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MECANISMOS FINANCEIROS & DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL TRANSFERÊNCIA DE RENDA E NOVOS MODELOS DE GESTÃO PARA O REPASSE DE RECURSOS ENTRE EMPRESAS E COMUNIDADES 3 Impactos socioambientais do aumento de renda: estudo de tendências

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MECANISMOS FINANCEIROS & DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL TRANSFERÊNCIA DE RENDA E NOVOS MODELOS DE GESTÃO PARA O REPASSE DE RECURSOS ENTRE EMPRESAS E COMUNIDADES

3 Impactos socioambientais do aumento de renda: estudo de tendências

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Programa Territórios Sustentáveis

O Programa Territórios Sustentáveis trabalha para que as pessoas da região amazônica tenham condições justas de desenvolvimento e oportunidades para uma vida melhor. O Programa respeita as características de cada comunidade e pensa estratégias integradas que possam colaborar com o desenvolvimento local de forma sustentável, incluindo as populações e o poder público.

Atua de maneira sistêmica, contribuindo com a redução da dependência econômica da mineração na região da Calha Norte do Pará. Além disso, também atua de forma integrada em cinco eixos: Gestão Pública, Capital Social, Quilombola, Desenvolvimento Econômico e Meio Ambiente.

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Sumário

Nota metodológica 6Conceitos e premissas 7

Introdução 8

Tendências de impacto: estudo sobre os territórios quilombolas do Alto Trombetas 141. Sustentabilidade sociocultural 162. Estruturas sociais e redes de solidariedade 253. Relações de dinâmica e conservação ambiental 354. Sustentabilidade econômica 415. Produção de novas paisagens, gostos e hábitos 506. Relação com a Mineração Rio do Norte 567. Relação com os serviços públicos 618. Saneamento básico e ambiental 67

Conclusões e apontamentos 74

Notas 82Lista de entrevistados 83Referências bibliográficas 84

Expediente

Um produtoEcam

Em parceriaUSAID e MRN

ExecuçãoHumana

OrganizaçãoBruno Gomes e Carol Ayres

Coordenação de Pesquisa Ana Letícia Salla

1. O Fundo Quilombola: um novo modelo de gestão territorialPriscilla Grimberg

2. Programas de transferência de renda: do desenho à implementaçãoAna Letícia Salla

3. Impactos socioambientais do aumento de renda: estudo de tendênciasBeatriz Maroni Luciana Sonck Fernanda Malak

Projeto Gráfico, Diagramação e IlustraçõesTiago Taborda

Copyright © 2019 de Equipe de Conservação da Amazônia (Ecam)

Todos os direitos reservados.

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Conceitos e premissas

“Uma fronteira é sempre final e princípio; ponto de chegada e de partida, âmbito do cotidiano e do desconhecido, geradora de medos e desconfianças; espelho e escudo, eterna contradição de um ser que requer o outro, ao mesmo tempo que necessita diferenciar-se para seguir sendo essencialmente humano.” (FUNES, 2015).

Os estudos de impacto nas áreas social e ambiental têm como principal objetivo mensurar mudanças, positivas e negativas, geradas a partir de um determinado fato e que possibilitam compreender seus efeitos nas mais variadas dimensões e escalas. Neste estudo, quando abordado o conceito de “impacto” devemos procurar compreendê-lo nos parâmetros socioambientais e com os efeitos percebidos e mensuráveis de um evento, ação, atividade ou projeto. (BONILLA, 2017).

Nesta análise, procuramos compreender as tendências de impactos socioambientais, ou seja, as mudanças nas dimensões de estudo que possam estar em plena transcorrência e podem ser aceleradas, retardadas ou ainda que podem vir a ser iniciadas a partir de um fato social específico.

Nota metodológica

A metodologia utilizada para a construção deste diagnóstico contemplou:

1. uma revisão bibliográfica das publicações e estudos acadêmicos sobre as comunidades quilombolas do Baixo Amazonas,

2. a coleta de dados secundários sobre a socioeconomia local, em sua maioria provenientes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), estudos realizados em 2014 pela empresa Mineração Rio Norte (MRN), estudos realizados pela Equipe de Conservação da Amazônia (ECAM) em parceria com a Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná (ARQMO) em 2018, além de dados da Prefeitura de Oriximiná;

3. a coleta de dados primários qualitativos em campo e por telefone com lideranças e atores locais envolvidos na dinâmica do território, entre eles representantes da ECAM, MRN, ARQMO, Associação de moradores de Alto Trombetas 2 e moradores locais.

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Introdução

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Introdução

Essa leitura nos permite recortar o território de estudo como um território simbólico, onde existem indivíduos que habitam o Alto Trombetas, mas também compreende, por exemplo, seus filhos e familiares que saíram das comunidades para viver na cidade, que migraram para outros territórios.

A partir dessa dinâmica, identificamos os eixos integrados relevantes para a análise de tendên-cias de impacto e os organizamos em 8 dimensões socioambientais que serão aprofundadas a partir de (i) análises de contexto/caracterização, (ii) de estudo sobre os impactos já percebidos nos territórios e seus fatores de origem, e (iii) de análise sobre as tendências de impacto da implementação de um programa de transferência de renda.

Dimensões Socioambientais

1. Sustentabilidade sociocultural

2. Estruturas sociais e redes de solidariedade

3. Relações de Dinâmica e Conservação Ambiental

4. Sustentabilidade econômica

5. Produção de novas paisagens, gostos e hábitos

6. Relação com a Mineração Rio do Norte

7. Relação com os serviços públicos

8. Saneamento básico e ambiental

O qUE SãO TERRITóRIOS

O território, enquanto um produto dos processos sociais e históricos, tem projetado em si as vivências, experiências e memórias de um determinado povo que lá habita. Na perspectiva de Little (2004, p. 253) a territorialidade pode ser compreendida “como o esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendo-a assim em seu território”. O estabelecimento de vínculos de significados e relação de pertencimento se manifestam no cultivo do lugar dentro das práticas do cotidiano, sendo o território compreendido para além da ótica geográfica de lugares fixos, mas também na perspectiva do espaço vivido e dos laços afetivos perpetuados por gerações.

Este estudo possui um certo ineditismo em decorrência de muitos fatores ligados ao seu escopo (Fundo Quilombola), mas também à sua metodologia de trabalho. Lidar com tendências de im-pacto implica necessariamente em recorrer ao território das múltiplas possibilidades sem perder seu embasamento científico. Para isso, organizamos nossa abordagem em 4 etapas fundamentais:

1. Compreender o território estudado em suas múltiplas dimensões: cultural, social, ambiental, etc.

2. Conhecer os atores que fazem esse território existir: seus sentimentos, expectativas, perspectivas, discursos e pontos de vista, etc.

3. Realizar o estudo de impacto sobre mudanças que já estão ocorrendo no território em decorrência de outros fatos sociais passados ou presentes.

4. Fazer a leitura de tendências de impacto sobre o novo fato social em questão, buscando integrar na análise possibilidades de aceleração de tendências atuais, retardamento delas ou início de novas tendências de mudança, positivas ou negativas a partir da sua ocorrência.

A criação de um programa de transferência de renda nos territórios quilombolas de Alto Trom-betas (Oriximiná, PA), com recursos provenientes do pagamento de royalties a territórios qui-lombolas, nos aponta um caminho de muitas fronteiras.

A experiência de Oriximiná se difere em vários aspectos do que se conhece atualmente sobre pagamentos de royalties ou indenizações à comunidades tradicionais em decorrência de em-preendimentos de grande impacto, ou mesmo sobre programas de transferência de renda para o combate à pobreza. Isso abre espaço para inovação metodológica, mas, também, há pouco material de comparação, necessitando-se muita cautela para as conclusões e leituras de cená-rio que traremos a seguir.

O que nos permitiu seguir com segurança foi um consistente diagnóstico das comunidades como são hoje, uma leitura das trajetórias dessas comunidades e seu ponto de chegada na construção desses territórios.

O diagnóstico nos deu as sementes de análise para as tendências de mudança nos territó-rios, tanto as que estão em plena transcorrência como as que ocorrerão nos próximos anos. Como veremos neste estudo, as mudanças ocorrem, pela implementação de modelos de desenvolvimento vindos de fora e com moldes muito conhecidos e estudados (como a che-gada de grandes empreendimentos locais, evangelização, associativismo etc.), mas também pela aproximação com modelos de desenvolvimento inovadores que caminham a partir da construção endógena, como o Programa Territórios Sustentáveis.

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Introdução

Oriximiná

56°4'0"W56°30'0"W56°56'0"W57°22'0"W

0°44

'0"S

1°10

'0"S

1°36

'0"S

0 10 205Km

S istema de Projeção: UTM-UPSDATUM: WGS -84; Fuso: 21 S ul

Fonte: MMA; INCR A; ITE R PA:IBGEE sse mapa foi projetado para fl. A4

CR E A: 2012117194-R J

1:850.000

Territórios titulados-Associação

Água Fria_ACR QAF

Boa Vista_ACR QBV

Trombetas_ACOR QAT

Mae Domingas_Mãe Domingas

Ariramba_ACOR QA

Erepecuru_ACOR QE

Cachoeira Porteira_AMOCR E Q

Processo de titulação-INCR A

Alto Trombetas II_ACR QAT

Alto Trombetas I_Mãe Domingas

Ariramba_ACOR QA

Unidades de Conservação Federais

R EBIO Trombetas

FLONA S aracá-Taquera

Comunidades Quilombolas

Oriximiná

56°4'0"W56°30'0"W56°56'0"W57°22'0"W

0°44

'0"S

1°10

'0"S

1°36

'0"S

0 10 205Km

S istema de Projeção: UTM-UPSDATUM: WGS -84; Fuso: 21 S ul

Fonte: MMA; INCR A; ITE R PA:IBGEE sse mapa foi projetado para fl. A4

CR E A: 2012117194-R J

1:850.000

Territórios titulados-Associação

Água Fria_ACR QAF

Boa Vista_ACR QBV

Trombetas_ACOR QAT

Mae Domingas_Mãe Domingas

Ariramba_ACOR QA

Erepecuru_ACOR QE

Cachoeira Porteira_AMOCR E Q

Processo de titulação-INCR A

Alto Trombetas II_ACR QAT

Alto Trombetas I_Mãe Domingas

Ariramba_ACOR QA

Unidades de Conservação Federais

R EBIO Trombetas

FLONA S aracá-Taquera

Comunidades Quilombolas

Fonte: Prefeitura de Oriximiná, 2015

Área de atuação Programa Territórios Sustentáveis - Eixo Quilombola

Os 3 territórios quilombolas que compõe Alto Trombetas encontram-se dentro dos limites do município de Oriximiná (PA), na região denominada Baixo Amazonas, ao longo do Rios Trom-betas, em um conjunto total de 8 territórios.

IMPACTOS DOS PROGRAMAS DE TRANSFERêNCIA DE RENDA OU DE MECANISMOS FINANCEIROS

A construção de um programa de transferência de renda ou de mecanismos financeiros para e com um determinado território poderá acarretar mudanças tanto para as comunidades diretamente envolvidas no processo quanto para o desenho final do programa em si.

Um processo de escuta e construção a partir do ponto de vista comunitário, de sua cultura e seus valores, aponta para resultados de desenhos customizados, pois refletem as características e dinâmicas daquele determinado contexto onde ele foi desenhado.

Já a construção de condicionalidades considerando olhares externos, como da empresa geradora do recurso ou ainda de poderes políticos, pode apontar para outros cenários menos customizados e mais genéricos, por exemplo.

Construções que levam em conta sugestões ou tomada de decisão final da comunidade em seu desenho, mas é pensado estrategicamente atores externos ao território também tem cenários resultantes distintos e podem gerar com o tempo maiores conflitos no território. Ou seja, a construção de um programa de transferência de renda ou mecanismo financeiro territorial, pode ocasionar em impactos no curto, médio ou longo prazos.

Região de Alto Trombetas

Territórios Comunidades

Alto Trombetas 1 Abuí Mãe CuéParaná do AbuíSagrado Coração de JesusSanto Antônio do AbuzinhoTapagem

Alto Trombetas 2 Moura Último QuilomboJamariJuquirizinhoCuruçáJuquiri GrandePalhalNova Esperança

Boa Vista Boa Vista

Total 15 Comunidades 701 famílias residentes

(MRN, 2014)

Processo de titulação INCRA

Alto Trombetas II_ACRQAT

Alto Trombetas I_Mãe Domingas

Ariramba_ACORQA

Unidade de conservação federais

REBIO Trombetas

FLONA Saracá-Taquera

Comunidades Quilombolas

Territórios titulados-Associação

Água Fria_ACRQAF

Boa Vista_ACRQBV

Trombetas_ACORQAT

Mãe Domingas_Mãe Domingas

Ariramba_ACORQA

Erepecuru_ACORQE

Cachoeira Porteira_AMOCREQ Sistema de Projeç ão: UT M-UP SDATUM: WG S- 84 ; Fuso: 21 Su l

Fonte: MMA; INCR A; ITER PA:IBG EEs se mapa foi projetado pa ra fl. A4

CR EA : 2012 117194-R J

1:850. 000

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Tendências de impacto: Estudo sobre os territórios quilombolas do Alto Trombetas

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Tendências de impacto: estudo sobre os territórios quilombolas do Alto Trombetas

Agricultura e extrativismo

As práticas domésticas e agropastoris que eram desenvolvidas pelos primeiros quilombolas fo-ram adaptadas para a nova realidade. As comunidades aprenderam a caçar, pescar e sobreviver dos produtos da floresta, passando a dominar conhecimentos indígenas e religiosos-cristãos, que hoje caracterizam a cultura dos quilombos de Oriximiná.

Hoje as comunidades do Rio Trombetas são em sua maioria extrativistas, uma tradição passada de pai para filho até as gerações mais recentes, com principal foco na pesca e na coleta da Casta-nha do Pará. Tal característica ainda é acompanhada de uma forte preocupação com a segurança alimentar, manifestada por pelo menos 50% dos moradores de todos os territórios entrevistados pela ARQMO/ECAM (2018).

Alguns territórios, como Água Fria e Área Trombetas, manifestaram 100% de preocupação com a falta de alimentos, especialmente nos meses de janeiro a maio, quando há maior escassez de coleta.

O plantio para subsistência é uma prática em quase todas as residên-cias, porém com pouca variedade de alimentos, sendo o principal o plantio da mandioca, base da alimentação quilombola. O peixe e a farinha da mandioca são os principais alimentos consumidos pelas famílias, assim como o açaí e os produtos de cesta básica (arroz, fei-jão). O consumo de proteínas, além do pescado, em 75% das famílias,

também é proveniente da caça de animais silvestres, como a anta, a paca e o macaco guariba (FUNES, 2015). Esse consumo quando comparado com os estudos mais recentes da ARQMO/ECAM (2018) não evidenciam alteração dessa composição ao longo do tempo, nem de território para território, podendo-se afirmar que são os alimentos típicos da mesa do quilombola da região.

O excedente da produção local tem destinação certa entre os mercados locais. A venda é feita prioritariamente entre vizinhos ou em feiras comunitárias, mostrando que, ainda que seu estilo de vida esteja realizando cada vez mais trocas com os centros urbanos, o roçado de subsis-tência é uma forte característica de sua cultura. Os alimentos circulam na comunidade e entre comunidades como venda, como doação ou como trocas entre produtos.

Plantas medicinais

O uso de plantas medicinais (fruto do conhecimento tradicional) é realizado por 90% dos en-trevistados pela ARQMO/ECAM, isso ainda em 2018, apesar das comunidades buscarem ter o acesso aos postos de saúde e remédios de distribuição pública em sua região.

Essa ancestralidade presente nas práticas cotidianas vem sofrendo mudanças com o tempo, seja por intervenções de fatores externos, como a chegada dos grandes empreendimentos, ou relacionadas às condicionantes do Bolsa Família, ou pelo contato com a cidade que passam a criar novos hábitos entre os quilombolas.

PRáTICAS MAIS COMUNS:

• Pesca 95% • Agricultura 87%• Extrativismo 81%• Pecuária 88%

Fonte: ECAM, 2018

1. Sustentabilidade sociocultural

História

Segundo estudos históricos, a ocupação quilombola na região de Oriximiná aconteceu no sé-culo XIX, quando escravos fugidos de fazendas de Óbidos, Santarém e Alenquer, buscaram refúgio ao longo do Rio Trombetas e ali constituíram suas comunidades. Os quilombos eram chamados na região de mocambos.

A região de ocupação era estratégica, pois o Rio Trombetas, tendo um tre-cho de “águas bravas” com cachoeiras que dificultavam o trajeto, e outro de “águas mansas”, protegia os territórios indígenas e quilombolas locali-zados acima de Cachoeira Porteira, que recebeu este nome justamente por sua característica de “porteira”, separando os dois trechos do rio.

Os estudos acadêmicos indicam que na cultura quilombola há uma his-tória presente de resistência por libertarem-se de seus senhores e por buscarem a titularidade da terra para seguirem existindo enquanto co-munidade em seus territórios. As histórias sobre as fugas, a construção dos mocambos e suas dinâmicas de governança.

A história dos quilombolas do Baixo Amazonas, que hoje resistem de maneira mais institucio-nalizada, avança no desejo de acesso ao desenvolvimento nos termos das cidades que lhes são referência. Segundo estudos, a percepção dos quilombolas sobre o quilombo é que este é um espaço de convivência e organização de sociedade.

“Quilombo é nossa forma de organizar, viver e trabalhar. De lutar, de resistência e de manter nosso território através de reconhecimento” (ECAM, 2018).

Cultura

Hoje o quilombola realiza atividades comunitárias em situações de trabalho (roçado), atuação política (associações quilombolas) e culturais.

As atividades culturais realizadas nas comunidades quilombolas são tradi-cionalmente religiosas e ocorrem quase em sua totalidade em suas próprias comunidades. A participação inter-comunidades ocorre em mais de 50% das ocasiões, o que mostra que mesmo com as distâncias, o quilombola aproveita as oportunidades de troca, que muitas vezes também alimentam outros aspectos como o trabalho e o associativismo (MRN, 2014).

Menos de 3% das festividades são realizadas na cidade ou em Porto Trombetas.

substantivo masculino 1. refúgio, ger.

em mata, de escravo(s) foragido(s); quilombo.

2. habitação precária e desconfortável; cabana, tapera.

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Tendências de impacto: estudo sobre os territórios quilombolas do Alto Trombetas

Permanência do jovem no território

Outro problema que impacta a sustentabilidade sociocultural desses territórios é o en-volvimento do jovem com a sua cultura e com a sua comunidade. O ensino formal nas escolas possui desafios como a inexistência de escolas nos territórios, como a falta de professores quilombolas. Nesse sentido, evidencia-se um problema de fundo: na medida em que o jovem não completa seus estudos, há uma barreira para construção de sua autonomia e de oportunidades de vida.

• Apenas 4,83% dos moradores de Alto Trombetas possuem Ensino Médio completo (MRN, 2014).

Esse dado evidencia um problema nacional: inúmeros municípios têm pouca infraestru-tura educacional na zona rural ou a infraestrutura é precária. Os quilombolas têm deman-dado de suas associações mobilização pela criação de escolas nas comunidades, com a presença de professores quilombolas. Em 2018, a MRN construiu uma escola municipal no território de Alto Trombetas 1 após solicitação dos territórios. A perspectiva é de cons-trução de mais uma escola em Alto Trombetas 2 em 2019. Os recursos humanos, a manu-tenção e os recursos necessários para o funcionamento da escola é de responsabilidade do poder público.

Os indicadores de escolaridade das comunidades de Alto Trombetas tendem a melhorar na medida em que melhorar o acesso à educação, segundo análise dos resultados da pes-quisa realizada pela MRN (2014), já que há interesse por parte da maioria da população em finalizar seus estudos.

40% da populaçãose sente motivada para a migração entre zona rural e área urbana do município para cursar o Ensino Médio e Superior (MRN, 2014).

43% dos quilombolas de Alto Trombetas dizem que a principal motivação para a evasão escolar é a ausência de escolas em suas próprias comunidades ou escolas próximas

27% dizem que a segunda motivação para a evasão escolar é a necessidade de trabalhar

81% dos entrevistadosafirmam que a qualidade do ensino disponível é boa

Territórios em mudança

Quais as mudanças que já estão em curso nas comunidades quilombolas

do Baixo Amazonas referente aos aspectos socioculturais?

Ausência de rituais de transmissão de ancestralidade

A criação de tradições para transmissão da ancestralidade quilombola se apresenta como um grande desafio para as comunidades, apesar de acontecerem de modo natural, imperceptível e até inconsciente. Quando perguntados sobre se as tradições do passado vêm sendo transmitidas para as gerações presentes, quase 80% dos en-trevistados nas comunidades da região do Alto Trombetas afirmam que não (MRN, 2014) e essa percepção pode ser estendida aos demais territórios, segundo entrevis-tados para este estudo (2019).

Os quilombolas apontam essa dificuldade especialmente no que tange às tradições ligadas à terra, como a pesca, a caça, o extrativismo da castanha em função de conflitos com as ques-tões de manejo e uso da floresta, agora preservada legalmente por Unidades de Conservação.

Restam, na percepção desses quilombolas, as atividades culturais como referência de transmissão transgeracional, como as danças folclóricas. Hoje, mesmo as manifestações culturais, são restritas aos dias de festa religiosa.

Apesar de sua identidade negra, o quilombo foi formado em torno de crenças e símbolos católicos. 85% dos entrevistados em 35 comunidades declaram-se católicos. Não à toa, algumas das comunidades possuem nome de algum santo ou símbolo católico, como Es-pírito Santo, Nossa Senhora das Dores, Santa Rita ou Sagrado Coração. Após a década de 1960, essa influência se tornou mais forte em função da presença de trabalhos eclesiais de base e a presença das pastorais nas comunidades.

A presença e atuação da igreja católica nos territórios não esteve restrita apenas às ati-vidades de cunho religioso, mas também na formação das associações comunitárias, auxiliando nos trâmites necessários para o processo de titulação das terras. A presen-ça das religiões protestantes é relativamente recente nas comunidades quilombolas. 13% dos entrevistados declaram-se evangélicos.

As comunidades quilombolas de Oriximiná não vivem isoladas social e culturalmente e tampouco são autossuficientes. Essas comunidades estão em constante relação com os demais atores locais e regionais, seja na interação cotidiana ou nas negociações para titulações de terra, por exemplo. Por essa relação e pelas poucas atividades culturais ancestrais, o aspecto sociocultural pode sofrer impacto com o tempo.

Territórios em mudança

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2120

Tendências de impacto: estudo sobre os territórios quilombolas do Alto Trombetas

Apenas 0,61%dos moradores de Alto Trombetas possuem o Ensino Superior (MRN, 2014)

Atualmente a ARQMO tem uma parceria com a UFOPA (Universidade Federal do Oeste do Pará) e vem realizando cursos preparatórios para o processo seletivo desta Universidade e que, segundo alguns entrevistados, tem gerado bons resultados.

O protagonismo dos jovens nos territórios está nas falas de alguns entrevistados, sobretudo sobre como a formação deles deveria direcionar melhorias nas vidas dos parentes quilombolas, de infraestrura das comunidades e garantia dos direitos sociais, possibilitando maior sustentabilidade sociocultural a essas comunidades.

Territórios em mudançaTerritórios em mudança

66% afirmam que os docentes são bem preparados

85% ainda confirmam que as atividades culturais oferecidas pela escola são mais que satisfatórias e que a infraestrutura atende às suas necessidades

27% dos entrevistadosafirmam estudar em sua própria comunidade, indicando que a distância até a escola é um dificultador.

As escolas que oferecem o ensino médio estão situadas apenas no perímetro urbano, ou seja, não há esse nível escolar nos territórios, apenas o Ensino de Jovens e Adultos (EJA) para população acima dos 18 anos.

Impactos da ausência do Ensino Médio no território

Esse cenário tem gerado dois grandes impactos na vida dos jovens quilombolas:

1. Evasão escolar dos que cessam os estudos no ensino fundamental e aumento dos “nem-nem”. De acordo com o IBGE os jovens denominados “nem-nem”, estão na faixa etária dos 15 a 29 anos, fora do mercado de trabalho e de instituições educacionais. As razões para esse cenário são diversas, mas podemos ressaltar aqui a ausência de políticas públicas para esta faixa etária como um dos fatores determinantes para o crescimento ou diminuição deste grupo.

2. Migração para a cidade. Segundo alguns entrevistados para este estudo este é um desafio para as comunidades quilombolas, pois há o deslocamento diário dos alunos da comunidade (área rural) para a escola (perímetro urbano), mas também que se fixam na cidade. Em ambos os casos o desafio consiste em conseguirem se manter financeiramente para o desenvolvimento dos estudos. Ainda, existe outro desafio: o retorno dos jovens para o território após a conclusão do ensino médio ou até mesmo após a conclusão da graduação. O retorno desse jovem com uma qualificação profissional à comunidade é almejado pelas associações, seja em uma perspectiva de contribuírem com os territórios por meio do conhecimento adquirido com a formação, ou ainda, em uma perspectiva de dar continuidade e perpetuar as práticas tradicionais dos quilombolas através de sua cultura.

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2322

Tendências de impacto: estudo sobre os territórios quilombolas do Alto Trombetas

Tendências de impacto do Programa de Transferência de Renda

Mas então, o que então poderemos observar de impacto no estilo de vida dos quilombolas de Oriximiná? Segundo entrevistados, a maior inserção tecnológica e ampliação do conforto dos domicílios são uma tendência e um desejo, porém, dentro do mesmo modo de vida.

A inserção tecnológica é algo que já está presente nas comunidades através de assistên-cias recebidas da MRN ou de programas como o Territórios Sustentáveis. O componente que se agrega com o programa de transferência de renda é a autonomia para a compra e o uso, algo bastante importante dentro das necessidades apontadas pelos entrevistados. Com isso, a tendência é que haja uma diversificação das atividades de entretenimento e lazer como jogos no computador e celular, uso de redes sociais, televisão, entre outros.

Miscigenação e multiculturalismo

Há uma dimensão importante no aspecto da sustentabilidade sociocultural e no pro-blema que verificamos de perda de ancestralidade quando falamos da possibilidade de um programa de transferência de renda. Na medida em que os quilombolas desejam manter esse recurso entre os residentes com origem quilombola, os casamentos e as trocas entre eles podem vir a sofrer impactos, ocasionando em uma estratificação social por questão de origem.

Os quilombolas já possuem grande miscigenação com indígenas, brancos ou pessoas que residem na região e não tem a mesma ancestralidade. Um programa de renda com critérios de entrada que limitem a participação às famílias de origem exclusivamente qui-lombola poderá iniciar uma tendência de redução dos casamentos com pessoas de fora, ou mesmo de boa convivência. É claro que trata-se de uma leitura de extremos, no entanto o estudo de tendências nos permite abarcar diversos níveis de aprofundamento do impac-to social, ao tratar de um fato ainda não vivenciado empiricamente.

Seguindo essa perspectiva, observamos no contexto das migrações entre cidade e territórios que grande parte está relacionada aos casamentos ou ao estudo/ emprego (MRN, 2014). Na medida em que se amplia a circulação de recursos no território, há uma tendência à perma-nência no território, ou em outras palavras, há menos justificativas para o quilombola deixar o território. Isso, no entanto, não é válido para o jovem em idade de cursar o Ensino Médio.

Juventude

O jovem, que mesmo com a presença de um programa de transferência de renda, seguirá entre as opções de deixar o território ou aguardar a idade correta para entrada no EJA (que

Tendências de impacto do Programa de Transferência de Renda

Quais alterações que se dariam no estilo de vida quilombola

com um possível incremento de renda?

Permanência no território

Existem mudanças nos territórios em plena transcorrência. O modo de vida dos quilom-bolas de Oriximiná está fundamentado hoje nas estruturas sociais que se construíram ao longo de sua ocupação na região. As relações de parentesco, as estruturas associativas que servem de cenário para sua luta formal por direitos à terra, infraestrutura e direitos formam o conjunto da cultura quilombola local, que com incremento de renda, não apre-senta tendências de mudança.

Porém, a causa da redução das práticas tradicionais já acontece, possivelmente impacta-da por externalidades como a ausência de rituais de transmissão, a presença dos grandes empreendimentos, ou ainda a demarcação de áreas de preservação ambiental.

Além disso:

• A segurança alimentar teria possivelmente um impacto positivo resultante do incremento de renda, sem prejuízos ao trabalho ou sua relação com as práticas da terra e do rio, que fazem parte da cultura do quilombola.

• A prática do extrativismo tende a não ser reduzida ou extinta em função do incremento de renda.

• Essas e outras atividades, como a pesca, a produção de farinha de mandioca, o trabalho no roçado comunitário, não tendem a ser alteradas por causa do programa.

Práticas culturais e tecnologia

As trocas entre comunidades ocorrem pelo menos mensalmente quando umas visitam as festas das outras, em um calendário mais ou menos combinado para que haja festa ao longo de todo o ano. Tal dinâmica também tende a permanecer a mesma com a chegada de um programa de transferência de renda.

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Tendências de impacto: estudo sobre os territórios quilombolas do Alto Trombetas

2. Estruturas sociais e redes de solidariedade

Está fortemente presente na cultura quilombola a preservação das relações familiares e a pro-teção aos habitantes de suas comunidades.

A vinda dos projetos desenvolvimentistas, a partir dos anos 60 e 70, trouxe para a região gran-des empreendimentos de exploração após a descoberta de uma grande reserva de minerais, em especial a bauxita. Grandes investimentos passaram a ser realizados na região, concretizados pelo estabelecimento da empresa Mineração Rio Norte (MRN) com o chamado “Projeto Trom-betas”. Essa movimentação mobilizou o associativismo entre os quilombolas.

FUNDAçãO DA ARqMO

A criação das associações quilombolas, em especial a ARQMO, em 1989, se deram parte em resposta à chegadas de grandes projetos de infraestrutura e exploração de bens naturais, mas também parte pela sua formalização na Constituição de 1988. Outra importante razão para a criação das associações é a delimitação das unidades de conservação ambiental Reserva Biológica do Rio Trombetas (REBio) e da Floresta Nacional de Saracá-Taquera (FLONA), criadas em 1979 e 1989 respectivamente, cujas áreas se cruzam, em parte, com os territórios quilombolas e cuja natureza jurídica permite apenas que habitem o local os quilombolas residentes anteriormente à sua demarcação e impede certos usos e extrações típicos do cotidiano daquelas populações. Ainda, pensando no formato estabelecido pelas associações comunitárias, é possível apontar a influência da igreja católica nos territórios, pois de acordo com os relatos e registros históricos, as Comunidades Eclesiais de Base (CEB), juntamente com as ações pastorais, participaram ativamente do processo de construção e consolidação do formato das associações comunitárias nesta região.

Territórios quilombolas de Oriximiná, situação atual e dimensão

Território Situação Dimensão (hectares)

Boa Vista Titulada em 1995 1125,0341

Água Fria Titulada em 1996 557,1355

Trombetas Titulada em 1997 80887,0941

Erepecuru Titulada em 2000 218044,2577

Alto Trombetas 1 RTID publicado em 02/2017 161719,4276

Alto trombetas 2 RTID publicado em 02/2017 189657,8147

Ariramba Titulado em 2018 12496,2941

Cachoeira Porteira Titulado em 2018 225000

Nota: AT1 e 2 - devido à sobreposição com a Flona, esses dois territórios devem firmar um Contrato de Concessão de Direito Real de Uso - CCDRUFonte: Territórios Sustentáveis, 2017, com atualização dos dados originais do ITERPA, 2019.

em média é de 3 anos fora da escola), sofrerá impactos positivos da renda familiar no que tange a qualidade de sua estadia fora de casa.

Como vimos, hoje esse jovem passa por dificuldades relativas à ausência de recursos para uma vida digna na cidade, que implicam tanto no trabalho precoce e precário, quanto na vulnerabilidade referente à moradia, violência e saúde. A transferência de renda pode trazer mais segurança neste aspecto.

Se a construção de escolas de Ensino Médio em Alto Trombetas acontecer como previsto, essa renda que seria destinada ao jovem na cidade passa a ficar no território, viabilizando gastos com outras necessidades e desejos. Isto também é um forte atrativo para o movi-mento de retorno de quilombolas que já deixaram o território e residem em Oriximiná e Santarém voltarem aos seus territórios de origem ou não necessariamente.

Os territórios que receberem maior recurso e já estiverem em processo de desenvolvi-mento de infraestrutura e acesso a serviços que aumentem a qualidade de vida dos resi-dentes tendem a receber mais quilombolas regressos.

Tal tendência migratória deve ser analisada com cautela. Muitas são as variáveis que pre-cisam acontecer para que isso se efetive, como dissemos:

1. ser um programa de transferência de renda desenhado para aceitar “parentes” que residam fora, ou seja, não ter que residir por determinado tempo mínimo no território,

2. ter aceitação desse retorno pela comunidade, ou seja, não serem denunciados como “aproveitadores”,

3. serem efetivamente construídas as escolas de Ensino Médio.

Tendências de impacto do Programa de Transferência de Renda

Síntese das tendências de impacto na Sustentabilidade Cultural

pode impactar o retorno de quilombolas que residem fora dos territórios

pode impactar o casamento entre quilombolas e não quilombolas

não impacta o estilo de vida, festas, danças, religiosidade, e outros componentes culturais

pode ampliar a inserção tecnológica com autonomia

pode ocasionar em diversificação das práticas consideradas lazer

melhora as condições do jovem que vai estudar na cidade

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Tendências de impacto: estudo sobre os territórios quilombolas do Alto Trombetas

O perfil das comunidades do Alto Trombetas, em especial Alto Trombetas 2, é narrado pelos entrevistados dos estudos da Comissão Pró-Índio como de comunidades muito politizadas, engajadas, resistentes, em constante luta. Foi nessa região que a ameaça de tomada de terras, expedições punitivas e confrontos mais ocorreram, e após a década de 1970, os enfrentamen-tos com as políticas ambientais e concessões de exploração mineral (FUNES, 2015) e onde o primeiro território quilombola foi titulado no Brasil (Boa Vista) como já mencionado.

Algumas dessas comunidades formaram-se a partir da migração de áreas que foram concedi-das à exploração de bauxita - como a comunidade de Juquiri Grande, que segundo relatos era uma comunidade quilombola (Erepecu) - e indenizadas pela empresa. Este sentimento de de propriedade sobre aquela terra pode ainda permanecer no discurso e no inconsciente coletivo destes territórios.

Que impactos são identificados com a presença dos projetos

de desenvolvimento de capacidades

e de gestão dos recursos??

Não por acaso foi necessário aprofundarmo-nos na caracterização do perfil de mobili-zação e luta do Alto Trombetas. Já atualmente, antes mesmo da criação do Fundo Qui-lombola e muito antes da ideia de um programa de transferência de renda, o quilombola de Alto Trombetas, especialmente de AT2, é considerado uma voz importante dentro da totalidade dos territórios de Oriximiná.

Influência dos programas de desenvolvimento de capacidades

A distância entre as comunidades e a sede da ARQMO é claramente um elemento limitador para a participação efetiva dos associados em suas atividades, seja pela questão do tempo de deslocamento, mas também pelo alto custo financeiro com o combustível do barco.

Além disso, segundo a visão de alguns entrevistados deste estudo, a capacitação em ges-tão também é um limitante para a colaboração dos membros em atividades como de planejamento, de gestão de recursos e dos processos de comunicação e transparência entre as lideranças, as associações e comunidades. As decisões com a implementação de um projeto ou ação nos territórios passam por consultas públicas.

Ao serem perguntados sobre as principais expectativas em relação às associações, em especial a ARQMO, os quilombolas mencionam demandas relativas à ausência de po-

Territórios em mudança

O território de Boa Vista foi o primeiro território quilombola a ser reconhecido no Brasil. Os territórios reconhecidos de Oriximiná representavam 51% do total de territórios quilombolas titulados no país (CPI, 2015). Além do pioneirismo do território Boa Vista, a região tem gran-de relevância na busca pelo reconhecimento de outros quilombos em todo o Brasil, sendo referência de articulação, movimentação política e advocacy. Esse processo também apoiou a construção do próprio arcabouço legal para esse tipo de processo, sendo que o Pará, em 1997, tornou-se o primeiro Estado a regularizar e titular um território quilombola (Terra Trombetas), sem necessidade de intervenção do Governo Federal (CPI, 2015).

Com esses processos de titulação, as terras não deveriam ser regulamentadas para seus indi-víduos, mas para o quilombo coletivamente. Se hoje isso é algo amplamente aceito, em 1989, havia ainda muita resistência do Incra e de outros moradores locais de origem não quilombola, para os quais haveria concessão de uso e não de posse com uma titulação coletiva, “já que as propriedades coletivas não podem ser vendidas, loteadas ou arrendadas, o que não ocorre com a regularização individual” (ANDRADE, 2015). Haveria de se institucionalizar uma cultura coletiva do quilombola.

LIDERANçA qUILOMBOLA

Cada comunidade tem suas características e autonomia de decisão relativas aos critérios de escolha de suas lideranças. Há um reconhecimento orgânico da comunidade sobre quem é seu líder e quem possui as características de uma liderança quilombola: as características de resistência para defesa dos direitos das comunidades. Em alguns o líder nato é escolhido pela escolaridade e maior capacidade de abrir diálogo com atores externos, em outros casos pelo poder econômico ou persuasivo, em outros ainda pelos bons exemplos e atuação comunitárias, muitas vezes até religiosa, ou a soma desses elementos.

• 74% das famílias entrevistadas pela pesquisa ECAM (2018) declaram fazer parte de alguma associação, sendo a mais citada a ARQMO.

• 91% dos entrevistados disseram conhecer o que a ARQMO representa, ou seja, que ela é a associação que representa os interesses de todas as comunidades da região junto a atores externos, como as empresas e o poder público. (ECAM, 2018)

• A distância entre as comunidades e a sede da ARQMO, em Oriximiná, é um limitante, segundo os entrevistados. (ECAM, 2018)

•Cada território possui sua própria associação e cada comunidade, seu coordenador ou representante, que tem como papel levar as demandas locais às lideranças quilombolas. (ECAM, 2018)

• Em Alto Trombetas, apenas 22% dos moradores dizem fazer parte da associação de sua comunidade (MRN, 2014)

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Tendências de impacto: estudo sobre os territórios quilombolas do Alto Trombetas

Territórios em mudança

“Com o Fundo isso vai mudar porque cada comunidade ela tem o seu Plano de Vida, ela tem as suas demandas levantadas e as suas prioridades. Então cada uma vai trabalhar em cima das suas prioridades e o Fundo vai contribuir para dar essa transparência na gestão desse recurso financeiro. Porque antes era executado tudo às tortas, não tinha começo, meio e fim, além de não conseguir prestar contas. (Claudinete Colé)

Planos de Vida – É um documento que busca auxiliar a comunidade no levantamento das demandas e necessidades de cada território quilombola, possibilitando assim o planejamento e organização das ações de acordo com cada realidade local, visando a melhoria de vida dos quilombolas para o futuro. Está estruturado a partir do estabelecimento de prioridades de curto, médio e longo prazo. (ver: Territórios Sustentáveis - Planos de gestão e instrumentos financeiros: um modelo de governança para o desenvolvimento, 2018).

Fundo Quilombola – Consiste em um instrumento financeiro construído e pactuado coletivamente entre associações de cada território quilombola, representando um dos pilares essenciais do modelo de desenvolvimento territorial baseado em gestão integrada e democrática. (ver: Instrumentos financeiros financeiros nas Comunidades Tradicionais Quilombolas da Calha Norte do Pará, 2019).

Os Planos de Vida são citados pelos entrevistados quilombolas como o instrumento condutor das demandas de cada comunidade. Nesse sentido, os investimentos deverão respeitar o que fora desenhado e pactuado no Plano. Atualmente os quilombolas de AT1 e AT2 estão experienciando o gerenciamento do Fundo juntamente com a FUNTEC - Fun-dação de Tecnologia Florestal e Geoprocessamento, escolhida como instituição gestora, a partir da execução do “projeto piloto” com um recurso voluntário proveniente da MRN.A autonomia é uma questão que surge nas entrevistas quando o assunto é recurso finan-ceiro. Para eles ter autonomia diz respeito ao aprendizado dos quilombolas para execu-tarem as ações. Por conta das experiências anteriores, há uma preocupação sobre ONGs externas ao território ou região executarem boas ações, no entanto quando se retiram dos territórios o trabalho deixa de acontecer. Nesse sentido, ressaltam nas entrevistas a importância da independência e reforçam também que o trabalho das ONGs deve com-plementar essa necessidade das capacitações técnicas.

líticas públicas locais, como a construção de postos de saúde, escolas, e a melhoria do saneamento básico (água potável) e redes de energia elétrica.

Fica evidente que tais organizações recebem as demandas das diferentes comunidades e dão vazão pelos caminhos que conhecem para a resolução de problemas, entre eles (ou entre os principais) solicitando diretamente à MRN. A urgência para a resolução do pro-blema também é levada em conta e nesse sentido, apresentar a demanda para a empresa pode ser mais eficiente que para a iniciativa pública.

Os moradores entrevistados relatam a dificuldade na articulação com entes públicos, como a Prefeitura de Oriximiná, o Governo do Estado do Pará ou mesmo o Ministério Público local.

As parcerias com instituições do terceiro setor acontecem muitas vezes com base em pau-tas específicas, como referentes às pressões externas (mineradoras, madeireiros, criação de unidades de conservação) ou referentes ao apoio às cadeias de valor ou extrativismo.

Organizações como o Imaflora, por exemplo, iniciaram atividades de valorização e fortaleci-mento de práticas do extrativismo de recursos florestais não madeireiros (castanha, copaí-ba) e de fortalecimento de ações de agricultura e beneficiamento de alimentos. Pelos relatos dos quilombolas, ações deste tipo apoiam na criação de autonomia para as comunidades.

As lideranças também reconhecem que a atuação conjunta com o Programa Territórios Susten-táveis no fortalecimento comunitário tem modificado a relação de dependência financeira com a MRN, assim como tem buscado sanar as dificuldades relativas à articulação com os demais entes.

Ações como a elaboração e aplicação do levantamento socioeconômico, aplicado pela ECAM em 2017, contou a formação e com a contratação de mão de obra local para todo o processo de pesquisa territorial. Além disso, os processos participativos para a criação dos Planos de Vida e do Fundo Quilombola são citados pelos entrevistados quilombolas como instrumentos que possibilitam uma maior autonomia financeira e de articulação entre as comunidades.

Mecanismos Financeiros, Fundo Quilombola e Plano de Vida

Hoje o Fundo Quilombola é compreendido por parte das lideranças como um grande avanço para a captação de recursos para a comunidade e capaz de proporcionar maior transparência, tanto para os comunitários, quanto para os financiadores. Anteriormente à criação desse mecanismo, todo recurso disponibilizado pela MRN era depositado para a ARQMO, que por sua vez executava os projetos nas comunidades. Essa dinâmica gerava conflitos de interesse.

Territórios em mudança

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Tendências de impacto: estudo sobre os territórios quilombolas do Alto Trombetas

Territórios em mudançaTendências de impacto do Programa de Transferência de Renda

Quais são as tendências nas estruturas

de sociabilidade dos territórios?

Associações e conflitos

Como vimos anteriormente, os quilombolas possuem uma forte cultura de apoio mú-tuo, seja dentro da comunidade ou entre comunidades, seja dentro de um território ou entre territórios.

Nesse sentido, o incremento de renda representa pouco risco à manutenção das estrutu-ras sociais e associativas, sendo, na verdade, um novo foco para o trabalho exercido em conjunto, especialmente na figura da ARQMO.

As novas demandas por apoio na criação de capacidades institucionais e papéis de ges-tão fortalecem as comunidades e dão sustentação para a manutenção do modo como os quilombolas se organizam.

Não há ausência de conflitos nas comunidades. A pressão pela tomada de decisão cole-tiva em contraponto aos interesses pessoais certamente originará novas disputas pelos cargos de liderança dessas organizações e até mesmo movimentos de oposição.

No entanto, tais conflitos podem não alterar a forma como as associações funcionam:

• por território,

• com lideranças em cada uma das comunidades,

• com votação para cargos de maior importância e

• com uma organização multi-coletiva na figura da ARQMO.

A disputa pela liderança dessas associações pode vir a se fortalecer. Hoje as comunidades já possuem, dentro delas e mesmo entre territórios, diferenças claras de renda.

A proximidade com a MRN, a empregabilidade por serviços, o extrativismo da biodiversi-dade pode incrementar a renda de algumas famílias mais que outras.

O possível acirramento das disputas por liderança das associações e, consequentemente, pelo poder de propor de maneira mais objetiva mudanças na forma como dinheiro é re-

Transformações do papel da mulher quilombola

Na análise do discurso das lideranças entrevistadas verificamos que não há uma clara diferenciação entre o papel do homem e da mulher nas atividades de trabalho, cotidiano e família nos territórios. A composição das famílias e o papel de “chefes de família” são variados, não havendo um padrão quilombola ou modelo de família pré-estabelecido. Foram citadas famílias compostas por homens e mulheres (casais), homem solteiro, mulher solteira, tios, avós, no entanto a noção de homoafetividade não foi apontada em nenhuma das falas.

Ao mesmo tempo, foi possível identificar um maior envolvimento institucional das mulheres na representatividade comunitária, como é o caso da Claudinete Colé que é a atual presidente da ARQMO. Nos territórios outras mulheres também passaram a assumir a liderança das associações nos últimos anos, ainda que os homens estejam representados em maior quantidade nesses espaços.

No Alto Trombetas 2, espaços de participação específicos para as mulheres estão surgindo, como no caso da Comissão de Mulheres liderada por Elielma de Jesus Pi-res. Esses espaços visam discutir problemas específicos das necessidades da mulher quilombola no território, como acesso à saúde (hoje há apenas médicos generalistas que visitam as comunidades), pré-natal, educação, entre outros.

A atuação de lideranças femininas jovens também são verificadas, como no caso da liderança da associação de Mãe Domingas. Nos espaços de tomada de decisão comu-nitária, as mulheres destacam-se, muitas vezes porque possuem a maior escolaridade entre os membros.

O fato de não haver creches nos territórios limita as possibilidades das mães de re-alizarem trabalhos remunerados. Outro problema em relação à isso é que com a au-sência de serviços públicos de educação o trabalho infantil tende a aparecer, já que as famílias levam seus filhos para o trabalho de roça, por exemplo.

É possível constatar que o protagonismo das mulheres está intimamente relacionado com a escolaridade, às necessidades e às demandas cotidianas.

Territórios em mudança

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Tendências de impacto: estudo sobre os territórios quilombolas do Alto Trombetas

Territórios em mudançaTendências de impacto do Programa de Transferência de Renda

Mulheres

Como vimos no item anterior, o papel das mulheres tem se fortalecido institucionalmente dentro das associações. Atualmente, de acordo com as entrevistas realizadas, na cultura quilombola homens e mulheres cuidam do roçado, pescam, fazem mutirões e são, con-siderados pelos entrevistados, “chefes de família”. O desenho dessa variável dentro do programa é um fator relevante para os impactos nas relações familiares.

Entendimento sobre modelo de programa de transferência de renda Não há interesse uniforme referente à um programa de transferência de renda nas comu-nidades. A importância da chegada de recursos coletivos é vista como prioritária em algu-mas comunidades, em outras ainda não há clareza das possibilidades de um programa de transferência de renda direta.

No entanto, há expectativas e especulações entre os atores externos às comunidades e entre as lideranças de territórios que possuem diálogo direto com a MRN quanto ao programa de transferência de renda. No estágio atual de construção do programa, as conversas sobre pos-síveis modelos de transferência de renda ainda estão restritas a um pequeno grupo de atores.

Atores externos

O impacto do programa de transferência de renda sobre a relação com atores externos, seja com a própria mineradora, seja com as ONGs locais, tende a não se modificar. Os conflitos mapeados neste estudo não possuem fundamento na questão de renda ou re-passes à comunidade e sim impactos no modo de vida, especialmente nas comunidades de Alto Trombetas 2, afetadas pela sobreposição de demarcação de terras, como veremos adiante. No que tange a relação com a MRN tende a manter-se como está.

Nesse sentido, o impacto do programa na relação com esses atores externos pode vir a ser positivo em dois aspectos:

1. a ampliação da renda pode ocasionar em aumento da escolaridade e da formação dos comunitários diminuindo a dependência de ONGs externas e da própria mineradora;

2. a possível construção, agora que o recurso financeiro não é um fator de preocupação no cotidiano, de novas entidades locais, o surgimento de ONGs ou representações locais com lideranças formadas na própria comunidade para defenderem suas causas junto à atores externos, gerando mais autonomia e capacidade de autodeterminação.

Tendências de impacto do Programa de Transferência de Renda

gulado e distribuído, tende a criar tensões políticas dentro da comunidade, especialmente entre territórios.

Isso porque a depender do modelo de distribuição dos recursos provenientes do progra-ma de transferência de renda (de forma igual entre os territórios ou de forma a privilegiar critérios de cada território), algumas comunidades devem ser beneficiadas com maior volume de recurso que outras.

O conflito entre territórios também provém da riqueza natural que alguns possuem, oca-sionando em migrações para coleta e pesca nos períodos de safra, por exemplo. Em situa-ção de maior circulação de renda, é possível que esse indicador se modifique.

O programa de transferência de renda pode não alterar a forma como os conflitos se dão, porém, o foco da discussão pode mudar:

• da disponibilidade de recursos naturais de cada território para a disponibilidade de recursos financeiros.

• da migração (entrada no território) para coleta e pesca, para a migração buscando serviços e infraestrutura.

Desigualdades

Apesar de já haver desigualdade no território em função da renda, mesmo com o acesso quase universal das famílias quilombolas ao Bolsa Família, um programa de transferência de renda condicionado aos territórios de mineração pode afetar ainda mais as relações so-ciais na medida em que pode contribuir para o aumento da desigualdade econômica entre famílias, comunidades e territórios. É possível que se crie uma espécie de território “eliti-zado”, ou seja, um território com mais infraestrutura física, serviços e poder de compra.

Ao contrário, a possibilidade de um programa de distribuição universal dos recursos, pode vir a ampliar e fortalecer as relações de igualdade entre as comunidades, refor-çando o componente comunitário dos quilombolas. Os comunitários entrevistados para essa pesquisa reforçaram seu desejo de que, na hipótese de construção de um programa de transferência de renda, a distribuição deveria ser realizada por famílias e não por indivíduos ou por associação. Isso demonstra que as relações familiares são consideradas as mais fortes redes de solidariedade das comunidades, ainda que entre elas existam conflitos já identificados.

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Tendências de impacto: estudo sobre os territórios quilombolas do Alto Trombetas

3. Relações de Dinâmica e Conservação Ambiental

A Calha Norte paraense é uma das regiões mais conservadas da Amazônia brasileira e também um dos maiores corredores de áreas protegidas de floresta tropical do mundo, com aproxima-damente 22 milhões de hectares (78% da Calha Norte), área maior que o tamanho dos Estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo juntos. com os corredores do Amapá e Central da Amazônia, forma o maior corredor de biodiversidade do mundo. E é pelo reconhecimento das áreas qui-lombolas que se mantém a alta diversidade de espécies que constitui elemento primário para a proteção da biodiversidade.

As Unidades de Conservação (UC) foram estabelecidas visando à proteção e conservação des-ses espaços territoriais e seus recursos ambientais que tenham características naturais relevan-tes. As UC dividem-se em dois grupos:

1. Unidades de Uso Sustentável, áreas que conciliam a conservação da natureza com o uso sustentável dos recursos naturais conforme diretrizes de seu plano de manejo;

2. Áreas de Proteção Integral, cujo principal objetivo é a proteção da natureza, por isso as regras e normas são mais restritivas. Nesse grupo, é permitido apenas o uso indireto dos recursos naturais; ou seja, aquele que não envolve consumo, coleta ou danos aos recursos naturais.

O território de Oriximiná é formado por grandes extensões que abrangem áreas de proteção ambiental dos dois grupos e muitas delas demarcadas em áreas de territórios titulados Quilombolas (TQ), Terras Indíge-nas (TI) e Assentamentos sendo:

• Florestas Estaduais

• Floresta Nacional

• Reserva Biológica

Nos territórios de Alto Trombetas 1 e 2, encontram-se duas Unidades de Conservação Federais, a Floresta Nacional Saracá-Taquera, a Reserva Biológica do Rio Trombetas.

A Floresta Nacional de Saracá-Taquera, criada em 1989, é uma unidade de conservação de uso direto, com área de 429.600 hectares e um grande potencial de recursos naturais renováveis (madeira e outros produtos não madeireiros), além de outros não renováveis (bauxita) e de importância ecológica significativa.

Síntese das tendências de impacto nas Estruturas Sociais e Redes de Solidariedade

não impacta a forma como se organizam (associações)

não impacta a forma como escolhem lideranças

pode impactar as relações familiares (conflitos por administração da renda)

pode impactar as relações entre comunidades/ territórios (aumento da desigualdade entre territórios/comunidades)

pode ampliar a tensão política nos territórios (disputas pela liderança das associações)

não impacta a relação com a MRN

não impacta a relação com as ONGs locais e externas

pode originar novas organizações, como ONGs locais

pode ampliar a capacitação e a vontade de aprender

pode ampliar o protagonismo jovem e feminino

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Tendências de impacto: estudo sobre os territórios quilombolas do Alto Trombetas

Historicamente, a floresta faz parte da dinâmica de vida do quilombola da região, pois é sua morada e também seu meio de vida. Essa relação ancestral é de respeito e, de certa forma, (co)dependência e sobrevivência. Os projetos extrativistas que acontecem nos territórios pelos quilombolas ou através das parcerias, partem da premissa que as comunidades tradicionais são “guardiões

da floresta”. Durante as entrevistas, por diversas vezes as falas dos quilombolas demonstraram que muitos deles têm plena consciência deste “papel”:

“Os quilombolas são o povo maior conservador da Amazônia, porque o quilombola é até rotulado como preguiçoso, mas na verdade ele não é preguiçoso. Ele sempre quis ter o básico, e com isso ele consegue conservar o local, a floresta. A gente tem aí 500 anos de história e hoje a gente tem florestas aqui no nosso município” (Manoel Siqueira).

“Da nossa parte enquanto quilombolas [a relação com a floresta] é boa, porque dizem que quilombola é devastador, mas não é verdade. Os nossos territórios, eles ainda estão 90% preservados” (Claudinete Colé).

É também notável a visão sistêmica e de sustentabilidade que muitos membros das comunida-des têm, ao expressarem atenção em relação às consequências de decisões ou atos praticados hoje, preocupação com a conservação da floresta e dos recursos naturais dos territórios, tendo em vista o bem-estar e a sobrevivência das futuras gerações. Não há entendimento claro para as comunidades quilombolas que o bem natural comum (rio, floresta, etc) não lhe pertencem e que são bens públicos, preservados por legislações específicas.

Essa dificuldade de compreensão se apresenta também em função da lógica de concessões governamentais. Como compreender que uma comunidade residente não poderá realizar extrativismo ou não poderá transportar seus resíduos pelas águas do rio (de barco), sendo que bem ao lado existem atores externos realizando o transporte de material com maior potencial de contaminação?

A ausência de flexibilidade da lei para a questão da proporcionalidade do impacto ambiental gerado por uns e outros, no que tange a necessidade de estudos específicos, impede muitas ve-zes que as práticas quilombolas do extrativismo, da pesca, da caça, ou seja, práticas identitárias herdadas das ocupações do século XIX (práticas estas que lhes rendiam inclusive boa posição

COMO FUNCIONAM OS PLANOS DE MANEjO

Cada Unidade de Conservação possui um Plano de Manejo próprio, elaborado a partir de diversos estudos, incluindo diagnósticos do meio físico, biológico e social. Ele estabelece as normas, restrições para o uso, ações a serem desenvolvidas e manejo dos recursos naturais da UC, configurando um instrumento de gestão e diretrizes para sua tutela.

As comunidades tradicionais ribeirinhas e quilombolas, estabelecidas anteriormente à criação da Floresta Nacional, sofreram os impactos decorrentes de sua implantação e, consequente-mente, também produziram e produzem impactos sobre a Unidade de Conservação, através do inter-relacionamento com a realidade da floresta.

“Nas Florestas Nacionais é admitida a permanência de populações tradicionais, que a habitam quando de sua criação, em conformidade com o disposto em regulamento e no Plano de Manejo da unidade.” (Sistema Nacional de Unidades de Conservação - SNUC)

Por essa ótica, em se considerando que as comunidades ribeirinhas e dentre elas, as comuni-dades quilombolas, foram estabelecidas em data anterior à criação da Flona, é aceitável sua permanência, porém necessária a compatibilização de suas atividades com os programas de manejo previstos para Floresta Nacional.

A Reserva Biológica do Rio Trombetas é uma Unidade de Conservação de Proteção Integral, criada em 1979, com uma área estimada de 385 mil hectares, localizada no município de Orixi-miná, na margem esquerda do rio Trombetas, abrangendo parte do território de AT2.

A partir da criação da Flona Saracá-Taquera e Rebio do Rio Trombetas e de seus respectivos pla-nos de manejo, as comunidades situadas dentro dos limites dessas unidades de conservação depararam-se com uma nova realidade ao serem impedidas de manter alguns hábitos de vida ancestrais e de ter autonomia sobre decisões em seus próprios territórios.

Características de alguns tipos de UC*

Tipo de UC Descrição

Florestas Nacionais (Flona)

Áreas com cobertura florestal de espécies principalmente nativas com a finalidade de uso múltiplo sustentável dos recursos florestais, assim como são áreas destinadas para a pesquisa científica com vistas ao desenvolvimento de métodos para exploração sustentável desta floresta nativa. A visitação pública é permitida, bem como a permanência de populações tradicionais que a habitam quando de sua criação, em conformidade com o regulamento e o Plano de Manejo desta unidade.

Reservas Biológicas (Rebio)

Pertencem ao grupo de unidades de conservação de proteção integral e são destinados à preservação integral da biota e demais atributos naturais existentes em seus limites, sem interferência humana direta ou modificações ambientais, excetuando-se as medidas de recuperação de seus ecossistemas alterados e as ações de manejo necessárias para recuperar e preservar o equilíbrio natural, a diversidade biológica e os processos ecológicos naturais, conforme determinado em seu plano de manejo. Trata-se de uma categoria de manejo voltada unicamente à conservação da biota, pesquisa e à educação ambiental, excluída a visitação para lazer.

* Segundo o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC - Lei 9.985/00)

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Tendências de impacto: estudo sobre os territórios quilombolas do Alto Trombetas

Tendências de impacto do Programa de Transferência de Renda

Levando-se em conta que um programa de transferência de renda só

poderá ser viabilizado para as comunidades quilombolas tituladas,

qual a interferência na relação com os órgão ambientais?

Relacionamento com órgãos ambientais

O programa de transferência de renda só poderá ser viabilizado para as comunidades quilombolas a partir do momento que elas forem consideradas “donas da terra” ou pos-suírem a concessão de uso, isto é, tiverem definida a situação fundiária pelas titulações ou CDRU. Portanto, pode haver interferência na relação com os órgão ambientais conforme os acordos e pactos que serão firmados entre as partes no que diz respeito às responsabi-lidades, direitos e deveres de cada um em relação ao território. O fato de os quilombolas terem um incremento em sua renda em si, não afeta as relações com o órgão, porém ela é condição para que recebam esse recurso.

Atividades de extração de recursos naturais

Sobre as atividades de extração de recursos não madeireiros, de acordo com os relatos co-letados nas entrevistas e análises ao longo deste estudo, estas práticas se mostram como algo forte e consolidado na dinâmica das comunidades, em especial a extração da cas-tanha. Esta relação fica ainda mais forte em famílias que, a partir dessa renda viabilizam oportunidades como o estudo para seus entes mais jovens. A consciência da origem de seu sustento fortalece uma postura de valorização da atividade de onde provém este sus-tento. Desta forma, o vínculo familiar se fortalece e há tendência de que o jovem que teve a possibilidade de estudar viabilizada pela renda proveniente do castanhal, se especialize e volte ao território para trabalhar na atividade extrativista, com o intuito de proporcionar melhorias e desenvolvimento na produção em si.

O fato de haver incremento de renda às famílias não significa necessariamente que ha-verá redução no número de famílias que realizam atividades extrativistas. Isto dependerá muito mais do perfil da família e seu vínculo ancestral com aquela atividade do que com o aumento de renda em si.

Ainda com relação às práticas extrativistas, outro aspecto levantado que poderia ser im- pactado caso houvesse uma redução significativa das atividades de produção por conta do incremento de renda da população é a dinâmica florestal, o equilíbrio ambiental. No entanto, pela procura e intenso fluxo que esta atividade apresenta na região, tanto pelas famílias que coletam por tradição como por pessoas que vêm de outras regiões na época

comercial nos mercados locais, com a venda de castanha e tabaco), sigam ocorrendo de forma permanente nos castanhais e no rio.

Desde a época da criação das Unidades de Conservação,

que abrangem os territórios quilombolas de AT1 e AT2,

há algum tipo de conflito ou divergência entre

as comunidades e os órgãos ambientais?

Conflitos pela sobreposição de demarcações de terras

Pela análise de dados e relatos de entrevistas, restringir hábitos ancestrais e limitar as formas de uso de terra e recursos pelas comunidades estabelecidas há anos nos teritó-rios é um desafio.

No entanto, mesmo entremeada de conflitos e posições antagônicas, em especial nos pon-tos em que as atividades dos quilombolas passam a ser vistas como crimes ambientais, há um ponto de convergência entre estes dois atores: garantir a conservação das áreas.

Neste sentido, é uma relação de mão dupla. Comunidades cuidam, zelam pelos territórios, dentro das possibilidades permitidas hoje pelos Planos de Manejo e o ICMBio tutela, fisca-liza o território, protegendo com mecanismos legais.

Pelos relatos coletados, existe a consciência de que se não fosse essa relação, junto aos acordos e procedimentos estabelecidos, é factível que os territórios teriam cedido a pres-sões externas (madeireiros e mineração), como ocorre em áreas ao redor das UC. Assim, nota-se nas associações o interesse claro e evidente em fazer e manter acordos levando em consideração a opinião dos órgãos competentes.

Atualmente, com a futura legalização fundiária dos territórios quilombolas (pela titulação ou Concessão de Direito Real de Uso - CDRU) e possível recebimento de royalties pelas comunidades, iniciou-se um processo de diálogo mais próximo entre ICMBio e comu-nidades a fim de revisar as diretrizes sobre o uso da terra estabelecidas nos Planos de Manejo, em especial da Flona Saracá-Taquera.

Na opinião de entrevistados, a titulação é legítima e necessária, mas é preciso pensar no depois. A partir do momento que não se tem mais a tutela de um órgão ambiental para fiscalizar e fazer a gestão ambiental da área, é preciso orientação e diálogo para que façam isso de uma forma responsável, da melhor forma. Nota-se que o desejo das lideranças quilombolas é que essa relação se mantenha com diálogo aberto.

Territórios em mudança

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Tendências de impacto: estudo sobre os territórios quilombolas do Alto Trombetas

4. Sustentabilidade econômica

A análise de sustentabilidade econômica dos territórios quilombolas passa pelo entendimen-to dessa população em termos de ocupação, desocupação, atividades econômicas e perfil de renda, tanto quanto o enquadramento dentro de programas de transferência de renda governa-mentais. Também, por suas relações comparativas com o município e também entre os dife-rentes territórios - uma vez que passam por realidades distintas em termos de oportunidades de trabalho e perfil de renda, apesar de manterem a estrutura social e a ancestralidade cultural comuns, como vimos anteriormente.

Segundo alguns estudos, o quilombola considera o dinheiro como um complemento, ainda que necessário à subsistência, pois “a terra e o alimento, o quilombola tem” (ECAM, 2018). Toda a renda do quilombola é para compra de produtos industrializados, como vestuário, açú-car, diesel, e é gerada conforme necessidade de compra. Ou seja, quando é preciso comprar, o quilombola procura ampliar sua geração de renda.

O município de Oriximiná em números:

72.160 pessoas População estimada 107.603,661 m2 Área territorial

0,67 hab/km2 Densidade demográfica aprox. Fonte: IBGE, 2018

Tais números evidenciam uma importante inversão de perfil do município, cuja população re-sidente nos centros urbanos cresce, conforme as médias e a tendência nacional (IBGE, 2018). Essa caracterização nos aponta caminhos de análise da sustentabilidade econômica das comu-nidades que residem nos territórios quilombolas, especialmente no que tange a visão sobre o percentual dessa população que encontra-se economicamente ativa.

Hoje as famílias quilombolas agrupam-se entre 3 e 6 indivíduos, sendo 2 economicamente ati-vos, seja agregando renda a partir do trabalho, seja a partir do perfil e da inclusão em políticas de assistência social. Ainda não há um levantamento da população ativa entre todas as comu-nidades quilombolas, mas considerando a média municipal de 63% de ocupação acima dos 18 anos, é possível dizer que há uma grande taxa de desocupação, pois a tendência é o indicador municipal absorver as diferenças entre urbano e rural.

52% da população vive em centros urbanos 48% da população vive na área rural

8 territórios quilombolasna área rural

Tendências de impacto do Programa de Transferência de Renda

da safra e, ao serem cadastradas pelo ICMBio podem realizar a coleta dos frutos, esta pos-si- bilidade não se configura como uma ameaça. Em outras palavras, caso o quilombola não realize a atividade, há outros atores externos com interesse em realizá-las.

Aliás, segundo entrevistados, para o equilíbrio ambiental a presença de atividade extrati- vista planejada é positiva para a dinâmica florestal. Estudos mostram que o fato de coletar a castanha tem contribuído para a dispersão dos frutos e aumento do número de indiví- duos (castanheiras). O mesmo vale para copaíba e outros recursos. Ou seja, o extrativis- mo planejado e realizado de maneira sustentável é um forte aliado para a conservação e manutenção das florestas.

Síntese das tendências de impacto sobre Relações de Dinâmica e Conservação Ambiental

não impactam a relação com órgãos ambientais com o incremento de renda

não impactam a relação das comunidades com atividades extrativistas

não impactam a dinâmica florestal

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Tendências de impacto: estudo sobre os territórios quilombolas do Alto Trombetas

Origem da renda das famílias quilombolas em Oriximiná, 2018

Fonte: ECAM, 2018

Especificidades de Alto Trombetas

O Alto Trombetas possui cerca de 701 famílias, segundo dados de 2014. Considerando os indi-cadores dos últimos 10 anos, os territórios sofreram maior explosão demográfica entre 2009 e 2011, mas pouca alteração entre 2011 e 2014.

Evolução do número de famílias em Alto Trombetas

2009 657

2011 753

2014 701

Evolução do número da população em Alto Trombetas

Fonte: MRN, 2014.

2009 2987

2011 3296

2014 3297

60 % Agricultura 22% Programas Sociais

17% Aposentado e pensionista

12% Funcionário público municipal

10% Diarista

9% Trabalho formal/carteira assinada

8% Extrativismo

7% Cooperativas

6% Pesca 6% Autônomos 1% Artesanato 1% Pecuária 1% Turismo 1% Outros

Com o Índice de Gini, instrumento usado para medir o grau de concentração de renda que aponta a diferença entre os rendimentos dos mais pobres e dos mais ricos, foi possível ob-servar maior concentração de renda nas últimas duas décadas, que passou de 0,59 em 1991, seguido por 0,61 em 2000 e 0,64 em 2010.

RENDA MéDIA FAMILIAR EM ORIxIMINá

A renda média per capita do cidadão teve um crescimento de 53,02% entre os anos de 1991 a 2010, passando de R$ 217,15, em 1991, para R$ 264,69, em 2000, e para R$ 332,29, em 2010, indicando que mesmo com o crescimento a renda média do cidadão configura abaixo do salário mínimo.

A proporção de pessoas pobres, ou seja, com renda domiciliar per capita inferior a R$ 140,00 (a preços de agosto de 2010), passou de 58,93%, em 1991, para 52,00%, em 2000, e para 46,08%, em 2010, indicador ainda muito representativo.

qUEM CONSTA NO CadÚnico EM ORIxIMINá

12.274 famílias foram cadastradas no Cadastro Único no município de Oriximiná, dentre as quais:

• 7.754 com renda per capita familiar de até R$ 85,00;• 1.633 com renda per capita familiar entre R$ 85,01 e R$ 170,00;• 1.446 com renda per capita familiar entre R$ 170,01 e meio salário mínimo;• 1.441 com renda per capita acima de meio salário mínimo.

Fonte: Ministério do Desenvolvimento Social, 2018

Segundo dados da ECAM (2018), 88% dos quilombolas do Baixo Amazonas possuem uma renda média de até 1 salário mínimo, atualizado para R$ 998,00 em 2019. O gasto mensal das famílias, segundo a pesquisa, gira entre 200 e 900 reais por mês, dando a concluir que os gastos são equivalentes aos ganhos, seja por que não há mais dinheiro, mas ainda há necessidades, seja porque as necessidades são supridas com o que se ganha.

A origem da renda do quilombola vem prioritariamente da agricultura e dos programas de transferência de renda. 59% das famílias quilombolas em Oriximiná são beneficiárias do Bolsa Família. No município de Oriximiná esse dado representa cerca de 45,7% da po-pulação total, ou seja, 8.498 famílias, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS). Isso nos mostra que a população quilombola encontra-se entre os mais pobres do município. A necessidade das cestas básicas do programa Cesta Fome Zero, ainda é representativa para quase 5% das famílias quilombolas de Oriximiná, segundo dados da ECAM (2018).

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Tendências de impacto: estudo sobre os territórios quilombolas do Alto Trombetas

Redução das práticas extrativistas e agro-pastoris em Alto Trombetas

Na pesquisa realizada em 2014 pela MRN, apenas 31% da população ainda realizava ati-vidade extrativista na região, o que é um indicador muito importante da redução dessa prática em relação ao passado. A pesca, no entanto, ainda é muito representativa, sendo que 84% da população realizava algum tipo de atividade pesqueira, prioritariamente no verão e dos quais 95% com objetivo de consumo familiar.

Como vimos no capítulo anterior, a deliberação sobre os Planos de Manejo é um fator de extrema importância para a redução das práticas culturais na região do Alto Trombetas, entre elas o extrativismo. Isto somado à expansão da mineração, resultam na substituição das formas de incremento à renda do quilombola.

A análise de tendências de impacto sobre os programas de transferência de renda no que tange a dinâmica e a relação ambiental, apontou claramente que tal incremento de renda não resulta necessariamente em redução do extrativismo como um todo. No entanto, do ponto de vista exclusivo da prática quilombola e sua sustentabilidade econômica, já identi-ficamos impacto em Alto Trombetas, independentemente da realização de tais programas.

Implementação de programas de geração de renda no território

As restrições à algumas atividades tradicionais dos quilombolas impostas aos territórios pela criação das unidades de conservação contribuíram, ao longo dos anos, com esse quadro de redução das práticas de extrativismo e agropastoris. No entanto, ao iniciarem o processo de garantia de suas terras pela titulação ou obtenção do CDRU, as comunidades que estavam alocadas no entorno ou dentro das Unidades de Conservação se viram dian-te de um novo cenário, novamente de mudança de regras, que gerou preocupação sobre como as futuras gerações dentro dos territórios poderiam se manter.

A partir de momentos de escuta junto às comunidades, com o intuito de levantar deman-das e necessidades dos quilombolas, organizações como o Imaflora realizaram diagnósti-cos e identificaram uma oportunidade de atuação: trabalhar o fortalecimento das cadeias produtivas e atividades de geração de renda.

Com a definição da agenda de fortalecimento das cadeias produtivas e geração de renda, iniciaram atividades voltadas à valorização e fortalecimento de práticas do extrativismo e fortalecimento de ações da agricultura.

Os quilombolas já tinham a produção para sua subsistência, então pensaram em como melhorar o acesso deles à alimentação derivada da agricultura familiar nas escolas, atra-

Territórios em mudança

Os indicadores de gênero apontam para um contingente maior de população masculina, em quase todas as faixas etárias. A população economicamente ativa de Alto Trombetas configura com cerca de 48% dos indivíduos, um índice bem abaixo da média municipal. As crianças representam hoje o maior contingente populacional da região, evidenciando uma taxa de fecun-didade crescente ou seja, um dado que representará uma tendência de aumento da população economicamente ativa nos próximos anos.

No Alto Trombetas, mas também em toda a região do Baixo Amazonas, a principal origem da renda ainda é o extrativismo e as atividades de roçado, com destaque para o plantio, beneficiamento e venda da mandioca. Mais de 76% dos estabelecimentos rurais tem como finalidade a agricultura.

GêNERO E FAIxA ETáRIA DA POPULAçãO NO ALTO TROMBETAS (MRN, 2014)

• Mulheres - 48,37%• Homens - 51,63%• 21% da população está na faixa etária de 7 a 14 anos.• 17% da população tem entre 25 e 35 anos.• 14% da população menos de 5 anos.

Quais mudanças relacionadas aos aspectos econômicos é possível

verificar nos territórios ao longo dos últimos anos?

O cenário de mudanças que vem ocorrendo nos territórios de Alto Trombetas passa por dois fatores prioritários:

1. a questão da redução das práticas tradicionais de plantio e extrativismo, em decorrência da criação de áreas de unidades de conservação sobrepostas aos territórios quilombolas;

2. à substituição do trabalho no roçado e na floresta pela prestação de serviços à MRN.

Territórios em mudança

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Tendências de impacto: estudo sobre os territórios quilombolas do Alto Trombetas

Tendências de impacto do Programa de Transferência de Renda

Acesso ao consumo

Esse desejo de subsistência ganhou novas necessidades tecnológicas, como acesso à energia elétrica para uso de geladeiras, iluminação das casas, uso de internet, telefone, além de aquisição de bens que facilitem o dia a dia, reduzindo o trabalho pesado da pesca e do roçado, da colheita, e dos mutirões comunitários. Segundo entrevistados quilombo-las, é na época da safra que as famílias adquirem o que lhe é necessário para viver, sem o hábito de acumular ou poupar recursos.

Oportunidade de incremento de renda

A oportunidade de incremento de renda através de um programa, pode vir a alterar a rea-lidade, pois não apenas no período da safra o quilombola poderia adquirir seus bens, mas ao longo do ano todo, trazendo certa segurança financeira às famílias e tirando o compo-nente de externalidades (uma safra boa ou ruim) de sua segurança familiar e alimentar.

O hábito de poupar não existe entre as comunidades do Baixo Amazonas, segundo os entrevistados deste estudo, e não é algo atrelado à sua cultura. Isso, sob o ponto de vista de tendências de impacto, nos apresenta duas leituras possíveis com a implementação de um programa de transferência de renda:

1. A partir da chegada de mais recursos às famílias, o quilombola passa a adquirir o hábito de acumular (especialmente para aquisição de bens maiores, como terras, casas ou mesmo para financiar estudos de seus filhos).

2. O quilombola passa a consumir mais bens duráveis e não duráveis em função de receber mais. A perspectiva de análise deste cenário tem como base que a fundamentação cultural dessas comunidades se deu em um contexto de escassez e fuga, de luta pela sobrevivências, aspectos estes que criam hábitos ligados aos ciclos de escassez econômica.

Com a segurança alimentar garantida, as famílias podem olhar para outros temas como educação, saúde, novas oportunidades emprego e renda e formação. Também podem investir em novas cadeias produtivas, pequenos negócios de comércio e serviços.

Diversificação do emprego e renda

Como apontam alguns entrevistados, as comunidades que vivem em áreas de proteção ambiental já possuem uma cultura de busca pela subsistência em outras fontes. Muitas

vés de programas institucionais e uma possível comercialização dos excedentes. Nesse entremeio, surgiu a necessidade de especializar algumas das atividades, como para de-senvolver as atividades agrícolas e implementar um cardápio de fato tradicional quilom-bola nas escolas, por exemplo.

Conseguiram captar recursos para a construção de quatro mini agroindústrias (Unidades de Beneficiamento de Alimentos), visando atender os padrões da vigilância sanitária para comercialização dessa produção beneficiada. Como apontam alguns entrevistados, essas indústrias já possuem contratos de comercialização com a Prefeitura de Oriximiná através do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). A pauta inicial, neste caso, era a melhora da alimentação, porém a questão da geração de renda sempre esteve como pano de fundo das atividades e acabou proporcionando uma fonte de renda alternativa.

Para conseguir de fato fortalecer, valorizar e consolidar a agenda levantada a partir das demandas das comunidades, paralelamente às atividades de fortalecimento das cadeias produtivas e geração de renda, ações indiretas para a organização social, autonomia das comunidades e melhoria da gestão dos grupos extrativistas e das associações permearam o trabalho, contribuindo assim para o desenvolvimento das práticas de extrativismo e consequente incremento de renda para algumas famílias.

Territórios em mudança

Tendências de impacto do Programa de Transferência de Renda

Qual o impacto no perfil da renda entre os quilombolas de Oriximiná

com a transferência de renda?

A população quilombola de Alto Trombetas tem baixo acesso a renda, mas com uma per-cepção de renda diferenciada. A renda para o quilombola é complementar à subsistência, pois grande parte de suas necessidades são supridas com as roças, as trocas de serviços na comunidade e o apoio de programas governamentais, segundo alguns estudos. O que a criação de um programa de transferência de renda a partir dos royalties destinados por meio do Fundo Quilombola agregaria seria em grande parte a ampliação da capacidade de compra do quilombola, em todos os sentidos, como veremos abaixo.

No entanto, quando tratamos de sustentabilidade econômica é possível dizer que o programa traria maior qualidade de vida às comunidades beneficiadas, qualidade esta que está entre as expectativas capturadas por meio das entrevistas realizadas neste estudo, como ter o suficiente à subsistência. Hoje com uma renda média próxima a meio salário mínimo, não se pode garantir a segurança econômica, a segurança alimentar e qualidade de vida que as comunidades almejam.

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Tendências de impacto: estudo sobre os territórios quilombolas do Alto Trombetas

Tendências de impacto do Programa de Transferência de Renda

O incremento de renda, se muito superior ao valor do salário mínimo, pode mudar o pa-tamar das famílias para outros programas. Do ponto de vista do beneficiado, trata-se de trocar um benefício menor por outro maior, porém é importante lembrar que o programa de transferência de renda que se desenhará a partir dos recursos provenientes de royalties é um recurso disponível apenas durante o período da exploração mineral, que pode cessar por inúmeras razões (esgotamento da jazida, estratégia da empresa, queda do valor do minério, venda da empresa, entre outros).

Síntese das tendências de impacto em Sustentabilidade Econômica

pode impactar oferta de serviços nas comunidades

pode impactar o aumento de consumo de bens e serviços nas comunidades

pode impactar o nascimento de novas cooperativas e cadeias produtivas (ex. artesanato, associações ou cooperativas de mulheres, pesca, casas de farinha)

pode ocasionar uma diversificação das fontes de emprego e renda

pode impactar a contratação de mão de obra local

pode impactar o recebimento de outros benefícios/ programas

Territórios em mudançaTendências de impacto do Programa de Transferência de Renda

vezes, prestando serviços à mineradora MRN ou trabalhando em Oriximiná, residindo na cidade durante a semana e retornando à comunidade aos finais de semana.

Tais práticas poderão ser impactadas na medida em que mais recursos circulem dentro da própria comunidade. Portanto, pode ocorrer um movimento empreendedor nos terri-tórios: a criação de pequenos negócios de comércio e serviços, como cabeleireiros, pada-rias, cuidadoras de crianças, serviços de consertos (de barcos ou outros), vendinhas, etc. Ou seja, há uma tendência para a diversificação das fontes de emprego e renda.

Da mesma forma, novas cadeias produtivas podem nascer dedicadas ao beneficiamento de produtos que hoje são vendidos in-natura, como as castanhas, artesanato, pesca. O formato associativista já é uma prática da cultura quilombola e já há o início da comercia-lização através de mini-indústrias de alimentos para a merenda escolar, não sendo difícil a criação de novas cooperativas com outros focos.

Contratação de mão de obra local

As relações de trabalho comunitário também podem sofrer impactos de um possível in-cremento de renda. Serviços que hoje são prestados entre os “parentes” como favores, podem passar a ser remunerados a depender da disponibilidade de recursos das famí-lias e do serviço em questão. Apoio no cuidado de crianças para que as mães possam trabalhar, serviços domésticos, contratação de assistentes para o trabalho nas roças, ou mesmo para aumentar a capacidade de coleta na safra, podem passar a ocorrer, gerando novas relações de empregado e empregador dentro da própria comunidade.

Esse fenômeno deverá ser observado entre territórios no caso do desenho de um programa que não seja de distribuição universal dos recursos: o impacto poderá ser percebido na contratação de mão de obra local de outras comunidades, ampliação da oferta de empregos dentro dos territórios mais beneficiados como Alto Trombetas 2 e Boa Vista. Dinâmicas como essas já são verificadas hoje em função da oferta de trabalhos ligados à MRN, bem como a oferta de serviços nessas áreas devido à proximidade com o negócio.

Bolsa Família e outros programas públicos

Por último, a depender do valor do benefício que será distribuído às famílias, os quilom-bolas poderão deixar a faixa de renda que permite o acesso a outros programas públicos, como o Bolsa Família. Ao serem entrevistados sobre a importância do Bolsa Família na renda do quilombola, fica claro que não querem deixar de receber o benefício, que hoje está presente na maioria das famílias, e isso não é claro a todos os comunitários.

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Tendências de impacto: estudo sobre os territórios quilombolas do Alto Trombetas

A infraestrutura comunitária

A comunidade de Boa Vista é uma das mais providas em termos de infraestrutura. E, no en-tanto, alguns entrevistados citam a falta de uso da infraestrutura coletiva. Isso nos aponta um componente importante para o estudo de tendências de impacto, pois tanto representa uma substituição dos gostos e hábitos do quilombola, antes ligados às atividades coletivas, como a cozinha comunitária, quanto apresenta um componente de privatização do lazer, seja pela inserção tecnológica, seja pelo aumento de consumo de bens privados.

Quais são as mudanças percebidas referentes aos usos coletivos e

privados dos recursos disponíveis nas comunidades?

Diminuição da lógica coletiva no consumo de bens

É importante pontuar que a lógica coletiva do quilombo tem sido modificada pela ló-gica individual e privada da nossa sociedade. Enquanto antes os bens e infraestruturas funcionavam de maneira coletiva, hoje esses mesmos bens e estruturas estão sendo pri-vatizados. As compras coletivas, ou pedidos coletivos, consolidados pelas associações, têm sido cada vez mais substituídos por compras em escala para distribuição entre os indivíduos, como o caso de barcos para deslocamento e geradores de energia, de acordo com os entrevistados neste estudo.

Um exemplo simbólico são as casas de farinha, cujo trabalho tradicionalmente é feito de maneira coletiva a partir do plantio da mandioca. Os territórios quilombolas de Oriximiná ainda possuem algumas casas de farinha, hoje pertencentes a membros das comunida-des, porém algumas ainda são cedidas para uso comum. Apesar dessas casas serem hoje privadas, a percepção dos quilombolas sobre as mesmas ainda tem algum resquício de sua origem coletiva, em uns territórios mais que em outros, como em Cachoeira Porteira.

Equipamentos de usos coletivos e privados

•Para 54,79% das famílias de Alto Trombetas, não há nenhum equipamento que consideram de infraestrutura comunitária, ou seja, as famílias utilizam principalmente equipamentos próprios no processo de cultivo e na transformação da colheita em produtos com maior valor agregado.

Territórios em mudança

5. Produção de novas paisagens, gostos e hábitos

A dinâmica da vida cotidiana acaba por construir paisagens, gostos e hábitos que fazem parte da cultura das comunidades. Este estudo de tendências de impacto tomou como premissa a separação deste item da dimensão de Sustentabilidade Sociocultural e da Sustentabilidade Econômica, por entender que se trata de um eixo de análise próprio, com peculiaridades tanto econômicas, quanto sociais e culturais, cujos impactos passam não apenas pela vida do qui-lombola, mas também por impactos ambientais importantes.

Domicílios

O primeiro ponto a ser caracterizado é como se constitui a paisagem local. Os domicí-lios em terras quilombolas possuem características semelhantes, variando um pequeno percentual em função da renda da família e pela proximidade do território à MRN. A estrutura quase sempre é de madeira (paredes e piso) ou algumas de alvenaria, especial-mente em Boa Vista.

Um dos indicadores mais significativos em relação à construção das casas quilombolas nesses territórios é a ausência de banheiro interno. Enquanto no total dos domicílios qui-lombolas do Baixo Amazonas o indicador fica abaixo dos 90%, em Alto Trombetas chega a 93% o número de residências cujo sanitário é fora da casa, quase sempre sem cabana ou cobertura cobertura. (ECAM, 2018)

POR DENTRO DAS CASAS

• 82% das casas possuem fogão a gás. • 67% ainda possuem fogão a lenha ou os dois. • A refrigeração, item mais difícil em função da necessidade de geradores, aparece em 19% das casas como geladeira e 28% como freezers.

• 67% das residências tem TV.• 56% das residências tem celular. • 60% das residências ainda utilizam lamparinas como fonte de iluminação. • 27% dos domicílios possuem máquinas de lavar roupa.

Fonte: MRN, 2014

O uso de aparelhos eletrônicos dependem de uma estrutura elétrica que hoje depende muito da dimensão econômica da família, já que a maioria das casas é abastecida por geradores à diesel. Ou seja, precisam comprar o combustível.

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5352

Tendências de impacto: estudo sobre os territórios quilombolas do Alto Trombetas

projetos de desenvolvimento comunitário.

Todavia a lógica da coletividade vem sendo afetada sob este aspecto. Segundo entrevistados, hoje grande parte dos conflitos entre vizinhos se dá pela ausência de vi-são coletiva: quando um gerador que abastece 5 casas é acionado muito mais pela demanda de uma casa que das demais, esta deixa todas as outras sem luz, sem re-frigeração, o que se torna um problema doméstico e de recursos, pois o acesso ao diesel também implica em dis-ponibilidade da renda familiar.

Por fim, verificamos que, hoje, o quilombola tem vivenciado o conflito de duas ordens:

1. da lógica individualista, presente na cultura moderna e nos cenários urbanos, e que interferem diretamente na dinâmica dos quilombolas, seja pelo contato com agentes externos, aumento do consumo de bens, entre outros.

2. da lógica da coletividade, noção estruturante na formação das comunidades quilombolas e herdada da sua ancestralidade cultural.

Territórios em mudança

Tendências de impacto do Programa de Transferência de Renda

Qual a visão do quilombola sobre o significado da melhoria da qualidade de vida

e o que é o desenvolvimento para as comunidades?

Aquisição de bens de consumo

É evidente que um volume maior de recursos destinados dentro do programa daria às famílias a possibilidade de adquirirem novos ítens de uso cotidiano, possivelmente de modo parcelado ou ainda se juntando o benefício de alguns meses para tais aquisições, gerando outras tendências de impacto.

Fontes de energia das famílias quilombolas em Oriximiná

Gerador 71%

Lamparina 63%

Energia solar 63%

Velas 47%

Rede pública 6%

Não tem energia 0%

Fonte: ECAM, 2018.

•Ao mesmo tempo, 21,7% das famílias alegaram não ter nenhum equipamento para a realização dos trabalhos na estrutura domiciliar.

Dentre os equipamentos comunitários mencionados destacam-se:• a casa de farinha – 15,92%• forno – 15,41%• ralador de mandioca – 10,62% • Já os demais equipamentos como enxada, terçado, carroça, motosserra roçadeira

representam juntos um total de 9,2%. Fonte: MRN, 2014.

Ao mesmo tempo verificamos nas falas das lideranças comunitárias a valorização da co-letividade. Em exemplos concretos, eles colocam a importância da distribuição igualitária de recursos e transparência na prestação de contas dos investimentos realizados, tanto entre diferentes comunidades como entre os parentes da mesma.

Necessidades do quilombola de hoje

Os quilombolas reiteram a importância de manter os vínculos com o território, com a cultura e as relações de solidariedade entre os parentes como forma de resistir e até mesmo existir nas próxi-mas gerações. Nesse sentido, a imagem reificada de uma comunidade completamente isolada socialmente e culturalmente não dialoga com a realidade aqui apresentada.

Diante da demanda dos deslocamentos e das longas distâncias, realizados exclusivamen-te por transportes aquáticos (barcos e rabetas), o diesel ganha um valor de uso e troca muito significativo entre os moradores da região. A valorização do diesel também está relacionada ao acesso e garantia à energia elétrica, uma vez que esse combustível é ne-cessário para o funcionamento dos geradores. Ao mesmo tempo, a ausência de descarte adequado do diesel nas comunidades tem gerado maior quantidade de resíduos e conse-quentemente a poluição dos rios.

Com o incremento da renda atrelado à facilitação do mercado para aquisição de bens de consumo duráveis (televisores, equipamentos de uso doméstico, celulares, entre outros), os quilombolas seguem a tendência nacional de acesso ao consumo dessas mercadorias.

Reivindicam melhores condições na energia elétrica, indispensável para a utilização dos equipamentos eletrônicos, assim como internet com qualidade de conexão nos territó-rios. Pensando nesses fatores a existência de placas solares vem crescendo na região. Ain-da um tipo de energia muito caro para o estilo de vida do quilombola do Baixo Amazonas, assim como para o cidadão de Oriximiná no geral, porém cada vez mais subsidiado pelos

Territórios em mudança

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5554

Tendências de impacto: estudo sobre os territórios quilombolas do Alto Trombetas

Síntese das tendências de impacto em Produção de paisagens, gostos e hábitos

pode ampliar a aquisição de bens imobiliários tanto no território quanto na cidade

pode melhorar o acesso a itens de lazer (esportivos ou alimentícios, como churrasqueiras, etc.)

pode ocasionar em endividamento das famílias

pode promover inclusão tecnológica com mais rapidez

pode promover o aumento da mobilidade individual através de veículos próprios

pode impactar a paisagem/ características das casas (cercamento, muro, sistema de segurança, garagens, equipamentos domésticos etc.)

não impacta os tipos de produtos consumidos, mas sim a quantidade (ex. barco, geradores, celulares, etc.)

pode impactar os hábitos alimentares e de higiene e limpeza doméstica (aumento do consumo de produtos industrializados comprados na cidade)

pode aumentar o uso de agrotóxicos ou fertilizantes nas roças das comunidades

pode gerar situação de roubo ou furto

pode ampliar a demanda por energia elétrica, pelo aumento da quantidade de produtos eletroeletrônicos nas comunidades

pode trazer mais conforto e qualidade de vida para a população (ex. geladeira para manter alimentos por mais tempo)

pode aumentar a necessidade de consumo de combustíveis para gerador

pode impar o ambiente pelo aumento da poluição do ar (emissão de gases) e sonora

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Tendências de impacto do Programa de Transferência de Renda

No entanto, conforme as falas recolhidas entre entrevistas na comunidade, não é intenção do quilombola deixar de caçar, pescar ou coletar sua subsistência. Os roçados coletivos e particulares não deixarão de existir e servir de subsistência principal da família. O que se poderá encontrar é um período de experimentação de novos produtos, talvez não apenas alimentares, mas de higiene pessoal, de limpeza doméstica, de maquinário de jardim/roça entre outros que poderão substituir produtos de produção própria. Pode haver acrés-cimo de agrotóxicos e fertilizantes para os roçados.

Tendências de impacto do Programa de Transferência de Renda

O programa de transferência em si, desvinculado do acesso à energia e à rede de telefonia/internet, pouco deve alterar os itens consumidos pelas residências quilombolas. Ou seja, consumo privado, das famílias, deve seguir com as mesmas características de hoje pelos limites de infraestrutura locais.

Segurança

Hoje a residência do quilombola, como vimos, possui poucos atrativos para situações de roubo ou furto. No entanto a aquisição de novos itens de valor pode vir a impactar ne-gativamente a segurança dessas casas, provocando eventos indesejados de insegurança. As comunidades são consideradas seguras por todos os entrevistados, comunitários e atores externos ao contrário da percepção dos entrevistados sobre a segurança na cidade.

A segurança dos domicílios e seus bens, podem desencadear algumas alterações de pai-sagem nas comunidades que são bastante significativas no estilo de vida comunitário, como o cercamento ou a criação de muros ao redor das casas. A criação de garagens na estrutura doméstica ou ainda espaços de lazer particulares são possibilidades mais remo-tas, pois dependem muito do valor do benefício e do grau de intervenção no estilo de vida, tendência que se apresenta como pouco provável.

Ainda com relação aos domicílios quilombolas, verificamos que o percentual de pessoas que possuem mais de uma casa, ou que possuem casas em Oriximiná é muito pequeno (inferior a 3%). Com o fenômeno da implementação de um programa de transferência de renda, há duas possíveis leituras de tendências de impacto sobre esse tema:

1. um aumento das pessoas que possuem mais de uma residência, especialmente em Oriximiná, por razões de trabalho ou de permitir a continuidade dos estudos dos jovens. Isso promove o acesso à cidade e a valorização do dinheiro a partir do patrimônio imobiliário.

2. o aumento da aquisição de terrenos dentro das próprias comunidades, fortalecendo a permanência no território ao invés da divisão familiar entre a comunidade e a cidade e abrindo oportunidades de pequenos negócios locais.

Bens industrializados

Há uma tendência de aumento do consumo de bens industrializados, ou seja, quando vai à ci-dade mensalmente para receber seus benefícios e comprar o que a comunidade não provê. Hoje os recursos limitados não permitem que se fuja dos itens essenciais na cesta de compras do quilombola, porém com maior disponibilidade é possível dizer que experimentações ocorrerão.

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Tendências de impacto: estudo sobre os territórios quilombolas do Alto Trombetas

Quais os impactos nas dinâmicas comunitárias antes da operação

do empreendimento iniciar?

Considerando que a MRN é uma empresa com mais de 40 anos no território, não seria possível dizer que os impactos da destinação de royalties, em especial do programa de transferência de renda, são a única origem de alterações na vida dos quilombolas. Sendo assim, destacamos dois importantes pontos sobre a relação entre a empresa e os territó-rios, que refletem impactos anteriores ao Fundo Quilombola e que seguirão nos próximos anos independentemente do funcionamento do mesmo.

Migrações devido à criação de desigualdades entre os territórios

Segundo entrevistas, mesmo com os projetos de compensação e melhorias nos territó-rios, os impactos acarretados pela MRN afetam diretamente a vida das famílias.

A desigualdade na infraestrutura dos territórios é um fator a ser destacado, pois vem im-pactando diretamente na dinâmica de vida dos quilombolas. Uma vez que a MRN executa obras em determinadas comunidades (exclusivamente nas que estão próximas ao empre-endimento), os quilombolas passam a se deslocar, e por vezes migrar, para os territórios com mais infraestrutura.

Esses deslocamentos e migrações tendem a aumentar caso a desigualdade entre as co-munidades continue crescendo, como por exemplo, com a diferenciação do volume de royalties destinados entre as comunidades. Aliás, a desigualdade já é verificada tanto entre territórios como dentro dos próprios territórios de maior influência da mineração.

A migração entre comunidades (incremento populacional em algumas e redução em ou-tras) já pode ser observada em Tapagem, por exemplo, com um crescimento de 40% do número de residentes entre 2011 e 2014 em função da construção de uma escola (MRN, 2014). Muitas famílias migram e permanecem na comunidade em função de acesso a serviços de saúde e educação. A situação contrária ocorre, por exemplo, na comunidade de Juquiri Grande ou Lago Palhal, cuja falta de infraestrutura básica geram altos índices de evasão populacional (MRN, 2014).

Por fim, diante da expansão de ações da MRN, existe ainda uma preocupação por parte dos comunitários no que respeito à ruptura com as atividades extrativistas e tradicionais que passam a ser substituídas pela prestação de serviços à empresa. Essa situação vem gerando também um aumento do consumo local, ou seja, os quilombolas que trabalham

Territórios em mudança 6. Relação com a Mineração Rio do Norte

Iniciadas na década de 1970, as operações da MRN consistem na extração, no beneficia-mento e na venda de minério de bauxita na região do Baixo Amazonas. Diante do cenário das intervenções executadas em territórios quilombolas até os dias de hoje, muito se dis-cute sobre as influências e impactos que a mineração acarretou e acarreta no estilo de vida das comunidades.

Se destacam nas entrevistas com as lideranças quilombolas a relação com o empreendi-mento, na qual já passou por inúmeras fases e ao que indicam, continuará mudando com o passar dos anos. Antes sem diálogo, depois com consulta, com apoio a projetos ou ainda agora com destinação de royalties em função da expansão do negócio para novas jazidas, o que prepondera nessa relação é o componente de negociação de necessidades versus interesses.

A própria empresa precisou construir estruturas de diálogo capazes de lidar ao longo dos anos com as demandas levantadas pelas comunidades com metodologias diferentes em cada contexto.

Também a relação entre a empresa e as comunidades foi ao longo dos anos tornando-se cada vez mais pautada nas normas e tratados internacionais, especialmente no que tange à Consulta Prévia, Livre e Informada.

A comunidade de Boa Vista é a que conta com uma maior influência da empresa, justa-mente pela sua localização geográfica (mais próxima à cidade-empresa de Porto Trom-betas construída pela MRN). Nesse sentido, apesar das 37 comunidades partilharem o mesmo contexto geográfico, às margens do rio Trombetas no município de Oriximiná, os quilombolas ressaltam as diferenças, especificidades e peculiaridades do modo de vida nas comunidades em que vivem.

A expansão dos negócios da MRN na região resultou também na ampliação de oportuni-dades de trabalho e de organização comunitária, principalmente para os que residem nas proximidades do empreendimento, como é o caso de Boa Vista. Hoje os trabalhadores estão associados a cooperativas que executam serviços para a empresa. Há uma absorção quase que completa da mão-de-obra da comunidade, o que alterou completamente a dinâ-mica dos que residem nessa localidade.

Em contrapartida, ao longo dos anos a MRN tem melhorado a infraestrutura de Boa Vista, com a construção de escolas, vias de acesso, doação de barcos e combustível para as as-sociações, água potável e futuramente terão acesso à energia elétrica do empreendimento.

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Tendências de impacto: estudo sobre os territórios quilombolas do Alto Trombetas

Tendências de impacto do Programa de Transferência de Renda

Quais são as tendências de impacto referentes à segurança jurídica para

comunidades e empresa no desenho de transferência de renda?

Relacionamento empresa e comunidade

A relação com a empresa originária do recurso deve estar muito bem desenhada nos es-tatutos do fundo e outros mecanismos financeiros, incluindo o programa de transferência de renda, de forma a assegurar segurança jurídica para ambos os lados.

Uma preocupação que existe na narrativa dos quilombolas entrevistados é a ideia de outros atores tirando seu protagonismo nas iniciativas, sua capacidade de aprender e centralizando a gestão dos recursos e metodologias que serão aplicados nos territórios.

O que eles almejam é a autonomia para realizar os processos e as tomadas de decisão por si, mas também começar a inovar, aprender e criar por conta própria sem apoio de organizações externas.

empresa assume a responsabilidade na execução dos direitos fundamentais, como saúde e educação, o poder público se ausenta, como se a demanda já estivesse suprida (como parcialmente está) por outros entes.

Todavia, esse modus operandi tem se modificado nos últimos anos, principalmente pela consciência de que a dependência financeira com a empresa - que tem prazo de saída dos territórios -, não traria bons resultados a longo prazo para a vida dos quilombolas. Nesse sentido os comunitários compreenderam a importância de cobrar mais capacitação e orien-tação para a sustentabilidade financeira das comunidades. A criação do Fundo Quilombola tem como objetivo romper com essa lógica da dependência financeira nos territórios, bus-cando inclusive recursos de outros agentes e esferas (privados e governamentais).

É importante destacar também, que o direito aos royalties não se trata de uma ação assis-tencialista ou mesmo de responsabilidade empresarial. O recurso deve ser destinado aos moradores com base na legislação e cabe a eles a tomada de decisão sobre onde investi--los. A intervenção nesse processo por parte do próprio empreendimento pode ocasionar conflitos de interesse graves.

Territórios em mudança

na empresa passam a comprar os produtos alimentícios, como o peixe, a castanha, a mandioca que antes adquiriam através do próprio trabalho de subsistência. Como identi-ficamos, essa é uma situação que já vem ocorrendo nos territórios localizados nas proxi-midades do empreendimento.

Impactos da dependência financeira

Ao longo desses anos, a relação estabelecida entre a empresa MRN e os quilombolas es-teve pautada principalmente em “contrapartidas” e ações de assistencialismo. Ao mesmo tempo é importante destacar que a empresa iniciou o processo de extração da bauxita em Oriximiná na década de 1970, assim como a construção de infraestrutura em uma locali-dade que até então não havia nenhum tipo de equipamento público.

A assistência social nesse período também não era compreendida com o caráter de políti-ca pública, mas sim enquanto ações de caridade aos menos favorecidos. Nesse contexto, a herança assistencialista das empresas privadas, por vezes interseccionada com a ausên-cia do Estado na garantia desses direitos, ainda se mantém presente em diversos lugares do Brasil, inclusive em Oriximiná.

É claro que as ações de responsabilidade social nas empresas passaram por grandes transformações, especialmente após 1992 (ISO 26000), alterando o perfil assistencialista para uma lógica de mitigação de impactos gerados ou ainda mais recentemente de de-senvolvimento sustentável - algo que beneficia a comunidade enquanto cria um ambiente melhor para que o negócio também se beneficie. No entanto, o problema da dependência financeira ainda é discutido em quase todos os projetos de responsabilidade social no Brasil e no mundo.

Hoje há consenso entre os que estudam essa temática de que programas assistencialistas não são capazes de resolver a desigualdade estrutural no nosso país, por vezes reiteran-do-a e criando grau de dependência entre os indivíduos beneficiados. Pelos relatos, havia uma fragilidade da comunidade em relação à sua relação com a MRN no que diz respei-to à autonomia e capacidade de negociação, sendo criadas situações em que não havia abertura para o diálogo e que resultava na subserviência dos quilombolas com a empresa.

A ausência do Estado, no que tange à implementação de políticas públicas nos territórios, ainda é uma realidade entre as comunidades quilombolas. A MRN consequentemente assume um certo protagonismo ao desenvolver as ações comunitárias e melhoria na in-fraestrutura. Se por um lado, o contato com a MRN tem gerado ao longo desses anos um incremento na renda da população e uma melhoria no poder aquisitivo, seja pelo próprio trabalho, assim como pelas ações já citadas, por outro lado, na medida em que a

Territórios em mudança

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Tendências de impacto: estudo sobre os territórios quilombolas do Alto Trombetas

7. Relação com os serviços públicos

Renda

Grande parte dos indicadores sociais de Oriximiná apontam para um município frágil no que tange aos serviços e equipamentos públicos. O acesso e qualidade impactam diretamente à todos os habitantes, desde a zona urbana até a área rural, ficando evidente sua vulnerabilidade econômica. Hoje o cidadão oriximinaense que ganha em média R$ 332,29 (IBGE, 2010), de-pende quase exclusivamente da oferta de serviços públicos para ter suas necessidades básicas atendidas, e isso não é diferente para as populações quilombolas.

Infraestrutura e serviços disponíveis

Do ponto de vista de infraestrutura pública, encontramos falhas no atendimento em quase todas as áreas fins (educação, saúde, assistência social, transporte coletivo, energia elétrica, segurança pública, saneamento básico e meio ambiente, etc.). Políticas específicas, como por exemplo, para a juventude ou pela saúde da mulher, tão pouco chegam às comunidades mais vulneráveis, como apontam os entrevistados de Alto Trombetas.

Rede pública de educação

Nível de ensino Número de Matrículas Número de Docentes

Pré- escolar 2441 133

Fundamental 14824 660

Médio 2885 99

Fonte: Territórios Sustentáveis, 2015

Outros níveis de ensino em Oriximiná

• 1 Escola de Ensino Técnico do Estado do Pará.• 3 universidades, sendo 1 pública

(UFOPA - Universidade Federal do Oeste do Pará) e 2 privadas (UNOPAR e UNIP)

Cursos superiores na universidade pública:•Ciências biológicas • Interdisciplinar em ciências biológicas e

conservação•Sistemas de informação•Biologia e química

•História e geografia• Letras - português e inglês•Matemática e física•Pedagogia

Fonte: UFOPA

Tendências de impacto do Programa de Transferência de Renda

O impacto tem sua origem não no resultado, mas no processo de construção do programa em si. Um processo facilitado, com capacitação e delegação de papéis, com co-cons-trução do desenho do modelo de programa e com aprovação das comunidades tende a gerar um impacto positivo para toda a construção de futuro, pois promove inclusão e desenvolvimento de capacidades que vai ao encontro das necessidades levantadas neste estudo pelas lideranças dos territórios.

Ao contrário, o processo conduzido de maneira fechada, entre lideranças e tratado dire-tamente com o empreendimento, pode vir a ocasionar mal-entendidos, conflitos por des-consideração de necessidades de algumas comunidades, diferenciação de poderes, abuso de poderes, entre outros fatores. Muito importante para isso é a visão de dependência do negócio, uma vez que os recursos destinados por ele serão finitos em função de sua estada no território. Um possível descomissionamento deve ser considerado em qualquer proces-so de construção junto às comunidades, não com objetivo de gerar más expectativas, mas sim com objetivo de fortalecer o argumento de capacitação que as comunidades almejam.

Migrações e demandas sociais

O aumento das demandas comunitárias à MRN pode acontecer devido ao crescimento populacional nas áreas de entorno direto. É possível que demandas hoje já instituídas como acesso à eletricidade ou à água tratada aumentem em função do aumento populacional.

Outras demandas em infraestrutura e esgotamento sanitário devem surgir com o cresci-mento desordenado, caso as migrações ocorram dessa forma.

Síntese das tendências de impacto na Relações com a MRN

pode impactar no desenho e implementação do programa de transferência de renda em si

pode impactar as demandas à MRN em função do aumento populacional em áreas de influência do empreendimento

pode aumentar as migrações para os territórios de Alto Trombetas

pode ampliar a desigualdade entre territórios e entre comunidades

pode resultar na intervenção de atores externos (MP, MDH, INCRA, MMA etc)

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Tendências de impacto: estudo sobre os territórios quilombolas do Alto Trombetas

Desenvolvimento e assistência social

Rede do Sistema Único da Assistência Social:• 2 Centros de Referência da Assistência Social (CRAS)• 1 Centro de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS)• 1 Unidade de Acolhimento

Não há Centro de Convivência, Centro de Juventude, Unidade de atendimento ao adolescente em conflito com a lei e Centro de geração de trabalho e renda/ profissionalizante.

Qual a capacidade de a Prefeitura de Oriximiná atender

às populações mais vulneráveis do seu município?

Mesmo com uma arrecadação superior à de muitos municípios de perfil semelhante, como apontam os dados do IBGE (2017), a oferta de serviços é deficitária. As demandas das comunidades são levadas à MRN, às associações, mas não à Prefeitura - ator público responsável por esses serviços. É necessário que o trabalho de conscientização sobre as responsabilidades e papéis de cada ator seja realizado nos territórios, caso tenham inte-resse em reduzir sua dependência da presença da empresa mineradora.

Ausência de serviços públicos nos territórios

Nos territórios é possível identificar a ausência de políticas e serviços públicos, sendo esta uma das reclamações mais frequentes por parte dos quilombolas. Ressaltam que atualmente os recursos públicos municipais são alocados majoritariamente no perímetro urbano e, por conta disso, realizam deslocamentos constantes para terem acesso aos atendimentos de saúde (UBS e hospitais) e assistência social. A locomoção entre territó-rio e a cidade tem sido executada através dos barcos particulares ou das associações, já que atualmente a ambulância fluvial (“ambulancha”) está inoperante10.

Como foi identificado no levantamento socioeconômico realizado em Alto Trombetas, cerca de 52,57% famílias recebem o benefício do Bolsa Família e, considerando o grau de vulnerabilidade socioeconômica dessas famílias, o desenho do Programa prevê o acom-panhamento social, visto que o auxílio financeiro está vinculado ao cumprimento das condicionalidades na Saúde, Educação e Assistência Social. No entanto, os moradores entrevistados relatam que não são realizadas as visitas domiciliares regulares pelas pro-

Territórios em mudança

Principais motivos para a interrupção dos estudos

Não havia escola na comunidade 43,81%

Necessidade de trabalhar 27,62%

Contingência familiar 14,76%

Pouca motivação 11,90%

Acesso à distância 1,90%

Fonte: MRN, 2014

Opções de tratamento à saúde entre as comunidades quilombolas tituladas em Oriximiná

Remédio caseiro 90%

Hospital Oriximiná 67%

Hospital Porto Trombetas 50%

Curandeiro 21%

Posto de saúde 4%

Hospital Santarém 3%

Não faz nada 0%

Fonte: ECAM, 2018

Rede pública de saúde

Segundo os dados do Ministério da Saúde de 2016, o percentual da população coberta pelo número de Agentes Comunitários de Saúde era de 69,9% e da população coberta pelo nú-mero de Equipes de Saúde da Família era de apenas 42,5%. Ou seja, as equipes da Estra-tégia Saúde da Família não estão completas, provavelmente faltam médicos.

Equipamentos públicos do Sistema Único de Saúde (SUS): • 5 Unidades Básicas de Saúde (UBS)• 1 Unidade de Pronto Atendimento (UPA)• 1 Casa de Saúde do Índio (CASAI) • 2 hospitais e maternidade 9

Atualmente não há no município Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) e Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), apesar do crescimento do número de usuário de drogas e proble-mas de saúde mental, relatado pelos entrevistados. Outras informações como abusos sexuais ou violência doméstica não foram mencionados pelos entrevistados, e não são disponibiliza-dos por fontes secundárias. Isto pode sinalizar a ausência de capacidade técnica nas institui-ções públicas para a coleta de informações, ou a própria ausência de profissionais suficientes para realizar tais levantamentos.

Além da ausência de postos de saúde, a distância significativa dos hospitais públicos faz com que os enfermos dos territórios mais próximos à MRN procurem o hospital da empresa. (MRN, 2014)

Segundo o estudo da ARQMO/ECAM (2018), 67% dos casos de quilombolas que se deslocam para realizar tratamentos de saúde optam pelo Hospital Municipal de Oriximiná, evidenciando que as migrações ocorrem de maneira variada em função da proximidade com os aparelhos disponíveis e pelo menor custo de transporte.

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Tendências de impacto: estudo sobre os territórios quilombolas do Alto Trombetas

Acesso à internet

Desde a instalação das redes de internet via satélite nos territórios quilombolas, pelo Pro-grama Território Sustentáveis, os moradores relatam que hoje, em casos de emergência, é possível acionar pessoas da cidade e agilizar o deslocamento de doentes e grávidas, ou ainda solucionar uma situação de conflito e violência.

Atores locais e poder público

A empresa MRN e outras entidades como ONGs locais assumiram ao longo dos anos diversas demandas e responsabilidades do poder público nos territórios quilombolas. Se por um lado isso ameniza as ausências e carências vividas no cotidiano, por outro inibe as ações governamentais como se a demanda já estivesse suprida, eximindo o poder público de suas devidas responsabilidades como promotor dos direitos e garantias fundamentais.

Por fim, a fragilidade e a vulnerabilidade dos territórios, a relação de dependência por atendimentos de base, faz com que essa população também seja refém de interesses políticos e particulares.

Territórios em mudança

Tendências de impacto do Programa de Transferência de Renda

A implementação de um programa de transferência de renda pode influenciar

nas relações entre as comunidades e os serviços públicos?

Serviços públicos nos territórios

Dependendo da possibilidade de acesso e presença desses serviços nas comunidades, sim. Não é por incrementar sua renda que o quilombola poderá contratar um plano de saúde. Não é por incremento à renda que ele trocará a escola pública pela particular. Não é por possuir mais renda que a comunidade optará por um serviço de segurança particu-lar, com câmeras, no lugar da segurança pública, como iluminação ou presença policial.

fissionais da assistência social e saúde para as famílias quilombolas, exceto em período eleitoral. Diante do exposto, evidencia-se que a realidade das ausências nos territórios afeta inclusive o Bolsa Família, que neste caso, tem falhado no monitoramento das con-dicionalidades.

Violência

Quando esta ausência de políticas públicas está relacionada com a entrada da violência e drogadição nos territórios, pode ser identificado um grau elevado de vulnerabilidade e insegurança no cotidiano das comunidades. Como mostram os dados específicos de Alto Trombetas, 24% dos falecimentos têm como principal causa a violência, e cerca de 30% na faixa etária dos jovens entre 18 e 35 anos. Isso mostra que os territórios de Alto Trombetas possuem um percentual considerável de mortes por conflito, sendo um ponto de atenção para o presente estudo de impacto.

Territórios em mudança

Morte Violenta 23,6 %

Derrame 20,0 %

Coração 14,5 %

Câncer 12,7 %

Diabetes 9,1 %

Morte natural 5,5 %Problemas gastrointestinais 3,6 %Pressão Alta 3,6 %Problemas de crescimento 1,8 %Pneumonia 1,8 %Hepatite 1,8 %Tuberculose 1,8 %Fonte: MRN, 2014

65 a + 33,90 %

51 a 65 13,56 %

36 a 50 15,25 %

25 a 35 20,34 %

18 a 24 8,47 %15 a 17 1,69 % 7 a 14 0,00 % 6 a 7 1,69 % 0 a 5 5,08 %

Falecimentos em Alto Trombetas, 2012 a 2014

Faixa etária Causas

Atualmente as drogas e a violência já fazem parte da realidade de diversos jovens no território, porém é necessário entender que a ausência de políticas integradas impacta diretamente nesses indicadores.

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Tendências de impacto: estudo sobre os territórios quilombolas do Alto Trombetas

8. Saneamento básico e ambiental

Por saneamento básico e ambiental, entende-se o conjunto de medidas que visa preservar ou mo-dificar as condições do meio ambiente com a finalidade de prevenir doenças e promover a saúde, melhorar a qualidade de vida da população e a produtividade do indivíduo e facilitar a atividade econômica. É assegurado a todos os cidadãos pela Constituição e definido por lei específica e abran-ge os serviços, infraestrutura e instalações operacionais de abastecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza urbana, drenagem urbana, manejos de resíduos sólidos e de águas pluviais.

Abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto

Nas comunidades quilombolas de Alto Trombetas, localizadas no meio rural do município, não há atendimento de serviços de saneamento para a população. Nas comunidades mais próximas à MRN, há um maior número de poços artesianos, pois a mesma realiza furações para a comunidade como atendimento à demanda de saneamento que chega até a empresa.

Segundo a ARQMO, a ausência de tratamento da água está relacionada à falta de agentes de saúde

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Síntese de tendências de impacto na Relação com Serviços Públicos

não impacta relação com o ente público

não substitui o uso de equipamentos públicos por serviços privados

pode impactar a seguridade social caso venha a aumentar a presença de agentes de saúde ou assistentes sociais para acompanhamento de condicionantes do programa

pode aumentar a inclusão de crianças e jovens na escola

pode auxiliar o jovem que não ingressa na universidade pública, a ingressar na universidade particular (presencial ou EAD)

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NÚMEROS DO ABASTECIMENTO DE áGUA EM ALTO TROMBETAS (ECAM, 2018)

• 83% das famílias captam água direto do Rio Trombetas/ lagos/ minas/ nascentes/ igarapés• 28% possuem poços artesianos e coletam água da chuva• 68% Tratam a água com cloro• 28% consomem sem tratamento• 7% filtram ou fervem a água antes do consumo

Tendências de impacto do Programa de Transferência de Renda

No entanto, os estudos de impacto de programas de transferência de renda com condicionantes, como o Bolsa Família, apontam para melhorias significativas no acesso e uso dos serviços públicos de saúde e educação em si, pois o recebimento do benefício está vinculado à vacinação infantil, à matrícula da criança e do jovem na escola, tudo isso pois o objetivo é a melhoria das condições de vida e do capi-tal humano. No entanto, é possível questionar a aplicabilidade de condicionantes como estas em um cenário de ausência de serviços públicos como é o caso em Oriximiná.

Apesar do desenho de condicionalidades do programa ainda ser apenas um centro de especulações por diversos atores, há uma expectativa por parte dos comunitários de melhorar os serviços públicos como educação. Outros programas de incremento à renda que existiram no território, a partir de trabalhos de apoio às cadeias produtivas, apontam para os mesmos resultados, como a própria substituição do trabalho infantil na roça pela inclusão no ambiente escolar.

No entanto, como vimos, há uma defasagem de oferta de serviços por parte do ente pú-blico local, o que dificulta que o acesso à esses serviços ocorra de maneira universal. O acompanhamento de condicionantes do Bolsa Família é limitada a períodos específicos, às equipes e recursos disponíveis.

Ensino superior

Há, no entanto, um componente importante para a leitura de tendências de impacto do programa de transferência de renda no que diz respeito à educação, já em nível supe-rior. Hoje há esforços da ARQMO para capacitação dos jovens para que ingressem nas universidades públicas, estaduais ou federais, presentes no município.

Porém, com a possibilidade de um programa de transferência de renda que traga mais segurança ao orçamento familiar, é possível dizer que poderá haver a inserção do jovem nas universidades privadas, seja de forma presencial ou via polos EAD, como ocorre em muitos municípios. Nesse sentido, não se trataria de uma substituição de serviços pú-blicos por privados, mas sim uma maior inserção do jovem quilombola na universidade como um todo, pois os que não passarem nas públicas poderão receber apoio familiar para ingressarem nas particulares.

Entrevistados quilombolas apontaram que é do interesse dos mais velhos das comunida-des que os jovens tragam novos conhecimentos, projetos e transformações para aumen-tar a autonomia e o desenvolvimento dos territórios.

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Tendências de impacto: estudo sobre os territórios quilombolas do Alto Trombetas

por uma concessionária que faz o recolhimento da maioria dos resíduos domésticos, capina e galhadas, varrição. Os resíduos de saúde das unidades públicas são recolhidos pela própria secretaria Municipal de Saúde. Os resíduos industriais são responsabilidades das próprias em-presas e os resíduos da construção quando tem, pela mesma empreiteira. Cerca de 60% dos domicílios da zona urbana do município são atendidos pelo serviço de limpeza e o destino final dos resíduos coletados é o lixão de Oriximiná, que fica próximo à cidade.

O município de Oriximiná vem estruturando e avançando em seu Plano Municipal de Gerencia-mento de Resíduos Sólidos Urbanos (PMGRSU), que faz parte do Programa Orixi Sustentável. A lei prevê também a inclusão de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis que trabalha-vam nos lixões, além de incentivar a criação das cooperativas.

Pelas exigências da Política Nacional de Resíduos Sólidos (BRASIL, 2010) que traz como um de seus objetivos avançar nos principais problemas relacionados ao manejo inadequado dos resíduos sólidos, tendo como meta o fechamento dos lixões, a prevenção e a redução na geração de resíduos e a destinação para aterros sanitários apenas dos rejeitos.

DESTINO DOS RESíDUOS SóLIDOS EM ALTO TROMBETAS (ECAM, 2018)

• 98% são queimados• 12% são enterrados• 2% seguem direto para o rio ou floresta• 1% Armazenado em sacos para descartar na cidade mais próxima

*soma superior a 100% pela possibilidade de apontar mais de uma resposta

Nesse sentido, foi criada em agosto de 2017 a Associação de Catadores e Catadoras de Reci-cláveis do Município de Oriximiná, a ’Recicla Orixi’’. A partir da formalização da Associação em pessoa jurídica, o grupo pode receber doações de entidades, elaborar projetos para captação de recursos, e contribuir para a elaboração e execução do PMGRSU, realizando a coleta seletiva de materiais passíveis de reciclagem e encaminhando estes resíduos novamente para cadeias produtivas, dentro das possibilidades locais.

No que tange à questão dos resíduos nas comunidades rurais, sendo elas ribeirinhas, qui-lombolas ou indígenas, não há serviço de coleta e tratamento de resíduos sólidos domésticos organizado ou oferecido pela prefeitura. A dificuldade de acesso e as grandes distâncias destes locais à sede do município inviabilizam o transporte para a cidade, que tem alto custo. Desta forma, a coleta e destinação do lixo nos territórios é realizada pelos próprios comunitários.Algumas comunidades mais próximas levam seus resíduos para Porto Trombetas, onde há coleta e tratamento de resíduos especificamente para os moradores da vila. Segundo represen-tante da Ecam, parte do metal (como por exemplo latas) retorna para a MRN.

Como mencionado anteriormente, o quilom-bola não construiu uma estratégia de destina-ção para os bens consumidos e cada vez mais a questão do lixo aparece como um grande problema. No entanto, não é possível deixar a responsabilidade sobre a destinação do lixo doméstico apenas entre os comunitários, pois a coleta da prefeitura não se faz presente em todas as comunidades e nas que se encontra, não na periodicidade satisfatória para evitar o acúmulo de lixo.

na região para levar o conhecimento e a consciência da necessidade de tratamento. É importante entendermos também se o acesso ao cloro é simples ou difícil para os moradores locais. O arma-zenamento dessa água é realizado em baldes e potes, nos quais é utilizado o cloro diretamente.

Este cenário de abastecimento de água é observado também na zona urbana de Oriximiná, onde a maioria da população (70%) é atendida pelos chamados Sistemas Adaptativos de Abastecimento de Água (SAAA), coletivos ou individuais, que incluem fonte, poço comunitário, distribuição por veículo transportador (carros pipa), instalações condominiais horizontal e vertical. Apenas 30% da população de Oriximiná é atendida pela rede de abastecimento da Companhia de Saneamento do Pará (COSANPA), cuja fonte de captação também é o Rio Trombetas.

Segundo o Instituto Trata Brasil, o estado do Pará tem um dos piores índices de saneamento do Brasil. O atendimento total de esgoto referido aos municípios atendidos com água é de 9,03% e o índice de esgoto tratado em relação à água consumida é de 7,34%. De acordo com o Plano Municipal de Saneamento Básico de Oriximiná, não existe sistema esgota-mento sanitário na área urbana do município, somente sistemas individuais como fossa rudimen-tar, seca e séptica. As fossas secas na sua maioria estão localizadas nas áreas mais periféricas e/ou nas invasões antigas ou recentes, com a maioria dos residentes de baixa renda. As fossas sépticas na sua maioria ou estão na área central com existem as edificações mais antigas (mais de 90%) ou nas edificações mais modernas. As águas cinzas (águas de lavagens de pias e chuveiros) são lan-çadas a céu aberto nas canaletas das ruas, nos próprios quintais ou direto no Rio Trombetas, sem qualquer tipo de tratamento, comprometendo a qualidade da água na região.

Assim como na zona urbana de Oriximiná, nas comunidades da zona rural também não há estrutu-ra de esgotamento sanitário satisfatória. O gráfico a seguir ilustra as formas de destinação do esgoto sanitário em Alto Trombetas (MRN, 2014).

Destinação do esgoto sanitárioem Alto Trombetas

Fonte: MRN, 2014

Fossa rudimentar51,0 %

Córrego, rio, lago - 2,0 %

Vala, valeta - 25,0 %

Esgoto a céu aberto14,0 %

Fossa séptica - 8,0 %

A ausência do esgotamento sanitário, além de comprometer a qualidade da água dos rios e igarapés, que inclusive são a fonte de abastecimento de água das comunidades, também apresenta consequências à saúde do quilombola de Alto Trombetas. 32% das famílias possuem algum tipo de doença in-fecciosa ou parasitária, característica desse tipo de problema e configurando como se-gunda maior reclamação de saúde, apenas atrás das doenças respiratórias.

Resíduos Sólidos

Com relação à coleta de resíduos sólidos do município de Oriximiná, o serviço é realizado

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Tendências de impacto: estudo sobre os territórios quilombolas do Alto Trombetas

da produção agrícola/ extrativista e não do lixo. Não é bem assimilado por muitos sugerir descer o lixo para a cidade usando embarcações.

Outro ponto em relação ao transporte dos resíduos sólidos pela via fluvial até Porto Trom-betas ou Oriximiná como estratégia de destinação é a necessidade de licenciamento am-biental para essa atividade, exigida pelo ICMBio para não caracterizar crime ambiental. A MRN teve autorização para realizar o transporte dos resíduos em barcaças após ter passado por processo de licenciamento ambiental, mas as comunidades colocam não ter condições de bancar financeiramente um processo desses. Muito se fala em destinar os resíduos de forma correta, mas pouco se faz para, de fato, minimizar o problema.

Territórios em mudança

Tendências de impacto do Programa de Transferência de Renda

Quais reflexos no consumo e descarte de resíduos podem surgir

com um programa de transferência de renda?

Poderá trazer reflexos não nos tipos de produtos consumidos, mas na quantidade com que serão consumidos. Este fato, sem dúvida, causa um aumento na geração de resí-duos. Desta forma, com a possibilidade de incremento de renda, a tendência é que a quantidade de resíduos (orgânicos, embalagens, lixo eletrônico, resíduos de construção civil) nos territórios aumente significativamente também. É uma projeção que requer bastante atenção, uma vez que esta questão já é vista atualmente como um grande problema nas comunidades, sem grandes possibilidades de solução em curto prazo.

Com relação ao saneamento, a partir do consumo de mais produtos industrializados, em especial produtos de limpeza, óleo de cozinha, defensivos agrícolas e óleo pro-veniente de motores dos barcos, pode-se introduzir nas comunidades ou aumentar a presença de efluentes químicos, mais agressivos e que causam grandes danos ao solo, rios e igarapés (contaminação, eutrofização, mortandade de peixes e outros seres vivos, impacto sobre a qualidade da água - imprópria para consumo, etc).

Problemas relacionados a vetores de doenças também podem ser potencializados, já que o acúmulo de resíduos e a piora da qualidade ambiental colaboram para a prolife-ração de insetos e outros animais transmissores de patologias, como mosquitos, ratos e moscas.

Quais as relações diretas do modelo de vida atual dos quilombolas

com os impactos nos serviços de saneamento básico?

Diante do que observamos em relação a ausência de serviços públicos e agora, em espe-cial, dos serviços de saneamento básico e ambiental compreendendo suas 4 dimensões (água, esgoto, drenagem e lixo), faz-se necessário apontar que muitos dos problemas ligados aos impactos ambientais não se relacionam diretamente, ou inicialmente, à trans-ferência de renda.

Aumento da geração de resíduos sólidos nas comunidades

O lixo é considerado um grande problema nos territórios para os quilombolas. Com a ampliação do consumo e dos produtos industrializados houve também um aumento dos resíduos gerados, seja pela quantidade e tipos de embalagens, seja pelo próprio ciclo de vida do produto.

Atualmente, não existe serviço de coleta do lixo realizada pela prefeitura nos territórios e cabe aos próprios moradores enterrarem os resíduos e/ou queimá-los. As mudanças de hábitos de consumo ao longo dos anos já vem causando o crescente acúmulo de resíduos nos territórios, gerando, além das questões de poluição, saneamento, saúde pública e degradação ambiental, um enorme impacto visual.

Nas falas dos quilombolas foi possível identificar a percepção de aumento de consumo e consequente produção de mais lixo nas comunidades, assim como uma real preocupação com a situação do descarte de resíduos.

Ausência de atuação efetiva do poder público (prevenção e soluções)

Pelas falas e dados levantados nas pesquisas, o interesse em buscar soluções por parte das comunidades hoje existe e pode ser potencializado. Porém, conforme os relatos co-letados em campo, atualmente falta orientação e participação efetiva do poder público propondo ações que realmente minimizem a questão dos resíduos sólidos, tanto nas áreas rurais como na área urbana do município.

A preocupação com o aumento da quantidade de resíduos nos territórios surge também nas falas dos técnicos que atuam em projetos locais. Eles enfatizam a complexidade da questão por fatores como a dificuldade de transporte e o gasto de combustível. Como o combustível é um recurso escasso, percebem que a prioridade é o transporte de pessoas e

Territórios em mudança

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Tendências de impacto: estudo sobre os territórios quilombolas do Alto Trombetas

Tendências de impacto do Programa de Transferência de Renda

Assim como já citado em análise anterior, a implementação de um programa de trans-ferência de renda, não implica na construção de políticas públicas, soluções de serviços públicos ou infraestrutura de saneamento para as comunidades. Pelo contrário. Pode gerar um maior descaso do poder público, deixando ainda mais nas mãos das comuni-dades a responsabilidade sobre as questões de abastecimento de água, esgotamento sanitário e gestão de resíduos sólidos.

Ao mesmo tempo, com o advento de mais recursos, tendo autonomia sobre eles e orientação sobre boas formas de uso, as comunidades podem buscar soluções alter-nativas tanto para a questão dos resíduos como para saneamento ambiental, através de projetos de capacitação técnica em diversos temas, como biossistemas, bacias de evapotranspiração e agricultura orgânica, por exemplo.

Síntese de tendências de impacto sobre Saneamento Básico e Ambiental

pode impactar a qualidade da água dos rios, conforme o consumo e despejo de produtos químicos industrializados de uso diário (produtos de limpeza, óleo de motor e outros)

pode ampliar a quantidade de resíduos (orgânicos, embalagens, construção civil)

pode potencializar a questão de acúmulo dos resíduos nas comunidades (destinação não adequada)

pode ampliar a poluição das águas pela maior quantidade de embarcações (despejo/ resíduos de óleo dos motores das embarcações)

pode aumentar a proliferação de vetores de doenças

não implica na criação de serviços públicos de saneamento básico nos territórios

possibilidade de melhorar a estrutura de esgotamento sanitário através de projetos de capacitação das comunidades em soluções sustentáveis de saneamento adequadas à realidade local

(ex. biossistemas integrados, bacias de evapotranspiração)

possibilidade de autonomia das comunidades para buscar soluções frente à questão dos resíduos sólidos (“lixo”)

w

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Conclusões e apontamentos

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Conclusões e apontamentos

Tendências de Impacto Socioambiental FATORES IMPACTADOS

Social Ambiental

• Retorno de quilombolas que residem fora dos territórios

• Inserção tecnológica com autonomia•Diversificação das práticas de lazer•Melhora das condições do jovem que vai para a

cidade•Casamento entre quilombolas e não quilombolas• Relações familiares (conflitos por administração

da renda)• Relações entre comunidades/ territórios • Tensão política nos territórios•Novas organizações, como ONGs locais •Capacitação e a vontade de aprender•Oferta de serviços nas comunidades• Aumento de consumo de bens e serviços•Nascimento de novas cooperativas e cadeias

produtivas•Diversificação das fontes de emprego e renda•Contratação de mão de obra local• Recebimento de outros benefícios (BF)• Aquisição de bens imobiliários • Acesso a itens de lazer • Endividamento das famílias• Inclusão tecnológica• Aumento da mobilidade individual •Características das casas•Quantidade de itens consumidos •Hábitos alimentares, de higiene e limpeza

doméstica• Situação de roubo ou furto•Conforto e qualidade de vida para a população (ex.

geladeira para manter alimentos por mais tempo)•Consumo de combustíveis •Desenho e implementação do programa de

transferência de renda em si•Demandas à MRN•Migrações para os territórios de Alto Trombetas•Desigualdade entre territórios e comunidades• Intervenção do MP• Seguridade social• Inclusão de crianças e jovens na escola• Ingresso do jovem na universidade particular

(presencial ou EAD)

•Uso de agrotóxicos ou fertilizantes nas roças das comunidades

•Demanda por energia elétrica•Qualidade da água dos rios, conforme o consumo

e despejo de produtos químicos industrializados de uso diário

•Quantidade de resíduos gerados e acúmulo nas comunidades

• Poluição das águas pela maior quantidade de embarcações

• Proliferação de vetores de doenças • Poluição do ar (emissão de gases) e sonora• Possibilidade de melhorar a estrutura de

esgotamento sanitário através de projetos de capacitação das comunidades em soluções sustentáveis de saneamento adequadas à realidade local (ex. biossistemas integrados, bacias de evapotranspiração)

• Possibilidade de autonomia das comunidades para buscar soluções frente à questão dos resíduos sólidos (“lixo”)

O estudo de tendências de impacto da implementação de um programa de transferência de renda no âmbito do Fundo Quilombola apresentou inúmeras hipóteses sobre fatores socio-ambientais, vinculados a 8 eixos de análise, que poderão ou não sofrer transformações futuras. Nesse sentido, há de se considerar que as variáveis de construção do programa em si (seja no seu desenho final, seja no processo construtivo ou decisório) podem ocasionar em mudanças significativas dos cenários apontados.

Procurou-se englobar o maior número de tendências possíveis, considerando mudanças nesse desenho programático. O quadro a seguir demonstra uma síntese dos fatores que tendem a sofrer impactos com o incremento de renda familiar (impactos considerados positivos ou negativos) e também os fatores que não tendem a ser impactados.

O que se observa do ponto de vista dos fatores não impactados, é que são da ordem das macro estruturas: cultura, forma como se organizam, relações com atores externos etc. Já os fatores que tendem a sofrer impactos dizem mais respeito à dinâmica cotidiana, das micro estruturas, como relações familiares, formas de consumo de bens e serviços, relação com o trabalho e diversificação das fontes de renda, diversificação das formas de lazer etc.

Destaca-se, no entanto, alguns pontos estruturantes que poderão acarretar em transformações nas macro estruturas no médio prazo: inserção tecnológica, aumento da demanda por energia elétrica, capacitação e escolaridade, desigualdade econômica, poluição dos rios e atmosférica, migrações entre outros.

Os fatores apresentados no presente estudo deverão ser aprofundados e observados a partir de um acompanhamento sistemático de indicadores e pesquisas qualitativas, para que cor-reções de rota possam ocorrer durante o período de duração do programa. Este acompanha-mento, visando um futuro estudo de impacto, deve ser realizado com rigor científico a fim de garantir a qualidade dos dados e informações ao longo do tempo, construindo assim um banco de dados robusto.

Importante destacar que diferentes metodologias podem ser aplicadas nesse caso. A ação de acompanhamento das discussões entre o ICMBio e as comunidades sobre uso e gestão do território, que já ocorrem desde dezembro de 2018, é de extrema importância uma vez que a titulação das terras/Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) em AT2 e AT1 condicionará a redefinição desses critérios de utilização da terra e a revisão do Plano de Manejo da Flona.

Outra oportunidade que se verifica é o acompanhamento da aplicação do Índice de Progresso Social (IPS) e análise dos dados, caso este venha a ser aplicado em todos os territórios. Tam-bém o acompanhamento qualitativo deve ser considerado, com a utilização de procedimentos metodológicos como grupos focais e aplicação de entrevistas, de forma a possibilitar o redese-nho e a correção de rota ao longo dos anos.

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Conclusões e apontamentos

As entrevistas realizadas para o presente estudo trouxeram narrativas que possibilitaram tanto a análise de fatores que já sofreram impacto em decorrência de outras intervenções, quanto nos permitem apontar sugestões de encaminhamentos futuros, a fim de contribuir com o pro-cesso construtivo do programa em si. O pioneirismo dessa iniciativa está justamente na escuta ativa aos beneficiados e na observação do processo visando autonomia dos mesmos.

A narrativa que se construirá no futuro dependerá de algumas variáveis que consideramos importantes fatores de impacto:

Construção do programa em conjunto com a comunidade

Na voz de todos os atores entrevistados (internos e externos) há consenso de que a construção e implementação de um programa de transferência de renda deve ser realizada em conjunto com os todos os quilombolas que habitam o território e não apenas com as lideranças comunitárias.

Fatores socioambientais que sofreram impactos antes da construçãodo Programa de Transferência de Renda

Dimensão Fatores Impactados

Sustentabilidade sociocultural • Ausência de rituais de transmissão de ancestralidade

• Permanência do jovem no território• Impactos da ausência do Ensino Médio no

território

Estruturas sociais e rede de solidariedade • Influência dos programas de desenvolvimento de capacidades

•Mecanismos Financeiros, Fundo Quilombola e Plano de Vida

• Transformações do papel da mulher quilombola

Relações de Dinâmica e Conservação Ambiental •Conflitos pela sobreposição de demarcações de terras

Sustentabilidade econômica • Redução das práticas extrativistas e agro-pastoris em Alto Trombetas

• Implementação de programas de geração de renda no território

Produção de novas paisagens, gostos e hábitos •Diminuição da lógica coletiva no consumo de bens•Necessidades do quilombola de hoje

Relação com a Mineração Rio do Norte •Migrações devido à criação de desigualdades entre os territórios

• Impactos da dependência financeira

Relação com os serviços públicos • Ausência de serviços públicos nos territórios• Violência• Acesso à internet• Atores locais e poder público

Destacamos, que muitos fatores já estão em processo de transformação por impacto de outras variáveis, como a sobreposição de jurisprudência do uso da terra, a expansão da mineração ou a presença de ONGs no território. Consideramos importante destacá-los por representarem impactos relevantes que não foram iniciados a partir do Fundo Quilombola e do programa de transferência de renda, dando-nos a oportunidade de isolar estas variáveis.

Fatores socioambientais que sofreram impactos antes da construção do Programa de Transferência de Renda

Tendências de Impacto Socioambiental FATORES NÃO IMPACTADOS

Social Ambiental

• Estilo de vida, festas, danças, religiosidade, e outros componentes culturais

• Forma como se organizam (associações)• Escolha de lideranças• Relação com a MRN• Relação com as ONGs locais• Relação com o ente público •Uso de equipamentos públicos por serviços

privados

•Criação de serviços públicos de saneamento básico nos territórios

• Relação com órgãos ambientais• Relação das comunidades com atividades

extrativistas•Dinâmica florestal

Territórios em mudan-ça: fatores socioam-bientais que vêm sofrendo

Relação com serviços públicos

Relação com mineradora MRN

Saneamento básico e ambiental

Produção de novas paisagens, gostose hábitos

Estruturas sociais e rede de solidariedade

Relações so- bre dinâmica e conservação ambiental

Sustenta-bilidade econômica

Sustentabili-dade Socio-cultural

Ausência de serviços públicos básicos

Ausência de atuação efetiva do poder público (prevenção e soluções)

Impactos da dependência financeira

Aumento da geração de resíduos sólidos nas comunidades

Migrações devido à criação de desigualdades entre os territórios

Necessidades do quilombola moderno

Diminuição da lógica coletiva no consumo de bens

Influência dos programas de desenvolvimento de capacidades

Redução das práticas extrativistas e agro pasto- ris em Alto Trombetas

Conflitos pela sobreposição de demarcações de terras

Transformações do papel da mulher quilombola

Implementação de programas de geração de renda no território

Permanência do jovem no território

Ausência de rituais de transmissão de ancestralidade

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Conclusões e apontamentos

Há entre as tendências de impacto levantadas apontamentos que podem ser considerados importantes para o atendimento dessas intenções narradas pelas lideranças. O conhecimento sobre esse estudo em si pelas comunidades pode vir a contribuir de forma significativa para a construção com autonomia.

Oportunidades que não são consideradas a priori, mas pelas tendências de impacto levantadas podem vir a ser consideradas, são a própria distribuição universal de recursos, não apenas no Alto Trombetas, mas todos os 8 territórios. Nesse sentido, rompe-se com a compreensão de que os “impactados pelo empreendimento estariam sendo indenizados” para uma lógica de prosperidade: um programa de redução das desigualdades entre territórios (uma vez que tal desigualdade é um fator também gerado pela própria presença do negócio). Este exemplo evi-dencia que ao mudarmos a escala de análise, alteramos de forma significativa a simbologia do programa e consequentemente o seu impacto nas comunidades afetadas, além de incluir um componente da própria cultura quilombola ao processo.

O desenho das condicionalidades passa pela mesma lógica: a oportunidade de conhecê-las a fundo pode vir a gerar valor simbólico para a cura de outros pontos de conflito dentro das comunidades, como as relações familiares. Do ponto de vista de “somos todos parentes”, o conflito por interesses particulares de uma família ou outra pode ser amenizado quando os critérios do programa forem desenhados com este objetivo.

Considerar as especificidades de cada território/comunidade também é um fator determinante para a construção coletiva do programa, maior adesão dos beneficiários e redução dos impac-tos negativos apontados no presente estudo. Nesse sentido, a utilização dos Planos de Vida permitirá melhor compreensão das demandas específicas e foi apontado pelas lideranças como um instrumento norteador de todas as ações a serem planejadas e executadas nos territórios.

É de extrema importância o estabelecimento de canais de constante diálogo com a população, que permitirão orientações sobre as variadas temáticas relacionadas ao programa de transfe-rência de renda, assim como cursos e capacitações em temas como gestão financeira, adminis-tração e contabilidade. Há uma preocupação constante de que esse recurso possa ser utilizado nas melhorias para as comunidades em uma perspectiva de médio e longo prazo, não apenas com bens de consumo superficiais.

A autonomia das comunidades também é um tema tratado pelas lideranças e está diretamente vinculada às capacitações técnicas. Ou seja, os saberes e as capacidades locais devem ser va-lorizados para a consolidação e implementação do programa propiciando a autonomia desses atores na construção e nas tomadas de decisões, uma vez que estes são os protagonistas dos processos em curso.

Apresentação de TODAS as oportunidades e não só algumas

Levando em consideração que partiremos da concepção do programa desde seu início, a cons-trução em conjunto com as comunidades permite que se parta de um universo infinito de possibilidades de desenho programático. Entendemos pela narrativa dos entrevistados comu-nitários que conhecerem todos os caminhos e possibilidades de forma transparente, não sendo privados de alternativas, ou tutorados, é uma oportunidade de construção de capital humano muito importante e de valor simbólico para as comunidades. Além disso a possibilidade de serem implementadores, executores, gestores diretos do programa, ainda que assessorados, eleva de forma significativa o valor simbólico do programa em si.

Um risco que encontramos a essa possibilidade é justamente a influência de atores externos no processo, que podem vir a ter conflitos de interesse com o uso do recurso de forma 100% autônoma. É importante ressaltar nesse sentido que o superficiário que recebe destinação de royalties não está recebendo uma doação, auxílio ou assistencialismo, e sim uma indenização por direito. A construção dessa narrativa ao longo do processo é um diferencial que pode im-pactar positivamente fatores de dependência, como mencionados no estudo.

As lideranças entrevistadas, únicas com conhecimento da possibilidade de construção do pro-grama, já possuem suas primeiras opiniões, porém sem ainda ter a oportunidade de conhecer a totalidade das alternativas, o que pode ocasionar em decisões por antecipação, um risco à construção por consenso consciente. No entanto, as falas orientam para um caminho de diminuição das desigualdades e de autonomia da gestão financeira, dados que podem vir a contribuir com o desenho do objetivo do programa em si, por exemplo.

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Lista de entrevistados

Alberto julie Monteiro AragãoGerente de Relações Comunitárias da MRN

Claudinete Colé de SouzaPresidente da Associação das Comunidades Remanescentes de quilombos do município de Oriximiná (ARQMO)

Gerson OliveiraLiderança da Associação das comunidades remanescente de quilombos do Erepecuru (ACORQE)

jonas Gebara Muraro Serrate CordeiroAssistente de Projetos - Imaflora

Marcília Adão CordeiroLiderança da Associação Mãe Domingas

Manoel Lucivaldo SiqueiraLiderança da Associação das comunidades de quilombo de Alto Trombetas 2 (ACRQAT)

Rogério RodriguesConsultor especialista - Equipe de Conservação da Amazônia

Rozeni SilverioLiderança da Associação Mãe Domingas

Notas

1. Todas as resistências foram vencidas graças ao trabalho de auto-demarcação das terras pelas associações, com apoio da Paróquia de Oriximiná, do Ministério Público e do Centro de Estudos e Defesa do Negro no Pará, além da Comissão Pró-Índio, conforme dados da pesquisadora Lúcia Mendonça Morato de Andrade

2. O que se constata, portanto, é que a “propriedade coletiva” não é simples espelho do “território coletivo”, mas articula concepções diversas. Sua constituição envolve adaptações sociopolíticas no âmbito das comunidades quilombolas e é influenciada por uma gama variada de agentes externos (aliados e opositores) (ANDRADE, 2015).

3. Bioma é o conjunto de seres vivos, flora e fauna, que habitam ou habitavam um determinado ambiente. Pode ser empregado em múltiplas escalas, referindo-se desde o conjunto de organismos em um habitat particular até o conjunto de todos organismos da Terra, a biota que compõe a biosfera.

4. O Índice Gini é representado numericamente por uma variação de 0 a 1, sendo que 0 equivale a situação de total igualdade, ou seja, todos têm a mesma renda, e o valor 1 significa completa desigualdade de renda.

5. O Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (Cadastro Único) é um instrumento que identifica e caracteriza as famílias de baixa renda, permitindo que o governo conheça melhor a realidade socioeconômica dessa população. Nele são registradas informações como: características da residência, identificação de cada pessoa, escolaridade, situação de trabalho e renda, entre outras. O Cadastro Único se tornou o principal instrumento do Estado brasileiro para a seleção e a inclusão de famílias de baixa renda em programas federais, sendo usado obrigatoriamente para a concessão dos benefícios do Programa Bolsa Família, da Tarifa Social de Energia Elétrica, do Programa Minha Casa Minha Vida, da Bolsa Verde, entre outros. Também pode ser utilizado para a seleção de beneficiários de programas ofertados pelos governos estaduais e municipais. Por isso, ele é funciona como uma porta de entrada para as famílias acessarem diversas políticas públicas. Ver http://mds.gov.br

6. Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) - associação civil sem fins lucrativos que busca influenciar as cadeias produtivas dos produtos de origem florestal e agrícola; colaborar para a elaboração e implementação de políticas de interesse público e fazer, de fato, a diferença nas regiões em que

atua, criando ali modelos de uso da terra e de desenvolvimento sustentável que possam ser reproduzidos em outros municípios, regiões ou biomas do País.

7. “O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) oferece alimentação escolar e ações de educação alimentar e nutricional a estudantes de todas as etapas da educação básica pública”. Mais informações sobre o programa em https://www.fnde.gov.br/programas/pnae.

8. As teorias sobre a lógica da escassez econômica se iniciam com os estudos de Buckminster Fuller, que nos anos 1970 compreendeu que a humanidade havia chegado ao seu ponto de equilíbrio e suficiência entre produção e consumo. Posteriormente a pesquisadora Lynn Twist encaminhou a questão para compreender como reagimos à lógica da escassez em nossos hábitos de consumo.

9. De acordo com o Diário Oficial da União, no ano de 2019 o salário mínimo no Brasil está definido em R$ 998,00. Mais infomações disponíveis em http://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/57510734/do1esp-2019-01-01-decreto-n-9-661-de-1-de-janeiro-de-2019-57510684

10. Dados levantados dos endereços abaixo em janeiro de 2019. Disponível em: http://www.oriximina.pa.gov.br/public/storage/oriximina/editais/20160520194211_1719AMPLIACAO%20da%20Rede%20de%20Saude%20Urbana.pdf e http://cnes.datasus.gov.br/pages/estabelecimentos/consulta.jsp; Informações confirmadas a partir de cruzamento com Google Maps.

11. Dados coletados em pesquisa de campo realizada em Janeiro de 2019.

12. Programa criado pela Prefeitura de Oriximiná com a finalidade de realizar a implantação do Plano Municipal de Saneamento Básico. Articula instrumentos e iniciativas voltadas ao fortalecimento da gestão ambiental no município, incluindo a recuperação máxima dos materiais recicláveis, a logística reversa, a compostagem orgânica, a educação ambiental e a comunicação social entre o poder público, instituições parceiras, associação dos catadores e a população de Oriximiná.

13. Em 2019 o IPS está em estudo para a implementação em parceria com o Programa Territórios Sustentáveis nas comunidades quilombolas. O levantamento dos dados será realizado por consultores do próprio território e coordenados pela Fundação Avina.

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