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A constituição do sujeito: abordagens diversas Regina Mary César Reis Departamento de Pedagogia Universidade de Taubaté RESUMO Com o objetivo de refletir sobre a constituição do ser humano como sujeito e o papel da escola nessa cons- tituição, o presente texto discute diferentes aborda- gens formuladas a partir da filosofia, da psicologia e da sociologia. Edgar Morin fundamenta uma concep- ção filosófica de sujeito com base na biologia, ressal- tando sua complexidade e a importância do contexto na formação da consciência. A concepção psicológica de sujeito é apresentada sob a ótica construtivista de Piaget e na dialética de Vygotsky e de Wallon. A con- tribuição sociológica é ilustrada por algumas idéias de Edwards, sobre a constituição do aluno como sujeito no interior da instituição escolar. As análises e refle- xões sinalizam a emergência de um novo paradigma de conhecimento para as ciências humanas e sociais, uma compreensão mais aprofundada da subjetivida- de humana e do papel do aluno, como sujeito do processo de aprendizagem escolar. Dessa forma, o aluno deve ser compreendido como um sujeito dota- do de autonomia e não um indivíduo isolado e abstra- to. PALAVRAS-CHAVE Noção de sujeito. Desenvolvimento psicológico. Escola. Aluno. Não somos meros reprodutores passivos de uma realidade independente de nossa observação, assim como não temos liberdade absoluta para eleger de forma irrestrita a construção da reali- dade que levaremos a cabo. A operação ativa de construção/desconstrução (no contexto) que os grupos humanos fazem sobre o que será seu “universo” – objeto de conhecimento – coincide com sua emergência simultânea como sujeitos no mesmo processo de constru- ção. (SCHNITMAN, 1996, p. 16) INTRODUÇÃO As sociedades contemporâneas vêm acumulando numerosos progressos científicos e tecnológicos que permitem a formulação de novas ciências, novas perspectivas sobre as ciências, e que acabam por dar origem a incertezas, indagações, mudanças e à emer- gência de novos paradigmas. Esses novos paradigmas questionam premissas e noções que vinham, até en- tão, orientando a atividade científica, e favorecem reflexões de ordem filosófica, psicológica ou socioló- gica sobre a cultura, a ação social do sujeito e sobre a sua subjetividade. Neste sentido, participam da cria- ção da ciência contemporânea, de forma substantiva, o contexto sociocultural, a história e a ação do sujeito. Quando se analisa a convergência entre ciência, processos socioculturais e subjetividade, o sujeito emerge com toda sua complexidade e requer, na busca de sua compreensão, uma perspectiva que con- sidere sua formação biológica e seu desenvolvimento psicossocial. Com o objetivo de compreender a condição do aluno como sujeito do processo de aprendizagem escolar, procuramos refletir sobre diferentes enfoques que discutem a constituição do sujeito. Partindo de uma reflexão sobre a noção de sujeito formulada por Morin (1996), transitamos pela construção psicológica do sujeito, autor de seu próprio desenvolvimento, conforme algumas idéias de Piaget (1989), Piaget e Inhelder (1990), Vygotsky (1989, 1991) e Wallon (1986), e focalizamos, à luz da acepção de Edwards (1997), o aluno - sujeito no universo escolar. MORIN E A COMPLEXIDADE DO SUJEITO No que segue, apresentamos uma discussão so- bre a noção de sujeito proposta como um novo paradigma de cientificidade, por Morin (1996). Segundo Morin (1996), em quase todas as línguas existe uma primeira pessoa do singular - EU. EU sou quem pensa, desde que Descartes assim indicou: não posso duvidar de minha dúvida. Ou melhor, minha única certeza é a de que existo. Descartes expressou a existência de dois mundos: o mundo dos objetos, relevantes ao conhecimento objetivo, científico, e o mundo dos sujeitos, que permite outra forma de co- nhecimento - intuitivo, reflexivo. Considerando-se esta oposição, não é possível encontrar sustentação para a Rev. ciênc. hum, Taubaté, v. 11, n. 2, p. 103-112, jul./dez. 2005. 103

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A constituição do sujeito: abordagensdiversasRegina Mary César ReisDepartamento de PedagogiaUniversidade de Taubaté

RESUMOCom o objetivo de refletir sobre a constituição do serhumano como sujeito e o papel da escola nessa cons-tituição, o presente texto discute diferentes aborda-gens formuladas a partir da filosofia, da psicologia eda sociologia. Edgar Morin fundamenta uma concep-ção filosófica de sujeito com base na biologia, ressal-tando sua complexidade e a importância do contextona formação da consciência. A concepção psicológicade sujeito é apresentada sob a ótica construtivista dePiaget e na dialética de Vygotsky e de Wallon. A con-tribuição sociológica é ilustrada por algumas idéias deEdwards, sobre a constituição do aluno como sujeitono interior da instituição escolar. As análises e refle-xões sinalizam a emergência de um novo paradigmade conhecimento para as ciências humanas e sociais,uma compreensão mais aprofundada da subjetivida-de humana e do papel do aluno, como sujeito doprocesso de aprendizagem escolar. Dessa forma, oaluno deve ser compreendido como um sujeito dota-do de autonomia e não um indivíduo isolado e abstra-to.

PALAVRAS-CHAVENoção de sujeito. Desenvolvimento psicológico.

Escola. Aluno.

Não somos meros reprodutores passivos de umarealidade independente de nossa observação,assim como não temos liberdade absoluta paraeleger de forma irrestrita a construção da reali-dade que levaremos a cabo. A operação ativade construção/desconstrução (no contexto)que os grupos humanos fazem sobre o queserá seu “universo” – objeto de conhecimento– coincide com sua emergência simultâneacomo sujeitos no mesmo processo de constru-ção.

(SCHNITMAN, 1996, p. 16)

INTRODUÇÃOAs sociedades contemporâneas vêm acumulando

numerosos progressos científicos e tecnológicos quepermitem a formulação de novas ciências, novas

perspectivas sobre as ciências, e que acabam por darorigem a incertezas, indagações, mudanças e à emer-gência de novos paradigmas. Esses novos paradigmasquestionam premissas e noções que vinham, até en-tão, orientando a atividade científica, e favorecemreflexões de ordem filosófica, psicológica ou socioló-gica sobre a cultura, a ação social do sujeito e sobre asua subjetividade. Neste sentido, participam da cria-ção da ciência contemporânea, de forma substantiva,o contexto sociocultural, a história e a ação do sujeito.

Quando se analisa a convergência entre ciência,processos socioculturais e subjetividade, o sujeitoemerge com toda sua complexidade e requer, nabusca de sua compreensão, uma perspectiva que con-sidere sua formação biológica e seu desenvolvimentopsicossocial.

Com o objetivo de compreender a condição doaluno como sujeito do processo de aprendizagemescolar, procuramos refletir sobre diferentes enfoquesque discutem a constituição do sujeito. Partindo deuma reflexão sobre a noção de sujeito formulada porMorin (1996), transitamos pela construção psicológicado sujeito, autor de seu próprio desenvolvimento,conforme algumas idéias de Piaget (1989), Piaget eInhelder (1990), Vygotsky (1989, 1991) e Wallon (1986),e focalizamos, à luz da acepção de Edwards (1997), oaluno - sujeito no universo escolar.

MORIN E A COMPLEXIDADE DO SUJEITONo que segue, apresentamos uma discussão so-

bre a noção de sujeito proposta como um novoparadigma de cientificidade, por Morin (1996).

Segundo Morin (1996), em quase todas as línguasexiste uma primeira pessoa do singular - EU. EU souquem pensa, desde que Descartes assim indicou: nãoposso duvidar de minha dúvida. Ou melhor, minhaúnica certeza é a de que existo. Descartes expressoua existência de dois mundos: o mundo dos objetos,relevantes ao conhecimento objetivo, científico, e omundo dos sujeitos, que permite outra forma de co-nhecimento - intuitivo, reflexivo. Considerando-se estaoposição, não é possível encontrar sustentação para a

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noção de sujeito na ciência clássica. Para Descartes,em seu famoso “cogito”, o sujeito torna-se fundamentode toda verdade possível. Na ciência clássica, a subje-tividade é vista apenas como contingência e fonte deerros, por isso o observador foi sempre excluído desua observação, e o pensador, de sua concepção.

No século XX, a adoção do modelo de cientificidadeclássica nas ciências humanas e sociais acaba afastan-do o sujeito da psicologia, substituindo-o por estímu-los, respostas, comportamentos. Do mesmo modo, osujeito é expulso da história, da antropologia, da soci-ologia. O retorno do sujeito ocorre a partir da filoso-fia, onde ele se encontra novamente problematizado(MORIN, 1996).

Morin (1996) fundamenta cientificamente a no-ção de sujeito a partir de uma definição “biológica”.Biológica, no sentido de correspondência à lógica doser vivo, e científica, pela possibilidade de conceber aautonomia, que não era possível numa visãomecanicista e determinista. A noção de autonomia étomada, não no sentido de liberdade, mas de depen-dência, que se liga à noção de auto-organização. Se-gundo Foerster (1968, apud MORIN, 1996, p. 46),

[...] a auto-organização significa obviamente au-tonomia, mas um sistema auto-organizador éum sistema que deve trabalhar para construire reconstruir sua autonomia e que, portanto,dilapida energia.

Neste sentido, e de acordo com a termodinâmica,o sistema necessita extrair energia do exterior; emsendo assim, para ser autônomo, depende do mundoexterno. Essa dependência não é apenas energética,mas também informativa, pois o ser vivo necessitaextrair informação do mundo externo, para organizaro seu comportamento. De acordo com Morin (1996),nós, por exemplo, temos a organização cronológicada Terra inserida em nosso organismo. Assim, o movi-mento de rotação da Terra ao redor do Sol, produzem nós, como em muitos animais e plantas, um ritmobiológico (ritmo circadiano) de cerca de 24 horas, oque significa uma espécie de relógio interno que re-gistra o processo alternado do dia e da noite. Há, pois,na autonomia, uma “[...] profunda dependênciaenergética, informativa e organizativa a respeito domundo exterior”. A isso, Morin (1996, p. 47) denomi-na de auto-eco-organização, por entender que depen-demos de nosso meio ambiente, seja ele biológico,meteorológico, sociológico ou cultural.

Biologicamente falando, existe uma relação entreespécie e indivíduo. O indivíduo é produto de umprocesso de reprodução. Contudo, esse produto é quevai produzir seu próprio processo de vida, num ciclorotativo. Assim sendo, pode-se considerar a sociedade

como produto de interações entre indivíduos. Essasinterações produzem uma organização com qualida-des próprias: a linguagem e a cultura, entendidas comopráticas construtoras de processos sociais e construídaspor esses mesmos processos. São os indivíduos quecriam a sociedade, e esta produz os indivíduos.

A noção de sujeito supõe também uma autono-mia-dependência do indivíduo, embora não se redu-za a isso. A biologia molecular e a genética fornecemelementos importantes para a compreensão dessaorganização. Tomando um caso menos complexo deorganização bacteriana, é possível perceber que abactéria é um ser e ao mesmo tempo uma máquina eum computador. Nas máquinas artificiais existe umcomputador que controla, conectado a uma máquina.No caso da bactéria, não há nem computador separa-do, nem máquinas, mas os dois num mesmo ser, istoé, um “ser – máquina”, um ser “computante”. Ser“computante” no sentido de um ser que se ocupados signos, de índices, de dados, de “informações”.Por meio de signos, índices e dados, trata com seumundo interno e com o exterior. Nisto reside a analo-gia e a diferença com a operação de computadoresartificiais. A bactéria computa para existir e se deixade computar morre porque não mais produz os ele-mentos que a constituem. É como se a bactéria pu-desse dizer “computo ergo sum” (MORIN, 1996, p.48 e 49).

Para Morin (1996) o “computo” é necessário paraa existência do ser e do sujeito. Computar, no sentidode colocar-se no centro do mundo, do mundo queconhece, para tratá-lo e realizar as ações necessárias àproteção, à defesa. A noção de sujeito aparece com o“computo”, com a ocupação da posição egocêntrica,num ato de objetivação do eu, que é constitutivo daprópria identidade. O eu é, ao mesmo tempo, o “atode ocupação da posição egocêntrica” e o surgimentodo sujeito.

Para referir-se ao eu mesmo, o indivíduo objetivao sujeito e remete-o a si mesmo como uma entidadecorporal. Essa objetivação ocorre porque a subjetivi-dade auto-organizadora se expressa por meio da lin-guagem. Um complexo princípio de identidade per-mite o tratamento objetivo, com finalidade subjetiva.Na auto-referência, trato a mim mesmo, referimo-mea mim mesmo, porque permaneço como eu-sujeito.

Como Morin (1996) toma a auto-organização comouma auto-eco-organização, pode considerar a auto-re-ferência como auto-exo-referência, alegando que, parareferir-se a si mesmo, é preciso referir-se ao mundoexterior. O processo de auto-exo-referência é

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constitutivo da identidade subjetiva e permite que seopere a diferença entre o eu e os outros eus.

Há um outro princípio de identidade na invariânciado eu-sujeito que se mantém, apesar das inúmerasmodificações corporais, celulares, moleculares e detransformações. É certo que a cada quatro anos o or-ganismo humano se renova, porque a maior parte dascélulas desaparece, sendo substituídas por outras; as-sim, biologicamente, já não somos os mesmos quehá quatro anos. Outras grandes modificações transfor-mam uma criança em adolescente, mais tarde emadulto, e depois em ancião. Embora não tenha sem-pre o mesmo corpo ou o mesmo rosto, o eu ocupaum lugar central e se mantém através das modifica-ções que vão ocorrendo, estabelecendo a continuida-de da identidade. Contudo, essa identidade não é es-tável, posto que somos diferentes, dependendo doshumores e das paixões, segundo sentimentos de dorou ódio, daí se poder falar numa múltipla personalida-de em que o eu realiza a unidade (MORIN, 1996).

É possível definir o sujeito como qualidade funda-mental, própria do ser vivo, que não se reduz à singu-laridade morfológica ou psicológica, posto que doisgêmeos idênticos são psicologicamente emorfologicamente diferentes. Conforme Morin (1996),o ser humano possui um sistema neurocerebral queproduz o conhecimento e o comportamento. Existeum sujeito cerebral que é um sujeito no ato da per-cepção, da representação, da decisão, do comporta-mento. O que se considera como “subjetivo” é o com-ponente que está ligado à emoção, ao sentimento, ese refere a algum aspecto contingente e arbitrário. Aafetividade como traço constitutivo do sujeito depen-de de seu desenvolvimento num nível superior.

Outro aspecto próprio do sujeito humano, segun-do Morin (1996), liga-se à linguagem e à cultura. É pormeio da linguagem, como instrumento de objetivação,que o indivíduo-sujeito pode tomar consciência de simesmo. A consciência requer um cérebro desenvolvi-do e a linguagem, ou seja, uma cultura. É pela consci-ência que nos objetivamos a nós mesmos. No níveldo ser subjetivo, tem-se a liberdade. A liberdade comopossibilidade do sujeito, de escolha entre alternativasdiversas e que supõe duas condições: uma interna, acapacidade cerebral, mental, intelectual de conside-rar uma situação, e de fazer escolhas; e outra, exter-na, na qual essas escolhas são possíveis. Há, portanto,diferentes graus de liberdade, que permitem ao sujei-to escolhas mais ou menos amplas e básicas.

Morin (1996) considera que, para se pensar o su-jeito, temos que incorporá-lo no seu contexto. É nocontexto que o sujeito emerge como tal, num pro-

cesso anterior ao próprio sujeito. A autonomia do su-jeito, em nossa sociedade, ocorre no momento emque ele escolhe seus valores, elege e se identificacom eles. A tomada de consciência possibilita umailuminação ética, por isso o sujeito moderno revelaconflitos éticos, ou seja, deve fazer escolhas em meioa imperativos fortes e, muitas vezes, antagônicos. Osconflitos surgem justamente pelas muitas injunçõescontrárias. A tomada de consciência permite a voltado indivíduo à sua condição de sujeito, que é a deviver na incerteza e no risco.

A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO NA PERSPECTIVADA PSICOLOGIA

Nesta discussão, apresentamos algumas concep-ções sobre o sujeito psicológico, presentes nas abor-dagens de Piaget, Vygotsky e Wallon, bem como nasidéias de pesquisadores brasileiros que discutem es-sas obras. Embora inspirados por matrizesepistemológicas diversas e revelando posicionamentosdiferentes em relação a aspectos da evolução mentaldo ser humano, esses teóricos apresentam certo con-senso quanto ao funcionamento psicológico de nossamente. Consideram, por exemplo, que o indivíduo nãose submete passivamente às imposições do meio, mastem uma participação ativa no seu próprio processode desenvolvimento, e enfatizam o papel da interaçãoe da capacidade de representação simbólica comoaspecto propulsor desse processo.

Piaget (1989) Piaget e Inhelder (1990), partindoda Biologia, desenvolveu uma epistemologia genéti-ca, cuja idéia básica é a de que o sujeito constrói osconhecimentos e a própria inteligência de uma formaativa. Assim, na interação com a realidade, com asinformações disponíveis e que vão sendo assimiladas,o sujeito, pela própria ação, constrói e transforma oseu mundo, o meio que o circunda. Neste sentido, háuma relação de interdependência entre o sujeitocognoscente e o objeto do conhecimento, e este sópode ser conhecido por aproximações sucessivas, pormeio da atividade do sujeito.

Segundo Banks-Leite (1991), embora a ênfasepiagetiana esteja no papel ativo do sujeito nas suastrocas com o meio, não está aprofundada a contribui-ção do meio na estruturação dos conhecimentos. Asestruturas da inteligência são construídas por meio daorganização progressiva que decorre da interação entreas condições prévias do sujeito, isto é, da sua estrutu-ra física e das condições apresentadas pelo meio soci-al. A ação do sujeito é o ponto de partida para o de-senvolvimento cognitivo e fonte de organização e

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reorganização da percepção, visando à adaptação,sempre mais precisa e objetiva, à realidade. As estru-turas mentais são formas de organização da atividademental que variam de acordo com os níveis de de-senvolvimento intelectual alcançado em cada estágiodesse processo.

Para Piaget (1989, p. 12),[...] em todos os níveis, a ação supõe sempreum interesse que a desencadeia, podendo tra-tar-se de uma necessidade fisiológica, afetivaou intelectual [...].

O sujeito, na teoria piagetiana é, portanto, alguémque procura ativamente conhecer o mundo que orodeia, aprender com suas próprias ações sobre osobjetos desse mundo e construir, assim, categoriasde pensamento, ao mesmo tempo em que organizasua realidade objetiva. Esse sujeito ativo define seuspróprios problemas e vai espontaneamente constru-indo mecanismos para resolvê-los. O desenvolvimen-to do conhecimento permite a apropriação do objetonum processo que constitui uma autêntica constru-ção, pelo aparecimento sucessivo de estruturascognitivas cada vez mais profundas e abrangentes,sempre abertas a novas possibilidades de organizaçãoe reestruturação.

Do ponto de vista de Vygotsky (1989, 1991), e soba ótica do materialismo histórico dialético, mas tam-bém num enfoque genético, nos processos de de-senvolvimento, o indivíduo tem papel ativo na organi-zação do próprio comportamento. O desenvolvimen-to ocorre num processo dialético, no qual, a criança,por meio de sua atividade, interage com formas defuncionamento psicológico presentes na cultura, apro-pria-se delas e usa-as como instrumentos pessoais depensamento e ação. Neste sentido, as análises do pro-cesso em mudança no indivíduo que se desenvolvedevem centrar-se nas relações estabelecidas e media-das socialmente.

A corrente histórico-cultural formulada por Vygotskye colaboradores, na década de 1930, tem, portanto,como pressuposto básico a gênese social das funçõesmentais superiores. Além de proceder à síntese entreas tendências psicológicas existentes na psicologia daépoca, essas idéias permitem uma forma de compre-ender os processos psicológicos que integram o ho-mem considerado como mente e corpo, ser biológi-co e ser social, membro da espécie humana e partici-pante de um processo histórico datado econtextualizado. O ser humano não seria, portanto,mera obra da natureza, nem produto modelado ape-nas pela ação do meio ou resultado de processos dotipo adaptativo-interativo do organismo com o meio,mas uma produção social.

Para Vygotsky, o psiquismo humano tem uma na-tureza sociocultural cujo desenvolvimento resulta daapropriação de características propriamente humanase da produção cultural de seu grupo. Assim sendo, oindivíduo é uma produção social da qual ele mesmo“[...] participa na condição de sujeito [...]” (PINO, 1996,p. 17).

Em suas análises da obra de Vygotsky, Pino (1996,p. 28) observou que, quando são feitas referências àpessoa ou ao indivíduo, a questão do sujeito está pre-sente na psicologia sócio-histórica. Referir-se à pessoaou à personalidade social da pessoa traduz, melhorque a expressão “sujeito psicológico”, tudo aquilo quereflete a natureza sócio-cultural do homem.

A pessoa, na acepção de Vygotsky (1989), é mem-bro de um grupo social específico, constituindo umaunidade social definida para os outros e para si. Já oindivíduo é um produto singular de sua realidadesociocultural. O desenvolvimento cultural não resulta-ria do processo de socialização, da abertura do indiví-duo para a realidade, mas da individualização, que seconstitui na produção, pela realidade sócio-cultural,de uma individualidade personalizada (PINO, 1996).

Em Vygotsky há uma vinculação genética entre ocaráter social e o individual das ações. A ação do sujei-to é considerada a partir da ação de outros sujeitos. Aação é, portanto, o alicerce do desenvolvimento, ten-do em vista que, inicialmente, ela tem, para o sujeito,um significado partilhado.

O indivíduo só chega à consciência de si mesmopor meio da consciência do outro com o qual se en-volve em relações sociais. Ao se relacionar umas comas outras, as pessoas desempenham papéis sociais quedependem das posições ocupadas na relação. Nas suasrelações é que a pessoa ocupa diferentes posições desujeito. O sujeito é, portanto, constituinte das rela-ções sociais, e é constituído dessas mesmas relações(PINO, 1996).

Segundo Góes (1991), Vygotsky, ao postular queas funções psicológicas emergem e se consolidam noplano das ações entre os indivíduos, tornando-se in-terligadas, desloca a fonte de regulação para o pró-prio sujeito. Neste sentido, o funcionamento psicoló-gico não é apenas cópia do plano externo, mas resul-ta de uma apropriação das formas de ação que de-pendem, tanto das estratégias de conhecimento do-minadas pelo sujeito, quanto das situações ocorridasno contexto interativo. O caráter social da ação dosujeito não depende tão somente, da existência deum contexto social que influencia os processos sub-jetivos, mas decorre do plano intersujetivo, isto é, darelação do sujeito com o outro, por meio da

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internalização de capacidades. No plano subjetivo,esses processos permitem a construção de formas deação cada vez mais autônomas e auto-reguladas.

Para o sujeito, o conhecimento não é um dadoexterno produto da reprodução de ações mediadassocialmente, não é cópia do objeto, nem suas açõessão determinadas de forma linear pelo meio, pois elenão responde passivamente às solicitações, nem émoldado por esse meio. “O sujeito não é passivo, nemapenas ativo: é interativo” (GÓES, 1991, p. 21).

Para Góes (1991), o sujeito, em seu processo dedesenvolvimento, individualiza-se ao mesmo tempoem que se socializa. A individualização do ser socialse faz à medida que o sujeito incorpora formas maiselaboradas de atividades da sua cultura. Assim, o nívelde capacidade do sujeito e as ações que se realizamentre sujeitos podem afetar os conhecimentos e asestratégias que são usadas por eles. Esses conheci-mentos e estratégias conduzem os sujeitos às formassuperiores de mediação, as quais acarretam o desen-volvimento das funções mentais. Para a autora, faz-senecessária uma elaboração maior do papel do sujeitoe do significado que ele dá à ação do outro, o queviria contribuir para a reflexão teórica e o debate acer-ca das contribuições de Vygotsky para a psicologia.

Na psicogênese do desenvolvimento humano deWallon (1986), o objeto de análise é o próprio sujeito,isto é, a pessoa completa e concreta, considerada nassuas relações com o meio. Wallon descreve e inter-preta as formas pelas quais o indivíduo, consideradocomo sujeito social, emocional em sua essência, nas-ce e vai construindo sua individualidade, seu psiquismo,compreendendo e significando o mundo.

Para Wallon (1986), a evolução da criança não ca-minha no sentido da socialização, mas no daindividualização. Por meio da interação dialética como meio sociocultural, o organismo do sujeito individu-al estrutura-se de maneira a lhe abrir possibilidades ea lhe impor limites.

A constituição walloniana do sujeito pode tambémser analisada a partir de suas idéias acerca da imita-ção. De acordo com Wallon (1986), a imitação é amediadora na passagem da ação à representação.Contudo, essa função decorre do fato de que, na imi-tação inteligente, o modelo não é imposto, mas esco-lhido. Isso permite que se oponha ao modelo queserve de imitação, uma representação significativa.Conforme Pino (1993), tanto para si, como para osoutros, não se trata de mera atividade motora de re-produzir um modelo, mas uma operação semiótica

na qual a reprodução se constitui em significante des-se modelo que, por sua vez, refere-se também à pes-soa imitada.

Inicialmente o modelo reproduzido torna-se signodo outro para o sujeito que o reproduz. O eu participano outro, identificando-se com o modelo, podendoperder-se no outro porque se ignora a si mesmo. Emoutro momento, o modelo reproduzido torna-se sig-no do eu porque a criança se reconhece como dife-rente do outro. Opondo-se ao outro, o eu constitui-seem sujeito, isto é, torna-se o significante da própriasubjetividade para o sujeito. O eu é o signo do sujeito(PINO, 1993).

A consciência da própria subjetividade nasce daoposição/reconhecimento do outro como um não eu,que permite ao eu distanciar-se do modelo sem selibertar das marcas que este deixou no eu como sig-no da relação eu-outro (PINO, 1993).

Segundo Pino (1993), em Wallon o processo dedesdobramento da coisa e da sua representação, oudo significante e do significado, ocorre no símbolo eno signo, que são instrumentos de significação. Porsua natureza convencional, somente os signos possi-bilitam a verdadeira representação, permitindo quequalquer coisa sirva para representar qualquer outra,mesmo sem existir entre elas, uma natural ligação. Aconvenção sígnica implica cumplicidade e entendi-mento entre o eu e o outro.

Para Wallon (1986), é graças à linguagem que asrepresentações se desenvolvem, e todo processo decomunicação humana que supõe a mediação do ou-tro favorece a progressiva integração da criança nouniverso simbólico ou da significação. Entretanto, asrelações do sujeito com os outros são sempre contra-ditórias, gerando o que o autor denomina de conflitoautógeno, intra e interpessoal. O sujeito constrói-se eliberta-se na oposição ao outro e a seus produtos. Aautonomia do sujeito oscila entre os limites biológi-cos e os construídos pela história humana, que é fon-te para os conteúdos mentais. O sujeito walloniano é,portanto, um ser datado, contextualizado conforme asua estrutura biológica e a conjuntura histórica.

Na tentativa de proceder à síntese das idéias teó-ricas abordadas sobre a construção do sujeito no pro-cesso de desenvolvimento do psiquismo humano,cumpre-nos ressaltar o papel da cultura na constitui-ção da individualidade, o caráter dialético das relaçõeseu/outro, o significado da mediação nas interaçõessociais, a explicação da natureza, ao mesmo tempouna e múltipla, da subjetividade.

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O ALUNO COMO SUJEITO NO UNIVERSOESCOLAR

Numa vertente mais sociológica, pode-se afirmarque o ser humano é um sujeito social desde que nas-ce; vem ao mundo num grupo determinado, desen-volve-se na relação com os outros, mediada pelas sig-nificações sociais de seu meio; constitui-se, portanto,numa relação de mútua interação com o social. Ao seconstruir como tal, o sujeito é sempre um membrode uma classe social, de um segmento específico dela,estando, portanto, inserido na divisão social e técnicado trabalho, que o situa numa determinada posiçãosocial, com a qual se relaciona e dá significado aomundo.

Considerando a escola como a instituição social-mente designada para a transmissão do acervo cultu-ral acumulado pela humanidade e um espaço privile-giado na constituição do sujeito, discutimos, agora,algumas idéias de Edwards (1997), para fundamentara concepção de aluno como sujeito no processo deeducação formal.

Ao tomar o universo escolar como contexto dedesenvolvimento humano, Edwards (1997) analisa aparticipação do sujeito na constituição da situaçãoescolar e a construção do próprio sujeito por meiodessa participação. Segundo a autora, o sujeito cons-trói uma série de representações acerca da situaçãoescolar, e esta vai interferindo na constituição do pró-prio sujeito e, portanto, nas suas representações.

De acordo com Edwards (1997), as pesquisas so-bre educação enfocam, geralmente, a pessoa do pro-fessor e o seu trabalho, e poucas consideram a pers-pectiva do aluno enquanto sujeito. Isso não ocorrepor acaso, mas pela tradição de sua tarefa fundamen-tal, de ser o professor o transmissor do acervo culturale dos valores de uma para outra geração. Se, por umlado, o professor pode ser responsabilizado por umavisão de mundo atrelada à ideologia dominante, poroutro, ele é o responsável pela socialização dos bensculturais da humanidade. É o professor, portanto, nasua condição de profissional e educador, que tem sidomais enfatizado nos estudos que tratam da escola eda educação.

As investigações que enfocam a pessoa do alunoo fazem geralmente do ponto de vista psicológico, apartir de suas dificuldades, deficiências ou diferenças.Edwards sugere que é preciso levar em consideraçãoo cotidiano do aluno, o conjunto de atividades queconstituem o seu dia-a-dia na escola. A partir do coti-diano, pode-se também ter acesso ao não cotidiano,àquilo que o sujeito representa e expressa. É nas ati-

vidades de sala de aula que o sujeito educativo seexpressa em todas as suas dimensões.

A identidade do sujeito, segundo a autora, vaiemergindo a partir de suas práticas, que são diversas,multifacetadas e contraditórias. É por isso que, emsala de aula, os temas tratados pelo professor podemser defrontados de modos diferentes pelo mesmo alu-no, em cada ocasião. Apesar de compartilharem situa-ções comuns, é possível a cada sujeito reelaborá-lasde modo particular e diferentemente de seus cole-gas. Como o sujeito possui desejos, ilusões, esperan-ças, concepções de vida, de maneira freqüente podese afastar do racional, do consciente, e expressar-setambém naquilo que não diz, no alheamento, no si-lêncio, no que está reprimindo. Esses fatos ocorrem,não apenas no nível individual, como também no ní-vel do sujeito social.

Para Edwards (1997), do modo pelo qual a escolaenfoca o processo educativo, dependem as diferen-tes constituições de sujeitos. Isso porque a utilizaçãode métodos caracterizados como tradicionais, ativos,participativos e progressistas levam a diferentes for-mas de transmitir os conteúdos, em função, também,de diferentes teorias de aprendizagem utilizadas ouconsideradas. Ao se centrar no método, por exemplo,a compreensão do ato educativo fica obscurecida, assimcomo o papel desempenhado nele, pelo conhecimen-to escolar. A busca teórica de compreender a situaçãoa partir do conhecimento representa uma ruptura coma forma anterior, que se detém na questão do méto-do.

O conhecimento costuma ser definido como umaconstrução social e histórica de formas de perceber arealidade que se apresentam como verdadeiras, numperíodo histórico determinado. A partir dessas visõesde mundo é que são desenvolvidas as diversas ma-neiras pelas quais o sujeito se percebe a si próprio eao mundo.

Ao considerarmos o conhecimento como constru-ção histórica e, portanto, como verdade relativa àscondições de sua construção, fazemos deslocar o pro-blema da verdade essencial para a questão do inte-resse em torno do qual se constrói o conhecimento.Assim, as ciências empírico-analíticas estão orientadaspelo interesse técnico; as informações tornadas dis-poníveis referem-se a processos objetivados e passí-veis de utilização técnica. As ciências histórico-hermenêuticas buscam a compreensão do passadopara a aplicação no presente, e são construídas emtorno do interesse prático do conhecimento: buscama possibilidade de orientação da ação a partir da

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intersubjetividade compartilhada socialmente. A teo-ria crítica orienta-se para o interesse emancipatóriodo sujeito, libertando-o da dependência de poderes einfluências (EDWARDS, 1997).

Para essa autora, há uma realidade que independedo sujeito, mas que não pode ser concebida sem aatividade transformadora deste. Não sendo possívelapreender o objeto na sua totalidade, o sujeito fazum recorte da realidade para construir seu objeto deconhecimento a partir de suas concepções. Nestesentido é que o sujeito constrói seus conhecimentos.Ele se apropria da verdade nas suas relações com oobjeto, ao tentar apreendê-la. A teoria, nesta relação,está se construindo em toda a situação, portanto éponto de partida e de chegada.

Se a construção do conhecimento é determinadapelo interesse, constitui uma construção particular doreal, posto que é perpassada pela apropriação que osujeito faz do real. Tendo em vista que a relação entreo sujeito e a realidade é relativa, é possível, segundoEdwards (1997), atribuir um caráter relativo à constru-ção de conhecimentos. Conceber o conhecimentocomo relativo implica uma determinada construçãosocial da realidade, que, na escola, tem toda umaespecificidade. O conhecimento escolar tem, pois,características específicas, em virtude de sua existên-cia social e das mediações institucionais, que são da-tadas e determinadas. Assim sendo, os alunos, consi-derados como sujeitos de seu processo de apropria-ção de conhecimentos, participam também, da cons-trução da situação escolar.

O ALUNO COMO SUJEITO DA APRENDIZAGEMTendo por base o objetivo deste texto, de refletir

sobre diferentes enfoques acerca da constituição dosujeito para aprofundar a compreensão do aluno comosujeito do processo de aprendizagem escolar, analisa-mos algumas idéias que foram discutidas, à luz deconcepções de Edwards.

A definição biológica de sujeito proposta por Morin(1996) aponta para o sentido da relação entre a espé-cie humana e o indivíduo e a sua dependência domeio social e cultural. As análises sobre o aluno en-quanto sujeito, como propõe Edwards (1997), reque-rem a incorporação do seu contexto social de origeme de outros meios e ambientes nos quais interage.

O processo de ensino escolar deve considerar acomplexidade do sujeito, isto é, um ser ao mesmotempo biológico e psicossociocultural. É preciso bus-car a convergência entre as ciências humanas e asnaturais, entre a cultura e a filosofia, fazendo, confor-

me Morin (1996, p. 57), convergir a pluralidade depontos de vista para uma “iluminação ética”. Trata-sede uma tomada de consciência dos valores que regu-lam nossas escolhas, da necessidade de superar asconcepções que geralmente regem nosso pensamen-to: de disfunção, separação, redução.

As contribuições das ciências naturais para a refle-xão sobre a condição humana permitem, de acordocom Morin, uma visão mais integrada, mais cósmica eecológica, do sentido da vida no planeta. A complexi-dade do sujeito humano a que ele se refere é revela-da pela sua natureza, ao mesmo tempo biológica ecultural.

Em Edwards (1997), encontramos que o sujeito sópercebe a si próprio e ao mundo a partir de visõesconstruídas historicamente na cultura de seu grupo.Neste sentido, a escola, ao compreender o conheci-mento como construção histórica, verdade relativa eatrelada a interesses determinados, e ao refletir sobresua tarefa educativa, com uma visão integradora ecrítica do conhecimento, pode favorecer a emancipa-ção do sujeito. Ao considerar a natureza complexa dosujeito e o potencial que o conhecimento tem nodesenvolvimento de uma consciência reflexiva, a ati-vidade pedagógica assume um papel político trans-formador.

As teorias psicológicas apresentadas neste textotrazem contribuições expressivas para a discussão. Odesenvolvimento e a aprendizagem do sujeito, naacepção de Piaget (1971), acontecem na interaçãoentre a dotação genética presente na estrutura físicado indivíduo e as condições oferecidas pelo meio so-cial. Essa interação constitui um processo permanen-te de trocas e depende dos mecanismos funcionaisque ocorrem internamente no sujeito. Entretanto, é osujeito que busca, de forma ativa, apreender o mun-do que o rodeia, construindo categorias cada vez maiselaboradas de pensamento.

Edwards (1997), ao discutir a questão do alunocomo sujeito no universo escolar, adverte que a cons-trução de conhecimentos está condicionada à apro-priação que o sujeito faz da realidade. Como suas açõesdependem do interesse ou da necessidade, as condi-ções do meio social interferem no sentido atribuído,pelo aluno, ao conhecimento escolar. Seu papel ativoestá, portanto, condicionado à natureza da transmis-são social que ele vivencia nas suas práticas cotidia-nas, dentro ou fora da escola.

O papel ativo do indivíduo na organização do pró-prio comportamento é também salientado porVygotsky (1989,1991), ao postular a gênese social do

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desenvolvimento humano. Concebido como proces-so dialético, complexo, o desenvolvimento infantilcaracteriza-se por processos elementares de origembiológica, orgânica e as funções mentais superioresde natureza cultural. O aparecimento das funçõesmentais é mediado por sistemas simbólicos que fa-zem a transição entre o que é dado biologicamente eo adquirido na interação com o meio sociocultural.De acordo com Vygotsky (1989, 1991), a característicaessencial do aprendizado escolar é, pois, ativar pro-cessos internos de desenvolvimento que não ocorre-riam sem essa relação mediada pela cultura.

Em suas análises, Edwards (1997) avança na refle-xão sobre a influência do contexto interativo no de-senvolvimento de funções psicológicas que emergemno plano das ações dos indivíduos: o papel do sujeitoe o significado que ele atribui às ações do outro. Góes(1991) também alertou para a importância das situa-ções colocadas pelo contexto em que se dão asinterações sociais. Neste sentido, a atividadetransformadora do aluno como sujeito do processoeducativo escolar resulta dos recortes que ele faz darealidade, para apreendê-la a partir de suas concep-ções e na relação com os outros sujeitos e objetos. Énesse processo que a atividade do aluno constitui asituação escolar e constitui a ele próprio como sujei-to.

Em seus estudos sobre o desenvolvimento da cri-ança, Wallon (1986) explora as origens biológicas daconsciência como um processo resultante de condi-ções orgânicas e sociais. É a presença do outro quegarante a sobrevivência física e cultural do sujeito, oqual recebe informações de seu próprio organismo edo meio pela imitação do modelo ou pela oposição. Aaquisição da linguagem cria a possibilidade de repre-sentação e significação de símbolos e imagens. O“outro” participa na construção dos significados e daconstituição do eu, sendo um parceiro constante navida psíquica do sujeito.

Edwards (1997) sugere que a pesquisa em educa-ção deveria enfocar mais a pessoa do aluno, nas suasatividades cotidianas, naquilo que ele, como sujeito,representa e expressa. Sem maiores preocupaçõescom diferenças ou deficiências presentes no aluno, épreciso considerar que, nas relações com o outro, nassituações comuns que compartilha em sala de aula,na diversidade e na contradição, a identidade do su-jeito emerge e se consolida. Pela imitação ou pelaoposição, naquilo que expressa ou que reprime, peloconflito ou pela negação, cada sujeito é pessoa indivi-dual, única, e também um sujeito social.

Com base nas análises e reflexões sobre as idéiasteóricas aqui discutidas, procuramos estabelecer algu-

mas sínteses, ainda que provisórias e inconclusas, quepodem contribuir para o debate acerca da constitui-ção do sujeito no interior da instituição escolar.

Se for possível considerar que a ciência clássicafavoreceu concepções segundo princípios dedisfunção, de redução e desintegração, isto pode sig-nificar que exerçamos formas de pensamento que,geralmente, nos levam a separar, simplificar, reduzir,ocultar os problemas. A filosofia de Morin (1996) pro-põe uma cosmologia, ou seja, uma ciência de refle-xão a partir de elementos diferentes, divergentes. Osobjetos do conhecimento científico são consideradoscomo sistema, isto é, dotados de algum tipo de orga-nização. Assim, por conseqüência, o sujeito humano,além de biológico, pode ser cerebral, emocional, sen-timental. Desenvolve sua linguagem, a cultura e aprópria consciência. Constrói a identidade, a liberda-de, a autonomia. É sujeito e sujeita-se a uma subjeti-vidade em transformação. É organismo e é mente quese expressam em um contexto. É nesse contexto quea ciência necessita encontrá-lo, ou melhor, reencontrá-lo, para compreendê-lo na sua condição de sujeito.

Situando, mais especificamente, a criança comoaluno no contexto escolar, algumas abordagens dapsicologia do desenvolvimento trazem, nos seusaportes teóricos, idéias que favorecem a compreen-são do sujeito nesse contexto.

A interação social é, para Piaget e Inhelder (1990),condição necessária para o desenvolvimento do pen-samento. Por meio de relações e experiências comoutras pessoas, em especial, outras crianças, ocorre odesenvolvimento intelectual, moral e lingüístico dosujeito.

Em Vygotsky (1991), encontramos que a constitui-ção psíquica do ser humano situa-se na cultura. É naimersão no universo sociocultural, na relação dialéticacom a natureza dos produtos culturais e com outrosseres humanos que as funções mentais superiores sedesenvolvem.

De acordo com a teoria de Wallon (1986), a crian-ça só se desenvolve plenamente em contato com osoutros: crianças e adultos. Nas interações que estabe-lece com o meio, o desenvolvimento da pessoa evo-lui no sentido da diferenciação entre o eu e o outro.O meio, entendido como conjunto de circunstânciasnas quais o sujeito se desenvolve, assim como as pes-soas que ali se encontram, oferece ocasiões e moti-vos para as condutas do sujeito. O meio social e ooutro são, portanto, considerados como complemen-tos do sujeito na sua vida psíquica.

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Na perspectiva sociológica proposta por Edwards(1997), a autoconstituição do aluno, como sujeito nouniverso da escola, é um processo que ocorre nainteração com o professor, colegas, outros adultos queencontra nesse espaço e com o conhecimento queele considere significativo. Essas relações, em especi-al a que tem com o conhecimento escolar, não deveser de subordinação ou exterioridade, porque é nasua participação ativa nessa realidade que o indivíduodeixa de ser simplesmente aluno, para ser sujeito.Entretanto, por depender da percepção que se temda realidade, a construção do conhecimento escolarassume caráter relativo, porque ele necessita serressignificado pelo aluno. É, pois, no processo peda-gógico, na transmissão do conhecimento que seuconteúdo pode se tornar mais ou menos significativopara o aluno.

TECENDO ALGUMAS CONCLUSÕES...À guisa de conclusão das idéias aqui discutidas,

reafirmamos o papel da instituição escolar como con-texto de desenvolvimento humano. No cotidiano dassalas de aula, no conjunto de atividades que fazemparte das rotinas escolares, crianças estabelecem rela-ções com adultos e outras crianças. Essas relações sãofundamentais para cada sujeito que se desenvolve epara o coletivo, ou seja, o sujeito social.

A escola constitui um ambiente institucional, umespaço organizacional em que são tomadas decisõesde várias ordens: educativas, curriculares, pedagógi-cas. Se as circunstâncias do meio condicionam o pro-cesso de desenvolvimento, é possível que as deci-sões ali tomadas produzam desigualdades em termosde experiências de aprendizagens oferecidas às crian-ças. Tais desigualdades não podem ser, portanto, atri-buídas apenas a fatores individuais. A estrutura e ofuncionamento dos sistemas educativos geram as di-ferenças entre os alunos, e acabam se transformandoem desigualdades.

Segundo Nóvoa, (1992), apesar da contribuição denumerosos estudos sobre o assunto, ainda são poucoconhecidas as influências das variáveis intra-escolares,dos processos internos aos estabelecimentos de ensi-no e das salas de aula, nas questões de aprendiza-gem.

Por outro lado, além dos condicionantes internosdos sistemas educativos e do próprio contexto esco-lar, as análises sobre as diferenças cognitivas, sociais eculturais dos sujeitos não devem atentar apenas paraaspectos individuais; é preciso levar em conta outras

variáveis, intra e extra-escolares, que podemcondicionar as interações e os processos de aprendi-zagem. Muitas vezes, análises centradas na ótica psi-cológica apontam para dificuldades e limites edesconsideram as possibilidades dos sujeitos.

É preciso considerar, também, que as visões demundo e de sujeito do professor condicionam suasescolhas metodológicas, sua compreensão da respon-sabilidade profissional e do papel, mais passivo ou maisativo que deve ter o aluno no processo pedagógico.Sua intervenção reflete suas formas de entender oconhecimento, de valorizar aspectos mais teóricos,mais práticos ou técnicos; de perceber a possibilidadetransformadora do sujeito da aprendizagem que a suaatuação revela.

À reflexão sobre como os docentes percebem oaluno como sujeito podemos acrescentar a necessi-dade de a proposta pedagógica da instituição escolarexplicitar com muita clareza a concepção de sujeitoque deseja ver concretizada, no desenvolvimento deseu processo de ensino.

O aluno, como sujeito da história, necessita serconsiderado a partir das condições sociais nas quaisestá inserido. Neste sentido, ele não seria concebidocomo um ser autodeterminado, com vontade própria,independentemente das circunstâncias sociais eambientais que o circundam. Esse sujeito não seriaincluído em categorias classificatórias com base emidéias pré-concebidas, a partir da posição econômicaou cultural ocupada por seu grupo de origem e valo-rizada socialmente.

A história é construída por sujeitos concretos, da-tados e situados nos diversos contextos. Assim sendo,o aluno não é um indivíduo isolado e abstrato, masum sujeito dotado de autonomia, numa sala de aulaespecífica, numa instituição escolar com projetos metase objetivos, numa realidade social situada no interiorde uma comunidade determinada.

Esses sujeitos históricos, os educandos, interagemnos diversos ambientes em que vivem, e realizam,em sala de aula, ações visando ao atendimento desuas necessidades, seus motivos e interesses. Eles ageme reagem, constroem a subjetividade e se transfor-mam nas interações que estabelecem com a realida-de em que estão inseridos.

As novas perspectivas sobre as ciências, os novosparadigmas de compreensão da realidade e as novasáreas que se abrem para o conhecimento, parecemsinalizar a emergência de uma nova subjetividade, queaponta para um horizonte de vida mais humana, maisética e mais solidária.

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SUBJECT’S CONSTITUTION:SEVERAL APPROACHES

ABSTRACTThe present text aims to reflect about human beingconstitution as subject and the role of the school inthis constitution. It also mentions different approacheswhich formulated by philosophy, psychology andsociology. Edgar Morin (1996), underlies a philosophicalconception of the subject based on biology,emphasizing its complexity and the importance of thecontext in the conscience formation. The psychologicalconception is shown by Piaget’s (1989) constructiveview and Vygotsky’s (1989) and Wallon’s (1986)dialectics. The sociological contribution is illustratedby Edwards (1997), the author presents some ideasabout the student’s constitution as subject in the schoolinstitution. The analysis and the reflections point tothe need for a new paradigm of knowledge to thehuman and social sciences; a deeper comprehensionof the human subjectivity and the student’s role assubject of the school learning process.

KEY-WORDSSubject’s notion. Psychological development.

School. Student.

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Regina Mary César Reisé Professora Assistente Doutora no Departamento de Pedagogia daUniversidade de Taubaté.

Av. Estados Unidos, 140Jardim das Nações12030-360Taubaté[email protected]

TRAMITAÇÃOArtigo recebido em: 07/11/2003Aceito para publicação: 16/06/2005

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