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3 Metodologia de Pesquisa
A proposta deste capítulo é discutir os aspectos metodológicos da
pesquisa. Pretendemos apresentar o conjunto de escolhas e atividades que
auxiliaram nossas decisões quanto à seleção e ao emprego de diferentes técnicas
de investigação científica.
A metodologia está relacionada “ao que é estudado, como é estudado e aos
meios pelos quais é estudado” (McDERMOTT, 2007, p. 21). Tendo em vista esta
acepção ampla e a abordagem teórica previamente discutida, o presente capítulo
destina-se a refletir sobre:
a) alguns aspectos relacionados à fase exploratória da pesquisa: escolha do
objeto de pesquisa, o “estado da arte da literatura”171 e recorte empírico (os
fenômenos sociais a serem observados);
b) os traços qualitativos da investigação;
c) os atores investigados;
d) as técnicas de coleta dados utilizadas; e,
e) a aplicação da técnica de análise de dados escolhida às informações
obtidas com os atores investigados, por meio de entrevistas
(fundamentalmente) e de questionários (de forma suplementar).
De pronto, vale esclarecer que, apesar da pesquisa reconhecer a
importância de justificar as escolhas das estratégias metodológicas utilizadas, não
compartilha da presunção de que a fidelidade cega a um único e exclusivo método
é indispensável para prestar validade científica ao empreendimento de pesquisa.
Com efeito, na discussão acadêmica sobre a aplicação do método nas
ciências sociais, a tradição consiste em presumir diferenças inconciliáveis entre as
pesquisas de natureza quantitativa e qualitativa nas fases de coleta e de análise de
dados. A pesquisa quantitativa é vista como aquela que privilegia “a mensuração
de variáveis pré-estabelecidas, procurando verificar e explicar a sua influência
171 A opção por discutir o “estado da arte” no capítulo metodológico se deve ao fato de que foi a partir do contato inicial com a produção literária que se tornou possível chancelar a opção de trabalhar com a tomada de decisões de políticas públicas de propriedade intelectual. A constatação de escassez de estudos sobre o assunto estimulou o viés de novidade que a pesquisa pretende apresentar.
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sobre outras variáveis, mediante a análise da freqüência de incidências e
correlações estatísticas” (CHIZZOTTI, 2000, p. 52). Já a pesquisa qualitativa é a
que se fundamenta “em dados coligidos nas interações interpessoais, analisadas a
partir da significação que estes dão aos seus atos. O pesquisador participa,
compreende e interpreta” (ibid, p. 52).
KING, KEOHANE E VERBA (1994) também explicitam diferenças entre
as pesquisas quantitativas e qualitativas. As primeiras são as que se utilizam de
métodos numéricos e estatísticos e se baseiam em medições de aspectos
específicos do fenômeno estudado. As pesquisas quantitativas procuram abstrair
casos ilustrativos particulares para perseguir descrições gerais e medições e
análises que podem ser replicadas por outros pesquisadores com facilidade (ibid,
p. 3). Por outro lado, as pesquisas qualitativas são aquelas que cobrem uma ampla
gama de abordagens, mas com nenhuma delas repousando em medições
numéricas ou estatísticas. (ibid, p. 4).
De acordo com os autores, durante várias décadas, as diferenças de
opiniões entre os pesquisadores sobre os méritos de uma ou de outra tradição
metodológica contribuíram para cristalizar uma situação de bifurcação nas
ciências sociais, colocando em lados opostos estudos de natureza “quantitativa-
sistemática-generalista” e os de natureza “qualitativa-humanista-discursiva” (ibid,
p. 4). Contudo, na realidade, as diferenças entre as pesquisas quantitativas e
qualitativas são apenas de estilo e de técnicas específicas. Em termos
metodológicos e substantivos, não são relevantes (ibid, p. 3).
De forma a romper as barreiras que separam as pesquisas quantitativas das
qualitativas, KING, KEOHANE E VERBA entendem que é preciso questionar a
pesquisa qualitativa no que tange à desnecessidade de utilização de técnicas
características das pesquisas quantitativas (ibid, p.5). Por outro lado, reconhecem
que muitos dos temas de interesse dos cientistas sociais não podem ser formulados
de uma forma compreensível que permita o teste estatístico de hipóteses através
do material empírico o que, nestes casos, deve desencorajar o uso exclusivo desta
técnica (ibid, p. 6). Enfim, há situações em que uma pesquisa não se encaixa
devidamente tanto na categoria quantitativa, quanto na qualitativa, e em que
alguns dados são mais receptivos a uma análise estatística, enquanto outros não:
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Padrões e tendências no comportamento econômico, social ou político estão sujeitos mais diretamente à análise quantitativa do que o fluxo de idéias entre pessoas ou a diferença exercida por uma liderança individual excepcional. Se nós pretendemos compreender o mundo em rápida transformação, precisamos incluir informação que não pode ser facilmente quantificada assim como a que pode (ibid, p. 5, grifo nosso).
Concluímos que um estudo que pretende compreender a influência das
ideias e de lideranças individuais na formação da política brasileira de propriedade
intelectual deve privilegiar técnicas de coletas de dados da tradição de pesquisas
qualitativas. Contudo, isto não impede que sejam utilizadas técnicas de coletas de
dados com características da tradição quantitativa como forma de complementar
ou conferir maior consistência aos argumentos construídos, moldados e refinados
ao longo da pesquisa.
3.1 A fase exploratória da pesquisa
A pesquisa qualitativa é, a princípio, exploratória, e mantém esta
característica durante boa parte do seu curso, já que os argumentos ou hipóteses
estão sempre submetidos à construção e teste contínuos. Isto ocorre pelo fato das
pesquisas exploratórias se concentrarem em conhecer a fundo um ou poucos
fenômenos e coincidir deste ou destes não serem objeto de muitas investigações
anteriores. Uma das prioridades da pesquisa exploratória é justamente tornar
familiarizável um fenômeno sobre o qual pouco se conhece ou se estudou. Enfim,
a fase exploratória da pesquisa auxilia a formular e a refinar as hipóteses. Vale
transcrever o conceito de pesquisa exploratória, presente em Theodorson e
Theodorson (1970):
Pesquisa exploratória é um estudo preliminar em que o maior objetivo é se tornar familiar com o fenômeno que se quer investigar, de maneira que o estudo principal a seguir será planejado com grande entendimento e precisão. O estudo exploratório (que pode utilizar qualquer uma de uma variedade de técnicas habitualmente com uma pequena amostra) permite ao pesquisador definir seu problema de pesquisa e formular hipóteses mais cuidadosamente. A pesquisa exploratória demandou uma imersão no “estado da arte” da
literatura de teoria de relações internacionais, da economia política, da análise de
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política externa e de propriedade intelectual. Constatou-se que estudos na área de
análise da política externa brasileira de propriedade intelectual são bastante
escassos, não obstante a profícua literatura, nacional e estrangeira que trabalham
especificamente com propriedade intelectual ou análise de política externa,
encontrada nas mais diversas disciplinas, em especial a Economia, as Ciências
Políticas e as Relações Internacionais.
Entre as produções literárias nacionais, uma das que mais se aproxima de
uma análise da política externa brasileira de propriedade intelectual é
“Propriedade Intelectual: Tensões entre o Capital e a Sociedade”, editada pela
Editora Paz e Terra, em 2007.172 A Rede de Propriedade Intelectual, Cooperação,
Negociação e Comercialização de Tecnologia – REPICT, em alguns de seus
encontros anuais, ofereceu palestras e mesas-redondas com a participação de
diplomatas, tendo como foco o posicionamento do Brasil no cenário internacional
de propriedade intelectual.173 Merecem menção também os anais dos seminários
anuais organizados pela Associação Brasileira da Propriedade Intelectual – ABPI,
que em algumas de suas edições contemplaram a realização de mesas-redondas ou
palestras dedicadas às questões internacionais de propriedade intelectual e à
inserção do Brasil neste cenário.174
Notamos, nos trabalhos mencionados, a contribuição importante dos
diplomatas. Este aspecto insinuava um considerável pró-ativismo da diplomacia
brasileira na área temática da propriedade intelectual, no período pós-TRIPS. Por
outro lado, justamente por haver notável influência do Itamaraty na produção
bibliográfica nacional sobre propriedade intelectual em relações internacionais, a
literatura se concentra quase que exclusivamente nos interesses do Estado
brasileiro enquanto ator unitário e racional em busca do aprimoramento de sua 172 O livro é composto de vários artigos, de autoria de estudiosos e diplomatas, que apresentam abordagens interessantes sobre os espaços para estratégias dos países em desenvolvimento nas negociações internacionais em propriedade intelectual. Contudo, nenhum se dedica exclusivamente a compreender a posição diplomática brasileira, atual ou passada. Para mais detalhes, ver VILLARES (2007). 173 Tem-se, como exemplos, a Palestra Magna, proferida pelo Embaixador José Alfredo Graça Lima no encontro de 2001, intitulada “A Propriedade Intelectual e as Relações Internacionais” e a Mesa-Redonda “O Posicionamento do Brasil diante do Cenário Internacional de Propriedade Intelectual”, realizada no encontro de 2002 e que contou, entre outros, com a participação da Elza Moreira Marcelino de Castro, Chefe da Divisão de Propriedade Intelectual – DIPI do Ministério das Relações Exteriores, na ocasião. Ver, respectivamente, REPICT (2002a) e REPICT (2002b). 174 É o caso, por exemplo, da Sessão Plenária “A Propriedade Intelectual e o Comércio Internacional”, que contou com a participação do Embaixador Luiz Felipe Seixas Corrêa, então Representante Permanente do Brasil junto aos organismos internacionais em Genebra. Ver ABPI (2005).
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inserção internacional. Perspectivas ideacionais na visão diplomática sobre a
propriedade intelectual não foram encontradas.
Na academia, perspectivas que privilegiam análises estruturais com base
na teoria de regimes foram desenvolvidas com vistas a compreender a formação
do regime internacional de propriedade intelectual, até o Acordo TRIPS175. Do
mesmo modo, foram localizados trabalhos que visam examinar, também sob a
perspectiva dos regimes, a atuação do Brasil no conflito internacional em torno da
discussão sobre o acesso dos países em desenvolvimento aos medicamentos para
combater o vírus HIV/AIDS.176
Em resumo, a produção literária privilegia análises estruturais sobre o
regime internacional de propriedade intelectual. Notamos que pouca atenção é
conferida pela produção nacional ao processo doméstico de formulação de
políticas públicas na área de propriedade intelectual, seja antes ou após o advento
do Acordo TRIPS. Inicialmente, pretendíamos privilegiar também a perspectiva
da teoria de regimes, mas a escassez de produções sobre o processo doméstico de
tomada de decisões em matéria de propriedade intelectual nos estimulou a nos
debruçar sobre este objeto de pesquisa, mesmo porque entendemos que era uma
forma recomendável de atingir o objetivo de compreender possíveis alterações no
padrão de inserção do Brasil no regime internacional de propriedade intelectual,
do Governo Fernando Henrique Cardoso para o Governo Luiz Inácio Lula da
Silva.
Assim como a imersão na literatura, os contatos interpessoais preliminares
com alguns atores do aparelho estatal e com representantes da academia, feitos
através de entrevistas, participações em simpósios e conversas informais, foram
decisivos para definir os rumos na pesquisa, em sua fase exploratória.177 Estas
investidas em espaços institucionais e sociais diferenciados apresentaram
evidências de que era preciso buscar, no âmbito da política doméstica, as
respostas para compreender de forma convincente como, desde o fim da Rodada
Uruguai do GATT até o fim do Governo Luiz Inácio Lula da Silva, o Brasil
definiu sua inserção no regime internacional de propriedade intelectual. 175 Destaca-se o trabalho de GANDELMAN (2004). 176 Conferir o trabalho de CEPALUNI (2005). 177 Foi particularmente importante a entrevista exploratória realizada com Leopoldo Coutinho, Coordenador de Cooperação Internacional do INPI, com vistas à confecção do projeto de pesquisa para a defesa. A entrevista nos sugeriu que era necessário atentar para a proeminência de lideranças individuais no processo decisório.
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Chamou atenção a insuficiência de uma variável explicativa178 no nível
estrutural que ajudasse a explicar possíveis mudanças na trajetória da formulação
das políticas públicas de propriedade intelectual do Governo Fernando Henrique
Cardoso ao Governo Lula, em virtude da flagrante estabilidade e da imutabilidade
do regime internacional de propriedade intelectual desde 1995179. No que tange
especificamente à política externa, episódios como o da participação do Governo
brasileiro no embate diplomático internacional entre países desenvolvidos e em
desenvolvimento na discussão sobre a universalização do acesso aos
medicamentos contra o vírus HIV/AIDS, entre 1997-2001, e o lançamento, pelo
Brasil e mais um grupo de países, da “Agenda para o Desenvolvimento”, no
marco da Organização Mundial da Propriedade Intelectual, em 2004, sugeriam
movimentos inéditos e contundentes de posicionamento crítico em relação ao
regime que demandavam explicações satisfatórias, para além do nível estrutural.
Justamente por se tratarem dos dois fatos mais emblemáticos e de maior
repercussão que marcaram a atuação diplomática brasileira nas negociações
internacionais de propriedade intelectual desde o Acordo TRIPS é que a opção da
pesquisa foi a de recortar apenas estes dois eventos, sem ignorar que há outros
assuntos da agenda que são também de interesse direto para a política externa
brasileira. Assim, cientes de que a agenda internacional de propriedade intelectual
é amplíssima, são estes os eventos exclusivamente abordados na pesquisa.
Em resumo, foram recolhidas informações na fase exploratória da pesquisa
que indicaram que era preciso deixar de privilegiar o nível estrutural de análise
para atentar para o processo decisório de políticas públicas de propriedade
178 Foram fundamentais os comentários e críticas realizadas pelo Professor Amâncio Jorge de Oliveira ao artigo “As Políticas Externas dos Governos FHC e Lula e a Inserção do Brasil no Regime Internacional de Propriedade Intelectual: da subordinação ao TRIPS à Agenda do Desenvolvimento”, que apresentamos na mesa “Propriedade Intelectual e desenvolvimento”, integrante do programa do V Simpósio de Pós-Graduandos de Ciência Políticas da Universidade de São Paulo – USP, realizado em agosto de 2008. Os comentários do Professor nos estimularam a buscar a variável explicativa que ajudasse a explicar possíveis mudanças de curso na formulação da política externa brasileira de propriedade intelectual, do Governo Fernando Henrique Cardoso pra o Governo Luiz Inácio Lula da Silva. Ver o artigo apresentado na USP em ARDISSONE (2008). 179 Presume-se que, após o Acordo TRIPS, o regime internacional de propriedade intelectual guarda características praticamente imutáveis, de uma variável de ordem estrutural de natureza ideacional e material que impõe determinados constrangimentos, o que revela a necessidade de explicar as razões preponderantes de eventuais mudanças na formulação das políticas públicas de propriedade intelectual (como a política externa) não no nível internacional, mas no plano doméstico.
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intelectual. Essas informações auxiliaram no recorte empírico dos dois fenômenos
sociais a serem observados e analisados.
No que tange especificamente ao processo decisório de políticas públicas,
o fato da observação do objeto se dar, pelo menos em parte, de forma simultânea
aos acontecimentos, como o da reestruturação do INPI a partir da, Gestão Roberto
Jaguaribe (2004), depois de um longo processo de abandono administrativo desde
o início dos anos 90, nos estimulou a refletir sobre qual a participação das
instituições e de lideranças individuais na formulação de políticas. A reação
institucional do INPI ao processo de reestruturação nos sugeriu que instituições
não são neutras no processo de apreensão de novas ideias e que a aceitação destas
em muito depende da atuação das lideranças por elas responsáveis, desde o
âmbito da Chefia do Executivo (presidencial), passando pelo ministerial até o
intrainstitucional. Era, portanto, com foco na participação das lideranças e das
ideias por elas defendidas (e nas estratégias materiais e simbólicas utilizadas para
defendê-las), que poderíamos buscar um bom caminho para compreender
eventuais mudanças na trajetória de formulação da política brasileira de
propriedade intelectual, do Governo Fernando Henrique Cardoso ao Governo Luiz
Inácio Lula da Silva.180
As informações obtidas na pesquisa exploratória, somadas ao
aprofundamento da pesquisa bibliográfica, demonstraram que o padrão de
concentração do poder decisório de política externa brasileira no Poder Executivo
mantém-se de forma inequívoca como traço característico e preponderante até os
dias atuais.181 Já o lançamento da PITCE e do PDP sugeriam que novos arranjos
180 Na entrevista exploratória realizada com Leopoldo Coutinho, em contatos informais com servidores do INPI e com atores não pertencentes ao Instituto (advogados e acadêmicos) e em notícias veiculadas na imprensa, surgiu como relevante a centralidade de determinadas personalidades na concepção e condução de políticas públicas do Poder Executivo em matéria de propriedade intelectual. Uma destas personalidades, o Embaixador Roberto Jaguaribe, que assumiu a Presidência do INPI em 2004. Embaixador de carreira, Jaguaribe ocupou antes outros cargos importantes na Administração Pública, especialmente no MDIC, além de ter sido um dos principais negociadores brasileiros em matéria de propriedade intelectual durante a Rodada Uruguai do GATT. Trata-se de uma das lideranças que mais destacamos para compreender as mudanças ocorridas na formulação de políticas públicas de propriedade intelectual durante o Governo Luiz Inácio Lula da Silva. 181 Conforme discutido no capítulo anterior, a democratização política no Brasil não encontrou correspondência similar num processo de democratização do processo decisório de política externa. Ela implicou em rearranjos institucionais que, embora rompendo com a tradicional insularidade do Itamaraty, procuraram manter o poder decisório concentrado no aparelho estatal do Poder Executivo, notadamente na Presidência, no Ministério das Relações Exteriores e em alguns outros Ministérios, com um grau de influência relativamente limitado de outras agências estatais como o INPI na concepção das políticas. No que se refere às políticas públicas de propriedade
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institucionais e mudanças nos perfis ideacionais de tomadores de decisão no
âmbito do MDIC poderiam explicar o inédito posicionamento estratégico
conferido à propriedade intelectual no âmbito da política industrial.
Foi então necessário optar por técnicas de coletas de dados adequadas aos
objetivos de identificar as principais instituições envolvidas na formulação de
políticas públicas de propriedade intelectual e as lideranças individuais
comprometidas com a institucionalização de determinadas ideias sobre a relação
entre propriedade intelectual e desenvolvimento. As entrevistas surgiram então
como a opção metodológica per se da pesquisa.
3.2 Traços qualitativos da investigação
Ao discorrer sobre os principais aspectos da pesquisa qualitativa,
CHIZZOTTI esclarece que, nela, a delimitação do problema não é feita de uma
forma apriorística, em que o objetivo é apenas o de confirmar ou não uma
hipótese previamente aventada (op. cit., p. 81). Para o autor:
O problema decorre, antes de tudo, de um processo indutivo que se vai definindo e se delimitando na exploração dos contextos ecológico e social; onde se realiza a pesquisa; da observação reiterada e participante do objeto pesquisado, e dos contatos duradouros com informantes que conhecem estes objetos e emitem juízos sobre ele (ibid, p. 81). CHIZZOTTI afirma que, na delimitação do problema em pesquisas
qualitativas, a questão inicial é explicitada, revista e reorientada de acordo com o
contexto e as informações obtidas das pessoas ou grupos envolvidos na pesquisa
(ibid, p. 81). Enfim, as incursões do pesquisador na vida e no contexto social que
condiciona o problema e suas experiências e interações sociais com os sujeitos-
pesquisados são vitais na definição dos rumos da investigação. Não se deve
esperar de quem realiza a pesquisa a postura de distanciamento que o pesquisador
experimental se impõe para a elaboração de leis que explicam o problema e cuja
frequência e regularidade ele acredita ser possível comprovar (ibid, p. 81). Enfim,
intelectual, a experiência do Grupo Interministerial da Propriedade Intelectual (GIPI) sugere o reconhecimento pelo Governo Federal de que a transversalidade do assunto justificava a institucionalização de um grupo em que não só a voz do Itamaraty fosse ouvida, mas também a de outras instâncias ministeriais do Poder Executivo.
137
o processo de pesquisa qualitativa “não obedece a um padrão paradigmático. Há
diferentes possibilidades de programar a execução da pesquisa. Vale muito o
trabalho criativo do pesquisador e dos pesquisados (ibid, p. 105).”
Portanto, na pesquisa qualitativa há amplo espaço para a iniciativa do
pesquisador, o que não significa que este não aja com critério e cientificidade e
buscando consistência na construção do argumento. A pesquisa qualitativa
permite ao pesquisador avançar no conhecimento das questões de fundo que lhe
afligem através de micro-decisões que, de forma gradual, contínua e
sistematizada, vão definindo rumos e conferindo contornos mais nítidos ao
problema de pesquisa. Vimos que a insuficiência de variáveis estruturais para
explicar mudanças no padrão de inserção do Brasil no regime internacional de
propriedade intelectual nos sugeriu que o melhor a fazer era adentrar no exame do
processo decisório de políticas públicas. Em seguida, a constatação de
concentração do poder decisório em poucos atores e agências do Executivo nos
sugeriu que o melhor seria analisar as lideranças individuais que, mergulhadas no
ambiente institucional insulado do Executivo Estatal, tem influência decisiva
sobre o curso das tomadas de decisão.182 Foram essas duas micro-decisões que
delinearam novos contornos para o problema de pesquisa inicial. O problema foi
ganhando contornos mais nítidos até chegar a sua enunciação, que ora
apresentamos: há diferenças na forma como ideias, instituições e lideranças
influenciaram a formulação das políticas públicas brasileiras de propriedade
intelectual dos Governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da
Silva? Em caso positivo, quais?
182 Para WEBBER & SMITH (op. cit, p. 58), estudos que se concentram em lideranças tendem a focar o excepcional mais do que o comum. Os autores afirmam que, quando baseados em biografias, eles podem dizer bastante de um indivíduo, mas pouco da natureza da liderança de forma geral. Estando cientes destas críticas, entendemos que elas ajudam inclusive a demonstrar a utilidade da abordagem já que o que se pretende é explicar a mudança (o excepcional) mais do que a continuidade (o comum) na formulação de políticas. Entendemos também que as biografias pessoais de algumas das lideranças em destaque, como Luiz Fernando Furlan e Roberto Jaguaribe, auxiliam a compreender por que e como mudaram as políticas públicas de propriedade intelectual durante o Governo Luiz Inácio Lula da Silva. Com efeito, o objetivo do trabalho não é discutir a natureza da liderança enquanto uma categoria teórica, in abstrato, mas entender como lideranças específicas foram fundamentais para modificações na dimensão de formulação de políticas públicas de propriedade intelectual na trajetória recente do Brasil. Para ter acesso a amplas revisões da produção bibliográfica sobre lideranças, ver McDERMOTT (op. cit., pp. 215-238) e HUDSON (2007, pp. 37-63). Entre os pesquisadores, destacamos Margaret Hermann. O estudo das lideranças se alinha ao objetivo central das pesquisas cognitivas que é “conhecer as estratégias cognitivas nas quais os tomadores de decisão se fiam para construir e manter suas imagens simplificadas do ambiente” (TETLOCK & McGUIRE Jr, 2005, p. 485).
138
Se, como afirmam KING, KEOHANE E VERBA, “a característica
distintiva que separa as ciências sociais da observação casual é a de que as
ciências sociais perseguem alcançar conclusões válidas através do uso sistemático
de procedimentos de inquirição bem estabelecidos” (op. cit., p. 6), não se pode
negar o caráter científico das pesquisas qualitativas. Estas possuem procedimentos
de investigação em profusão, à disposição dos pesquisadores. Entre eles, podemos
mencionar, por exemplo, a Análise de Conteúdo183.
A pesquisa qualitativa rompe com a ideia de que o pesquisador, enquanto
observador, pode conseguir total distanciamento do seu objeto de pesquisa. Em
outras palavras, não compartilha da crença do positivismo científico de que é
possível alcançar a condição de plena neutralidade axiológica em relação ao que é
investigado. Muito menos acredita no argumento positivista de que o pesquisador
deve “abstrair-se de toda a subjetividade passional que conduz ao erro, à
precipitação e à irracionalidade, para assumir uma neutralidade diante de
divergências, oposições ou conflitos ideológicos, tornando-se um sujeito neutro
[...]” (CHIZZOTTI, op. cit. p. 29). Para os pesquisadores qualitativos, a busca
pela neutralidade não é uma “obsessão”. Ao contrário, entendem que há
argumentos mais do que suficientes a atestar a impossibilidade da neutralidade
total por parte do pesquisador, visto que é inevitável partir de um marco de
referência a priori para iniciar a investigação. Enxergam que a imersão do
pesquisador no objeto de estudo abre possibilidades negadas pelo rigor positivista.
Defendem que a impossibilidade de uma posição neutral não invalida a busca de
objetividade no conhecimento.
É o caso, por exemplo, de Roger Chartier. Em defesa dos méritos dos
estudos de “História do Tempo Presente”184, (CHARTIER, 1992, apud,
FERREIRA, 1995, p. 18) sustenta que:
183 A Análise de Conteúdo é a técnica de análise de dados empregada na investigação para examinar os dados obtidos em entrevistas. Sobre ela, discorremos mais adiante. 184 A “História do Tempo Presente” tem como característica básica a presença de testemunhos vivos, que podem vigiar e contestar o pesquisador, afirmando sua vantagem de ter estado presente no momento do desenrolar dos fatos (VOLDOMAN, 1987, apud, FERREIRA, 1995, p. 15). Desenvolvida durante o século XX, defende que o passado é construído segundo as necessidades do presente, chamando atenção para os usos políticos do passado (objetivo é o resgate das relações entre Memória e História).
139
[...] o pesquisador é contemporâneo de seu objeto e divide com os que fazem a história, seus atores, as mesmas categorias e referências. Assim, a falta de distância, ao invés de um inconveniente, pode ser um instrumento de auxílio importante para um maior entendimento da realidade estudada, de maneira a superar a descontinuidade fundamental, que ordinariamente separa o instrumento intelectual, afetivo e psíquico do historiador e aqueles que fazem a história.
Para a pesquisa qualitativa, o observador é “parte integrante do
conhecimento e interpreta os fenômenos, atribuindo-lhe um significado”
(CHIZZOTTI, op. cit., p. 79). A obtenção de depoimentos – geralmente por
intermédio da realização de entrevistas – é um dos veículos privilegiados de
técnicas de coleta de dados que podem auxiliar o pesquisador, especialmente
quando seu objetivo é conhecer e analisar ideias, geralmente não tão claramente
enunciadas em fontes impressas. De fato, ela propicia uma aproximação maior
com os sujeitos investigados.
Assim, torna-se importante agora apresentar os atores observados na
pesquisa. A escolha do primeiro grupo de atores deu-se em função das posições
institucionais que ocupam ou que ocuparam no processo de tomada de decisões de
políticas públicas de propriedade intelectual, seja no Governo Fernando Henrique
Cardoso ou no Governo Lula. Já o segundo grupo é composto por atores cuja
influência é bastante limitada no processo decisório de política externa de
propriedade intelectual, mas que mereceram compor o mosaico total de
observados por terem envolvimento direto nas questões relacionadas às políticas
públicas de propriedade intelectual no Brasil, seja por razões pessoais,
profissionais, corporativas ou intelectuais. Vale também explicar os motivos que
determinaram a escolha de todos os atores e das técnicas de coleta de dados que
foram empregadas.
3.3 Atores investigados e técnicas de coleta de dados
O processo decisório das políticas públicas de propriedade intelectual é um
processo encapsulado no Poder Executivo, mais especificamente num limitado
número de instituições estatais, sendo atribuída a um conjunto igualmente
limitado de indivíduos oportunidade de participar e influenciar decisivamente na
140
formulação de políticas. A pesquisa tratou então de localizar alguns destes atores
e de realizar entrevistas com os mesmos.
Chegamos, primeiramente, à delimitação do que decidimos denominar de
“Grupo 1”, composto por Atores do Executivo Estatal. Eles foram organizados de
acordo com a tabela a seguir:
Grupo 1 - Atores do Executivo Estatal
Instituição Entrevistados185
Ministério do Desenvolvimento, Indústria
e Comércio Exterior – MDIC
Ministros do Desenvolvimento, da
Indústria e do Comércio Exterior
Ministério das Relações Exteriores -
MRE
Chanceleres do Brasil, Chefes da Divisão
de Propriedade Intelectual e diplomatas
com histórico de participação nas
negociações internacionais em
propriedade intelectual.
Grupo Interministerial de Propriedade
Intelectual – GIPI
Coordenador-Geral da Secretaria
Executiva
Instituto Nacional da Propriedade
Industrial – INPI
Presidentes do INPI, Diretores de
Articulação e Coordenadores da Área de
Cooperação Internacional
Como é possível constatar, as categorias dos atores pertencentes ao Poder
Executivo foram estabelecidas levando em consideração a posição hierárquica
ocupada pelos mesmos na Administração Pública e o pertencimento a uma
determinada instituição estatal. Fundamental também foi que houvesse um
equilíbrio numérico mínimo entre os que ocuparam cargos-chave ou
desempenharam funções relevantes no Governo Fernando Henrique Cardoso e os
185 A lista com os nomes dos entrevistados, com suas respectivas atribuições e os cargos que ocuparam ou ocupam atualmente, dentro ou fora da Administração Pública, se encontra no Anexo I. Foram entrevistadas, ao todo, 13 (treze) pessoas.
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que ocuparam os mesmos cargos ou desempenharam as mesmas funções durante
o Governo Lula.186
Embora não façam parte do conjunto de atores entrevistados do Grupo 1,
outros atores relevantes como, por exemplo, os Presidentes Fernando Henrique
Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, o Chanceler Celso Amorim e o Secretário-
Geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães tiveram alguns discursos
integrados à análise. O mesmo vale para economistas participantes da formulação
de políticas públicas nos dois governos. No caso desses, as informações foram
coletadas basicamente na mídia impressa, virtual ou televisiva e em livros e
periódicos, dada a dificuldade de realizar entrevistas.
Entende-se que este grupo é composto pelos atores com mais poder
decisório na formulação de políticas públicas de propriedade intelectual no Brasil.
No que tange especificamente à política externa, isso resultou da emergência de
novos atores no Poder Executivo que passaram a rivalizar com o MRE na sua
condução, especialmente considerando a necessidade de competências técnicas
específicas para lidar com os assuntos de propriedade intelectual, que tiveram que
ser buscadas em outras instituições estatais ou institucionalizadas em novas (DA
SILVA, SPÉCIE & VITALE, op. cit., p. 10).
O “Grupo 2” é composto por indivíduos com vínculos profissionais com
diferentes instituições públicas ou privadas – como universidades ou escritórios de
advocacia – que desempenham atividades diretamente relacionadas ao campo da
propriedade intelectual e também atividades intelectuais como a divulgação de
trabalhos em congressos, seminários e periódicos especializados, além da
publicação de livros. São indivíduos com reconhecido ativismo e que gozam de
experiência de militância na arena estatal. Assim, o outro requisito do perfil destes
atores é que já tenham tido alguma participação como atores do Poder Executivo
em negociações internacionais sobre propriedade intelectual ou na formulação de
políticas públicas, seja participando do governo ou em estreita cooperação com
este. Enfim, apesar da atuação destes atores não ocorrer mais na arena do
186 Em alguns casos, como o de Márcio Heidi Suguieda, Coordenador-Executivo do GIPI, o fato de estar na Administração Pública desde 1997, possibilitou aferir uma visão ampla e retrospectiva do entrevistado sobre a política de propriedade intelectual dos dois últimos governos, sem que fosse necessário buscar um discurso comparativo com outro ator. Por questão de dificuldade de acesso, não tivemos oportunidade de entrevistar José Graça Aranha, presidente do INPI durante a maior parte do Governo Fernando Henrique Cardoso, e Luiz Fernando Furlan, Ministro da Indústria durante o primeiro mandato do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
142
Executivo, eles possuem notável familiaridade com os “bastidores das
negociações” das políticas públicas de propriedade intelectual. Por este perfil
duplamente facetado, decidimos denominá-los de “atores híbridos”.
Grupo 2 – Atores Híbridos
Instituição Atores187
Instituições de Ensino e Escritórios de
Advocacia.
Indivíduos com vínculos profissionais
e/ou acadêmicos com o campo da
propriedade intelectual e história
pregressa de atuação na arena pública,
como servidor ou como consultor do
Governo (Poder Executivo).
Os integrantes dos grupos 1 e 2, somados, resultaram em 16 (dezesseis)
entrevistados. Foi este um dos principais universos de fontes utilizadas nos
capítulos de análise de dados (capítulos 5 e 6). A entrevista consistiu na técnica de
coleta de dados empregada.
Finalmente, chegamos ao terceiro grupo, ora denominado “Grupo 3”,
formado principalmente por atores que não fazem parte da esfera estatal, mas com
alguma espécie de relação direta, seja de ordem profissional, corporativa ou
intelectual, com as questões que envolvem as políticas públicas de propriedade
intelectual no Brasil. Estes atores, embora não tenham influência na formulação
de políticas públicas de propriedade intelectual semelhante àquela exercida pelos
atores integrantes do “Grupo 1”, tentam, de alguma forma, participar da tomada
de decisões de políticas públicas de propriedade intelectual, mediante alguns
mecanismos de pressão, notadamente a atuação em Federações da Indústria e
Associações Setoriais (no caso dos empresários) ou Associações Profissionais (no
caso dos agentes de propriedade intelectual). Organizados como grupos de
interesse, procuram afetar as decisões do Executivo.188 Foram categorizados da
forma exposta a seguir:
187 A lista completa com os nomes dos entrevistados, com suas respectivas formações, se encontra no Anexo II. Foram entrevistadas, neste grupo, apenas 3 (três) pessoas. 188 Pela análise de HALL (1989) que trata da abordagem “centrada em coalizões” (coalition centered) e pela de SIKKINK (1997), pode-se dizer que os indivíduos integrantes do Grupo 3 representam grupos sociais fundamentais para a consolidação de novas ideias na formulação de políticas públicas, após a sua “adoção”, com o estímulo decisivo da atuação de lideranças, e sua
143
Grupo 3 - Atores Não-Estatais
Atores/Instituição Respondentes189
Empresas190
Integrantes de assessorias ou
departamentos de “Negociações
Internacionais”, “Propriedade Intelectual”
ou áreas congêneres; gerentes de
Propriedade intelectual.
Agentes da Propriedade Industrial
Associados da ABPI e da ABAPI e/ou
membros de escritórios de advocacia da
área de propriedade intelectual, envolvidos
com temas internacionais
Instituições e Programas de Pesquisa em
Relações Internacionais
Pesquisadores de Relações Internacionais,
com produção acadêmica e/ou trabalhos
desenvolvidos nas áreas de negociações
comerciais internacionais e política
externa, sem histórico de vínculo com o
Governo
Vale esclarecer quem são os agentes de propriedade industrial e
demonstrar a sua importância para a pesquisa. Os agentes são os procuradores
domiciliados no Brasil que, entre outras atribuições, representam os interesses dos
depositantes nacionais e estrangeiros de pedidos de registro de ativos intangíveis
(como marcas e patentes) apresentados ao INPI. Enfim, são os representantes dos
interesses dos proprietários de direitos de propriedade industrial no Brasil. Não
“implantação”, via instituições. Como nos concentramos na fase de adoção ou formulação, o peso conferido a estes atores foi menor do que o conferido aos indivíduos integrantes dos Grupos 1 e 2. Daí termos optado por realizar entrevistas com os indivíduos dos Grupos 1 e 2, e questionários com os do Grupo 3. Pode-se dizer que os questionários dirigidos aos atores não estatais foram mais uma consulta a estes segmentos da sociedade, do que um survey com alto rigor técnico. 189 A lista completa com os nomes dos respondentes se encontra no Anexo IV. Chamamos de respondentes porque, por que estes indivíduos foram submetidos a questionários, e não a entrevistas. 190 Os contatos das empresas para os quais foram enviados os questionários resultaram de recomendações da Coordenação de Cooperação Nacional da Diretoria de Articulação do INPI ou foram obtidos de forma interpessoal pelo pesquisador nos contatos com os respondentes em simpósios e congressos.
144
precisam ser necessariamente advogados inscritos na OAB – Ordem dos
Advogados do Brasil, mas todos devem possuir a devida habilitação para exercer
a função, após aprovação em teste de conhecimentos realizado perante o INPI.191
Quanto aos pesquisadores de Relações Internacionais, uma das referências
mais úteis para buscar acesso aos que desenvolvem trabalhos na área de política
externa foi o trabalho de Almeida (2006). Por intermédio deste artigo, tentamos
chegar a um rol de nomes com um número razoavelmente equilibrado entre
aqueles a que o autor denomina de “apoiadores externos” – os membros da
academia que concordam, no essencial, com as linhas do discurso e da prática
diplomática do Governo Luiz Inácio Lula da Silva e os que mantêm um olhar
mais crítico sobre os fundamentos e as tomadas de posição da diplomacia deste
mesmo governo.192
O somatório dos atores integrantes dos três grupos apresentados e dos
atores entrevistados compõe uma amostragem significativa do que podemos
chamar de “comunidade brasileira de política externa de propriedade intelectual”.
Inspiramo-nos na definição de “comunidade brasileira de política externa” do
professor Amaury de Souza: “[...] universo constituído por pessoas que participam
do processo decisório e/ou contribuem de maneira relevante para a formação da
opinião no tocante às relações internacionais do país” (SOUZA, 2002, p. 15). Se
acrescentarmos, ao final desta definição, “[...] na área da propriedade intelectual”,
temos o que podemos chamar de “comunidade brasileira de política externa da
propriedade intelectual”. Não consideramos impróprio nos referirmos a esta
comunidade também como uma “comunidade brasileira de políticas públicas de
propriedade intelectual”, dado o reconhecido processo de ampliação da
participação na política externa de outros espaços burocráticos do Executivo
191 A CEHAPI – Comissão de Exame de Habilitação de Agente da Propriedade Industrial é o órgão do INPI responsável pela realização do exame para os agentes, bem como pelo cadastramento. 192 Admitimos, contudo, que esta é uma classificação arbitrária do autor e, portanto, sujeita a críticas. Apesar de termos utilizado-a para auxiliar na seleção dos entrevistados, não nos ativemos somente a ela. Foram também úteis as listas de consultores (pesquisadores) cadastrados no CEBRI. Os nomes dos consultores com seus respectivos endereços eletrônicos foram fornecidos, via correio eletrônico, por Mariana Luz, funcionária da instituição, em 01 de dezembro de 2008. Por não haver lista de colaboradores no tema “propriedade intelectual”, entendemos que as listas que mais se aproximavam do que desejávamos eram as listas de “negociações internacionais” e “política externa”. Realizamos uma filtragem pessoal para chegar àqueles que, entre os nomes constantes das duas listas, desenvolvem pesquisas e/ou publicam trabalhos sobre propriedade intelectual. Finalmente, outros nomes foram incluídos na lista de entrevistados por decisão do pesquisador, por comprovadamente desenvolverem pesquisas sobre propriedade intelectual.
145
Federal, além do MRE193, o que deveria estimular a sinergia da política externa
com outras políticas públicas.
Vejamos agora as técnicas de coletas de dados empregadas para registrar
as informações fornecidas pelos atores investigados.
3.4 Técnicas de coleta de dados: entrevistas e questionários
Realizamos entrevistas com todos os atores dos Grupos 1 e 2 e
questionários com os atores do Grupo “3”. Esta escolha se deu por duas razões.
Em primeiro lugar, por se tratar de uma pesquisa preponderantemente qualitativa.
Em segundo, porque os indivíduos integrantes dos Grupos 1 e 2 são aqueles que,
de fato, têm participação significativa na adoção de novas ideias e também na sua
fase de implantação no âmbito institucional. Quanto aos indivíduos constantes do
Grupo 3, representam grupos sociais relevantes, cujo peso mais significativo se dá
na fase de consolidação de novas ideias, etapa que foge ao escopo da investigação.
De acordo com MARCONI E LAKATOS (2007, p. 197), “a entrevista é
um encontro entre duas pessoas, a fim de que uma delas obtenha informações a
respeito de um determinado assunto, mediante uma conversação de natureza
profissional”.194 Entre os diversos objetivos da entrevista, os autores mencionam
um particularmente importante para a investigação: a determinação das opiniões
dos entrevistados sobre os fatos, ou seja, procurar conhecer o que as pessoas
conhecem, pensam ou acreditam sobre os fatos (ibid., p. 198). QUIVY E
CAMPENHOUDT (1995, p. 193) seguem a mesma direção e apontam para um
objetivo para o qual o método de entrevista é particularmente adequado:
A análise do sentido que os actores dão às suas práticas e aos acontecimentos com os quais se vêem confrontados: os seus sistemas de valores, as suas referências normativas, as suas interpretações de situações conflituosas ou não, as leituras que fazem das próprias experiências, etc.
Foi exatamente com este objetivo que realizamos as entrevistas.
Procuramos interpretar compreensivamente a linguagem de cada pesquisado e 193 LIMA (2000) analisa o contexto nacional de descentralização da política externa. 194 Não obstante os autores se referirem a uma conversa de natureza profissional, as entrevistas realizadas de forma presencial procuraram reproduzir ao máximo um ambiente natural e informal de conversação, como é considerado recomendável nas entrevistas qualitativas.
146
perceber essa linguagem como veículo transmissor de informações vitais para a
compreensão do processo de formulação de políticas públicas de propriedade
intelectual, no período determinado. Forjamos assim o material discursivo para a
análise de dados. Compreendemos que os discursos enunciados pelos
entrevistados nas suas respostas ajudaram a revelar suas percepções sobre o papel
das suas ideias ou das ideias de outros atores estatais na tomada de decisões em
matéria de propriedade intelectual.
Na realização das entrevistas, foi elaborado um roteiro de perguntas para
cada conjunto de atores dispostos em cada uma das linhas das tabelas referentes
aos Grupos “1” e “2”195, o que possibilitou a comparação entre os discursos dos
entrevistados. O objetivo da padronização foi obter, dos entrevistados, respostas às
mesmas perguntas, permitindo que todas elas fossem comparadas e que as
diferenças refletissem suas visões de mundo e ideias (LODI, 1974, p. 16, apud,
MARCONI E LAKATOS, op. cit., p. 199). Ao submetermos o mesmo roteiro de
perguntas a indivíduos que exerceram a mesma função durante o Governo
Fernando Henrique Cardoso e O Governo Luiz Inácio Lula da Silva, foi possível
identificar suas diferentes ideias sobre a política brasileira de propriedade
intelectual.
Quanto aos roteiros estruturados para as entrevistas (as realizadas de forma
presencial), procuramos aplicá-los de forma flexível, de modo a respeitar o fluxo
mental do entrevistado (NICOLACI DA COSTA, 2007, p. 69). Significa dizer
que a ordem pré-estabelecida para as perguntas por horas teve que ser alterada,
respeitando-se a sequência de pensamento do entrevistado ou mesmo porque o
próprio se encarregou de antecipar suas impressões sobre determinado assunto
que era objeto de pergunta ainda não formulada, tornando desnecessária sua
enunciação pelo entrevistador. Valorizamos os insights oferecidos pelos
entrevistados, o que, em algumas ocasiões, estimulou a formulação de perguntas
não previstas inicialmente, de modo a obter informações sobre fatos que o
entrevistador desejou conhecer mais a fundo. Novas perguntas foram ser
incorporadas aos roteiros das perguntas apresentadas a entrevistados posteriores, e
mesmo reapresentadas em novas arguições aos que já haviam sido
195 Todos os roteiros das entrevistas realizadas se encontram no Anexo III.
147
entrevistados.196 Portanto, as entrevistas presenciais foram realizadas de forma
semiestruturada.
Já no que tange às entrevistas realizadas por meio eletrônico, foram todas
estruturadas, pois não havia como deixar de seguir fielmente os roteiros
preestabelecidos. As perguntas foram enviadas por correio eletrônico e suas
respostas recebidas posteriormente. A dificuldade de acesso pessoal a alguns dos
entrevistados determinou que parte das entrevistas fosse realizada por meio
eletrônico.197 Alguns dos entrevistados se encontravam (e ainda se encontram) em
missões diplomáticas no exterior, enquanto outros, pela natureza dos cargos que
ocupam na Administração Pública ou em empresas privadas, não dispunham de
agenda para um encontro presencial198, embora tenham se disposto a receber as
perguntas por meio eletrônico e respondê-las.199
As entrevistas realizadas por meio eletrônico possuem uma série de
diferenças em relação às realizadas de forma presencial.200 Uma delas é a de que a
entrevista eletrônica não permite ao entrevistador que esteja atento aos aspectos da
linguagem não-verbal do entrevistado como as entonações, as pausas na fala e os
gestos. Elimina-se o contato “face a face” e perde-se a possibilidade de leitura do
que não é dito, mas que pode revelar muito sobre a personalidade do entrevistado
(HAMILTON e BOWERS, 2006, p. 827-828). Por outro lado, a transcrição das
informações obtidas em entrevistas por correio eletrônico guarda maior
confiabilidade, uma vez que as respostas já são recebidas por escrito. O “ruído” na
mensagem original do entrevistado que pode ocorrer com o ato de transcrição pelo
entrevistador ou por uma terceira pessoa tende a ser eliminado (ibid, p. 827-828).
Outra suposta vantagem das entrevistas eletrônicas é o da eliminação da “intrusão
196 Os roteiros das perguntas, constantes do Anexo III, correspondem às versões finais, depois de finalizadas todas as entrevistas. Significa dizer que não se trata necessariamente dos roteiros iniciais, montados antes que as entrevistas fossem realizadas. 197 Quanto às listas constantes dos Anexos I e II, especificamos, nas referências bibliográficas, os atores que foram entrevistados de forma presencial e os que foram entrevistados por correio eletrônico. 198 Uma das opções para a realização de entrevistas por meio eletrônico é o do uso de ferramentas como chats e similares para que elas possam ser realizadas em tempo real, de forma sincrônica, aproximando-se mais de uma conversa presencial. Contudo, as dificuldades apontadas no texto nos obrigaram a optar pelo correio eletrônico. Sobre estas questões operacionais envolvendo as entrevistas eletrônicas, sugerimos ver KVALE E BRINKMANN (2009, p. 148-150). 199 Foi o caso, por exemplo, de Miguel Jorge, Ministro da Indústria, Desenvolvimento e Comércio Exterior do Governo Lula entre 2007 e 2010. 200 Ver HAMILTON e BOWERS (2006) e FONTANA e FREY (2000, pp. 666-667).
148
da tecnologia”: a utilização de câmera, gravador, microfone ou quaisquer artefatos
eletrônicos que, de alguma forma, podem inibir o entrevistado (ibid, p. 829).
Estando cientes das diferenças entre as entrevistas presenciais e
eletrônicas, consideramos que elas não comprometem o mérito da pesquisa e a
opção metodológica de comparar as respostas obtidas pelos entrevistados, ainda
que todos eles não tenham sido abordados presencialmente pelo entrevistador.
Consideramos que verdadeiramente prejudicial para a pesquisa seria nos
depararmos com essas diferenças e deixarmos de realizar entrevistas com atores
relevantes para a pesquisa por uma mera questão logística e operacional, que foi a
dificuldade de acesso pessoal.
Outra opção, na tentativa de padronizar o processo metodológico, seria
tentar realizar todas as entrevistas por correio eletrônico, abdicando das que
podiam se realizar presencialmente. Julgamos que esta outra opção não era
atraente porque acreditávamos que as possibilidades oferecidas pela forma
semiestruturada de condução das entrevistas presenciais permitiriam obter
informações relevantes no contato pessoal com os entrevistados. A experiência da
pesquisa mostrou que tínhamos razão neste julgamento porque, de fato, algumas
informações que não esperávamos obter inicialmente e que se mostraram úteis,
nos foram transmitidas espontaneamente nas entrevistas presenciais. Enfim, não
ignoramos as diferenças entre as entrevistas presenciais e eletrônicas, mas
decidimos por considerar as informações resultantes dos dois tipos como
qualitativamente iguais. Afinal, apesar de a entrevista presencial privilegiar a
comunicação oral e a entrevista eletrônica privilegiar a comunicação escrita, “se a
essência da entrevista é a linguagem então a entrevista por correio eletrônico
captura esta essência” (ibid, p. 829).
Quanto aos empresários da indústria, agentes da propriedade industrial e
pesquisadores de Relações Internacionais, ao invés de realizarmos entrevistas,
optamos pela apresentação de questionários, via formato eletrônico201. O motivo
desta diferenciação é que o objetivo em relação a estes atores não era o de obter
informações privilegiadas e detalhadas sobre as políticas públicas de propriedade
intelectual, mas meramente a de realizar uma consulta a estes setores da sociedade 201 O questionário pode ser definido como o “instrumento de coleta de dados constituído por uma série ordenada de perguntas, que devem ser respondidas [...] sem a presença do entrevistador.” (MARCONI E LAKATOS, op. cit., p. 203). O programa utilizado para o envio do questionário foi o “Google Docs”.
149
de forma a verificar o quanto suas visões sobre as políticas de propriedade
intelectual dos Governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva
se aproximam das conclusões da pesquisa. Desta forma, os questionários
apresentados foram compostos de perguntas fechadas202 que permitiram medir os
percentuais das respostas, tabulá-las e confrontar os dados com alguns
posicionamentos defendidos, de modo a verificar possíveis pontos coincidentes
entre as visões dos atores questionados e as do autor.
De modo a complementar os dois principais instrumentos de coleta de
dados utilizados na pesquisa, as entrevistas e os questionários, recorremos à
pesquisa bibliográfica e documental. Na pesquisa documental, interessou-nos
principalmente documentos oficiais do INPI como os “planos estratégicos” e os
“relatórios anuais de gestão”, de modo a verificar, por meio de dados, as
principais ações de políticas e de gestão desenvolvidas durante a Gestão Roberto
Jaguaribe entre 2004 e 2006, que contribuíram para a reestruturação da
instituição.203
Quanto à pesquisa de fontes, cuja extensão pode ser constatada nas
referências bibliográficas, recorremos a um amplo conjunto de publicações
(periódicos, livros, dissertações, teses) e materiais produzidos pela imprensa
(jornais e revistas) disponíveis em formato impresso ou eletrônico que tratam da
discussão de questões afetas à propriedade intelectual.
202 A única exceção foi o questionário dirigido aos agentes que conteve algumas perguntas abertas. Os agentes enviaram suas respostas às perguntas abertas, mas optamos por não requisitar suas identificações, salvo alguns que se identificaram espontaneamente. Vale dizer que os questionários foram dirigidos a um número específico de indivíduos e contou com adesões diferenciadas em matéria de respondentes. Os questionários enviados constam do Anexo V. 203 Focamos apenas a Gestão Roberto Jaguaribe, por entendermos que foi o período no qual começou a se operar uma verdadeira mudança paradigmática na instituição, favorecida por atributos pessoais do Presidente na adoção de novas “ideias sobre o desenvolvimento” e na relação destas ideias com a propriedade intelectual. Jaguaribe foi importante, junto com seu staff, para a institucionalização dessas ideias no âmbito do INPI, via diversos gestos materiais e simbólicos. Da mesma forma que McNamara foi fundamental para a institucionalização da preocupação com a pobreza no Banco Mundial, Jaguaribe foi fundamental para a institucionalização da “ideia da propriedade intelectual como instrumento para o desenvolvimento”, no INPI. Contribuiu também para que se iniciasse um processo de implantação dessa ideia, calcado numa concepção da instituição afastada da de uma entidade meramente cartorial, até então dominante. Mais detalhes desta análise estão no capítulo 6.
150
3.5 Técnica de Análise de dados: a Análise de Conteúdo
Conforme é possível deduzir do exposto até o momento, o discurso dos
atores entrevistados constituiu-se na principal matéria-prima para a análise de
dados. Coube-nos, assim, definir uma técnica adequada de aproximação com este
material. Como afinal lidar com as informações produzidas pelos atores
entrevistados ou encontradas em fontes bibliográficas? Entre as diferentes técnicas
que se destinam a examinar a linguagem dos discursos, optamos pela Análise de
Conteúdo, por duas razões.
A primeira razão remete ao tratamento que conferimos à linguagem como
veículo e fonte de informações passíveis de serem consolidadas de alguma forma,
seja das transcrições das entrevistas, ou do material coletado em pesquisas
bibliográficas.204 Importou-nos, enfim, que a informação estivesse consolidada em
textos ou documentos, para que pudéssemos analisá-la.
Como leciona CHIZZOTTI (op.cit., p. 98):
A Análise de Conteúdo é um método de informações colhidas por meio de técnicas de coleta de dados, consubstanciadas em um documento. A técnica se aplica à análise de textos escritos ou de qualquer comunicação (oral, visual, gestual) reduzida a um texto ou documento. QUIVY E CAMPENHOUDT (op. cit., p. 226) também enfatizam que a
Análise de Conteúdo pode incidir sobre informações bastante variadas, como as
que constam de obras literárias, artigos de jornais, documentos oficiais, programas
audiovisuais, declarações políticas, atas de reuniões ou relatórios de entrevistas. O
que importa, assim, é que a informação (compreendida como linguagem) esteja
consolidada e disponível em algum texto ou documento, para que seja analisada.
Vale esclarecer a concepção de linguagem que a Análise de Conteúdo
encerra. Segundo FRANCO (2008a, p. 13), a Análise de Conteúdo repousa no
pressuposto de uma concepção crítica e dinâmica da linguagem, compreendida
como “uma construção real de toda a sociedade e como expressão da existência
204 Não diferenciamos os conteúdos, em termos de qualidade, de acordo com o meio de obtenção dos mesmos. Os discursos obtidos por meio de entrevistas (presenciais e eletrônicas) e pesquisa bibliográfica foram considerados equivalentes, não obstante estarmos cientes de que, epistemologicamente, há controvérsias quanto às diferentes naturezas dos mesmos.
151
humana que, em diferentes momentos históricos, elabora e desenvolve
representações sociais” (ibid., p. 12-13). As representações sociais, por sua vez,
são as “elaborações mentais construídas socialmente, a partir da dinâmica que se
dá entre a atividade psíquica do sujeito e o objeto do conhecimento” (ibid., p.12).
Assim, a presunção da Análise de Conteúdo é a de que as representações sociais
contidas na linguagem têm implicações na vida cotidiana, influenciando não
apenas a comunicação e a expressão das mensagens, mas também os
comportamentos (ibid, p. 12). Ou seja, a linguagem não pode ser tratada apenas
sob uma perspectiva formalista, atentando-se somente para o seu conteúdo
observável. Suas expressões verbais estão carregadas de componentes cognitivos,
afetivos, valoráveis e historicamente mutáveis que podem revelar muito sobre os
produtores da mensagem (ibid, p. 12).205 A linguagem é utilizada pelos atores para
revelar como compreendem os fenômenos sociais (ABDELAL, HERRERA,
JOHNSTON et. al. 2006, p. 702). Através dela, os atores revelam suas crenças,
perspectivas futuras e experiências afetivas e sociais, em determinadas condições
contextuais (as situações econômicas e socioculturais em que se inserem).
Por essas razões que, em determinados momentos da análise, remissões à
forma com que os entrevistados revelaram suas ideias – se de forma enfática,
irônica, sarcástica, inconformada, bem-humorada etc – foram feitas. Mas estas
remissões são apresentadas na forma de pequenos insights, e não de maneira
sistemática. Preponderantemente, a linguagem foi tratada como qualquer outro
“texto” recolhido de outras fontes. Trata-se da “metáfora do conduite”, a que já
aludimos anteriormente, que vislumbra as ideias como objetos capazes de serem
traduzidos em palavras, de forma que a linguagem é um mero “contêiner” para as
ideias.206
Há outro motivo determinante para a escolha da Análise de Conteúdo: a
sua pertinência para realizar inferências sobre o comportamento e a personalidade
205 Como afirmam QUIVY E CAMPENHOUDT (op.cit., p. 227) “os aspectos formais da comunicação são então considerados indicadores da atividade cognitiva do locutor, dos significados sociais ou políticos do seu discurso ou do uso social que faz da comunicação”. 206 Ver p. 30. De acordo com CARLSNAES (2001, op. cit., p. 340), o que diferencia as abordagens discursivas das cognitivas é que aquelas não se concentram apenas na análise dos “sistemas de crenças” dos tomadores de decisão individuais. As abordagens discursivas baseiam-se na presunção de que os significados são intersubjetivos e que não podem ser apreendidos por si mesmos; ao contrário, eles são constituídos pela linguagem. Assim, o discurso fornece a base na qual as preferências políticas, interesses e objetivos são definidos. Como já esclarecemos no capítulo teórico, nossa análise é cognitiva.
152
dos indivíduos entrevistados e suas ideias. De acordo com MCDERMOTT, a
Análise de Conteúdo pode ser definida como “a técnica para realizar inferências
psicológicas sobre aspectos politicamente relevantes da personalidade de atores
políticos, a partir do estudo sistemático e objetivo de material oral escrito e
transcrito” (op.cit., p. 31) ou compreendida ainda como “o conjunto de técnicas de
análise de comunicação que contém informação sobre o comportamento humano
atestado por uma fonte documental” (BADIN, 1977, apud, ibid., p. 98). A autora
demonstra que o uso da Análise de Conteúdo é útil para o estudo da personalidade
individual, particularmente na área de estudos sobre liderança (ibid., p. 32). Já
QUIVY E CAMPENHOUDT sublinham que se trata de uma técnica
recomendável se um dos objetivos da investigação for “a análise das ideologias,
dos sistemas de valores, das representações e das aspirações, bem como da sua
transformação”207 (op. cit., p. 230).
Portanto, a Análise de Conteúdo foi uma escolha que atendeu ao objetivo
da pesquisa de investigar o papel das ideias e de lideranças individuais na
formulação de políticas públicas de propriedade intelectual. Foi a partir
principalmente destas variáveis que as informações contidas nos discursos
puderam ser interpretadas, por intermédio de comparações dos conteúdos das
respostas dos diferentes atores, reunidos em cada uma das linhas hierárquicas de
cada um dos grupos entrevistados. Conforme menciona FRANCO (2008a, op.cit.,
p. 30), o investigador deve ser capaz de poder compatibilizar o conteúdo do
discurso com alguma, ou algumas, teorias explicativas. É a partir do
conhecimento teórico que se pode atribuir significado ao discurso.
Resta-nos esclarecer como, operacionalmente, se deu a aplicação da
Análise de Conteúdo aos discursos dos atores, sob uma perspectiva comparativa.
Em termos operacionais, a espécie de Análise de Conteúdo que realizamos foi a
“análise temática” que é aquela que tenta revelar as representações sociais ou
juízos dos “locutores” (no nosso caso, os atores dos Grupos 1 e 2), a partir do
exame de certos elementos constitutivos do discurso (QUIVY E
CAMPENHOUDT, op. cit., p. 228) 208.
207 Entendemos que o que os autores denominam de “ideologia” e “sistemas de valores” possui afinidade e proximidade conceitual com a nossa concepção de “ideias”, exposta no capítulo anterior. 208 QUIVY E CAMPENHOUDT referem-se, ainda, a mais duas espécies de Análise de Conteúdo: as “análises formais”, que são as que incidem sobre as formas e encadeamento do discurso e as
153
Na análise temática, é possível distinguir ainda duas subespécies. A
primeira delas é a “análise categorial” que, tomando como base determinados
elementos, como palavras, símbolos, termos, ou mesmo frases e parágrafos
(também chamados de “unidades de registro”), pretende verificar a frequência
com que eles são enunciados, para daí tirar conclusões (FRANCO, 2008a, op. cit.,
p. 42). A presunção que informa a análise categorial é a de que um elemento do
discurso tende a se repetir quanto mais importante ele for para quem emite o
discurso. Esta análise é especialmente recomendável quando se adotam
procedimentos estatísticos (QUIVY E CAMPENHOUDT, op. cit., p. 228).
Como nossa pesquisa é preponderantemente qualitativa, optamos por
recorrer à outra subespécie de análise temática: a “análise de avaliação” (ibid, p.
228). Trata-se da análise que incide sobre as ideias ou juízos formulados pelo
emissor do discurso. Nela, não importa somente a frequência das ideias, expressas
resumidamente em “unidades de registro”, mas também – e, nosso caso,
exclusivamente209 – o que elas revelam, em termos valorativos (visões negativas
ou positivas, otimistas ou pessimistas, assertivas ou hesitantes etc).
Assim, em nossa análise temática sobre as ideias expostas pelos atores
investigados acerca das políticas públicas brasileiras de propriedade intelectual,
procuramos compreender como o “desenvolvimento” é apreendido como
categoria, entre aquelas presentes nos principais discursos do pensamento
econômico brasileiro, a saber, o “neoliberal”, o “nacional-desenvolvimentista”
(ou, simplesmente, “nacionalista”), o “liberal-desenvolvimentista” (ou
“desenvolvimentista não-nacionalista”) e o “novo desenvolvimentista”.
Estas diferentes categorias ajudaram a situar as distintas “ideias do
desenvolvimento” que informaram as políticas públicas de propriedade intelectual
dos Governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. De que
modo elas persuadiram tomadores de decisão brasileiros sobre quais deveriam ser
os rumos das políticas públicas de propriedade intelectual, e como, por iniciativa
“análises estruturais”, aquelas que enfatizam a maneira como os elementos da mensagem estão dispostos (ibid., p. 228-229). 209 Portanto, não nos preocupamos em medir frequências. Vale frisar que os dados obtidos nas entrevistas aparecerão de forma disseminada ao longo dos capítulos 5 e 6 e não são tratados em tópicos apartados. Esperamos, assim, que seja garantida maior fluidez à narrativa, apesar de que, no capítulo referente ao Governo Luiz Inácio Lula da Silva, em parte dedicado à comparação com o seu antecessor, tenha sido inevitável uma maior concentração de dados analisados, em um tópico à parte.
154
destes decision makers, foram institucionalizadas, é o que nos propomos a
compreender.
Dos textos constantes de cada uma das respostas dos entrevistados,
destacamos os trechos em que entendemos que os atores transmitem suas ideias.
Em síntese, a Análise de Conteúdo que empreendemos foi uma “análise temática
de avaliação” que procurou revelar e interpretar as ideias dos entrevistados sobre a
política brasileira de propriedade intelectual, a partir de um exame comparado das
diferentes respostas obtidas (QUIVY E CAMPENHOUDT, op. cit., p. 228).
Revistos os aspectos metodológicos que demarcaram a pesquisa, passamos
agora a uma compreensão da trajetória do regime internacional de propriedade
intelectual do Acordo TRIPS. A questão de fundo a ser discutida neste capítulo é:
tal regime representa (ou não) um chute definitivo na escada do desenvolvimento?