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1 “Procurei adoptar um traço simples, de poucas linhas, como se fossem personagens de cinema de animação.” NUNO SARAIVA Q uanto tempo demorou a fazer o cartaz do Amadora BD deste ano? Demorei cerca de quatro meses em pesquisas e estrutura- ção enquanto trabalhava em paralelo noutros projectos. Se comprimir o tempo dedicado unicamente ao cartaz, diria que um mês aproximadamente. Como foi o processo de escolher as figuras ligadas à história da Amadora que podemos ver no cartaz do Amadora BD deste ano? Que critérios foram usados? Estando sujeito a respeitar o tema “Reportagem” e inserindo-o na cidade da Amadora, quis vestir a pele do jornalista que usa o desenho em vez da palavra escrita. A par da liberdade criativa, que é um fundamental direito do jornalista, tive também da parte da organização do Festival grande liberdade na escolha das figuras e das características de cada uma que escolhi destacar. A partir do momento em que aceitei fazer o cartaz, foi a História do território que me atraiu. A História da Amadora faz-se com pessoas, com factos sociais, económicos, políticos, intelectuais, que influíram no desenvolvimento da localidade através dos tempos, e que teve os seus vultos, muitos deles com acção no desenvolvimento do actual concelho. Uns nasceram cá, outros escolheram a Amadora para viver e a maior parte por cá trabalhou. Nesta imensa malha de personagens, há figuras dos séculos XVIII, XIX e XX, sem prejuízo dos tempos actuais, que também quis representar. Há figuras preferidas? Quais? E porquê? São muitas. Tantas. A começar pela Dona Isabel Leitoa, primeira grande proprietária local, que na inexistência de gravuras da época (1636) que a representem, me obrigou a inventar a sua figura. É do seu nome Leitoa que provém o termo Terra da Porcalhota. Gostei também de homenagear o Stuart Carvalhais, meu ídolo, que passava a vida a jogar bilhar no café Pigalle, e desenhei-o a mirar um par de pernas chamadas “Amadora” - há um cartoon dele em que identifi- ca os locais e bairros de que gosta pela elegância e forma de pernas femininas. Gostei também de desenhar o Vasco Granja, o Tiotónio… e até as figuras menos simpáticas, como o político autoritário João Franco, eu gostei de desenhar. Como foi a experiência de retratar figuras não ficcionais? Foi na Biblioteca Municipal Fernando Piteira Santos (outro grande nome aqui representado) que fiz a maior parte da recolha de informação escrita e visual. Uma razoável quanti- dade de retratos fotográficos antigos eram de difícil percepção, 27 Outubro 12 Novembro Fórum Luís de Camões ‘17 Auto-retrato de Nuno Saraiva. O autor durante a pintura mural realizada em 2012 por um colectivo de artistas nas escadinhas de São Cristóvão, na Mouraria, em Lisboa. Vinheta do capítulo “Os desenhadores” (p. 47) do livro Tudo Isto é Fado! ENTREVISTA

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“Procurei adoptar um traço simples, de poucas linhas, como se fossem personagensde cinema de animação.”NUNO SARAIVA

Quanto tempo demorou a fazer o cartaz do Amadora BD deste ano?

Demorei cerca de quatro meses em pesquisas e estrutura-ção enquanto trabalhava em paralelo noutros projectos. Se comprimir o tempo dedicado unicamente ao cartaz, diria que um mês aproximadamente.

Como foi o processo de escolher as figuras ligadas à história da Amadora que podemos ver no cartaz do Amadora BD deste ano? Que critérios foram usados?Estando sujeito a respeitar o tema “Reportagem” e inserindo-o na cidade da Amadora, quis vestir a pele do jornalista que usa o desenho em vez da palavra escrita. A par da liberdade criativa, que é um fundamental direito do jornalista, tive também da parte da organização do Festival grande liberdade na escolha das figuras e das características de cada uma que escolhi destacar. A partir do momento em que aceitei fazer o cartaz, foi a História do território que me atraiu. A História da Amadora faz-se com pessoas, com factos sociais, económicos, políticos, intelectuais, que influíram no desenvolvimento da localidade através dos tempos, e que teve os seus vultos, muitos deles com acção no desenvolvimento do actual concelho. Uns nasceram cá, outros escolheram a Amadora para viver e a maior parte por cá trabalhou. Nesta imensa malha de personagens, há figuras dos séculos XVIII, XIX e XX, sem prejuízo dos tempos actuais, que também quis representar.

Há figuras preferidas? Quais? E porquê?São muitas. Tantas. A começar pela Dona Isabel Leitoa, primeira grande proprietária local, que na inexistência de gravuras da época (1636) que a representem, me obrigou a inventar a sua figura. É do seu nome Leitoa que provém o termo Terra da Porcalhota. Gostei também de homenagear o Stuart Carvalhais, meu ídolo, que passava a vida a jogar bilhar no café Pigalle, e desenhei-o a mirar um par de pernas chamadas “Amadora” - há um cartoon dele em que identifi-ca os locais e bairros de que gosta pela elegância e forma de pernas femininas. Gostei também de desenhar o Vasco Granja, o Tiotónio… e até as figuras menos simpáticas, como o político autoritário João Franco, eu gostei de desenhar.

Como foi a experiência de retratar figuras não ficcionais?Foi na Biblioteca Municipal Fernando Piteira Santos (outro grande nome aqui representado) que fiz a maior parte da recolha de informação escrita e visual. Uma razoável quanti-dade de retratos fotográficos antigos eram de difícil percepção,

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Auto-retrato de Nuno Saraiva. O autor durante a pintura mural realizada em 2012 por um colectivo de artistas nas escadinhas de São Cristóvão, na Mouraria, em Lisboa. Vinheta do capítulo “Os desenhadores” (p. 47) do livro Tudo Isto é Fado!

ENTREVISTA

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pelo que tive de imaginar um pouco como seriam essas pessoas. Porém, sobre todas as figuras procurei adoptar um traço simples, de poucas linhas, como se fossem personagens de cinema de animação. No meu estilo de desenho de ilustração não cabe a minúcia do caricaturista, nunca tive essa preocupação.

O retrato é sempre um exercício subjectivo mas talvez o retrato desenhado o seja par-ticularmente. Alguma vez houve problemas com alguém que não tenha gostado de se ver? Alguma vez foi preciso “negociar” um retrato?Com as namoradas. Nenhuma se sentiu plena-mente satisfeita quando retratada. “Fiquei muito feia” ou “Pões-me gorda porquê?” são críticas per-manentes que atribuo a estados de paixão. Quanto aos políticos, esses aceitam qualquer retrato – são desprovidos de paixão.

O Nuno Saraiva é uma espécie de jornalis-ta, concorda? Ou será mais uma espécie de cronista (historiógrafo)?Como referi, sinto-me entre esses dois mundos.

Como foi perceber que tinha um traço pessoal, só seu, ou seja, tomar consciência de uma identidade artística?Tem de ser sempre alguém a dar-nos a boa nova. Esses milagres são sempre anunciados, não nos surgem assim na consciência, pelo menos com au-tenticidade.

Sendo também professor, em que medida é possível ensinar a desenhar?Em 18 anos de professor na escola Ar.Co, cedo ganhei a certeza de que não se ensina a desenhar. Quando muito ensina-se o Desenho. Pode-se estimular capacidades que todos temos, uns mais que outros. Mas todos nascemos desenhadores muito criativos. Há um momento na nossa tenra idade em que os nossos pais nos tiram os lápis de cor e os substituem por uma bola ou por uma boneca. Nesse momento deixamos de ser desenha-dores.

Como vê o futuro dos ofícios ligados ao desenho (ilustração editorial, cartoon, BD)?Da mesma forma que vejo o futuro em geral. Ca-minhando, nunca sozinho, e sempre com uma mão dada na iniciativa e a outra na auto-estima.

Nuno Saraiva (n. 1969), ilustrador editorial, autor de banda desenhada e professor de BD e de Cartoon Político no Centro de Arte e Comunicação Visual (Ar.Co), frequen-tou o Curso Superior de Design de Comunicação do IADE e os Cursos de Design e de Pintura na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa. Como autor de BD para a imprensa portuguesa publica des-de os comecinhos dos anos de 1990, tendo sido co-autor, com Júlio Pinto, da famosa crónica de-senhada Filosofia de Ponta, originalmente publi-cada no jornal O Independente e depois em livro (1995). Assinou as séries A Vida em Rosa (para o gratuito Rosa Maria – jornal da Mouraria) e Na Terra como no Céu (semanário Sol, para o qual ilustrou também a colecção de cromos Eusébio). Entre os seus livros, a solo uns e em co-autoria outros, destacamos aqui Zé Inocêncio: As aven-turas Extra Ordinárias Dum Falo Barato (1997) e Tudo isto é Fado! (2016 – ver p. 8), ou Guarda Abília (com Júlio Pinto, 2000), Isto é um Assalto – A História da Dívida em Banda Desenhada (com Francisco Louçã e Mariana Mortágua, 2013) e Aníbal Milhais – Um herói chamado Milhões (com José Jorge Letria, 2014). É desde 2014 au-tor da imagem das Festas de Lisboa. O seu traço é inconfundível.

As Festas de Lisboa por Nuno Saraiva

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Raquel Roque Gameiro (1889-1970) foi aguarelista e ilustradora. Começou a ilustrar aos 16 anos, desenhando inúmeras capas de livros escolares e infantis. Pintou pescadores e cam-poneses nas suas actividades diárias, usando a cor com grande mestria em retratos marcados pela emoção. Foi também professora. Tinha uma cara séria e um olhar de pessoa determi-nada.

Alfredo Roque Gameiro (1864-1935) foi o chefe dessa equipa familiar. Depois da formação na Escola de Belas--Artes, estudou Litografia em Leipzig, na Alemanha. Aguarelista de grande virtuosismo técnico, dedicou a sua vida à pintura naturalista. Pintor de ar livre, minucioso observador e compositor da luz, gostava do campo, do mar e das serras, e ensinou aos filhos – que brincavam junto dele descalços, entre os cavaletes – o prazer de aguarelar.

Helena Roque Gameiro Leitão de Barros (1895-1986) foi também aguarelista, para além de bordadeira e professora de Desenho. Em 1923 participou numa grande exposição, organizada pelo seu pai, de aguare-listas portugueses em Madrid. Nesse ano casou com José Leitão de Barros, também ele pintor aguarelista, mas sobretudo conhecido como pioneiro do cinema português. Foi durante muitos anos professora e directora das Oficinas de Arte Aplicada da Escola António Arroio.

Stuart Carvalhais (1887-1961), ilustrador, caricaturista, autor de BD e artista gráfico, era muito criativo e gostava de experimentar novos materiais e técnicas. Foi assim que se tornou um dos primeiros artistas a reciclar papel – papel de embrulho, cartão, etc. – e a usar fósforos queimados para desenhar. Teve uma vida difícil e boémia, passada entre os mais pobres da sociedade portugue-sa da sua época, o que explica que os tenha retratado com tanta sabedoria (fadistas, ardinas, costureiras, mari-nheiros, trolhas, artistas de cabaret, etc.). Gostava de jogar bilhar na Amadora, no café Pigalle.

Mámia Roque Gameiro (1901-1996) também aprendeu a desenhar com o seu pai, porém, ao contrário das irmãs, pintaria a óleo, tendo sido aluna de José Malhoa. Gostava de pintar interiores e paisagens. Como ilustradora, preferia temas relacio-nados com a vida doméstica, familiar e popular – o que explica que tenha feito muita ilustração de moda para as primeiras revistas femininas que se publicaram em Portugal. Chama-va-se Maria Emília.

Tiotónio (1907-1985). Nascido na Amadora, António Cardoso Lopes Júnior foi ilustrador e autor de BD. Começou a desenhar aos 15 anos. Fundador de O Mosquito, uma publi-cação de histórias aos quadradinhos que se iniciou em 1936 e que chegou a ter tiragens semanais de 60 mil exem-plares. Criador da famosa dupla Zé Pacóvio (uma espécie de Zé-Povinho, surgido em 1924) e Grilinho. A sua irmã mais nova, Mariana (Tia Nita), foi directora de A Formiga, suple-mento feminino de O Mosquito. Era amigo de Stuart Carvalhais.

HERÓISDA TERRA

Os Roque Gameiro, “a tribo dos pincéis”

Há qualquer coisa nos ares da Amadora que faz germinar ou para ali atrai os artistas plásticos. Filhos da terra, seus habitantes ou visitantes assíduos, os pintores, desenhadores e divulgadores de BD têm enchido a História da Amadora de cor, beleza e humor. Eis uma dúzia deles, todos di-ferentes nos talentos.

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Cruzeiro Seixas (n. 1920). Poeta-pintor nascido na Amadora, expoente do surrea-lismo português, apresenta-se como “um homem que pinta”. Frequentou a Escola António Arroio, onde conheceu Mário Cesariny. Foi marinheiro, viveu em Angola, aí expôs pela primeira vez. Uma vez, num quadro em fundo vermelho, escreveu com fósforos a frase: A Palavra Amor é Incendiária. É autor de um livro de poemas intitulado Eu falo em chamas (1986).

Artur Bual (1926-1999), pintor, escultor e ceramista, foi também ilustrador. Pai do gestualismo na pintura portuguesa, a sua arte queria representar o próprio acto de pintar, fixando-o na tela. Pintou ininterrup-tamente. Foi um dos renovadores da pintura religiosa portuguesa. Tinha uma forte personalidade. São dele os painéis em mosaico da estação da CP da Amadora (1993) e a Galeria Municipal da cidade da Amadora tem o seu nome.

José Ruy (n. 1930). Nascido na Amadora, foi leitor da revista O Mosquito desde o seu primeiro número, em 1936, tornando-se depois colabora-dor e mais tarde seu director artístico. Estudioso de todas as formas da Natureza, desenhou diferentes povos humanos, outros animais (passava a vida no Jardim Zoológico de Lisboa), espécies vegetais, águas em movimento e os diferentes aspectos da atmosfera. Ilustrou para jornais, revistas e livros. Fez uma adaptação integral para BD de Os Lusíadas, de Camões.

José Garcês (n. 1928). Autor de banda desenhada e ilustrador, vive na Amadora. Publicou pela primeira vez em 1946 na revista semanal O Mosquito, foi colaborador da Cavaleiro Andante e autor, entre muitos outros livros, da História de Portugal em BD (4 volumes editados entre 1986 e 1989). Trabalhou no Serviço Nacional de Meteorologia, onde desenhou as cartas de previsão meteorológica e chefiou o departamen-to de desenho.

Sérgio Odeith (n. 1976). Natural da Damaia, começou ainda muito novo a pintar com spray. Pintou murais em diversas cidades e bairros sociais por-tugueses. Teve uma loja de tatuagens. Artista internacional, o seu trabalho é reconhecido como inovador e de grande virtuosismo. A sua técnica baseia-se na ilusão da tridimensionalidade (3D) e na chamada arte anamórfica. O seu nome começou por ser um erro orto-gráfico: Eith, tentando que soasse como hate (ódio). Em 2003, de modo a não perder a forte identidade que a assina-tura artística já havia alcançado, acres-centou-lhe umas letras e formou uma variação aproximada da conjugação da 1.ª pessoa do verbo odiar no presente do indicativo: odeio-te.

Vasco Granja (1925-2005) foi um grande divulgador de BD. Integrou a equipa que fez a edição portuguesa da revista Tintin (1968) e dirigiu a edição portuguesa da revista Spirou. Ficou conhecido como “o pai da Pantera Cor-de-Rosa”, porque durante anos incluiu sempre no programa Cinema de Animação – que apresentou na RTP durante 16 anos (1040 programas) – um filme dessa heroína da animação surgida nos anos de 1960. Gostava também muito do Bugs Bunny.

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No lugar, habitado por operários, cenógrafos, arquitec-tos e designers atarefados com a montagem das diferentes

exposições e espaços, tudo atestava as intensas obras em curso: pedaços de contraplacado de madeira, escadotes, divisórias de pladur, bancadas, estruturas metálicas, lâmpadas, vassouras de obra, potes de cola de madeira, fios eléctricos, baldes e rolos de tinta, máquinas e ferramentas de toda a sorte, fitas métricas, vitrines, papel de cenário, bobines de cabos, paletes.

No chão, uma infinitude de marcas revelava os milhares de passos ali percorridos, por pés de todos os tamanhos, enfiados em sapatos de todos os feitios e tipos de sola. E também os rádios, cada um a tocar a sua música, numa cacofonia quase cómica, testemunhavam a presença de gente muito diferente, com os seus distintos gostos musicais. Gente que ali se demorava a trabalhar para montar os espaços do AmadoraBD. Muitas horas, que a música ajudava a passar. Garrafas de água e de cerveja andavam por ali esquecidas – quem as pousara bebera-as e depois esquecera-as, no meio de todo aquele afã.

O FESTIVAL EMCONSTRUÇÃOA pouco mais de duas semanas da abertura do AmadoraBD de 2017, o Fórum Luís de Camões estava transformado num estaleiro. Cheirava a tinta fresca e a serradura. Mal se percebia a lo-calização e a forma dos diferentes espaços que compõem o Festival. Havia restos de exposições passadas e números de lugares de estacionamento a espreitar em toda a parte.

No piso subterrâneo, onde habitualmente se estacionam automóveis, a mesma paisagem: gente a executar várias tarefas numa corrida contra o tempo, imprimindo pegadas brancas no chão escuro. E por todo o lado, fazendo lembrar um lugar arqueológico, mesmo se de re-manescências muito recentes, os restos de cenografias de exposições passadas, marcas que novas camadas de tinta apagariam, para re-ceber as imagens que formam a identidade visual desta edição do Festival AmadoraBD. Quando os leitores destas linhas entrarem no Fórum Luís de Camões, tudo estará diferente – nem imaginam a que ponto. Bem-vindos!

REPORTAGEM

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BDe Jornalismo

Todos os anos, o CONCURSO NACIONAL DE BANDA DESENHADA incentiva o surgimento de novos talentos a partir dos 12 anos. “Repórter por um dia” foi o tema deste ano, mote para trabalhar a Reportagem, considerado o mais nobre entre os géneros jornalísticos. Pressupondo a implica-ção vivencial do repórter enquanto testemunha de um facto ou conjunto de factos a que assiste como observador, o jor-nalista é na Reportagem simultaneamente um narrador do Mundo e a voz da Humanidade. A banda desenhada pode ser usada para fazer reportagem, se for feita por um desenhador que, sendo um jornalista, se apoia ética e operativamente no Código Deontológico dos Jornalistas (como Joe Sacco, autor de Palestine). No entanto, há muitos desenhadores que, muito embora não sendo jornalistas, criam argumentos com caracte-rísticas semelhantes às das reportagens.

A data-limite para a entrega de trabalhos foi o passado dia 18 de Setembro. A Organização do AmadoraBD recebeu cerca de meia centena de trabalhos candidatos aos vários prémios. Quem serão os vencedores deste ano nos diferentes escalões?

PERFIL

Will Eisner(1917-2005) Nasceu em Nova Iorque, no seio de uma família judia prove-niente do então Império Austro-Húngaro. A paisagem humana da “cidade das cidades” marcou toda a obra de Eisner. A primeira vez que publicou foi no jornal da sua escola. Vendedor de jornais em Wall Street durante a juventude, Eisner foi desde cedo um leitor voraz, contactando com os desenhadores da época. Gostava também muito de cinema, e via um filme todos os sábados à tarde. Colega de liceu de Bob Kane, o criador de Batman, cedo começou a criar histórias desenhadas e a ilustrar revistas que eram feitas na escola. No Verão, frequentava cursos de Desenho e de Pintura, tendo tido aulas com grandes mestres do desenho anatómico. Os seus primeiros trabalhos foram publicados numa revista chamada Wow! – what a magazine! em Setembro de 1936. Considerado o pai da novela gráfica, desbravou terreno no campo da narrativa visual e da linguagem do desenho, documentando realidades urbanas menos visíveis e denunciando os estereótipos e os preconceitos que minam uma sociedade em que desde há muito a desigualdade floresce, ocultada sob o lema do chamado “sonho americano”. Os mais prestigiados prémios da indústria da banda desenhada norte--americana, os Eisners – os Óscares da BD, entregues todos os anos em San Diego, por ocasião da Comic-Con International – levam o seu nome.

Joe Sacco

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JOE SACCO

Qual foi o objectivo inicial de Palestine?Cresci a pensar que os palestinia-nos eram terroristas e levei muito tempo até perceber que o jogo de poderes no Médio Oriente não era afinal o que eu pensava... Basi-camente, o que aconteceu foi que um dia fiquei suficientemente perturbado para lá querer ir e, na medida das minhas possibi-lidades, dar voz aos palestinia-nos – ou talvez melhor dizendo, ser uma lente através da qual as pessoas pudessem ver como

eles vivem. Habitualmente, os palestinianos são retratados de uma das seguintes maneiras: ou como terroristas ou como vítimas. Nalgumas situações, ambas as descrições podem corresponder à verdade, mas os palestinianos também são pessoas que têm uma vida normal, que vão à escola, que têm uma família, que vão às compras. Quando comecei a ler as coisas certas, que diziam a verdade, senti-me chocado com o que fiquei a saber sobre a Palestina e quis lá ir, para ver se podia fazer alguma coisa. Senti-me obrigado a ir para contar as histórias daquelas pessoas. Essa foi a única forma de solidariedade que encontrei dentro de mim para lhes oferecer.

Que metodologia usou?Quando fui para os territórios palestinianos não sabia ainda muito bem o que ia fazer. Parti a pensar que o mais provável era fazer um diário

Joe Sacco teve dificuldade em encontrar trabalho no jor-nalismo, algo que o estimulasse verdadeiramente, e que o levasse a fazer coisas inspiradoras para o Mundo. Para ele, o jornalismo nunca foi uma carreira para percorrer, tão-pouco um hobby. Era uma paixão. Decidiu então que queria desenhar, embora como jornalista de guerra. Em resultado disso, Sacco foi para a Faixa de Gaza, onde esteve entre os palestinianos nos anos de 1991 e 1992. Quando regressou aos Estados Unidos, começou a escrever e a desenhar Palestine. O livro venceu o American Book Award em 1996.

LIVROS

Prémio para Melhor Álbum Estrangeirode BD em 2004

gráfico da minha experiência, embora soubesse que iria também falar com pessoas e tirar notas. Quando cheguei lá, senti um forte impulso jornalístico a guiar as minhas acções, e dei comigo a entrevistar pessoas, a recolher testemunhos, a olhar para a ocupação e a precisar de fazer algo consequente sobre tudo isso. Então, comecei a trabalhar sobre os aspectos mais importantes da ocupação, e encontrei pessoas que tinham essas ex-periências de vida e que queriam falar. A partir de certo ponto houve um método de trabalhar que se impôs sem eu dar por isso, mas os aspectos casuais foram mais importantes para a criação do livro. Fui-me deixando ir atrás das diferentes possibilidades que foram surgindo, sempre com o objectivo de acolher o que fosse aparecendo no meu caminho. Tirei fo-tografias apenas para ter algumas referências, e tinha sempre comigo um caderno, mas acabei por praticamente não usar nada disso. As minhas fo-tografias não são boas, apenas as faço para ter uma ideia sobre a aparência, sobre os contornos gerais das coisas. O que eu queria realmente era falar com as pessoas. Muitas das minhas aventuras aconteceram por acaso. Eu apanhava um táxi para ir a um determinado lugar e durante o trajecto pensava: “Veremos o que acontece.” Havia sempre a possibilidade de alguém se aproximar de mim, e nesse caso eu diria: “Estou aqui para ver como é que vocês vivem, como são as coisas no vosso dia-a-dia.” A maior parte das vezes, os palestinianos com quem eu me cruzava diziam-me: “Se queres ver como são as coisas aqui, vem comigo.” Nessa época, as pessoas apreciavam o interesse que alguém de fora podia ter por elas e pelas suas vidas, e eram menos desconfiadas e paranóicas do que são hoje.

Pensa no seu trabalho como uma tentativa de reconciliação entre os israelitas e os palestinianos?Eu não estava a tentar reconciliá-los. Queria apenas mostrar alguns dos aspectos menos visíveis relacionados com a ocupação. Não creio que tenha mostrado coisas espectacularmente novas ou inesperadas. Ouvi histórias sobre torturas que eram incrivelmente duras mas decidi não usar esse tipo de relatos e, em vez disso, optei por mostrar coisas menos chocantes, que tinham mais a ver com a vida de todos os dias, com a ex-periência das pessoas comuns. Penso que é isso que toca as pessoas. É mais difícil imaginarmos ou pormo-nos no lugar de alguém que está a ser torturado. Para um ocidental, é difícil pôr-se no lugar de um prisio-neiro com a cabeça tapada e privado de sono... Mostrar o trauma físico, ou psicológico, tornaria mais difícil o diálogo com o leitor comum, que era em última instância o que eu estava a tentar fazer. Sinto-me mais confortável como jornalista, como alguém que está ali para relatar histórias comuns.

Já pensou em transformar o livro num filme?Não creio que Palestine possa ser transformado num filme. Não tem uma trama cinematográfica. Fui contactado nesse sentido algumas vezes, mas ninguém veio ter comigo com um plano a sério para trans-formar o livro num filme. Gosto de fazer banda desenhada. É algo que sei fazer bem e que posso fazer sozinho. Tenho o controlo total do processo. Sou eu que desenho as cenas e que as ilumino. Não preciso de milhões de dólares para fazê-lo. Não quero um comité de pessoas a dizer-me como devo produzir o meu trabalho. A melhor coisa do meu trabalho como desenhador é ser um one man show.[Fonte: Al Jazeera online, 19-07-2008]

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MANA , de Joana Estrela [PLANETA TANGERINA, 2016] Ter uma mana mais nova é por vezes começar por pedir à mãe para a levar de volta ao hospital de onde veio. Quem diz o hospital diz esse outro estranho (e sobretudo distante) planeta de onde as manas mais novas provêm. Mas quem não tem uma mana pequenina, não faz ideia de como é bom ser irmã de uma, mesmo quando ela é chata (e é-o quase sempre) e parece que nunca mais cresce. MANA é uma espécie de carta de amor de uma irmã a outra. Ou de poema desenhado que a autora dedicou à sua irmã mais nova. Um livro que é uma ternura, como se costuma dizer. O projecto do livro venceu a 1.ª edição do Prémio Internacional de Serpa para Álbum Ilustrado (2015).

FÓSSEIS DAS ALMAS BELAS , de Mário Freitas e Sérgio Marques[KINGPIN BOOKS, 2015] O pai para a filha que segura um seixo numa mão: “Sabes o que tens na mão?” Ela: “Uma pedra como as outras?” Nada disso: “Um ovo de uma ideia bela que ainda ninguém teve ou que nunca foi aproveitada.” Metáfora de grande beleza poética, há também nela muito do que por vezes falta à educação: imaginação e liberdade. Na praia da Adraga, ali para os lados de Sintra, um pai muito fixe e os seus dois filhos acampam ilegalmente na falésia. Eis senão quando realidade e mito dão as mãos à beira-mar, transportando os leitores para aventurosos momentos--chave do passado histórico e lendário de Portugal.

Coordenação Joana Sabala

Conceito, edição e textos Sarah Adamopoulos

TORMENTA , de André Oliveira e João Sequeira [POLVO, 2015]é uma história sem palavras desenhada a preto-e-branco (mais preto que branco). Um faroleiro que habita uma ilha praticamen-te deserta, leva uma vida solitária na companhia do seu cão – uma solidão que apenas é atenuada pelas aparições de Madalena, que também vive no farol e com quem as coisas não parecem ser fáceis. Novela silenciosa e marcada por um ambiente sombrio, embora também pela inquietude dos elementos (o vento, a chuva, um mar revolto), que dir-se-ia que povoam de som e de fúria as vinhetas da história, o livro tem argumento de André Oliveira, que o dedicou aos seus avós.

O MEU IRMÃO INVISÍVEL , de Ana Pez [ORFEU MINI, 2015] Um dia, uma irmã disse ao seu irmão mais novo para ele desaparecer. A partir desse momento não mais houve sossego, pois o irmão escondeu-se no interior de uma caixa de cartão e passou a ver coisas incríveis, vedadas aos irmãos que não são invisíveis: animais ferozes, mitológicos e já extintos, ou então astronautas, ou então peixes que vivem nas profun-dezas dos mares, por vezes colocan-do-se em situações muito arriscadas e obrigando a família a salvá-lo. Celebrando a imaginação dos mais pequeninos, o livro traz uns óculos mágicos.

FICHA TÉCNICADesign, paginação e artes-finaisAlice Prestes

RevisãoAntónio Costa Brás

Uma Produção

MARIA , de Henrique Magalhães[POLVO, 2015], é uma compilação de tiras de BD de humor publicadas desde 1975 – originalmente no Brasil, durante a ditadura militar, e depois no semanário Algarve Região e também num fanzine francês da região de Narbonne. O livro celebra os 40 anos de uma personagem que se popularizou por fazer, sem muitas palavras, uma espécie de mistura de filosofia de ponta sobre a existência humana moderna e crítica de costumes, por vezes com grande acutilância política. Nos últimos anos, Maria Lisboa tornou-se uma voz de defesa dos direitos das minorias – com a ajuda decisiva das suas amigas Zefinha e Pombinha, formando um trio de ataque aos valores com que a maioria se conforma.

Prémio para MelhorDesenhador Português de Livro de Ilustração em 2016

Prémio para MelhorArgumento de Álbum Português em 2016

Prémio para MelhorDesenhadorEstrangeiro de Livro de Ilustração em 2016

Prémio para MelhorDesenho de ÁlbumPortuguês em 2016

Prémio para MelhorÁlbum de TirasHumorísticas em 2016

Publicação de apoio pedagógico e educativo às visitas guiadas ao AmadoraBD | OUTUBRO 2017

TUDO ISTO É FADO! , de Nuno Saraiva [JORNAL SOL/EGEAC, 2016] A chamada “Canção de Lisboa” tem os seus heróis – os de ontem (como a Severa, Amália ou Alfredo Marce-neiro) e os de hoje (como Carlos do Carmo, Mariza ou Camané). Inicial-mente publicado em tiras no jornal Sol, o projecto transformou-se num livro que faz uma boa síntese da História do Fado e das suas principais figuras ao longo do tempo (incluindo os seus maiores poetas), a partir da perspectiva de quem olha hoje para o tema (uma das perso-nagens é uma condutora de um tuk-tuk). Espécie de brevíssima enciclopédia gráfica sobre o Fado, o título do livro evoca um famoso fado do final dos anos de 1940 que Amália gravaria em 1955.

Prémio Nacionalde BD - Melhor ÁlbumPortuguês em 2016