3 - Contextualização Existencial e Historico-social Do Sagrado

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    C u l t u r a R e l i g i o s a

    Unidade 3

    Contextualizao existenciale histrico-social

    do Sagrado

    A alma essa coisa

    que nos perguntase a alma existe.(Mario Quintana)

    Prof. Camilo de Lelis, telogo.Departamento de Cincias da Religio PUC Minas

    Da Experincia Humana Experincia de Deus

    Neste momento precisamos contextualizar a questo religiosa no seuaspecto existencial, ou seja, naquilo que se refere nossa existncia. Casocontrario a religio no teria pega na realidade e no poderia acrescentarnada ao ser humano. Vamos entrar agora no nascedouro da experinciareligiosa, nas verdadeiras origens do sagrado.

    I Experincia HumanaMuitos fazem da vida

    uma existncia,como se existir

    fosse viver!

    A palavra existncia mostra o sentido e direo de toda vida presenteem nosso planeta. Ex-istirsignifica sair para fora revela o movimento de todaa natureza que de sair, desabrochar, crescer e ser. Uma planta est saindo

    assim como um gavio e uma pessoa em processo de maturidade. A vida

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    movimenta-se de dentro para fora em uma grande dana de revelao etransparncia.

    A partir da existncia precisamos refletir sobre a aventura do serhumano de experimentar a Deus e a sua prpria existncia. Nossa reflexocomea a partir da experincia humana, que consideramos ser a experincia

    de base para toda realidade da experincia de Deus.

    Experincia

    Nossa primeira ocupao ser entender o significado da palavraexperincia:

    Ex peri ncia

    poderia ser entendido como sair para aprender fora, ou seja, seria a

    maneira ou forma prpria do ser humano de sair (existncia) com afinalidade de aprendizado. A expresso sair aponta para um movimento outrabalho que exige esforo e luta. Esse movimento demarca um novopermetro ou perodo que est fora daquilo que conheo.

    Assim podemos dizer que a experincia um movimento deaprendizado fora daquela rea que domino.Essa sada, ao mesmo tempo em que apresenta um perigo ou risco (pois aexperincia pode dar errado ou no se concluir), se torna tambm umaoportunidade de especializao e aprofundamento em uma rea antesdesconhecida.

    A pergunta que surge agora : qual o jeito humano de sair paraaprender fora? Um cachorro pode dar cabeadas na rua e voltar maisesperto para seu reduto. Mas o ser humano tem um jeito prprio deaprender que marca profundamente sua existncia na histria. Destacamos,ento, as duas dimensesdo jeito humano de fazer experincia, ou seja,de aprender.

    Dimenso relacional

    A dimenso relacional o primeiro jeito do ser humano de fazerexperincia. a dimenso de relao com o mundo, com o grupoe com oindivduo.

    Na relao com o mundoacontece o contato com a natureza e comtodos os seus elementos. Pode ser a relao com a gua ao ser ingerida ouao percorrer o corpo numa ducha refrescante, como ato de comer oucontemplar um lindo pr do sol, como o simples ato de respirar.

    A relao com o grupo vai se dar nas diversas interaes quedemonstram um sentido de pertena ao mesmo. Assim muito importante apertena a um grupo de voluntrios, a uma famlia, a um grupo de pessoasque gostam da poesia de Fernando Pessoa, a uma torcida de futebol ou at

    mesmo ser contado como habitante de uma determinada cidade. Essa

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    relao com grupos muito importante para o ser humano e leva a vriosaprendizados. H at mesmo uma necessidade desse tipo de relao.

    J a relao com o indivduoacontece de forma especfica e unitria.A pessoa se relaciona com um determinado membro de uma famlia ou comum dos seus colegas em uma grande sala de aula. Essa relao acontece

    de forma individual e muito importante para o desenvolvimento social daspessoas.

    Dimenso pessoal e subjetiva

    Essa segunda dimenso a expresso mxima da interioridadehumana. a dimenso dos desejos, da utopia e dos projetos individuaisque cada um trs dentro de si. Essa dimenso intra, ou seja, um

    movimento interior que faz de cada pessoa um ser nico e indecifrvel.Esse mistrio da interioridade humana se expressa em um movimentopendular entre a subjetividade e a intersubjetividade. Existe portanto ummovimento da pessoa consigo mesma e tambm com a interioridade deoutra pessoa. A relao entre subjetividades se coloca como uma das maisprofundas da vida humana. Ela marca toda a existncia e pode levar aexperincias determinantes para a felicidade humana. Embora esse nvelde relao acontea de forma sutil e menos explcita, sua importncia fundamental no aprendizado humano.

    Resumindo assim que o ser humano faz experincia: na dimenso relacional com

    o mundo, o grupo e o indivduo; e tambm na dimenso pessoal de suainterioridade. Chamamos isso de dimenso adextra e adintra do serhumano. Dimenso para fora da pessoa (adextra) e para dentro (adintra).Esse o jeito humano de sair para aprender fora e de alcanar amaturidade.

    Conseqncias da Experincia Humana

    Essa grande experincia humana vai gerar uma nova conscincia napessoa humana. Vai gerar uma maturidade e levar a uma grande tomadade conscincia na existncia humana. Ao fazer uma boa experinciahumana surge a conscincia das necessidades bsicas e da trplicelimitao, que prprio de todos, a saber:

    Necessidades bsicas

    O ser humano tem necessidades bsicas que so fundamentais para amaturidade humana. Podem ser as necessidades fsicas de comer bem,

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    hidratar, exercitar o corpo, etc. Podem ser as necessidades psquicas de sentir-se bem e de conseguir lidar com os desafios da vida. Podem ser asnecessidades scio-culturais de organizao e cidadania. Podem ser,finalmente, as necessidades espirituais e religiosas de esperana e valores quenorteia a existncia humana. Todas essas necessidades so fundamentais

    para uma existncia madura e feliz. A Experincia humana ajuda a tomarconscincia disso e leva a um maior cuidado consigo mesmo e com os outros.Depois vem a conscincia da nossa Trplice limitao.

    Trplice Limitao

    A conscincia dessa trplice limitao resultado de um trabalho intensode experincias que humanizam e deixam as pessoas conscientes de seupapel na existncia humana.

    Finitude

    A conscincia da finitude humana surge a partir de uma boa experinciahumana, ou seja, quando se vive profundamente a dimenso relacional e adimenso pessoal. Essa conscincia importante por que ajuda a perceberque no somos perfeitos, ajudando assim a ter um maior equilbrio. importante saber que as coisas tm um fim e que essa limitao deve sertrabalhada.

    Fragmentao

    Depois temos a conscincia da fragmentao que deixa o ser humanosempre com a sensao de no estar completo. Nunca pode estartotalmente em algum lugar ou atividade. Sempre ser um ser que busca atotalidade.

    Falta de Sentido

    Finalmente vem a conscincia da falta de sentido e que prprio do serhumano. O nico animal que precisa de sentido o homem. Nos animaisbasta ter o que comer e beber, mas com o ser humano diferente: mesmoque no lhe falte dinheiro, emprego, famlia, amigos e tudo mais, ele vaiprecisar de um sentido para lidar com tudo isso. A partir da experinciahumana essa conscincia vem tona e inicia-se a busca do sentido.

    ResumindoDefinimos ento a Experincia Humanacomo um jeito prprio de sair

    para aprender fora, ou seja, na dimenso relacional e pessoal. Entendemosainda que essa sada leva a pessoa tomada de conscincia de sua trplice

    limitao e conseqentemente inicia-se o processo da maturidade humana.Visto isso precisamos entender o que Experincia de Deus.

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    II Experincia de Deus

    Quem Deusna sua ltima profundidade,

    s podemos aprend-loa partir da experincia do amor!

    (Leonardo Boff)

    Se Experincia humana o jeito prprio da pessoa sair para aprenderfora, experincia de Deus seria o jeito do ser humano de sair para aprendercom o mistrio, que em ltima instncia Deus mesmo.

    Vamos ver o que uma verdadeira Experincia de Deus e como faz-la.Para isso vamos enumerar suas principais caractersticas e ver as

    implicaes das mesmas na vida humana.

    Caractersticas da Experincia de Deus

    1 caracterstica

    D-se na Experincia Humana

    Toda Experincia de Deus vai ter como base e sustentao aExperincia Humana. Isso quer dizer que se uma pessoa tem umaExperincia Humana desequilibrada, tambm sua experincia comDeus vai ter algo de desequilbrio. Isso por que quem faz aExperincia de Deus so pessoas com suas realidades humanas eexistenciais. Se um engenheiro, por exemplo, faz o alicerce de umprdio de forma desajustada, podemos certamente esperarproblemas com a segurana e estabilidade dos apartamentos. Masno Deus que toca o ser humano e Ele no perfeito e poderoso?poderia voc argumentar. Sim, Deus poderoso, mas Ele no anulao que fez no ser humano, ou seja, no violenta a natureza e aliberdade de cada um. A dimenso do crescimento e da maturidadepertence esfera humana, pertence responsabilidade do indivduo.Assim, na experincia judeu-crist, a ordem dada humanidade :crescei e multiplicai!

    Portanto uma boa Experincia Humana j prepara a pessoa paraa Experincia de Deus. A duas realidades esto inter-ligada e soco-dependentes. Percebemos ento, que por trs de muitos erros eexageros religiosos est uma Experincia Humana fraca e tambmimatura.

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    2 caracterstica

    Sacia as necessidades bsicas

    A Experincia de Deus vai de encontro com nossas necessidadesmais bsicas. Ela ajuda a saciar as necessidades humanas e deixama pessoa mais inteira e realizada. At mesmo as necessidadesfsicas e biolgicas podem ser afetadas pela Experincia de Deus.Pessoas que possuem uma f sentem um reforo na sua defesaimunolgica e at mesmo se recuperam mais rpido de cirurgias edoenas. As pesquisas que comprovam essa realidade so muitas erevelam essa ligao profunda entre a religiosidade e o corpo.Tambm nas outras reas existe essa relao profunda, ou seja aExperincia de Deus vai de encontro ao que existe de mais bsico na

    pessoa.3 caracterstica

    Sacia a Trplice Limitao

    A Experincia de Deus vai tambm saciar nossa trplice limitaoindo de encontro a cada uma delas..

    Na finitude nos deparamos com nosso limite e com o fim ouinconstncia de tudo. Deus se apresenta como o Infinito e fazpropostas de eternidade, ou seja,mostra um amor e uma promessade vida que rompe todos os limites. Nessa experincia a pessoa sesente consolada e bebe do infinito alargando assim seushorizontes.

    Na fragmentao o ser humano se depara com a inteireza ecompletude de Deus. Ento a Experincia de Deus vai preencher(sem eliminar) a fragmentao e a falta de inteireza da pessoa. Poressa experincia possvel ir alm de nossa disperso interior ebuscar a completude de vida.

    Na falta de sentidoa Experincia de Deus vai colocar a pessoaem contato com uma esperana e um sentido que s pode vir de

    Deus. Nessa experincia a pessoa se torna capaz de dar sentido atoda e qualquer realidade, at mesmo na morte.

    4 caracterstica

    um processo contnuo

    A um processo que no deve terminar nunca, ou seja, devedurar enquanto a pessoa viver. A vida humana precisa dessaexperincia para ser mais intensa e chegar na felicidade.Poderamos cham-la de converso contnua, uma vez que seuprocesso leva maturidade ou santidade.

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    5 caracterstica

    uma aventura

    Aventura como uma experincia de amor e de relacionamento.Tambm a Experincia de Deus um caminho que tem surpresas,adaptaes, planejamentos, conseqncias e at mesmo perigos.Como qualquer aventura preciso se preparar e contar com a ajudade pessoas mais experientes. Esse aprendizado que vem pelaExperincia de Deus esta memorizada nas histrias e nasespiritualidades das religies e dos grandes msticos.

    6 caracterstica uma experincia comprometida

    A Experincia de Deus diferente de vivncia de Deus. AExperincia de Deus, segundo Jung Mo Sung, tem que modificarnossa vida.

    importante que estes aspectos esteja presentes para que aexperincia seja real e altere significativamente a nossa existncia. Eo que seria ento vivncia de Deus? quando somos tocados porDeus e sentimos algo de diferente acontecendo. Este toque pode sedar em uma celebrao religiosa, em um passeio pela natureza, emmeio a uma orao ou diante de uma situao dramtica na vida. Apessoa se d conta de que recebeu uma graa ou foi iluminada pelapresena de Deus. Isso no uma Experincia de Deus, mas umavivncia de Deus. Todos podem ter vivncias de Deus, at mesmono nvel inconsciente como o caso do ateu, mas a Experincia deDeus supe aqueles trs aspectos nomeados por Jung Mo Sung eum comprometimento com a f.Vamos dar um exemplo: um dia voc sentiu vontade de fazer este

    curso de contbeis, foi tocado pelo testemunho de um profissionalda rea ou desenvolveu aos poucos uma paixo pelo curso. Entovoc foi luta. Estudou, fez vestibular e se matriculou. Hoje voc queest no quinto perodo de Cincias Contbeis j est fazendo umaexperincia de contbeis, est envolvido e investe no curso, faztrabalhos e dedica tempo, est presente nas provas presenciais esem dvida tudo isso modificou sua vida. Isso equivale,analogicamente, Experincia de Deus. Mas existem pessoas queficaram apenas com aquele primeiro desejo de fazer o curso. Muitospodem at passar a vida sentido vontade de fazer contbeis, masnunca efetivam esse desejo ou pagam o preo para alcan-lo. Isso

    uma vivncia de contbeis.

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    Assim a Experincia de Deus supe um itinerrio, um caminhoreligioso e de f que leva maturidade espiritual.

    Concluindo podemos dizer que a Experincia de Deus profundamente humana e mostra que o relacionamento com o

    sagrado essencial. A Experincia Humana e a Experincia de Deusmostram que o fenmeno religioso est contextualizado na existnciahumana concreta e por isso no deve ser menosprezada oubanalizada como uma inveno das religies.

    Da subjetividade coletividade: o histrico-social.

    O ser humano um animal que tem sede do infinito. Sua fome no sde po e cincia. Ele consome smbolos, dana seus anseios, constri templose organiza grupos religiosos. A sociologia nunca encontrou, desde os perodospr-histricos, um povo ou nao sem religio. Encontrou povos que notinham uma filosofia, um exrcito organizado e nem mesmo uma escritaestabelecida. Mas todos tiveram manifestaes religiosas das mais simples asmais complexas possveis. Por isso, entre os smbolos, a religio tem ocupadona histria da humanidade posio de relevncia. Desde as tribos humanasmais simples nas suas estruturas sociais at as sociedades super modernas oshumanos vm tecendo redes maravilhosas de smbolos religiosos.

    O ser humano como um espelho que reflete a luz infinita que todomistrio. A fonte da luz permanece sempre potente e irradiante. Mas o espelhohumano que a reflete, passa por constantes fundies com as complexassituaes scio-culturais e antropolgicas. Assim, toda manifestao vemmarcada pelo seu contexto histrico-social e com uma certa dose de mutao.

    A busca do sagrado sofre, alm do contexto cultural, mutaes de ordemtemporal e de momentos existenciais da humanidade. Um olhar atento podenos revelar que a busca do sagrado passou por fases ligadas ao seu contextohistrico e mentalidade de cada poca. Analisar o sagrado nestes momentoshistricos ajuda a pensar as experincias humanas e o caminho pelo qual rumaa humanidade. J observamos na reflexo sobre a experincia humana e a

    experincia de Deus que a dimenso religiosa faz parte da estrutura profundado ser humano. Assim, a negao ou represso dessa dimenso religiosaultrapassou o nvel simplesmente individual e atingiu toda a coletividade. Dealguma forma toda uma nao ou civilizao podem sentir os efeitos dessesprocessos de busca ou rejeio do sagrado.

    Vamos analisar alguns perodos da histria da busca do sagrado paraentendermos melhor os acontecimentos de hoje. Seria ingenuidade pensar ofenmeno religioso e a busca do sagrado hoje sem compreendermos seucontexto histrico-social e sua memria antropolgica. Como mtodo didticoe simblico usaremos as mudanas das estaes do tempo como metfora dasmudanas na busca pelo sagrado. Vero, inverno e primavera so imagensricas e carregadas de meta-linguagem, possibilitando uma melhorcompreenso do complexo movimento de busca do sagrado no Ocidente.

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    a) A luminosa estao do vero

    J bate o sino, bate na catedral

    E o som penetra todos os portaisA igreja est chamando seus fiis

    Para rezar por seu SenhorPara cantar a ressurreio.

    ...J bate o sino, bate no coraoE o povo pe de lado a sua dor

    Pelas ruas capistranas de toda corEsquece a sua paixo

    Para viver a do Senhor.(Milton Nascimento)

    A estao do vero marcada pela luminosidade, pelo calor e porexpressivas manifestaes de festa e divertimento. No vero as pessoas ficammais extrovertidas, animadas e buscam atividades mais explcitas.

    A busca do sagrado, em um primeiro momento, mostra os sereshumanos envoltos por uma abundante luminosidade. Deus estava to presentee integrado na realidade social e pessoal que nada escapava a sua irradiao.Tudo era sagrado. O cosmo e a sociedade cantavam louvores divindade quetudo habitava.

    No mundo grego a funo sagrada estava presente no exerccio do paide famlia, do rei no estado e do guerreiro na guerra. Assim na Grcia antigaeram a religio e o estado no s intimamente ligados, como eram uma scoisa, teciam uma inseparvel unidade, diante da qual uma religio individualdificilmente surgiria, mesmo se o estado no a atacasse diretamente... Apoloem Delfos, que estava em pleno acordo com a autoridade do estado, atribua-lhe autoridade divina.(M. Nilson)

    Tambm o mundo romano era habitado pelo sagrado e pela religio. Noimprio romano a religio permeava o Estado, a tal ponto que seus sacerdoteseram como funcionrios dos atos cultuais, que fazem parte do mundo cvico noqual era exigido de todos a participao. preciso lembrar ainda que toda estaestrutura romana havia sido inspirada nas monarquias absolutas e teocrticasdo Egito, da Sria e da sia Menor.

    Na Idade Mdia os imperadores eram sagrados pelos papas, pois oEstado estava submetido esfera religiosa. A Bula unam Sanctam do papaBonifcio VIII sintetiza isso dizendo que H duas espadas: a espiritual e atemporal... Ambas as espadas esto no poder da Igreja, a espiritual e amaterial. necessrio, na verdade, que a espada material esteja sob a espadaespiritual e que a autoridade temporal se submeta espiritual...(DS 873).

    At o pai da poltica moderna secular, Maquiavel, recomenda aosgovernantes de conservar na sua pureza a religio e suas cerimnias ealimentar o respeito devido a sua santidade, porque no h sinal mais certo daruna de um Estado que o desprezo do culto divino. A prpria cinciaencontrava lugar para Deus em seus tratados cientficos e nas suas mais

    novas descobertas. No existia nem mesmo atesmo nesse perodo. assimque Pascal temeu pelo terrvel silncio dos cus, pois sua matemtica fria no

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    conseguia apagar-lhes as pegadas de Deus. Desde o universo de Ptolomeu,que atingia a distncia de 80 milhes de quilmetros de raio e j maravilhavaos antigos at os tratados astronmicos da Escolstica da Idade Mdia seconservou a presena do mistrio na criao.O sagrado era experimentado como algo tremendo e fascinante, deixando um

    ambiente de respeito por todo lugar. O homem abismava-se e dissolvia-se nasua pequenez diante do sagrado. O homem vivia fascinado por este mistrio,algo que pode ser exemplificado em um dos sermes de M. Lutero: Assimacontece com a venerao de um lugar santo. Est misturada de temor e, noobstante, longe de nos afugentar, aproximamo-nos ainda mais.(citado por R.Otto). Um poeta de hoje diria: Diante Dele, eu me arrepio; para Ele sou atrado!Agostinho de Hipona (conhecido como Santo Agostinho) experimenta isso emum sentimento que um misto de medo e seduo: Que aquilo que melampeja e me fere o corao sem lesion-lo? Horrorizo-me e ardo. Horrorizo-me, enquanto lhe sou dessemelhante. Ardo, enquanto lhe sou semelhante.(Confisses IX, 9, 1)

    Percebe-se ento que tudo que existia refletia esse clima encantado pelasforas divinas. O sagrado habitava as dimenses da macro-histria dahumanidade, bem como da micro-histria da caminhada de cada pessoa. Todaa realidade era iluminada e aquecida pela presena incontestvel de Deus. Aviso da famlia era sagrada e tinha em Deus seu nascedouro. A educaoprivada respirava o sagrado e criava modelos para viver neste mundo de Deus.Desde a educao da criana nas camadas mais profundas da psique humanaat as msicas e festas populares organizadas pelo povo e pelo Estado. Tudoera sagrado. No seu poema noturno, Carlos Drummond de Andrade nos duma amostra desse universo educacional:

    Abena papai, abena mame.Deus te abenoe. No v esquecer de arrear os dentes

    e lavar os ps antes de deitar.Sim senhora.

    E no v dormir sem rezar um padre-nosso,trs ave-marias, uma salve-rainha.

    Rezo....

    Dorme bem, meu filho. No fique pensandobobagens no escuro. O mais com Deus.

    Mas fico.

    Abena papai, abena mame.J te dei abena. Vai dormir.No tenho sono bastante para cochilar.Espera quietinho que o sono vem.

    Vou contar estrela. No.Conto passarinho que j tive ou tenho ou terei um dia.

    Conto, reconto vistas de cigarros, minha coleo fraca.Nomes de pases. 27 s. Ai, essa geografia.

    Nomes de meninas. Todas Lurdes,Carmos, Rosrios, fao confuso.

    Dorme sem pensar bobagens.

    Mas estou pensando. Penso mulher nua.

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    Penso na morte. Se eu morrer agora?Sem ver mulher nua, s imaginado?Morro, vou pro inferno. Talvez no.

    Meu anjo me puxa de l, leva ao purgatrio.A cama rangendo.

    Que noite mais comprida desde que nasci.Viajando parado.O escuro me leva sem nunca chegar.

    Sem pedir abena como vou saber que no vou sozinho?Que o mundo est vivo?

    Abena papai abena mame.Mas falta coragem e peo pra dentro.

    Mas dentro no responde.(Carlos Drummond de Andrade)

    Por isso a linguagem do dia-a-dia era impregnada de religiosidade. Um

    exemplo a palavra A deus que significava uma saudao de acolhida paraas pessoas que no se conhecia. Era uma saudao ao mistrio da pessoa,como que para limpar o outro de todo o mal, ou seja, lhe entrego a Deus queo conhece por inteiro... Essa e tantas outras palavras usadas at hojeexpressam esse universo religioso presente na comunicao familiar e social.

    Portanto, no perodo que tudo era sagrado, no vero da manifestaodo sagrado, toda a realidade respirava Deus. Esse perodo, com elementospositivos e outros negativos, marcou fortemente o Ocidente at o incio doperodo moderno. A partir da nuvens comeam a se formar no horizontemostrando a proximidade do inverno. O sol, aparentemente absoluto dosagrado, comea a ser irradiado e encoberto pela grande onda secularizantedo moderno racionalista.

    b) A fria estao do inverno

    O tempo em que se podia dizer tudo ao homemcom simples palavras

    quer sejam teolgicas ou piedosas j passou.

    Assim tambm j passou o tempo da interioridade e da conscincia,o que podemos resumir nas palavras:

    passou o tempo da religio.(D. Bonhffer)

    As nuvens encobrem o cu e ofuscam o brilho do sagrado. O olhar nov mais o sagrado, mas se fixa, pela curiosidade cientfica, na obra da tcnica.O sagrado deflorado pela insacivel voracidade analtica cientfica dohomem. Pascal j se apavorava com a possibilidade da invaso da geometriapara dentro do espao-tempo sacralizado pelas religies e pelos mitos. As

    cincias deixam espaos vazios que apavoram. Para Gusdorf o mundo nofala mais ao homem, o cu no ressoa mais com esta harmonia das esferas

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    celestes... Os astros, outrora divinos, no passam de pedaos de matria inerteem movimento na imensido de um espao sem limite, obrigados a seguir... oclculo de Newton.

    O olhar humano comea a secularizar os espaos sagrados dos cuscom a matematizao de suas distncias. As cincias com seus gigantescos

    laboratrios e sua racionalizao comeam a decifrar toda a realidade e aexpulsar o mistrio da vida humana e social. Aos poucos as cincias voocupar todos os lugares possveis. As pinturas sagradas e esculturas religiosasdeixam o espao das igrejas para se instalarem nos museus.

    A cidade sagrada comea a se tornar secular. A igreja j no mais ocentro das ruas e nem os sinos marcam mais o dia-a-dia das pessoas. A casa,recinto da intimidade e dos primeiros valores sagrados, invadida pelo telefonee a tv que trazem o mundo para seu interior. Assim tambm a arquitetura, acomunicao, a msica e tudo mais vo perdendo as caractersticas dosagrado.

    O cogito ergo sun penso, logo existo de Descartes coloca o

    pensamento e a racionalidade no altar principal da realidade humana e social. verdadeiro somente o que pode ser medido e pesado. O mistrio do sagrado deixado de lado ou eliminado da vida social. Depois o ataque ao sagrado vaiganhar fora e chega ao seu extremo com K. Marx, Freud e Nietzsche. Comeles o sagrado perde respectivamente espao na sociedade, na conscincia ena histria. Para Marx a religio o pio do povo, para Freud uma doenaou infantilismo e para Nietzsche j pode ser anunciada a morte de Deus.Tambm quase todos os antroplogos dessa poca sustentavam ser a freligiosa uma iluso e que seria no futuro extinguida.

    Todo esse processo de racionalismo e desencantamento com oreligioso fez o sagrado eclipsar e quase se apagar. Parece haver umadeclinao da religio e a cincia passa a explicar toda a realidade. Tudo issodesencadeia uma crise tica e de valores marcada pelo abandono do sagrado.

    At o final dos anos 70 a dessacralizao se manifestou de forma forte ebem racional. Parecia que o sagrado havia sido extinto ou havia perdido suasforas. O perodo moderno e a modernidade tentaram eliminar definitivamente,com a razo cientfica, o espao sagrado de todas as dimenses da vidahumana. Os sinos da razo anunciam a morte do sagrado. Mas o sagrado vairessurgir das cinzas (para surpresa de muitos) e voltar com um novo vigor,como que em uma vingana tardia. O inverno perde as foras e j parecesurgir a primavera com novos brotos e promessas de frutos mais maduros.

    Entramos assim na terceira fase do sagrado e em um momento de sntese dogrande movimento do sagrado na histria.

    c) A nova estao da primavera

    Que somos nssem o socorro

    daquilo que no existe?(Valry)

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    Em nvel pessoal e social, o preo da represso a exploso. A

    racionalidade do perodo moderno julgou pode eliminar o espao sagrado epreench-lo com seus clculos frios e perfeitos. O sagrado, e com ele Deus,morreu na anlise equivocada de filsofos e cientistas sociais. Por isso ele

    ressurge e com mais fora ainda. Acontece o milagre da primavera!O sagrado, de alguma forma, permaneceu travestido na sociedade, poistodo ser humano tem fome do infinito e de transcendncia. As manifestaesreligiosas foram confinadas em pequenos espaos ou emolduradas de forma atirar toda a sua fora sagrada. Mas a pequena chama permaneceu acessaaguardando a hora da vingana. O sagrado ressurge nos meios populares,mais intelectuais e at nas classes mais ricas. Ele vem em socorro do homemracional e frio diante de um mundo que a razo pura no conseguiu humanizar.Muitos defensores da razo absoluta foram sacudidos pelas guerras eatrocidades provocadas por sistemas organizados e racionais. Diante daperverso da razo de muitos, o sagrado volta com novos paradigmas e mais

    atento aos problemas do homem da ps-modernidade. So movimentos,igrejas, grupos e encontros especficos que atualizam os antigos ensinamentosreligiosos.

    Surge at mesmo um sagrado libertador e contestador da ordemcapitalista que seduziria o prprio Marx. E assim em todas as reas o sagradoparece ressurgir e fazer movimentar o mundo. Afinal de contas no existe algono ser humano que no o deixa descansar? Os versos cantados por ChicoBuarque sero simples paixo?

    O que ser que me dQue me bole por dentro, ser que me d...

    O que no tem medida, nem nunca terO que no tem remdio, nem nunca ter

    O que no tem receita...

    O que no tem descanso, nem nunca terO que no tem cansao, nem nunca ter

    O que no tem limite.

    A estrutura do ser humano aberta ao sagrado e nunca poder serfechada por nenhum sistema ou conjunto de idias e prticas. Essa dimenso

    sagrada pode at mesmo aflorar de situaes angustiantes e dramticas.De qualquer forma o sagrado ressurge, muitas das vezes, como respostaexistencial de felicidade. Acontece ento o encontro do sagrado com afelicidade. As novas flores marcam o terceiro perodo do sagrado na histria ena vida de muitos. a primavera que vem trazer novo alento e esperana. Osagrado sempre ser importante. Ele , no fundo, a presena de umaausncia. Viver con-viver com a perda. isto que nos torna belos: o olhar deeternidade.... (R.Alves).

    bonito que sejamos tocados pelo sagrado, pois ele que nos impele busca incessante de sentido para a nossa ao no mundo e na histria. Como

    Fernando Pessoa ousamos perguntar: sem a loucura do sagrado... que ohomem mais que besta sadia, cadver adiado que procria.O sagrado se torna

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    a referncia ltima da nossa vida. Assim, no podemos negar a fora que temo sagrado na vida humana. Todas as tentativas de eliminar o sagradorevelaram-se impotentes ante a avassaladora sede de Deus que habita ocorao humano.

    So as experincias e a histria nos ensinando a conhecer os mistriosda vida.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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