicado. A decisão de colocar no título a palavra ‘publicada’ não foi fácil de tomar. Não se trata, acreditem, de qualquer espécie de provocação da minha parte. Reflecti longamente sobre se não seria mais apropriado, tendo em conta a meu objecto de estudo, que o título referisse apenas a literatura infantil e juvenil portuguesa publicada na Galiza, não mencionando, portanto, o facto de ser traduzida essa literatura. A opção tomada, como se vê, conservou as duas direcções. Desta forma, pretendo que fique claro que o aspecto principal de que vou tratar será a questão da classificação das obras de autores portugueses, inicialmente escritas em Língua Portuguesa e publicadas em Galego, enquanto traduções. É este o sentido que o meu título pretende deixar perceptível - que se trata de proceder a uma análise das obras publicadas de modo a desvendar o facto de quererem ser umas (as obras publicadas em Galego) traduções de outras (as obras publicadas em Português). Isto é, poderemos chamar às primeiras traduções? E, em caso afirmativo, que características terão estas traduções? Longe de mim, por conseguinte, está qualquer intenção em arredar as obras de autores portugueses publicadas na Galiza da classificação de OBRAS TRADUZIDAS. Mas aceitar o pressuposto de que, efectivamente, se trata DE OBRAS NÃO TRADUZIDAS também parece ser contrário às conclusões do estudo empírico comparado que teremos que levar a cabo. Rematando, pretendo sim, analisar e problematizar aquilo que a realidade me oferece e nada mais. Mas não queria deixar de felicitar as editoras deste volume por duas razões. Em primeiro lugar, por conceberem um volume em que a literatura infantil e juvenil é compreendida enquanto campo dependente de políticas variadas e em que intervêm vários agentes; em segundo lugar, por trazerem para os Estudos de Tradução uma espécie de textos que deveria merecer mais atenção do que aquela que lhe tem sido dada, sobretudo quando comparada com o estudo que é dedicado a outras espécies da tipologia dos textos traduzidos. De facto, nos congressos generalistas dos Estudos de Tradução têm sido raras as comunicações que versam o tema da tradução da literatura infantil e juvenil. Esta publicação e outros congressos sectoriais já realizados modificarão certamente este estado de coisas.

Transcript of 343o da literatura infantil e juvenil.doc) · de qualquer espécie de provocação da minha parte....

Page 1: 343o da literatura infantil e juvenil.doc) · de qualquer espécie de provocação da minha parte. Reflecti longamente sobre se não seria mais apropriado, tendo em conta a meu objecto

A tradução da literatura infantil e juvenil portugu esa publicada na Galiza – alguns aspectos

▪ Carlos Castilho Pais UNIVERSIDADE ABERTA

É impossível, no espaço, mesmo generoso, de um capítulo, tratar de toda a tradução da literatura infantil e juvenil portuguesa contemporânea. Irei, sim, ocupar-me da tradução da literatura infantil e juvenil portuguesa publicada na Galiza, mas apenas de alguns aspectos.

Neste título, para além de limitar o domínio de estudo, como podem constatar, introduzi a palavra «publicada», e isso deve ser explicado. A decisão de colocar no título a palavra ‘publicada’ não foi fácil de tomar. Não se trata, acreditem, de qualquer espécie de provocação da minha parte. Reflecti longamente sobre se não seria mais apropriado, tendo em conta a meu objecto de estudo, que o título referisse apenas a literatura infantil e juvenil portuguesa publicada na Galiza , não mencionando, portanto, o facto de ser traduzida essa literatura. A opção tomada, como se vê, conservou as duas direcções.

Desta forma, pretendo que fique claro que o aspecto principal de que vou tratar será a questão da classificação das obras de autores portugueses, inicialmente escritas em Língua Portuguesa e publicadas em Galego, enquanto traduções. É este o sentido que o meu título pretende deixar perceptível - que se trata de proceder a uma análise das obras publicadas de modo a desvendar o facto de quererem ser umas (as obras publicadas em Galego) traduções de outras (as obras publicadas em Português). Isto é, poderemos chamar às primeiras traduções? E, em caso afirmativo, que características terão estas traduções? Longe de mim, por conseguinte, está qualquer intenção em arredar as obras de autores portugueses publicadas na Galiza da classificação de OBRAS TRADUZIDAS. Mas aceitar o pressuposto de que, efectivamente, se trata DE OBRAS NÃO TRADUZIDAS também parece ser contrário às conclusões do estudo empírico comparado que teremos que levar a cabo. Rematando, pretendo sim, analisar e problematizar aquilo que a realidade me oferece e nada mais.

Mas não queria deixar de felicitar as editoras deste volume por duas razões. Em primeiro lugar, por conceberem um volume em que a literatura infantil e juvenil é compreendida enquanto campo dependente de políticas variadas e em que intervêm vários agentes; em segundo lugar, por trazerem para os Estudos de Tradução uma espécie de textos que deveria merecer mais atenção do que aquela que lhe tem sido dada, sobretudo quando comparada com o estudo que é dedicado a outras espécies da tipologia dos textos traduzidos. De facto, nos congressos generalistas dos Estudos de Tradução têm sido raras as comunicações que versam o tema da tradução da literatura infantil e juvenil. Esta publicação e outros congressos sectoriais já realizados modificarão certamente este estado de coisas.

Page 2: 343o da literatura infantil e juvenil.doc) · de qualquer espécie de provocação da minha parte. Reflecti longamente sobre se não seria mais apropriado, tendo em conta a meu objecto

Começarei por satisfazer a curiosidade do público, que espera, penso eu, que lhe seja transmita alguma informação sobre a literatura infantil e juvenil actual portuguesa, embora esse não seja o meu objectivo principal. Temos já disponíveis no mercado e nas bibliotecas algumas obras que pretendem abarcar uma visão de conjunto, obras que são facilmente identificáveis na bibliografia que apresento. Não irei referir nomes de autores, mas sim características da literatura infantil e juvenil portuguesa, embora alguns nomes tenham que aparecer daqui a pouco, a propósito das obras do meu corpus de estudo.

Qualquer adulto, numa primeira abordagem, ficará perplexo perante a escolha de um livro para crianças ao entrar numa livraria ou supermercado em que se vendam as obras deste género. Nisto, Portugal não é diferente de outros países. As estatísticas têm demonstrado que os editores e livreiros obtêm com este mercado uma parte significativa das receitas globais das suas empresas. No mercado cada vez mais globalizado, encontramos editoras que operam ao mesmo tempo nas livrarias de Vigo, de Lisboa ou de Madrid. É verdade que, neste caso, se trata de livros para os mais novos, ou muito novos, em que predomina a ilustração, e nos quais, muitas vezes, é difícil identificar os seus autores.

As editoras portuguesas, na sua quase totalidade, não descuram os leitores mais pequenos (crianças e jovens) e são elas que publicam os autores nacionais. Alguns destes autores granjearam a notariedade, apenas pela dedicação exclusiva que consagram a este género literário. Se compararmos esta literatura com outros géneros tendo em atenção as tiragens, as obras publicadas por cada autor e os casos de sucesso evidente, temos que concluir que nos encontramos perante um género florescente e apetecível.

Também entre nós, a literatura infantil e juvenil possui os seus prémios. E para a sua valorização enquanto género concorre, sem dúvida, a investida de que foi alvo pelos autores da Literatura Portuguesa (escritores). Caso curioso em Portugal, quase todos os escritores foram alguma vez tradutores e foram também autores de livros para crianças e/ou jovens. No entanto, não será por aí que lhes advirá a nomeada ou a recordação dos vindouros. Mas é um facto, vemos escritores ainda vivos a dedicarem-se também a este género de literatura, como vemos também escritores lusófonos dos países africanos, que habitualmente publicam em Portugal, a trilharem o mesmo caminho.

Quanto à temática, também entre nós, este género vive em grande parte das histórias tradicionais do povo, apenas seleccionadas ou contadas de novo. O Género trata de temas relacionados com as matérias escolares, mas não esquece, sobretudo numa faixa etária mais elevada, os problemas (actuais) que as crianças e os jovens têm que enfrentar ou que contactar no seu dia a dia. Naquilo que se publica não há, pois, apenas contos de fadas ou mouras encantadas, típicas dos contos tradicionais. Existem arquétipos, com certeza, mas também existem quenótipos, por exemplo, nas histórias das personagens de Mariana ou de Ana Marta dos livros de Alice Vieira.

Page 3: 343o da literatura infantil e juvenil.doc) · de qualquer espécie de provocação da minha parte. Reflecti longamente sobre se não seria mais apropriado, tendo em conta a meu objecto

1. Obras de autores portugueses publicadas na Galiz a

Pelo que acabámos de dizer e de ver, as editoras galegas têm ainda muito trabalho pela frente, se quiserem dar conta às crianças galegas do que se publica em Portugal. Apesar dos laços ancestrais entre a Galiza e Portugal, os factos do dia a dia, e a questão da edição é um deles, vêm inquietar o nosso senso comum, construído ao longo da história e em que sobressaía a irmandade, nos aspectos linguísticos e não só, que caracteriza os dois povos. Para dar conta daquilo que começo agora a interrogar, solicito que se observe o quadro seguinte, que, embora não querendo ser exaustivo no que diz respeito às obras da literatura infantil e juvenil portuguesa publicada na Galiza, apresenta um número significativo do conjunto das obras recentemente publicadas. Evidentemente, não poderemos analisar em pormenor cada uma destas obras.

Fig. 1

Quadro das obras

Autor Título Editora Colecção/Idade Ano Tradutor

Manuel António Pina

Xiganos e Anantes (2 edições)

Edicións Xerais de

Galicia

Merlín – 9 1991 Não indicado

Álvaro Magalhães

O Home Que Non Quería Soñar

Edicións Xerais de

Galicia

Merlín – 9 1995 Miguel Vázquez

Freire

“ O Rei Lagarto “ Fóra de Xogo 1998 Anxo Angueira

António Torrado

Teatro ás Tres Pancadas

“ Merlín – 9 1999 Anxo Angueira

José António Gomes

Contos Tradicionais Portugueses

Ir Indo Xuvenil

Contacontos – 8 2002 Llerena Perozo

Alice Vieira Rosa, Miña Irmá Rosa (2 edições)

SM O Barco de Vapor – 12

1990 Xela Arias

“ Viaxe Arredor do Meu Nome

“ O Barco de Vapor – 12

1990 Rafael Chacón

“ Os Ollos de Ana Marta

“ O Barco de Vapor – 12

1993 Manuel Figueiras F.

“ Caderno de Agosto Edicións Xerais

Fóra de Xogo 1999 Não indicado

No quadro aqui apresentado, as obras dos autores portugueses publicadas na Galiza estão ordenadas por ano de publicação. Como se constata, fogem da regra da ordenação por ano de publicação que acabo de enunciar as obras de Alice Vieira. Representada com um número considerável de obras, fazia todo o sentido apresentar as obras desta autora em conjunto.

Page 4: 343o da literatura infantil e juvenil.doc) · de qualquer espécie de provocação da minha parte. Reflecti longamente sobre se não seria mais apropriado, tendo em conta a meu objecto

Terei de referir, para começar, que o meu estudo da tradução se tem orientado sobretudo em direcção ao produto e não tanto em direcção ao processo de traduzir, embora este não esteja, de todo, ausente; ou, de outro modo, nas minhas pesquisas, no modo de encarar a prática da tradução, centrando-me sobretudo na análise do produto, na tradução que chega às mãos do leitor, alguma luz recai, também, sobre o processo da tradução. Tenho privilegiado a OBRA

TRADUZIDA e, também agora, na análise feita e da qual dou conta, irei socorrer-me da noção de «horizonte tradutório», aplicando-a a estas obras, cujos limites temporais compreendem as datas das publicações da primeira e da última obras apresentadas no quadro, um espaço que engloba um pouco mais de uma dezena de anos. Evidentemente, não é nossa intenção determinar cabalmente o horizonte tradutório destas obras. Procedendo à análise das figuras do tradutor – se está presente ou ausente – e do editor, fixando-nos sobretudo nos paratextos de que este é responsável, chegaremos às características do horizonte tradutório em que as obras se inserem, que consideramos de interesse para a compreensão das obras enquanto traduções1.

A editora SM, que publica três obras de Alice Vieira, assume as obras que publica enquanto traduções, anunciando na página-verso do rosto de cada obra que se trata de «traducción do portugués», colocando em seguida o nome do tradutor. De forma semelhante procede a editora IR INDO. Estes paratextos são da responsabilidade dos editores e, como as noções de tradução e de língua são iguais para todos, o que os paratextos nos estão a transmitir é que as obras em questão estão escritas numa língua diferente da língua em que estão escritas as obras originais e que, para o trabalho da passagem de um texto de uma língua para um texto de outra língua, foi necessário fazer apelo a um tradutor. Notemos os elementos que assim nos são desvendados. Não há dúvida que estas editoras, ao assumirem as obras enquanto traduções, assumem também duas línguas diferentes (português e galego), que necessitam, por isso, de tradutor para que com esse intermediário os falantes de uma língua possam compreender aquilo que foi escrito por falantes de outra.

Porém, não podemos dizer o mesmo no que diz respeito às EDICIÓNS XERAIS. Existem desta editora, na sua colecção Merlín, duas obras sem nome de tradutor expresso, embora se diga que se trata de versões galegas de originais portugueses. E os nomes que, no nosso quadro, aparecem enquanto tradutores (Miguel Vázquez Freire) das obras de Álvaro de Magalhães e de António Torrado só foram identificados por nelas constarem como detentores dos direitos de autor da tradução. Mesmo assim, e apesar destas diligências, no que diz respeito à obra de Manuel António Pina, não foi possível encontrar qualquer nome que pudesse ser incluído na lista dos tradutores desta obra. Lembro que esta obra é a que possui o ano de publicação mais antigo. Todavia, no catálogo da colecção Merlín relativo aos anos de 2003-2004, o nome do tradutor (Anxo Angueira) da obra de Manuel António Pina era aí já claramente expresso.

1 Em estudo publicado na revista da Universidade de Vigo, Traducción & Comunicación, vol. 4: 5-29, “Para uma crítica da tradução”, afirmei que o horizonte tradutório se determinava por um conjunto de coordenadas implicadas no fazer da obra traduzida. Remeto o leitor interessado para esse estudo.

Page 5: 343o da literatura infantil e juvenil.doc) · de qualquer espécie de provocação da minha parte. Reflecti longamente sobre se não seria mais apropriado, tendo em conta a meu objecto

Devemos reter este caminhar da colecção e da própria editora (EDICIÓNS XERAIS), que ainda em 1999, aquando da publicação de Caderno de Agosto de Alice Vieira, não indicava o nome do tradutor e apresentava como detentores dos direitos de autoria a autora e a própria editora. Também me não parece que a notícia sobre a autora do final do obra venha trazer alguma luz a estes dados. Outra atitude completamente diferente teve esta editora em relação a uma obra da mesma colecção (Fóra de Jogo). Em O Rei Lagarto de Álvaro Magalhães, o tradutor (Anxo Angueira) – caso único – surge na folha de rosto da obra, apesar de esta obra ter sido publicada um ano antes da obra de Alice Vieira.

Estes factos devem agora interrogar-se. Assumir um livro enquanto tradução, implica assumir a diferença entre duas línguas. Implica também assumir um segundo produtor – o tradutor –, para além do primeiro – o escritor. Ora, no espaço, de dez anos, da publicação das obras aqui consideradas, verificamos que as editoras divergem no que diz respeito ao classificar de traduções as obras que publicaram, deduzindo-se daí também posições divergentes no que diz respeito às línguas, ao assumir duas línguas autónomas, as línguas em questão – português e galego. O horizonte tradutório deverá integrar, como característica desta década, um caminhar progressivo geral no assumir da diferença entre o português e o galego de um modo mais determinado. Pesquisas futuras, mais pormenorizadas, não deixarão de relacionar estes factos com a questão da nacionalidade. A nacionalidade privilegiará a tradução, em vez da importação de obras, por exemplo; mas, nesse caminhar, a irmandade coloca-se como problema, que só poderá ser desvendado através da análise das obras traduzidas.

Tentei proceder, e disso darei conta de seguida, de modo a que o que nos une a nós – portugueses e galegos – não fosse preponderante e não interviesse na análise que nos propúnhamos levar a cabo. Escolhi, por isso, do elenco de obras mencionado, duas obras nas quais se assume a tradução, nas quais o tradutor está claramente identificado. Como não poderia deixar de ser, o confronto entre a edição portuguesa e a edição galega era indispensável.

2. Serão então traduções

Tomando então as obras, que mencionarei daqui a pouco, por traduções, irei basear a minha análise em dois princípios – que julgo serem de uso corrente junto dos criadores (autores e/ou tradutores) de textos da literatura infantil e juvenil.

O primeiro princípio diz ao criador (autor/tradutor) que deve ajustar aquilo que escreve ou traduz à criança ou ao jovem para quem escreve ou traduz. Isto é, estes criadores assumem uma preocupação com o leitor – e esta preocupação é predominante, e talvez distintiva, deste género literário. Só neste género de textos encontramos a indicação da faixa etária dos destinatários.

Este princípio está presente na escolha das palavras e do estilo da obra, por exemplo. E lá estão as ilustrações que demonstram, também elas, a mesma preocupação – para além, evidentemente, de terem outras funções.

Esta preocupação com o leitor - falando agora unicamente de tradução – só, de algum modo, a encontramos num outro género de textos traduzidos – oriundos da chamada ‘tradução técnica’. Não a encontramos na tradução literária.

Page 6: 343o da literatura infantil e juvenil.doc) · de qualquer espécie de provocação da minha parte. Reflecti longamente sobre se não seria mais apropriado, tendo em conta a meu objecto

Na tradução técnica, a preocupação com o leitor manifesta-se, por exemplo, na escolha terminológica e, tratando-se de uma tradução em livro, na aceitação do uso de notas explicativas – as notas de rodapé ou outras.

O segundo princípio da análise decorre do precedente. Aos criadores (atrás enunciados), permite-se-lhes a liberdade de cortar, de acrescentar e de ajustar os textos, de abreviar mensagens. Se, na tradução de obras de literatura infantil e juvenil, isso é evidente, o facto não deixa de ser menos evidente quando se trata de uma obra ‘original’. Basta lembrar o uso que se faz das histórias da tradição oral de cada povo – talvez o facto mais evidente da aplicação deste princípio – ‘adaptando-as’ ou ‘reescrevendo-as’. Vejam como autores diferentes transmitem uma mesma história. As histórias tradicionais não esgotam nunca! O tradutor aplica também este princípio, que, como se sabe, não lhe seria permitido noutro género de obras.

São as seguintes as obras de que irei ocupar-me:

Contos Tradicionais Portugueses, de José António Gomes;

Rosa, Miña Irmá Rosa, de Alice Vieira.

Começando pelos Contos Tradicionais Portugueses, constatamos que o título foi alterado na tradução para galego. Ou melhor, à tradução apenas interessou o subtítulo do original, que era, como pode constatar-se, Fiz das Pernas Coração. A alteração do título não se deve certamente à dificuldade em traduzi-lo, mas às características da colecção em que se insere, que já antes publicara Contos Populares Rusos, e à avaliação do peso comercial que este título poderia obter, comparado com o título original.

Fig. 2

Contos Tradicionais Portugueses

(Edição portuguesa) (Edição galega)

Page 7: 343o da literatura infantil e juvenil.doc) · de qualquer espécie de provocação da minha parte. Reflecti longamente sobre se não seria mais apropriado, tendo em conta a meu objecto

Para além do título e da imagem da capa, também diferente, devemos notar um dado paratextual de interesse, que foi acrescentado à edição galega. Esta diz que a obra é para crianças de mais de oito anos – e este dado não consta na edição portuguesa, de acordo com o hábito generalizado na maior parte das editoras portuguesas.

Quanto à estrutura da apresentação dos contos, as duas edições coincidem. Todavia, a edição portuguesa apresenta nas páginas finais um glossário e um conjunto de notas, onde o autor tece uma série de considerações que descrevem a sua relação com as histórias tradicionais portuguesas e nas quais diz também onde foi recolher as histórias que seleccionou. A edição galega apenas traduz as notas do autor, esquecendo o glossário.

A edição galega, ao cortar, ao esquecer, ao não traduzir o glossário, por isso mesmo, teve que suprimir algumas partes das considerações do autor exaradas nas notas. Ora, veja-se o que diz o autor em português, aplicando o primeiro princípio, que enunciámos há pouco: «Não pretende o livro apresentar-se como trabalho de estudioso da literatura oral, mas sim como obra dirigida à infância (daí o glossário final)». Concluindo, o autor aplica o primeiro princípio aqui enunciado – a obra tem em conta o leitor – ao dizer que ela é ‘dirigida à infância’ e ao justificar a existência do glossário. Evidentemente, a edição galega, como tinha cortado o glossário, não podia, na tradução das notas do autor, fazer referência ao glossário. Apresenta-se, no quadro seguinte, o trecho em causa, com aquilo que foi esquecido pela tradução galega em itálico.

Fig. 3

Edição portuguesa:

Não pretende o livro apresentar-se como trabalho de estudioso da literatura oral, mas sim como obra dirigida à infância (daí o glossário final) que os adultos poderão ler com proveito. Optou-se, assim, por introduzir pequenas alterações não substanciais ao nível da linguagem (...). p. 77

Edição galega:

O libro non pretende presentarse como un estudio da literatura oral, mais si como unha obra dirixida á infancia que os adultos poderán ler tamén con proveito. Así, optouse por introducir pequenas alteracións non substanciais nos textos (...). pp. 85/86

É evidente que o tradutor aplica assim o segundo princípio atrás enunciado. Mas devemos entender o facto em relação à aplicação do primeiro princípio, com o qual aquele deve não só relacionar-se, como fundamentar-se. Como classificar o ‘corte’ do glossário da edição galega? Este ‘corte’ não parece poder ser explicado pela aplicação do primeiro princípio enunciado. Ao contrário, parece que o tradutor se desleixou na aplicação desse princípio, tanto mais que ele é colocado em realce pelo autor.

Page 8: 343o da literatura infantil e juvenil.doc) · de qualquer espécie de provocação da minha parte. Reflecti longamente sobre se não seria mais apropriado, tendo em conta a meu objecto

Todavia, a resposta cabal à questão deve ser encontrada no fazer da própria tradução. De facto, o glossário está presente na obra traduzida, embora de forma diferente daquela com que aparece no ‘original’. Por vezes, os termos do glossário são utilizados no texto traduzido em vez do termos que constam no texto ‘original’. Com esta estratégia consegue o tradutor aplicar, também ele, o primeiro princípio enunciado e justificar o corte acima apresentado. Mais do que isso: aquilo que o autor faz timidamente – apresentando um glossário, em vez de reescrever o sentido por palavras mais compreensíveis para as crianças – faz o tradutor corajosamente, empregando uma linguagem simplificada . A fidelidade ao autor é mantida, porque o tradutor utiliza as palavras do glossário do autor no seu texto traduzido, mas a estratégia pode ser criticada pelos seus inconvenientes.

Veja-se o seguinte exemplo, retirado de um conto da obra, intitulado - Pedro Malasartes (também assim intitulado na tradução galega). Os termos em questão apresentam-se em itálico.

Fig. 4

Edição portuguesa:

Foram-se embora. Pedro Malasartes ia para casa, e aconteceu passar por um campo onde se andava a ceifar trigo e armando as paveias. p. 41

Edição galega:

Marcharon. Pedro Malasartes ía para a casa, e cadroulhe pasar por un campo no que estaban a ceifar trigo e preparando os feixes de palla. p. 36

O termo ‘paveia’, sobretudo para uma criança da cidade, necessita de explicação. Por isso, o autor a colocou no seu glossário, dizendo que queria dizer «Feixe pequeno de palha». Deste modo, podem as crianças portugueses perceber o sentido e enriquecer o vocabulário, sem que o autor, como vimos, esqueça o seu público.

Ao não proceder deste modo, o tradutor – e mencionamos agora os inconvenientes já referidos – deixa de contribuir para o enriquecimento vocabular das crianças galegas – orientação que o ponto de vista da nacionalidade não pode não deixar de incluir nos modos de encarar o acto de traduzir. Acontece também que a irmandade entre as duas línguas estaria assegurada, existindo o termo ‘paveia’ quer em português, quer no galego. Pelos vistos, a irmandade e a nacionalidade são difíceis de conciliar quando se trata de tradução.

Passo então, para terminar, a algumas considerações sobre a novela de Alice Vieira, Rosa, Minha Irmã Rosa, que comemora os vinte e cinco anos de idade e que, como podem constatar, vai já na décima sétima edição.

Como certamente já sabem, Alice Vieira dirige-se nas suas obras sobretudo a pré-adolescentes e a adolescentes. Alice Vieira não foge aos princípios que enunciámos há pouco, isto é, a autora, nesta e noutras obras, manifesta a sua preocupação pelo emprego de uma linguagem compreensiva e voltada para os problemas dos leitores desta faixa etária. Os problemas escolares dos seus leitores estão presentes, o que acontece de modo evidente na obra em causa – Rosa, Minha Irmã Rosa.

Page 9: 343o da literatura infantil e juvenil.doc) · de qualquer espécie de provocação da minha parte. Reflecti longamente sobre se não seria mais apropriado, tendo em conta a meu objecto

Fig. 5

Rosa, Miña Irmá Rosa

(edição portuguesa) (edição galega)

A minha atenção recaiu, nestas obras – ‘original’ e tradução –, sobre a transposição dos nomes da História de Portugal. Estes nomes não têm que ser explicados, por razões que facilmente se compreendem, aos jovens leitores portugueses. Por certo, terá sido na escola que a narradora terá aprendido os nomes da História de Portugal por ela mencionados ao longo da narrativa. Para além da escola, os jovens portugueses podem socorrer-se mais facilmente dos conhecimentos dos pais e de outros meios do que os jovens da Galiza, caso surjam problemas de reconhecimento histórico. Mas, para uma criança da Galiza, os nomes de D. Afonso Henriques, do Infante D. Henrique, ou, talvez pior, do rei D. Carlos, não constituirão obstáculo intransponível para a compreensão do sentido global da novela ...

Veja-se o seguinte exemplo. Mariana, a protagonista, diz no capítulo 18 da novela:

Fig. 6

Edição portuguesa:

E de vez em quando, sempre que o sono não vem e estou na cama, farto-me de viajar por países que não estão no mapa. Já descobri tantos que é possível que um dia me façam também uma estátua como fizeram ao Infante D. Henrique. Só espero é que ninguém se lembre de me pôr na cabeça um chapéu como o dele. pp. 82/93

Edição galega:

E de quando en vez, sempre que non me vén o sono e estou na cama, fártome de viaxar por países que non están no mapa. Xa descubrín tantos que é posible que un día me fagan tamén unha estatua coma a que lle fixeron ó Infante D. Henrique. Só agardo que ninguén se lembre de me poñer na cabeza un sombreiro coma o del. p. 81

Page 10: 343o da literatura infantil e juvenil.doc) · de qualquer espécie de provocação da minha parte. Reflecti longamente sobre se não seria mais apropriado, tendo em conta a meu objecto

Para os jovens leitores portugueses, estes nomes, bem como algumas das zonas conhecidas de Lisboa, são meios de identificação com a personagem, estratégia da qual estão arredados os jovens leitores da Galiza. Aqui valeria a pena introduzir um glossário ou fazer uso das notas explicativas de rodapé, em vez da tradução literal.

Recordando os nossos princípios iniciais, teremos que admitir que o tradutor não usou, nestes casos, da liberdade de ajustar ao leitor o texto traduzido. E não me parece que o tradutor procedesse deste modo, caso o texto a traduzir comportasse marcas provenientes de culturas e de Histórias mais distantes geograficamente do que Portugal. Poderá a ausência deste princípio justificar-se com a irmandade entre a Galiza e Portugal. Presente no modo de tradução, a irmandade tem outros responsáveis, para além do tradutor. O editor é, seguramente, um deles. O horizonte tradutório das obras não é exclusivo da responsabilidade do tradutor. E a irmandade enquanto componente do horizonte tradutório da literatura infantil e juvenil galega encontra nestes factos a sua melhor prova.

Mas não quero terminar sem deixar de lembrar que a década, na qual se insere a lista das publicações dos autores portugueses apresentada há pouco, corresponde, segundo a estatística editorial, a um aumento muito significativo da produção editorial, após o Decreto do Bilingüismo de 1979. A criação e a tradução em galego não pode ser analisada sem ter em conta as determinantes de ordem social e política. Com elas se constrói também o horizonte tradutório das obras. Aspectos que aqui, obviamente, não poderíamos tratar. Dar a conhecer as obras de autores portugueses publicadas na Galiza e interrogar as suas traduções constituiu o nosso principal objectivo. Revelámos alguns aspectos das suas traduções e sugerimos algumas razões que, a nosso ver, estão na origem do seu modo de ser. As traduções de textos de uma língua para outra são sempre traduções específicas. E estas, do português para o galego, têm uma especificidade a que, não fora a redundância, chamaríamos própria .

Espero também que a irmandade entre investigadores galegos e portugueses seja um factor de motivação para a continuidade da pesquisa destes temas, que as minhas humildes palavras mais não fizeram do que enunciar.

(Publicado em Ana Luna Alonso e Sílvia Montero Küpper (eds.), Tradución e Política editorial de Literatura infantil e xuvenil, Servizo de Publicacións da Universidade de Vigo, 2006, pp. 307-317)