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Linguística

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    POLIFONIA CUIAB EdUFMT V. 12 N. 2 p. 91-105 2006 ISSN 0104-687X

    VIOLA QUEBRADA: LINGUAGEM E ESTILO CARACTERSTICOS DO FALAR CAIPIRA

    Joyce Elaine de Almeida

    RESUMO: Este artigo pretende analisar uma cano composta por Mrio de Andrade intitulada Viola quebrada, buscando apresentar o trabalho de linguagem do autor para dar cano o tom potico e a simplicidade peculiar vida no campo. Para a realizao desta pesquisa, buscou-se alicerce nos pressupostos tericos da Sociolingstica e da Lingstica Histrica a fim de analisar os dados presentes. Desta forma, primeiramente so abordados os conceitos de lngua, lngua portuguesa e norma brasileira. Posteriormente aborda-se o conceito de variao lingstica e finalmente analisa-se a composio de Mrio de Andrade. Identificam-se, na cano, recursos lingsticos, como figuras de linguagem e variaes lingsticas, que fazem do texto um registro do campons. PALAVRAS-CHAVE: Variao Lingstica. Msica de Raiz. Falar Rural.

    VIOLA QUEBRADA: LANGUAGE AND STYLE

    TYPICAL OF RURAL DIALECT

    ABSTRACT: This article analyzes a song composed by Mrio de Andrade untitled Viola quebrada in order to present the language craft of the author to give to the song a poetic shade and

    Joyce Elaine de Almeida professora do Departamento de Letras Vernculas e Clssicas da Universidade Estadual de Londrina. Atua na rea de Linguagem e Educao na linha Ensino/Aprendizagem de Lngua Portuguesa, no programa de ps-graduao em Estudos da Linguagem.

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    the peculiar simplicity to country life. The research was based upon the theoretical presuppositions from Sociolinguistics and Historic Linguistics to analyze the data. At first the conceptions of language, Portuguese language and Brazilian norm are commented. Later the conception of linguistic variation is studied and finally the Mario de Andrades composition is analyzed. Linguistic resources such as figures of speech and linguistic variations which turn the text into a record of rural life are identified. KEY WORDS: Linguistic Variation. Country Song. Rural Dialect.

    Pretende-se, neste texto, apresentar a anlise de uma

    cano composta por Mrio de Andrade, Viola quebrada, que retrata a vida e a linguagem de um homem do campo, caracterizado por seu modo peculiar de falar e pela viso de mundo especfica. Na cano identifica-se o tom potico do autor, registrado a partir de um estilo de linguagem diferenciado reunindo figuras de linguagem variao lingstica, responsvel pela caracterizao do falar caipira. Com isto, a vida do homem do campo apresentada pela beleza da poesia e pela simplicidade retratadas na linguagem. Portanto, a partir dos pressupostos tericos da Sociolingstica e da Lingstica Histrica, analisou-se a letra da msica, a fim de ressaltar o trabalho de linguagem presente na cano.

    1. Lngua, lngua portuguesa e sua peculiaridade no Brasil

    O conceito de lngua pode ser abordado sob vrias perspectivas, devido ao fato de ser objeto de diversas disciplinas, como a Antropologia, a Sociologia, a Psicologia e a Lingstica, entre outras.

    Limitando-se perspectiva lingstica, o objeto lngua tambm pode ser concebido sob diferentes ticas. Hjemslev (1943, p. 84) afirma que a lngua pode ser considerada como:

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    a) uma forma pura, definida independentemente de sua realizao social e de sua manifestao material; b) uma forma material, definida por uma dada realizao social, mas ainda independente do detalhe da manifestao; c) um simples conjunto de hbitos adotados numa dada sociedade e definidos pelas manifestaes observadas.

    Tais definies correspondem respectivamente aos

    conceitos de esquema, norma e uso. Tratando do mesmo assunto, Coseriu (1980, p. 123)

    diferencia norma de sistema. Segundo o pesquisador, a norma abrange fatos lingsticos efetivamente realizados e existentes na tradio, ao passo que o sistema uma tcnica aberta que abrange virtualmente tambm os fatos ainda no realizados, mas possveis de acordo com as mesmas oposies distintivas e as regras de combinao que governam o seu uso.

    Cabe ressaltar que essas distines expostas por

    Hjemslev (1943) e por Coseriu (1980) so formas de rever a dicotomia saussureana langue/parole, e, desta forma, o sistema corresponderia langue enquanto que o uso corresponderia parole. O que h de inovador nesta abordagem a idia de norma, que necessariamente depende do uso.

    Vale apontar a noo de norma aqui adotada, que a resultante do uso das formas lingsticas por grupos sociais distintos, o que resulta em diferentes normas, pois, como afirma Faraco (2002, p. 38):

    [...] numa sociedade diversificada e estratificada como a brasileira, haver inmeras normas, como, por exemplo, a norma caracterstica das comunidades rurais tradicionais, aquela de comunidades rurais de determinada ascendncia tnica, a norma caracterstica de grupos juvenis urbanos, a(s) norma(s) caracterstica(s) de populaes das periferias urbanas, a norma informal da classe mdia urbana e assim por diante.

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    Percebe-se, ento, a existncia de vrias normas no Brasil, que caminham ao lado da norma culta, numa relao de conflito com esta, a qual diz respeito

    norma lingstica praticada em determinadas situaes (aquelas que envolvem certo grau de formalidade), por aqueles grupos sociais mais diretamente relacionados com a cultura escrita, em especial por aquela legitimada historicamente pelos grupos que controlam o poder social. (FARACO, 2002, p. 40)

    Existe tambm a norma padro, que resultou de um processo unificador, objetivando, segundo Faraco (2002, p. 40), uma relativa estabilizao lingstica, buscando neutralizar a variao e controlar a mudana.

    Entre as vrias normas existentes no Brasil, a que mais se aproxima da padro a norma culta, privilegiada socialmente devido a razes no estritamente lingsticas, mas principalmente socio-histricas. J as normas que mais se distanciam da padro so desprezadas e desvalorizadas socialmente. Assim, no se trata de um fenmeno puramente lingstico e nem poderia ser, dado que a lngua um fenmeno social, portanto o desprezo e a desvalorizao se ampliam para o mbito social. Desta forma, a norma padro tornou-se um emblema do lugar social que as pessoas ocupam, pois foram associados a ela valores de natureza social.

    Como tal norma uma das que constituem a lngua portuguesa, faz-se necessrio lembrar que a lngua falada no Brasil a portuguesa. Tal afirmao parece ser exageradamente bvia, entretanto poderia ser diferente, visto que o pas, anteriormente ocupao europia, era habitado, em sua maioria, por povos indgenas. No incio da colonizao portuguesa, no Brasil havia mais de 1800 lnguas. Hoje esse nmero no passa de 200. Vitral (2001) procura explicar os motivos pelos quais o uso da lngua portuguesa superou o uso da lngua geral. Segundo o autor, as razes se encontram no chamado processo civilizatrio, ocorrido no sculo XVIII, quando os hbitos e costumes da cultura francesa foram incorporados como marcas de civilidade. Dessa forma, afirma o pesquisador:

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    O prestgio da cultura francesa em Portugal permitiu a influncia, em territrio luso, dos novos padres civilizados, que, como marcas de distino de classe, encontraram condies favorveis de propagao devido estrutura do estado portugus, controlado por um reduzido grupo vinculado monarquia. (VITRAL, 2001, p. 307)

    Assim, a lngua portuguesa tambm adquiriu atributo de

    civilidade, o que contribuiu para sua superioridade diante das outras.

    Cabe ressaltar a existncia de mais de uma variedade de lngua portuguesa: a de Portugal e a falada no Brasil, alm das que so faladas em outros pases. Mattos e Silva (1992, p. 76) denomina a variedade de lngua portuguesa falada no Brasil de portugus brasileiro, devido diversidade existente nessa lngua, que recebeu contribuies variadas de lnguas indgenas, africanas e outras lnguas (europias, asiticas), tornando-se, assim, diferente em relao europia. Alm disso, importante lembrar que a lngua sofre uma deriva natural e que processos da prpria lngua portuguesa, trazidos pelos colonizadores, tiveram um desenvolvimento prprio no Brasil.

    Face s divergncias quanto constituio de uma nica variedade de lngua no Brasil, imps-se uma norma lingstica explicitada e coercitiva com o objetivo de atingir uma homogeneizao da lngua. Apesar de tal imposio, Mattos e Silva (1992) aponta a formao de uma lngua nacional, mas de um portugus brasileiro:

    certamente no entrecruzar-se de variantes

    localizadas, com maior ou menor interferncia de marcas indgenas e/ou africanas, e de variantes mais gerais, menos ou mais africanizadas ou aportuguesadas, que se definem e emergem os traos caractersticos do portugus brasileiro lngua nacional. (MATTOS e SILVA, 1992, p. 80)

    A partir dessas observaes e levando-se em considerao as diferentes manifestaes lingsticas do portugus no Brasil, pode-se, pois, identificar variedades da

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    lngua portuguesa utilizada no Brasil. Tal fato constitui a variao lingstica.

    2. Variao Lingstica A linguagem , por natureza, um objeto sujeito a

    alteraes, por ser uma parte constitutiva do ser humano. Ora, se o homem est sempre mudando sua aparncia, suas idias, seus valores, perfeitamente normal haver variaes e mudanas lingsticas. O que implica dizer que todas as lnguas variam, isto , no existe nenhuma comunidade de falantes cujos membros falem da mesma forma. Segundo Labov (1972), a variao lingstica natural, essencial linguagem humana, desta forma o que exigiria explicao seria a ausncia da variao na linguagem e no a sua presena.

    Meillet j apontava, em 1906, o fato social como motivao fundamental para ocorrerem alteraes lingsticas: Por ser a lngua um fato social resulta que a lingstica uma cincia social, e o nico elemento varivel ao qual se pode recorrer para dar conta da variao lingstica a mudana social (MEILLET apud CALVET, 2002, p. 16).

    Na mesma linha de pensamento, Coseriu (1980) afirma que a diversidade lingstica pode ocorrer devido a diversos fatores e prope uma classificao para as diferentes formas de variao: diacrnica, diatpica, diastrtica e diafsica. Segundo o autor, quando h alteraes lingsticas resultantes da passagem do tempo, elas se denominam diacrnicas. Como exemplo para este tipo de variao h o pronome voc, enquanto resultado das mudanas na expresso Vossa Merc.

    As variaes resultantes das caractersticas regionais, ou diatpicas, so representadas pelos distintos sotaques, evidenciados, por exemplo, pela diferente pronncia do r em regies paulistas, sulistas principalmente as de colonizao italiana - e regies nordestinas. Alm dessas, as variaes diatpicas tambm se evidenciam em outros nveis, como o lexical, por exemplo, com os variados nomes existentes para um

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    mesmo objeto; ou o morfossinttico, como a distribuio regional do emprego do pronome tu/voc.

    H tambm as alteraes na linguagem resultantes dos diferentes estratos scio-culturais, denominadas diastrticas e que podem ser comprovadas com estudos comparativos entre falantes alfabetizados e analfabetos, por exemplo.

    Finalmente existem as variaes diafsicas, que, segundo o estudioso, so as distines entre os diversos tipos de modalidade expressiva. Para o autor, as variedades lingsticas que caracterizam no mesmo estrato social os grupos biolgicos (homens, mulheres, crianas, jovens) e os grupos profissionais podem ser consideradas como diafsicas. (COSERIU, 1980, p. 110-111). Cabe ressaltar, que, diferentemente deste autor, Camacho (1988) inclui na variao diastrtica as resultante dos fatores idade e sexo.

    Depois desse breve sobrevo terico sobre a variao lingstica, apresenta-se o corpus emprico desta pesquisa, a cano composta por Mrio de Andrade, Viola quebrada.

    Viola quebrada

    1. Quando da brisa no aoite a fr da noite se acurvou 2. Fui sincontr coa maroca, meu amor 3. Eu tive narma um choque duro 4. Quando ao muro j no escuro 5. Meu oi andou buscando a cara dela e no achou

    6. Minha viola gemeu 7. Meu corao estremeceu 8. Minha viola quebrou 9. Teu corao me deixou 10. Minha maroca resorveu para gosto seu me abandonar 11. Pruqu os fadista nunca sabe trabai 12. Isso besteira que das fr que bria e chera a noite inteira 13. Vem dispois as fruita que d gosto de saborear

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    14. Pru causa dela eu sou rapaz muito capaz de trabai 15. Os dia inteiro e as noite inteira capinar 16. Eu sei carpir pruqu minharma ta arada e loteada 17. Capinada coas foiada dessa luz do teu oi

    Autor Mrio de Andrade

    Voz: Grupo Viola Quebrada

    3. Anlise do corpus

    Nesta seo, ser analisada a letra da msica Viola

    quebrada, composta por Mario de Andrade, que retrata a linguagem de um homem do campo, de um fadista, um caipira que canta e toca sua viola. Esse tipo de cano tributria das cantigas portuguesas dos sculos XII e XIII. Foram incorporadas nossa cultura pelos tropeiros brasileiros a partir dos sculos XVIII e XIX. Era a msica tocada e cantada por esses profissionais durante as suas rduas jornadas tocando tropas do sul do pas at o interior de So Paulo. No texto o poeta retrata a perda de um amor, porque os fadista nunca sabe trabai. Nota-se a uma viso negativa a respeito daquele que se ocupa da arte de cantar. Trata-se de um senso comum registradodo pelo autor. Ressalta-se que tal idia , em seguida, contestada pelas afirmaes presentes nas linhas 12 e 13: Isso besteira que das fr que bria e chera a noite inteira/ Vem dispois as fruita que d gosto de saborear. Verifica-se, neste trecho, uma comparao entre as flores que brilham e exalam odor durante a noite com o arte de cantar; a partir desta comparao, deduz-se que o artista tambm capaz de dar bons frutos. Desta forma, o poeta j apresenta idias positivas arte de cantar.

    Cabe ressaltar a poesia presente na cano, j iniciada por uma metfora indicando o entardecer: Quando da brisa no aoite a fr da noite se acurvou (linha 1). Verifica-se a o tom potico do autor ao retratar o anoitecer em que a Lua, caracterizada como a fr da noite, se acurvou. Alm disso, verifica-se tambm uma prosopopia: Minha viola gemeu. (linha 6), em que o poeta personifica a viola, apresentando-a com um ser emotivo, fato bastante convincente, pois pertence a um fadista.

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    No decorrer da histria apresentada na cano, ocorre uma transformao do fadista, que passa a trabalhar. Isto se verifica nos ltimos versos: Eu sei carpir pruqu minharma ta arada e loteada/ Capinada coas foiada dessa luz do teu oi (linhas 16 e 17). Neste trecho identifica-se uma mistura de figuras relacionadas ao campo (arada, loteada, capinada, foiada) e ao amor: minhalma, luz do teu oi (linha 17). Desta forma, fundem-se temas relacionados ao amor e ao trabalho no campo, havendo uma ambigidade proposital, por parte do autor, em relao transformao ocorrida com o campons apresentado no texto.

    Na cano, a partir de processos lingsticos peculiares ao falar rural, o autor reporta a variao diastrtica unida diatpica, pois diz respeito linguagem de pessoas no escolarizadas e residentes na zona rural. Isto de d nos nveis fonticos, lexicais e sintticos. Apresentam-se, a seguir, os processos identificados: Processos fonticos a) rotacismo: alterao de l para r em encontro consonantais: fr (linhas 1 e 12)

    Nesses vocbulos identifica-se, a troca do l pelo r. Segundo Amaral (1920), no dialeto caipira, o l, quando subordinado a um grupo de consoantes, muda-se em r. O autor ainda comenta: Esta troca um dos vcios de pronncia mais radicado no falar dos paulistas, sendo mesmo freqente entre muitos dos que se acham, por educao ou posio social, menos em contato com o povo rude (AMARAL, 1920, p. 52).

    Nascentes (1953) aborda esta questo, afirmando que tal caso deve ser visto luz da fonologia. Segundo o autor:

    A oposio entre laterais e vibrantes no Novo

    Mundo tende a enfraquecer-se ou a desaparecer. Os casos de r por l (assim como os de l por r), por abundantes que sejam, no constituem um cambio fontico, um processo articulatrio que afete a constituio do sistema fontico, mas sim casos de trocas entre dois fonemas que existem e

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    continuam existindo no sistema fontico funcionante. (NASCENTES, 1953, p. 54-55)

    b) rotacismo: alterao de l para r em trava silbica: narma (linha 3), resorveu (linha10), minharma (linha 12)

    Amaral (1920, p. 52) afirma ser natural tal transformao no dialeto caipira quando o l est no final de slaba, como por exemplo: tal/ tar.

    Cabe ressaltar que no portugus falado hoje em grande parte da regio brasileira, o uso do l mera conveno grfica, pois nesse contexto, ocorreu a semivocalizao da consoante l em w.

    Bolo comenta a ocorrncia deste processo tambm em Portugal:

    No que diz respeito s consoantes r e l, devo

    recordar que a substituio da segunda pela primeira (marvado, minharma) no se encontra s no portugus popular do Brasil. Depara-se igualmente no portugus popular de algumas regies portuguesas. (BOLO, 1951, p. 25)

    c) prtese: se acurvou (linha 1)

    Segundo Amaral (1920, p. 54), a protse comum no falar rural. Coutinho (1958, p. 157) aponta casos de prtese na evoluo do latim para o portugus, como por exemplo: stare/ estar, scribere/ escrever.

    d) Iotizao: oi (linhas 5 e 17), trabai (linhas 11 e 14), bria (linha 12)

    Nessas variantes ocorre a iotizao, fenmeno comum no dialeto caipira. Conforme afirma Amaral (1920, p. 53), o lh vocaliza-se em i no dialeto caipira.

    Caruso (1983) apresenta um estudo acerca da iotizao do lh cujo corpus colhido do Atlas Prvio dos Falares Baianos (APFB). Com base nos resultados de sua pesquisa em que se identificou uma grande ocorrncia da palatal, afirma que talvez tal processo esteja caminhando para a reconstruo da palatal.

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    Aguilera (1999) trata desse processo, apresentando o parecer de pesquisadores, como Nascentes (1953), Penha (1972), Cmara Jnior (1979 e 1981), Elia (1979), Jota (1981) e Melo (1981) e constata no haver consenso quanto nomeao do processo, pois, enquanto alguns autores o consideram uma despalatalizao, outros o conceituam como uma iotizao. Para Aguilera, o que ocorre uma iotizao ou uma semivocalizao (e no uma vocalizao, pois o yode uma semivogal), descartando a possilidade de uma despalatalizao, pois o yode palatal tambm. No decorrer de seu estudo, a autora afirma que esse processo um trao predominante na fala rural ou inculta que se expande por todas as regies brasileiras como se pode documentar pelos Atlas j publicados (AGUILERA, 1999, p. 158).

    Nascentes (1953, p.49) comenta as razes de ordem etnogrfica que resultaram na dificuldade da pronncia do lh pela classe inculta: A dita classe era composta em sua maioria de ndios e africanos que no possuam este fonema em suas lnguas; tiveram de aprend-lo, aprenderam estropiadamente e deste modo o transmitiram aos seus descendentes.

    Mendona (1935, p. 112) afirma ocorrer esse processo devido a uma influncia africana. J para Melo (1981), essa transformao pode ser uma influncia romnica ou africana. Apesar de apontar as duas hipteses, o autor d preferncia segunda:

    Sem embargo, porm de ser evoluo romnica a

    lh/y, sou inclinado a explic-la, aqui no Brasil, por influncia africana, uma vez que o fato ocorre de regra nas zonas mais africanizadas, sendo quase geral num ponto intensamente trabalhado dos negros, So Joo da Chapada, em Minas, segundo nos informa Aires da Mata Machado (MELO, 1981, p. 81)

    A despeito da hiptese da origem africana, vale lembrar

    as consideraes de Bolo sobre casos do portugus europeu nos quais ocorria o processo de iotizao. Segundo o autor, no distrito de Ponta Delgado, designadamente na povoao de Arrifes, ainda se usava esta pronncia: orvaio, carre (carrilho, nome do carolo = interior da maaroca, depois de tirados os gros), ovias, coio,

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    cestas (cestilhas, intrumentos para caar pssaros), abia, borraio, joeieira, ajoeiar (ajoelhar). (BOLO, 1943, p. 47). d) mettese: pruqu (linhas 11 e 16), pru causa (linha 14)

    Verifica-se que, nesse caso, ocorre uma mettese, pois o r altera seu lugar na slaba, ao invs de seguir a vogal, ele a antecede. Nascentes (1953), ao estudar a linguagem carioca, aponta a mettese como um processo comum na fala da classe inculta.

    Mendona (1935, p 116) atribui origem africana a este processo.

    Por outro lado, Williams (1975, p. 119) trata tal processo como uma das evolues da lngua latina para o portugus e cita como exemplos as formas geolho/joelho, sibilare/silvar, fenestram/ feestra/fresta, entre outras.

    e) monotongao: chera (linha 12)

    Segundo Amaral, a reduo de ei para e se d pelo contato com a consoante seguinte ao ditongo. Conforme aponta o autor, o ditongo ei reduz-se a quando seguido de r, x ou j (AMARAL, 1920, p. 50). exatamente o que ocorre no corpus, pois o e seguido de r. f) epntese: dispois (linha 13), fruita (linha 13).

    Segundo Coutinho (1958, p.146), a epntese o acrscimo de fonema no interior da palavra. , pois, o que ocorre nos vocbulos apresentados, pois ocorre o acrscimo do s na primeira slaba do primeiro vocbulo e o acrscimo do i tambm na primeira slaba do segundo vocbulo. Processos lexicais

    Identificou-se um termo interessante no corpus; trata-se do vocbulo maroca (linhas 2 e 10). Vale ressaltar que tal termo no est presente nos dicionrios de Ferreira (1986) nem de Houaiss (2001).

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    Processos sintticos

    Identificou-se uma colocao pronominal diferenciada no seguinte trecho do corpus: fui sincontr (linha 2). Neste caso, verifica-se que ao invs do pronome me, ocorre o se em forma aglutinada.

    A partir dos processos identificados, constata-se o trabalho de linguagem efetuado pelo poeta para caracterizar o falar rural. 4. Consideraes finais

    Na cano Viola quebrada, Mrio de Andrade resgata musicalmente a cidadania do falar caipira brasileiro, valorizando a identidade lingstica que o constitui. Ou seja, tenta quebrar com sua moda de viola, j no incio do sculo passado, o esteretipo infelizmente ainda em voga no pas - de que essa linguagem seria algo feio, errado, produzida por gente descuidada, uma deturpao da lngua rica, boa, encerrada nas gramticas e nos dicionrios.

    Musicalmente Andrade evidencia que o falar caipira se constitui numa das mais belas formas de os brasileiros se manifestarem. Em suma, Mario de Andrade, um lingista avant la lettre, mostra por meio do falar caipira, que a lngua portuguesa no Brasil possui seu colorido especial de variadas nuances devido a diversos fatores que contriburam e contribuem para sua diversificada manifestao. Referncias Bibliogrficas: AGUILERA, Vanderci de Andrade. Um estudo geolingstico da iotizao no portugus brasileiro. In: AGUILERA, Vanderci de Andrade. (Org.) Portugus no Brasil: estudos fonticos e fonolgicos. Londrina: 1999. p.155-180. AMARAL, Amadeu. O dialeto caipira. So Paulo: Anhembi, 1920.

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