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  • RESUMO

    Esse trabalho procura levantar e discu-tir algumas questes tericas e meto-dolgicas que surgem das relaes en-t re Histria, msica e a cano popular.As transformaes tericas, as novasconcepes de material documental ea prtica renovada do historiador de-t e rminaram a incorporao de novaslinguagens pela Histria. Seguindonessa trilha, o artigo pretende justa-mente mostrar, a partir de uma pers-pectiva interd i s c i p l i n a r, como as re l a-es entre histria, cultura e msicapopular podem desvendar pro c e s s o spouco conhecidos e raramente levan-tados pela historiografia. Para alcanaresse objetivo necessrio ultrapassara tradicional concepo de histria damsica e, para isso, tenta-se refletir eo rganizar alguns elementos para com-p reender melhor as mltiplas re l a e se n t re a cano e o conhecimento his-trico. A discusso aponta para a pos-sibilidade e, principalmente, a viabili-dade do historiador tratar a msica e acano popular como uma fonte do-cumental importante para mapear edesvendar zonas obscuras da histria,s o b retudo aquelas relacionadas comos setores subalternos e populares. P a l a v r a s - C h a v e: Histria Cultural; Cul-tura Popular; Msica/Cano Popular.

    ABSTRACT

    This article raises some questions anddiscusses some theoretical and metho-dological issues in the re l a t i o n s h i pbetween history, music, and popularsongs. Theoretical transformations andnew concepts of documental material,and the renewed practice of historians,defined the incorporation of new lan-guage through history. Following thisd i rection, the article intends to show,f rom an interdisciplinary perspective,how a relationship between history,c u l t u re, and popular music may re v e a lunknown processes, little known andr a rely raised by historiography. Toachieve this objective, it is necessaryto overcome a traditional concept ofmusical history, and organize some ele-ments to better understand multiple re-lationships between songs and histo-rical knowledge. This discussion leadsto the possibility, and mainly viability,of historians to deal with music and po-pular songs as important documentalre s e a rch to map out, and explore obs-c u re zones of history, above all, thoserelated to the subaltern and popularsectors.

    Key words: Cultural History; Popular

    Culture; Popular music.

    Histria e msica: cano popular e conhecimento histrico1

    Jos Geraldo Vinci de MoraesUniversidade Estadual Paulista UNESP

    Revista Brasileira de Histria. So Paulo, v. 20, n 39, p. 203-221. 2000

  • Toda gente sabe: verso e msica soas expresses de arte mais prximas do analfabeto.Conjugados assumem um poder de comunicaoque fura a sensibilidade mais dura

    (Antonio Alcntara Machado)

    PRELDIO ( RALL.L. RALLENTANDO)

    Sons e rudos esto impregnados no nosso cotidiano de tal form aque, na maioria das vezes, no tomamos conscincia deles. Eles nos acom-panham diariamente, como uma autntica trilha sonora de nossas vidas,manifestando-se sem distino nas experincias individuais ou coletivas.Isso ocorre porque a msica, a forma artstica que trabalha com os sons eritmos nos seus diversos modos e gneros, geralmente permite re a l i z a ras mais variadas atividades sem exigir ateno centrada do receptor, apre-sentando-se no nosso cotidiano de modo permanente, s vezes de ma-neira quase imperceptvel. Porm, preciso levar em conta que, desdepelo menos as ltimas trs dcadas, essa situao chegou ao paro x i s m o ,pois vivemos envolvidos em um verd a d e i ro turbilho de sons escutadosindiscriminada e simultaneamente. Talvez por isso a escuta contempor-nea ocidental obrigue o ouvinte a circ u n s c rever a recepo a certos esti-los e gneros, ao mesmo tempo em que penetra por angstias, transfor-maes e perturbaes evidentes, repercutindo os abalos mais gerais2.

    E n t re as inmeras formas musicais, a cano popular (verso e msi-ca), nas suas diversas variantes, certamente a que mais embala e acom-panha as diferentes experincias humanas. E provavelmente, como apon-tou Antonio Alcntara Machado, citado na epgrafe3, ela est muito maisprxima dos setores menos escolarizados (como criador e receptor), quea maneja de modo informal (pois, como a maioria de ns, tambm umanalfabeto do cdigo musical) e cria uma sonorizao muito prpria e es-pecial que acompanha sua trajetria e experincias. Alm disso, a cano uma expresso artstica que contm um forte poder de comunicao,principalmente quando se difunde pelo universo urbano, alcanando am-pla dimenso da realidade social. Se de fato essas condies, j identifi-cadas por Alcntara Machado na passagem dos anos 20/30, so reais e seestabelecem dessa maneira, aparentemente as canes poderiam consti-t u i r-se em um acervo importante para se conhecer melhor ou revelar zo-nas obscuras das histrias do cotidiano dos segmentos subalternos. Ouseja, a cano e a msica popular poderiam ser encaradas como uma rica

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  • fonte para compreender certas realidades da cultura popular e desvendara histria de setores da sociedade pouco lembrados pela historiografia.

    Todavia, tais investigaes raramente tm ocorrido e por diversasrazes. Normalmente, os trabalhos historiogrficos que tratam de desven-dar as relaes entre histria, msica e produo do conhecimento en-f rentam uma srie de interminvel de dificuldades (que de maneira geraltambm so aquelas enfrentadas por boa parte dos historiadores). Isto ,a disperso das fontes, a desorganizao dos arquivos, a falta de especia-listas e estudos especficos, escassez de apoio institucional etc. Por isso,as pesquisas, no raro, acabam resumindo-se a trabalhos individuais decampo e de arquivos isolados de quaisquer investigaes sistemticas ede longa durao4. Com relao msica popular urbana moderna, osp roblemas ganham nova e grave dimenso, ampliando e dificultando emtodos os sentidos o desenvolvimento das pesquisas. As universidades5 eagncias financiadoras tradicionalmente menosprezaram as pesquisas emt o rno dessa temtica. Quando cederam espaos s investigaes sobre amsica popular, sempre o fizeram quando havia relaes ou com a msi-ca erudita ou a folclrica, delimitando-as exclusivamente a esses re s p e c-tivos departamentos e ncleos. Durante muito tempo as pesquisas quefugiam dessas variantes eram encaradas com relativo desprezo. De certaf o rma, E. Hobsbawn, no seu interessante trabalho sobre histria socialdo jazz (em que se escondeu sob o pseudnimo de Francis Newton porvrios anos), identificou, no incio dos anos 60, essa situao de descr-dito acadmico ao analisar as transformaes da cultura e da msica po-pular urbana no final do sculo XIX. Ele dizia que a segunda metade dosculo XIX foi, em todo o mundo, um perodo revolucionrio nas artesp o p u l a res, embora este fato tenha passado despercebido daqueles ob-servadores eruditos mais esnobes e ortodoxos6.

    Infelizmente, a bibliografia da histria da msica, como mais um ele-mento da histria da arte, de modo geral apenas reforou essa postura epouco contribuiu para ultrapassar esses limites e restries. Ao contrrio,suas linhas e tendncias predominantes quase sempre serviram para re-forar limitaes e preconceitos. O universo popular, por exemplo, ge-ralmente esquecido pela historiografia da msica, e quando se re f e re aele, refora apenas as perspectivas romnticas, nacionalistas ou folclri-cas. Isto ocorre porque, de modo geral, ela est fortemente marcada porum paradigma historiogrfico tradicional, normalmente associado quelaconcepo de tempo linear e ordenado, em que os artistas, gneros, esti-los e escolas sucedem-se mecanicamente, refletindo e re p roduzindo, as-

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  • sim, uma postura bastante conservadora no quadro da historiografia con-tempornea.

    Esta historiografia quase sempre se desenvolveu destacando basica-mente trs aspectos deste discurso ord e n a d o r. Em primeiro lugar, privile-giando a biografia do grande artista, compreendido como uma figura ex-t r a o rdinria e nico capaz de realizar a obra, ou seja, o gnio criador ere a l i z a d o r, to comum historiografia tradicional. Logo, so a experin-cia e a capacidade pessoal e artstica que explicam as transformaes nosestilos, movimentos e na histria das artes. Outra postura bastante co-mum a que centraliza suas atenes exclusivamente na obra de arte.Portanto, ela est interessada preponderantemente na obra individual,que contm uma verdade e um sentido em si mesma, distante das ques-tes do mundo comum. Geralmente, essa anlise estabelece uma con-cepo da obra de arte fora do tempo e da histria, concedendo-lhe umaaura de eternidade, pois leva em conta apenas a forma, estrutura, e lin-guagem. Finalmente, mas no por ltimo, existe a linha que foca suas ex-plicaes nos estilos, gneros ou escolas artsticas, que contm uma tem-poralidade prpria e estruturas modelares perfeitamente estabelecidas.Fundada nos modelos e com forte caracterstica evolucionista, os gne-ros e escolas se sucedem em ritmo pro g ressivo, e parecem ter vida pr-pria transcorrendo independentes do tempo histrico a que esto sub-metidos os homens comuns.

    Alguns autores j h certo tempo tm pregado a necessidade de com-p reender a histria da arte integrada aos movimentos sociais e histricos,mas de modo algum formam uma linha influente e, sobretudo, hegem-nica na rea estrita da msica. Desde pelo menos as trs primeiras dca-das deste sculo as crticas contra esse distanciamento ocorrem, porm,avanando muito pouco. Nos anos 40, por exemplo, Elie S i e g m e i s t e r, jdizia que era estranho que o lugar da msica na sociedade e a influn-cia das foras sociais no seu desenvolvimento tenham sido nestes ltimostempos to poucos estudados7. Quase quatro dcadas depois, Henry Ray-nor continuava seguindo no mesmo tom e ritmo, afirmando que suas in-vestigaes pretendiam preencher parte da lacuna entre a histria nor-mal e necessria da msica, que trata do desenvolvimento dos estilosmusicais, e a histria geral do mundo (...)8.

    Este quadro um tanto restrito, repleto de obstculos e com peque-nos pro g ressos, na realidade acabou revelando as dificuldades de dilo-go dos estudos da msica, erudita ou popular, com outras reas do co-nhecimento, sobretudo com a historiografia em renovao desde o fim

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  • da dcada de 1970. Essa situao impediu a emergncia de novas temti-cas, novos objetos e novos pesquisadores que procuravam integrar osuniversos da histria e msica e que poderiam despontar nesse radicalq u a d ro de transformaes historiogrficas. Bem provavelmente tambmpor esses motivos os estudos e pesquisas sobre os diversos gneros damsica popular urbana continuaram restritos ao universo da crtica, re a l i-zados tradicionalmente por jornalistas, diletantes e amadores, portanto,distantes das universidades e das investigaes acadmicas. Geralmenteesses indivduos estiveram ou esto vinculados ao exerccio de profissesprximas produo e difuso da msica, fato que facilita o contato di-reto com o material musical, com a linguagem, a crtica e, principalmen-te, com o cotidiano dos msicos populares. Apesar da relativa ampliaodo nmero de investigadores de origem acadmica9 i n t e ressados na can-o/msica urbana do sculo XX, foram os crticos de diversas origens eos pesquisadores que nos ltimos anos efetivamente contriburam para areconstruo da histria da cultura popular urbana por meio da cano.

    No Brasil, a situao das pesquisas em torno da msica de maneirageral e a popular de modo especial bastante desigual e repleta de para-doxos. De um lado a bibliografia re p roduziu h at poucos anos de mo-do evidente esse quadro genrico, seguindo a linha descritiva do fato mu-sical ou baseando-se exclusivamente na biografia do autor, e, s vezes,p romoveu uma interseo conservadora das duas interpretaes. Por ou-t ro lado, essa mesma bibliografia acumula trabalhos srios e riqussimosf o rmulados por Renato de Almeida, Mrio de Andrade, Oneyda Alvare n-ga, Cmara Cascudo entre tantos outros. No entanto, a maior parte dela,como j foi destacado, ficou apoiada fundamentalmente no folclore, vi-rando as costas novidade da msica urbana em construo. Apesar deMrio de Andrade considerar que os estudos de certas manifestaes damsica urbana, como o choro e a modinha, no deviam ser despre z a d o s ,ao mesmo tempo ele afirmava que o investigador deveria discernir nof o l c l o re urbano o que virtualmente urbano, o que tradicionalmentenacional, o que essencialmente autctone1 0. Nitidamente ele pro c u r a v ad i f e renciar a boa msica, ou seja, aquela que tem histria, elevada edisciplinada, tonificada pelo bom uso do folclore (...) e as manifestaesindisciplinadas, inclassificveis, insubmissas ordem e histria, que serevelam ser as canes urbanas1 1. Arnaldo Contier, tambm identifica es-sa mesma postura ao afirmar que os modernistas brasileiros temiam osrudos e os sons oriundos da cidade que sobe (So Paulo, por exemplo) 12.

    De qualquer modo, a produo historiogrfica da msica popular

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  • urbana moderna acompanhou, em um movimento de mimetizao, a ten-dncia predominante das biografias e a descritiva de gneros existentesnas interpretaes da boa msica. No entanto, os problemas e distor-es existentes nessa rea foram aprofundados pelo fato de os pesquisa-d o res re a l i z a rem suas obras sem clareza metodolgica, de modo amado-rstico e precrio, e muitas vezes sem apoios institucionais e financeiro s .Aqui tambm, no sem razo, criou-se uma forte tradio de pesquisa-d o re s / j o rnalistas, acompanhando o ritmo de desenvolvimento de nossamsica popular, iniciada no comeo do sculo e que se mantm bem vi-va at hoje, apesar de a ltima gerao estar relativamente envelhecida1 3.Sem eles provavelmente a reconstruo da cultura popular urbana do paspela msica seria muito mais complicada ou quase impossvel. As obrasdesses autores foram e ainda so fundamentais para os historiadores, so-cilogos, antroplogos e msicos, formando um acervo documental im-portante e precioso para a memria da cultura popular do pas. Entre t a n-to, nunca demais destacar, de modo geral elas continuam sendoassinaladas pelo tom jornalstico, biogrfico, impressionista e apologti-co, demarcando forte e muitas vezes negativamente nossa memria cul-tural e musical14.

    No final da dcada de 1970 ocorreram nesse universo importantest r a n s f o rmaes que se aprofundaram nos anos 80. Nesse perodo des-pontaram alguns trabalhos originais, que tratavam de vrios temas re l a-cionados direta ou indiretamente com a msica popular, produzidos nauniversidade e distribudos por diversas reas do conhecimento. Esse con-junto relativamente novo de pesquisadores apareceu na vida acadmicae trouxe anlises mais amplas e contribuies de suas reas especficas,a l a rgando um pouco mais os horizontes das pesquisas, para alm dascompilaes e snteses biogrficas e impressionistas. As contribuies vie-ram da sociologia, antropologia, semitica, lngua e literatura brasileira e,mais raramente, da histria, e boa parte delas em forma de dissertaesde mestrado e teses de doutoramento1 5. Alis, pode-se at mesmo afirm a rque, em meados da dcada de 1980, j existia uma crtica acumulada emt o rno destes trabalhos1 6, sinal de que as investigaes desenvolvidas al-canaram certa definio de linha de pesquisa (a moderna msica popu-lar urbana) e deram valiosas contribuies para a compreenso da hist-ria do pas.

    Apesar do quadro renovador originrio na universidade, o trabalhoinvestigativo especificamente nessa rea da histria social e cultural ten-do a msica popular como eixo, ainda permanece bastante tmido e com

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  • avanos apenas residuais. O considervel crescimento e a diversidade dap roduo acadmica, inundada por um incontvel nmero de obras epesquisas, muitas delas inspiradas ou influenciadas por essa categoriabastante genrica e indefinida de Histria Nova (que pelo menos deu cer-to reconhecimento acadmico a diversos e marginalizados temas, entreeles, as recentes pesquisas e investigaes sobre a msica popular urba-na), ainda no significou uma colaborao concreta no aspecto quantita-tivo e, principalmente, de qualidade nesta rea da histria cultural. Issosignifica, conseqentemente, que o uso da cano popular urbana comofonte continua bastante restrito e precrio, e aparentemente ainda man-tm um status de segunda categoria no universo da documentao.

    DESENVOLVIMENTO (RIT. RITARDANDO)

    Um dos obstculos gerais colocados s investigaes no campo damsica a dificuldade em circ u n s c rev-la como uma disciplina voltadaclaramente para a produo do conhecimento1 7. Algumas discusses edebates internos na rea da musicologia tm procurado ressaltar a condi-o da msica como um objeto do conhecimento, estabelecendo, assim,a distino se possvel mesmo fixar tal distino! - entre o fazer cin-cia e o fazer arte e, conseqentemente, entre os pesquisadores e os ar-t i s t a s1 8. Sua identificao e organizao como disciplina possibilitou certoavano cientfico nos ltimos anos ao incorporar as contribuies vindasda etnologia, arqueologia, lingstica, sociologia e, mais tradicionalmen-te, da esttica e histria1 9. Portanto, na musicologia, aparentemente umaquesto relevante sobre o conhecimento nessa rea passa por sua afir-mao como cincia ou disciplina. interessante observar que, de form ad i f e rente, algumas tendncias recentes da produo historiogrfica cami-nharam justamente no sentido oposto, ou seja, tentando colocar em d-vida a condio cientfica da histria, construda principalmente a partirde meados do sculo XIX. Vrias delas questionam a possibilidade de ahistria construir verdades, pois ela seria inatingvel, privilegiando asescolhas e selees individuais do historiador e os aspectos imaginativose narrativos da trama histrica2 0. Alguns desses crticos chegam mesmo aatacar de modo radical as possibilidades racionais e cientficas da histo-riografia, e suas pretenses na construo de conhecimento, modelos ev e rdades na histria, dissolvendo-a em excessiva subjetividade. Curioso que, mesmo nesses setores nos quais muitas vezes se prega a pro x i m i-dade e at a intimidade entre histria e arte e se exalta o carter essen-

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  • cialmente subjetivo e criativo da narrativa histrica, a produo historio-grfica em torno da msica quase nula!

    Para o historiador que est relativamente distante dos debates aca-lorados, das angstias cientficas e discusses estritas da musicologia eda msica propriamente dita, naturalmente se coloca como primeirop roblema s investigaes lidar com os cdigos e a linguagem musical.Certamente esse um problema srio, no o nico, mas que deve ser su-perado. Essa dificuldade no pode ser impeditiva para o historiador inte-ressado nos assuntos relacionados cultura popular, como no foram,por exemplo, as lnguas desconhecidas, as re p resentaes religiosas, mi-tos e histrias e os cdigos pictricos. Na realidade, essas linguagens nofazem parte de fato do universo direto e imediato do historiador, mas ne-nhuma delas impediu que esses materiais fossem utilizados como fontehistrica para desvendar e mapear zonas obscuras da histria. Deste mo-do, mesmo no sendo msico ou musiclogo com formao apro p r i a d ae especfica, o historiador pode compreender aspectos gerais da lingua-gem musical e criar seus prprios critrios, balizas e limites na manipula-o da documentao (como ocorrem, por exemplo, com a linguagemcinematogrfica21, iconogrfica e at no tratamento da documentao maiscomum).

    Em primeiro lugar, preciso re c o n h e c e r, ainda que ligeiramente, asparticularidades objetivas e materiais dos sons produzidos e sua pro p a-gao, e como eles foram e so (re)elaborados pela sociedade humana,de diferentes modos, em forma de msica. Os sons so objetos materiaisespeciais, produtos da ressonncia e vibrao de corpos concretos na at-mosfera e que assumem diversas caractersticas. Trata-se de objetos re a i s ,porm invisveis e impalpveis, carregados de caractersticas subjetivas, e assim que proporcionam as mais variadas relaes simblicas entre elese as sociedades. Provavelmente por isso, torna-se difcil analisar suas re-laes com o conjunto social, pois, na maioria das vezes, elas esto ex-postas mediante a linguagem prpria dos sons e dos ritmos. E, no entan-to, quase sempre possvel verificar seus vnculos profundamente re a i se prximos com as relaes humanas individuais e coletivas. Se assim nofosse, no se poderia explicar as relaes msticas e rituais, por exemplo,das sociedades primitivas com a msica, ou ento, sua presena constan-te nas mais variadas religies, os cantos que embalavam os trabalhos ru-rais (como aqueles que deram origem ao b l u e s norte-americanos) e as-sim por diante.

    Esses sons, apresentados na realidade de modo catico e irre g u l a r,

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  • na forma de rudos22, adquirem certa periodicidade e ordem, criando ondasvibratrias sinuosas e constantes. Quando elas esto sobrepostas umass outras de forma harmnica e aliadas aos ritmos e timbres, chegam aosnossos ouvidos e as denominamos de msica. Contudo, essa org a n i z a-o musical no ocorre nem se estabelece num vazio temporal e espa-cial. As escolhas dos sons, escalas e melodias feitas por certa comunida-de so produtos de opes, relaes e criaes culturais e sociais, e ganhamsentido para ns na forma de msica2 3. Logo, esse sentido vazado dehistoricidade no h nenhuma medida absoluta para o grau de estabili-dade e instabilidade do som, que sempre produo e interpretao dasculturas (uma permanente seleo de materiais visando o estabelecimen-to de uma economia de som e rudo atravessa a histria da msica: cer-tos intervalos, certos ritmos, certos timbres adotados aqui podem ser re-cusados ali ou, proibidos antes, podem ser fundamentais depois2 4.Deslocando momentaneamente seu aspecto estritamente etreo e supos-tamente autnomo, essa estrutura organizativa exige situaes e modosde produo e difuso para se materializarem na sociedade. Sendo assim,alm de suas caractersticas fsicas e das primeiras escolhas culturais e his-tricas, os sons que se enrazam na sociedade na forma de msica tam-bm supem e impem relaes entre a criao, a re p roduo, as form a sde difuso e, finalmente, a recepo, todas elas construdas pelas expe-rincias humanas. Deste modo, a msica, quem diz Raynor, s podeexistir na sociedade; no pode existir, como tambm no o pode uma pe-a meramente numa pgina impressa, pois ambas pressupem executan-tes e ouvintes2 5. O que denominamos de msica, portanto, pre s s u p econdies histricas especiais que na realidade criam e instituem as re l a-es entre som, criao musical, instrumentista e o consumidor/receptor.

    Aqueles que se arriscam em trabalhar com a cano popular comofonte documental, tambm apontam sua suposta condio excessivamen-te subjetiva como dificuldade adicional. Inicialmente porque a msica,alm de seu estado de imaterialidade, atinge os sentidos do re c e p t o r, es-tando, portanto, fundamentalmente no universo da sensibilidade. Por tra-t a r-se de um material marcado por objetivos essencialmente estticos eartsticos, destinado fruio pessoal e/ou coletiva, a cano tambm as-sume inevitavelmente a singularidade e caractersticas especiais prpriasdo autor e de seu universo cultural. Alm disso, geralmente uma nova lei-tura realizada pelo intrprete/instrumentista. E, finalmente, o re c e p t o rfaz sua (re)leitura da obra, s vezes trilhando caminhos inesperados parao criador.

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  • Todo esse processo de releituras e filtros pode criar certos embara-os a alguns historiadores, adicionando novos elementos de recusa e mar-ginalizao da fonte musical. Contudo, nunca demais relembrar quequalquer fonte sempre passa por inmeros e s vezes complexos pro c e s-sos de filtragens sociais e culturais, nunca traduzindo de maneira com-pleta e objetiva o passado. Ginzburg re c o rda que o fato da fonte no serobjetiva no significa que ela seja inutilizvel. A revoluo documen-tal permitiu a ampliao do conceito de documento e re t i rou sua pesa-da pretenso objetiva positivista. Assim, msica/cano popular no de-ve injustamente ser nomeada como uma fonte excessivamente subjetivae, conseqentemente, desprezada como documento. Mesmo uma d o c u-mentao exgua, dispersa e renitente [como a cano popular!], pode,portanto, ser apro v e i t a d a 2 6. Cabe, ao investigador cuidadoso, afastar operigo que pode lev-lo a permanecer apenas no restrito ambiente dodiscurso interno e do universo do gosto. Por isso, vale a pena re l e m b r a rum texto de R. Darton, que destaca justamente as dificuldades e a neces-sidade desse equilbrio, pois ele serve, ao mesmo tempo, de referncia ealerta para os historiadores que pretendem ingressar nesse universo damsica: como historiador, estou com aqueles que vem a histria comouma construo imaginativa, algo que precisa ser retrabalhado interm i-navelmente. Mas no acho que ela possa ser convertida em qualquer coi-sa que impressione a fantasia. No podemos ignorar os fatos nem nospoupar ao trabalho de desenterr-los, s porque ouvimos falar que tudo discurso27.

    Sendo assim, ao tentar compreender as relaes internas da econo-mia dos sons e da msica e delas com a sociedade, deve-se evitar os cos-t u m e i ros reducionismos mecnicos que constantemente tentam determ i-nar as relaes culturais como simples reflexos das estruturas histricasmais gerais. De outro lado, evitando caracterstico movimento pendular, necessrio afastar aquelas anlises que buscam a autonomia de certoss e t o res da vida humana e social e acabam construindo form u l a e s t e c i-da[s] sobre camadas de ar, e que recusa[m] o risco de correlaes pacien-t e s 2 8. Creio que, levando em conta esses fatores, a msica, sobretudo ap o p u l a r, pode ser compreendida como parte constitutiva de uma tramarepleta de contradies e tenses em que os sujeitos sociais, com suas re-laes e prticas coletivas e individuais e por meio dos sons, vo (re)cons-truir partes da realidade social e cultural.

    Essa trama histrica e as relaes de produo, difuso e circ u l a oda msica/cano popular urbana na sua forma contempornea, gestada

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  • e n t re os fins do sculo XIX e incio do XX, surgem marcadas por algunselementos inovadores e bem caractersticos que devem ser levados emconta. Primeiro, elas surgem vinculadas com algumas formas de entre t e n i-mento urbano pago (como circos, bares, cafs, teatros etc) ou no (festaspblicas, festas privadas, encontros informais etc). Se a princpio a gera-o e criao dessas canes no era destinada ao mercado, gradativamen-te elas incorporam-se a ele; conseqentemente o profissionalismo, aindaque precrio, do artista passa a ser uma realidade palpvel e desejvel; e,finalmente, a cano obrigada a dialogar de diversas maneiras, positiva enegativamente, com os meios de comunicao eletro-eletrnicos.

    A partir desse momento desponta outra dificuldade, que tratar comuma categoria escorregadia e polissmica como a de cultura popular nomundo contemporneo, que interf e re diretamente na compreenso doque a cano e a msica popular, sobretudo nesse momento de emer-gncia desse novo quadro social e cultural atravessado pelos meios decomunicao de massa, principalmente, o binmio disco-rdio. Contu-do, se existe uma rea em que historiografia contribuiu de maneira deci-siva e de modo inovador e criativo nessas ltimas dcadas de transforma-es, foi nas investigaes, questionamentos e formulaes sobre culturap o p u l a r. Toda essa produo e reflexo historiogrfica procuraram ultra-passar os limites impostos por certas tradies que ditavam as formas dei n t e r p retar e compreender a cultura popular. Em primeiro lugar ela foi e fundamental, pois permitiu um extraordinrio avano em relao que-les dois modelos genricos de descrio e interpretao da cultura popu-lar: as posturas que concebem a cultura popular como simplesmente de-pendente da cultura formal e letrada, e aquelas perspectivas, de origemRomntica, que concebem a cultura popular como um sistema autno-mo, enraizado e coere n t e2 9. Uma imediata e posterior derivao deste l-timo modelo, mas associada a certas tendncias do marxismo, afirma quea autntica cultura popular somente aquela cultura/sistema de re s i s-tncia dos oprimidos de maneira geral, que se contrapem cultura do-minante letrada. Alm dessas variantes, h tambm a interpretao que,a p roximando diversas posturas antagnicas, identifica a cultura popularcontempornea como cultura de massa e, portanto, tratada como li-xo cultural (em relao grande arte/cultura) e/ou mercadoria (queatende simplesmente os interesses comerciais do capitalismo)30.

    Porm, inmeros historiadores trouxeram diferentes colaboraestemticas, metodolgicas e interpretativas inestimveis para a historiogra-fia e para uma melhor compreenso da cultura popular. De modo geral,

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  • apesar das posturas contrastantes e s vezes opostas, parece que h algu-mas convergncias mais evidentes nesta rica produo historiogrfica, no-tadamente a de considerar a cultura popular como pluralidade, isto , de-ve-se falar em culturas populares que ao mesmo tempo se transform a me/ou permanecem em espaos e tempos definidos, e no em uma culturapopular pura e secularizada. Na realidade, essas culturas populares se re-lacionam de diversas maneiras entre elas mesmas e com as culturas for-mais ou de elite, interagindo, resistindo, influenciando, submetendo-see t c3 1. Assim, essas formas de relao no se restringem, como tradicional-mente se interpretava, somente no sentido da cultura de elite se impondo cultura popular, que resistia ou no. Elas se manifestam como experin-cia histrica de modo mais amplo e difuso. De acordo com essas perspec-tivas, as produes e formas de difuso cultural transitariam em vriossentidos, construindo incessantes interaes, determinadas por re a l i d a-des histricas especficas. Desta maneira, as culturas populares deixariamde ser, de acordo com os modelos sociolgicos, manifestaes da baixacultura, ou a essncia mais pura de um povo, ou ainda as formas de re-sistncia popular contra as culturas dominantes, para constiturem-se apartir de uma intensa relao dialtica de troca contnua e perm a n e n t ee n t re as diversas formas culturais presentes em um determinado momen-to histrico. incrvel como as novas re p resentaes musicais populare ss u rgidas com o processo de urbanizao e desenvolvimento tecnolgicona passagem dos sculos XIX e XX so exemplares dessas mltiplas de-t e rminaes, trocas e relaes. Por isso, as tradicionais interpretaes mo-d e l a res de cultura popular ou empobrecem as anlises ou no conseguemexplicar os diversos caminhos, vetores e caractersticas que assume a re a-lidade da cultura e da moderna msica e cano popular urbana.

    CODA (RFZ. RIFORZANDO)

    Ultrapassados os principais obstculos e aparentes dificuldades (lin-guagem, cdigo, subjetividade e o conceito de popular), creio que os pro-cedimentos e indicaes gerais metodolgicas para utilizar a msica/can-o popular como documento histrico podem ser inicialmenteencontrados na clssica metodologia desenvolvida pela prpria histriae, a partir dela, estabelecer as necessrias relaes interd i s c i p l i n a res (porexemplo, com a musicologia, semitica etc). Em primeiro lugar, com re-lao anlise interna do documento musical talvez o campo que sejamais estranho e difcil para o historiador seria interessante estabelecer

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  • duas instncias diferentes, mas nunca dissociadas, a da linguagem poti-ca e a da linguagem musical.

    A msica popular no deve ser compreendida apenas como texto,fato muito comum em alguns trabalhos historiogrficos que se arriscampor essa rea. As anlises devem ultrapassar os limites restritos exclusiva-mente potica inscrita na cano, no caso especfico a poesia popular,pois, ainda que de maneira vlida, estaria se realizando uma interpre t a ode texto, mas no da cano propriamente dita. Todavia, preciso consi-derar tambm que muitas vezes as formulaes poticas concedem maisindicaes e caminhos que as estritamente musicais, que podem re d u n-dar em torno das mesmas estruturas, formulaes meldicas, ritmos e g-n e ros conhecidos. Por isso, para compreender a poesia da cano popu-l a r, necessrio entender sua forma toda especial, pois ela no para serfalada ou lida como tradicionalmente ocorre. Na realidade, a letra de umacano, isto , a voz que canta ou a palavra-cantada, assume uma ou-tra caracterstica e instncia interpretativa e assim deve ser compre e n d i d a ,para no se distanciar das suas ntimas relaes musicais3 2. O distancia-mento relativo entre ela e a estrutura musical deve ser feito apenas cominteno analtica, pois os elementos da potica concedem caminhos e in-dcios importantes para compreender no somente a cano, mas tambmparte da realidade que gira em torno dela.

    Com relao linguagem musical interna necessrio levar em con-ta variantes bsicas relacionadas com a linha meldica e o ritmo. A(s) me-lodia(s) principal(is), os motivos musicais, o andamento, os ritmos e ah a rmonizao, so elementos da linguagem musical que podem ser ana-lisados isoladamente e nas relaes entre si, pois tm um discurso e ca-ractersticas prprias que normalmente apontam indcios importantes ed e t e rminantes para sua compreenso. Mas eles tambm devem ser com-p reendidos na lgica do desenvolvimento da viso de mundo do autorque est, obviamente, vinculada tambm aos aspectos sociais e culturaisde um determinado gnero e estilo. Alm disso, a f o rma instrumental, ostipos de instrumentos e seus timbres, a interpretao e tambm os arran-jos de um dado documento sonoro contm indicaes fundamentais pa-ra compreender a cano em si mesma e nas suas relaes com as expe-rincias sociais e culturais de seu tempo. Todos esses elementosgeralmente no so difceis de se perceber na cano popular pois decerto modo eles devem se colocar de maneira simples e clara para o ou-vinte e formam uma estrutura organizativa inteligvel para o investiga-d o r3 3. Porm, o historiador tambm no deve se restringir estrutura es-

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  • tritamente musical, como j foi destacado anteriormente, pois deste mo-do estaria fazendo musicologia e, portanto, seriam os msicos, musiclo-gos e etnomusicologistas as pessoas mais indicadas para re a l i z a rem talinvestigao.

    Deste modo, parece que a compreenso do binmio melodia-textoseja a forma mais indicada para se ter como referncia, sobretudo porquetrata-se, na realidade, da estrutura que d sentido cano popular. Masisso no basta, preciso perceber a capacidade sonora dessa estruturaincorporada aos movimentos histricos e culturais. Na verdade, deve-sep e rceber como se instituem as relaes culturais e sociais em que se aco-modam elementos de gestao de uma dada msica/cano urbana e davida do autor, pois, como j vimos anteriormente, elas produziram e es-colheram uma srie de sons e sonoridades que constituem uma trilha so-nora peculiar de uma dada realidade histrica.

    Com relao anlise externa do documento musical, tambm prudente compreend-la subdividindo-a em dois campos distintos. A pri-meira instncia deve tratar do contexto histrico mais amplo, situando osvnculos e relaes do documento e seu(s) produtor(es) com seu tempoe espao, tarefa comum e bsica dos historiadores, tornando desnecess-rio aprofundar a discusso. O segundo campo re f e re-se a outra especifi-cidade da documentao, isto , ao processo social de criao, produo,c i rculao e recepo da msica popular. Apesar de no tratar da lingua-gem musical e da cano propriamente dita, essa longa jornada da cria-o recepo j supe certas preocupaes com cdigos e com o univer-so da criao da cultura popular e principalmente da msica. A criao ea recepo talvez sejam os elementos mais complicados de serem avalia-dos. Mais do que regras gerais, tanto criao como recepo somente po-dero ser compreendidos nas suas nuanas e especificidades histricas.

    Com relao produo, difuso e circulao preciso levar emconta que a cano popular urbana na sua forma contempornea, comoj foi dito, associa-se imediata e irreversivelmente aos meios de comuni-cao e ao mercado. Esses meios que despontaram de forma ascendentee n t re o final dos anos vinte e a dcada de 1930, foram determinantes naalterao dos modos de produo e difuso da cultura/msica popular, epor conseqncia, nas formas de sentir, refletir e ver o mundo. O cotidia-no das pessoas foi transformado irreversivelmente pelo rdio, disco, pro-fissionalizao dos artistas, lgica dos espetculos e imprensa especiali-zada. As relaes com os meios de comunicao foram, e ainda so,contraditrias, variando da mais profunda pobreza esttica, passando pe-

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  • los mais ntidos e fortes interesses comerciais ou ideolgicos, chegando auma incrvel e rica divulgao da produo cultural.

    A radiofonia e a indstria fonogrfica, desde os primrdios de seudesenvolvimento como meios de comunicao de massa em meados dadcada de 1930, determinam modas e criam gostos, impondo gneros ecerta estandardizao na msica popular, re g redindo a audio das mas-s a s, como afirma Adorn o3 4. Contudo, parece que de forma um poucodiversa do que imaginou o filsofo alemo e de certo modo saltando forade seus cerrados esquemas interpretativos, os meios de comunicao tam-bm abriram espaos para que gneros e estilos regionais urbanos origi-nrios nas camadas mais pobres emergissem para um quadro cultural maisamplo e pluralizado, como ocorreu, por exemplo, na Europa com flamen-co, fado, re b e t i k a e as canes napolitanas e francesas3 5, e, sobretudo naAmrica, com o j a z z , b l u e s, sambas, choros, tangos3 6, fruto de misturas asmais variadas da msica europia, africana e americana. Esse fato notvelp e rmitiu a diversificao e o alargamento das possibilidades de escolhados artistas e dos ouvintes, certamente ampliando e desenvolvendo seuuniverso de escuta ao invs de simples e unicamente re g redi-lo.

    preciso considerar tambm que para o artista popular muitas ve-zes a cultura local e regional imps, a seu modo, modelos e gostos, en-carados geralmente como intransponveis para a comunidade e para quemconvivia com eles. De outro lado, o acesso e a troca de experincias dian-te da exposio de uma imensa variedade de obras e estilos expostos pe-la nova situao histrica e cultural permitiram a transposio dos limitesde formas culturais fortemente marcadas pelos aspectos regionais e lo-cais. Deste modo, o rdio, o disco e os locais de entretenimento foram,na realidade, ambientes em que o msico popular pde desenvolver, di-fundir e sobre v i v e r, ainda que precariamente, de suas atividades musi-cais. No h como negar, entretanto, que, principalmente a partir da d-cada de 1940, uma certa tendncia homogeneizadora comeou a seevidenciar na msica internacional, baseada principalmente nos padresnorte-americanos, que ocupou espaos cada vez maiores no universo dordio, discos e, sobretudo, cinema. Mas tambm a msica popular de ma-neira geral, produto das mltiplas misturas, alcanou espao de divulga-o jamais pensado por seus produtores e divulgadores. Porm, na maio-ria das vezes, tratou-se de uma msica determinada pelas necessidades egostos norte-americana, transformada geralmente em algo pitoresco eextico (fenmeno que ocorreu, por exemplo, em quase todos os g-neros latinos que explodiram nos EUA). Como se pode perceber, o qua-

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  • d ro histrico-social que gira em torno da msica popular e dos meios decomunicao bem mais complexo e carregado de ambigidades e con-tradies que as aparncias e assertivas fazem supor.

    Em sntese, creio que as questes aqui realadas alcanaram pelomenos trs aspectos relevantes para a reflexo do historiador que pre t e n-de trabalhar com a cano popular: a linguagem da cano, a viso demundo que ela incorpora e traduz, e, finalmente, a perspectiva social ehistrica que ela revela e constri. Essas questes, levantadas de modoi n t rodutrio, tambm servem, de certo modo, para recolocar alguns te-mas na discusso das relaes entre histria e msica. E, tentando ultra-passar a tradicional concepo da histria da msica, elas pre o c u p a r a m -se em refletir e organizar alguns elementos para compreender melhor asmltiplas relaes entre a cano popular e o conhecimento histrico,pois bem provvel que as canes possam esclarecer muitas coisas nahistria contempornea que s vezes se supem mortas ou perdidas namemria coletiva. Porm, lembrando um contemporneo de AlcntaraMachado, tambm preocupado com a msica, na verdade, o estudo cien-tfico da msica brasileira ainda est por fazer37, sobretudo, a histria cul-tural da msica popular brasileira, que ainda formula e ajusta seus pri-meiros acordes. E nesse tom que deve seguir a discusso.

    NOTAS1 Esse trabalho foi apresentado parcialmente no II Congresso Internacional Histria a De-bate, Santiago de Compostela, Espanha, ocorrido entre 14 a 18/06/1999.2 S o b re esse assunto, Jos Miguel Wisnik afirma que: Quem se dispuser a escutar o somreal do mundo, hoje, e toda a srie dos rudos em srie que h nele, vai ouvir uma polifo-nia de simultaneidades que est perto do ininteligvel e insuportvel (...) Os re g i s t ros da es-cuta habitual esto completamente embaralhados. O modo predominante de escutar (emressonncia com o da produo de som industrial para o mercado) o da repetio (ouve-se msica repetitivamente em qualquer lugar e a qualquer momento).O som e o sentido,Cia. das Letras, So Paulo, 1989, pp.48 e 50.3 Lira Paulistana. In Revista do Arquivo Municipal . vol. XVII, So Paulo, 1935 Antonio Al-cntara Machado recolheu as canes nas ruas da cidade de So Paulo, entre o fim dos anos20 e no incio da dcada de 1930, e que comentavam a vida urbana da grande cidade. 4 O professor Rgis Duprat, p.ex., destacou esses problemas no incio da dcada de 1970com relao a msica erudita no Brasil. D U P R AT Rgis, Metodologia e pesquisa histrico-musical no Brasil, In Anais da Histria, FFCL, Assis, 1972. Essa linha crtica foi bastante re i-terada no universo dos pesquisadores da msica e continua permanente, como revela, porexemplo, o texto do prof. IKEDA, Alberto T., Musicologia ou musicografia? Algumas re f l e-xes sobre a pesquisa em msica. In Anais. 1O. simpsio latino-americano de musicolo -gia , Fundao Cultural de Curitiba, jan. 1997.5 Apesar de nem sempre concordar com suas posturas, o filsofo Richard Shusterman, preo-

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  • cupado com a arte e a msica popular contempornea, ressalta essa discriminao ao afir-mar que a arte popular no tem gozado de tamanha popularidade junto aos filsofos e te-ricos da cultura, ao mesmo no que concerne a seus momentos profissionais. Quando no completamente ignorada, indigna at de desdm, ela rebaixada a lixo cultural, por suafalta de gosto e reflexo (...). SHUSTERMAN R i c h a rd. Vivendo a arte. Ed. 34, So Paulo,1998, p. 99.

    6 H O B S B AW N, E. J. Histria Social do Jazz . Ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1990, p. 59. Es-sa edio uma republicao da impressa em 1961. Mais recentemente, ele tambm tocanesse assunto no captulo 9 de A era dos imprios. 2. ed., Rio de Janeiro, Ed. Paz e Te r r a ,1989.

    7 SIEGMEISTER, E l i e A msica e a sociedade , Biblioteca Cosmos N 96, Lisboa, Ed. Cosmos,1945, p. 05.

    8 R AYNOR, Henry, Histria social da msica. Da Idade Mdia a Beethoven . Rio de Janeiro ,Ed. Zahar, 1982, p. 07.

    9 Ver a bibliografia e outros exemplos dessa rica produo acadmica In MORAES, Jos Ge-raldo Vinci de. Metrpole em Sinfonia. Histria, Cultura e Msica Popular em So Paulonos anos 30 . So Paulo, Ed. Estao Liberdade, 2000, especialmente na Introduo.

    1 0 ANDRADE, Mrio. Ensaio sobre a msica brasileira. So Paulo, Livraria Martins Editora,1962, p. 167.

    1 1 WISNIK, Jos Miguel, Getlio da Paixo Ceare n s e , I n O Nacional e o Popular na Cultu -ra Brasileira Msica. So Paulo, Ed. Brasiliense, 1982, p. 133.

    1 2 M o d e rnismos e Brasilidade. Msica, utopia e tradio In NOVAES, Adauto (org.). Te m -po e Histria. So Paulo, Cia. das Letras e Secretaria Municipal de Cultura, 1992, p. 281.

    1 3 De Jota Efeg (pseud. de Joo Ferreira Gomes) no incio do sculo, passando por Almi-rante (pseud. de Henrique Fres Domingues), Ary Vasconcelos, chegando aos dias atuaiscom Jos R. Tinhoro, Srgio Cabral e Ruy Castro. 1 4 O caso especfico do jornalista e crtico Jos R. Tinhoro um pouco diferente. Se de umlado ele foge dos impressionismos e biografias to comuns nesse tipo de gnero histrico,de outro, ele caminha sempre e pre f e rencialmente em direo polmica como um princ-pio e, tudo leva cre r, tambm por prazer. Contraditoriamente ele advoga certo purismo quemuitas vezes se aproxima, de modo invertido, das posturas Romnticas, ao mesmo tempoem que abusa do tom impositivo e reducionista de certo marxismo canhestro. Apesar disso,com o tempo ele produziu uma extensa e importante obra, tornando-se muito pro v a v e l-mente no mais importante historiador da msica popular urbana do pas. Alm disso, em1999, concluiu seu mestrado em Histria Social no departamento de histria da USP com adissertao A Imprensa Carnavalesca .

    15 Ver exemplos dessa nova produo acadmica In MORAES, Jos Geraldo Vinci de, op.cit.

    1 6 Ver principalmente, C O N T I E R ,A rnaldo. Msica e Histria. In Revista de Histria USP,n. 119, jul.-dez. 1985-1988, Msica no Brasil: Histria e Interdisciplinariedade. AlgumasI n t e r p retaes (1926-80). In Revista Brasileira de Histria . So Paulo, 1993 e Prefcio InBRITO, Ieda M. Samba na Cidade de So Paulo (1900-1930 ). So Paulo, Edusp, Srie An-tropologia, n 14,1986.

    17 PALLISCA, Claude V., Msica. In A esttica e as cincias da arte . vol. 02 (org. ) DUFREN-NE, Mikel. Lisboa, Livraria Bertrand, 1982, p. 144.

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  • 1 8 Ver por exemplo TONI, Olivier. O que musicologia. In C a d e r nos de msica. n. 10,set. 1982, pp. 03 e 04 e IKEDA, Alberto T., op.cit.19 Idem, p. 03.2 0 Por exemplo, VEYNE, Paul. Como se escreve a histria. 3a. ed., Braslia, Ed. Unb, 1995 eW H I T E , H. Meta-histria. A imaginao histrica no sculo XIX. So Paulo, Edusp, 1992.Na realidade vrias dessas questes j eram discutidas pelos historiadores no comeo dosculo, como R.G. Collinwood seguindo a tradio de B. Croce. COLLINWOOD, R.G. Aidia de histria . 6a. ed., Lisboa, Ed. Presena, 1986, pp. 287 a 306, nas quais traa as seme-lhanas e diferenas entre o historiador e o romancista.21 Sobre as relaes entre histria-cinema-educao no Brasil ver por exemplo, SALIBA, EliasT. Histria e cinema: narrativa utpica no mundo contemporneo. In Lies com cinema.vol. 02, So Paulo, FDE/SE, 1994. A Produo do Conhecimento Histrico e suas Relaescom a Narrativa Flmica. vol. 01 FDE/SE-SP, 1993 e Experincias e re p resentaes sociais:reflexes sobre o uso e o consumo de imagens. In O saber histrico na sala de aula. B I T-TENCOURT, Circe (org.). So Paulo, Ed. Contexto, 1997.22 ATTALI, Jacques. Bruits essai sur leconomique de la musique . Paris, PUF, 1977.2 3 Se certo modo, no incio do sculo XIX, E.T. Hoffmann, sintetizou um pouco essa postu-ra, ao afirm a r, apesar do tom romntico e potico, que O som habita por toda a parte; masos sons, quero dizer as melodias que falam a lngua superior do reino dos espritos, re p o u-sam apenas no peito do homem.24 WISNIK, Jos Miguel. op.cit., 1989, p. 28.25 RAYNOR. op.cit., p. 09.26 GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes, So Paulo, Cia. das Letras, 1987, pp. 21-22.2 7 D A RTON, Robert. O beijo de Lamourette: mdia, cultura e televiso . So Paulo, Cia. dasLetras, 1995, p. 69.28 VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. So Paulo, Ed. Brasiliense, 1987, p. 21.2 9 PASSERON, J.-C. e GRIGON, C. Lo culto y lo popular. Madrid, Las ediciones de La Pique-ta, 1992 e.C H A RT I E R, Roger. Cultura Popular: Retorno a un Concepto Historiografico. InManuscrits . Gener, n. 12, 1994, pp. 01-02.3 0 Por isso S h u s t e rman afirma que De fato, temos aqui um desses raros casos, onde re a c i o-nrios de direita e marxistas radicais se do as mos por uma mesma causa. S H U S T E R M A NRichard. op. cit., p. 99.3 1 Podemos incluir genericamente nessa postura, por exemplo, a noo de circ u l a r i d a d e ,inspirada nas observaes de Bakhtin, de Ginzsburg, ou as relaes de mo dupla re i v i n-dicadas por Peter Burke; as noes de apropriao formulada por Roger Chartier e a de i n t e rmedirios culturais, de Michel Vovelle, tambm apontam na mesma direo de tro c ae n t re as diversas formas culturais existentes nas sociedades; e E. Thompson, rejeitando aexplicao marxista bsica da determinao base/superestrutura, tambm dedicou-se smediaes e experincias culturais. 3 2 Luis Tatit procura uma interpretao que compreenda a possibilidade da origem de qual-quer cano popular estar justamente na fala, apesar da voz que canta ser diferente davoz que fala: Em primeiro lugar, a voz da voz. A voz que canta dentro da voz que fala. Avoz que fala interessa-se pelo que dito. A voz que canta, pela maneira de dizer. Ambasso adequadas as suas respectivas funes, op. cit., So Paulo, 1996, p.15. J Augusto de

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  • Campos afirmou que a palavra cantada no a palavra falada, nem a palavra escrita. A al-tura, a intensidade, a durao, a posio da palavra no espao musical, a voz, mudam tudo.A palavra-canto outra coisa, O balano da bossa e outras bossas. 3a ed., So Paulo, Ed.Perspectiva, 1978 (Col. Debates).3 3 Por exemplo, o investigador atento pode perceber se uma linha meldica alegre oumelanclica, sem obrigatoriamente identificar se est em tom maior ou menor, re s-pectivamente. Ele tambm pode identificar um ritmo quebrado e deslocado sem necessa-riamente precisar explicar a sncope. 3 4 Para usar o sugestivo conceito de A D O R N O , T. O Fetichismo na Msica e a Regresso daAudio. In Benjamin, Adorno, Horkheimer, Haber m a s , Col. Os Pensadore s. So Paulo,Ed. Abril Cultural, 1980.3 5 SCARNECCHIA, Paolo. Msica popular y musica culta . Barcelona, Icaria editorial, 1998 eHOBSBAWN, E. J., op. cit..3 6 LEYMARIE, Isabelle. La musique sud-amricaine. Rythmes et danses dun continent . Pa-ris, Ed. Gallimard, 1997; Du tango au reggae musique noires dmerique latine et des Ca -r a i b e s . Paris, Flamarion, 1996; S A N M I G U E L, Alejandro U. Modernidad y musica popularen America Latina. In Revista Histria e Perspectivas. Uberlndia, jul.-dez. 1992; MORAES,Jos Geraldo Vinci. Cidade e cultura urbana na Primeira Repblica. 5a. ed., So Paulo,Ed. Atual, 1998 e HOBSBAWN, E. J., Idem.

    3 7 ANDRADE, Mrio. A Msica e a cano populares no Brasil. In Ensaio sobre a msicabrasileira. So Paulo, Livraria Martins Editora, 1962, p. 163.

    Artigo recebido em 10/1999. Aprovado em 03/2000.

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