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A leitura como produção de sentidos – análise de um encontro deleitura.
Em março de 2000, iniciei, no “pré-comunitário” de Vila Isabel, o trabalho de
formação de um grupo onde se experimentaria a prática de ler coletivamente. O curso pré-
vestibular comunitário de Vila Isabel foi idealizado e é coordenado por Carlos, um ex-aluno
do curso pré-vestibular da Mangueira, que conseguiu um ótimo auditório da Funlar (Vila
Isabel) e um bom grupo de professores para realizar as aulas. A coordenação do curso
estabeleceu como meta criar não apenas um pré-vestibular para “carentes”, mas um “pré-
cidadania”. Por esse motivo, fui convidado para fazer os círculos de leitura, pois, segundo
Carlos, “o círculo de leitura, além de ser útil para a prova do vestibular, ajuda as pessoas a
se conhecer melhor, tornando-as informadas, participativas e críticas, e é disso que
precisamos”. A preocupação em promover a cidadania e o reconhecimento da importância
das atividades de leitura para atingir tal objetivo constituiu um indício interessante para
uma investigação sobre as ligações entre o ato da leitura e a política.
Nas palavras de Carlos, estava explícito que existia um isolamento entre os alunos,
possivelmente herdado de suas relações sociais anteriores. Estas tendiam a inviabilizar a
concretização, pelo menos imediata, da “filosofia” de um grupo de ação política
comunitária, conforme o planejamento do coordenador do pré-vestibular. O público do
curso é formado, em sua maioria, de jovens com idades acima de 19 anos, ex-alunos da
rede pública de ensino e moradores da própria comunidade ou de bairros mais distantes.
Uma grande parte do grupo trabalha durante o dia, em todos os dias úteis incluindo os
sábados. Existe também um número significativo de alunos com idade acima dos 30 anos,
que pararam os estudos após a conclusão do segundo grau.
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Com essas informações, podemos desconfiar que esse comportamento de inibição e
isolamento é fruto das normas disciplinares, geralmente adquiridas nas escolas ou até em
instituições militares, e da imposição de valores individualistas e competitivos, feita pelo
mercado de trabalho.
Sendo assim, estruturei as atividades do semestre partindo do princípio de que a
leitura – entendida como produção coletiva de significados -- é uma forma importante de
resistência ao isolamento. Quando se percebem várias perspectivas simultâneas de
interpretação de um mesmo texto, filme ou qualquer outro objeto cultural, abre-se o
caminho para o diálogo, para o reconhecimento da importância da fala do outro e da própria
diferença do outro.
Com base nessa proposta, foram escolhidos textos que permitem uma maior
liberdade ao leitor e que abordam o tema do isolamento, relacionado às questões da
disciplina, do controle e da dominação da mídia. Paralelamente, podemos trabalhar com
uma outra hipótese: se os mecanismos de controle e disciplina, que existem em nossa vida
social, desde as instituições disciplinares, conforme nos mostrou Foucault, até o controle
global da mídia contemporânea, impõem determinadas formas de compreensão dos
discursos e da própria realidade, então, a abertura de diversas possibilidades significativas
põe em cheque a unicidade dessas formas impostas.
Para o primeiro encontro, tive a preocupação de tornar explícito o choque entre a ato
de construir significados aos textos e as limitações criadas pelas instituições disciplinares
tais como a escola. Assim, foram discutidos dois contos do livro Contos de amor rasgado1
de Marina Colassanti. Tais contos, por não seguirem a lógica, estimulam o leitor a buscar
vários caminhos de interpretação. Também assistimos o videoclipe da música Another brick
in the wall (Outro tijolo no muro). O clipe é rico em conotações sobre a sociedade de
disciplina, ao ponto de nos fazer confundir se aquele local era de fato uma escola, um
presídio, uma fábrica ou um quartel, em que as crianças marchavam até um gigantesco
moedor de carne. Trata-se de um trecho da ópera-rock, The wall2, cujo tema central é o
1 COLASANTI, Marina. Contos de amor rasgado.
2 The Wall, Filme dirigido por Allan Park com músicas do grupo Pink Floyd : 1982, EUA.
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isolamento; no trecho apresentado, o isolamento é produzido pela escola ao inibir a
capacidade criativa do aluno.
Antes do início da prática leitora, apresentei sua dinâmica: a leitura em voz alta do
texto, a execução da música ou a exibição do filme, imagem ou videoclipe são seguidos de
discussão, onde cada participante deve expor suas sugestões. Expliquei, também, o objetivo
inicial de exercitar a capacidade interpretativa, importante para a prova do vestibular e
principalmente para criar um espaço de diálogo sobre nossa realidade a partir de vários
pontos de vista.
O resultado da atividade foi positivo, porque os participantes, após um grande
envolvimento no jogo de interpretações dos contos e do vídeo, lembraram como a
liberdade de interpretar textos, em geral, criava problemas com os professores de suas
antigas escolas, que normalmente impunham as leituras “certas”. Outros afirmaram que
nunca tinham lido um texto daquela maneira, buscando vários significados possíveis para
as mesmas frases. Mas quase todos atribuíram sua inibição e medo diante da leitura à forma
com que os seus professores conduziam as aulas de interpretação de texto: ora fazendo da
leitura oral um castigo para os alunos que conversavam, ora zombando dos que liam com
dificuldade.
Essa atividade me conduziu a uma série de questões sobre a forma de recepção
habitual dos alunos, sobre a influência do perfil coletivo da prática leitora e a importância
política do discurso literário neste tipo de atividade. Refleti, ainda sobre a quebra de limites
entre a alta cultura e a cultura de massa, proposta pelos mais recentes estudos sobre a pós-
modernidade. O uso, por exemplo, do videoclipe -- espécie de ícone da mídia eletrônica
contemporânea -- como objeto de leitura ao lado do texto literário -- tipo de discurso que
tradicionalmente é considerado da alta cultura --, pode ser compreendido dentro de um
conjunto de práticas que estão transgredindo esses limites em nome de uma maior interação
entre arte, política e vida cotidiana.
Minhas reflexões levaram-me a analisar esse encontro de leitura da seguinte maneira:
primeiro, registrando como os alunos leram os textos e o videoclipe, isto é, como se
realizou a interação entre texto literário e leitor -- situação ampliada para a interação entre
telespectador e videoclipe --, e considerando esses processos de interação no plano coletivo.
O segundo ponto consiste em observações sobre o meu papel como mediador da atividade,
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destacando as minhas reações referentes a conceitos e até preconceitos relacionados ao ato
da leitura.
3.1Interação entre leitor e texto
Destacar a interação que alunos do curso de Vila Isabel vivenciaram com os textos
literários foi o primeiro passo que estou dando em direção a uma análise mais complexa
dos objetivos políticos dos cursos pré-vestibulares comunitários e do papel desempenhado
por novas formas de recepção comunitária, representadas, neste caso, pelos encontros de
leitura.
A surpresa, manifestada pelos risos dos participantes, logo após a leitura do primeiro
dos Contos de amor rasgado, “Enfim um indivíduo de idéias abertas”, e o estranhamento,
que eles sentiram no decorrer da atividade, demonstram que nunca tinham passado por uma
experiência desse tipo com a leitura. Porém, a liberdade provocada pela dinâmica da
atividade -- a busca constante de novos sentidos para os mesmos trechos e também a
inexistência de qualquer tipo de hierarquia na apresentação das interpretações --
transformou logo a supressa, o estranhamento e a timidez num interessante exercício de
mudança de perspectivas e afirmações.
Para melhor compreensão do processo de interação entre os leitores e os contos
selecionados do livro de Marina Colassanti, procurei dialogar inicialmente com os
conceitos e categorias da teoria do efeito estético de Wolfgang Iser. Acredito que essa
perspectiva teórica, por centrar-se na descrição e análise do ato da leitura, poderia auxiliar
tanto no entendimento do que acontece com os alunos durante o processo de ler, quanto na
análise das formas que realidades virtuais, emergidas no texto literário e sem equivalente no
mundo empírico, são apreendidas e assimiladas pelos leitores. E, a partir desse segundo
ponto, pretendo refletir sobre a relação que o ato da leitura de textos literários estabelece
com o contexto sócio-histórico no qual este foi produzido, divulgado e está sendo
apreendido por leitores, que, no nosso caso, são os alunos de um curso comunitário no
ambiente pós-moderno e neoliberal de uma importante metrópole latino-americana como o
Rio de Janeiro.
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Na tentativa de encontrar potencial político da teoria do efeito estético, resolvi
destacar, seguindo as considerações do próprio Wolfgang Iser, um pouco da sua história e
da sua relação com o contexto no qual foi elaborada.
3.2
Uma breve história da teoria do efeito estético
Devemos lembrar que o surgimento da teoria do efeito estético está atrelado, no plano
teórico, à querela de interpretações e, principalmente, no plano político, ao impacto da
rebelião dos estudantes nas universidades alemãs, durante os anos sessenta. A teoria do
efeito estético, dessa forma, é fruto das reflexões que Iser começou a formular no início na
década 1970 com a publicação do ensaio A estrutura apelativa do texto e foi de fato
apresentada na obra O ato da leitura: uma teoria do efeito estético3, publicada em 1976.
Porém, nessa análise, estou basicamente dialogando com a apresentação dos
pressupostos e fundamentos da teoria do efeito estético, que o professor alemão realizou no
VII Colóquio da UERJ em 19964, pois, nesse evento, Wolfgang Iser proferiu quatro
conferências abordando todas as passagens de sua produção teórica e, assim, a palestra
sobre a teoria do efeito estético identifica os seus principais aspectos e suas ligações com os
seus futuros estudos. Em outras palavras, resolvi iniciar o exame da teoria do efeito estético
a partir da versão de 1996, porque, nesta, Iser nos fornece um amplo panorama de sua
perspectiva teórica: vai desde o seu contexto histórico, passando por seus fundamentos e
apontando suas permanências e seus posteriores desdobramentos, em direção à
antropologia literária.
Conforme a conferência já citada, no fins dos anos cinqüenta e início dos sessenta, no
contexto histórico que propiciou o surgimento da teoria do efeito estético e da estética da
recepção, a herança cultural não estava mais inquestionavelmente a serviço da educação
3 ISER, Wolgang. O ato da leitura. São Paulo. Editora 34, 1996, 2v..4 Iser, Wolgang. Teoria da recepção: reação a uma circunstância história. In: ROCHA, João Cezar de Castro(Org) Teorias da ficção: indagações obra de Wolfgang Iser, p19-35.
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como antes, quando havia parâmetros únicos que a orientavam. Com isso, eclodiu o
conflito de interpretações, porque, após o questionamento da expectativa de interpretação
única e definitiva para as obras, criou-se a necessidade de se fundamentarem e explicarem
os pressupostos requeridos para interpretar textos. Esse esclarecimento dos pressupostos
ocasionou o que se conhece como conflito de interpretações, porque cada tipo de
interpretação buscava afirmar-se em detrimento das outras.
Nos anos sessenta, os pressupostos da interpretação, usados na Alemanha para
resolver a questão de como lidar com a herança cultural, buscavam a intenção do autor, o
sentido que este atribuiu ao texto, ou a mensagem da obra e seu valor estético, que era
convencionalmente reconhecido a partir do grau de reconciliação aplicado às
ambigüidades, diferenças de tropos e figuras, existentes no texto. Porém, a literatura
moderna demonstrou os limites desses pressupostos. As questões antes formuladas
apresentam-se historicamente limitadas a uma determinada concepção de arte. Dessa
maneira, as antigas questões serviram para apontar novas direções. A busca semântica da
mensagem originou a análise dos meios de construir e de articular o objeto estético. O
critério da conciliação de opostos, sempre vinculado ao valor da obra, levou à questão de
como as faculdades humanas são estimuladas e afetadas pelo texto literário durante o
processo da leitura. Sendo assim, as velhas respostas recebem funções imprevisíveis,
devido à frustração das expectativas dos leitores em relação às normas tradicionais de
interpretação, especificamente quando são aplicadas à arte moderna.
Paralelamente, Iser afirma que essa mudança na atitude frente à literatura tem origem
na rebelião de estudantes, no final dos anos sessenta na Alemanha. Naquele período, o
professor ainda era considerado o único possuidor da verdade, e seu discurso era de
autoridade, embora dissesse, muitas vezes, coisas bastante defasadas. E, além disso, os
mestres, muitas vezes, assumiram atitudes autoritárias perante os alunos, ao mesmo tempo
que continuavam ensinando conteúdos que os estudantes não desejavam e julgavam inúteis.
Naquela situação, o estudo da literatura também foi criticado pelos alunos que acreditavam
que esta disciplina poderia ser completamente abolida, pois eles viam a literatura apenas
como um instrumento para domesticar e disciplinar uma geração contestadora através do
uso da herança cultural da burguesia germânica.
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Em tal contexto, o reader-response criticism tornou-se uma tentativa de amenizar a
ampla e justificada insatisfação com o conteúdo e a forma do ensino dos departamentos de
literatura. Os estudos iniciados por Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser, na tentativa de
justificar que a literatura é útil à educação, provocaram, uma verdadeira mudança de
paradigma. A recepção do texto literário e seu efeito no leitor foram considerados questões
centrais em detrimento da tradicional preocupação com o sentido e a mensagem de uma
obra ou com as intenções do autor.
3.3 Assimetria entre o texto e o leitor -- princípios para investigação sobre aleitura de textos literários
A investigação sobre o que acontece ao receptor durante a leitura do texto literário
baseia-se no princípio de que esse texto, quando é processado no ato da leitura, transforma-
se num evento, isto é, em algo que ultrapassa todos os sistemas de referência existentes,
portanto não podendo estar sob a categoria do familiar. Além disso, encontramos outro
princípio que estrutura o que acontece com o leitor no momento da leitura, através da
seguinte pergunta: que relação potencial um texto literário estabelece, de um lado, com o
contexto sócio-histórico em que foi produzido e, de outro, com a disposição que reclama
dos leitores?
Em resposta a esse problema, a teoria do efeito estético, ao mesmo tempo, nega a
redução da literatura a um mero reflexo dos processos sociais, predominante nos
pressupostos marxistas, e busca evidenciar as transgressões que o texto literário realiza na
semântica e na estrutura dos sistemas culturais e sociais, ao importar elementos da realidade
extratextual deslocados de suas habituais configurações.
No texto, haveria portanto uma inusitada reunião de elementos, normas e valores sociais,combinados de um modo sem qualquer correspondente na realidade extratextual, uma vezque os textos literários romperiam a estrutura e a semântica dos campos de referência a queremetem, ao importar elementos destes últimos. O texto não espelharia as condições sociais,mas forneceria uma instância transcendental intramundana, ou seja, uma instânciatranscendental que não é externa, coincidindo, ao invés, com a própria situação em que seencontram tanto a literatura quanto os leitores e intérpretes interessados nas condições emque esta emergiu.5
5 Ibid., p17.
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A instância intramundana que configura o texto literário, através da combinação de
elementos retirados da realidade extratextual, também cria a sua assimetria com o leitor.
Como nenhuma história consiste numa cópia perfeita da realidade, existem lacunas e hiatos
que são negociados na leitura. Então é a partir de tal negociação que a assimetria entre
ambos é atenuada; dessa maneira, o texto é transposto para a consciência do leitor.
O sentido do texto, segundo esse raciocínio, é resultado da retomada da experiência
que o texto desencadeia e que o leitor controla e assimila conforme as suas disposições.
Wolfgang Iser nos chama atenção para o fato de que a estrutura básica do texto ficcional é
formada de segmentos determinados interligados por conexões indeterminadas, então o
padrão textual revela-se um jogo entre o que está expresso e o que está omitido. O que está
omitido, ou não expresso, impulsiona a construção do sentido, mas sob o comando do que
está expresso no texto. O jogo de interações entre o que está expresso e o que não está,
estabelece um padrão de interação a ser discernido no texto. A partir desse padrão deriva-
se o correlato noemático, produtor dessa experiência que o leitor incorpora e identifica
como o sentido do texto.
As lacunas e negações correspondem ao que não está expresso no texto e estimulam o
leitor a suprir as faltas. Nas lacunas, falta encontrar as conexões dos segmentos textuais.
Nas negações, falta encontrar a motivação para anular o que parece ser familiar.
3.4
Análise do encontro de leitura conforme a teoria do efeito estético
Tentando responder à questão levantada anteriormente sobre a interação entre os
leitores e os textos, prossigo a análise da atividade, em diálogo com os elementos
formadores das etapas da leitura, apresentados até o momento, para sublinhar a importância
das negações e lacunas nesse processo observado de leitura coletiva.
O texto “Enfim um indivíduo de idéias abertas”6, o primeiro a ser lido na atividade,
demonstra claramente como os elementos que têm correspondente na realidade são
deslocados de sua situação habitual para compor uma nova configuração, destituída de
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continuidade, no texto literário. Um homem que sente uma coceira no ouvido escolhe uma
chave pequena e fina para se coçar e, no momento em que encontra o ponto da coceira, a
chave se encaixa no seu orifício auditivo, como se este fosse uma fechadura, e a sua cabeça
lentamente se abre. Os elementos formadores do conto, tais como: homem, ouvido, coceira,
molho de chaves e cabeça, foram selecionados da realidade e associados nessa estranha
combinação.
Porém, o trabalho seletivo e combinatório produziu lacunas e negações. As lacunas
são produzidas pelo repertório de todos os elementos das realidades extratextuais que foram
importados para o texto, perdendo com isso as conexões que possuíam na sua origem. No
caso do conto, a quebra das conexões ocorreu entre os dois segmentos do texto que são
representados pelos dois parágrafos. O primeiro apresenta a continuidade e a normalidade
da uma simples situação banal de um homem que coça o seu ouvido com uma chave. O
segundo parágrafo apresenta elementos completamente estranhos com respeito à situação
anterior como o estalo, o encaixe da chave e a cabeça que se abre.
As lacunas indicam, antes, uma necessidade de se fazerem combinações ou conexões
entre segmentos, dispostos em oposição ou contraste. E, assim, a lacuna existente entre o
primeiro parágrafo e segundo provocou um choque entre esses dois segmentos,
desencadeando operações sintéticas na mente dos leitores. Dessa forma, o correlato
noemático produzido na leitura do primeiro parágrafo é questionado ou até eliminado pelos
participantes. Por exemplo, após lerem o primeiro parágrafo, muitos participantes do grupo
construíram sua leitura imaginando a história de um homem que tem apenas uma simples
coceira no ouvido e usou uma chave para se coçar. E, após a leitura do segundo parágrafo,
eles foram provocados a reagir à sua leitura inicial, o que afetou seu processo ideacional e
suas disposições habituais.
Estamos, agora, lidando com a estrutura funcional das lacunas. As lacunas, por serem
destituídas de conteúdo, organizam os segmentos textuais num espaço de mútua projeção
interativa, que cria uma estrutura de campo na perspectiva do leitor. E esse campo é
estruturado na forma de “figura e fundo”, onde cada segmento lido pode ser visto como
figura contra o fundo do segmento lido anteriormente.
6 Cópia do texto na página 106 (anexos)
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Na leitura do primeiro parágrafo do texto, foram produzidas determinadas figuras,
conforme as disposições de cada leitor, figuras essas compatíveis com as nossas
experiências cotidianas. Então, a imagem comum de um homem que escolhe uma chave
para coçar o ouvido é inicialmente formulada na mente dos leitores. Entretanto, é
necessária a leitura do segundo parágrafo, para que o texto seja traduzido na imaginação do
leitor, ou para formar o que o Iser chama de gestalt, pois assim ocorre a interação entre
figura e fundo, quando a figura produzida pela leitura do segundo parágrafo desloca para o
fundo a imagem cotidiana, correspondente à leitura do primeiro parágrafo. Essa interação
latente, atualizada durante o processo da leitura, termina na produção de uma gestalt.
Desse modo, a seqüência de idéias, que se forma na mente do leitor com base na
estruturação prefigurada pelo texto, é a maneira em que o texto é transposto para a
imaginação do leitor.
Ocorre, nessa interação entre fundo e figura ou tema e horizonte, uma inversão que
permite que os segmentos textuais sejam observados em diversas perspectivas. Tais
perspectivas variam e tornam perceptíveis aspectos ocultos do texto. Wolfgang Iser
classifica todo o processo como eixo sintagmático da leitura.
O conteúdo do segundo parágrafo nega a validade, a semântica dos elementos
selecionados da realidade exterior ao texto. Porque a situação de uma chave entrando no
seu encaixe, indicado pelo estalo, e a imagem de uma cabeça humana, que lentamente se
abre, são completamente contrárias à situação anterior, a trivial cena de um homem
coçando o ouvido. Aqui, estamos lidando com o eixo paradigmático da leitura,
representado pelas negações. As negações que têm uma dupla função:
(...) ao negar a validade do segmento selecionado ela recorda o seu sentido anterior eassinala a motivação não verbalizada, subjacente ao próprio ato de negar eresponsável pelo seu direcionamento. Portanto, a negação não só gera lacunas norepertório textual selecionado nos campos de referência extratextuais, mas tambémdesloca o leitor para uma posição intermediária entre o que foi cancelado e o queprecisa ser suprido como motivação para tal cancelamento. O leitor é instigado aassumir nova posição em relação ao que foi negado.7
7 Ibid., p. 31.
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O debate sobre o texto desenvolveu-se, justamente, no espaço entre o que foi negado
e o que precisa ser suprido. E para enfatizar o papel da negação no conto, iniciei a
discussão perguntando se o grupo percebia que não poderíamos ler o conto ao pé da letra,
ou seja, que seria inviável apenas impor a idéia do primeiro segmento do texto sobre o
segundo. Imediatamente Michel, um participante, disse que para ler o conto devemos
pensar em outros sentidos para as palavras e Eliane, outra participante, sugeriu que a
coceira do ouvido poderia significar um problema. Nesse momento, os leitores assumem
novas posições em relação aos elementos selecionados, porque eles foram impulsionados a
negar as noções de coceira, de ouvido, e de chave que, ao mesmo tempo, correspondiam às
suas habituais noções e foram reafirmadas pelo primeiro parágrafo.
Percebi, então, que estava sendo iniciado o processo da leitura coletiva e que eles
vivenciaram uma completa mudança de perspectiva em relação aos elementos do primeiro
parágrafo para formar um sentido para o texto como um todo. Por essa razão, acredito que
eles começaram suas participações na discussão a partir da alteração de significados
atribuídos às frases, como na afirmação de Eliane referente à palavra “coceira”,
estendendo-as a todo o restante do conto. Dessa forma, pensei na metáfora, de Umberto
Eco8, que apresenta o texto ficcional como um bosque cortado por várias trilhas e afirmei
que, naquele momento, surgiu um caminho para compreender o texto. E, assim, perguntei
o que significariam, então, seguindo esse caminho, a chave e o molho de chaves. Em
resposta, Marcela argumentou que a chave é a solução do problema. A concepção figurada
de chave como algo que resolve problemas é reforçada em detrimento da sua noção literal
de girar fechaduras e abrir portas.
Perguntei também sobre o molho de chaves, e sobre a escolha da chave mais fina. E
seguindo a lógica do novo sentido para a chave, Eliane entendeu o molho de chaves como o
conjunto de soluções; para ela, a chave mais fina significa a solução mais simples. Ao
observar que essa interpretação se centrou no primeiro seguimento, lancei a pergunta
referente ao segundo parágrafo do texto: existe alguma ligação entre a solução de um
problema e o fato de a cabeça do homem lentamente se abrir? Em resposta, Marcela parte
da leitura de Eliane e explica que os problemas é que deixavam a cabeça do personagem
fechada.
8ECO, Umberto. Seis Passeios pelos bosques da ficção, p.12.
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Michel, porém, apresentou outra interpretação considerando a coceira como a
curiosidade, as chaves como conhecimentos e a chave mais fina como um conhecimento
mais simples que abriu a mente do homem para novos saberes. Essa leitura de Michel nos
conduziu a outras conexões e forçou o grupo a deixar de lado um caminho de interpretação
para experimentar outro.
Na emergência desse novo sentido, aproveitei para comentar sobre o caráter auto-
referencial do conto, argumentando que a chave pode significar um pequeno livro ou
pequeno texto que tem o poder de abrir as cabeças para novas idéias e pensamentos. Dessa
forma, tentei apresentar, por intermédio da metáfora, as metas iniciais dos encontros de
leitura: abrir as nossas cabeças através de livros, contos, vídeos e outros meios. Isso
porque, geralmente, a leitura é vista como apenas uma maneira de se obterem informações
e não de se criarem significados para um texto, usando a imaginação. Enfim, abrir nossas
cabeças.
Continuei na tentativa de demonstrar os fundamentos que estruturaram as atividades,
afirmando que o ato de “abrir a cabeça”, no sentido que Michel apresentou, tornou-se
muitas vezes um problema para várias sociedades do ocidente e principalmente para a
sociedade brasileira, na qual grande parte da população sempre foi excluída da cultura
escrita e reprimida direta ou indiretamente por tentar ter contato com determinados tipos de
obras, geralmente obras críticas aos valores vigentes. E, assim, associei esse assunto à
questão da leitura nas escolas. Isso pode explicar porque não aprendemos a abrir nossas
cabeças nas aulas de interpretação de textos. Nós somos nitidamente desestimulados a
pensar e imaginar, pois temos que responder conforme fichas de leitura, questionários de
interpretação de textos dos livros didáticos e principalmente conforme o que os
professores pensam.
Apesar de não ter sido planejada, achei que aquela foi uma ótima maneira de iniciar a
discussão sobre o relacionamento entre poder e leitura, porque, logo após vivenciarmos o
processo de construção de sentidos, pensamos os desdobramentos políticos da
interpretação, a partir da realidade comum a todos nós. E, desse ponto, resolvi abordar
alguns detalhes das formas de controle ao ato da leitura e perguntei se eles já tinham se
sentido constrangidos em alguma aula de leitura. Eles lembraram como a leitura oral de
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qualquer texto muitas vezes servia de castigo para os alunos que estavam conversando e
lembramos principalmente dos risos dos colegas e da repressão do professor quando ocorria
algo errado no momento da leitura.
Com o objetivo de rever a origem desse meu pensamento, fiz relatos de minha
experiência escolar. Por ser disléxico, eu cometia muitos erros tanto na escrita quanto na
leitura, e conseqüentemente sofria muito com as apresentações públicas dos meus erros e as
notas baixas que obtinha em testes como o famoso ditado. No momento em que expus
minhas vivências, os participantes manifestaram reações imediatas como risos, sorrisos e
afirmaram que eles também sofriam com isso, ou seja, a minha confissão criou outra forma
de relacionamento no qual a barreira estabelecida entre aluno e professor foi enfraquecida.
Porém, não perdemos o sentido da discussão e Michel nos alertou para a importância das
reações dos nossos antigos colegas de escola, nesse processo de controle e repressão.
Segundo ele, a ação de ridicularizar o colega e rir deste, justamente quando está
constrangido, contribuía muito para a permanência dessa situação de inibição, resultante do
clima autoritário.
Aqui, pensei que se apresentou um bom momento para fazer comentários sobre os
mecanismos do poder, a partir das concepções de Michel Foucault. Pois, no exemplo
citado, a repressão não está apenas na ação do professor mas também nas risadas e
brincadeiras dos colegas de escola. Por esse motivo, fiz a seguinte colocação:
(...) E aí o cara ri por você errar. É um mecanismo do poder. Tem uns caras que estudamisso agora. Porque geralmente o estudo sobre o poder era muito centrado na macropolítica(política dos governos regionais, nacionais e da política internacional). E atualmente temosestudos sobre poder que são mais micro, estudam as relações de poder entre homens emulheres, o poder na escola, no hospital. E, aí, muitos desses estudos mostram como existemredes de poder nas quais muitas pessoas usam o poder para te neutralizar... Por exemplo, umcolega de trabalho que tem o mesmo cargo que você e aí entra nesses jogos de poder para seproteger. Então, para se proteger do ridículo, ele ridiculariza o outro.9
A discussão caminhou para o que Michel Foucault10 classifica como táticas de
dominação, táticas essas que devemos analisar desde os níveis mais baixos para depois
entendê-las no plano mais global do poder, ou seja, nas relações mais cotidianas e locais
9 Este trecho é transcrição de minha fala no debate.
10 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder.
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como a família, o hospital, a prisão, a escola e outros. Encontramos o poder se formando
em redes a partir de situações e características próprias. Nesse caso da leitura na escola, são
geralmente produzidos discursos de verdade sobre os significados dos textos, normas são
formuladas para determinar como se deve ler corretamente, e a repressão se manifesta
quando supostos erros são cometidos. Quando a classe e o professor se unem para zombar
dos erros de algum aluno, cometidos na leitura, o ato de ler se torna refém de forças
repressivas que neutralizam o seu caráter singular e criativo.
Após a discussão desse conto, eu senti que estava me aproximando do objetivo de
articular a leitura com a política, pois, aqui, a questão do controle sobre a leitura e também
a questão da leitura como uma maneira de reconhecer os poderes dos leitores, no caso dos
participantes do encontro, foram sendo trabalhadas simultaneamente. Assim, essa situação
nos possibilitou transgredir as rígidas fronteiras estabelecidas entre teoria, prática, política,
literatura e cultura.
Após essa etapa, resolvi retomar a discussão dos textos e li em voz alta o segundo
texto da atividade: “Conto em letras garrafais”. Novamente ocorreram risadas após a
leitura, o que quebrou um pouco a atmosfera séria, produzida no momento em que eu havia
argumentado sobre leitura e política. Então, senti que a indeterminação vivida na leitura do
texto formou um outro tipo de ambiente, mais descontraído e rico em vozes, idéias e
insights.
O jogo de leitura reiniciou-se novamente a partir do “entre-lugar”, formado pelas
lacunas e negações que, nesse texto, estão situadas entre os dois primeiros parágrafos e o
terceiro. A condição de um homem, “que todos os dias esvaziava uma garrafa e depositava
uma mensagem dentro desta e a entregava ao mar”, foi assimilada pelos participantes como
uma simples ação, até a leitura da última frase, que os surpreendeu com o fato de que o
personagem ter-se-ia tornado alcoólatra.
Dessa vez, a discussão fluiu mais do que na leitura do conto anterior, pois havia mais
segurança e autonomia nas declarações. Por isso, observei que a idéia de enfatizar as
diferentes interpretações foi bem incorporada pelo grupo. Michel iniciou o debate
afirmando que o personagem necessitava de ajuda. Em linha de pensamento próxima a
essa, Eliane argumentou que o personagem necessitava, para continuar vivendo, de
respostas para as suas mensagens e, por não existir ninguém para responder-lhe, teria
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perdido sua auto-estima, ou seja, aqui o alcoolismo seria sinônimo de falta de amor
próprio.
As falas passaram a soar cada vez mais reflexivas e profundas. Michel defendeu a
idéia de que o homem necessitava de ajuda e de que a garrafa parecia uma espécie de
caminho errado, onde ele nunca conseguiria ajuda e só aumentaria seus problemas.
Entretanto, Marcela argumentou: “Esse ‘tornou-se alcoólatra’ não parece com um
alcoólatra realmente, não parece com uma pessoa que bebia, mas com a idéia mesma de
uma pessoa ferida.”11 Agora, estávamos experimentando uma verdadeira emergência de
interpretações singulares e autônomas.
Percebi isso claramente quando Eliane buscou, ao contrário de Marcela e Michel, ler
o “esvaziar a garrafa” como o ato de beber seu conteúdo. Essa leitura que associa o
esvaziar garrafa com o alcoolismo do personagem, apesar de ser perfeitamente viável, está
dentro de uma lógica, evidente após a leitura do último parágrafo, na qual o alcoolismo
adquirido pelo personagem influencia a compreensão do esvaziar a garrafa como o
consumo de bebida alcoólica. Nesse caso, o jogo de figura e fundo, entre os primeiros
segmentos do texto e o último, criou uma idéia geral do texto nada conflituosa com as
nossas formas de compreensão cotidiana, ou seja, aqui, tratava-se do seguinte raciocínio: se
ele se tornou alcoólatra e esvaziou garrafas, logo ele ingeriu a bebida com algum teor
alcoólico contida nessas garrafas. Assim sendo, acredito que as leituras de Marcela e
Michel já eram negações de uma lógica pré-estabelecida e que eles já não se contentavam
com essa interpretação e tentaram construir outras, segundo as suas perspectivas, mais
complexa.
Ao observar esse contraste de interpretações, resolvi provocar mais o debate,
perguntando para Eliane se de fato o “esvaziar a garrafa” é exclusivamente beber o
conteúdo de uma garrafa de bebida alcoólica. Ao mesmo tempo, isso estimulou Marcela a
reforçar sua interpretação, contrária a essa idéia. Apesar de achar interessante a tentativa de
Marcela e de Michel de escaparem dessa interpretação, argumentei que a leitura de Eliane é
perfeitamente viável e não é inferior a qualquer outra.
11 Frase transcrita da gravação do encontro de leitura.
49
Em seguida, repeti a primeira frase do conto – “todos os dias esvaziava uma garrafa”
-- na intenção de manter viva a discussão e novamente Marcela tomou a frente, falando de
forma pausada, pois estava formulando seu pensamento, e argumentou: “todos os dias
esvaziava, era a vontade de se expressar, de que alguém o entenda, vontade de se expor”12.
Coincidentemente a minha leitura do conto, naquele momento, era muito próxima da
que Marcela havia formulado. Então, senti que esse era o momento certo de apresentar a
minha interpretação, baseada na idéia de que, no conto, a garrafa pode representar o próprio
personagem. Assim, segundo essa minha leitura, quando o homem esvazia garrafas, ele se
esvazia e coloca dentro de si a sua própria mensagem, ou seja, introspectivamente ele
aprisiona, em si mesmo as suas mensagens ou simplesmente não se expressava, conforme
as palavras de Marcela. Em conseqüência, ele nunca recebeu resposta e procurou uma fuga
no álcool.
Eliane, entrando no campo de significados que eu estava experimentando, passou a
pensar nesse caminho e explicou que, da maneira como é apresentado, o personagem
realmente jamais poderia receber respostas. Porém, logo depois, sentindo as mudanças nas
leituras, comentou que, caso nós fôssemos levados pela interpretação, que apresentei, não
teríamos volta. Esse comentário é uma demonstração de como a diversidade das leituras
abala a habitual maneira de interpretar os textos, a ponto de criar, como aconteceu com essa
participante, a impressão de que estávamos perdidos num oceano de possibilidades
interpretativas.
Aqui, Eliane entrou em questões do plano da teoria literária, porque há em sua
intervenção a preocupação com a existência ou não de limites para o trabalho interpretativo
e também, conforme o outro comentário, com o tipo de função da linguagem no conto. O
interesse por classificar o tipo de função de linguagem que o conto representa foi fruto do
conteúdo dado pela aula de literatura que ela havia assistido na mesma semana.
Considerei muito interessante esse deslocamento das tentativas de compreensão do
texto para as reflexões sobre a leitura, a forma e a função do texto. Mas, ao mesmo tempo,
resolvi não prender a discussão a esses aspectos, porque achei que isso poderia reduzir o
texto literário a um mero objeto de classificação e enfraquecer o perfil múltiplo da
atividade.
12 Idem.
50
3.5
A interação entre vídeo e o telespectador no clipe Another brick in the wall
Escolhi o videoclipe Another brick in the wall com a intenção de discutir um “texto”
que aborde a repressão exercida dentro da escola. E, simultaneamente, procurei ampliar a
interação coletiva entre texto e leitores para a interação entre telespectadores e vídeo.
O videoclipe, resumidamente, trata de uma situação na qual um professor de
matemática repreende e ridiculariza um aluno, na sala de aula, ao encontrar, em sua mesa,
poemas que o próprio menino escreveu. O menino não reage à atitude do professor, mas se
imagina destruindo a escola junto com seus colegas. Porém, a escola imaginada não é como
a sua escola de fato e sim uma espécie de galpão, dividido em seções como uma fábrica de
montagem, onde os alunos, vestidos de máscaras sem qualquer expressão, marcham em
direção a imensos moedores de carne.
É importante frisar que Another brick in the wall - part II é um trecho do longa
metragem The Wall, ópera-rock do grupo Pink Floyd. A emissora especializada em música,
MTV, retirou essa parte e transformou-a em videoclipe, devido a seu maior sucesso diante
das outras músicas da obra. Pode-se então afirmar, que The Wall é uma “ópera eletrônica”,
pois foi feita exclusivamente na forma de filme, com a direção de Alan Parker em 1982.
Somente ocorreu uma apresentação ao vivo, em caráter excepcional, em 1991, em
homenagem à queda do muro de Berlim, conforme uma promessa que fez Roger Walters,
líder da banda e que promoveu a apresentação.
Então, houve a união entre o tema da atividade e o objetivo do próprio trabalho, ou
seja, o objetivo era praticar a leitura coletiva do vídeo e refletir sobre um caso de ações
repressivas em relação à literatura. Não podemos esquecer também que estamos lidando
com a leitura de um tipo de discurso que é um dos mais expressivos exemplos da produção
cultural globalizada da mídia eletrônica pós-moderna.
Por outro lado, a eleição do clipe é fruto também de minha memória pessoal, das
lembranças de como as letras de protesto de muitos conjuntos de rock influenciaram o meu
interesse por discussões políticas, por atitudes de protesto ou de resistência. Dentro desse
universo de sons de guitarras distorcidas e fortes frases contra o sistema, o capitalismo e o
51
Estado, comecei a construir interpretações que eu considerava exclusivamente minhas. A
ópera-rock The Wall teve um papel pioneiro e fundamental para esse processo de
autoconsciência de minha capacidade leitora. Lembro que, quando vi pelas primeiras vezes,
The Wall, precisei fazer um prazeroso esforço de leitura para compreender aquele
complexo conjunto de imagens velozes, sons e letras, sem nenhum diálogo. Enfim,
entender o louco mundo de um homem, onde cada parte de sua existência correspondeu a
um tijolo do imenso muro que o isolou do resto do mundo.
Isso tudo ocorreu quando eu tinha entre quinze e dezesseis anos, era final dos anos
oitenta e Pink Floyd, já era consagrado como uma das mais importantes bandas de rock do
mundo. Suas músicas tocavam em muitas emissoras, principalmente as músicas de The
Wall, em destaque a música Another brick in the wall. Mas The Wall foi criada em 1982 e
Pink Floyd é uma banda dos anos sessenta que participou do movimento chamado rock
progressivo, movimento no qual os músicos misturavam rock‘n´roll com música clássica.
E The Wall é justamente uma experiência dessa natureza, onde uma banda de rock utiliza a
estrutura da ópera para produzir um álbum e um longa metragem.
Após a exibição do híbrido videoclipe, iniciamos o debate. Antes de tudo, é
importante destacar que, na discussão do videoclipe, os participantes não interagiram com
o clipe da mesma forma que ocorreu com o texto literário. Eles não exploraram muito os
detalhes e sutilezas como fizeram na leitura dos contos; preferiram discutir mais os
assuntos tratados: controle, disciplina e literatura. Acredito que as explicações para isso
estão relacionadas ao fato de que o videoclipe é uma espécie de discurso no qual, devido a
sua alta velocidade, as lacunas e negações tornam-se, muitas vezes, quase imperceptíveis,
ao contrário dos textos literários.
Fredric Jameson, utilizando o conceito de “fluxo total” de Raymond Willians,
argumenta que o “bloqueio do pensamento original ante essa sólida janelinha contra a qual
batemos a cabeça é relacionado exatamente com esse fluxo total ou ininterrupto que
observamos através dela.”13. Conforme essa perspectiva, a ausência de intervalos, que
percebemos tanto em toda a programação das emissoras de televisão, quanto na própria
seqüência de imagens contidas num vídeo, dificulta o uso da memória e conseqüentemente
da capacidade crítica.
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Mesmo que o videoclipe em questão não esteja completamente dentro da
fragmentária ausência de sentido dos clipes mais atuais, existe, aqui também, a alta
velocidade das seqüências, das mudanças e o uso de animação. Isso provocou um tipo
interação na qual os participantes não buscaram significados de forma detalhada, como
aconteceu com o texto literário, mas sim leituras mais generalizantes que muitas vezes
fugiam do conteúdo do vídeo em direção aos vários assuntos desdobrados no debate.
Compreendi também que a leitura do videoclipe, desvinculada do conhecimento do
restante do filme, provoca um certo tédio. Creio que uma explicação para isso está no fato
de que, no videoclipe, estrutura-se uma espécie de repetição discursiva, na qual partes das
letras das músicas são representadas em cena, isso faz com que uma mesma coisa seja dita
duas vezes.
No caso do videoclipe da música Another brick in the wall, por exemplo, as cenas
são explicadas, pela fala do professor na sala de aula, pela explicação do coro e
essencialmente pela letra da canção. O videoclipe inicia-se com as cenas de um professor
que sai da sala dos professores e entra na sala de aula, olhando de forma ameaçadora para
os alunos, ao mesmo tempo, o coro canta: “Quando crescemos e fomos à escola havia lá
professores que feriam as crianças como podiam. Zombando de nós o que quer que
fizéssemos, exibindo toda fraqueza que as crianças escondiam com cuidado”.
Em seguida, o professor anda até a mesa do menino e pega os seus poemas, que
estavam expostos, e fala para o aluno: “O que temos aqui, garoto? Rabiscos misteriosos?
Um código secreto?”. E, com os poemas na mão, dirige-se para a turma dizendo: “Nada
menos que poemas, pessoal! O garoto se acha um poeta” e lê os poemas em voz alta para
toda a turma que já estava dando risadas do constrangimento, demonstrado pelo tenso e
instrospectivo garoto: “Ele devolve a grana. Jack, sou bacana. Tire a mão daí, sacana. Um
sonho quatro estrelas: carro novo, caviar. Acho que vou comprar um time de futebol.”. Ao
terminar a leitura, o professor agressivamente atira o caderno, onde estão os poemas, na
mesa do aluno e grita: “Um lixo, garoto. E agora, continue o seu trabalho”. A seqüência
seguinte já apresenta o professor em sua casa, sendo controlado e infernizado por sua
mulher e, ao contrário de seu aspecto na sala de aula, ele tem aqui uma fisionomia passiva e
medrosa. Essa cena é representada e acompanhada pela fala do coro.
13 JAMESON, F. Vídeo: surrealismo sem inconsciente. In JAMESON, F. A lógica do cultural do capitalismo
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O debate teve início, quando Michel nos chamou a atenção para a falta de
sentimentos do professor para com o aluno, argumentando que o seu comportamento
arrogante e autoritário seria, na verdade, fruto de problemas pessoais que ele passa de
forma negativa para os alunos, sem se preocupar com o que eles estão sentindo.
Aproveitei a fala de Michel para comentar sobre a cena em que justamente o
professor reprime e ridiculariza o aluno ao encontrar os poemas em sua mesa. Em seguida,
apresentei a minha interpretação, baseada na idéia de que o professor usa o seu poder para
neutralizar a capacidade criativa do menino. Em outras palavras, a criação literária,
representada aqui pelos poemas do garoto, é um discurso estranho que precisa ser reprimido
e até excluído pelo professor. E mencionando a reação do garoto, exclusivamente
imaginária, na qual ele fantasia que com os seus colegas está destruindo a escola, perguntei
para o grupo o que eles pensaram sobre as imagens do clipe.
Eliane destacou as imagens das crianças marchando e sendo trituradas no moedor de
carne e argumentou: “Como se as crianças fossem robôs. Tinham que fazer o que eles
queriam sem questionar, sem reclamar, sem nada e se saíssem da linha apanhavam”14. Já
para Michel as imagens da escola, no videoclipe, pareciam mais com as de uma fábrica.
As observações de Eliane e Michel sobre as imagens demonstram como, mesmo na
velocidade do vídeo, o processo de interação também é configurado a partir da
negatividade, pois foi nas conotações, em forma de imagens animadas, do espaço escolar –
apresentado como uma mistura de quartel, fábrica, presídio ou matadouro --, que eles
encontraram o ponto de partida para as suas interpretações.
O silêncio que surgiu logo depois dessas participações me forçou a lançar novas
perguntas e observações. Tentei, inicialmente, levar a discussão para o tema central da
música -- o muro --, mas percebi que era impossível fazer isso sem contar toda a história do
filme. Dessa maneira, quando perguntei: “para que serve o muro”, palavras como
separação, prisão e barreira emergiram das falas dos participantes. E eu afirmei que havia
outra função, o isolamento, e contei de forma resumida a história do filme.
A imposição e a repressão no ambiente escolar foi o tema que predominou na
discussão, porém o que me surpreendeu foi a preocupação dos participante em comentar a
Tardio, p.91
14 Transcrição da fala da participante.
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questão da disciplina na sociedade inglesa. Ou seja, pensei que poderia apresentar o vídeo
como um exemplo de controle disciplinar, exercido na relação entre professor e aluno, para
todas as sociedades do ocidente, mas na recepção do grupo a situação foi associada
especificamente à sociedade inglesa. Enfim as diferenças culturais entre a educação
brasileira e a inglesa foram muito discutidas pelos participantes.