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34 3 A leitura como produção de sentidos – análise de um encontro de leitura. Em março de 2000, iniciei, no “pré-comunitário” de Vila Isabel, o trabalho de formação de um grupo onde se experimentaria a prática de ler coletivamente. O curso pré- vestibular comunitário de Vila Isabel foi idealizado e é coordenado por Carlos, um ex-aluno do curso pré-vestibular da Mangueira, que conseguiu um ótimo auditório da Funlar (Vila Isabel) e um bom grupo de professores para realizar as aulas. A coordenação do curso estabeleceu como meta criar não apenas um pré-vestibular para “carentes”, mas um “pré- cidadania”. Por esse motivo, fui convidado para fazer os círculos de leitura, pois, segundo Carlos, “o círculo de leitura, além de ser útil para a prova do vestibular, ajuda as pessoas a se conhecer melhor, tornando-as informadas, participativas e críticas, e é disso que precisamos”. A preocupação em promover a cidadania e o reconhecimento da importância das atividades de leitura para atingir tal objetivo constituiu um indício interessante para uma investigação sobre as ligações entre o ato da leitura e a política. Nas palavras de Carlos, estava explícito que existia um isolamento entre os alunos, possivelmente herdado de suas relações sociais anteriores. Estas tendiam a inviabilizar a concretização, pelo menos imediata, da “filosofia” de um grupo de ação política comunitária, conforme o planejamento do coordenador do pré-vestibular. O público do curso é formado, em sua maioria, de jovens com idades acima de 19 anos, ex-alunos da rede pública de ensino e moradores da própria comunidade ou de bairros mais distantes. Uma grande parte do grupo trabalha durante o dia, em todos os dias úteis incluindo os sábados. Existe também um número significativo de alunos com idade acima dos 30 anos, que pararam os estudos após a conclusão do segundo grau.

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A leitura como produção de sentidos – análise de um encontro deleitura.

Em março de 2000, iniciei, no “pré-comunitário” de Vila Isabel, o trabalho de

formação de um grupo onde se experimentaria a prática de ler coletivamente. O curso pré-

vestibular comunitário de Vila Isabel foi idealizado e é coordenado por Carlos, um ex-aluno

do curso pré-vestibular da Mangueira, que conseguiu um ótimo auditório da Funlar (Vila

Isabel) e um bom grupo de professores para realizar as aulas. A coordenação do curso

estabeleceu como meta criar não apenas um pré-vestibular para “carentes”, mas um “pré-

cidadania”. Por esse motivo, fui convidado para fazer os círculos de leitura, pois, segundo

Carlos, “o círculo de leitura, além de ser útil para a prova do vestibular, ajuda as pessoas a

se conhecer melhor, tornando-as informadas, participativas e críticas, e é disso que

precisamos”. A preocupação em promover a cidadania e o reconhecimento da importância

das atividades de leitura para atingir tal objetivo constituiu um indício interessante para

uma investigação sobre as ligações entre o ato da leitura e a política.

Nas palavras de Carlos, estava explícito que existia um isolamento entre os alunos,

possivelmente herdado de suas relações sociais anteriores. Estas tendiam a inviabilizar a

concretização, pelo menos imediata, da “filosofia” de um grupo de ação política

comunitária, conforme o planejamento do coordenador do pré-vestibular. O público do

curso é formado, em sua maioria, de jovens com idades acima de 19 anos, ex-alunos da

rede pública de ensino e moradores da própria comunidade ou de bairros mais distantes.

Uma grande parte do grupo trabalha durante o dia, em todos os dias úteis incluindo os

sábados. Existe também um número significativo de alunos com idade acima dos 30 anos,

que pararam os estudos após a conclusão do segundo grau.

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Com essas informações, podemos desconfiar que esse comportamento de inibição e

isolamento é fruto das normas disciplinares, geralmente adquiridas nas escolas ou até em

instituições militares, e da imposição de valores individualistas e competitivos, feita pelo

mercado de trabalho.

Sendo assim, estruturei as atividades do semestre partindo do princípio de que a

leitura – entendida como produção coletiva de significados -- é uma forma importante de

resistência ao isolamento. Quando se percebem várias perspectivas simultâneas de

interpretação de um mesmo texto, filme ou qualquer outro objeto cultural, abre-se o

caminho para o diálogo, para o reconhecimento da importância da fala do outro e da própria

diferença do outro.

Com base nessa proposta, foram escolhidos textos que permitem uma maior

liberdade ao leitor e que abordam o tema do isolamento, relacionado às questões da

disciplina, do controle e da dominação da mídia. Paralelamente, podemos trabalhar com

uma outra hipótese: se os mecanismos de controle e disciplina, que existem em nossa vida

social, desde as instituições disciplinares, conforme nos mostrou Foucault, até o controle

global da mídia contemporânea, impõem determinadas formas de compreensão dos

discursos e da própria realidade, então, a abertura de diversas possibilidades significativas

põe em cheque a unicidade dessas formas impostas.

Para o primeiro encontro, tive a preocupação de tornar explícito o choque entre a ato

de construir significados aos textos e as limitações criadas pelas instituições disciplinares

tais como a escola. Assim, foram discutidos dois contos do livro Contos de amor rasgado1

de Marina Colassanti. Tais contos, por não seguirem a lógica, estimulam o leitor a buscar

vários caminhos de interpretação. Também assistimos o videoclipe da música Another brick

in the wall (Outro tijolo no muro). O clipe é rico em conotações sobre a sociedade de

disciplina, ao ponto de nos fazer confundir se aquele local era de fato uma escola, um

presídio, uma fábrica ou um quartel, em que as crianças marchavam até um gigantesco

moedor de carne. Trata-se de um trecho da ópera-rock, The wall2, cujo tema central é o

1 COLASANTI, Marina. Contos de amor rasgado.

2 The Wall, Filme dirigido por Allan Park com músicas do grupo Pink Floyd : 1982, EUA.

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isolamento; no trecho apresentado, o isolamento é produzido pela escola ao inibir a

capacidade criativa do aluno.

Antes do início da prática leitora, apresentei sua dinâmica: a leitura em voz alta do

texto, a execução da música ou a exibição do filme, imagem ou videoclipe são seguidos de

discussão, onde cada participante deve expor suas sugestões. Expliquei, também, o objetivo

inicial de exercitar a capacidade interpretativa, importante para a prova do vestibular e

principalmente para criar um espaço de diálogo sobre nossa realidade a partir de vários

pontos de vista.

O resultado da atividade foi positivo, porque os participantes, após um grande

envolvimento no jogo de interpretações dos contos e do vídeo, lembraram como a

liberdade de interpretar textos, em geral, criava problemas com os professores de suas

antigas escolas, que normalmente impunham as leituras “certas”. Outros afirmaram que

nunca tinham lido um texto daquela maneira, buscando vários significados possíveis para

as mesmas frases. Mas quase todos atribuíram sua inibição e medo diante da leitura à forma

com que os seus professores conduziam as aulas de interpretação de texto: ora fazendo da

leitura oral um castigo para os alunos que conversavam, ora zombando dos que liam com

dificuldade.

Essa atividade me conduziu a uma série de questões sobre a forma de recepção

habitual dos alunos, sobre a influência do perfil coletivo da prática leitora e a importância

política do discurso literário neste tipo de atividade. Refleti, ainda sobre a quebra de limites

entre a alta cultura e a cultura de massa, proposta pelos mais recentes estudos sobre a pós-

modernidade. O uso, por exemplo, do videoclipe -- espécie de ícone da mídia eletrônica

contemporânea -- como objeto de leitura ao lado do texto literário -- tipo de discurso que

tradicionalmente é considerado da alta cultura --, pode ser compreendido dentro de um

conjunto de práticas que estão transgredindo esses limites em nome de uma maior interação

entre arte, política e vida cotidiana.

Minhas reflexões levaram-me a analisar esse encontro de leitura da seguinte maneira:

primeiro, registrando como os alunos leram os textos e o videoclipe, isto é, como se

realizou a interação entre texto literário e leitor -- situação ampliada para a interação entre

telespectador e videoclipe --, e considerando esses processos de interação no plano coletivo.

O segundo ponto consiste em observações sobre o meu papel como mediador da atividade,

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destacando as minhas reações referentes a conceitos e até preconceitos relacionados ao ato

da leitura.

3.1Interação entre leitor e texto

Destacar a interação que alunos do curso de Vila Isabel vivenciaram com os textos

literários foi o primeiro passo que estou dando em direção a uma análise mais complexa

dos objetivos políticos dos cursos pré-vestibulares comunitários e do papel desempenhado

por novas formas de recepção comunitária, representadas, neste caso, pelos encontros de

leitura.

A surpresa, manifestada pelos risos dos participantes, logo após a leitura do primeiro

dos Contos de amor rasgado, “Enfim um indivíduo de idéias abertas”, e o estranhamento,

que eles sentiram no decorrer da atividade, demonstram que nunca tinham passado por uma

experiência desse tipo com a leitura. Porém, a liberdade provocada pela dinâmica da

atividade -- a busca constante de novos sentidos para os mesmos trechos e também a

inexistência de qualquer tipo de hierarquia na apresentação das interpretações --

transformou logo a supressa, o estranhamento e a timidez num interessante exercício de

mudança de perspectivas e afirmações.

Para melhor compreensão do processo de interação entre os leitores e os contos

selecionados do livro de Marina Colassanti, procurei dialogar inicialmente com os

conceitos e categorias da teoria do efeito estético de Wolfgang Iser. Acredito que essa

perspectiva teórica, por centrar-se na descrição e análise do ato da leitura, poderia auxiliar

tanto no entendimento do que acontece com os alunos durante o processo de ler, quanto na

análise das formas que realidades virtuais, emergidas no texto literário e sem equivalente no

mundo empírico, são apreendidas e assimiladas pelos leitores. E, a partir desse segundo

ponto, pretendo refletir sobre a relação que o ato da leitura de textos literários estabelece

com o contexto sócio-histórico no qual este foi produzido, divulgado e está sendo

apreendido por leitores, que, no nosso caso, são os alunos de um curso comunitário no

ambiente pós-moderno e neoliberal de uma importante metrópole latino-americana como o

Rio de Janeiro.

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Na tentativa de encontrar potencial político da teoria do efeito estético, resolvi

destacar, seguindo as considerações do próprio Wolfgang Iser, um pouco da sua história e

da sua relação com o contexto no qual foi elaborada.

3.2

Uma breve história da teoria do efeito estético

Devemos lembrar que o surgimento da teoria do efeito estético está atrelado, no plano

teórico, à querela de interpretações e, principalmente, no plano político, ao impacto da

rebelião dos estudantes nas universidades alemãs, durante os anos sessenta. A teoria do

efeito estético, dessa forma, é fruto das reflexões que Iser começou a formular no início na

década 1970 com a publicação do ensaio A estrutura apelativa do texto e foi de fato

apresentada na obra O ato da leitura: uma teoria do efeito estético3, publicada em 1976.

Porém, nessa análise, estou basicamente dialogando com a apresentação dos

pressupostos e fundamentos da teoria do efeito estético, que o professor alemão realizou no

VII Colóquio da UERJ em 19964, pois, nesse evento, Wolfgang Iser proferiu quatro

conferências abordando todas as passagens de sua produção teórica e, assim, a palestra

sobre a teoria do efeito estético identifica os seus principais aspectos e suas ligações com os

seus futuros estudos. Em outras palavras, resolvi iniciar o exame da teoria do efeito estético

a partir da versão de 1996, porque, nesta, Iser nos fornece um amplo panorama de sua

perspectiva teórica: vai desde o seu contexto histórico, passando por seus fundamentos e

apontando suas permanências e seus posteriores desdobramentos, em direção à

antropologia literária.

Conforme a conferência já citada, no fins dos anos cinqüenta e início dos sessenta, no

contexto histórico que propiciou o surgimento da teoria do efeito estético e da estética da

recepção, a herança cultural não estava mais inquestionavelmente a serviço da educação

3 ISER, Wolgang. O ato da leitura. São Paulo. Editora 34, 1996, 2v..4 Iser, Wolgang. Teoria da recepção: reação a uma circunstância história. In: ROCHA, João Cezar de Castro(Org) Teorias da ficção: indagações obra de Wolfgang Iser, p19-35.

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como antes, quando havia parâmetros únicos que a orientavam. Com isso, eclodiu o

conflito de interpretações, porque, após o questionamento da expectativa de interpretação

única e definitiva para as obras, criou-se a necessidade de se fundamentarem e explicarem

os pressupostos requeridos para interpretar textos. Esse esclarecimento dos pressupostos

ocasionou o que se conhece como conflito de interpretações, porque cada tipo de

interpretação buscava afirmar-se em detrimento das outras.

Nos anos sessenta, os pressupostos da interpretação, usados na Alemanha para

resolver a questão de como lidar com a herança cultural, buscavam a intenção do autor, o

sentido que este atribuiu ao texto, ou a mensagem da obra e seu valor estético, que era

convencionalmente reconhecido a partir do grau de reconciliação aplicado às

ambigüidades, diferenças de tropos e figuras, existentes no texto. Porém, a literatura

moderna demonstrou os limites desses pressupostos. As questões antes formuladas

apresentam-se historicamente limitadas a uma determinada concepção de arte. Dessa

maneira, as antigas questões serviram para apontar novas direções. A busca semântica da

mensagem originou a análise dos meios de construir e de articular o objeto estético. O

critério da conciliação de opostos, sempre vinculado ao valor da obra, levou à questão de

como as faculdades humanas são estimuladas e afetadas pelo texto literário durante o

processo da leitura. Sendo assim, as velhas respostas recebem funções imprevisíveis,

devido à frustração das expectativas dos leitores em relação às normas tradicionais de

interpretação, especificamente quando são aplicadas à arte moderna.

Paralelamente, Iser afirma que essa mudança na atitude frente à literatura tem origem

na rebelião de estudantes, no final dos anos sessenta na Alemanha. Naquele período, o

professor ainda era considerado o único possuidor da verdade, e seu discurso era de

autoridade, embora dissesse, muitas vezes, coisas bastante defasadas. E, além disso, os

mestres, muitas vezes, assumiram atitudes autoritárias perante os alunos, ao mesmo tempo

que continuavam ensinando conteúdos que os estudantes não desejavam e julgavam inúteis.

Naquela situação, o estudo da literatura também foi criticado pelos alunos que acreditavam

que esta disciplina poderia ser completamente abolida, pois eles viam a literatura apenas

como um instrumento para domesticar e disciplinar uma geração contestadora através do

uso da herança cultural da burguesia germânica.

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Em tal contexto, o reader-response criticism tornou-se uma tentativa de amenizar a

ampla e justificada insatisfação com o conteúdo e a forma do ensino dos departamentos de

literatura. Os estudos iniciados por Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser, na tentativa de

justificar que a literatura é útil à educação, provocaram, uma verdadeira mudança de

paradigma. A recepção do texto literário e seu efeito no leitor foram considerados questões

centrais em detrimento da tradicional preocupação com o sentido e a mensagem de uma

obra ou com as intenções do autor.

3.3 Assimetria entre o texto e o leitor -- princípios para investigação sobre aleitura de textos literários

A investigação sobre o que acontece ao receptor durante a leitura do texto literário

baseia-se no princípio de que esse texto, quando é processado no ato da leitura, transforma-

se num evento, isto é, em algo que ultrapassa todos os sistemas de referência existentes,

portanto não podendo estar sob a categoria do familiar. Além disso, encontramos outro

princípio que estrutura o que acontece com o leitor no momento da leitura, através da

seguinte pergunta: que relação potencial um texto literário estabelece, de um lado, com o

contexto sócio-histórico em que foi produzido e, de outro, com a disposição que reclama

dos leitores?

Em resposta a esse problema, a teoria do efeito estético, ao mesmo tempo, nega a

redução da literatura a um mero reflexo dos processos sociais, predominante nos

pressupostos marxistas, e busca evidenciar as transgressões que o texto literário realiza na

semântica e na estrutura dos sistemas culturais e sociais, ao importar elementos da realidade

extratextual deslocados de suas habituais configurações.

No texto, haveria portanto uma inusitada reunião de elementos, normas e valores sociais,combinados de um modo sem qualquer correspondente na realidade extratextual, uma vezque os textos literários romperiam a estrutura e a semântica dos campos de referência a queremetem, ao importar elementos destes últimos. O texto não espelharia as condições sociais,mas forneceria uma instância transcendental intramundana, ou seja, uma instânciatranscendental que não é externa, coincidindo, ao invés, com a própria situação em que seencontram tanto a literatura quanto os leitores e intérpretes interessados nas condições emque esta emergiu.5

5 Ibid., p17.

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A instância intramundana que configura o texto literário, através da combinação de

elementos retirados da realidade extratextual, também cria a sua assimetria com o leitor.

Como nenhuma história consiste numa cópia perfeita da realidade, existem lacunas e hiatos

que são negociados na leitura. Então é a partir de tal negociação que a assimetria entre

ambos é atenuada; dessa maneira, o texto é transposto para a consciência do leitor.

O sentido do texto, segundo esse raciocínio, é resultado da retomada da experiência

que o texto desencadeia e que o leitor controla e assimila conforme as suas disposições.

Wolfgang Iser nos chama atenção para o fato de que a estrutura básica do texto ficcional é

formada de segmentos determinados interligados por conexões indeterminadas, então o

padrão textual revela-se um jogo entre o que está expresso e o que está omitido. O que está

omitido, ou não expresso, impulsiona a construção do sentido, mas sob o comando do que

está expresso no texto. O jogo de interações entre o que está expresso e o que não está,

estabelece um padrão de interação a ser discernido no texto. A partir desse padrão deriva-

se o correlato noemático, produtor dessa experiência que o leitor incorpora e identifica

como o sentido do texto.

As lacunas e negações correspondem ao que não está expresso no texto e estimulam o

leitor a suprir as faltas. Nas lacunas, falta encontrar as conexões dos segmentos textuais.

Nas negações, falta encontrar a motivação para anular o que parece ser familiar.

3.4

Análise do encontro de leitura conforme a teoria do efeito estético

Tentando responder à questão levantada anteriormente sobre a interação entre os

leitores e os textos, prossigo a análise da atividade, em diálogo com os elementos

formadores das etapas da leitura, apresentados até o momento, para sublinhar a importância

das negações e lacunas nesse processo observado de leitura coletiva.

O texto “Enfim um indivíduo de idéias abertas”6, o primeiro a ser lido na atividade,

demonstra claramente como os elementos que têm correspondente na realidade são

deslocados de sua situação habitual para compor uma nova configuração, destituída de

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continuidade, no texto literário. Um homem que sente uma coceira no ouvido escolhe uma

chave pequena e fina para se coçar e, no momento em que encontra o ponto da coceira, a

chave se encaixa no seu orifício auditivo, como se este fosse uma fechadura, e a sua cabeça

lentamente se abre. Os elementos formadores do conto, tais como: homem, ouvido, coceira,

molho de chaves e cabeça, foram selecionados da realidade e associados nessa estranha

combinação.

Porém, o trabalho seletivo e combinatório produziu lacunas e negações. As lacunas

são produzidas pelo repertório de todos os elementos das realidades extratextuais que foram

importados para o texto, perdendo com isso as conexões que possuíam na sua origem. No

caso do conto, a quebra das conexões ocorreu entre os dois segmentos do texto que são

representados pelos dois parágrafos. O primeiro apresenta a continuidade e a normalidade

da uma simples situação banal de um homem que coça o seu ouvido com uma chave. O

segundo parágrafo apresenta elementos completamente estranhos com respeito à situação

anterior como o estalo, o encaixe da chave e a cabeça que se abre.

As lacunas indicam, antes, uma necessidade de se fazerem combinações ou conexões

entre segmentos, dispostos em oposição ou contraste. E, assim, a lacuna existente entre o

primeiro parágrafo e segundo provocou um choque entre esses dois segmentos,

desencadeando operações sintéticas na mente dos leitores. Dessa forma, o correlato

noemático produzido na leitura do primeiro parágrafo é questionado ou até eliminado pelos

participantes. Por exemplo, após lerem o primeiro parágrafo, muitos participantes do grupo

construíram sua leitura imaginando a história de um homem que tem apenas uma simples

coceira no ouvido e usou uma chave para se coçar. E, após a leitura do segundo parágrafo,

eles foram provocados a reagir à sua leitura inicial, o que afetou seu processo ideacional e

suas disposições habituais.

Estamos, agora, lidando com a estrutura funcional das lacunas. As lacunas, por serem

destituídas de conteúdo, organizam os segmentos textuais num espaço de mútua projeção

interativa, que cria uma estrutura de campo na perspectiva do leitor. E esse campo é

estruturado na forma de “figura e fundo”, onde cada segmento lido pode ser visto como

figura contra o fundo do segmento lido anteriormente.

6 Cópia do texto na página 106 (anexos)

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Na leitura do primeiro parágrafo do texto, foram produzidas determinadas figuras,

conforme as disposições de cada leitor, figuras essas compatíveis com as nossas

experiências cotidianas. Então, a imagem comum de um homem que escolhe uma chave

para coçar o ouvido é inicialmente formulada na mente dos leitores. Entretanto, é

necessária a leitura do segundo parágrafo, para que o texto seja traduzido na imaginação do

leitor, ou para formar o que o Iser chama de gestalt, pois assim ocorre a interação entre

figura e fundo, quando a figura produzida pela leitura do segundo parágrafo desloca para o

fundo a imagem cotidiana, correspondente à leitura do primeiro parágrafo. Essa interação

latente, atualizada durante o processo da leitura, termina na produção de uma gestalt.

Desse modo, a seqüência de idéias, que se forma na mente do leitor com base na

estruturação prefigurada pelo texto, é a maneira em que o texto é transposto para a

imaginação do leitor.

Ocorre, nessa interação entre fundo e figura ou tema e horizonte, uma inversão que

permite que os segmentos textuais sejam observados em diversas perspectivas. Tais

perspectivas variam e tornam perceptíveis aspectos ocultos do texto. Wolfgang Iser

classifica todo o processo como eixo sintagmático da leitura.

O conteúdo do segundo parágrafo nega a validade, a semântica dos elementos

selecionados da realidade exterior ao texto. Porque a situação de uma chave entrando no

seu encaixe, indicado pelo estalo, e a imagem de uma cabeça humana, que lentamente se

abre, são completamente contrárias à situação anterior, a trivial cena de um homem

coçando o ouvido. Aqui, estamos lidando com o eixo paradigmático da leitura,

representado pelas negações. As negações que têm uma dupla função:

(...) ao negar a validade do segmento selecionado ela recorda o seu sentido anterior eassinala a motivação não verbalizada, subjacente ao próprio ato de negar eresponsável pelo seu direcionamento. Portanto, a negação não só gera lacunas norepertório textual selecionado nos campos de referência extratextuais, mas tambémdesloca o leitor para uma posição intermediária entre o que foi cancelado e o queprecisa ser suprido como motivação para tal cancelamento. O leitor é instigado aassumir nova posição em relação ao que foi negado.7

7 Ibid., p. 31.

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O debate sobre o texto desenvolveu-se, justamente, no espaço entre o que foi negado

e o que precisa ser suprido. E para enfatizar o papel da negação no conto, iniciei a

discussão perguntando se o grupo percebia que não poderíamos ler o conto ao pé da letra,

ou seja, que seria inviável apenas impor a idéia do primeiro segmento do texto sobre o

segundo. Imediatamente Michel, um participante, disse que para ler o conto devemos

pensar em outros sentidos para as palavras e Eliane, outra participante, sugeriu que a

coceira do ouvido poderia significar um problema. Nesse momento, os leitores assumem

novas posições em relação aos elementos selecionados, porque eles foram impulsionados a

negar as noções de coceira, de ouvido, e de chave que, ao mesmo tempo, correspondiam às

suas habituais noções e foram reafirmadas pelo primeiro parágrafo.

Percebi, então, que estava sendo iniciado o processo da leitura coletiva e que eles

vivenciaram uma completa mudança de perspectiva em relação aos elementos do primeiro

parágrafo para formar um sentido para o texto como um todo. Por essa razão, acredito que

eles começaram suas participações na discussão a partir da alteração de significados

atribuídos às frases, como na afirmação de Eliane referente à palavra “coceira”,

estendendo-as a todo o restante do conto. Dessa forma, pensei na metáfora, de Umberto

Eco8, que apresenta o texto ficcional como um bosque cortado por várias trilhas e afirmei

que, naquele momento, surgiu um caminho para compreender o texto. E, assim, perguntei

o que significariam, então, seguindo esse caminho, a chave e o molho de chaves. Em

resposta, Marcela argumentou que a chave é a solução do problema. A concepção figurada

de chave como algo que resolve problemas é reforçada em detrimento da sua noção literal

de girar fechaduras e abrir portas.

Perguntei também sobre o molho de chaves, e sobre a escolha da chave mais fina. E

seguindo a lógica do novo sentido para a chave, Eliane entendeu o molho de chaves como o

conjunto de soluções; para ela, a chave mais fina significa a solução mais simples. Ao

observar que essa interpretação se centrou no primeiro seguimento, lancei a pergunta

referente ao segundo parágrafo do texto: existe alguma ligação entre a solução de um

problema e o fato de a cabeça do homem lentamente se abrir? Em resposta, Marcela parte

da leitura de Eliane e explica que os problemas é que deixavam a cabeça do personagem

fechada.

8ECO, Umberto. Seis Passeios pelos bosques da ficção, p.12.

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Michel, porém, apresentou outra interpretação considerando a coceira como a

curiosidade, as chaves como conhecimentos e a chave mais fina como um conhecimento

mais simples que abriu a mente do homem para novos saberes. Essa leitura de Michel nos

conduziu a outras conexões e forçou o grupo a deixar de lado um caminho de interpretação

para experimentar outro.

Na emergência desse novo sentido, aproveitei para comentar sobre o caráter auto-

referencial do conto, argumentando que a chave pode significar um pequeno livro ou

pequeno texto que tem o poder de abrir as cabeças para novas idéias e pensamentos. Dessa

forma, tentei apresentar, por intermédio da metáfora, as metas iniciais dos encontros de

leitura: abrir as nossas cabeças através de livros, contos, vídeos e outros meios. Isso

porque, geralmente, a leitura é vista como apenas uma maneira de se obterem informações

e não de se criarem significados para um texto, usando a imaginação. Enfim, abrir nossas

cabeças.

Continuei na tentativa de demonstrar os fundamentos que estruturaram as atividades,

afirmando que o ato de “abrir a cabeça”, no sentido que Michel apresentou, tornou-se

muitas vezes um problema para várias sociedades do ocidente e principalmente para a

sociedade brasileira, na qual grande parte da população sempre foi excluída da cultura

escrita e reprimida direta ou indiretamente por tentar ter contato com determinados tipos de

obras, geralmente obras críticas aos valores vigentes. E, assim, associei esse assunto à

questão da leitura nas escolas. Isso pode explicar porque não aprendemos a abrir nossas

cabeças nas aulas de interpretação de textos. Nós somos nitidamente desestimulados a

pensar e imaginar, pois temos que responder conforme fichas de leitura, questionários de

interpretação de textos dos livros didáticos e principalmente conforme o que os

professores pensam.

Apesar de não ter sido planejada, achei que aquela foi uma ótima maneira de iniciar a

discussão sobre o relacionamento entre poder e leitura, porque, logo após vivenciarmos o

processo de construção de sentidos, pensamos os desdobramentos políticos da

interpretação, a partir da realidade comum a todos nós. E, desse ponto, resolvi abordar

alguns detalhes das formas de controle ao ato da leitura e perguntei se eles já tinham se

sentido constrangidos em alguma aula de leitura. Eles lembraram como a leitura oral de

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qualquer texto muitas vezes servia de castigo para os alunos que estavam conversando e

lembramos principalmente dos risos dos colegas e da repressão do professor quando ocorria

algo errado no momento da leitura.

Com o objetivo de rever a origem desse meu pensamento, fiz relatos de minha

experiência escolar. Por ser disléxico, eu cometia muitos erros tanto na escrita quanto na

leitura, e conseqüentemente sofria muito com as apresentações públicas dos meus erros e as

notas baixas que obtinha em testes como o famoso ditado. No momento em que expus

minhas vivências, os participantes manifestaram reações imediatas como risos, sorrisos e

afirmaram que eles também sofriam com isso, ou seja, a minha confissão criou outra forma

de relacionamento no qual a barreira estabelecida entre aluno e professor foi enfraquecida.

Porém, não perdemos o sentido da discussão e Michel nos alertou para a importância das

reações dos nossos antigos colegas de escola, nesse processo de controle e repressão.

Segundo ele, a ação de ridicularizar o colega e rir deste, justamente quando está

constrangido, contribuía muito para a permanência dessa situação de inibição, resultante do

clima autoritário.

Aqui, pensei que se apresentou um bom momento para fazer comentários sobre os

mecanismos do poder, a partir das concepções de Michel Foucault. Pois, no exemplo

citado, a repressão não está apenas na ação do professor mas também nas risadas e

brincadeiras dos colegas de escola. Por esse motivo, fiz a seguinte colocação:

(...) E aí o cara ri por você errar. É um mecanismo do poder. Tem uns caras que estudamisso agora. Porque geralmente o estudo sobre o poder era muito centrado na macropolítica(política dos governos regionais, nacionais e da política internacional). E atualmente temosestudos sobre poder que são mais micro, estudam as relações de poder entre homens emulheres, o poder na escola, no hospital. E, aí, muitos desses estudos mostram como existemredes de poder nas quais muitas pessoas usam o poder para te neutralizar... Por exemplo, umcolega de trabalho que tem o mesmo cargo que você e aí entra nesses jogos de poder para seproteger. Então, para se proteger do ridículo, ele ridiculariza o outro.9

A discussão caminhou para o que Michel Foucault10 classifica como táticas de

dominação, táticas essas que devemos analisar desde os níveis mais baixos para depois

entendê-las no plano mais global do poder, ou seja, nas relações mais cotidianas e locais

9 Este trecho é transcrição de minha fala no debate.

10 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder.

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como a família, o hospital, a prisão, a escola e outros. Encontramos o poder se formando

em redes a partir de situações e características próprias. Nesse caso da leitura na escola, são

geralmente produzidos discursos de verdade sobre os significados dos textos, normas são

formuladas para determinar como se deve ler corretamente, e a repressão se manifesta

quando supostos erros são cometidos. Quando a classe e o professor se unem para zombar

dos erros de algum aluno, cometidos na leitura, o ato de ler se torna refém de forças

repressivas que neutralizam o seu caráter singular e criativo.

Após a discussão desse conto, eu senti que estava me aproximando do objetivo de

articular a leitura com a política, pois, aqui, a questão do controle sobre a leitura e também

a questão da leitura como uma maneira de reconhecer os poderes dos leitores, no caso dos

participantes do encontro, foram sendo trabalhadas simultaneamente. Assim, essa situação

nos possibilitou transgredir as rígidas fronteiras estabelecidas entre teoria, prática, política,

literatura e cultura.

Após essa etapa, resolvi retomar a discussão dos textos e li em voz alta o segundo

texto da atividade: “Conto em letras garrafais”. Novamente ocorreram risadas após a

leitura, o que quebrou um pouco a atmosfera séria, produzida no momento em que eu havia

argumentado sobre leitura e política. Então, senti que a indeterminação vivida na leitura do

texto formou um outro tipo de ambiente, mais descontraído e rico em vozes, idéias e

insights.

O jogo de leitura reiniciou-se novamente a partir do “entre-lugar”, formado pelas

lacunas e negações que, nesse texto, estão situadas entre os dois primeiros parágrafos e o

terceiro. A condição de um homem, “que todos os dias esvaziava uma garrafa e depositava

uma mensagem dentro desta e a entregava ao mar”, foi assimilada pelos participantes como

uma simples ação, até a leitura da última frase, que os surpreendeu com o fato de que o

personagem ter-se-ia tornado alcoólatra.

Dessa vez, a discussão fluiu mais do que na leitura do conto anterior, pois havia mais

segurança e autonomia nas declarações. Por isso, observei que a idéia de enfatizar as

diferentes interpretações foi bem incorporada pelo grupo. Michel iniciou o debate

afirmando que o personagem necessitava de ajuda. Em linha de pensamento próxima a

essa, Eliane argumentou que o personagem necessitava, para continuar vivendo, de

respostas para as suas mensagens e, por não existir ninguém para responder-lhe, teria

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perdido sua auto-estima, ou seja, aqui o alcoolismo seria sinônimo de falta de amor

próprio.

As falas passaram a soar cada vez mais reflexivas e profundas. Michel defendeu a

idéia de que o homem necessitava de ajuda e de que a garrafa parecia uma espécie de

caminho errado, onde ele nunca conseguiria ajuda e só aumentaria seus problemas.

Entretanto, Marcela argumentou: “Esse ‘tornou-se alcoólatra’ não parece com um

alcoólatra realmente, não parece com uma pessoa que bebia, mas com a idéia mesma de

uma pessoa ferida.”11 Agora, estávamos experimentando uma verdadeira emergência de

interpretações singulares e autônomas.

Percebi isso claramente quando Eliane buscou, ao contrário de Marcela e Michel, ler

o “esvaziar a garrafa” como o ato de beber seu conteúdo. Essa leitura que associa o

esvaziar garrafa com o alcoolismo do personagem, apesar de ser perfeitamente viável, está

dentro de uma lógica, evidente após a leitura do último parágrafo, na qual o alcoolismo

adquirido pelo personagem influencia a compreensão do esvaziar a garrafa como o

consumo de bebida alcoólica. Nesse caso, o jogo de figura e fundo, entre os primeiros

segmentos do texto e o último, criou uma idéia geral do texto nada conflituosa com as

nossas formas de compreensão cotidiana, ou seja, aqui, tratava-se do seguinte raciocínio: se

ele se tornou alcoólatra e esvaziou garrafas, logo ele ingeriu a bebida com algum teor

alcoólico contida nessas garrafas. Assim sendo, acredito que as leituras de Marcela e

Michel já eram negações de uma lógica pré-estabelecida e que eles já não se contentavam

com essa interpretação e tentaram construir outras, segundo as suas perspectivas, mais

complexa.

Ao observar esse contraste de interpretações, resolvi provocar mais o debate,

perguntando para Eliane se de fato o “esvaziar a garrafa” é exclusivamente beber o

conteúdo de uma garrafa de bebida alcoólica. Ao mesmo tempo, isso estimulou Marcela a

reforçar sua interpretação, contrária a essa idéia. Apesar de achar interessante a tentativa de

Marcela e de Michel de escaparem dessa interpretação, argumentei que a leitura de Eliane é

perfeitamente viável e não é inferior a qualquer outra.

11 Frase transcrita da gravação do encontro de leitura.

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Em seguida, repeti a primeira frase do conto – “todos os dias esvaziava uma garrafa”

-- na intenção de manter viva a discussão e novamente Marcela tomou a frente, falando de

forma pausada, pois estava formulando seu pensamento, e argumentou: “todos os dias

esvaziava, era a vontade de se expressar, de que alguém o entenda, vontade de se expor”12.

Coincidentemente a minha leitura do conto, naquele momento, era muito próxima da

que Marcela havia formulado. Então, senti que esse era o momento certo de apresentar a

minha interpretação, baseada na idéia de que, no conto, a garrafa pode representar o próprio

personagem. Assim, segundo essa minha leitura, quando o homem esvazia garrafas, ele se

esvazia e coloca dentro de si a sua própria mensagem, ou seja, introspectivamente ele

aprisiona, em si mesmo as suas mensagens ou simplesmente não se expressava, conforme

as palavras de Marcela. Em conseqüência, ele nunca recebeu resposta e procurou uma fuga

no álcool.

Eliane, entrando no campo de significados que eu estava experimentando, passou a

pensar nesse caminho e explicou que, da maneira como é apresentado, o personagem

realmente jamais poderia receber respostas. Porém, logo depois, sentindo as mudanças nas

leituras, comentou que, caso nós fôssemos levados pela interpretação, que apresentei, não

teríamos volta. Esse comentário é uma demonstração de como a diversidade das leituras

abala a habitual maneira de interpretar os textos, a ponto de criar, como aconteceu com essa

participante, a impressão de que estávamos perdidos num oceano de possibilidades

interpretativas.

Aqui, Eliane entrou em questões do plano da teoria literária, porque há em sua

intervenção a preocupação com a existência ou não de limites para o trabalho interpretativo

e também, conforme o outro comentário, com o tipo de função da linguagem no conto. O

interesse por classificar o tipo de função de linguagem que o conto representa foi fruto do

conteúdo dado pela aula de literatura que ela havia assistido na mesma semana.

Considerei muito interessante esse deslocamento das tentativas de compreensão do

texto para as reflexões sobre a leitura, a forma e a função do texto. Mas, ao mesmo tempo,

resolvi não prender a discussão a esses aspectos, porque achei que isso poderia reduzir o

texto literário a um mero objeto de classificação e enfraquecer o perfil múltiplo da

atividade.

12 Idem.

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3.5

A interação entre vídeo e o telespectador no clipe Another brick in the wall

Escolhi o videoclipe Another brick in the wall com a intenção de discutir um “texto”

que aborde a repressão exercida dentro da escola. E, simultaneamente, procurei ampliar a

interação coletiva entre texto e leitores para a interação entre telespectadores e vídeo.

O videoclipe, resumidamente, trata de uma situação na qual um professor de

matemática repreende e ridiculariza um aluno, na sala de aula, ao encontrar, em sua mesa,

poemas que o próprio menino escreveu. O menino não reage à atitude do professor, mas se

imagina destruindo a escola junto com seus colegas. Porém, a escola imaginada não é como

a sua escola de fato e sim uma espécie de galpão, dividido em seções como uma fábrica de

montagem, onde os alunos, vestidos de máscaras sem qualquer expressão, marcham em

direção a imensos moedores de carne.

É importante frisar que Another brick in the wall - part II é um trecho do longa

metragem The Wall, ópera-rock do grupo Pink Floyd. A emissora especializada em música,

MTV, retirou essa parte e transformou-a em videoclipe, devido a seu maior sucesso diante

das outras músicas da obra. Pode-se então afirmar, que The Wall é uma “ópera eletrônica”,

pois foi feita exclusivamente na forma de filme, com a direção de Alan Parker em 1982.

Somente ocorreu uma apresentação ao vivo, em caráter excepcional, em 1991, em

homenagem à queda do muro de Berlim, conforme uma promessa que fez Roger Walters,

líder da banda e que promoveu a apresentação.

Então, houve a união entre o tema da atividade e o objetivo do próprio trabalho, ou

seja, o objetivo era praticar a leitura coletiva do vídeo e refletir sobre um caso de ações

repressivas em relação à literatura. Não podemos esquecer também que estamos lidando

com a leitura de um tipo de discurso que é um dos mais expressivos exemplos da produção

cultural globalizada da mídia eletrônica pós-moderna.

Por outro lado, a eleição do clipe é fruto também de minha memória pessoal, das

lembranças de como as letras de protesto de muitos conjuntos de rock influenciaram o meu

interesse por discussões políticas, por atitudes de protesto ou de resistência. Dentro desse

universo de sons de guitarras distorcidas e fortes frases contra o sistema, o capitalismo e o

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Estado, comecei a construir interpretações que eu considerava exclusivamente minhas. A

ópera-rock The Wall teve um papel pioneiro e fundamental para esse processo de

autoconsciência de minha capacidade leitora. Lembro que, quando vi pelas primeiras vezes,

The Wall, precisei fazer um prazeroso esforço de leitura para compreender aquele

complexo conjunto de imagens velozes, sons e letras, sem nenhum diálogo. Enfim,

entender o louco mundo de um homem, onde cada parte de sua existência correspondeu a

um tijolo do imenso muro que o isolou do resto do mundo.

Isso tudo ocorreu quando eu tinha entre quinze e dezesseis anos, era final dos anos

oitenta e Pink Floyd, já era consagrado como uma das mais importantes bandas de rock do

mundo. Suas músicas tocavam em muitas emissoras, principalmente as músicas de The

Wall, em destaque a música Another brick in the wall. Mas The Wall foi criada em 1982 e

Pink Floyd é uma banda dos anos sessenta que participou do movimento chamado rock

progressivo, movimento no qual os músicos misturavam rock‘n´roll com música clássica.

E The Wall é justamente uma experiência dessa natureza, onde uma banda de rock utiliza a

estrutura da ópera para produzir um álbum e um longa metragem.

Após a exibição do híbrido videoclipe, iniciamos o debate. Antes de tudo, é

importante destacar que, na discussão do videoclipe, os participantes não interagiram com

o clipe da mesma forma que ocorreu com o texto literário. Eles não exploraram muito os

detalhes e sutilezas como fizeram na leitura dos contos; preferiram discutir mais os

assuntos tratados: controle, disciplina e literatura. Acredito que as explicações para isso

estão relacionadas ao fato de que o videoclipe é uma espécie de discurso no qual, devido a

sua alta velocidade, as lacunas e negações tornam-se, muitas vezes, quase imperceptíveis,

ao contrário dos textos literários.

Fredric Jameson, utilizando o conceito de “fluxo total” de Raymond Willians,

argumenta que o “bloqueio do pensamento original ante essa sólida janelinha contra a qual

batemos a cabeça é relacionado exatamente com esse fluxo total ou ininterrupto que

observamos através dela.”13. Conforme essa perspectiva, a ausência de intervalos, que

percebemos tanto em toda a programação das emissoras de televisão, quanto na própria

seqüência de imagens contidas num vídeo, dificulta o uso da memória e conseqüentemente

da capacidade crítica.

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Mesmo que o videoclipe em questão não esteja completamente dentro da

fragmentária ausência de sentido dos clipes mais atuais, existe, aqui também, a alta

velocidade das seqüências, das mudanças e o uso de animação. Isso provocou um tipo

interação na qual os participantes não buscaram significados de forma detalhada, como

aconteceu com o texto literário, mas sim leituras mais generalizantes que muitas vezes

fugiam do conteúdo do vídeo em direção aos vários assuntos desdobrados no debate.

Compreendi também que a leitura do videoclipe, desvinculada do conhecimento do

restante do filme, provoca um certo tédio. Creio que uma explicação para isso está no fato

de que, no videoclipe, estrutura-se uma espécie de repetição discursiva, na qual partes das

letras das músicas são representadas em cena, isso faz com que uma mesma coisa seja dita

duas vezes.

No caso do videoclipe da música Another brick in the wall, por exemplo, as cenas

são explicadas, pela fala do professor na sala de aula, pela explicação do coro e

essencialmente pela letra da canção. O videoclipe inicia-se com as cenas de um professor

que sai da sala dos professores e entra na sala de aula, olhando de forma ameaçadora para

os alunos, ao mesmo tempo, o coro canta: “Quando crescemos e fomos à escola havia lá

professores que feriam as crianças como podiam. Zombando de nós o que quer que

fizéssemos, exibindo toda fraqueza que as crianças escondiam com cuidado”.

Em seguida, o professor anda até a mesa do menino e pega os seus poemas, que

estavam expostos, e fala para o aluno: “O que temos aqui, garoto? Rabiscos misteriosos?

Um código secreto?”. E, com os poemas na mão, dirige-se para a turma dizendo: “Nada

menos que poemas, pessoal! O garoto se acha um poeta” e lê os poemas em voz alta para

toda a turma que já estava dando risadas do constrangimento, demonstrado pelo tenso e

instrospectivo garoto: “Ele devolve a grana. Jack, sou bacana. Tire a mão daí, sacana. Um

sonho quatro estrelas: carro novo, caviar. Acho que vou comprar um time de futebol.”. Ao

terminar a leitura, o professor agressivamente atira o caderno, onde estão os poemas, na

mesa do aluno e grita: “Um lixo, garoto. E agora, continue o seu trabalho”. A seqüência

seguinte já apresenta o professor em sua casa, sendo controlado e infernizado por sua

mulher e, ao contrário de seu aspecto na sala de aula, ele tem aqui uma fisionomia passiva e

medrosa. Essa cena é representada e acompanhada pela fala do coro.

13 JAMESON, F. Vídeo: surrealismo sem inconsciente. In JAMESON, F. A lógica do cultural do capitalismo

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O debate teve início, quando Michel nos chamou a atenção para a falta de

sentimentos do professor para com o aluno, argumentando que o seu comportamento

arrogante e autoritário seria, na verdade, fruto de problemas pessoais que ele passa de

forma negativa para os alunos, sem se preocupar com o que eles estão sentindo.

Aproveitei a fala de Michel para comentar sobre a cena em que justamente o

professor reprime e ridiculariza o aluno ao encontrar os poemas em sua mesa. Em seguida,

apresentei a minha interpretação, baseada na idéia de que o professor usa o seu poder para

neutralizar a capacidade criativa do menino. Em outras palavras, a criação literária,

representada aqui pelos poemas do garoto, é um discurso estranho que precisa ser reprimido

e até excluído pelo professor. E mencionando a reação do garoto, exclusivamente

imaginária, na qual ele fantasia que com os seus colegas está destruindo a escola, perguntei

para o grupo o que eles pensaram sobre as imagens do clipe.

Eliane destacou as imagens das crianças marchando e sendo trituradas no moedor de

carne e argumentou: “Como se as crianças fossem robôs. Tinham que fazer o que eles

queriam sem questionar, sem reclamar, sem nada e se saíssem da linha apanhavam”14. Já

para Michel as imagens da escola, no videoclipe, pareciam mais com as de uma fábrica.

As observações de Eliane e Michel sobre as imagens demonstram como, mesmo na

velocidade do vídeo, o processo de interação também é configurado a partir da

negatividade, pois foi nas conotações, em forma de imagens animadas, do espaço escolar –

apresentado como uma mistura de quartel, fábrica, presídio ou matadouro --, que eles

encontraram o ponto de partida para as suas interpretações.

O silêncio que surgiu logo depois dessas participações me forçou a lançar novas

perguntas e observações. Tentei, inicialmente, levar a discussão para o tema central da

música -- o muro --, mas percebi que era impossível fazer isso sem contar toda a história do

filme. Dessa maneira, quando perguntei: “para que serve o muro”, palavras como

separação, prisão e barreira emergiram das falas dos participantes. E eu afirmei que havia

outra função, o isolamento, e contei de forma resumida a história do filme.

A imposição e a repressão no ambiente escolar foi o tema que predominou na

discussão, porém o que me surpreendeu foi a preocupação dos participante em comentar a

Tardio, p.91

14 Transcrição da fala da participante.

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questão da disciplina na sociedade inglesa. Ou seja, pensei que poderia apresentar o vídeo

como um exemplo de controle disciplinar, exercido na relação entre professor e aluno, para

todas as sociedades do ocidente, mas na recepção do grupo a situação foi associada

especificamente à sociedade inglesa. Enfim as diferenças culturais entre a educação

brasileira e a inglesa foram muito discutidas pelos participantes.

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