25 + A vida é uma escola - CHIADO BOOKS · as ler a viver uma vida melhor. Temos todos a aprender...

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COLECÇÃO

B I O S

Portugal | Brasil | Angola | Cabo Verde

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© 2019, André Fernandes e Chiado BooksE-mail: [email protected]ítulo: 25 + A vida é uma escola

Editor: Camila FigueiredoComposição gráfica: Inês Tavares – Departamento gráfico

Capa: Mariana BrásRevisão: André FernandesImpressão e acabamento:

ChiadoP r i n t

1.ª edição: Junho, 20162.ª edição: Outubro, 2016

3.ª edição: Fevereiro, 20174ª edição: Março, 2017

5ª edição: Outubro, 20176ª edição: Março, 2019

ISBN: 978-989-51-7576-5Depósito Legal n.º 449757/18

Um livro vai para além de um objeto. É um encontro entre duas pessoas através da palavra escrita. É esse encontro entre autores e leitores que a Chiado Books procura todos os dias, trabalhando cada livro com a dedicação de uma obra única e derradeira, seguindo a máxima pessoana “põe quanto és no mínimo que fazes”. Queremos que este livro seja um desafio para si. O nosso desafio é merecer que este livro faça parte da sua vida.

www.chiadobooks.com

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André Fernandes

25+A VIDA É UMA ESCOLA

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Agradecimentos

O meu muito obrigado à Mariana Brás.Por toda a amizade, empenho e talento artísticodedicado à elaboração da capa exactamente como a visualizei.

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Para a minha mãe Céu e para o meu pai Paulo, com o agradecimento sincero por me terem dado Vida e com o agra-decimento sincero por terem a coragem de me apoiar no falar sobre o que, juntos, vivemos, de modo a poder fazer pelo pre-sente dos outros o que já não podemos fazer pelo nosso pas-sado. Tenho muita admiração pela coragem deste vosso acto, acreditem. Muita mesmo.

Para a minha tia Rolanda, por ajudar os sobrinhos sem-pre que pode e por, com essa ajuda, me permitir indirecta-mente seguir com projectos destes que me realizam e fazem verdadeiramente feliz.

Para o meu irmão Gonçalo e para o meu irmão Pedro. Que o que o mano aprendeu nestes 25 anos vos possa sempre ajudar a viver melhor em qualquer idade. Amo-vos profunda-mente e tenho um orgulho tremendo em cada um de vós.

Para o meu tio Jorge, por todo o Amor. És uma das pes-soas mais importantes da minha vida e serei sempre a conti-nuação do Amor que vieste deixar a este mundo. Obrigado por tudo. Sem ti, não existiria o eu que conheces em mim. Amo-te muito e para sempre.

Para a minha tia Guida. Onde quer que estejas, continuo a ser um sobrinho tremendamente orgulhoso de ti. Obrigado por tudo o que me ensinaste em vida e por tudo o que me en-sinaste para além dela. Por todas as vidas que me deste a co-nhecer, mesmo depois de teres partido. Obrigado por me teres colocado, com o teu exemplo de vida, no curso certo da minha. Tenho muitas saudades. Amo-te para sempre.

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25+

25 anos. A idade em que decidi arriscar num novo projecto. A

idade em que me senti confortável o suficiente para o fazer, sem temer as consequências de uma novidade desprendida do meu último sonho tornado real: o Tia Guida. Criei o blog A+*. Nele, incluí reflexões sobre a vida e entrevistas a vi-das. Dei início a uma rede humana que sonhava criar desde miúdo. Este livro é apenas uma continuação desse projecto. Uma extensão e um reforço do mesmo. 25+ são algumas aprendizagens que fiz e retive ao longo destes 25 anos de idade. Algumas reflexões que pretendo que ajudem quem as ler a viver uma vida melhor. Temos todos a aprender uns com os outros e devemos todos partilhar com os outros o que nos enriquece. O verdadeiro valor da sabedoria atingida só se concretiza na sua conversão em sabedoria partilhada. É isso em que acredito e é isso que tento praticar.

25+, porque nenhuma vida se encerra nestes 25 anos de ensinamentos. Haverá sempre mais. Na nossa, na dos outros. Na de todos.

* www.amaispartilha.blogspot.com

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A vida é uma escola

Desde que me conheço que sonho ter um público. Sem-pre encontrei no contacto com uma audiência a realização total daquilo que sinto como minha missão, mas que então desempenhava, sem lhe dar esse nome. E foi sempre visível que, nessa missão mais ou menos consciente, existia uma única crença que a alicerçava: a de que a vida é uma escola.

Em 25 anos, mudei muitas vezes a minha ambição pro-fissional. Inicialmente, quis ser professor (chegava a forçar os meus colegas a fazerem, no intervalo, os testes que rea-lizava em casa - sim, chegava mesmo a este ponto!). Mais tarde, sonhei ser actor e/ou humorista (obrigava a família e os amigos a participarem/assistirem às minhas pequenas grandes representações originais ou reprodutivas de todas as criações artísticas que admirava). Ponderei ser jornalista e estudei para isso. E ainda tive tempo para concluir que a televisão seria o meu meio de realização ideal. Quiseram as circunstâncias da vida que, aos 22 anos, me lançasse na escrita e em palestras relativas ao que escrevera. Foi o meu primeiro projecto mais sério e mais a sério e, nele, confir-mei a realização com que sempre sonhei. Mais recentemen-te, compreendi a utilidade da internet, na possibilidade de me realizar pessoalmente. Porém, olhando em retrospectiva, concluo que tudo o que quis ser e tudo o que hoje sou são possíveis materializações de uma só energia: a da comuni-

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cação. O que me move é o público, é a interacção com ele, é o acrescento de valor humano que possivelmente lhe posso deixar e o acrescento de valor humano que definitivamente deixa em mim. E é nessa retrospectiva que concluo que, no que me motiva a trabalhar, no que me motiva a viver, no que me motiva a ser, está uma visão de mundo comum a todas as possíveis profissões com que sonhei: aquela que nos diz que a vida é uma escola.

Fosse através do professorado, fosse através da repre-sentação mais ou menos cómica ou até através da televisão, da escrita e da internet, sempre vi cada momento por es-sas actividades proporcionado como uma possibilidade de transmitir e receber conhecimento. Mais do que conheci-mento, emoção. Mas o que é a emoção, senão o maior co-nhecimento que pode existir sobre a vida? E é nesta retros-pectiva sobre os sonhos que guardei e guardo em mim que concluo que sempre vivi a vida, profissional e pessoalmente, como uma escola constante. O que estou aqui para ensinar? O que estou aqui para aprender? O que posso ensinar depois de aprender? O que posso aprender depois de ensinar?

Como alunos desta escola, temos vantagem em partilhar o conhecimento que assimilamos. É assim que vejo a vida. É assim que me vejo na vida. Na minha alma, sou constante-mente professor e aluno de todo o Universo que me cerca. A vontade de estar em aula foi sempre a mesma. O que mudou foi apenas a visão do palco em que ela ocorre.

A nossa vida é uma aula. Há que usá-la como tal.

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PODER

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A realização pessoal

Tenho a benção de, desde pequeno, saber em que ele-mento me realizo. É na comunicação. É na verbalização das emoções e na contínua interrogação sobre os mistérios e as soluções da vida. Digo benção, mas posso também falar em azar. Ou pelo menos em infortúnio. É que saber o que nos realiza pode ser a maior tortura de todas.

Começo por explicar como se sabe - ou, pelo menos, como sei - que estou no sítio certo e no tempo certo, a fazer exactamente o que nasci para fazer. Curiosamente, começa por ser uma convicção que surge precisamente pela anula-ção dos conceitos de espaço e de tempo. Quando estamos fe-lizes, puramente felizes e realizados nas acções que estamos a desempenhar, esquecemos o espaço e o tempo. Somos um com o que nos cerca e estamos plenamente conscientes des-ta inconsciência. Movemo-nos numa dimensão muito nossa, onde tudo flui e nada parece entrar em conflito com a nossa essência. É o estado mais conscientemente inconsciente em que alguma vez entramos. Não há ruído. Não há nada. Só aquilo. Só o que estamos a fazer. O que nascemos para fazer. O que nos conecta. A nós. Aos outros. À vida. A uma fonte que nos parece inesgotável, no momento em que a sentimos ligada a nós. O momento em que os nossos pensamentos e as nossas acções se encontram plenamente alinhados com o

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que somos e viemos a este mundo para trazer. É essa pleni-tude que devemos encontrar na vida. É ela que nos faz ser o melhor de nós mesmos, é ela que nos faz viver o nosso ser na sua potência máxima e que colabora para que toda a realidade que nos cerca - o que, naturalmente, inclui os nossos semelhantes - seja elevada à sua potência máxima. E, quando encontramos a actividade que nos preenche desta forma e nos torna unos com a existência, experimentamos o prazer da realização. Experimentamos o prazer da con-vicção da missão que nos rege. Experimentamos o que não mais queremos deixar de experimentar. No que fazemos, so-mos. E tememos que, não mais fazendo, não mais sejamos. Quando se tem a audácia e a benção de se poder fazer exac-tamente aquilo que nos preenche, tememos o infortúnio de nos vermos privados de tal actividade. Mas a vida é vasta, nas possibilidades que nos permite. O dom que nos converte na unidade da existência é um, mas o trabalho que nos dá rendimento poderá ser outro. Nem sempre o que nos paga o salário é o que nos satisfaz e nem sempre tal estará alinhado com o nosso dom, mas isso nunca nos impedirá totalmente de o desenvolvermos, em paralelo, pois será sempre a ele que iremos buscar a energia necessária para viver.

Ser realizado, na vida, é ser a mais verdadeira e potente expressão de nós mesmos. E há que buscar na vida o que nos realiza, para que na vida possamos realizar.

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Intuição

Outra das plenas convicções que tenho é a de que todos possuímos acesso a uma voz interior que nos guia e orien-ta, até quando fala em surdina. A essa voz deram o nome de intuição.

Intuir é o oposto de pensar. O pensamento é processado pelo cérebro e dificilmente se consegue desligar da realidade que o cerca. É criado de fora para dentro e funciona como filtro para uma realidade que só se expande através das suas condicionantes. A intuição é processada pela alma e pouco tem a ver com a factualidade do que nos cerca o cérebro. É criada de dentro para fora e expande a realidade sem quais-quer condicionantes.

Intuir é muito mais do que deitar-se a adivinhar. Intuir é confiar numa energia interior em nós e anterior a nós. É confiar nesse fluxo que nos puxa para a direita do caminho, mesmo quando toda a razão nos força à esquerda. É permitir que ele tome o controlo da nossa vida, sem com isso ques-tionar a utilidade do pensamento racional. É escutar cada imagem irracional que nos faz visualizar, em cada palavra que nos diz a razão. É ver para lá do visível, percebendo e aceitando que a mais clara das visões e o mais claro dos sons se obtém no maior vácuo visual e sonoro em que possamos entrar. É treinar a mente a desligar-se de si mesma, de modo

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a que, em todo e qualquer momento, consigamos percepcio-nar para lá do que nos é dado a percepcionar. É confiar nos truques da existência. Nas ferramentas que ela nos deu para melhor trilharmos o nosso caminho. É contemplar com to-dos os sentidos essa voz e aceitá-la como a mais bela das fer-ramentas do Universo, passando a ser um com ela. Escutá-la no silêncio e responder-lhe na acção. Ser guiado, sendo guia.

Mais tarde ou mais cedo, todos sentimos esta voz de que falo. Ora numa relação pessoal, ora num trabalho, ora até na relação que temos connosco mesmos, apercebemo-nos sem-pre de uma energia interior que nos diz “não vás por aí” ou, pelo contrário, “vai”. Quantas vezes, sem quaisquer factos, conseguimos percepcionar o que sabemos, sem qualquer sombra de dúvidas, ser a verdade? E quantas vezes temos a coragem de a seguir, sem factos que a provem? E quantas vezes acabamos por ver a veracidade dos factos provar a ve-racidade dessa voz, quando temos a audácia de nela confiar?

O que eu sei é que a voz interior é uma ferramenta Uni-versal que está sempre disponível para cada um de nós. De-pende da nossa escolha escutá-la e depende da nossa escolha lidar com as consequências de não o fazermos. Ela é, como diz Oprah Winfrey, o Universo que nos fala. Se ignorado, o suspiro com que nos bafeja torna-se fala mais intensa. A fala mais intensa torna-se grito e o grito faz-se berro, até que toda a estrutura em que nos alicerçamos desmorone sobre nós e nos faça concluir... “Eu devia ter confiado na minha in-tuição”.

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Intuição na realização

Nada me tornou mais crente na utilidade da intuição do que a minha passagem pela empresa Jason Associates.

Depois de ter terminado o curso, fiz uma série de traba-lhos temporários. Nenhum ficava totalmente alinhado com aquilo que me projectava a fazer no futuro. De figurações a ajudas numa empresa de impressão, passando ainda pela ocupação e utilidade que encontrava nas ajudas que dava a alguns miúdos a estudar, fiz um pouco de várias coisas e acabei por chegar à inesperada materialização de parte dos meus sonhos na criação de um livro resultante de uma fase de vida que se podia confundir com um pesadelo. O Tia Guida foi o primeiro grande projecto que me empurrou na direcção do que sonho: comunicar vida e receber vida. Na sequência de alguns momentos televisivos de divulgação desse projecto e de um anterior aos mesmos, fui contactado com o intuito de ir para a Jason. A minha intuição fez-me recusar a hipótese. Sabia que não era o momento certo. Um ano depois, fui eu quem quis experimentar.

Depois de 5 edições, depois de o ter traduzido na espe-rança de chegar à 7ª que forçaria a uma disponibilização da obra em inglês, depois de várias entrevistas e de bons resul-tados nas livrarias, o livro aparentava estar estagnado. Sabia que ainda havia muito por fazer com ele - ainda há! - mas

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sabia que tinha encontrado, pela primeira vez, o verdadeiro momento de estagnação da primeira obra de um novato nes-tas andanças. Conformei-me com esta ideia e, cansado dos trabalhos temporários, cansado de não ter uma estrutura que me permitisse estruturar os meus sonhos, dos quais o Tia Guida já é parte integrante, senti-me chamado pela Jason. Sabendo que corria o risco de me ver a chance negada, con-tactei quem me contactara e passei por todas as fases nor-mais de selecção, nestes processos. Da entrevista ao desafio lançado, passando pelas pessoas que conheci, convenci-me de que tinha chegado o momento de experimentar algo dife-rente e de o experimentar na Jason. Fui seleccionado como trainee da equipa de desenvolvimento de negócio, o que aca-bava por ser uma pequena ramificação do meu gosto natural por comunicar. Depois de participar numa primeira sessão de teambuilding, fiquei ainda mais convicto de que pertencia àquelas pessoas. Todos são especiais, todos são diferentes, todos se respeitam. Todos praticam o que pregam e é isso que os distingue, no mercado da consultoria de Recursos Humanos. Eles são partes únicas e juntos compõem um todo único. Especiais. Especial. Inconfundíveis desde o primeiro momento com que com eles se contacta. Fiquei convencido de que iria correr bem.

Contudo, surgiu a primeira semana de trabalho. E, em-bora não tenha sido uma semana muito dura para mim (que começo o é realmente?), desde o primeiro momento que pi-sei os escritórios que senti em cada fibra do meu ser que não iria ser feliz ali, naquele regime. E isto explica-se mui-to facilmente. Encontrei, no ambiente de trabalho, pessoas inspiradoras e inspiradas que promovem nos outros o lema que move a Jason e que tanto nos fica a ecoar na mente e na alma: “pessoas felizes fazem mais, melhor e durante mais

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tempo”. Tão inspiradoras e tão alinhadas com este lema que me inspiraram a mim a olhar para a minha vida e pensar que não fiz tudo para ser realmente feliz, para fazer mais e melhor e, se possível, por uma eternidade, na área que ver-dadeiramente me apaixona e faz sentir vivo: a da Comuni-cação Social. Seria, no meu âmago, uma contradição muito forte estar a vender um conceito com o qual verdadeiramen-te concordo, mas que amedrontadamente não pratico na mi-nha vida e nas minhas ambições pessoais. Saberia fazê-lo e saberia fazê-lo bem, mas nunca perfeitamente, porque não estaria a ser íntegro comigo mesmo e, consequentemente, com todos eles. Estaria sempre a sentir-me parte e nunca todo, por saber dessa falta de integridade para comigo e para com os meus sonhos. A mesma falta de integridade que me fazia sair do escritório diariamente com vontade de rebentar num pranto, com intensas dores de cabeça e de estômago, que nada tinham a ver com ansiedade ou stress, mas que tudo tinham a ver com a plena convicção de que, no aqui e no agora - no ali e no então - não era, nem é, naquelas con-dições acordadas, aquilo que devo estar a fazer.

Aguentei três dias a sentir-me assim. Ao quarto, e de-pois de ter olhado atentamente para um quadro que existe na casa de banho da Jason com um dos muitos dizeres inspira-dores que por todo o escritório encontrávamos (e, sim, até na casa de banho podemos encontrar inspiração!), deixei que as palavras que continha tomassem conta de mim: “todos os dias, surpreenda-se com um acto da sua própria coragem”. Resolvi surpreender-me com a minha. Falei com a pessoa com quem trabalhava directamente e que me tinha entre-vistado para ingressar na Jason e, com toda a honestidade, expressei o que estava a sentir. Depois de falar consigo, fa-lei com o outro elemento que havia sido parte do processo

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de entrevista e selecção. Francisco Mendes e Sónia Nunes. Ambos tinham sido responsáveis por dar um voto de con-fiança a um novato como eu, a um inexperiente na área, a alguém que de Recursos Humanos pouco percebia, mas que gostava de comunicar e que, na sua óptica, teria um futuro ali dentro. Podia estar a desiludi-los com a decisão, mas não queria nunca (des)iludi-los nesse voto de confiança e prolon-gar como mentira o que, dentro de mim, ao fim de menos de uma semana, sabia com total convicção ser uma verdade consumada: naquele momento, naquela fase, não era ali que pertencia. Como ambos são uma extensão do que a Jason tem de muito bom, foram altamente humanos e compreensi-vos perante a minha partilha. Mais do que escutar, aconse-lharam. Não se limitaram a receber a decisão: foram parte dela. São duas pessoas que nunca esqueço e que, sempre que quero recordar o que é a Jason, nomeio como expoente máximo de muitos dos valores que a cultura daquela empre-sa possui e que facilmente encontramos nos seus colegas. A verdade é que, depois de tomada e comunicada a decisão, o peso no peito, a tristeza, o choro iminente… Evaporaram-se. E essa é a confirmação máxima de que a escolha certa havia sido feita. A acção estava, de novo, alinhada com a intuição.

Combinámos que, por ter conhecido a equipa toda, in-cluindo a que se encontra no estrangeiro, o melhor seria não discriminar ninguém na despedida e, através de uma carta, endereçar virtualmente a todos os motivos que orientavam a minha saída. Muito honestamente, temi o que pudessem sentir, perante a minha atitude. Mas sabia, no âmago do meu ser, que, mesmo que não compreendessem, estava a ser cor-recto para consigo, sendo correcto para comigo e para com a minha intuição e que, a longo-prazo, entenderiam a utili-dade desta decisão precoce. A paz que sentia perante a ma-

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terialização real do que a minha voz interior me comunicara munia-me de certezas para agir, apesar dos receios que uma decisão destas sempre traz. Foi por ter sentido os sintomas da intuição que agi. E explico, na tal carta: “porquê decidir numa semana? Porque, a cada novo passo que me inseria cada vez mais no funcionamento da empresa, ocorria uma nova intensificação destes sintomas. Seria ainda menos ín-tegro fortalecer este envolvimento, num prolongamento que nos tornaria cada vez mais dependentes uns dos outros, sem total veracidade da minha parte, por estar a ocultar o que a minha intuição me gritava”. Acrescentei, ainda: “nós não divergimos no propósito, nem no fim. Mas somos diferentes no caminho. Não por discordar do vosso, não por discorda-rem do meu. São apenas diferentes. E, acredito, tão comple-mentares, que talvez no futuro ainda se cruzem novamente, em condições ligeiramente alteradas. Pensarão “mas este tipo é louco?”. Talvez… Talvez seja. Mas entre a loucura de confiar na minha intuição e ir embora ou a de ficar por medo de ser visto como tal, opto pela primeira”.

E a loucura de seguir a minha intuição foi a melhor op-ção que fiz. Em apenas dois meses, voltei a focar-me no Tia Guida e os caminhos desdobraram-se novamente para por mim serem percorridos. Voltei a focar-me no que amo fazer e criei este novo projecto escrito, aliado ao A+, para dar novo impulso à carreira que sonho criar e que a intuição me grita ser a certa. Estou feliz. Mais conhecedor de mim. Do que quero. De quem sou. Mais conhecedor da minha voz interior. Do que me diz que quero. Do que me diz sobre quem sou. E, nesse conhecimento que adquiri na minha intuição, aprendi que nenhum trabalho nos muda: ele recorda-nos quem so-mos. É, por isso, fundamental aprender a escutar a nossa voz

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interior - esse GPS humano que nos orienta se permitirmos -para que caminhemos rumo ao que nos realiza.

O que vos diz a vossa? O que vos diz ela sobre o que querem? O que vos diz ela sobre quem são? A vossa intuição está a falar convosco, neste exacto momento. A orientar-vos. A mostrar-vos o caminho. Parem. Silenciem a mente. Escu-tem. Escutem-na. Deixem-se guiar. Recordem-se de quem são.

Realizem-se. Em cada decisão, realizem-se. Todos os dias… Realizem-se.

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Part(y)-Time

Na Jason, pratica-se o respeito pelo lado profissional e pessoal das pessoas. Tanto das que a integram, como de to-das as que com a Jason contactam. Acreditam que todos temos um lado A assumido em contexto profissional e um lado B que reside em nós para lá desse contexto e que, tan-tas vezes, se manifesta nele. No lado B, incluem-se os hob-bies. A escrita, a música, o teatro, enfim, o que for que nos complemente e que seja importante para nós e que, por isso mesmo, na óptica da Jason, deve sempre ser tido em conta, respeitado e, até, alimentado, para que o lado A saia sempre beneficiado. Pois bem, o que a minha passagem por lá me fez crer foi que o meu lado B é, na verdade, o meu lado A.

Escrever e comunicar - o que para muitos poderia ser encarado como um hobby, como um passatempo - são para mim parte fundamental de quem sou e do que vim fazer a este mundo. São o meu lado A. Mais do que um comple-mento, são a minha essência. O que me move, o que me faz progredir, o que me faz ser. Porém, por ser um novato nestas andanças e por ainda não ter encontrado a chance ideal dentro deste meio, ao ponto de poder viver dele e dos sonhos que nele projecto, sei que, até conseguir montar essa estrutura, devo criar uma paralela, um lado B formal que me permita, dentro de condições que respeitem quem sou e

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o tempo que preciso para ser quem sou e investir em tudo o que me faz ser, ir construindo o sonho e o trabalho que idealizo para viver, na área que sei que me realiza.

Quando deixei a Jason, não deixei por isso fechada a porta a trabalhar. Trabalhar é parte da matéria e matéria é parte do que viemos ser, neste mundo. Aceito isso. Mas não aceito que a matéria seja utilizada para nos desligarmos to-talmente do propósito da alma. Uma deve servir a outra e vice versa. Como tal, sabia, quando deixei a Jason, que es-tava disposto a encontrar um part-time que me permitisse estruturar materialmente o propósito (ainda) imaterial dos sonhos da minha alma. Fui sempre honesto comigo mesmo e, consequentemente, com os outros. E foi essa honestidade comigo, com os outros e com a vida, que fez que tudo se reorganizasse em torno dessa transparência de propósitos e intenções. Cheguei a procurar part-times em hostels próxi-mos da zona onde moro, mas as vagas tinham sido recente-mente preenchidas. Contudo, nem por um momento vacilei na convicção de que iria experimentar essa alternativa de trabalho, enquanto me focava mais no Tia Guida, no novo projecto e em trabalhos temporários que iam surgindo e ia fazendo.

Três meses depois de ter deixado a Jason e de ter sido honesto sobre os motivos que me haviam levado a tomar tal decisão, fui contactado por uma das duas pessoas que tinham sido responsáveis pela minha entrada na empresa e que me tinham aconselhado, no momento da saída: a Sónia Nunes. E que proposta tinha a Sónia? A de uma participação específica na Jason, na área de desenvolvimento de negócio, num projecto específico, com um tempo específico e em re-gime part-time. Perfeito! A liberdade e a responsabilidade de que necessitava para criar uma estrutura para a minha

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missão de vida e para a minha própria vida. Há aconteci-mentos que nos surpreendem, apesar de estarmos convictos de que ocorrerão.

Depois de ter escutado do que se tratava o projecto com a pessoa a quem teria de reportar - o Luís Oliveira - e de ter visto a sua total receptividade e capacidade de adaptação ao que me faria feliz e, consequentemente, capaz de cumprir o trabalho que me propunham com maior eficácia, aceitei com total gratidão e felicidade esta nova proposta, nestas novas condições. Preferi o horário da manhã, por ser um ho-rário que, por norma, não uso para nada, nos meus projectos pessoais. No caso de ser necessário ir a uma escola falar do livro, desde que avisasse com antecedência, nada me impe-diria de o fazer, na Jason. Eles funcionam assim, com todos e, na minha óptica, funcionam bem. Funcionam para lá do comum e, também por isso, conseguem resultados para lá do comum. Aceitei com a convicção e a honestidade que desenvolvi na minha primeira passagem por lá: eu sou como sou, nessa identidade que trago comigo o meu lado B revela-se o meu lado A e o lado A um complemento ao lado B. E a vida desdobrou-se em torno disto, em pequenos grandes sucessos e muitos momentos de serenidade, felicidade e rea-lização pessoal. Depois deste projecto, nestas mesmas con-dições, surgiu outro e, de parte a parte, no sentido que esta colaboração faz a ambos, a porta mantém-se aberta para que outro surja.

Este é o maior poder que podemos ter, na construção do nosso caminho: sermos honestos com o que sentimos, com o que queremos e com a estrutura que o que queremos exige e procurar, nas intenções e nas acções, a materialização des-sa estrutura, sem vacilar. A vida acabará por iniciar todos os processos necessários para nos fazer colidir com o que

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procuramos e por trazer o que procuramos até nós, nessa clareza de rumo definido.

O part-time foi, na verdade, um party-time, na celebra-ção que me fez sentir: celebrei a decisão que tomei com base na intuição de ter saído quando senti que o full-time não era para mim; celebrei a convicção que criara de ter de construir uma estrutura adaptada a mim e aos meus sonhos; celebrei a oportunidade que a Jason me deu/devolveu dentro destas condições; celebrei a gratidão que senti; celebrei os peque-nos sucessos encontrados nesta fase e todos os que antecipo, trazidos por esta fase. Celebrei a honestidade das minhas in-tenções

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A partilha relativiza

Cresci num ambiente familiar conturbado, marcado pelo álcool e pela violência. Cresci sem saber o que era che-gar a casa sem medo, sem saber o que era chegar a casa com a certeza de que aquele dia acabaria bem. Vivi, com os meus irmãos, situações que nenhuma criança deveria viver. Cresci neste ambiente inseguro e, nele, fui forçado a criar as minhas próprias seguranças. O meu mundo interno ex-pandiu-se, quando confrontado com a forma acelerada com que o que me cercava se fragmentava. Quando tudo à nos-sa volta colapsa, a vida dá-nos a chance de olharmos para dentro de nós e de, a partir daí, reorganizarmos o caos. Foi o que fiz, sucessivas vezes, perante os estilhaços cada vez mais estilhaçados que encontrava no meu seio familiar. Um dia escreverei um livro apenas sobre isto… Por agora, sinto que não é o momento certo. Não por mim, mas por todos os outros que deste cenário fizeram parte.

Porém, esta capacidade de voltarmos a nós e de, em nós, criarmos uma organização díspar da desorganização que nos é exterior pode isolar-nos numa prisão solitária, onde a vergonha se ergue como grades que nos tolhem a liberda-de. Foi quando não mais aguentei a pressão de guardar para mim tudo o que se vivia em minha casa que criei no meu âmago a certeza de que a partilha me iria curar. E foi quando

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ganhei coragem para quebrar a vergonha dessa prisão em que me enclausurava e efectivar a partilha na verbalização que confirmei os efeitos positivos da mesma. Falei sobre o que vivia com quem tinha à minha volta e quem tinha à mi-nha volta escutava e reagia como sabia.

Comunicar a alguém o que se passava connosco foi a minha forma de normalizar aquilo que, para mim, parecia anormal. Foi a minha forma de compreender se seríamos os únicos a viver aquelas situações e se seríamos os únicos a sentir toda a densidade emocional que sentíamos perante o vivido. E foi quando comecei a obter por parte dos outros algumas partilhas idênticas que me apercebi do quão iguais somos. Por partilhar sem tabus o que vivera, criara nos ou-tros a confiança para partilharem sem tabus o que viviam. E, nessas partilhas que faziam, tantas vezes curavam a minha. Quantas vezes não me contaram coisas que me transpor-tavam para fora da minha realidade e me faziam expandir a minha visão de mundo? Quantas vezes não partilharam comigo experiências suas que fizeram as minhas parecer pequenas formigas, perante a seriedade e a densidade emo-cional das suas? Quantas vezes me devolveram a mim, por me confiarem uma parte de si?

E foi isto que a vida em partilha de experiências me ensinou. Quando partilhamos, abrimos ao outro a porta da possibilidade de connosco também partilhar. E, quando abrimos essa porta, abrimos a possibilidade de nos relativi-zarmos uns nos outros. Não estamos sós e o que vivemos, embora nos marque sempre de uma forma muito própria, não é exclusivamente nosso.

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Intenção

Não raras foram as vezes em que me lancei em acções que me trouxeram algo totalmente oposto ao supostamente desejado. E não raras foram as vezes em que, esbarrando no resultado oposto ao pretendido, fui forçado a analisar as situações e entender em que medida tinha sido eu responsá-vel pelo insucesso que encontrara. A resposta esteve sempre na intenção.

Falemos primeiro dessas mesmas partilhas que, ainda muito miúdo, fiz acerca do que se passava em minha casa. Se é verdade que o que me motivara a partilha fora a vonta-de de exteriorizar a densidade emocional que guardava em mim e se é verdade que, nessa exteriorização, encontrei o refúgio humano de que necessitava, ajudando e sendo aju-dado, relativizando a minha dor nas dores dos outros e rela-tivizando as suas nas minhas, convertendo ambas em força, é verdade também que, em certas alturas, ela não me trouxe elementos positivos. A partir do momento em que encon-trei nos outros o afecto que em casa não sentia ter, exagerei na exposição que fazia da minha intimidade, para que esse afecto fosse sempre reencontrado. Não o fazia consciente-mente. Os meus amigos certamente se recordarão do quão estranho era conviver comigo nessa fase mais naif. De cada vez que aparecia alguém de novo na minha vida, apressa-

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va-me a contar o que vivera em minha casa. O caos que podia ser, a forma como isso afectara o meu papel familiar, a forma como tal me fizera crescer para lá da idade, enfim, a forma como a disforme situação me moldara, a mim e aos meus irmãos. Achava, na altura, que me expunha deste jei-to com o intuito de deixar qualquer pessoa à vontade para partilhar comigo a sua verdade. Para partilhar comigo ex-periências idênticas. Para falar de qualquer coisa sem sentir o medo de ser julgada. Porém, e apesar de ser verdade que esta era a minha vontade, de cada vez que alguém utilizava esta aparente confiança que lhes dava para me atacar, para me ridicularizar, sentia-me traído. Mas não era eu que tinha sido traído: era a minha intenção.

Como a real intenção do que fazia era, mais do que ins-pirar, encontrar afecto humano, sempre que alguém me dava o contrário disso ou me brindava apenas com a sua indife-rença perante o que ansiosamente mostrava ser, reagia com profunda tristeza. Fazia o meu valor e o valor daquela par-tilha depender de elementos exteriores a si mesmos, banali-zava-os e tantas vezes permitia que fosse extraída vantagem daquela confiança que dava. E foi com as consequências disso que comecei a questionar com que intenção fazia tudo na vida. Percebi que era ela que determinava o resultado de cada acção.

Mais recentemente, fui confrontado com um caso de uma amiga que muito me impressionou. Contou-me que ti-nha sido abusada sexualmente. No meio de tudo o que me contou, questionou-se se existiria culpa, da sua parte, na possível provocação que habitualmente dizia exercer sobre os homens. Falou sobre a forma como se vestia. Sobra a for-ma como se vestiu, especificamente, naquela noite. Obvia-mente que procurei destruir toda e qualquer ideia que ela

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tivesse de culpabilização sobre o que lhe acontecera. Como era possível que uma mulher que tivesse sido vítima de algo tão negro ainda se estivesse a questionar sobre a possível culpa perante o ocorrido? E foi aí que me lembrei de parti-lhar consigo a minha visão sobre a intenção com que se faz tudo na vida. “Em primeiro lugar, vais aceitar que não con-trolavas o elemento exterior a ti e que aquilo que ele te vez é pura responsabilidade sua. Não acrescentes peso ao acon-tecimento, procurando razões em ti que te levem a justificar a ausência de razão dele. Em segundo lugar, extrai daqui a convicção de que a intenção é sempre o começo de tudo o que fazemos na vida e que é ela que determina se encara-remos o que vivemos como algo negativo ou positivo. Falas tanto na forma como te vestes… Embora eu ache que isso em nada pode justificar qualquer comportamento exterior a ti que te destrua e invada a tua liberdade, faço-te recuar até à intenção com que te escolhes vestir da forma que escolhes. É por ti ou é pelos outros? É por ser um reflexo de quem és ou por ser um reflexo do que os outros querem de ti? Qual é a intenção? Servires-te ou servires?”.

A resposta foi clara e consolidou, nesta minha amiga, a certeza de que uma intenção bem definida ajuda sempre a construir um resultado sem arrependimentos, mesmo que um elemento externo nos ataque e se desvie da intenção que definimos. “Nunca tinha pensado nisso dessa maneira! Sim, a intenção é servir-me. É vestir-me como gosto, como me sinto confortável, como me sinto mais à vontade. A forma como ele percepcionou isso tem a ver com a sua intenção e não com a minha!”. E, assim, venceu a culpa.

Com estes dois exemplos, pretendo ilustrar o que aqui deixo em jeito de conclusão. Em qualquer momento na vida, antes de tomarmos uma decisão, devemos perguntar “com

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que intenção estou a fazer isto? Que resultado quero eu obter com o que estou a fazer?”. Só assim evitamos a mágoa que os elementos exteriores à nossa intenção nos podem causar. Só assim estaremos sempre confiantes de que, correndo bem ou menos bem, tudo o que fizermos terá sido feito com base num propósito. Um propósito existente em nós, um propósi-to que ninguém nos pode extrair, independentemente do que nos fizerem para nos lesar.

Como diz Oprah Winfrey, “a intenção comanda a sua vida e determina o resultado”.

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Quando não há nada

a fazer por nós

Muitos momentos houve em que pensei desistir. A de-sistência é uma motivação egoísta. É o nosso ego individual a convidar-nos a baixar os braços e a desacreditar o que nos faz acreditar na vida. E muitas vezes fui transportado para os Outros, como solução.

Senti esta aprendizagem em vários momentos da minha vida. No fim do casamento dos meus pais e no fim da vida da minha tia, particularmente. Por estranho que pareça, ha-bituamo-nos a ser parte de um problema, quando para ele somos repetidamente a solução e, quando esse problema ter-mina - e tantas vezes sem ser com o desfecho para o qual procurámos ser solução - sentimos que a nossa utilidade ter-minou com ele.

Errado. A nossa utilidade transcende qualquer proble-ma, na sabedoria que ele nos fez adquirir, através da expe-riência. Devemos agarrar-nos a essa experiência adquirida, a essa sabedoria e continuar a ser solução, na possibilidade de chegar aos outros com a ajuda que lhes podemos dar, por já termos vivido algo que estão a viver ou que poderão vir a viver.

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Em todos os momentos da vida em que encontramos os nossos próprios limites de acção, encontramos uma oportu-nidade de agir em direcção aos outros.

Com eles e/ou por eles. Não estamos sós.

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A dor pode ser o melhor motor

Na minha infância, na minha juventude e agora, mais recentemente, na entrada naquilo a que chamam de vida adulta, servi-me sempre da dor como motor.

Perante todas as adversidades que vivi, só tive uma solu-ção: convertê-las em força. E com isto não quero fingir que não sofri. Pelo contrário! É preciso sentir a dor. Ela assim o exige. É preciso conhecê-la, para depois convertê-la. Mas a conversão é necessária. Se não convertermos a dor, ela acabará por nos converter a nós. Há que olhar para a dor não como um retrocesso no caminho, não como uma descida na ascensão, mas como um balanço, como um impulso que nos catapultará para o nível seguinte.

Recentemente, uma tia minha começou a fazer volunta-riado no IPO. Falando sobre o assunto e questionada sobre a possibilidade de ser difícil ver-se cercada de tão denso am-biente, revelou que não estranhava mover-se em ambientes de dor por, também ela, ter crescido com sofrimento. Isto recordou-me a minha própria experiência. Crescer com so-frimento torna-nos conhecedores desse sofrimento e tor-na-nos capazes de empatizar com todos os que sentiram, sentem ou sentirão algo igual. É que, nisto do sofrimento, as experiências que nos põem em contacto com ele podem ser diferentes, mas as sensações que nos geram são iguais.

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Como tal, mais do que conhecedores da dor ou mais do que capazes de ser empáticos com quem a sente, as experiências de sofrimento tornam-nos humanamente responsáveis por partilhar a sabedoria que nos trazem, através da empatia que em nós criam.

Utilizei sempre o que vivi na minha infância para aju-dar quem vivesse algo parecido, falando abertamente sobre o assunto, destruindo tabus, desde uma tenra idade. Utilizei o que o cancro me tirou e a experiência que me deu, para acrescentar algo à vida dos outros. Sirvo-me do que a vida me serviu, para de novo voltar a servir alguém. Quero uma vida de serviço, baseada na conversão da dor em qualquer coisa de boa.

E concluo sempre que a dor pode ser o melhor motor, nas experiências de cura que nos proporciona, connosco e com os outros.

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Culpa e responsabilidade

Falar de dor recorda-me o tema da culpa. A culpa é uma energia que nos estagna. Pior: que nos destrói. Guardar cul-pa ou culpabilizar impossibilita a redenção. E redenção é uma palavra indispensável à vida.

Sendo mais concreto, conto-vos um episódio que me re-cordou o que fazemos com isto da culpa. Estava numa es-cola a partilhar a mensagem do Tia Guida. Fiz o que faço sempre: sem me preparar, falei sobre o que vivi, conforme fui sentindo ser certo. Deixei o discurso fluir ao sabor da energia que aquela sala me dava a experimentar e, no fim, como habitualmente acontece, abri espaço a perguntas. Nes-sas perguntas que foram surgindo, também como é hábito, falou-se de muita coisa relativa ao tema. Alunos, professo-res, funcionários que estavam a assistir, todos participáva-mos numa partilha que nos fazia sentir tão próximos uns dos outros, embora na realidade não nos conhecêssemos todos uns aos outros como próximos. Um dos participantes teve a coragem - e, sim, é mesmo precisa coragem para se expôr sentimentos em público, principalmente na idade daquele miúdo, principalmente no contexto escolar, principalmente numa sociedade que, embora menos preconceituosa, ainda espera dos homens uma fortaleza que nem sempre pode exis-tir - de expôr uma culpa que sentia. Ele já conhecera o can-

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cro de perto. Esse contacto com o cancro tirara-lhe alguém importante para si e, até àquele momento, culpara-se pelas ausências que tivera no percurso de doença dessa pessoa que partira. Esta foi a primeira parte da sua intervenção, naquela partilha colectiva. Reflectimos sobre culpa e sobre a forma como tal interferia na sua vida. Mas só mais tarde consegui-mos extrair dessa reflexão uma conclusão sólida, que nos ajudou a todos a dar um passo em frente. Tal só aconteceu quando nos contou outro dos assuntos que o atormentava. Agora, a vida colocara-lhe alguém no seu caminho com o problema igual ao que, em tempos, ele mesmo tivera: uma grande amiga sua tinha alguém doente e, possivelmente, iria sofrer uma perda. A verdade é que ele não sabia como ajudar essa amiga. “Não sei o que lhe devo dizer… Eu já passei por isto e não sei o que devo dizer, nem o que fazer…”. E esta é uma das vantagens da partilha. Quem nos escuta, por estar de fora e mais distante do que estamos a relatar, consegue aperceber-se de ligações entre as coisas que dizemos de que nem nós, os criadores de tais ideias, nos apercebemos. Para mim, tornou-se evidente, no momento em que o escutava, que as duas histórias que comigo partilhara estavam ligadas. A culpa que ele sentia por não ter sabido lidar com o seu caso ao ponto de ter sido presente até ao fim transportava-o para a impossibilidade de dizer àquela amiga o que fazer, como se comportar e o que esperar. Inconscientemente, a culpa estava a tirar-lhe legitimidade para ajudar quem vives-se o mesmo. Porque não se atrevia a libertar-se dessa culpa, não estava a conseguir ajudar outros a nunca ter de lidar com ela. E foi isso que lhe disse.

“Primeiro, devo louvar-te pela coragem que tiveste e tens por partilhar algo tão íntimo e, ao mesmo tempo, tão de todos nós, aqui. Tendo eu uma idade próxima da tua, só

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te posso dizer que me enche de orgulho ver gente como tu marcar pela diferença. Peço-te que nunca mudes essa tua característica. Depois, gostava que te perdoasses pela culpa que carregas. Que aceitasses que o passado não podia ter sido diferente e que tudo o que fizeste e até o que não fizeste, naquele contexto, foi o melhor que sabias e podias, pois só para isso estavas preparado. Aceita isso e deixa ir. Deixa ir esse peso que transportas e que te faz pensar que, se tivesses estado presente todas as vezes que hoje imaginas que devias ter estado as coisas poderiam ter sido diferentes. Não sabes! Nunca vais saber. E, provavelmente, mesmo que tivesses es-tado todas essas vezes, terias sempre encontrado novos limi-tes para a tua acção e o teu amor por essa tua tia que partiu far-te-ia sempre ponderar que deverias ter feito mais, que poderias ter feito mais e que, se assim tivesse sido, ela ainda cá estaria. De novo: não sabes”. E, quando não sabemos, po-demos redefinir o saber. Acrescentei: “Nesse mesmo amor que ainda tens a quem perdeste, convence-te que o pouco que possas ter feito já foi muito e que essa pessoa partiu com a convicção plena de que, nesse pouco que fizeste, a amaste. E podes ter a certeza do que te estou a dizer: a minha tia amava cada pequenino gesto que tinha para com ela, princi-palmente na fase da doença, e sentia-o numa dimensão que só quem está a partir consegue sentir. E é nessa aceitação de que o passado foi como foi e que não pode ser alterado, que convertes a culpa em responsabilidade. Tu não és culpado pelo que fizeste ou não fizeste: és responsável. Quando con-seguires aceitar isso, conseguirás ajudar os outros a ser. Vê a possibilidade que tens em mãos! Compreende a utilidade da tua vida e o quão incrivelmente extraordinária ela poderá ser para alguém que esteja a viver o mesmo que tu neste exacto momento. Para essa tua amiga! Tu podes servir-te

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do teu exemplo para lhe dizeres como te sentes hoje em dia, perante o que fizeste e o que não fizeste, perante tudo o que gostarias de ter feito e que gostarias que alguém te tivesse aconselhado a fazer, na altura. Tu podes ser essa pessoa que a guia através do teu exemplo. E não há qualquer arrogância nisso! Às vezes, a única forma de nos resolvermos é através dos outros. Quando já não há mais nada que possamos fazer por nós, temos tudo aquilo que podemos fazer pelos outros. Tu já não podes fazer mais nada por ti ou pela tua tia, nesse caso concreto. Mas podes fazer por essa tua amiga e pela pessoa que ela acompanha. E termino recordando uma frase de um programa de televisão que uma vez vi. <<Cada dia que passas a prolongar o dia da morte de quem amas é me-nos um dia que usas para honrar a sua vida>>. A dessa pes-soa, a tua, a de todos os que passam pelo mesmo. A forma como sofres com a perda não é sinónima do amor que tens à vida de quem perdeste”.

Depois de toda esta teorização sobre o que se falava - e sim, nas palestras do Tia Guida ocorrem longos e mui-to agradáveis momentos destes - julguei que o tema ficaria por ali. Mas estava errado. No fim da sessão, no habitual espaço para conversas individuais finais, chegou até mim uma professora do estabelecimento de ensino em que nos encontrávamos. Agarrou uma das minhas mãos e dos seus lábios brotaram, regadas pelas lágrimas que lhe pintavam o olhar, palavras que nunca esquecerei: “Há quatro anos, perdi o meu pai para esta doença. Durante quatro anos, vivi com a culpa de não ter feito tudo o que achava que podia. Passei quatro anos sem nunca falar disto com ninguém e todos os dias, todos sem excepção, adormecia com esta cul-pa. Hoje, pela primeira vez, sei que saio daqui sem qualquer

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sentimento desses. Muito obrigado por me ter feito pensar neste assunto de outra maneira”.

Obrigado eu. A si, ao rapaz, a todos os que lá estiveram e a todos os que hoje lêem isto. À vida, por me ter feito pro-var, neste dia e neste episódio que não mais esquecerei, a importância de se partilhar a culpa que nos atormenta e de a conseguirmos converter em responsabilidade. A importân-cia de olharmos para o passado, aceitar que ele não pode ser alterado e perceber que só podemos adoptar uma postura: a de aprender com ele, sendo responsáveis pelo que fizemos de bem e pelo que podíamos ter feito melhor. Ensinando, aos outros, e a nós, essa aprendizagem, sempre que possível. Sendo responsáveis pelo que foi, para que no momento pre-sente nos tornemos responsáveis pelo que será.

Libertarmo-nos da culpa, através da responsabilização, é a solução para multiplicar as oportunidades de redenção no presente.

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Arrependimentos

Estava eu a tomar um Starbucks com o meu irmão Pedro e a reler este livro de partilhas, comentando consigo algu-mas passagens, quando este me dispara “já alguma vez te arrependeste de não ter feito alguma coisa, mano?”. Essa pergunta fez-me pensar sobre o assunto e concluir que, so-bre ele, também tenho algo a partilhar. Algo que, numa fase de revisão da obra, percebi que precisava de ser inserido no livro, antes de o dar por encerrado.

Não, não tenho arrependimentos de não ter feito algo, mas tenho arrependimentos de ter feito algumas coisas. Sempre que oiço alguém dizer que não se arrepende de nada, sinto uma certa desconfiança. Tenho dificuldade em acreditar que quem viva nunca se arrependa de nada, de na-dinha, do que já tenha feito. Sei que, quando dizem qualquer coisa desse estilo, dizem-no para afirmar que todos os er-ros trouxeram sabedoria e que todos os erros nos colocaram num lugar melhor, por nos terem feito saber mais e melhor e por, consequentemente, nos terem dado a chance de fazer melhor no futuro. Dizem-no por isso: porque cada tropeção nos complementa e nos torna mais cientes do caminho.

Concordo com essa visão, mas nem por isso acho que ela exclui a noção de arrependimento. Precisamente por sa-bermos que errámos, precisamente por termos sentido na

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pele as consequências do erro, arrependemo-nos de o ter feito. Principalmente quando repetimos erros, é impossível ignorar a existência desse arrependimento. Não o ter seria entrar numa dinâmica de inconsciência perigosa; fingir que ele não existe seria temer a palavra e querer ignorá-la ao ponto de nem com ela querer aprender. O segredo é, como praticamente em tudo, o meio-termo.

Reconhecer um erro nas sensações que nos causa é o primeiro passo de uma caminhada que inevitavelmente nos levará ao arrependimento da prática, arrependimento esse que se revela o segundo passo que levará ao terceiro: o da conversão do erro em sabedoria. O arrependimento é a tran-sição entre o erro e a sabedoria. Há que usá-lo, sem que ele nos use ao ponto de negar essa transição.

Como tal, e respondendo à pergunta do meu irmão, te-nho arrependimentos, sim. Mas não deixo que eles me te-nham a mim.

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Saber quando ir embora

Outro dos ensinamentos que a vida, mais cedo ou mais tarde, nos entrega é este: para todos os momentos, existe sempre aquele em que teremos de ir. E para ir é preciso aprender a saber quando.

Não é forçoso que haja sempre uma ida ou uma ida sem regresso. Mas é necessário que tenhamos a consciência ple-na de nós, ao ponto de sabermos quando qualquer espaço, tempo, pessoa e/ou circunstância por estes elementos forma-da já nos fez crescer tudo o que tínhamos a crescer consigo.

Em qualquer relação (familiar, amorosa ou apenas de amizade), em qualquer trabalho, em qualquer contexto, es-tamos em constante aprendizagem. E o intuito de qualquer aprendizagem é sempre o de evoluir. Quando as lições se repetem e o aluno já aprendeu e provou essa aprendizagem, torna-se redundante permanecer na mesma classe. Se o fi-zer, sentirá uma constante sensação de estagnação. De bar-reira. De impedimento de progresso.

Quando sentimos que estamos as esbarrar contra uma parede invisível, quando sentimos que dali já não passamos mais e que dali nada de novo e enriquecedor virá, é tempo de ir. É tempo de deixar para trás o que nos catapultou para a frente e abraçar a hipótese da novidade do devir.

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O poder das palavras

Não é por ter sido um estudante de comunicação que conheço o poder das palavras. É por sentir a sua energia. Por sentir que existe uma diferença substancial entre um “se” e um “quando” e os padrões que as expressões que utilizamos criam, nas cargas que consigo trazem e que consigo acabam por materializar na nossa vida.

Sem nos apercebermos, acabamos por deixar que nos formatem o vocabulário e acabamos, nós mesmos, por for-matar as expressões que utilizamos. E, sem nos aperceber-mos, deixamos que elas condicionem o que trazemos para a nossa vida. Mesmo que não acreditem que as palavras são responsáveis pelas acções, não podem negar que sejam res-ponsáveis e consequência de pensamentos. E que, esses, nos tornam prisioneiros ou libertos e libertadores de nós mes-mos e dos outros.

Imagine um sonho que tem. Um sonho que ambiciona alcançar. Vamos fingir que o sonho é viajar até Londres. Como é que projectará esse sonho em palavras, nos planos que projectará focado nele? “Se eu for a Londres, poderei passear pelo famoso Hyde Park” ou “Quando eu for a Lon-dres, poderei passear pelo famoso Hyde Park”? Compreen-de a diferença? O “se” pressupõe dúvida, o “quando” pres-supõe certeza. O “se” converte o sonho ou a ambição numa hipótese, o “quando” converte-os em realidade.

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E isto é válido para todas as palavras na vida. Elas têm uma carga e, nem que seja em pensamento, através das con-vicções que nos passam, ajudam a criar a nossa realidade. A melhor e a menos boa. Devemos ser responsáveis pelo que pensamos, mas também pelo que dizemos. E treinar, até que as expressões positivas sejam rotina e superem quaisquer outras. Desde pequeno que tenho esta consciência.

Não consigo provar que seja verdade científica o impac-to da escolha de palavras nos resultados obtidos, mas posso explicar como minha verdade empírica essa aprendizagem. O que queremos deve estar alinhado com o que pensamos e com o que dizemos e esse alinhamento mune-nos de força e convicção para agir consoante o sonho que nos move.

Se… Ou melhor, quando experimentarem esta forma de viver as palavras e observarem os resultados no vosso dia-a-dia, não vão querer outra coisa.

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Os ensinamentos de ser alvo de bullying

Na escola, fui vítima de bullying. Vítima não, que é uma palavra de que não gosto. Passei pela experiência de ser alvo de bullying. Depois de ter sido o foco dos cartazes publicitá-rios para a Trinaranjus e depois de os ter visto afixados por Lisboa, o que incluía as ruas frontais e laterais à minha es-cola, fui observado, comentado e ridicularizado como nunca tinha sido. Os cartazes foram o pretexto ideal para que cen-tenas de pessoas descarregassem em mim o que sentiram necessidade de descarregar.

Aos 16/17anos, experiências como estas marcam-nos profundamente. Somos ensinados que o que os outros pen-sam não importa, mas sabemos que, bem dentro de nós, há sempre algo que se preocupa com aquilo que os outros pensam de nós. Somos seres gregários, não conseguimos desprender-nos totalmente do elemento “outro”. Tive uma professora que dizia que “quem somos reside algures entre o que achamos ser e aquilo que os outros acham que somos”. Pelo menos neste mundo físico, sim, acredito que possa existir sempre este equilíbrio de forças. Como dizia, nestas idades, as idades em que a personalidade se desenvolve e

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se afirma, torna-se ainda mais marcante esta gestão entre o elemento “eu” e o elemento “outros”. E a forma como a vida me fez gerir essa situação concreta fez-me crescer muito.

Sempre fui um homem sensível, sempre falei abertamen-te sobre os meus sentimentos e sempre liguei mais à essên-cia do que ao corpo. Não costumo sair à noite, não costumo ter relações efémeras. Sempre privilegiei conversas sobre a vida e sempre achei que, só assim, se chega a um progresso humano de que todos necessitamos, nas relações que cria-mos uns com os outros. E, se aos 25 anos isso já é mais ou menos aceite como “normal” ou até admirado e elogiado, aos 16 ou 17 é visto como algo estranho. E todos sabemos como um grupo se apressa a classificar o que é estranho. São mais, estão em maioria nos comportamentos que têm e, ainda assim, temem a diferença ao ponto de, mais do que a segregar, ofender, ridicularizar, maltratar… Destruir. Uma espécie de controlo imposto à ameaça do que sentem peran-te a diferença. Naquele tempo, os que saíam à noite, os que fumavam, os que se drogavam, os que se relacionavam uns com os outros só porque sim, viam em mim a sua antítese e viram nos cartazes e na projecção momentânea que eles me deram o pretexto ideal para se aperceberem dessa antítese e de, por causa dela, me atacar.

Chamaram-me muitas coisas. Mas o nome em que mais insistiam era apenas um: gay. Paravam nos intervalos para ir ver os cartazes em grupo, para ir desenhar nos cartazes, para neles ir escrever o que lhes apetecesse. Cheguei a en-contrar cartazes em Algés, uma zona onde muitos da esco-la se moviam, com orgãos sexuais masculinos desenhados junto à minha boca. Passava pela escola, e era ridicularizado sem qualquer pudor. Saía da escola e, se passasse por eles, gozado era. Os meus irmãos - particularmente o que vem

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logo a seguir a mim - sofriam com o que me viam viver, em-bora tenha sempre tentado que passassem ao lado disso. O divórcio dos meus pais estava em curso e a minha responsa-bilidade perante os meus irmãos, as minhas tarefas em casa e, até, as minhas aulas, não me deixavam com muita energia para saber lidar com esta avalanche de ridicularização de que estava a ser alvo. Cheguei a ter um Hi5 - sim, eu sou do tempo do Hi5, essa incrível rede social! - criado por antigos colegas do colégio que tinha frequentado a gozarem comi-go, chamando-me os mesmos nomes que me chamavam na escola. Cheguei a saber de aulas de turmas que não a minha, de pessoas cujos rostos nem sequer conhecia - quanto mais os nomes! - a serem interrompidas por professoras minhas, para me defenderem de comentários que ouviam acerca de mim, no próprio decorrer da aula. E, todos os dias, enfren-tando os problemas que tinha em casa, as responsabilida-des precoces que a vida me dera e os tradicionais afazeres escolares onde gostava sempre de me superar, enfrentava esta nova aventura de ser alvo de bullying, um bullying de proporções que nunca esperei enfrentar.

Perguntava-me: porquê eu? O que é que eu faço para causar isto? Devo alterar algo? Posso alterar algo?

Inicialmente, como miúdo de 16 anos, fiz o que prati-camente todos os que passam por isto, a escalas maiores ou menores, fazem. Adoptei a postura do “não me importa o que os outros pensam” e continuei a agir como sempre agi-ra. Sinceramente, talvez até um pouco mais do que sempre agira. Queria mostrar que não me preocupava. Mas, quando mostramos que não nos preocupamos, estamos exactamente a mostrar que o fazemos. Se visse um grupo que me iria gozar a meio de uma rua, seguiria nessa direcção rumo ao meu destino, enfrentando o gozo, a maioria das vezes sem

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responder. Se me apetecesse ir a uma discoteca, numa das raras vezes que ia, beberia água, no meio de todo o excesso alcoólico que me cercasse. Se me apetecesse dançar, dan-çaria, no meio de todos os movimentos travados típicos de rapazes de 16 anos que se querem provar muito machos, nas coisas que não fazem, nas vontades que contrariam. Enfim, sempre que podia, contrariava o que o grupo todo fazia. Por não me identificar, mas também já como reacção a todos os comentários com que me brindavam, insistia em expor-me, para provar que não me importava. E, nesse comportamento gratuito, encontrava reacções cada vez mais fortes do outro lado.

Porém, lembro-me de, uma vez, estar a sair de uma aula e passar por um rapaz que gritou “olha, lá vai o gay!”. Com calma, olhei para ele e, depois de perceber que não o co-nhecia de lado nenhum, respondi com um aceno e um “boa tarde! Estás bom?”. A reacção de espanto que encontrei do outro lado, num silêncio que não mais falou, ainda hoje está registada em mim. Esperava animosidade da minha parte. Não a teve. E, perante a ausência de animosidade, a sua foi aniquilada. Foi aqui que percebi o que tinha a perceber. Mais do que reagir na mesma moeda, deveria reagir de for-ma oposta ou simplesmente não reagir. Na verdade, o tempo fez-me perceber que, perante posturas daquelas, despender qualquer energia que fosse com o assunto, numa resposta, seria desnecessário. Não seria com reacções de provocação e de afirmação que iria aniquilar as outras. Não seria vali-dando a provocação que a apagaria. Seria fingindo que ela não existia. Se possível, não respondendo. Não reagindo. É que no fundo, sendo algo exterior a mim, ela só existiria em mim se eu deixasse. Se eu permitisse. E, de cada vez que eu permitisse que essa provocação existisse em mim,

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ela ganharia uma forma ainda maior nas suas manifestações exteriores. No fundo, é como o que se passa numa guerra. Se um inimigo ataca e o outro responde na mesma moeda, surgirá sempre nova resposta por parte do outro, a qual de novo desencadeará respostas agressivas. O segredo é per-ceber que não existe guerra, se for unilateral. Não existe combate, se não quisermos ser combatentes. Desde aí, tanto pessoalmente, como virtualmente, pedi que não reagissem ao fenómeno. Percebi que reagir era alimentar. Principal-mente se a reacção fosse feita na mesma onda que a acção por eles desencadeada.

Porém, vi no bullying uma oportunidade para me repen-sar e para repensar os outros.

Até aos meus 16/17 anos sempre tivera um certo prazer em imitar os outros e reparar nos seus tiques para, através do humor, brincar consigo. Até essa idade e até este episódio da minha vida, talvez o fizesse sem grande noção do limite, sem grande noção da vida que existe em cada um com que brincamos ou em cada um que se revê nos estereótipos que ridicularizamos. Ironia da vida? Estava a ser alvo de uma ri-dicularização semelhante às que praticava. Não exactamen-te nos mesmos moldes, mas ainda assim uma ridiculariza-ção. Isso fez-me pensar seriamente no impacto que as nossas ridicularizações têm nos outros. Se a mim me custava tanto ser massacrado com o gozo alheio e, ainda por cima, sendo acusado se ser algo que não sou, como se sentiria alguém que o fosse e que, todos os dias, se visse forçado a lidar com comentários sobre a sua natureza? Que justiça humana era esta? Quem seríamos nós para tornar o dia-a-dia de alguém num inferno, só porque sim? E, desde aí, criei uma empatia enorme por quem passe por situações semelhantes às que passei. Desenvolvi um enorme respeito humano pelas dife-

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renças e aprendi que nenhuma precisa de um nome, para que seja mais bem compreendida. Percebi que esses nomes, por vezes, nos limitam a compreensão dessa diferença e que nos fazem excluir a hipótese de com ela enriquecer, no que de novo e de igual nos pode trazer a nível humano, só pelo rótulo que lhe associamos e pelas exclusões que lhe atribuí-mos, apenas pelos nomes que lhe damos. Mais do que das diferenças dos homossexuais, tornei-me respeitador das di-ferenças humanas, quando vi a minha diferença individual ser tão ridicularizada. E jurei a mim mesmo que procuraria nunca ser para alguém o que aquelas pessoas haviam sido para mim.

Nem sempre o consigo mas, sempre que possível, re-corro a esta aprendizagem e devolvo-me o bom senso que ela me fez adquirir. Além disso, aprendi que, como vivo em sociedade, me posso proteger de determinadas reacções dos outros, se evitar provocá-las. Se sabia que, passando à frente do grupo de ridicularizadores, ia ser mal tratado e isso me ia deixar triste, então porque é que insistia em fazê-lo? Para provar o quê? Eles iriam sempre continuar a achar o que quisessem de mim, iriam sempre continuar a ridicularizar-me, pois em última instância tal não dependia do que eu fizesse, mas antes da sua decisão de parar com o que me faziam. Como tal, deixei de ver as alterações de alguns dos meus comportamentos como cedências ou derrotas numa guerra. Passei a vê-las como uma natural protecção, que não me anularia, não mudaria a minha essência, apenas me per-mitiria viver melhor e ser como sou, mais em paz e menos contaminado pelos conflitos que me causavam. Se pudesse mudar de passeio para chegar ao mesmo destino sem ter que os ouvir e se essa mudança em nada me prejudicava, então,

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era o que faria. O tempo acabaria por me devolver aquele outro passeio. E devolveu.

No que respeita aos outros, aprendi que muitas vezes projectam em nós as suas próprias inseguranças, os seus próprios receios, os seus próprios medos. Nunca esquece-rei um acontecimento que aqui vos deixo, como finalização deste capítulo. Um dos rapazes que mais gozava comigo e que pertencia ao extenso grupo dos que me chamavam gay e ridicularizavam, mais tarde, estabeleceu uma relação de amizade com um amigo meu. Sem que soubesse que o co-nhecia, esse meu amigo contou-me que, descontraidamente e sem segundas intenções, tinha ido sair à noite com esse ra-paz. Contou-me que lhe dera boleia para casa. E contou-me que, no fim, o rapaz tentara ter algo consigo. Incrível, não? Anos depois de ter sido vítima de todo aquele gozo, esta história chegou até mim. Isto fez-me perceber que a ridicu-larização é uma enorme arma de quem gosta de reparar nos outros, para que nunca reparem em si. É uma projecção dos seus receios de não serem aceites, na forma como aceitam os que os cercam. É uma espécie de “enquanto-gozar-com--aquele-ninguém-goza-comigo-ou-repara-em-mim”.

Superar o bullying gerado pelo colectivo é a possibilida-de de nos superarmos enquanto indivíduos e a possibilidade de, nessa superação, compreendermos melhor o todo em que nos inserimos, conhecendo melhor a forma como podemos transmitir-lhe o que de diferente viemos para lhe dar, sem por isso nos tornarmos destruídos ou tementes do que de igual nos vieram dar.

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Os ensinamentos de praticar bullying

Não seria honesto da minha parte escrever sobre o bullying que sofri e ignorar o bullying que pratiquei. Não nas mesmas dimensões, não no mesmo contexto, mas ainda assim… Bullying. E não há suavização possível para o ter-mo. É o que é. Foi o que foi.

Sempre tive um sentido de humor muito apurado e sem-pre consegui ser extremamente corrosivo. Uma das minhas formas de lidar com o mundo é recorrer ao humor, porque uma das minhas formas de lidar com o meu, com os meus, foi sempre recorrer ao humor. E essa ideia de que, se sabe-mos brincar com os nossos problemas, então todos os outros devem ter de saber brincar com os seus ou aceitar uma piada nossa com a certeza plena de que é apenas disso que se trata, é uma ideia perigosa e errada, que depressa cresce dentro daqueles que, desde cedo, conhecem o humor como amigo na desconstrução que lhes permite fazer da sua realidade e que depressa o passam a utilizar como inimigo, na forma como desconstroem as realidades dos outros.

Um determinado pormenor do meu corpo sempre fora responsável por inseguranças que desenvolvera em miúdo. Com o passar do tempo, aprendi a gostar de mim - e desse pormenor - como sou - como é. Porém, até certa idade, não

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gostava do que via ao espelho. Não gostava mesmo. E brin-cava com isso. Brincava para me rir da minha insegurança até que ela desaparecesse. Resultou. Mas o problema não era brincar com a minha insegurança até que ela desaparecesse. O problema era achar que devia brincar com a dos outros, para que a sua desaparecesse ou, e sendo muito honesto, para que a minha ficasse escondida. E foi o que fiz.

Uma das pessoas que marcou os meus 25 anos tinha um determinado pormenor no seu aspecto físico parecido com o meu. Ao ponto de ser gozável? Não. Mas como quem de-termina o gozável nem sempre é o alvo, mas tantas vezes quem para ele aponta, eu determinei que sim. E brinquei. Muitas vezes. Muitas e muitas vezes. E confundi a aparente boa receptividade que obtinha dessa pessoa com legitimida-de para repetir essas vezes, sempre que me apetecesse, con-forme me apetecesse, de forma mais ou menos corrosiva. E o problema foi adensado por não me ter responsabilizado pelo impacto que a minha atitude teria aos olhos daqueles que, sendo parte da vida de ambos, olhavam para mim, de alguma forma, como exemplo a seguir e que, por isso mes-mo, depressa se quiseram juntar às brincadeiras. Genuina-mente, não era minha intenção magoar a pessoa em causa. Nunca foi. Não era minha intenção permitir que a magoas-sem. Nunca foi. Mas como a minha intenção era egocên-trica, despertou, nos outros, comportamentos idênticos. E não é possível ter uma intenção exclusivamente egocêntrica sem se esperar uma consequência pouco altruísta e positiva para os que nos cercam e que são alvo das nossas acções por essa energia intencionadas. Como a minha intenção era que não reparassem na minha insegurança, fosse a que preço fosse, obtive exactamente o que pretendia, sem estar atento às consequências. Aquilo que inicialmente era só eu a fazer

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começou a ser feito por mais três pessoas, mais tarde por mais umas quantas, até que de repente já quase toda a gente que nos cercava no dia-a-dia era parte de um gozo comple-tamente dispensável e que estava a marcar a pessoa que era alvo do mesmo.

Anos passaram sobre estes acontecimentos. Fiz as pazes com esse pormenor do meu aspecto físico que me incomo-dava e passei pelas experiências de bullying que me foram dirigidas e que já relatei no capítulo anterior. Comecei a ga-nhar uma consciência maior da forma como nos dirigimos ao outro, na responsabilidade que essa interacção deve sem-pre acarretar. Mais tarde, alguns tempos depois de estar sem ver essa pessoa que marcara o meu crescimento, reencon-trei-a. E o reencontro fez-me (re)encontrar (parte das conse-quências de) uma versão de mim que ainda devia um pedido de desculpas ao alvo de todo o meu gozo passado.

Não me recordo se estava a ir ou a regressar, mas re-cordo-me de estar na entrada do metro da Baixa. Ou saída, depende da perspectiva que quiserem adoptar. Independen-temente da que adoptem, estava à entrada da resolução de um assunto que precisava de uma saída definitiva para am-bos os envolvidos. Reencontrei-a, aí, por acaso. E tratou-me com a amabilidade com que sempre me tratara. Marcara a minha vida por longos anos e nunca pusera em causa essa amizade e consideração, apesar dos excessos infantis e in-consequentes que eu cometera. Falou. Falei. Falámos. Até que conversámos.

Reparei que algo estava diferente no seu aspecto e, com delicadeza, comentei esse facto. Perguntou-me se não me apercebia da diferença em concreto. E eu disse que não, mas que algo parecia estar realmente diferente. Acabou por me dizer que tinha feito uma operação estética, visando alterar

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a forma do pormenor com que tantas vezes eu gozara. E cumprira o seu objectivo. Senti-me envergonhado. Chocado, até. Nunca pela operação - que estava no seu total direito de fazer - mas por saber que eu tinha sido, em parte, responsá-vel por essa decisão. Mais do que isso, um dos responsáveis por parte do que a antecedera. Por vários dos anseios e inse-guranças que lhe alimentara e/ou que, no limite, lhe causara, com todos aqueles que, em parte por minha responsabilida-de, se tinham juntado ao gozo que lhe havíamos dirigido, vezes e vezes sem conta (mais tarde, conversando consigo acerca da inclusão deste capítulo no livro, explicou-me que o gozo de todos não havia sido nem o início nem o fim do pro-cesso. Tinha sido apenas parte do caminho. Mas um “ape-nas”, naturalmente, marcante e que poderia ter sido evitado).

Elogiando o resultado da operação, a qual, muito dis-cretamente, extraíra a pequena dita “imperfeição” que tanto evidenciara as minhas como ser humano, não deixei de ex-teriorizar o pedido de desculpas que lhe devia. Expliquei-lhe que não me revia mais naquela forma de ser que evidenciara há uns anos e que, mesmo antes de ter noção real do impacto que as brincadeiras tinham tido no seu crescimento, me ti-nha apercebido do que diziam sobre o meu e que, por querer entrar nesse crescimento, lhe devia esse pedido de descul-pas. Já não apenas por ela. Por mim. E prometi que, a cada oportunidade que tivesse, utilizaria esta história para cons-ciencializar alguém do efeito que pode estar a ter na vida de outra pessoa, por dela fazer alvo da sua troça. Prometi e cumpri. Fica aqui a sua história. A nossa. Como pedido de desculpas eterno e eternizado e como tentativa de apelar ao bom senso e à humanidade de todos os que precisam de pe-dir as suas ou que estão prestes a iniciar acções pelas quais, um dia, sentirão que terão de se redimir.

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Nessa mesma conversa sobre a inclusão deste capítulo no livro, explicou-me que, para si, o mais importante daque-la nossa conversa fora o pedido de desculpas que lhe dera, por ter sido, para si, surpreendente. Para mim, esse pedido de desculpas foi igualmente saboroso de redentor, mas o que efectivamente me marcou foi a tomada de conhecimento da operação que fizera e que, não tendo sido responsabilidade minha, nem do gozo que eu gerara, dizia também respeito à forma como eu escolhera afectar esse tema da sua vida com a minha postura e com a que alimentei nos outros. Por isso, essa tomada de conhecimento consciencializou-me da ver-dadeira lição que aqui extraio e vos deixo do bullying que, no fundo, pratiquei.

Nós nunca sabemos o impacto real que, directa ou in-directamente, estamos a ter com o que escolhemos fazer na vida de outro. Não sabemos se estamos a ser parte de um processo mais complexo do que aquele que aparentemente vemos. E não sabemos se, mesmo sem sermos o começo e/ou o fim desse processo, não estaremos a ser um “meio” e um “durante” totalmente dispensáveis ao mesmo.

Na dúvida sobre esse impacto, na dúvida sobre o que desconhecemos, escolhamos o bem. Apenas o bem.

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Sou o que sou

Passei 21 anos da minha vida a tentar ser perfeito. A ten-tar agradar a todos, a tentar corresponder a exigências que me faziam exclusivamente a mim, por saberem que tinha a capacidade de as cumprir. E, se isso é bom, porque nos eleva ao melhor de nós mesmos, também se revela danoso, quando o melhor de nós mesmos é gasto em exigências com as quais não concordamos e que não queremos cumprir, por sabermos serem despropositadas, quando analisadas à luz do propósito que sabemos ser o nosso.

Vamos negando a nossa vontade, vamos anulando a nos-sa intuição, vamos agradando e dando o máximo, até que um dia a vida nos força, de uma forma ou de outra, a parar e repensar verdadeiramente esta abordagem. E depressa caí-mos no outro extremo de achar que, depois do excesso de entrega, o total desprendimento é a solução. Passamos do altruísmo ao egoísmo, num ápice. Ou, pelo menos, somos tentados por ele. Mas os extremos cansam e o equilíbrio chama por nós.

Depois de 21 anos a querer ser e a ser o melhor aluno, o melhor filho, o melhor irmão, o melhor namorado… Encon-trei o lado da revolta, perante as perdas que a vida me deu a conhecer e desleixei praticamente todas essas áreas da mi-nha vida. Reencontrei-me. Sendo mais correcto, tenho vin-

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do a reencontrar-me aos poucos. E, nesse reencontro, apren-di que não posso - nem quero - ser o melhor a tudo. Para me lembrar sempre de tal, recordo a frase de Jane Fonda que me fez desbloquear esse ensinamento, quando confrontado com as situações que vivi: “nós não estamos destinados a ser per-feitos. Nós estamos destinados a ser completos”.

E é isso. Desde que atingi o limite da minha ambição pela incansável perfeição, compreendi: não quero ser perfei-to. Quero ser completo. Isso inclui todas as minhas forças e todas as minhas fragilidades. Todo o conhecimento acerca delas, para que conscientemente escolha o melhor de mim, sem deixar que levem a melhor de mim.

Sou o que sou.

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Aceitar quem somos ajuda-nos

a aceitar quem são

Recentemente, uma das fortes zangas que já tive com a minha mãe fez-me passar quatro meses em casa do meu tio. E, nesses quatro meses, aprendi a aceitar os outros, aceitan-do-me como sou e aprendi que essa aceitação é fundamental no nosso caminho, não rumo à perfeição, mas rumo à ple-nitude.

As duras críticas que a minha mãe me fez fizeram-me precisar de um tempo para mim. De me afastar. De me cer-car de amor incondicional e de paz de espírito. De serenida-de. E foi nesse ambiente que lidei comigo. Com as minhas qualidades e com os meus defeitos. Com o melhor e o menos bom de mim. Cresci em autoconhecimento. Ganhei cons-ciência. E a consciência de nós ajuda-nos a ganhar consciên-cia dos outros, sem querer alterá-los. Ajuda-nos a perceber que, mais importante do que termos razão ou reconhecer-mos razão, é termos paz.

Aceitei quem sou. Aceitei as minhas limitações e to-das as superações que sou capaz de fazer. Descentralizei o problema do meu mundo dos outros para a solução que o “eu” me permite ser. Sou solução de mim mesmo. Sou-o à minha maneira e aceito-me como sou. Sei que, nessa acei-

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tação, consigo agora aceitar os outros como são e conviver consigo, sem entrar em tantos conflitos como entrava. Já não importa. Quando descentralizamos o problema dos outros para a solução do eu, começamos a perceber que não são os nossos conflitos com quem nos cerca, nem a nossa vontade de os alterar, que nos definem: somos nós mesmos. É nessa percepção de que, em última instância, nós somos a nossa única solução, que compreendemos que os outros também só se podem solucionar realmente através de si mesmos.

Já não quero mudar ninguém. Já não quero que me com-preendam totalmente. Apenas desejo que me aceitem. E aceitar não implica ser parte do meu dia-a-dia ou ser parte do seu. Implica deixar ser. Ser o que nasci para ser. Serem o que nasceram para ser. É isto que hoje faço com quem amo, para lá de qualquer divergência que tenhamos: aceito-os e deixo-os ser. Quando não existe aceitação, o caminho é sim-ples: separar rumos. Mas a separação não mais é dolorosa, se tiver de ocorrer, uma vez que, agora, já sei que a base de qualquer coexistência é essa aceitação e que, quando ela não existe, não adianta forçá-la, pois só se prejudicará a plenitu-de que todos nascemos para atingir.

Já não me irritam como antigamente críticas dolorosas, nem me iludem como em tempos elogios desmedidos, por-que me aceito com tudo o que sou e essa aceitação me liber-ta de tudo o que são e de tudo o que me querem fazer ser.

Quando aceitamos quem somos, quando nos deixamos a nós mesmos ser o que nascemos para ser, desenvolvemos imediatamente em nós a capacidade de aceitar e deixar ser os outros, sem nos massacrarmos mais ou sem os massa-crarmos mais com conflitos desnecessários que nunca pro-duzirão resultados. Deixamos, até, de aceitar ser parte des-

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ses conflitos que quem ainda não se aceita a si mesmo nos pretende causar.

Somos o nosso próprio caminho e, quando aceitamos o nosso caminho, aceitamos o dos outros, quer nos intersec-temos com o deles, quer nos separemos deles. Estamos aqui para viver a nossa vida.

Aceitêmo-la.

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Aprender por oposição

Cresci num ambiente muito delicado, marcado pelos traumas do álcool e da violência que ele nos pode fazer sen-tir. A quem bebe e a quem vê beber. A todos. O álcool e a violência não são um problema unilateral de um culpado. Há muitas circunstâncias a ocorrer e nenhum fundamentalismo poderá resolvê-las como elas necessitam de ser resolvidas. Porém, acredito que, mais do que o casal que protagoniza o grande enredo que este problema gera, as principais ví-timas de tais comportamentos são, no caso de assistirem a tudo isto, os filhos. Afinal, por terem visto e sentido na alma tudo o que viram, poderão acabar por se tornar agressores ou agredidos, com o tempo, se não processarem bem o ocor-rido.

E é aqui que entra a forma que encontrei para crescer num ambiente tão delicado: percebi, desde os meus tenros 15 anos, que temos mesmo todos a aprender uns com os ou-tros, até, ou principalmente, com aqueles que erram para connosco. Como? Por oposição ao que fazem.

É precisamente por demonizarmos alguns comporta-mentos e fingirmos que eles nunca existiram na nossa vida que não os resolvemos como devíamos. Não os olhamos, ob-servamos, estudamos, nem os compreendemos como a vida quer que o façamos. Encaramo-los como comportamentos

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inimigos, odiosos e que queremos excluir definitivamente da nossa vida e arrumamos o assunto, esquecendo-nos de que os assuntos vividos só ficam arrumados até que as pri-meiras desarrumações emocionais ocorram no nosso trajec-to. Não há como arrumar o que se vive, sem ser vivendo. A emoção deve ser sentida e a aprendizagem da emoção deve ser extraída, pois só ela nos permitirá criar uma arrumação possível para qualquer desarrumação vivida.

Por diversas vezes, vi os meus pais repetirem erros dos seus, os quais por seu turno repetiam os dos seus… Soube, com o tempo, que nunca tinham falado com os seus pais para resolver a dor emocional que estes lhes haviam causa-do. Soube que, mais importante do que nunca terem falado com os seus pais, nunca tinham encarado verdadeiramente aquelas feridas emocionais que sangravam (e, talvez, ainda sangrem) em si e que tinham permitido que elas tornassem a jorrar dor, no dia-a-dia que, eles mesmos, viviam, quando estavam juntos, a viver a sua vida adulta, sem o exemplo diário dos seus pais, mas com a memória diária das vivên-cias que eles lhes haviam dado, na vida de casal que haviam levado. E, perante o que tantas vezes vi, decidi que não que-ria repetir o padrão: queria quebrá-lo.

Com 15 anos, lembro-me perfeitamente de ter assimi-lado esta convicção: falando ou não sobre o assunto com os seus causadores, devemos encará-lo e senti-lo. Devemos deixar que ele se faça sentir, para que, desses sentimentos, possamos extrair as aprendizagens necessárias. Caso con-trário, tenderemos ao extremo: ou nos isolaremos da emo-ção, temendo repetir o caos que vimos; ou nos entregaremos ao excesso de emoção, repetindo o caos que vimos, no papel de causador ou permissor. Só fazendo paz com o nosso pas-

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sado poderemos viver o presente, em todas as fragilidades que nele e em nós encontrarmos.

Eu observei e senti muitas vezes a dor do caos em que vivia. Dele, extraí a maior de todas as lições: até no mais terrível dos cenários podemos aprender, se os sentimen-tos gerados nesse ambiente criarem em nós a convicção de que aquilo é exactamente o que não queremos para a nossa vida. Podemos aprender por oposição. Não devemos é igno-rar a aprendizagem, caso contrário, as feridas que a si per-mitem chegar tornarão a abrir-se. E a cada nova abertura, mais dor jorrará.

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Fazer o que nos faz melhores

Existe uma tendência exagerada para exigirem de nós a vida eclética de quem se excede em qualidade em toda e qualquer área. Mais tarde ou mais cedo, compreendemos que é impossível ser bom a tudo.

Lembro-me de como aprendi isto. Até ao meu 9º ano de ensino, fui um óptimo aluno a todas as áreas. Da Matemáti-ca ao Português, passando pela Educação Física, conseguia terminar cada ano lectivo com 5 a tudo, numa avaliação de 0 a 5. Porém, não tardou até que, chegado ao meu 9º ano, fosse forçado a ponderar sobre que área surgia de forma mais na-tural em mim. A transição do 9º para o 10º obriga-nos a es-colher uma área mais específica e que tenha mais a ver com o que realmente gostamos de fazer. Na altura, sendo bom aluno a tudo, lembro-me que fiquei hesitante. Por uma ques-tão pragmática, a minha família pressionou-me a escolher Economia. Queriam que aproveitasse a minha habilidade em várias áreas para deixar em aberto mais chances, quando chegasse a altura de escolher o curso, não afunilando desde logo o meu caminho na área de letras. Pareceu-me lógico, mas a minha paixão por comunicar e a minha intuição não deixaram que a lógica se sobrepusesse… Como sempre.

No dia exacto em que fui preencher os papéis de admis-são ao Ensino Secundário, nos quais teria de indicar a área

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pretendida, tive uma conversa séria sobre o assunto com uma ex professora e para sempre amiga que conservo na mi-nha vida - Beatriz Gambôa, esta é para si! Porque tinha sido minha professora de Português e me tinha visto em acção, e ainda porque nos compreendemos muito bem, uma vez que a nossa alma partilha dos mesmos códigos de entendimen-to, foi muito simples para si aconselhar-me a seguir o que me apaixonava: a comunicação. Foi o que fiz. Sem avisar ninguém, mas confiando no que queria seguir e no que me apaixonava, foquei-me desde esse momento na área que me levaria ao sucesso que idealizava: Humanidades. E, se hou-ve anos de sucesso escolar, foram os anos do Ensino Secun-dário! Fui feliz e realizado. Plenamente realizado. Fiz a es-colha certa. A única disciplina em que me sentia menos feliz e realizado, a partir do segundo ano de ensino da mesma, foi MACS - Matemática Aplicada às Ciências Sociais - por falar de probabilidades, algo que me recordava demasiado a Matemática que não me apaixona. Mais tarde, na Faculdade, embora não me tenha sentido realizado pelo excesso de teo-ria que o curso acarreta, só alcancei um enorme insucesso: a única cadeira onde tinha de realizar contas. Tive a minha primeira negativa, um redondo 2, numa escala de 0 a 20. Não por ser difícil, não por não entender… Simplesmente por não me motivar. São as palavras e as pessoas que me movem. São esses os elementos em que sou bom e são eles que me fazem querer ser melhor. Descubram o vosso e per-ceberão o que vos explico aqui, com este exemplo pessoal.

Há quem desenvolva esta percepção mais cedo, há quem a adquira mais tarde, há quem sempre a conheça, mas tema assumi-la, pela pressão que os outros exercem sobre si. In-dependentemente do grupo em que se inserem, a verdade é esta: não adianta despender energia, esforço, suor e lágri-

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mas no que não somos bons. O segredo é apostar no que nos distingue e nos faz sentir distintos. No que fazemos bem. No que amamos fazer e nos sentimos à vontade para fazer repetidamente. O segredo é trabalhar ainda mais nesse ele-mento em que somos bons, pois é nele que nos tornaremos os melhores. É ele que nos distinguirá e realizará e é ele que, em última instância, acrescentará valor ao mundo de que fazemos parte e aos mundos de que fizermos parte e que fizerem parte de nós.

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Quando fazemos o que nos faz melhores... Os outros reparam

E chegamos aqui. Quando nos movemos no nosso ele-mento, quando damos o nosso melhor, quando nos excede-mos e superamos no que nos apaixona, mais tarde ou mais cedo… Os outros reparam.

Na escola, quando lia nas aulas, dava o meu melhor. Os meus colegas chegavam a meter-se comigo, por ser muito teatral a ler. Faziam mesmo questão de me evidenciar o ób-vio: “André, não estamos no teatro!”. Hoje, rimo-nos disto. Mas foi o facto de me empenhar a ler e de me esforçar por ser cada vez mais eficaz nessas leituras e na forma como colocava a minha voz que comecei a ser escolhido para ler nas missas, nas festas ou nas homenagens que ocorriam no colégio. Foi o pequeno palco da aula que me transportou para um palco um pouco maior do colégio. E foi o pequeno palco do colégio que me transportou para outros, quando ce-rimónias exteriores requisitavam a minha participação, pe-rante públicos que nunca tinham ouvido falar de mim. Isto não pretende ser uma exaltação louca do meu ego! Pretende apenas ser uma demonstração do que aqui defendo e do que o colégio me ensinou, com este progressivo voto de con-fiança que me foi dando e que Oprah nos ensina também:

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quando fazemos o nosso melhor, as pessoas reparam. E, quando reparam, acabam por nos elevar às posições a que, nós mesmos, na nossa posição actual, já nos elevámos. É por fazermos o nosso melhor agora que nos encontraremos num lugar melhor amanhã.

É como a rua em que morei, que tinha três ou quatro cafés. O que os distinguia já não eram os produtos. O que os distinguia era o serviço. Quando alguém se empenha, dá o seu melhor e nos faz sentir esse melhor, conquista-nos o regresso. Voltamos a si, voltamos a dar-lhe o nosso tempo, a nossa energia, a nossa confiança e, até, se for caso disso (num negócio, por exemplo), o nosso dinheiro. Voltamos a acrescentar valor ao valor que essa pessoa nos acrescentou. Ao valor que essa pessoa acrescentou à vida e aos seus mo-mentos.

Por isso, agora mesmo, no que quer que estejam a fa-zer… Façam o vosso melhor. As pessoas vão reparar. E os resultados vão manifestar-se.

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Somos a possibilidade

Como já referido, o passado de álcool marcou a minha infância. Conforme poderão imaginar, ganhei uma certa aversão à substância. Porém, com o tempo, aprendi a gerir esta aversão.

Até aos meus 20 anos, opunha-me convictamente à be-bida. A toda e qualquer bebida alcoólica. Era uma reacção extrema, perante os efeitos nefastos que a vira causar na mi-nha vida. Ia sair com amigos e bebia coca-cola ou água. No máximo, até essa idade, tinha apenas experimentado bebi-das. Leves e muito temerosos goles. E, como bebia pouco, era o suficiente para me sentir aquecido e para conhecer o lado semi-divertido que tal poderia causar. Mas temi sempre as consequências de me aventurar para lá dessas experiên-cias muito controladas. Achei que morreria sem beber um bom vinho, pelo medo que tinha que a substância causasse em mim.

Contudo, certo dia, percebi que estava a opor-me à ex-periência só e apenas por ter medo de repetir os erros que vira repetir. E que isso equivalia a desresponsabilizar-me do controlo que podia – e devia – ter sobre a situação. Essa minha decisão, na altura, não era uma decisão do meu ca-minho, era uma decisão de um caminho que não era o meu. Não era por não querer experimentar, era por não querer

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chegar ao extremo. Mas como poderia eu entregar à respon-sabilidade da não-experiência a responsabilização que só a experiência me poderia dar, na necessidade que dela sentia?

Aos 20 anos, comecei a sair à noite sem o medo de me tornar no que vira. Experimentei sem necessidade de exces-sos e, mesmo nos muito raros excessos que possa ter come-tido, encontrei sempre poder de escolha: nunca me tornei no que vi ser, nem utilizei aquele elemento como parte es-sencial para me definir e definir as minhas acções, nunca o utilizei como desculpa para me destruir ou destruir e apren-di que tenho sempre domínio sobre mim. Aprendi que, em última instância, o limite entre a diversão e destruição resi-de só e apenas em mim: sou eu que o traço e não a memória do que vivi.

Não, naturalmente que este capítulo não é um incentivo a beber ou a experimentar algo que sabemos ser danoso para nós e para os que amamos, nos limites que ultrapassarmos. Este capítulo apenas se serve do meu caso concreto com o álcool para ser um incentivo a não nos demitirmos da nossa consciência de dominar o que fazemos, recusando viver um equilíbrio que nos permita perceber que dominamos algu-mas situações, porque nos dominamos a nós e que, nesse domínio, nesse conhecimento de nós mesmos, podemos vi-vê-las sem chegar ao extremo da repressão ou ao descon-trolo do excesso e sem nos desresponsabilizarmos de uma maneira ou de outra.

Não somos os erros que vimos cometer: somos a pos-sibilidade de uma nova experiência dentro de todas as que vimos viver. Somos "a possibilidade de tudo o que pode vir a ser"1.

1 Citação de Oprah Winfrey.

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O que acontece prepara

o que virá

Nada do que nos acontece é em vão. Cada momento, cada experiência, é uma preparação para aquela que há-de vir.

Quando a vida me forçou a ser uma espécie de pai para os meus irmãos, dado o casamento dos meus pais e o subse-quente divórcio, estava a oferecer-me a possibilidade de me preparar para lidar com crianças, como mais tarde viria a ser necessário, quando resolvi dar algumas explicações a ami-gos mais novos que fui fazendo com a vida. Provavelmente, já me preparou, em parte, para ser pai, um dia.

Quando a vida me convidou a, sucessivamente, discur-sar perante diferentes públicos no ambiente escolar em que fui educado, estava a preparar-me para, mais tarde, me sen-tir completamente à vontade para, de forma eficaz, o fazer em ambientes diferentes, como aqueles que o meu livro me deu a conhecer (televisão, rádio, escolas de todo o país,…). Estava a preparar-me para um plano maior que a vida tinha para mim, de chegar aos outros com a mensagem do Tia Guida e todas as outras que tiver para transmitir ou que, chegando até mim, tiver para veicular através de mim.

Quando a vida me permitiu aparecer em cartazes como os do Trinaranjus ou figurar em alguns anúncios/novelas,

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estava a preparar-me para lidar com a exposição que pro-jectos de maior dimensão acabariam por me trazer, sem que tal me afectasse drasticamente, deslumbrando o meu ego ou destruindo a minha auto-estima, pelos possíveis comentá-rios que poderiam gerar.

Quando a vida me ofereceu a hipótese de desenvolver a actividade comercial pela empresa em que trabalhei, per-mitiu-me aprender e aperfeiçoar procedimentos que pude colocar ao serviço dos meus projectos pessoais, tornando-os mais eficazes no seu alcance.

Nada, neste mundo, ocorre sem gerar uma consequên-cia. Cada acontecimento que ocorre é, para mim, uma pos-sibilidade consequente de nos prepararmos para o que há-de vir. Todos. Sem excepção.

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Uma vida de serviço

“Nem toda a gente pode ser famosa, mas toda a gente pode ser grandiosa, pois a grandiosidade é determinada pelo serviço”. Palavras de Martin Luther King, que ecoam na mi-nha cabeça e que se tornaram parte integrante de mim e do que quero ser para o mundo, depois de ter conhecido Manuel Luís Goucha e Fátima Lopes.

Tenho, para sempre, um profundo respeito, uma imen-sa admiração e uma enorme gratidão pelo Manuel e pela Fátima. Figuras de grande destaque na nossa comunicação, líderes de audiência durante anos consecutivos, pessoas que tinham e têm todos os motivos do mundo para se sentir no topo das posições que ocupam e, ainda assim, pessoas que sabem muito bem o que querem do trabalho que fazem e nunca, em qualquer segundo do contacto que comigo esta-beleceram, sobrepuseram o seu nome ou a posição que ocu-pam a esse trabalho. Diria mesmo, a essa missão.

A missão que têm transborda em toda a aura que os en-volve e em cada comportamento que os vi ter. Antes, duran-te e depois das entrevistas. Não são apenas o que vemos na televisão. Não. São mais. São pessoas que desempenham o cargo que desempenham com uma noção muito superior à de fama: a noção de serviço. E é por isso que se eternizaram no nosso panorama televisivo, nos horários difíceis em que

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trabalham, os verdadeiros horários nobres da televisão, os que abordam a realidade e procuram servi-la sem manias. Vivem a sua missão, num serviço diário que prestam ao pú-blico que os escolhe e, por encararem essa missão como ser-viço, tornam-se grandiosos. A fama é apenas consequência. Não é causa, e muito menos condição.

Ensinaram-me a humildade de prestar o serviço de ves-tir uma causa que nos é alheia e torná-la nossa, utilizando a nossa plataforma como rampa de lançamento e projecção para essa mesma causa. E isto pode ser feito em qualquer palco que a vida nos dá. Todas as rampas são úteis e hu-manamente produtivas, quando utilizadas com esta noção de serviço. Foi graças a si, ao seu profissionalismo, à forma como se entregaram ao livro e ao projecto, que me deram a conhecer como “jovem escritor”. Mais do que como “jovem escritor”, como alguém que queria passar algo ao mundo. E esse “alguém” e esse “algo” só puderam fluir e ficar bem de-finidos pela irrepreensível abordagem que o Manuel, a Fáti-ma e as suas equipas resolveram dar ao tema e pelos tempos de antena que lhe confiaram, nos seus programas de enorme alcance, quando de mim pouco ou nada sabiam.

Nunca esquecerei o seu gesto e o seu exemplo e para sempre o transportarei comigo, em cada passo profissional que der. Sem eles e, justiça seja feita, principalmente sem esse primeiro momento televisivo com o Manuel Luís Gou-cha, dificilmente o livro e a sua mensagem teriam obtido o alcance que obtiveram e me teriam dado a conhecer de for-ma tão eficaz a tantos outros profissionais de comunicação e às suas equipas de produção que abraçaram o tema, com igual noção de serviço - Serenella Andrade, Andreia Ro-drigues, Luciana Abreu, Manuela Pereira, Pedro Boucherie Mendes, José Carlos Malato, Nuno Graciano, João Baião,

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José Candeias, João Paulo. Obrigado pela infinita inspiração e pelas extraordinárias oportunidades. A todos.

Como a destes profissionais que conheci, a vida que quero para mim, mais do que uma vida de fama, é uma vida de serviço.

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Tempo é precioso

Contactar com a morte ou com a perda de alguém que muito amamos e não mais poderemos ter no nosso dia-a-dia como gostaríamos - o que não são obrigatoriamente aconte-cimentos sinónimos - faz-nos compreender o quão precioso é o tempo e a gestão que dele fazemos, no aproveitamento que lhe damos para realizar o que nos faz felizes.

A partir do momento em que pisamos a situação limite de, por ausência de escolha, não ter o mínimo controlo sobre o tempo, a partir do momento em que o sentimos a fugir de nós pela primeira vez, consciencializamo-nos da sua impor-tância e de como é fundamental utilizá-lo para o que que-remos fazer realmente. E, nisto, talvez por já ter contactado de tão perto com os seus limites, levo esta convicção um bocadinho ao extremo.

É óbvio que devemos ter o cuidado de não nos tornar-mos egoístas que utilizam a desculpa do limite do tempo para servir apenas e só o seu ego e as suas necessidades ou manipulando as dos outros. Porém, em matéria de en-riquecimento de alma, julgo que toda a gestão proveitosa e produtiva do tempo é - ou deve ser - permitida. Sempre com o cuidado de não alarmarem quem amam e quem vos ama, prevenindo-os para tal, sigam, sempre que possível, este conselho: se há dias em que desejam e vos é possível

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não atender o telefone, não atendam; se há dias em que dese-jam não responder a mensagens, não respondam; se há dias em que não querem ouvir ninguém, não oiçam; se não vos apetece ir a determinada festa, não vão; se não vos apetece ir tomar tal café, não tomem. Sempre que sentirem que o tem-po vos convida a ser utilizado de forma diferente da que os outros vos propõem, sigam a vossa intuição e extraiam desse tempo o valor mais produtivo possível para a vossa alma. Só assim, desses momentos verdadeiramente vossos, acabarão por extrair o que vos permitirá enriquecer cada momento que partilhem com alguém. O tempo é tão precioso que é a medida mais valiosa que o trabalho usa para se pagar… E quantas vezes nem esse tempo pago se revela útil nos resul-tados que nos produz interiormente?

Não desperdicem o tempo que não vos é pago em situa-ções que não vos trazem qualquer tipo de retorno positivo. Por vezes, até, se possível, não o desperdicem até quando vos é pago! Sigam o vosso desejo de gerir o vosso tempo como só vocês sabem e como só o vosso estado de espíri-to vos permite. Quem ama, quem conhece e quem respeita, certamente porá de lado o seu próprio ego e a sua própria forma de gerir o seu tempo e respeitará a vossa, sem vos impôr a sua. Naturalmente que, depois, terão de ser capazes de fazer o mesmo com o tempo dos outros. Porém, a partir do momento que começam a saborear assim o vosso próprio tempo e a respeitar assim a vossa própria vida, começam a respeitar com maior facilidade o tempo e vida de cada um que vos cerca. O tempo é mesmo como dizem… Precioso. E, quando bem saboreado, ajuda-nos a perceber a preciosi-dade que é estar vivo.

Prestem atenção… Conseguem ouvi-lo? Escutem. O ti-que-taque do relógio no silêncio desta leitura. Tique. Taque.

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Agora que já o escutam, agora que já sentem o som do si-lêncio do tempo, agora que já entendem que este som nos é dado diariamente sem qualquer ruído, como vão aproveitar cada segundo de que dispõem para completar a sua melo-dia? Que notas vão escolher acrescentar-lhe?

O tempo é a vossa pauta. A vossa música. A vossa es-colha artística. Tornem-na harmoniosa. Tornem-na audível.

Tornem-na vossa.

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Escolher é a maior liberdade

Parte da minha infância foi vivida num ambiente muito próspero, economicamente. Tinha tudo o que queria. Tinha mais do que queria. Tinha tudo o que precisava. Tinha mais do que precisava. Até ao dia em que tudo isso terminou.

Passar do extremo de tudo ter e todos poder ajudar ao extremo de não ter nada e de precisar da ajuda de todos é algo muito abrupto e difícil de gerir. Os gastos desmedidos conduziram-nos a uma ausência de liquidez que nos deixou impossibilitados de manter o estilo de vida que tínhamos. A notícia das dívidas e da ausência dessa liquidez caiu que nem uma bomba sobre os meus ombros de miúdo. Acima de tudo, os estilhaços da explosão faziam-me sofrer pelo sofri-mento que via nos meus pais, na impossibilidade que lhes reconhecia de continuarem a viver como gostavam e pro-porcionando aos outros - o que incluía o filho - o que mate-rialmente de bom gostaram sempre de proporcionar. É certo que a forma como tudo foi gerido podia ter sido melhor, mas não é exclusivamente sobre esse prisma que vou falar acerca da questão, neste capítulo.

Recordo-me do dia em que me apercebi realmente do quão difícil era a situação. Vivendo numa casa boa, podendo continuar a frequentar um bom colégio graças ao incondi-cional apoio das Irmãs Dominicanas, vimos a nossa conta

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tão desfalcada que não era possível ir ao supermercado, cer-to fim-de-semana. Lembro-me das expressões no rosto da minha mãe. Da minha sensação de inutilidade de querer aju-dar e não saber como, perante a idade que tinha (menos de 15 anos). Ao longo dos anos e particularmente nos mais di-fíceis, foram os meus tios que nos ajudaram muito, para que nada nos faltasse. Tantas vezes sem que nós soubéssemos totalmente de toda a sua ajuda. E, uma vez consciente dessa ajuda, a minha mãe procurou não abusar dela, por já lhe ter parecido imensa. Como tal, tenho na memória a imagem de a ver percorrer a despensa em busca de algo que pudesse ser cozinhado pelo fim-de-semana todo, que rendesse pelos dias que se seguiam, até que tornasse a receber o ordenado, na segunda-feira. E descobriu atum e esparguete. Do atum e do esparguete, com um toque de ketchup e natas, fez um pra-to que ainda hoje gosto de saborear, pela memória da lição que me traz: do pouco, podemos fazer muito e, no pouco, aprendemos a importância que é gerir o muito que temos, na liberdade que esse muito nos dá.

Gerir a abundância é perceber a enorme panóplia de escolhas que ela nos traz e reconhecer que essa é a maior liberdade que se pode ter. Enquanto se pode escolher, há que escolher bem. Neste caso específico, falo de dinheiro, mas podia falar de qualquer coisa que nos permita escolher. Um dia, o poder de escolha pode ficar mais limitado, por nunca nos termos consciencializado dele e responsabilizado por ele. Quando houve dinheiro, escolhemos gastá-lo em coisas erradas, em excessos desnecessários. Quando vimos a nossa escolha limitada pela sua drástica ausência, fomos forçados a perceber a importância de gerir todas as escolhas que fa-zemos, particularmente quando temos plena possibilidade para tal. Fomos forçados a sentir na pele que o pior cenário

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de todos é o de não termos qualquer liberdade de decidir en-tre a opção A ou a B que outrora tomáramos por garantidas, porque as esgotámos irresponsavelmente em todas as outras opções do abecedário que existiam ao nosso dispor.

Gerir o que se escolhe hoje é ser livre em responsabi-lidade e garantir a liberdade responsável do amanhã que se avizinha.

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Sabedoria certa, idade errada

Nesta fase, já não é novidade para ninguém que muitas das aprendizagens que fiz na vida estão ligadas aos meus tios. Esta foi-me transmitida pelo meu tio Jorge e não só nunca a esqueci como tenho vindo a confirmá-la e a pro-curar extrair dela a possibilidade de viver melhor, no meu dia-a-dia: a sabedoria certa surge, muitas vezes, na idade er-rada.

Quantas vezes aprendemos a importância do tempo, depois de ele nos ser tirado por completo? Quantas vezes aprendemos a importância de amar, quando nos é tirada a presença de quem amamos? Quantas vezes aprendemos a importância das escolhas materiais, quando nos é tirada a hipótese de ter? Penso que não sejam precisas muitas vezes, para que nos consciencializemos das lições que estas perdas nos trazem, se estivermos atentos e dispostos a aprender. Acredito até que uma vez seja suficiente para se perceber que a sabedoria certa surge, em tantas ocasiões, na idade errada.

Quantas vezes gostaríamos de recuar na idade e, com a sabedoria que hoje temos, alterar o que vivemos ou pelo me-nos tranquilizar a nossa versão mais jovem e imatura acerca do que estava a viver? Quantas vezes gostaríamos de, com

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a sabedoria do hoje, alterar a ignorância do ontem? E recuar na idade não implica recuar anos! Por vezes, é uma questão de minutos. Erramos num minuto e, no minuto a seguir, a sabedoria do erro e das suas consequências começa a for-mar-se em nós, a crescer em lição e a preparar-se para nos fazer entender que, se tal facto ocorresse novamente, não agiríamos exactamente como acabáramos de agir. Esta é a derradeira confirmação de que a vida pode ser irónica ao ponto de nos tirar o que temos, para nos dar o que precisa-mos. Tira-nos uma hipótese que se converte em passado im-possível de alterar e dá-nos uma certeza de sabedoria que se converterá em novo e melhor futuro capaz de ser construído.

Uma vez que já todos experimentámos esta certeza de que o conhecimento certo nem sempre surge na idade ade-quada, aproveitemos o conhecimento de quem já viveu para evitar experimentar a frustração que esta sensação nos pode trazer. É certo que muitas aprendizagens acabarão por ser só e apenas consolidadas quando vividas na primeira pessoa, até na frustração de serem realizadas no tempo errado, mas se pudermos escutar e sentir, através da empatia, a expe-riência dos outros, conseguiremos completar a nossa com os seus ensinamentos e antecipar os benefícios que tais ensina-mentos nos poderão trazer.

Um dos desafios da vida é, mais do que gerir a nossa sabedoria e a dos outros na idade, gerir a sabedoria de todos no tempo, fazendo dele a melhor possibilidade possível, no que nos der a viver.

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Medo só existe em nós

Durante muito tempo, travei-me. Impedi-me de reali-zar alguns dos meus sonhos e de avançar rumo ao que ou a quem queria perto de mim, apenas e só por medo. Mas o que aprendi é que o medo é uma espécie de paradoxo: existe, para nos fazer entender que não é real.

O medo é uma espécie de linha que criamos e que tantas vezes nos criam, para que nos protejamos/protejam de qual-quer coisa ou para que nos impeçamos/impeçam de qual-quer coisa. Quando demasiado presente, quando demasiado automatizado, manifesta-se em excesso e trava-nos. Cria em nós o automatismo de negar o progresso, pelo receio da in-capacidade não experimentada. A defesa torna-se prisão. A prisão torna-se confortável e faz-se casa. Uma casa fechada por dentro, uma casa cuja chave só a nós pertence, mas que fingimos ter perdido, para dela não mais sairmos. Encerra-mo-nos nas nossas zonas de conforto e alegamos justifica-ções em que nem nós mesmos acreditamos, para fundamen-tar a estagnação em que entrámos.

E se por vezes o medo é um fiel amigo que nos faz ser o melhor de nós, muitas outras vezes é um temível inimigo que nos impede atingir o melhor de nós. E esse último é o medo que cansa. O medo que satura. E, um dia, resolvemos arriscar vencê-lo. Primeiro em pensamentos que nos con-

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vidam, depois em acções que materializam a aceitação do convite. A ansiedade de ir para lá do medo faz-se sentir, mas é agora munida de uma adrenalina saudável de quem sabe estar a arriscar transformar-se, conhecer-se melhor, expan-dir-se para lá do que (se) conhece. Arriscamos. Quebramos as fechaduras e as grades da prisão que se fez casa e par-timos rumo ao desconhecido que o medo fazia temer. E o risco de quebrar o que nos enclausura revela-se sempre po-sitivo, mesmo quando esse ir para lá da zona de conforto não se converte logo na materialização do conforto com que so-nhávamos. Se pretendemos algo e não arriscamos por medo, acabaremos por passar uma vida inteira a indagar o que te-ríamos conseguido alcançar, se não nos tivéssemos travado com o receio que de nós se apoderou. Ir para lá do medo que nos impede de sermos o melhor de nós é poder falhar, mas saber que se tentou e que, no tentar, se superou algo.

Nesses casos, atravessar o medo, chegar ao outro lado e olhar para trás é compreender que nada existia realmente entre o ponto onde estávamos e o ponto onde chegámos. É compreender que o medo só existe em nós e saber que, pre-cisamente por só em nós ser real, só em nós pode ser des-truído. É compreender, também, depois de chegados a esse ponto, para que outro ponto pretendemos ir.

Dou-vos um exemplo prático de uma situação em que fui forçado por mim a lidar com o meu medo de tentar ser o que acreditava ser o melhor de mim e a superá-lo, extraindo dele algo de bom.

Durante muito tempo, senti vontade de experimentar o lado do humor, a nível profissional. Gosto de brincar com as palavras e de as utilizar para satirizar o que julgo ser sati-rizável e gosto de criar personagens que dêem corpo a es-sas palavras. O blog que tive com um amigo pardecronicos.

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blogspot.com era já um indício disso. Acredito no poder do humor como desconstrução do que nos cerca e como pos-sibilidade de reconstruir o que nos cerca. Durante muito tempo, temi a possibilidade de experimentar essa área que acreditava poder ser parte do melhor de mim. E, durante esse mesmo tempo, criei em mim as dúvidas da ausência de experimentação que o medo gera: como seria se o fizesse? O que aconteceria se o fizesse? Seria feliz e realizado como imaginava? Seria bom como imaginava? Seria útil para o mundo como acreditava?

O meu tio vive com estas dúvidas sobre muitas áreas profissionais que poderia ter seguido, algumas delas ne-gadas pela falta de apoio da família e pelo medo que essa ausência de apoio lhe criou. E, nessas dúvidas, sempre me empurrou para o esclarecimento das minhas, com o seu in-condicional apoio. A internet permite-nos experimentar al-guns talentos que acreditamos ter e testar as reacções de um público que nos permite criar. Foi, então, que, com o apoio do meu tio e através desse meio, iniciei com três grandes amigos o projecto de YouTube Cera - O nome que fica no ouvido. Criámos alguns sketches e, com as possibilidades que tínhamos, fizemos algo com que sonhara, mas que até então não experimentara… Por medo.

O projecto não durou muito, por vários motivos. O prin-cipal e que aqui resolvo destacar, tem a ver com o incómodo que sentia, sempre que postava algum sketch com uma ou outra piada mais delicada que pudesse ser mal interpretada e gerar sentimentos negativos em quem pudesse rever-se nes-sa interpretação. Esse incómodo nunca foi manifestado por nenhum feedback dado por estranhos que seguiam o nosso trabalho, os quais pareciam até gostar bastante do que se fazia: foi sentido apenas e só por mim. Embora fosse e seja

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um verdadeiro apreciador de humor e deste impacto que ele pode ter nas consciências, não me reconhecia o direito de ser causador de sentimentos negativos no mundo, por inter-pretações duvidosas a que eu mesmo pudesse sujeitar o meu trabalho (amador) artístico. Muito menos quando o projecto - que não pretendia focar-se apenas em mim - estava a co-meçar a atribuir-me esse mesmo indesejado destaque. Com essa experiência, soube e estava a senti-lo na consciência, que não seria capaz de progredir de forma solitária com um projecto destes e sentir-me confortável com tudo o que se produzia. Cancelei o projecto. Mas nunca cancelarei a aprendizagem que dele extraí.

Aprendi que o humor e muito do que o cerca é realmente algo para que tenho talento e que põe algumas das minhas capacidades a funcionar, mas não é algo que consiga ver-me a fazer nos moldes em que o Cera era feito, sem com isso colocar em causa a minha consciência e a minha noção do que sinto ter vindo fazer a este mundo. É um campo que, quando bem utilizado e com uma intenção bem definida, me vejo a explorar esporadicamente, mas algo que não quero para mim como achei querer um dia. Aprendi - ou melhor, confirmei!- que a minha real vocação é inspirar e ser inspi-rado, é falar e ouvir falar de emoções fortes, temas sensíveis e tantas vezes tidos como tabu, e que isso já me havia sido dado a conhecer pelo Tia Guida e por tudo o que as pessoas com que o projecto me cruzou me haviam feito sentir. Perce-bi que não conseguia viver com a ideia de, através do humor, poder estar a impossibilitar que as pessoas olhassem para mim como esse veículo de transmissão de mensagens hu-manas capazes de mudar consciências, incluindo a minha, por então poderem achar que depressa ridicularizaria ou tornaria satírica qualquer partilha que me confiassem. Mas,

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acima de tudo, confirmei que superar o medo só nos ensina e que, nesse ensinamento, torna o nosso caminho mais claro, se não pelo total redirecionamento para o lado certo, pelo menos pela total negação de um lado que sentimos não ser o nosso. E foi assim que conclui que era na linha do Tia Guida e das intenções desse projecto que me queria mover sempre, na minha vida.

O Cera foi, desta forma, no que toca a projectos pessoais independentes, a ponte entre o Tia Guida e o A+ e foi uma ponte que, embora possa parecer inútil a muitos, se revelou extremamente útil, na lição que me ensinou relativa à utili-dade de se superar um medo.

Superei o medo de experimentar uma área que me ali-ciava, de testar o que me faria sentir e conclui que, embora a soubesse desempenhar bem, não era nela que me queria mover a tempo inteiro. Superei o medo e, nessa superação, eliminei as dúvidas que poderiam restar para toda a minha vida, se nunca tivesse experimentado os meus receios e, ao eliminar essas dúvidas, tornei o meu caminho mais nítido, sem prejudicar o de ninguém. Para lá do mencionado, resta dizer que, por ter superado o medo de experimentar numa área que me aliciava mas que se revelou não ser a ideal, eli-minei qualquer medo de experimentar agir numa área que conclui ser a minha.

Superar o medo é perceber que nada nos trava a não ser nós mesmos. É destravar o bloqueio que nos impomos e expandir o conhecimento de quem somos, para que mais e melhor possamos ser.

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Sacrifício

Muitas pessoas crescem sob o ensinamento de que a vida em sofrimento é a vida que lhes garantirá algo de bom. Por diversos motivos, desde o ambiente que as cerca, às circuns-tâncias em que sempre cresceram e mesmo a muitas crenças que seguem, tornam-se quase devotas de uma vida de dor “só porque sim”, como se a felicidade lhes fosse negada pela lei que, mais do que escolheram seguir, escolheram criar para si mesmas. Sacrifícios existirão sempre, mas nós existimos para lá deles. E é nessa extensão do “eu” que devemos pro-curar a justificação para o sacrifício, tornando-o efémero e fazendo dele um meio para um fim e não o fim que exclua quaisquer outros meios.

A forma como olho para a minha carreira pública está, inevitavelmente, ligada aos sacrifícios que ela exige. Tudo tem um preço e o preço de quem se inicia nestas andanças, quando devagar e consolidadamente, é o de se saber que nada se faz do dia para a noite e que, enquanto não puder-mos viver só e apenas do que amamos, temos de procurar alternativas que nos permitam ir vivendo do que amamos. Escrever e contactar com o público tornou-me convicto da minha missão. Ver os resultados das minhas primeiras gran-des interacções com o meu primeiro grande projecto tor-nou-me convicto do sucesso dessa missão, a longo-prazo. Por estar convicto desse sucesso, mas saber que no mundo das formas, no mundo material, ainda não é dele que posso

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fazer uma vida constante, criei em paralelo uma estrutura que me permite ir ganhando algum dinheiro, muitas vezes a trabalhar temporariamente em actividades que não são as minhas preferidas e que, como se diz na gíria, me saem do pelo, por todo o esforço que exigem. Ora através de figura-ções, ora através de trabalhos temporários numa empresa de impressão de um tio por afinidade - a Cores Finais - ora em part-times como o do grupo Jason ou quaisquer outros tra-balhos que, no futuro, surjam e me permitam fazer o que me apaixona, trabalho para criar uma rede que sustente os saltos das minhas paixões.

Esse é o meu sacrifício. Nalguns desses trabalhos, faço horários por vezes puxados, sinto-me exausto, não me sinto propriamente realizado, mas sei que, com aquele dinheiro que estou a ganhar, vou poder colaborar para as despesas da casa onde vivo e exercer tranquilamente o meu percurso na área que me apaixona e me preenche, na área que realiza o meu espírito e que, sei, no futuro, me realizará também o lado humano, numa vida material estável, tendo ainda a sorte de ter como apoio parte da família e de o utilizar para ser mais o que vim ser a este mundo, sem nunca abdicar de retribuir a sua ajuda como sei. O sacrifício não orienta a mi-nha vida. É a minha vida e o que a apaixona que orienta o sacrifício.

Sacrificar não é abdicar para não mais ter. É abdicar, para no futuro ter. É assim que vejo a palavra. É assim que vejo o acto. E é assim que todos devemos entendê-lo. Aceitar uma vida de constante sacrifício e negar a possibilidade de escolher algo melhor é encerrar a expansão do “eu” na me-noridade a que a visão conservadora da palavra nos encerra. Há que definir a intenção do sacrifício para, mais do que vi-vermos nele, vivermos dele.

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Sucesso

É comum associar-se “sucesso” a bons resultados, popu-laridade, lugares de topo, vendas incríveis… E, por se asso-ciar sucesso a esses elementos, torna-se o seu alcance numa competição feroz com os outros e num permanente receio de falhar. Para mim, sucesso nada tem a ver com números.

A minha definição de sucesso não depende de quantos livros vendo, de quantas visualizações e/ou reacções obte-nho nas minhas partilhas virtuais ou de quantas pessoas pararam para escutar ou ler as entrevistas que, aqui e ali, vou dando sobre os meus projectos. Não. A minha definição de sucesso depende só e apenas de ter conseguido inspirar alguém a viver uma vida melhor.

É isso que quero para o meu sucesso. Ser uma inspira-ção para os outros e deixar-me inspirar por eles. Para lá de quaisquer números, o que me faz contactar com o sucesso são as vidas que toco e as vidas que tocam a minha. O que deixei em cada uma que tiver contactado com as minhas partilhas e o que cada uma deixou em mim com as suas.

O sucesso, quando assim definido, não nos coloca no patamar da competição. Coloca-nos no patamar da coopera-ção humana pura e, no máximo, coloca-nos em competição connosco mesmos, de uma forma saudável, por nos con-vidar a sermos responsáveis pela vida que vivemos e pela

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energia que escolhemos, através dela, trazer a este mundo, inspirando e elevando consciências. O sucesso, quando as-sim definido, transcende qualquer profissão que tenhamos e torna-nos a todos capazes de viver uma vida bem-sucedida. O sucesso, quando assim definido e assim alcançado, acaba por nos fazer alcançar mais facilmente todos os outros su-cessos com que sonhamos, por nos sentirmos humanamente plenos e realizados no que a este mundo viemos fazer e por nos munir da consciência de que, se falharmos os grandes objectivos numéricos quando a nossa hora chegar, não tere-mos falhado os objectivos humanos e poderemos partir com a convicção de que deixámos algo de bom neste mundo e de que este mundo deixou algo de bom em nós, numa herança poderosa que gerará frutos intermináveis.

Este é o sucesso com que sonho. Um sucesso que diaria-mente posso alcançar. Que podemos alcançar! De que estão à espera? Larguem este livro por umas horas e corram rumo ao vosso sucesso humano do dia. Está a apenas alguns ges-tos de ser alcançado.

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Reacções ao sucesso

Mas falemos agora das consequências nefastas do su-cesso e de como se podem proteger delas. De todo e qual-quer sucesso. É que - e isto os meus 25 anos já me fizeram aprender, por vezes de formas surpreendentes e dolorosas - perante o vosso sucesso, nem todos vão gostar de vós.

Seja qual for a vossa definição de sucesso, assim que a começarem a viver, aperceber-se-ão das influências negati-vas que se começarão a desdobrar em vosso redor. Por vezes as mais inesperadas das pessoas procurarão puxar-vos para baixo e retirar-vos o que agora observam naquilo que enca-ram como sendo o vosso esplendor. Dos meros conhecidos, passando por algumas pessoas que julgavam amigas e che-gando mesmo a familiares, verão atitudes representativas do que aqui explano desdobrar-se em vosso redor. Isto acontece — também como aprendi a escutar a minha referência te-levisiva americana já citada neste livro — porque, no mo-mento em que se encontram a viver o vosso sucesso, estão a reflectir para quem vos cerca uma energia de realização e de satisfação pessoal plena que nem todos conseguem reconhe-cer em si mesmos. Como não se reconhecem no vosso su-cesso, procuram arrastar-vos para a sua infelicidade e falta de realização. Naturalmente que, na grande maioria das ve-zes, não o fazem em consciência. Pelo menos, não vos dirão

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nunca “como não me revejo no teu sucesso, quero-te na mi-nha angústia”. Na grande maioria das vezes, o que eles dirão será algo como “mas quem é que ele pensa que é? Quem é que ele pensa que é para estar a viver desta maneira?”. Como sempre, a apresentadora americana está certa. Já senti isto na pele. Já me foram ditos directamente, escritos e envia-dos como recados. Principalmente como recados. Já senti na pele, mais do que estas palavras, atitudes que procuraram drenar a realização que obtive com os projectos em que me lancei, particularmente com o Tia Guida, redireccionando-me o caminho que, tão plenamente e em paz, escolhi seguir e senti, no sucesso obtido, ser o certo para mim.

Porém, isto só se verifica quando nos permitimos a vi-ver o nosso sucesso cercados de pessoas que não têm nas suas intenções o melhor para nós. Como diz Oprah Winfrey, “aqueles que querem o melhor para ti, querem que tu sejas o teu melhor”. E é por isso que se revela fundamental cercar-mo-nos de alguém que nos encha de nós mesmos, ao ponto de transbordarmos o nosso melhor. Não se trata de nos cer-carmos de quem nos iluda o ego, trata-se de nos cercarmos de quem nos eleve a alma, ao ponto de ela nos preencher o ser e transbordar em tudo o que fizermos, para que, tam-bém como nos diz a apresentadora, quando essas influências negativas disserem acerca do nosso sucesso “ele/a está tão cheio de si mesmo”, possamos responder: “pois estou”.

Tenho a sorte de, em vida, para lá de quaisquer influên-cias negativas, contar com pontos de equilíbrio estáveis, que me permitem ser o meu melhor, transbordar o meu melhor e beber e dar a beber desse melhor, sem se sentirem amea-çadas e sem quererem redireccionar o meu caminho. O ex-poente máximo deste apoio incondicional que me devolve a mim e só a mim o poder de ser o melhor que nasci para ser,

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esse, encontro-o no meu tio. Para sempre lhe serei grato por me aceitar, amar e apoiar no meu melhor, desprendendo-se do seu ego e servindo-se da sua alma para investir na minha vida e no meu sucesso.

É fundamental que se cerquem de pessoas assim. Não vale a pena partilharem o vosso sucesso num ambiente que nunca o saberá aproveitar de forma nenhuma e que, mais do que isso, ainda vos tentará retirá-lo de qualquer forma.

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Tudo passa, menos o dom

Ao ouvir mestres como Oprah ou Maya Angelou, e na constante observação que faço do que me cerca e também do que de mim faz parte, aprendi que a plena transformação leva inevitavelmente à passagem de tudo.

É como a flor mais resplandecente de um jardim com que se cruzem aleatoriamente e que vos capte a atenção. Ob-servem-na. E pensem no seu destino. Um dia, também ela irá esmorecer, morrer, transformar-se. Dar lugar a outra vida. É assim que olho para a minha vida e para tudo o que dela faz parte. É assim que me lanço na minha carreira. Não importa quantos livros venda… Um dia sairão do top. Não importa quanto dinheiro faça… Um dia será gasto ou passado a ou-tro. Não importa quantas vezes me torno número um… Um dia conhecerei os outros lugares da tabela. Não importa o que diz respeito às formas. Todas as formas deste mundo são temporárias e passageiras. Todas se transformam, para dar lugar a outras. Todas acabam, para de novo começar, num processo de mudança e substituição constante que não podemos evitar. É essa a Natureza das formas.

O que importa é quantas vidas toco com o que faço. Quantas pessoas posso inspirar no meu dia-a-dia. Quantas permito que me inspirem. O duradouro é a essência. A alma de cada interacção. O que viemos para trazer, através das

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formas que nos deram e que construímos no nosso pequeno mundo individual. O que viemos para deixar, através delas. O dom. A vida. O que nos foi dado para que de novo pu-déssemos dar. Esse é o contributo duradouro de cada ser humano. É esse que é eterno.

Como nos diz Maya Angelou: “O teu legado é cada vida que tocaste, cada pessoa cuja vida foi de alguma forma mo-vida ou não pela tua. É cada pessoa que magoaste ou ajudas-te. Esse é o teu legado”.

O resto? O resto é como prega um sagrado e famoso escrito Cristão: “também passará”.

Tudo passa, no seu devido tempo.

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ESPIRITUALIDADES

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Religião e Espiritualidade

Cresci num colégio católico, mas não me considero uma pessoa religiosa. A diferença entre religião e espiritualidade é outra das aprendizagens que extraí da vida, nestes 25 anos, e que guardo para sempre em mim.

Lembro-me de crescer num colégio católico onde me sentia em casa. Mais do que sentir-me em casa, sentia-me parte da casa. E era tratado como tal. Devo ao meu colégio - e por “meu” entenda-se “a-todos-o-que-compunham-o-co-légio-e-o-seu-funcionamento-na-altura-em-que-lá-estive”, alguns dos melhores momentos da minha vida e alguns dos melhores testemunhos de generosidade que me inspiraram para sempre a ser melhor. Sou profundamente grato a todas as pessoas que agiram sempre comigo nesta frequência de energia. A generosidade que me deram nos momentos cru-ciais da minha vida, os momentos em que mais dela preci-sei, eternizou em mim a importância de ser generoso para com os outros. Desde aí que quero, sempre que possível, ser para alguém o que todas essas pessoas foram para mim.

Apesar de tudo isto, ou até por tudo isto, e porque tinha liberdade para questionar o que me despertasse dúvidas, ra-ras não foram as vezes em que, mesmo com as Irmãs, fiz perguntas sobre as contradições da Igreja. E várias foram as respostas que não me satisfizeram. Desde a postura que

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a Igreja tinha/tem/vai tendo contra o uso do preservativo, como contra o prazer individual, como contra as relações homossexuais, como contra o aborto, como contra o divór-cio, enfim, como contra tanta coisa que põe em causa o seu poder e a sua identidade enquanto Instituição, vários foram os temas que, aos poucos, me fizeram desprender a palavra “religião” da palavra “espiritualidade”. A minha ligação ao divino não passa forçosamente por um conjunto de dogmas que não fazem sentido para as minhas crenças humanas. A minha ligação espiritual à vida e aos outros não passa forço-samente por um conjunto de rituais que nos convida a uma unificação de comportamentos. Não. Esse é apenas um ca-minho. Apenas uma via. Há milhares de outras! E tantas que não dependem de uma Instituição.

A minha visão de Deus - do Universo, da Fonte, daquilo que lhe quiserem chamar ou até não chamar - é ilimitada. Expande-se diariamente, à medida que o meu conhecimen-to sobre mim mesmo e sobre a vida em geral se expande. Deus é a mais certa incerteza que existe. Não consigo olhar para essa entidade, essa energia, como algo estanque, algo limitado pelas regras de uma religião, seja ela qual for. Uma religião, para mim, é sempre um caminho humanamente construído da compreensão de Deus. E, como humano que é, não pode assumir-se como detentor de verdades absolu-tas, de comportamentos absolutamente correctos. Conforme uma vez vi num filme, “Deus não és tu, nem sou eu. É isto que ocorre entre nós”. E, sim, é nesse “vazio” preenchido pelas ligações que encontro Deus. É nesse vazio preenchido pela energia do que se liga, do que se toca, do que contacta, que encontro algo que nos transcende a todos e de que todos fazemos parte. É nessa teia de energia que encontro a minha espiritualidade. É nas pessoas e no que de bem conseguem

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fazer por si e pelos outros, através dessa energia. É no amor. É nos pequenos grandes gestos de generosidade que aquelas Irmãs Dominicanas sempre tiveram para comigo. É, mais do que nelas ou mais do que em mim, entre nós que resi-de Deus, a Fonte, o Universo. Que reside a possibilidade de uma vida espiritual. No respeito pela individualidade, pela forma como cada um escolhe conectar-se com essa teia que nos liga… E até quem dela se diz desligado está desde logo a ligar-se-lhe, pela sua negação. E todas as formas - todas - numa vida espiritual não-religiosa são aceites e coexistem sem que se tentem sobrepor. Até as da negação. Não há cer-to ou errado, na espiritualidade, desde que não prejudique a vida que nos cerca e a vida que nos é interior, anterior e posterior.

A religião é um caminho legítimo, mas apenas um ca-minho. A espiritualidade é sempre o resultado de um cami-nho. E nem todos os caminhos têm que ser religiosos.

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Deus. Em nós.

Nos Outros. Na Vida.

Os meus tempos de colégio foram responsáveis pelos primeiros contactos que tive com uma visão de Deus. Deus como Pai, Deus como Filho, Deus como Espírito Santo. É isto que o Catolicismo ensina. Foi isto que me ensinou. Cres-ci com os ensinamentos morais de quem segue a religião católica e a propaga, mas também com as contradições nor-mais de uma Instituição que se propõe a representar Deus na Terra e, à medida que fui caminhando no tempo e vivendo diversos acontecimentos, expandi a minha visão de Deus para lá dos limites da religião e encontrei a minha: Deus é energia… Em nós. Nos outros. Na Vida.

Como explico no meu primeiro livro, “a visão de que Deus é uma figura autoritária, que todos vê e todos con-trola, que todos pune e todos recompensa, é uma visão que não mais servia as minhas necessidades interiores, depois de atingidos os meus quinze anos. O divórcio dos meus pais, tudo o que o motivou e tudo o que, a partir daí, se desenro-lou, bem como outros acontecimentos a que fui assistindo (…), fizeram-me questionar essa visão de Deus. Lembro-me de gostar de ir à missa não pelos costumes rígidos associa-dos à mesma, não pela Igreja que, de tão humana que é,

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também peca e, por vezes, se acha mais Deus que o próprio, mas sim pela comunhão energética que ali se sentia. Era esta ligação aos outros que me preenchia, era esta boa energia que me fazia sentir diferente, era nela que eu sentia Deus ou lá o que fosse”*. Deus é o que acontece em nós, entre nós e em torno de todos. Esse acontecimento intercalar e que nos cerca é Energia. É Amor. Não no sentido carnal da palavra, mas no sentido mais iluminado e espiritual que a palavra nos transmite, quando a proferimos sem quaisquer pudores ou vergonhas e quando a sentimos na sua pureza máxima. É o que nos liga. A nós mesmos, aos outros, à Vida. É o que nos aprofunda e expande. A nós mesmos, aos outros, à Vida. E esta é a minha (nova) santíssima trindade que a unidade de Deus como o vejo permite: o Eu, os Outros, a Vida.

Tudo é Energia. Seres animados ou não-animados. A Energia é e está. Em tudo. Em todos. É nessa energia que somos iguais ao todo e é nessa energia que nos afirmamos como parte. Ela é o todo e faz-nos totais. Ela é parte de nós e faz-nos parte de si. Deus é essa Energia. É a Totalidade. A Fonte. O Universo. O começo e o fim que de novo come-ça. O infinito ciclo do que nasce e se renova, numa rede de energia que todos transcende, mas que a todos é anterior e interior. E, sendo essa Energia,

“Deus não é bom ou mau, não é isto ou aquilo. Deus é. Simplesmente é. O bom de se acreditar nisto é que não vemos os acontecimentos neste mundo como um castigo ou uma recompensa de algo superior a nós. É perigoso relegar-mos essa dádiva de poder recompensar ou castigar a uma entidade maior. É que, nas recompensas, o mérito nunca é totalmente nosso. Na culpa, Ele abandonou-nos. Quando, na verdade, em nenhuma das ocasiões Deus se comportou. Deus não se comporta: Deus é. E, sendo, permite-nos que

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trabalhemos através Dele. (…) E, quando percebemos isso, entendemos que podemos viver sintonizados nessa frequên-cia energética ou fora dela. E que, quando vivemos na pri-meira opção, tudo flui, tudo se desenrola, sem que vivamos atormentados pelo que nos acontece e fazemos acontecer”*.

Não importa o nome que lhe damos, não importa se o compreendemos. É. Existe. Para lá de quaisquer interme-diários religiosos ou pagãos, ou de qualquer nome. Deus é a definição que nunca se ensina: experimenta-se. Em nós. Nos outros. Na vida. Na unidade, no conjunto, no todo.

O que aprendi é que a visão de Deus se expande à medi-da que nos expandimos. À medida que expandimos a cons-ciência de quem somos, de quem são e do que a vida é. Que não existe apenas um caminho certo para chegar até si, mas uma multiplicidade de caminhos. Até o da negação. Que ninguém se pode arrogar detentor de uma verdade absoluta sobre o assunto, pois todos somos receptores e criadores de uma definição para algo que pura e simplesmente existe para lá dessas recepções e criações e que, por isso, se torna tão difícil de, através da mente humana, ser decifrado. Que, sen-do Energia e sendo Amor, reside em nós e nos torna capazes do divino, mesmo que nunca lhe reconheçamos a existência. E que essa capacidade de em si ser divino e de com o divi-no saber ser, tomando as rédeas da responsabilidade que é viver, transcende as leis de qualquer religião e coloca todo e qualquer ser humano no plano espiritual e energético que nos une, na origem que nos faz iguais.

A nós. Aos outros. À vida.

*in Tia Guida

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Karma

A Ciência, por diversas vezes, observa o mundo que nos é exterior e define leis para os comportamentos que o rege. Mas até que ponto não serão algumas dessas leis tão reais para o que nos é exterior como para aquilo que acontece no nosso interior? Até que ponto não serão algumas das leis físicas as mesmas que as leis espirituais?

Nestes 25 anos, se há crença pela qual me rejo e para a qual olho como se de uma lei religiosa se tratasse é o Karma. Nada para mim é mais certo do que a noção de que tudo o que se pensa, diz ou faz já está pensado, dito ou feito a nós mesmos.

“Para cada acção com uma força e um sentido surge sempre uma reacção de igual força e sentido oposto”, diz-nos a terceira lei de Newton. Lá está a Ciência a compreen-der o mundo exterior na perfeição… E se esta lei da física se aplicar ao espírito e à mente, também na perfeição? É difícil obter provas, mas é fácil vivê-las, se estivermos atentos, por vezes, nos pormenores mais simples. Analisemos, então, a lei física no plano espiritual e recordemos, aquando da aná-lise, quantas provas tivemos desta verdade, na nossa vida.

“Para cada acção com uma força existe sempre uma reacção de igual força”, isto é, para tudo o que se pensa, diz ou faz com uma certa magnitude, existe uma consequência

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directa de igual magnitude. Por exemplo, sinto a verdade desta lei sempre que cumpro a minha missão de chegar aos outros com uma mensagem positiva nas palestras que faço. Recebo o feedback directo das suas reacções e atinjo a fe-licidade gerada pela magnitude da acção que causei. Acção e reacção, na mesma magnitude, na mesma frequência. Pri-meiro, num plano energético, depois, até, num nível prático e material que se vê e toca. Pensemos, agora, na segunda parte da lei.

“Para cada acção com um sentido existe sempre uma reacção de sentido oposto”, isto é, para tudo o que se pensa, diz ou faz numa certa direcção, existe sempre a garantia de retorno, na direcção inversa. Seguindo o mesmo exemplo que dei, quando procuro chegar aos outros com algo que transmito nas palestras, sei que estou a transmitir, de mim para si, uma energia que acabará por retornar, de si para mim. O sentido do que envio sofrerá o efeito boomerang e tornar-se-á o sentido do que me enviam.

O segredo é perceber que, mais do que só as acções prá-ticas, os próprios pensamentos e as próprias palavras são acção. São acção da mente. E, por serem acção, gerarão reacção. Isto torna-nos responsáveis pelo que fazemos, mas também pelo que dizemos e pelo que pensamos. Pelo agir, na sua total acepção. Pela intenção que define a magnitude e o sentido desse agir.

Com esta aprendizagem, sei que, sempre que questiono o porquê do mundo não me estar a dar o que sinto querer, devo questionar o que estou a dar ao mundo. Em pensamen-tos. Em palavras. Em acções.

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O que damos, recebemos.

E por vezes a dobrar!

Falei-vos do Karma como crença basilar da minha fé. Diria mesmo que é uma das bases da minha vida. “Faz aos outros o que gostavas que te fizessem a ti”, porque quando o fizeres a alguém… Estará feito a ti mesmo. E o tempo encar-regar-se-á de nos mostrar isso. Conto, agora, uma pequena história das muitas que poderia contar, para ilustrar a prova real da materialização desta filosofia de vida. É tão simples e tão caricata que nunca a esquecerei.

Tinha eu cerca de 19 anos e estava a andar de táxi com a minha namorada de então. O condutor, por ter entendido mal as indicações que ela lhe dera, perdera-se no caminho e vira-se forçado a corrigir a rota, perante a nossa constatação do seu erro, a qual fora feita num tom completamente nor-mal. Contudo, perante tal evidência do lapso, e talvez por estar a ter um dia mau, soltou expressões muito desagradá-veis em direcção a quem me acompanhava. Respondendo-lhe que já estava a passar os limites da educação e que não compreendia o motivo da sua exaltação, se o prejuízo do erro seria, em última instância, nosso e não seu, acabei por pedir que parasse o carro e nos deixasse sair. Não me recor-do sequer se deixei que aquela situação se prolongasse até

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ao destino que pretendíamos. Antes de sair, apercebi-me de que o valor a pagar não chegava ao da nota que tinha como meio de pagamento, por escassos 50 cêntimos. Apesar da forma como havíamos sido tratados - ou talvez até por causa disso! - resolvi dar o valor total da nota e dizer que não que-ria os 50 cêntimos de troco. Saímos do carro e, nessa altura, digerindo o sucedido, disse à pessoa com quem estava: “não te preocupes. Tudo o que damos, volta para nós. E, muitas vezes, volta a dobrar. Vais ver”.

Nesse dia, fomos ao cinema, no El Corte Inglés de Lis-boa. Na fila das pipocas, encontrava-se um senhor mais ve-lho e mais alto do que eu. É o pouco que me recordo de si, mas ainda assim o suficiente para o ter eternizado na memória da lição de vida que me confirmou. Ia comprar qualquer coisa, mas arrependera-se e, no momento em que se arrependera, decidira virar-se para mim e, dirigindo-me um pequeno papel, dizer-me: “olhe, amigo, eu tenho este desconto, mas não o vou usar. Quer ficar com ele?”. Genui-namente feliz com a atitude daquele cavalheiro, aceitei. Mas a verdadeira felicidade surgiu quando olhei para o papel e me apercebi do valor do desconto: 1 euro.

O que demos voltou para nós. E voltou a dobrar.

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Lei da Atracção

Outro dos princípios mais espirituais pelo qual me rejo é o da lei da atracção. É difícil prová-lo cientificamente. Mas a fé não precisa de ser provada, para trazer benefícios à nossa vida e/ou à vida dos outros. Acredito que tudo o que visua-lizamos na mente, sentimos no peito e acabamos por obter na realidade.

Vejo o Universo como um catálogo onde tudo existe e tudo é possível. Nós, como subscritores desse catálogo, po-demos escolher dele o que quisermos. Mas, para obtermos dele o que queremos, temos que nos consciencializar de que somos uma espécie de torres de energia que emitem sinais, frequências, e que essas frequências serão responsáveis pelo que atraímos, da infinita lista de artigos que o Universo dis-ponibiliza. Coisas, pessoas, situações. Tudo é um reflexo do que a nossa mente e a nossa alma escolhem projectar. Atraímos o que somos no pensamento. Não são os opostos que se atraem, no que a este aspecto da vida diz respeito. São os semelhantes. Basta olhar em nosso redor, para nos apercebermos do que, no aqui e no agora, estamos a atrair para a vossa vida. O medidor biológico entre o que a mente visualiza e o que a realidade nos traz é a capacidade de sen-tir. É esse sentimento que nos deixa atentos às visualizações

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que a nossa mente está a produzir e que nos prepara para os resultados que ela vai atrair.

Pode não ser fácil provar a veracidade desta teoria, mas tentar viver através dela, treinando a mente a projectar ce-nários positivos e imaginando com total convicção o que se quer atrair e responsabilizando-nos por isso não trará, cer-tamente, qualquer elemento prejudicial ao nosso dia-a-dia.

Aceitem a responsabilidade que têm na criação da vossa realidade. Alinhem os vossos pensamentos e as sensações que eles vos causam com a capacidade de criar a realidade e responsabilizem-se, no aqui e no agora, pelo que de bom e de menos bom estão a atrair para o vosso dia-a-dia. Pelo que de melhor e de não tão bom atraem ou repelem do mapa da vossa vida.

Coisas, pessoas e situações… Tudo, na sua existência ou na sua ausência, é uma extensão do que existe ou não no nos-so interior e uma possibilidade de, através da sua manifes-tação, o repensarmos e por ele nos tornarmos responsáveis.

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Visualizar

Quem me conhece sabe o quão crente sou no poder da visualização, na nossa vida. Acredito verdadeiramente que tudo o que visualizamos no pensamento, se faz sentir na alma e se materializa na realidade, basta que alinhemos as acções com estes elementos. Para ilustrar isto que vos digo, conto-vos três histórias.

Trinaranjus

Por volta dos meus 16 anos, fui convidado pela mãe de um grande amigo de infância a ir a um casting. Se fosse seleccionado, poderia ficar num dos dois cartazes que a Tri-naranjus iria promover em força, por muitas das paragens de autocarro de todo o país, numa campanha de relançamento da marca, a qual duraria cerca de duas semanas, seria in-terrompida por uma de intervalo e voltaria por mais duas semanas. Sempre gostei do mundo da publicidade e sempre gostei de ter um público a “receber” e reagir ao meu tra-balho, contactando com ele. Ora, neste caso, conjugavam-se os elementos de que gostava. Perante essa conjugação, comecei a imaginar o quão divertido seria estar espalhado pela cidade e poder, numa posição de espectador, observar

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as reacções aos cartazes. Imaginei e tornei a imaginar. Fiz o casting com o entusiasmo e o nervosismo típico de quem começa a querer muito ser seleccionado. Fui escolhido para o trabalho. O cartaz ia ter duas versões e estaria espalhado pelo país durante quatro semanas, com cerca de uma sema-na a separá-las ao meio. Porém, o grupo de escolhidos para este trabalho ainda incluía outros elementos para além de mim e podia acontecer que, mesmo pagando o valor com-binado pelo trabalho produzido, o cliente preferisse um dos resultados finais testados no qual eu não apareceria de for-ma nenhuma, fosse em que versão fosse ou em que par de semanas fosse. Isto foi-me dito no fim de horas intensas de trabalho a fotografar para que o produto publicitário ficasse pronto. Como miúdo que era, fiquei ligeiramente triste por poder nem sequer ver o resultado do que idealizara por aí espalhado. Lembro-me perfeitamente do momento em que consegui libertar-me dessa ansiedade. Estava deitado, na minha cama, à noite, a ponderar a possibilidade de as expec-tativas que tinha me saírem goradas. E comecei a focar-me no lado positivo da experiência. Tinha trabalhado numa área que me apaixonava, tinha passado horas do meu dia a fazer algo que gosto, a conhecer gente que trabalha nesse meio, a colaborar para um processo de decisão que me cativa e que, comigo no resultado final ou não, já teria parte de mim em si. Além disso, iria sempre receber um bom valor pelas horas investidas naquele projecto. Nesse momento, comecei a sentir que podia entregar a possibilidade de aparecer ou não à Vida. Porém, ainda me custava imaginar que algum dos meus colegas aparecesse e eu não (sim, por fútil que hoje saiba que é, isto incomodava-me!). E repeti para mim mesmo que seria igualmente positivo vê-los a brilhar. Que, se assim fosse, eles mereciam e teria sido o melhor para to-

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dos. Repeti e agradeci à Vida a oportunidade que me dera de poder sequer estar a fazer estas reflexões, por ter traba-lhado numa área que adorava. Repeti até só sentir o que re-petia. Foi quando finalmente entreguei tudo o que desejava ao curso do Universo e me senti profundamente grato pela experiência, mesmo que ela não resultasse na visualização que fizera, que a vida começou a conspirar para que tudo ocorresse exactamente como desejara.

Fiquei no cartaz. Nas duas versões que existiram do mesmo. Durante as primeiras duas semanas, mas também durante as duas últimas. Desde aí, aprendi a convicção de que a visualização, associada à capacidade de deixar ir e à gratidão antecipada, cria sonhos maiores do que aqueles com que sonhamos. Estou certo disto. Pratico isto. E todos os dias vejo resultados desta forma de viver.

Coca-Cola

Um dos meus vícios de infância é a Coca-Cola. Embora, actualmente, o vício esteja sob controlo, a verdade é que, para sempre, terei uma ligação prazerosa à marca, apesar de todo o mal que possam dizer que causa ao organismo. Como tal, depois de ter feito o anúncio para a Trinaranjus, convenci-me de que, um dia, faria um para a Coca-Cola. Certa vez, resolvi criar um quadro de sonhos. Nesse qua-dro, inseri várias fotografias ou frases alusivas a coisas que queria realizar. Não estabeleci prazos. Fiz desse quadro de sonhos o fundo do meu ambiente de trabalho do computa-dor. Todos os dias, consciente e inconscientemente, olhava para ele e visualizava o que mais queria. Um desses sonhos era o de fazer um anúncio para a Coca-Cola. Em sua repre-

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sentação, tinha uma fotografia minha a imitar o conceito do anúncio da Trinaranjus, mas com uma Coca-Cola na mão. O tempo foi passando. Inscrevi-me na Valente Produções, para ir trabalhando num meio de que gosto, fazendo figura-ções e ganhando ainda algum valor monetário útil com isso. Fiz muitos trabalhos, para diferentes marcas e telenovelas/séries. Certo dia, recebi uma mensagem da agência a propor nova figuração para uma publicidade. Uma das perguntas da mensagem? Se teríamos algum problema em beber Co-ca-Cola. Inicialmente, fiquei feliz, por pensar que o anúncio envolveria, de alguma forma, consumir muita da bebida que eu mais gostava. Tinham-nos dito que seria passado num ambiente de cinema e que, como tal, seria necessário estar-mos a consumir tal produto, assim como pipocas. Só mais tarde nos foi revelado que o anúncio era para a própria mar-ca de bebida. O secretismo era justificado pela intenção do anúncio, como mais tarde percebemos. O conceito daquela publicidade consistia em pôr a figuração a consumir aque-le produto julgando tratar-se de Coca-Cola normal e, mais tarde, dar-lhes a conhecer que, na verdade, estavam a con-sumir Coca-Cola Zero, registando as suas reacções, procu-rando provar que o sabor que distinguia ambas era mínimo ou nulo. Saí de lá a achar que tinha sido um figurante entre muitos e que, como na maioria das figurações, o mais pro-vável seria que nem sequer aparecesse no resultado final. Já estava feliz por ter sido parte de algo que me divertira tanto e que me dera uma das minhas bebidas preferidas gratuita-mente. Mais do que isso: tinham-me pago para a consumir. Dias mais tarde, o anúncio começou a ser exibido. No re-sultado final, ficara em destaque. Mudaram a designação do vale de pagamento de “figuração” para “figuração especial”, o que se traduz num aumento de valor. Fiquei, por todos os

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motivos que imaginam, feliz. Mas ainda mais feliz fiquei quando, no final desse dia, liguei o computador e me deparei com o fundo do ambiente de trabalho que tinha definido. Sorri. Lá estava ela, no meu quadro de sonhos: a minha fo-tografia a segurar uma Coca-Cola e a materializar o desejo de, um dia, ser parte de um anúncio à marca. Um sonho agora realizado.

De novo, o Universo a mostrar que conspira das for-mas mais insólitas para nos dar exactamente aquilo que desejamos. Talvez não exactamente como pensámos, talvez não exactamente quando pensávamos, mas exactamente de acordo com a intenção e visualização que traçámos.

Bertrand

Quando escrevi o Tia Guida, fi-lo com a plena certeza de que este iria ser publicado e de que tudo iria correr bem. Não conhecia o mundo das editoras, não sabia o que espe-rar e, por vezes, não saber o que esperar é bom. Foi com a Chiado Editora que tudo acabou por se efectivar. Sabia que limites iria encontrar, principalmente sendo eu um au-tor completamente desconhecido. Sabia que ia ouvir muitos “nãos” e que teria de conquistar muitos “sins”, mas não tive medo. No meio de todo este processo de afirmação da obra (falar sobre tudo isso daria outro bom livro!), houve vários episódios que ilustram bem a veracidade do parágrafo intro-dutório deste capítulo. Falar-vos-ei de um que acho particu-larmente curioso.

Anos antes de saber que iria escrever um livro, quando apenas brincava com a hipótese de, um dia mais tarde, vir a ser reconhecido pelos meus trabalhos, era comum passear

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pelo Chiado com os meus amigos e, de cada vez que cru-závamos a montra da nobre Bertrand que embeleza ainda mais aquela rua, dizer-lhes “um dia, vou ter um livro escrito por mim em destaque, nesta montra”. Repetia-o, em tom de brincadeira, mas sempre com uma convicção plena de que, mais tarde, a brincadeira se tornaria numa verdade séria. A típica convicção que sai da minha boca e que encontra nos meus amigos uma certa compreensão que muito me aju-da, sempre que disparo coisas dessas. São meus amigos, já me conhecem e sabem que sou completamente maluco. Ou, como me costumam dizer as pessoas que não me querem ofender, “atípico”. Para eles, frases como aquela já não têm o efeito-surpresa que para alguns desconhecidos possam ter. Creio que, mais do que aceitarem as aparentes loucuras que digo, os meus amigos já acreditam nelas. O tempo tem-me feito conquistar entre eles, senão a sua crença, pelo menos o seu benefício da dúvida. Algo do género “isto pode não ser nada plausível, mas deixa cá ver se o tempo lhe vai dar razão”. E, neste caso, deu.

Depois de ter feito o lançamento do livro na FNAC do Cascais Shopping (obrigado, João, pela confiança deposita-da neste anónimo!), achei que devia batalhar por uma sessão no centro de Lisboa. Sabendo eu que as lojas mais centrais da cidade e a minha editora, na altura, não tinham a melhor relação, ponderei o risco e achei que, no caso de conseguir essa pequena grande conquista, seria produtivo fazê-la na Bertrand que, ao contrário da rede FNAC, ainda não ti-nha qualquer conhecimento ou dados comerciais positivos acerca do livro. Insisti e insisti, acreditei e acreditei e como acontece sempre com quem insiste e acredita… Consegui. Foi programada uma sessão para essa nobre e histórica loja. A primeira no centro de Lisboa. Quando o fiz, nunca, por

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qualquer segundo, me recordei do meu desejo de miúdo de ver na sua montra um livro meu exposto. Já tinha entregue esse desejo à corrente da Vida e não mais pensava nele. Até ao dia da sessão, o único sinal acerca da palestra que vira pela loja fora o de um cartaz a anunciar o evento. Porém, no próprio dia, a melhor das surpresas aconteceu.

Estava em casa, a tomar qualquer coisa na cozinha, quando a minha avó regressou da rua e começou a tagarelar, como habitualmente faz, quando está bem-disposta. Pelo meio, captei as palavras “livro” e “montra”. Numa fracção de segundo, desliguei-me do que fora dito antes e do que foi dito depois e, num entusiasmo muito infantil de quem sonhou e quase se esquecera do sonho por tanto acreditar na sua concretização, senti o cérebro e a alma a explodirem de contentamento pela possibilidade de estar a viver esse mo-mento, logo com um projecto com tanto significado humano para mim e para a minha família. Interrompi-a, procurando perceber se tinha captado bem o que me estava a dizer “es-pera… O livro está na montra?!”. Estava. “Mas só um livro ou vários?”. Vários. “Tens a certeza?”. Tinha.

Saí de casa a correr, entusiasmado. Queria registar aquele momento. Queria ficar com esse registo como pro-va de que, quando visualizamos e acreditamos muito num desejo e quando entregamos esse desejo à Vida, tudo se conjuga para que ele se manifeste, assim trabalhemos nós nesse sentido. Por mais improváveis que as circunstâncias vos pareçam, acreditem que, perante a força de uma visua-lização e perante a força de uma acção consigo alinhada, os resultados manifestar-se-ão na realidade. Era altamente improvável que, perante a relação que na altura existia entre a Bertrand e a minha Editora, perante o anónimo que eu era nestas andanças e perante a falta de indicadores comerciais

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que a rede Bertrand possuía sobre o meu jovem livro, aquele destaque todo lhe fosse confiado. Mas foi. Inesperadamente, a vida devolveu-me o meu desejo. Tudo se conjugou para que, inesperadamente, pudesse registar o momento com que sonhava desde miúdo.

Sonhem. Projectem na mente, sintam na alma e ajam para que se materialize na realidade. Quanto acreditamos muito numa verdade e quando a sentimos como certa, o Universo conspira a nosso favor.

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Deixar ir

Em certos momentos, o grande desafio da vida é abdicar do controlo da mesma e perceber que, nessa abdicação de controlo, estamos a assumi-lo.

Não tenho facilidade nenhuma em desprender-me do do-mínio que tenho sobre os meus ambientes. Desde pequeno, habituei-me a resolver situações. Habituei-me a ser chamado a resolver. Nesse hábito, desenvolveram em mim a crença de que, debaixo do meu controlo, tudo corre bem ou, pelo menos, melhor do que correria fora dele. Cria-se, assim, a ilusão de que só com este domínio sobre as coisas podere-mos ter a certeza de que tudo correrá exactamente conforme deve. Porém, a vida apressa-se a desmentir esta convicção.

Há fases em que somos brindados com a impossibilida-de de controlar. De ver efeitos práticos desse controlo. Pior: há fases em que somos forçados a ver como esse controlo, por vezes, é exactamente o que nos lança em situações com-pletamente descontroladas. Torturamo-nos com o que nos escapa, procuramos que não nos escape, esgotamo-nos e es-gotamos energias que deveriam sobrar para outras áreas da vida. Não sobram e também elas saem prejudicadas. Afun-damo-nos no descontrolo do nosso controlo e não percebe-mos que, mais do que controlar qualquer situação que nos é

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exterior, temos o poder de controlar as que nos são interiores e deixar ir tudo o resto.

A vida ensinou-me isso mesmo: podemos fazer até cer-to ponto, podemos caminhar até certo limite e devemos ser cuidadosos com as intenções e acções que praticamos, ponderando os resultados que queremos obter e sendo res-ponsáveis por eles. Mas haverá sempre um limite que não dependerá de nós. Haverá sempre um limite que dependerá dos outros ou mesmo de qualquer outra força que não co-nhecemos bem, mas que a cada momento que passa pode-mos conhecer melhor. Haverá sempre uma altura em que te-remos de confiar na corrente e entregar-lhe o que desejamos. Quando já nos esforçámos o suficiente, quando já fizemos tudo o que estava ao nosso alcance, quando lutámos, amá-mos e pedimos como ninguém… Há que deixar ir. Entregar a uma força que nos é superior e confiar no seu funciona-mento.

Só vivendo nesse espaço de liberdade e de entrega e confiança se vive no amor pleno pela vida e só nesse amor pleno se obterá, mais tarde ou mais cedo, mas sempre no tempo adequado, o que puramente ambicionamos obter.

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Sinais

Costumo dizer que o Universo, a Vida, o nome que lhe quiserem dar, está constantemente a dar-nos sinais acerca do que procuramos, acerca das direcções a adoptar. O que muda não é a existência desses avisos, mas antes a capaci-dade que temos de neles reparar.

Chuva e lágrimas no céu

Quase um mês após a morte da minha tia, e embora tivesse a plena convicção de que, no amor que lhe tenho, ela viveria para sempre e, de alguma forma, continuaria a existir, fui confrontado com um vazio difícil de ignorar. Sentia-me triste. Queria um sinal, seu ou da vida, que me comprovasse que estava certo nas minhas convicções. Que não tinha ensandecido por acreditar tão plenamente que a sua vida continuara depois da morte. Queria esse sinal e protestava por não o obter. Mas não tardou muito, até que tal acontecesse.

Havia já alguns dias que não falava exaustivamente do tema com uma das pessoas que mais me ouviu nessa fase de vida. Saí de casa com a minha namorada de então e retor-nei ao tema que, na verdade, nunca abandonara realmente.

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"Vais viajar em que dia? 11, não é? O dia em que faz um mês... Tu já viste como o tempo passa? Já passou um mês e ainda é tudo tão estranho. A vida dela acaba assim de um momento para o outro e a nossa prossegue, até que acabe também de um momento para o outro? É tudo tão estranho... Estamos aqui num dia e, no outro, não estamos mais. Eu só queria perceber para onde foi ela. Onde estará? Queria saber se está bem”. Palavras finais proferidas na esquina que liga a rua Garrett à Rua do Carmo, a que desce rumo ao Rossio. Palavras finais embaladas por uma familiar melodia que se iniciara precisamente aquando da nossa chegada a essa es-quina e que se prolongara pela descida. Uma melodia per-cepcionada primeiro pelo meu subconsciente e rapidamente materializada num arrepio que me percorreu o corpo, numa emoção que não resistiu a evidenciar-se em lágrimas espon-tâneas, deixando-me consciente do que se estava a passar. "Estás a ouvir a música que começou!? Estás a ouvir!?". A carrinha de fados do Chiado cantava uma das canções que mais marcara o percurso final terreno da minha tia e da mi-nha relação com ela: "As coisas vulgares que há na vida, não deixam saudade. Só as lembranças que doem ou fazem sorrir. Há gente que fica na história da História da gente. E outras de quem nem o nome lembramos ouvir”. Peguei no telefone, comovido e entusiasmado pelo evidente sinal rece-bido e procurei o contacto do meu tio. Queria que ele ouvis-se a canção e conhecesse a importância deste sinal. Porém, assim que estabeleci a chamada, o CD encravou. A canção deu lugar a outra que nada significava para nós e instintiva-mente desliguei o telefone. Aquele sinal fora para mim. Ex-clusivamente para mim. Tinha que o absorver e, só depois, partilhá-lo com quem ainda se encontrava emocionalmente

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vulnerável. De repente, a vida devolvera-me o sentido que procurava. Bastou estar atento e escutá-la.

Existe, contudo, outra passagem semelhante na minha vida, a qual quero aqui recordar. A capa do Tia Guida foi escolhida por mim e pela minha tia. O livro podia - e era isso que estava planeado - ter sido lançado com ela cá. Aliás, para todos os que já se aventuraram a ler essa partilha, tor-na-se evidente que o fim em aberto da história foi pensado e escolhido para que tal possibilidade se concretizasse. Po-rém, o tempo foi passando e a obra só pôde emergir depois de me ter despedido de si. Precisamente por isso, fiz questão de ser fiel às poucas combinações que fizéramos sobre a pu-blicação. Uma delas, a capa. A minha editora, inicialmente, torcera o nariz à possibilidade de ser aquela a capa do livro. Julgaram-na muito cliché e temiam que tal pudesse não re-sultar. E, embora eu reconhecesse que duas mãos dadas fos-se um conceito muito visto, a mensagem por detrás destas era a da minha tia e a minha e era essa mensagem que escu-tava, de cada vez que olhava para a capa. Gosto de capas que falam. De capas que comunicam, para lá de qualquer cliché. E eu sentia - e lutei por isso - que aquela seria a capa certa. A capa que comunicava a mensagem certa. Aceitaram que seria aquela imagem e ficaram de a trabalhar no sentido de fazer dela a melhor capa possível, de acordo com as minhas intenções para a obra.

Estava na rua, com a mesma companhia da história an-terior, junto ao miradouro de São Pedro de Alcântara, quan-do recebi um e-mail da Martina Ricci, a responsável pela capa, o qual continha um anexo que nunca mais esquecerei e que depressa me apressei a abrir. Mas a lentidão do meu telemóvel que, fora de casa, via a sua internet abrandar o ritmo, forçou a que o anexo fosse descarregado com alguma

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morosidade. A mesma que permitiu que a imagem que ele escondia fosse lentamente desvendada ao som de uma me-lodia triste que um artista de rua tinha começado a tocar. Segundos que pareceram minutos na ansiedade que tinha em ver o primeiro resultado final do trabalho feito sobre a imagem proposta para capa, voaram em slow motion e des-vendaram, enfim, os tons roxos e delicados que compunham a capa. Lá estava ela: TIA GUIDA. O título e os seus tons transportavam-nos para os da imagem e para a união e o amor que ela representa. Senti uma emoção percorrer o meu ser e transbordar no meu olhar, sempre ao som daquela me-lodia triste que se iniciara exactamente naquele momento. Dirigi-me a quem estava comigo e, mostrando-lhe o ficheiro já descarregado, disse-lhe “Epá, tinha logo de ser ao som desta melodia triste!? Mas já viste? Está exactamente como imaginei. Exactamente! Não alterava nada… Achas que a minha tia ia gostar? Gostava mesmo de saber e de ver a reac-ção dela…”. E, enquanto observávamos a capa em conjunto e a contemplávamos, felizes com o resultado final, a minha namorada de então começou a cantar, baixinho, a letra a que correspondia aquela melodia iniciada pelo artista de rua. “Would you know my name if I saw you in heaven? Would it be the same if I saw you in heaven?”. Arrepios percorreram o meu corpo e culminaram em lágrimas que brotavam de um olhar espantado, mas feliz, perante esta nova coincidên-cia. “Já reparaste!? Escuta a música que é! Repara na letra que estás a cantar…”. Emocionado, não fiquei com qualquer dúvida de que aquele fora outro do muitos acontecimentos que a vida e a sua nada aleatória forma de funcionar colo-cara no meu caminho, para que me apercebesse dos seus sentidos ocultos e, ao mesmo tempo, sempre tão evidentes. A música era de Eric Clapton, um artista que perdera o filho

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de 3 anos e que compusera essa canção a pensar em si. Nela, perguntava-lhe “reconhecer-me-ias, se te visse no Céu? Se-ria a mesma coisa, se te visse no Céu?”. Que chances exis-tiam de, por mero acaso, termos ido para aquele miradouro e de, por mero acaso, aquele e-mail ter chegado àquela exacta hora e de, por mero acaso, ter sido aberto naquele exacto momento e de, por mero acaso, ter demorado a descarregar ao ponto de tal acontecer em sincronia com o início de uma música que, por mero acaso, um artista de rua escolhera to-car naquele mesmo momento, uma música cuja letra come-çara a ser cantada por ele e pela minha companhia, também por mero acaso, exactamente no momento em que resolvo perguntar se a minha tia aprovaria a capa? Que acaso é este que funciona de forma tão meticulosa e perfeita? Que acaso é este que, constantemente, nos pede que o reconheçamos e nele confiemos? Eu não sei se o Céu existe, mas na chance de tal se verificar, naquele dia, o Céu cruzou-se com a Terra e, sim, tia, reconheci-te e, sim tia, foi tudo como sempre foi: deste-me o conforto de que precisava para saber que a mi-nha intuição estava certa e que aquela seria a capa da obra.

A minha editora ainda propôs alterar alguns detalhes da capa mas, como podem imaginar, depois desta história… Não deixei que acontecesse. Felizmente, todos os meus “ca-prichos” esotéricos sobre a capa foram plenamente respeita-dos. Obrigado à Chiado por isso.

A colecção de coca-colas

Depois de ter perdido a minha tia, o meu grupo de ami-gos começou a experimentar a dor da perda de perto. Avós, pais, irmãos… Houve de tudo. A vida funciona por fases

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e, de alguma forma que não compreendemos, prepara-nos para nos ajudarmos mutuamente, nas experiências que nos dá para viver. A perda é cruel, mas aproxima-nos. E, se já existia proximidade entre todos nós, estas perdas só a re-forçaram. No que nos deu de comum e no que de novo nos trouxe, para acrescentar ao que de comum vivêramos.

Uma grande amiga minha cresceu a cuidar do irmão, cuja saúde exigia fortes atenções. Era uma honra para si po-der amparar tal vida e, sempre que possível, poder acres-centar-lhe alguma, com a sua entrega total e a sua devo-ção incondicional. Assim era ela, assim eram os seus pais. Nunca conheci de tão perto caso mais inspirador de entrega total, desmedida, livre de egoísmo. Puramente humana e humanamente pura. Tenho a honra de os conhecer, de ter conhecido bem esta sua forma de funcionar em torno da inevitabilidade que a vida lhes entregou: perceber que, uns sem os outros, não somos nada. Porém, como tudo na vida tem o seu tempo, chegou o tempo de ver o irmão e o filho de que cuidavam partir. Nenhuma perda é boa, principalmente quando nos extrai deste mundo quem tanto mundo acrescen-ta ao nosso. Mas há perdas que custam mais a aceitar que outras. Nenhum pai merece ver um filho partir e nenhum irmão mais velho merece ver um irmão mais novo partir. Muito menos quando existe esta forte ligação. Esta relação única de anos e anos de vida, que deixa um vazio enorme, perante a sua ausência neste mundo. E foi o que aconteceu a essa minha amiga, após a morte do irmão. Entrou num vazio difícil de gerir. Tantas vezes, queixava-se por não receber nenhum sinal. Dizia-me: “André, tu não entendes? Tu tens a sorte de ter todas essas coincidências que podem ser in-terpretadas como sinais e isso ajuda-te a seguir em frente…

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Eu não tenho nada disso! Nada. Percebes? E estou farta de pedir um sinal…”.

Ouvir isto pode ser devastador. É devastador. Porém, em momento algum duvidei da minha crença de que, mais tarde ou mais cedo, esses sinais existem. Não são eles que deixam de se fazer ouvir, somos nós que deixamos de ser capazes de escutar. E, sem querer ser muito invasivo e perturbar a compreensível dor que a minha amiga sentia, tentei dizer-lhe isto. “Quando menos esperares, vais ver que algo aconte-ce e os sinais aparecem. Não podes é partir para o dia-a-dia em busca deles e muito menos com essa crença à priori de que os pedes e nenhum te vai ser dado… Confia. Confia que o teu irmão está bem. Confia que receberás qualquer sinal do mundo. Confia e vais ver que, quando menos esperares, a Vida falará contigo”. Não creio que, naquele momento, es-tas palavras tenham tido grande efeito. Que esperava eu? Quando se está a sofrer, não é sempre agradável ter lá o guru da positividade. Isso irrita e, por vezes, adensa a dor. Tenho aprendido isto, por experiência própria. Por vezes, só precisamos de alguém que nos oiça e aceite o nosso sofri-mento como normal e compreensível. Alguém que se limite a estar lá. Mas, naquele dia, não resisti em deixar-lhe uma semente de esperança. Tinha a plena convicção de que, mais tarde, ela produziria algo de bom dentro dessa minha amiga, alguém que tanto estimo.

Passaram algumas semanas - meses, até? - e a dor da minha amiga não esmorecia. Mantendo a forma como via a suposta ausência de sinais, sofria com ela e continuava a queixar-se disso. Até ao dia em que, para matar saudades, nos encontrámos e, no meio dessas queixas, me contou com alguma irritação um episódio que vivera dias antes. Co-leccionadora nata de latas e garrafas de Coca-Cola, estava

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sempre em busca da próxima para adicionar à sua colecção. Quem já teve o privilégio de ir a sua casa comer uma das maravilhosas sopas que só a sua mãe sabe fazer e privar daquele ambiente familiar em que tão bem recebido se é, já pôde verificar, com os seus próprios olhos, a existência desta original colecção, ainda em fase embrionária. Estávamos no supermercado e, passando pela secção de tal refrigerante, fomos confrontados com a nova campanha de marketing da marca: latas repletas de nomes masculinos e femininos e até de nomes de relações afectivas que estabelecemos com os outros (“a tua namorada”; “a tua mãe”; “o teu melhor ami-go”). E foi aí que, indignada, disparou a história que tinha para contar: “Tu queres saber o que me aconteceu!? Nunca tinha bebido uma Coca-Cola das desta colecção. Nunca! No outro dia, estava a almoçar e pedi uma. Então não é que a Coca-Cola que a mulher me entrega diz “o teu irmão”?”. E, finalizando esta história com uma delicada asneira, disse “já viste isto? Parece a vida a gozar comigo”. Sorri. Sabia da existência daquela história, por ter visto uma publicação sua em redes sociais a lamentar-se com alguma irritação acer-ca de tal acontecimento. Aproveitei o balanço do momento e questionei “será a vida a gozar contigo ou a vida a falar contigo? Não eras tu que querias um sinal? Não eras tu que estavas sempre a pedir qualquer conforto da vida relativo ao teu irmão? Então, aí tens! A primeira lata de Coca-Cola que te calha desta campanha é, de todas as hipóteses possíveis e imaginárias, a que diz “o teu irmão”. E tu escolhes olhar para isso de forma negativa. Não és tu que coleccionas Co-ca-Colas?”. O seu ligeiro ar de espanto, tão bem desenhado por aqueles seus olhos expressivos e únicos (uma das suas imagens de marca), denunciava uma alteração de perspec-tiva sobre o assunto. “Pois é, nem sequer te lembraste da

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tua colecção, pois não? Já viste? Pediste tanto um sinal, a vida deu-to e tu escolheste desprezá-lo. Tu pensas o quê? Que as coisas que me acontecem a propósito da minha tia só têm uma leitura? Claro que não! Mas eu escolho olhar para elas da melhor forma possível. Da forma que eu acho que a honraria e que honraria o amor que lhe tenho e que ela me tem. Faz isso! Tu amas o teu irmão. Foste a melhor irmã do mundo para ele e ele, dentro das limitações que a saúde lhe dava, foi o melhor irmão do mundo para ti, no sentido que devolveu à tua vida e que para sempre nela ficará. Honra esse amor e abraça cada pretexto que a vida te der para o re-cordares. Eu vi que fizeste uma publicação nas redes sociais a lamentar-te da existência dessa Coca-Cola… Mas tinhas a hipótese de ter feito exactamente o oposto. Tinhas a hipótese de ter ficado feliz com essa recordação, de ter agradecido essa recordação, de ter agradecido essa coincidência e de a guardares para sempre em ti e, até, partilhares com outros que vivam o mesmo, de forma a inspirá-los. Pensa nisso. Às vezes, ou talvez sempre, os sinais só o são realmente se nós os tornarmos nisso”.

Dias depois, abri as redes sociais e consultei a sua pági-na. Apagara a sua publicação a lamentar-se sobre o sucedido e substituíra-a por uma nova publicação que me arrancou um genuíno sorriso, acompanhado de uma genuína como-ção: uma fotografia da sua tímida, mas sólida, colecção de Coca-Colas com o novo elemento de que se orgulhava: “o teu irmão”. A fotografia não tinha legenda. Não era neces-sária. Há legendas que se extraem das leituras do que não se lê. Esta era uma delas.

Estas três histórias ilustram a crença que tenho de que a vida está constantemente a falar connosco. A fala existe,

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para lá da escuta, mas não é percepcionada sem essa escuta. Significado e significante andam de mãos dadas, neste jogo de sentidos do aparente não-sentido da vida. Não nos deve-mos desligar do que nos é dito pelo Universo que nos cerca e não nos podemos desligar da hipótese de, com o que nos é dito, dizermos. Somos constantes receptores e emissores de coincidências que podemos converter em sinais, se souber-mos atribuir-lhes responsavelmente sentido, no sentido que lhes soubermos descodificar. Não há unilateralidade pura na comunicação. Em nenhuma comunicação. Aquela que a vida estabelece connosco não é excepção.

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Os porquês

Embora já tenha referido uma reflexão semelhante no meu primeiro livro, não poderia criar uma compilação de aprendizagens feitas em 25 anos e excluí-la, com medo de me estar a repetir. Ela é importante e decisiva na forma como encaro a vida e merece ficar aqui registada, até para a eventualidade de me estarem a ler pela primeira vez: existe uma diferença entre o “porquê” e o “para quê”.

“Na vida, quando nos acontece algo que classificamos como injusto e negativo, temos tendência imediata a ques-tionar-nos “porquê?”. Mas, no fundo, colocar essa questão nada mais é do que recusar a realidade e recusar a aprendi-zagem que a realidade traz consigo. A pergunta certa a fazer é “para quê?”. Ela implica aceitação e capacidade de olhar a realidade nos olhos, de maneira a, no seu âmago, encontrar a lição a extrair. Só essa lição nos permitirá seguir em frente, dar o salto que a realidade árdua com que nos deparamos nos pede.

Não importa o “porquê”. Nunca o saberemos ao certo e, mesmo que o soubéssemos, de pouco adiantaria. O impor-tante é entender o que podemos fazer com aquilo que esta-mos a viver, com aquilo que temos como garantido no agora. Explorar as suas potencialidades e viver a melhor vida pos-sível, connosco mesmos e com os que nos rodeiam”*.

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Transferir a importância da realidade dos “porquês” para realidade dos “para quês” é converter a incapacidade de descobrir sentidos na capacidade de atribuir sentidos e, nessa capacidade de atribuir sentidos, assumir a responsabi-lidade de fazer do que nos acontece a melhor aprendizagem possível e, desses acontecimentos e dessas aprendizagens, extrair as melhores consequências possíveis.

*in Tia Guida - Porquê vs Para quê?

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Aquilo em que nos focamos expande-se

Até que nos apercebamos do poder que a lente da nossa mente possui sobre a forma como foca e, consequentemente, molda a realidade, somos apenas peões de um jogo cujas regras ignoramos e que permitimos que seja jogado em nos-so lugar.

Penso nas lentes da mente como as de um microscópio. Quando focamos a atenção da lente de um microscópio so-bre determinado elemento a ser analisado, a informação que obtemos sobre ele é maior. Expande-se, à medida que nos focamos mais nele. Assim é com tudo o que nos acontece na vida e que a nossa mente percepciona. O bom e o menos bom, quando focados, expandem-se.

Como tal, cabe a cada um de nós treinar a mente para que, perante uma adversidade, procure rapidamente a com-pensação positiva e se foque nela. Mais do que procurar a compensação na adversidade, há que procurar tudo o que já temos de bom na nossa vida. Focarmos a nossa atenção nesses elementos, permitir que eles se expandam na infor-mação detalhada positiva em que se desdobram e deixá-la contaminar cada poro do nosso ser, com a convicção de que o que temos é bom. A mesma convicção que nos fará sempre ter mais e melhor.

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Gratidão

Não importa quantas orações, quantas regras religiosas se cumpram, quantos actos de bondade se pratiquem. Se não existir gratidão na alma, a alma não se tornará receptiva a tudo o que de positivo existiu, existe e existirá na sua vida.

Ser grato ajuda-nos a mudar o foco da nossa lente men-tal. Ajuda-nos a canalizar a nossa atenção para o que temos de positivo e a expandir a sensação positiva do que tal nos traz. Ser grato é saber olhar para os pequenos grandes ele-mentos da nossa vida e deixar-nos invadir pela sensação de plena realização que eles nos trazem, simplesmente por te-rem existido. É abrir um caminho de energia para que eles se repitam, nessa gratidão que criámos. Estou certo disso. E tudo pode ser agradecido, desde que em tudo reconheçamos uma utilidade de crescimento e realização pessoal. Até os acontecimentos mais trágicos possuem em si uma chance de agradecimento.

Porém, se não estivermos preparados para agradecer grandes e complexas situações, comecemos pelas mais pe-quenas. Elaboremos, a cada dia, no momento de adormecer, uma lista mental ou escrita dos motivos pelos quais valeu a pena estar vivo - o rotineiro café que tomámos de manhã e que nos percorreu o corpo numa sensação de prazer única; o desinteressado “bom dia” que recebemos de um colega

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de trabalho; a eufórica presença do nosso cão, quando nos recebeu em casa… - Sintamos essa gratidão. Deixemo-nos invadir por ela. Projectemos novos elementos para o dia se-guinte e confiemos que eles existirão de novo, porque na gratidão que lhes temos… Eles serão merecidos. Repitamos este ritual de nos enchermos de gratidão todos os dias e to-dos os dias sintamos os resultados intensificarem-se.

Viver em gratidão é o suficiente para permitir que novos elementos que nos deixarão gratos entrem na nossa vida e para reforçar a presença dos que nela já existem e queremos que continuem a existir. É despertar a consciência para esses elementos e saber que, nesse despertar, não mais teremos motivos para a adormecer.

A gratidão é o caminho sem retorno que nos conduz à verdade de que a vida é uma benção. A maior de todas elas.

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Não existe Sorte

Nada, na vida, é responsabilidade da sorte ou da sua au-sência.

Sei que muitos já estarão a revirar os olhos, perante esta afirmação e a recordar todas as vezes que a falta de sorte vos bafejou ou mesmo a exaltar aquele momento específico em que a sorte vos sorriu inesperadamente. Mas eu não acredito nisso. A sorte é apenas uma desculpa para todas as razões transparentes e ocultas do que fazemos acontecer e do que nos acontece. Nada, para mim, tem a ver com sorte.

Acredito numa ordem Divina que se torna difícil de compreender para os sentidos humanos. Acredito numa ra-zão para todo e qualquer acontecimento. E acredito que todo e qualquer acontecimento pode ser influenciado, directa ou indirectamente, por nós. Não deposito na sorte ou na sua au-sência a falta de resultados que ambiciono ou a obtenção de resultados negativos que rejeito. Deposito em mim e, possi-velmente, numa qualquer ordem que me transcende e a que, precisamente por me transcender, dou o nome de Divina, a responsabilidade de tudo o que acontece e aceito que, nesses acontecimentos, não existe nada de casual ou aleatório.

No ano de 2010, comentei um post de Facebook da Ma-nuela Moura Guedes, acerca do que dizia sobre José Sócra-tes. Pronunciei-me sobre o que, para mim, pareciam ser su-

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cessivos ataques à liberdade de expressão, camuflados em jogos de poder que, na minha óptica, se revelavam evidentes, mas que a tantos pareciam escapar. Nesse meu comentário pela liberdade e pela minha admiração por quem a exercia desvendando o oculto do poder, assumi-me como estudante de Comunicação. Um jornalista da equipa da Manuela, o Filipe Mendonça, reagiu ao meu comentário, gostando do mesmo e felicitando-me pelo seu conteúdo. Adicionou-me e incentivou-me a não desistir de ser como aparentava e a concluir os estudos que estava a seguir, pois acreditava que a profissão precisava de pessoas como eu. Mais tarde, acrescentou que seria para si um privilégio, no tempo de-vido, ensinar-me o que sabia, num estágio na redacção que enquadrava. Do nada, estava estabelecido um contacto pro-fissional que, mais tarde, se converteria em estima pessoal. O estágio, por diversos motivos, acabou por não se efectivar, mas o apoio e o acompanhamento próximo de tudo o que escrevíamos e partilhávamos na internet manteve-se cons-tante. Criei um respeito imenso pelo Filipe, pela sua maneira de ser e, acima de tudo, pela sua maneira de sentir. A vida. Os outros. A vida nos outros. Em Fevereiro de 2013, o Filipe estava a cargo de uma reportagem que faria parte das várias, desse mês, que celebravam os 20 anos da TVI. Precisava de um representante para quatro gerações diferentes, separadas por vinte anos (20 - 40 - 60 - 80). A ideia seria acompanhar o dia de anos de cada um, evidenciando as diferenças e se-melhanças entre estas gerações, na forma de olhar o mundo. E precisavam que cada uma dessas quatro pessoas celebras-se o seu aniversário no mesmo dia: 1 de Fevereiro. O meu dia de anos. O Filipe contactou-me, propondo-me que fosse parte desse trabalho jornalístico. Naturalmente, aceitei. Foi dos dias mais especiais da minha vida, por me permitir ser

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parte de um meio que me apaixona e por me permitir, atra-vés desse meio, veicular as mensagens que pudesse veicular, nas respostas às perguntas que o Filipe tão bem me colocou. Conhecemo-nos pessoalmente aí, mas com o Filipe é fácil sentir que nos conhecemos há uma vida. É assim com quem nasce abençoado pelo dom humano da comunicação e da empatia. Dom esse que fez que o Filipe, com a sua distinta sensibilidade, sabendo do cancro da minha tia, lhe colocasse uma questão cuja resposta sabia que eu iria gostar de ver registada, mesmo que não fosse emitida com a reportagem final: “Se a tia pudesse definir este sobrinho numa palavra, em qual seria?”. E a minha tia, emocionada, respondeu “um amigo. É um amigo. E é um amor”. Palavras tão simples, mas tão sentidas, que nos arrancaram lágrimas sinceras. Foi o meu último aniversário passado com a minha tia. Se não fosse o Filipe e se não fosse pela sua colega, a pura e doce, Cristina Santos Costa - que também conheci nos sucessivos contactos que fui estabelecendo com a TVI - não teria o registo físico dessa experiência tão emotiva. Como tal, e por ter sido incrivelmente humano comigo e com os meus nesse dia, quando mais tarde publiquei o Tia Guida, quis oferecer-lhe um exemplar, com a merecida e personalizada dedicató-ria. Como reacção, o Filipe publicou no Facebook uma par-tilha sobre o livro, sobre mim e sobre aquelas palavras que lhe dirigira. No mesmo dia em que o fez, recebi um pedido de amizade do Manuel Luís Goucha - “O Goucha de todos nós”, como lhe chamo - e uma mensagem profissional deste ícone do nosso panorama televisivo, propondo uma conver-sa sobre o livro, no seu vencedor talk show das manhãs. Foi graças a essa conversa que o Tia Guida se catapultou para patamares que poucos previam possíveis. Foi muito graças a essa conversa que a FNAC acreditou em mim, foi graças

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a essa conversa que a FNAC viu a sua crença produzir re-sultados práticos que transcenderam os já obtidos no dia do lançamento e que lhes tinham dado algumas luzes sobre a possibilidade de sucesso do projecto, foi graças a ela que outros programas de televisão - da mesma e de outras esta-ções - e de rádio conheceram o livro e o apoiaram de alma e coração, com uma entrega muito genuína que toda esta conversa inicial permitiu desencadear. Tenho, para sempre, um profundo respeito, uma imensa admiração e uma enor-me gratidão pelo Manuel Luís Goucha. Ensinou-me a hu-mildade de vestir uma causa que nos é alheia e a humildade de usar a nossa plataforma como rampa de lançamento para essa mesma causa. Foi graças a si, ao seu profissionalismo, à forma como se entregou ao livro e ao projecto, que me dei a conhecer como “jovem escritor”. Mais do que como “jovem escritor”, como alguém que queria passar algo ao mundo. E esse “alguém” e esse “algo” só puderam fluir e ficar bem de-finidos pela irrepreensível abordagem que o Manuel e toda a sua equipa resolveu dar ao tema. Nunca esquecerei o seu gesto e o seu exemplo e para sempre o transportarei comigo, em cada passo profissional que der.

Compreenderam a dimensão de tudo o que aqui exem-plifiquei? Poderão dizer que todos estes eventos ocorreram por sorte… Eu discordo. Se olharmos para eles a esta dis-tância, vemos como tão meticulosamente encaixam uns nos outros, como se possuíssem um design muito próprio. São uma série de eventos que formam uma cadeia de sucessões que estão muito para lá da sorte, nos propósitos humanos que nos permitiram cumprir. Nada foi sorte. Nada. Além de que a sorte como a definem não nos bastaria, para que cada momento destes fosse verdadeiramente bem aprovei-tado e gerasse resultados. Aqui, acho pertinente destacar a

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definição de sorte que tantas vezes escuto Oprah Winfrey partilhar: “sorte é quando a preparação se encontra com o momento da oportunidade”. Se não estivermos preparados, de pouco nos valem os momentos e as intersecções que a vida nos proporciona como oportunidades.

Tudo possui uma ordem e toda essa ordem faz acontecer algo que possui um sentido e de todos os sentidos existe qualquer coisa a ser extraída… E nenhuma dessas extrac-ções se reduz a sorte. Essa é, nestes 25 anos, a minha crença.

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A Natureza

devolve-nos a nossa

O mundo é um convite constante a desligarmo-nos do que ele, natural e gratuitamente, nos deu. Mas tenho tendên-cia a recusar convites fáceis. Convido-me a mim mesmo a, sempre que possível, conectar-me exactamente com o que somos aliciados a ignorar: a Natureza.

Amante assumido da escrita, da comunicação e da par-tilha constante dessa escrita e dessa comunicação, sou uma fonte de energia que precisa de constante renovação. Somos todos. Sempre que vou dar uma palestra sobre o que escrevo ou sempre que despendo algum tempo a escrever intensa-mente, sinto-me feliz e realizado, mas tantas vezes exausto. Uma exaustão boa, é certo. Mas uma exaustão que requer uma revitalização. Na busca por essa revitalização, reencon-tro-me com o que tantas vezes, pelo mundo que nos cerca, sou aliciado a deixar para trás: os elementos naturais que pautam as nossas paisagens.

Caminho ou sento-me junto ao rio, torno-me observa-dor dos miradouros mais incríveis da cidade que é Lisboa ou aventuro-me pelas suas mais pitorescas e sinuosas ruas e busco nelas os seus elementos naturais ou mesmo a arqui-tectura que, de tão antiga, já se tornou natural na paisagem

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em que se insere. Medito. Contemplo e torno-me parte do que contemplo. E, nessa contemplação, volto ao centro de mim. Observo o que me cerca e compreendo que faço parte desse funcionamento equilibrado. Inspiro. Expiro. Encontro vida em cada elemento que me é exterior. Inspiro a sua vida e expiro a minha, até que se confundam. Renovo-me. Pu-rifico-me. Centro-me. Entrego ao que me cerca o que me fazia sentir cercado e o que me cerca devolve-me a energia necessária para a expansão do meu ser. Sinto-me pleno com o Universo. Recupero qualquer inspiração perdida, recupero qualquer vontade adormecida. Sou pleno, porque faço parte da plenitude.

Curioso como a Natureza nos parece ter sido dada para nos devolver sempre a nossa.

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Morte: Pôr-do-sol

ou nascer-do-sol?

A morte da minha tia marcou-me profundamente. É ine-vitável falar nela, em todas as lições que me fez aprender, muitas das quais fazem sentido ser aqui partilhadas. Esta diz respeito à ilusão que a morte representa. E só me aper-cebi realmente dessa ilusão numa certa manhã que utilizei para contemplar o sol que nascia e num certo fim de tarde que utilizei para contemplar o sol que se punha.

Autoestrada. A caminho de uma escola que me forçou a um despertar muito precoce. A paisagem de um verde imen-so surge desfocada na janela do carro que cumpre as veloci-dades do piso onde faz girar as suas rodas. Ao fundo, entre a vegetação, o sol emerge da terra. Aparece, nos seus tons alaranjados, que tão bem pintam a tela que é o céu.

Ribeira das naus. O rio embate contra uma semi-praia que timidamente se deixa conhecer. Ao fundo, entre os pi-lares da ponte, o sol afunda-se no rio. Desaparece, nos seus tons alaranjados que tão bem pintam a tela que é o Tejo.

E é exactamente aqui que o pôr-do-sol e o nascer-do-sol se cruzam. No momento em que emerge do horizonte e no momento que nele se afunda. Registasse eu esse momento em fotografia e não vos dissesse eu se se tratava do nasci-

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mento ou da morte, nunca saberiam distingui-lo. Naquele exacto momento em que o sol está a emergir ou a afundar-se no horizonte, não se distingue a morte ou a vida. E é aqui que faço o paralelo com o nascimento e a morte de todos nós, no horizonte que é a Vida.

Não será o nascimento uma forma de morte e a morte uma forma de nascimento? Não serão eles produto e produ-tores dos mesmos tons alaranjados que pintam as mesmas telas? Se o nascimento e a morte se confundem no horizon-te, não serão eles exactamente a mesma coisa? Uma transi-ção. Uma simples transição. Um nascimento que se transfor-ma em morte, morte essa que se converte em nascimento, na eterna linha horizontal que é a da vida. Uma linha que não separa o que nasce do que morre: une. É tudo o mesmo. Tudo parte do mesmo processo de constante transição. Essa transição só se confunde com o início ou o fim, por culpa dos sentidos.

Não há princípio, nem fim. Há continuo. Há vida.

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O equilíbrio dos animais

É irresistível partilhar aqui uma outra aprendizagem curiosa que o Speedy trouxe até nós: a de que os animais existem para nos equilibrar.

Há seis anos, depois de ver negado o meu sonho de ter um cão durante tanto tempo, resolvi empenhar-me nesta missão de convencer a minha mãe a permitir a entrada de um amigo canino no nosso seio familiar. O meu irmão Gon-çalo - na altura com cerca de 11 anos - tinha enfrentado he-roicamente a sua doença de Crohn. Sofrera muito, superara muito. Vivera muito. Muito para lá do que a idade devia per-mitir. Algumas mazelas desses tempos e dos tempos contur-bados do casamento dos meus pais haviam sobrado na alma do meu irmão. O Natal aproximava-se e o meu pai pretendia oferecer uma PlayStation3 aos filhos. Ia gastar 400€ num presente que, mais tarde ou mais cedo, como praticamente todas as coisas materiais, acabaria por perder a sua utilida-de, seria ultrapassada por modelos superiores e acabaria por ser desprezada pelos meus irmãos que, como miúdos que eram, se fidelizavam mais à efemeridade da novidade do que à eternidade do que veio para permanecer na mensagem que trouxe. Mas, se os miúdos nem sempre entendem isto, os pais podem entender por si e foi o que tentei fazer ver aos meus, quando lhes propus que aquele mesmo dinheiro fosse

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aplicado em qualquer coisa mais simbólica que para sempre se eternizasse na sua vida, na dos meus irmãos e na minha. Na nossa, enquanto família. É que, embora separados, esta era uma decisão que tinha, naturalmente, que ser tomada em conjunto. E podia ser uma boa decisão. Achei que, pe-rante as tais consequências das vivências, seria justo e bom para o Gonçalo ver o seu sonho de ter um amigo canino concretizar-se. Seria uma excelente forma de combater as fragilidades que herdara com as densas experiências da vida que fortemente enfrentara. Ter ali um amigo presente, que pudesse abraçar e de que pudesse cuidar, sempre que se sen-tisse impelido a isso. Tendo ali uma fonte de amor constante. Argumentei nesse sentido, num e-mail que enviei à minha mãe. Transcrevo aqui o parágrafo que fala especificamente dos meus irmãos e particularmente do meu irmão Gonçalo: “(…)Os manos têm passado por muito e não é por isso que são menos felizes. Todavia, na minha humilde opinião, acho que esta seria uma excelente oportunidade de lhe retribuir os sorrisos que, durante alguns tempos, lhes foram retirados pelas ditas "circunstâncias" da vida. Eles merecem. Eles sa-berão ter o que merecem. Eles valorizarão e ficarão comovi-dos como nunca, estou certo disto. Para o Gonçalo, um ami-go canino representará uma ajuda óptima. Além de começar a combater medos inconscientemente - uma vez que estará sempre acompanhado - acabará por ficar mais tranquilo no dia-a-dia. Terá um companheiro para tudo: chorar, brincar, estudar, rir ou até mesmo descansar(…)”.

O Speedy veio para o nosso lar. De todos, o que reagiu de forma mais emotiva à surpresa foi o Gonçalo. Nunca me esquecerei do choro em que rebentou, perante o presente que recebeu. Do seu sentido “obrigado, pai” e do seu sentido “obrigado mãe”, que soltou entre lágrimas felizes. Lágrimas

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que choravam as vitórias difíceis que tivera de conquistar e que, talvez pela primeira vez em meses, se permitiam a sentir um lado mais doce da vida. Como dizia… O Speedy veio para o nosso lar. Um mês depois, foi internado. Este-ve perto da morte. Mas, tal como o Gonçalo, revelou ser um vencedor. Depois de assistido pela equipa veterinária, descobriu-se o que tinha. A minha mãe e eu reunimos com a veterinária que cuidara de si. Com um ar reticente, falou-nos do que se passava com o nosso amigo de quatro patas: “O Speedy tem um problema de saúde crónico, com o qual, naturalmente, terá de viver para o resto da vida. Não é mui-to grave, é controlável, mas ainda assim… É um problema. Não sei se alguma vez ouviram falar nesta doença… Trata-se da doença de Crohn”.

Arrepios. Arrepios percorreram o meu corpo e, estou em crer, o da minha mãe. Mas não conseguimos evitar sor-rir. Acho que a veterinária deve ter pensado, nos escassos segundos iniciais daqueles sorrisos, que éramos loucos. Mas depressa lhe expliquei a loucura: “se sabemos o que é? Este cão veio para a nossa família para ajudar o meu irmão, que tem exactamente esse problema de saúde”. Difícil de acredi-tar, não é? Também nos pareceu. Porém, depois desta minha explicação para os sorrisos, a médica veterinária adicionou uma informação à conversa: “sabem, é muito comum isto acontecer, entre cães e donos! Não existe uma explicação científica para estas coisas… Mas elas acontecem. Nós lida-mos com muitos casos deste género. Casos em que os cães ficam exactamente com os mesmos problemas de saúde que os donos”.

Para mim, a explicação é óbvia, mesmo que não seja nada científica. Os animais não estão neste mundo para nos servir. Estão neste mundo para nos equilibrar e para que os

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equilibremos. Para connosco serem um, na unidade que é a Natureza. É óbvio que existe uma relação de interdependên-cia, a vários níveis, com as diversas espécies, e que umas se sobreporão sempre a outras para sobreviver, o que natural-mente nos inclui. Mas isso não nos dá o direito de desres-peitar esta Natureza que nos cerca. Não nos dá o direito de esquecer este equilíbrio e de, todos os dias, deixarmos de ser gratos por ele, mesmo - ou principalmente - quando nele temos de interferir.

Esse equilíbrio está visível em tudo. Nos sinais me-nos óbvios e nestes, como o que aqui conto, tão difíceis de ignorar.

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O corpo e a alma

Tenho uma relação especial com a forma como olho para as doenças e, por vezes, sou visto como um louco, por acreditar no que acredito. Mas é esta a minha crença: o cor-po manifesta a alma e muitos dos problemas de saúde com que nos deparamos oferecem uma possibilidade de melhor compreender a nossa alma.

A minha tia Guida era altamente nervosa. Sempre que se irritava, podia entrar numa corrente de stress grande, difícil de controlar. Depois, passava-lhe como se nada fosse. Mas, naquele momento de stress, gastava uma energia incrível. O cancro que teve manifestou-se no estômago e nunca es-quecerei a ironia que ela me apresentou, quando se enervou a primeira vez, depois de saber que o tinha: “sabes, sempre que me começo a enervar muito e a descontrolar-me, sin-to isto aqui a causar-me uma impressão e a impedir-me de me descontrolar tanto”. Concordei consigo. Acredito que o corpo nos pede para lhe prestarmos atenção. Primeiro, com alguma educação e cortejo. Depois, tornando-se bruto. Cada vez mais bruto. No caso da minha tia, aquela brutalidade com que o corpo a brindara forçara-a a apreciar melhor a possibilidade de não despender tanta energia desnecessária em discussões e assuntos menos importantes. Não é que te-nha conseguido fazê-lo sempre - afinal, era humana! - mas

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aceitou o convite que o corpo lhe fez e aprofundou o co-nhecimento que tinha sobre si mesma, ao ponto de se cons-ciencializar de que, quando a alma se inquietava e queria explodir em stresses emocionais, o cancro a estava a aler-tar com um incómodo, para que se acalmasse, verbalizando com mais serenidade o que sentia e sem explosões e aprovei-tando o que realmente importava, sem se prejudicar mais, emocional e fisicamente.

Outro exemplo que quero dar prende-se com o impacto que os meus 21 e 22 anos tiveram em mim, depois de tudo o que vivi. Perante o cancro da minha tia, a perda da mi-nha tia, o fim da relação com a minha namorada de então, a iminência de deixar o curso pendente e a carta de condução por alcançar, sofri distúrbios emocionais como nunca sofre-ra antes. Vivi na alma verdadeiras dores que me arrancaram pedaços emocionais difíceis de repor. Foi esta a sensação com que fiquei: estavam a ser arrancados pedaços de mim, a cada experiência de perda e de insucesso que obtinha. E essa sensação gera pensamentos infindáveis, emoções infindá-veis, insónias continuas. É certo que, com o tempo, converti as perdas nos ganhos possíveis e extraí dessas experiências o possível, para me fortalecer humanamente. Porém, fisica-mente, é visível a diferença entre o que era há quatro anos e o que sou hoje, e muito devido ao impacto emocional que a experiência teve em mim. Pela primeira vez em 25 anos, noto uma diferença física de algum desgaste que nunca tinha notado. Não se trata de estar mais bonito ou mais feio. Nada disso. Trata-se de estar mais vivido. Aquilo a que as pessoas chamam “envelhecer” eu chamo “passar pela vida”. Apren-di que, efectivamente, o passar do tempo se materializa no corpo, perante as emoções fortes que sentimos e que deixa na alma a confirmação de que a vida aconteceu, durante al-

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guma fase da nossa vida. É isso que vejo na forma como, em pouco tempo, comecei a perder cabelo e acelerar o processo genético de imitar os meus familiares masculinos ou mesmo no olhar que para sempre se transformou nos contornos que o cercam, desde que vivi as densas emoções da perda. Sei reconhecer em mim elementos que não voltarão nunca a ser como antes e estou plenamente consciente que eles são a materialização física do que senti na alma. Vejo-os em mim e, por conseguir vê-los em mim, vejo-os nos outros.

Por estranho que vos pareça, consigo identificar a beleza da vida nessa possibilidade que o corpo oferece de nos con-tar o que alma escreve, de assim a lermos e a ajudarmos a redigir parágrafos melhores, pois compreendemos enfim o impacto real que os textos que a alma produz têm no suporte físico em que ela se escreve - o nosso corpo.

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Seres humanos

Poucas coisas mudaram a minha forma de ver a vida como o livro Um novo mundo de Eckhart Tolle. E poucas me ajudaram a ver a morte como o desaparecimento físico da minha tia Guida. É sobre estas duas vertentes que aqui reflicto, para explicar o meu entendimento sobre o que é ser um “ser humano”.

Eckhart explica-nos que, mais do que seres humanos, todos somos seres e todos somos humanos. Com isto, expli-ca que as duas palavras que utilizamos para nos definirmos como espécie - seres humanos - escondem o segredo para a nossa passagem por este mundo. Somos duas vertentes: a vertente do Ser e a vertente Humana. A primeira, é a alma. A segunda, o corpo. A primeira é o imaterial, o etéreo, o que não pertence a este mundo. A segunda é o material, o físico, a forma que encontrámos ou que nos foi dada para existirmos neste mundo. Nunca tinha pensado na nossa es-pécie desta forma bipartida, nunca tinha conseguido estru-turar tão bem estes conceitos em dois grupos, ao ponto de entender o que estamos aqui a fazer.

Mais tarde, esta visão de nós enquanto espécie ajudou-me a lidar com a morte da minha tia e foi confirmada com a sensação que extraí desse acontecimento. Tive a sorte - e a palavra pode parecer despropositada, mas quem já perdeu entende bem o que com isto quero dizer - de ter estado com

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a minha tia até ao seu último momento. Até ao derradeiro momento. Vi-a respirar pela última vez. Vi-a partir. Ir em-bora. E a sensação é incrivelmente estranha. Há qualquer coisa que desaparece do corpo, quando a hora de partir se anuncia. Chego mesmo a questionar-me se o que desaparece se prende com o funcionamento orgânico do corpo… E qua-se concluo que não. Acredito que a “máquina” que é o corpo pode continuar a funcionar e o “algo” que lhe dá vida já não estar lá mais. Assisti a isso de perto, nos últimos momentos da minha tia. E, quando a morte chega, o corpo torna-se apenas isso: um corpo. Não quero ser demasiado gráfico na forma como abordo este assunto, pois acredito que o choque nem sempre produz a justa transmissão da mensagem que queremos fazer chegar a quem nos lê ou escuta. Mas o que se passou foi que, quando a minha tia respirou pela última vez - ou até um pouco antes, quando lhe foi diagnosticada morte cerebral - tive a plena sensação de que o que ali estava já não era ela. Estranho, não?

Em crianças, habituamo-nos a olhar para o corpo de uma pessoa e, se nos perguntarem onde está, responder com um convicto e orgulhosamente realizado “está ali”, apon-tando na sua direcção. Em adultos, somos convidados a des-construir esta aprendizagem. Se, naquele dia, me perguntas-sem, ao lado do já desligado corpo da minha tia, “onde está a tia?”, a minha resposta seria um convicto “não sei, mas ali não está”, apontando em direcção ao corpo que descansava na eternidade. O que mudou foi sempre a forma como olhei para o verbo estar e nunca para o verbo ser. E foi aqui que concluí na prática o que certa vez ouvi em teoria: “nós não somos seres humanos a ter uma experiência espiritual; nós somos seres espirituais e ter uma experiência humana”*.

* citação de Pierre Teilhard de Cardin

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É isto. É absolutamente isto. Somos seres espirituais que adoptamos a forma humana. Porquê? Não sabemos bem. Para quê? Vamos descobrindo diariamente. O corpo é ape-nas um meio para existirmos neste mundo de formas, mas o que é eterno transcende-o e existe para lá dele. O corpo serve a alma e a alma serve-se do corpo. Até ao fim. E o fim só nos parece existir neste mundo físico. E, quando confron-tados por ele, o que de espiritual existe em nós impele-nos a compreender a ilusão que este representa.

Algo nos diz que há mais para lá do corpo. Algo que nunca termina.

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AMOR

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Amar é a metáfora

de dar a vida

Fui abençoado com experiências incríveis geradas pelo livro Tia Guida. É impossível abandonar este tema por com-pleto, quando ainda há tanto a extrair dele. Uma das mais incríveis noções que o projecto me acrescentou acerca do Amor foi obtida aquando de uma das minhas visitas à TVI, no programa A Tarde é Sua.

A conversa, serena e emotiva, gerida e gerada pela não menos serena e emotiva Fátima Lopes, alguém que trans-borda uma luz e uma energia muito próprias e que depressa nos envolvem, foi num crescendo de partilhas que culmi-nou da melhor forma, numa sensação de plenitude difícil de definir. Senti que a mensagem de amor do Tia Guida ficou muito bem passada, nessa conversa sincera que ali tivemos. Sem dramas, mas com total honestidade de sentimentos. De tal forma que, nessa honestidade de emoção, me emocionei perante uma das perguntas que a apresentadora, com quem senti uma enorme empatia, me colocou, já próximo do fim da entrevista. A pergunta, ou melhor, a afirmação que in-terrogava nas entrelinhas, foi responsável por desbloquear a minha definição de amor incondicional. Uma que aprendi, retive e partilho, desde esse dia.

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“Até ao fim da vida da sua tia, aquilo que eu gostava de que o André falasse era da certeza que ela deve ter tido, a cada 24 horas de cada dia, de que estas pessoas eram capazes de a amar até ao infinito e, se pudessem tirar um bocadinho de-las para lhe dar um bocadinho de saúde, estariam dispostas sem sequer pensar, sem sequer questionar”. A cada palavra nova, vi o sentido desta frase materializar-se e iluminar-me a alma. Era exactamente aquilo! A Fátima tinha conseguido pôr em palavras o resumo do que foi acompanhar o cancro da minha tia. Mais do que o acompanhamento ao cancro da minha tia, o resumo do que é sentir o que sinto pela minha tia: amor incondicional. Um amor que me faz querer dar a vida por ela. Um amor que, no cancro ou noutro contexto, nunca me fez hesitar em me entregar totalmente, de modo a transformar positivamente a sua vida.

Foi nesta reflexão sobre o meu percurso com a minha tia, foi neste momento da conversa com a Fátima, que com-preendi finalmente a noção inerente à expressão “dar a vida por alguém”. Não é que tenhamos de ser mártires. Não é que tenhamos de nos sacrificar, de nos suicidar ou de prati-car qualquer coisa dramática desse género por alguém. Não. Nada disso. Basta sentir. Sentir essa expressão em cada pe-daço do nosso ser. O amor incondicional é a sensação de que, se nos fosse dada a escolha de entregarmos a nossa vida ou parte dela pela de outra pessoa, não hesitaríamos por um segundo que fosse. Só quando, em nome de alguém, senti-mos esse desprendimento do mundo físico, podemos dizer ter sentido e experimentado a verdadeira noção de amor in-condicional. Até lá, teremos conhecido apenas vislumbres desse amor. Uma vez experimentado esse amor, experimen-tado está o segredo da vida. A união na totalidade que so-mos com os outros, no espírito de amor que a eles nos une. O

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abraço dado a essa dimensão de espírito, em detrimento do físico. A certeza de que, nesse amor etéreo, somos eternos e de que, nesse amor, não há sacrifícios, pois nada se perde realmente, quando é feito em seu nome, por ocorrer precisa-mente, numa dimensão imaterial onde a perda nunca existe e onde esse mesmo amor tudo multiplica.

E de novo repito: não estou a justificar fundamentalis-mos. Esses pertencem ao mundo físico. Estou a falar de uma plena realização espiritual de amor que nos permite dizer, sem hesitar, que abdicaríamos de tudo, para prolongar o bem--estar de alguém que amamos incondicionalmente. Estou a falar daquilo que as palavras da Fátima tão bem ilustraram, na conversa que tivemos.

Estou convicto de que todos, nesta vida, estamos cá para, pelo menos uma vez, sentir este tipo de amor. É ele que nos redime e nos eleva. É ele que nos faz deixar uma marca. É ele que nos eterniza.

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Amar é ter a mão aberta

A minha mãe e eu não temos tido um percurso fácil, mas tem sido um percurso de autoconhecimento e de conhe-cimento mútuo. E, quando assim é, vale a pena. Uma das lições mais importantes que aprendi foi ela que me ensinou e não creio que alguma vez lhe tenha dito.

Tendo já tido várias relações, não seria verdade dizer que me apaixonei várias vezes. Numa das vezes em que me senti apaixonado, com tudo o que isso tem de bom e de menos bom, senti-me o mais vulnerável que uma relação já me dei-xou. A falta de auto-estima associada a uma paixão resulta, inevitavelmente, numa péssima série de eventos. Começa-mos a criar em nós a convicção de que, sem a outra pessoa, não existimos. Sem a outra pessoa, não possuímos o valor que antes possuíamos. Sem ela, passamos a ser menos e as razões da nossa existência deixam de fazer sentido. Conver-temos a paixão e o amor numa dependência e, como com qualquer dependência, tornamo-nos doentes. Dessa doença, faz parte a obsessão que surge: queremos tanto manter o que temos, que vivemos a temer a sua ausência. Não saboreamos o presente, estamos sempre a querer resolver o passado, na completa insegurança que o futuro que projectamos nos dá. Deixamos de estar numa relação saudável connosco mesmos e, automaticamente, deixamos de conseguir estar numa re-

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lação saudável com quem queremos na nossa vida. Foi tudo isto que senti. Foi tudo isto que vivi. Obcecado com o medo de perder quem tinha, vivia numa ansiedade indescritível e queria, a todo o custo, explicar a quem amava que tinha todos os motivos para nunca deixar de me amar ou para me amar mais do que, na verdade, tantas vezes parecia fazer. Ti-nha medo da solidão que sentiria sem aquela pessoa e acabei por ser eu mesmo a criar os elementos necessários para que o meu medo se materializasse. Só fazemos isto tudo porque queremos que nos reconheçam esse valor que sabemos ter, mas que não acreditamos ter. E só quando nos conseguimos distanciar de tudo e, aos poucos, tornarmo-nos espectadores de nós mesmos é que retomamos alguma da nossa estabi-lidade e nos questionamos: quão triste é fazer tudo isto só para que alguém reconheça algo que não viu genuinamente em nós? Triste ou não, na altura, precisava de orientação. Principalmente depois do fim da relação, fiquei a precisar de muita orientação. E toda a gente servia de bússola, numa altura em que não sentia possuir nenhuma. Falava vezes sem conta no assunto e vezes sem conta reencontrava a tão de-sorientada desorientação que residia em mim. Porém, houve uma conversa que, de tão simples que foi, se tornou eficaz e eterna em mim.

Numa das milhares de vezes que me queixava do as-sunto e da impossibilidade que a vida me estava a dar de estar com quem sentia amar, numa das milhares de vezes em que, lidando com a culpa, ainda não me responsabilizara por essa parcela da minha vida, a minha mãe escutou-me. Es-cutou os meus anseios, escutou a minha enorme vontade de querer estar com aquela que julgava ser a pessoa certa para mim. E, enquanto escutou, absorveu o que ouviu e espelhou nas minhas palavras as suas vivências, concluindo algo que

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também ela aprendera, no seu caminho: amar depressa se confunde com o direito de exigir ter a outra pessoa, mas amar não é isso.

Amar é, como me explicou a minha mãe nesse momen-to, “teres a tua mão aberta, para que a pessoa que nela pou-sou possa lá continuar… Mas manteres essa mão aberta, nunca cerrando os dedos, para que essa pessoa possa sem-pre ir embora. Amar é deixar ir e saber que a pessoa fica, porque escolhe”. E, acrescento eu, nunca porque a forçamos a escolher o que, naturalmente, tantas vezes nos faz parecer não querer escolher.

Obrigado, mãe.

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Por vezes, o que queremos é exactamente o que achamos

não querer

É curioso como, por tantas vezes, não descansamos até termos algo que julgamos querer. E é curioso como, por igual número de vezes, a vida nos desvia dessa ambição, como se não fosse certa para nós.

A tal relação que tive com a mulher que, imaturamente, julguei ser a mulher certa para mim trazia o melhor e o pior de mim à superfície. A total entrega humana a alguém e a total insegurança nessa entrega. E, no final de cada dia, o resultado era sempre um desgaste enorme, de alguém que tenta amar como não sabe, por não se amar ainda a si. O que queria era uma relação feliz, com aquela pessoa. Mas o que tinha… Era o oposto disso. Havia, indiscutivelmente, mo-mentos de grande felicidade, sim, mas não eram suficientes para compensar a insegurança que a relação me dava e a instabilidade que tal insegurança gerava no meu dia-a-dia, em praticamente tudo o que fazia. É certo que a responsa-bilidade de tal não era apenas minha e que essa pessoa não dava sinais de querer construir essa inexistente segurança, mas, em última instância, a maioria das situações só se pro-

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longam para lá do que consideramos justo quando nós dei-xamos. Mais ninguém.

Neste caso em concreto, prolonguei a situação para lá do seu fim, porque me convenci de que o que eu queria seria achado com aquela pessoa, naquelas circunstâncias, e com mais ninguém. Mas a vida acabou por me tirar essa relação e o tempo ajudou-me a tornar-me distante da obsessão in-segura em que tinha entrado. Devagarinho, voltei a mim. E parte do ter voltando a mim foi resultado de ter sido capaz de, com essa pessoa, aproveitar o que sobrou da nossa rela-ção, sob a forma de amizade, durante alguns anos, acaban-do por perceber que não a quereria de novo na minha vida, chegando mesmo ao ponto de me afastar definitivamente, por me ter curado do que vivi, nesse período de amizade que lhe dediquei e por ter percebido que o capítulo estava definitivamente encerrado para mim, nas várias repetições de comportamentos instáveis e questionáveis para a minha conduta que, até como amiga, continuava a mostrar-me ter.

Concluí que o que eu queria com essa pessoa só podia ser obtido de forma oposta ao que eu julgava querer. A cum-plicidade, a confiança, a estabilidade, a presença constan-te, a eterna fidelidade, neste caso específico só se tornaram mais credíveis, para mim, fora da relação, mas também fora dela, como amigos, se tornou evidente para mim que não existiriam como eu esperava e na mesma medida em que lhos dava, mantendo o desequilíbrio de comportamentos e atitudes que eu sempre permitira, por confundir essa per-missão com amor incondicional. Tornou-se evidente que eu continuava a esperar daquela pessoa algo que ela não estava disposta a dar na mesma medida do que gostava de receber e que o que eu queria verdadeiramente era, na verdade, o oposto do que durante tanto tempo julgara ter querido.

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Durante muito tempo, quis ser uma influência positiva presente na vida dessa pessoa, independentemente de tudo o que me fizesse, esperando que ela se tornasse no mesmo para mim, mais cedo ou mais tarde, primeiro como namora-da, depois como amiga. Mas o que o tempo quis foi que essa influência positiva só se afirmasse e tornasse possível com o total afastamento, consolidando as aprendizagens do que vivêramos juntos… Definitivamente separados. Para mim e, acredito, para si mesma. Sem rancores, sem frustrações, desejando sempre o que sobra do que se sentiu: a total fe-licidade para quem já esteve connosco. Apenas com a real convicção de que ficar, fosse sob que forma fosse, seria um prolongamento do que sempre existira entre nós, pela evi-dente repetição de tais acontecimentos e sensações, sob con-textos diferentes, pelo menos aos meus olhos. Apenas com a real sensação de que há páginas que só se viram quando alguns livros se fecham. E de que era tempo de fechar aque-le, para que outros pudessem ser abertos, escritos, lidos e vividos plenamente, já com conteúdos novos, enriquecidos pelo sumo da experiência do passado, pela qual sou verda-deiramente grato.

A vida acabou por me dar, com essa e dessa pessoa, exactamente o que quis, embora num contexto que julgava nunca vir a querer. E isto foi o que aprendi: o tempo ajuda a tornar perceptíveis as nossas verdadeiras vontades e as me-lhores e mais saudáveis formas de as vermos materializadas, provando-nos que, por vezes, elas só podem ganhar forma em contextos distintos do que os que julgávamos querer.

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Amor incondicional

Se houve coisa que aprendi com o que vivi e com o que tenho vivido é que Amar Incondicionalmente não é sinóni-mo de tudo permitir.

Fui ensinado, até pelas fortes experiências do que na in-fância me foi dado a viver, que amar não é magoar. Mas, erradamente, assimilei em mim a ideia de que ser magoado era condição para amar.

Porém, o que o tempo e as minhas experiências me têm dado é a capacidade de desconstruir esta errada ideia de amor.

Tento que a minha definição de amor ou do seu oposto não derive do casamento dos meus pais, mas antes do mo-delo de amor que o meu tio para mim sempre representou. Na forma como ele ama, é certo. Mas hoje percebo que deve ser também - ou acima de tudo - o meu modelo de amor na forma como ele me ama.

O amor dele não maltrata, não desdenha, não fala com ódio ou raiva. Não humilha perante um público. Nem sente a mínima vontade de tal, mesmo quando me vê brilhar mais do que o seu ego sente ser justo. Não lida mal com as culpas pelas quais pede desculpa, não cria inseguranças e muito menos alimenta inseguranças que tiver criado ou que me tenham sido criadas pela vida. Perdoa, sem propositada e

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meticulosamente exagerar a dimensão dos meus erros para lidar com a dimensão dos seus. O amor dele não manipula, não mente, não trai. Não repete o mesmo erro duas vezes, quanto mais três ou quatro ou tantas. Não se serve do ego e dos que o podiam alimentar para enfraquecer a minha alma e a força que nela gosta de ver. Não me faz sentir encostado ao fim da tabela de prioridades perante possíveis outros fo-cos de atenção supérfluos, porque quem ama está primeiro, porque o amor é prioridade. Não agride, seja sob que forma for. Não me trata bem no instante em que precisa de mim e mal no instante em que já não precisa. Não é inconstante, porque é mais forte e convicto do que qualquer inconstân-cia do seu portador. Não recua em promessas, nem prome-te recuos que não saiba cumprir. Não destrói em palavras desmedidas o que constrói em palavras feitas à medida do que só quem ama sente, até quando critica para me elevar ao melhor de mim. Não justifica o injustificável quando o assume como tal, nem confunde amor com permissividade e não abusa das permissões do amor. As de redenção. As de perdão. As do "fica outra vez e, sem ires, vem diferente. Para melhor. De vez". Porque o amor não se aproveita delas. Dá proveito. O amor dele merece-me, porque me faz sentir merecedor. É amor. E merece ser partilhado com o mundo a que eu chegar, para que o mundo a que eu chegar perceba que é este modelo de amor que têm o direito de receber e o dever humano de dar.

E o que a experiência me tem dado é a certeza de que exigir este amor não é errado, muito menos quando é este o amor que damos. Amar não é ser perfeito, mas é ambicionar a essa perfeição junto de quem nos ama, combatendo todas as que sabemos ter. Todas as sombras que a luz deste sen-timento deixam a descoberto em nós. Iluminando-nos, por-

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que nos iluminam e devolvendo luz a quem nos dá alguma. O que a experiência me tem ensinado e o que as pessoas que têm sido parte delas me têm feito cimentar em mim é a convicção de que, quando se ama e há vontade de ficar, nada nos impede de corresponder a esta forma de amar, a não ser a vontade.

O que a experiência me tem ensinado é que Amar In-condicionalmente não é o mesmo que Amar sem condições. E que só um Amor em condições permitirá um Amor Incon-dicional. Por nós e por quem amamos.

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O amor desvenda a vida

O amor incondicional, o tal amor em condições e de “mão aberta” de que vos falei nesta compilação de reflexões, é o único amor capaz de descodificar todos os mistério da vida. E, aqui, descodificar não significa compreender: signi-fica abrir o caminho à compreensão do que não se explica.

Quando a vida me forçou a perder quem muito amo, quando me forçou a ver extraída do meu dia-a-dia a pre-sença de uma pessoa como a minha tia, a quem me habi-tuei a chamar de minha “mãe de amor”, fui convidado a compreender esta noção de amor. Fui convidado a entender, desde o momento que lhe foi diagnosticado o cancro, que ela não me pertencia. Que eu não lhe pertencia. Que a única coisa que nos fazia pertença um do outro era a forma como escolhíamos amar-nos. E que a vida, neste mundo, só nos pertencia como empréstimo. Um empréstimo ilusório que nos confunde ao ponto de julgarmos que ela é nossa, quando na verdade nós é que somos dela. Em ano e meio, amadureci esta ideia, para no final a conseguir deixar ir, sem desejar que ficasse. Mas desejei. Naturalmente que desejei e desejo a sua presença. Não há um dia que não o faça. Então, como equilibrar este desejo visceral de a querer por perto e a no-ção de que a sua vida não me pertence? É tão simples que se torna complexo: amando.

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O amor liberta. O amor não magoa. Nenhum amor é apologista do sofrimento. Nenhum amor pode ser sinónimo de prolongamento de agonia. Isso não é amor. Isso é qual-quer outra coisa. O cancro, a degradação física que causa nos momentos finais de quem está a partir e que não ima-ginamos noutro sítio que não a nossa vida, convida-nos a sentir o maior amor que conhecemos: o amor que abre mão e deixa partir, se a hora tiver chegado, eternizando na memó-ria da alma a vida que foi devolvida à Origem. E, quando se ama assim, quando nos libertamos das nossas necessidades, do que o ego nos exige e exige aos outros, somos capazes de dizer “eu amo-te e, por te amar, deixo-te ir”.

O mais curioso é que esta poesia do amor que liberta é a que resulta em versos de eternidade que transcendem a lei da vida: independentemente da crença, independentemente da religião ou ausência dela, o amor que se sente por alguém transcende tudo e, mesmo quando deixa ir, permite ficar.

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Perdoar

Não faria sentido, neste livro de reflexões, não incluir nenhuma sobre o perdão. Ao longo de toda a nossa vida, vastas serão as chances de reflectirmos sobre este tema. Ora por necessidade de perdoar, ora por necessidade de sermos perdoados, a palavra surge-nos e fica-nos a ecoar na mente, até que consiga expandir-se na alma, no verdadeiro sentido que nos traz e que, por vezes até, devolve.

O que aqui está em causa não é a razão das e nas zangas com que nos deparamos. O que aqui está em causa nem se-quer é a raiva que, por vezes, sentimos, no calor dessas zan-gas. O que aqui está em causa é a forma como escolhemos alimentar essa razão (ou falta dela) e essa raiva que dirigi-mos (ou nos é dirigida). O alimento da ausência de perdão é o rancor. O rancor não se limita a converter em indiferença o desentendimento. O rancor prolonga o momento em que o desentendimento ocorreu. Prolonga a sua existência nos motivos gerados e nos sentimentos gerados. Mas a grande ironia do rancor é a de que corrói sempre mais aquele que o transporta do que aqueles que poderiam, aparentemente, estar na sua origem. O rancor transporta do passado para o presente o que no futuro não deveria ter lugar. Quantas vezes não nos sentimos tentados por esta energia? Quantas vezes não nos sentimos convidados por ela a guardar em nós

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algo contra alguém? E quantas vezes não a deixámos mesmo desenvolver-se no nosso âmago? Expandir-se. Tomar conta de nós ao ponto de não conseguirmos libertar-nos dela… Acredito que já todos tenhamos contactado, de perto ou de longe, com tal realidade.

O grande problema de quem não consegue perdoar é, por norma, a definição que atribui ao conceito. Por alguma razão que desconheço, pensa-se que perdoar é aceitar tudo o que nos fazem e continuar a permitir essas ocorrências. Mas não. Perdoar não é isso. Isso é subjugação. “Perdoar é abandonar a esperança de que o passado podia ter sido dife-rente”, diz Oprah Winfrey. É entender que o que aconteceu já não pode ser alterado e que nenhum pensamento que eu gaste com tal acontecimento irá causar essa desejada altera-ção. Perdoar é deixar ir esse acontecimento e permitir que, nessa libertação do que a ele nos ancora, surja espaço para uma nova criação, para uma nova possibilidade. Em nós e nos outros, mesmo que não seja connosco e com os outros. É que perdoar até pode ser nunca mais voltar a estar com a pessoa ou nunca mais permitir que aquela pessoa chegue a nós como noutros tempos, mas é ter a certeza de que, quan-do a virmos, seremos capazes de a encarar e sentir com a elevação, não moral, mas espiritual, de quem já perdoou, um convicto “já passou”.

Perdoar o que nos fizeram ajuda-nos ainda a pedir per-dão, quando somos causadores de qualquer desentendimen-to, pois liberta-nos da convicção de que não o poderíamos pedir, por não sermos capazes de o dar. Contudo, quando sentimos ser nós a precisar de perdão, mais importante do que ele nos ser concedido por alguém, é ser concedido por nós mesmos a nós mesmos. Verbalizá-lo é importante, mas nunca se a intenção for obter a sua validação no outro. Quan-

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do pedimos perdão fazemo-lo pelo mesmo motivo que o sa-bemos dar: por ser libertador. Por nos libertar de qualquer culpa que carregamos e por, nessa libertação, nos criar es-paço para nos melhorarmos e melhorarmos o que nos cerca.

Seja quando pedimos perdão, seja quando exterioriza-mos a vontade de perdoar, temos que ter em mente a certeza de que o fazemos por nós próprios, porque nos faz bem, e nunca podemos obrigar o outro a viver essa mesma verdade. O que nós fazemos com o perdão, em última instância, diz-nos respeito só e apenas a nós. O que os outros fazem com o nosso perdão, ou com o próprio, é consigo.

Perdoar é o que nos liberta do passado e nos coloca na possibilidade de futuro que só o momento presente sabe oferecer.

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Perdoar cria espaço para o Amor

Acrescentei ainda às lições que a minha me deu uma ou-tra sobre o poder do perdão: o espaço que ele cria para Amar.

Tento viver o perdão como o descrevi no capítulo an-terior e vou confirmando em mim a certeza de que viver essa definição é o que está humana e espiritualmente cor-recto. Mas nenhuma experiência me deixou mais convicto do poder de perdoar como uma que vivi recentemente. Não a descreverei na totalidade, para não expor as circunstân-cias que ma motivaram, até porque tais não são necessárias, neste contexto, para falar do que realmente importa. E seria errado da minha parte não incluir, neste aglomerado de par-tilhas de aprendizagens pessoais, esta que tanto me marcou e que tantas certezas me acrescentou sobre a forma como olho para o perdão e sobre a forma como ele olha para nós, seres humanos.

Perante diversas falhas praticadas para comigo, perante a dureza de muitos actos que geraram mágoa, a pessoa cau-sadora de tudo isso preferiu convencer-se de que não se arre-pendia de nada. No dia em que resolvemos conversar sobre todos esses assuntos, a forma que encontrara de lidar com todos os feitos foi a de se assumir quase que orgulhosa dos mesmos, e crente de que aquele era o único caminho, a úni-ca via, a única vontade e, por isso, o que iria repetir daí para

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a frente. Nesta enumeração de convicções que o orgulho e a culpa lhe criavam em palavras, ouvi tudo o que nunca pen-sei ouvir e vi personalizado, não pela primeira vez, mas pela primeira como algo muito palpável, visível, audível e real, os efeitos de comportamentos errados e de culpas e orgulhos inseridos na sua gestão. Nunca tinha visto transbordar no olhar, nas palavras, na postura de alguém todos esses ele-mentos como, naquele dia, vi. Mas nem por um segundo, pela nossa proximidade pessoal, mas também pela minha ligação humana a si, senti ódio daquela pessoa por tudo o que me estava a dizer e/ou pela forma como estava a esco-lher dizer o que dizia sobre cada erro que comigo cometera.

No fim, depois de tudo escutar e da tristeza profunda que sentia pelos erros que cometera para comigo no forte amor que lhe guardo mas, acima de tudo, pelos que me pa-recia estar a cometer consigo nesta forma toda que, desde os tais erros até à fala sobre eles, estava a ter de gerir o assunto, só fui capaz de, serenamente, ligado ao melhor de mim e a esse mesmo amor e a tudo que me fizera ter existido na vida dessa pessoa, olhá-la nos olhos e, com os meus, com as minhas palavras e com a minha postura, deixar escorrer da fonte do que somos um sincero “eu perdoo-te”. Com a mesma energia de amor, sem qualquer raiva, deixei que o resto das palavras fluísse dessa tal fonte: “eu não te guardo rancor nenhum, só quero que sejas feliz e, por isso, a única coisa que posso fazer é, com todo o meu coração, dizer-te que te perdoo”.

Nesse exacto momento, aquela pessoa que, à minha frente, parecia estar transfigurada noutra que não conhecera até então, aquela pessoa que, ligada aos seus erros, à sua culpa e ao seu orgulho, se transfigurara na materialização de cada um destes elementos, desfez-se em lágrimas. E foi

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como se cada lágrima queimasse todas estas defesas que tanto atacam. Foi como se o sal das lágrimas choradas es-tivesse a purificar as feridas que, então, ardiam mais, por agora estarem humanamente a descoberto, sem defesas, em toda aquela fragilidade, até ao momento escondida numa falsa força que só adensara as consequências negativas dos erros. Para mim e para a própria pessoa. Acima de tudo, para a própria pessoa. Nesse exacto momento, todas aque-las prisões, armaduras, escudos… Ruíram e deram lugar à humanidade de quem tinha à minha frente. Deram lugar ao início de uma busca interior que esta pessoa começou a fa-zer sobre si mesma e de um progresso que escolheu fazer, por começar a escolher remexer em todas as feridas do seu passado e chorar cada uma, não em erros que acabassem por adensá-las, mas em novas formas de agir que pudessem evitá-los e criar novas realidades. Sarando feridas antigas, sarando feridas novas e evitando feridas futuras.

Quando perdoei, dado todo o cenário ali criado, não es-tava minimamente à espera de receber toda esta reacção. Perdoei sem expectativas. Porque sim. E, tenho a certeza, quando me falou de todos os erros como falou naquele dia, a pessoa não esperava sequer ser perdoada, muito menos daquela forma tão natural, genuína e sincera e, por isso tam-bém, adoptara aquela postura, a qual o perdão teve o poder de destruir. Ou melhor: de reconstruir. Em algo de bom.

Com este episódio específico da minha vida, testemu-nhei da forma mais real e vivida possível o efeito que tem o perdão. Aprendi, ou melhor, aprendemos, através dessa experiência em que o perdão nos lançou, que o perdão per-mite mais amor. A quem perdoa, permite continuar a amar para lá do erro (com a pessoa que consigo errou, se assim escolher, ou com outras que apareçam no futuro). A quem

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é perdoado, permite continuar a amar-se para lá do erro e superar-se no amor que ainda acredita sentir para com quem errou. Em ambos os casos, aprendi que o perdão permite subir o degrau da longa escadaria humana que percorremos individualmente e daquela que, juntos, escolhemos percor-rer com outros.

Aprendi que, quando humanamente se ama alguém que existe na nossa vida e essas pessoas cometem erros graves, desistir é uma escolha, manter comportamentos errados é outra e corrigir é outra ainda, totalmente diferentes entre si e totalmente diferentes do amor - ou falta dele - que repre-sentam. E aprendi que, quando o amor se diz recíproco e verdadeiro, perdoar não pode ser confundido com fraque-za, nem pode ser confundido como permissividade, assim como corrigir não pode ser visto como uma cedência numa guerra, nem como uma perda ou conquista de posição. Por ambos, tudo deve ser naturalmente escolhido no e pelo amor que se diz sentir. E se assim não for, é porque já não há amor onde se pensou haver.

Mas, acima de tudo, aprendi que o perdão baseado no amor humano cria espaço para amar. Ao que perdoa; ao per-doado; um com o outro… Ou apenas no futuro individual de cada um. O perdão resolve e ajuda a resolver.

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Os animais ensinam-nos a amar

Nestes 25 anos, tive a sorte de ter tido um cão. De ainda o ter. O Speedy. Um Golden Retriever que me rouba todo e qualquer protagonismo nas redes sociais. O meu mais fiel amigo e o amigo que mais lições me dá, sem esperar nada em troca.

Depois do divórcio dos meus pais, mudei duas vezes de casa. O Speedy acabou por ser parte da última mudança, ainda muito novo. Chegou a casa da minha avó, onde agora vivemos todos, e aplicou a sua veia destruidora a tudo o que lhe parecia apetecível. Móveis, sapatos, sofás e até papel de parede… A versão jovem do Speedy atacou tudo, naque-la casa. A minha avó, pouco habituada a cães, não reagiu muito bem a todos estes eventos e, diga-se, não tinha a me-lhor relação com o Speedy. Afinal, quem gostaria de ver um elemento externo surgir e destruir muitas das coisas que se habituou a estimar? O que é certo é que, apesar dessa rela-ção conturbada, o meu cão nunca lhe negou um afecto. Ao ponto de, certo dia, me ter comovido com algo que fez e que nunca esquecerei.

Um cancro foi diagnosticado à minha avó. Localizado na mama, controlado e operável, mas ainda assim… Um cancro. No dia da operação, a minha avó esteve, natural-mente, completamente ausente de casa. E, na sua ausência,

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misteriosamente, apercebi-me da ausência do Speedy. Pro-curei-o por toda a parte, em cada divisão, chamando por si. Mas nada. Não encontrava o Speedy em lado nenhum e ele parecia não querer reagir ao meu chamamento. De repente, lembrei-me que não tinha procurado numa divisão. Uma em que não pensei nunca vir a encontrá-lo, dadas as circunstân-cias: o quarto da minha avó.

Quando abri a porta, lá estava ele. Deitado sobre a sua cama, próximo do seu lugar, com um ar tristonho e de quem sente a sua falta, como se pressentisse o que se estava a pas-sar. Que lição incrível… Que capacidade de perdoar… Que capacidade de amar… Aquele cão que destruíra tantos bens à minha avó e que sofrera as represálias de tais gestos estava ali, sem esperar nada em troca, a aguardar o seu regresso, numa ausência que visivelmente lhe doía. E ali ficou. Nesse dia, mostrou que, apesar de tudo, não desistira dela. Não de-sistira do seu amor. E valeu a pena: hoje, já sem destruição de objectos à mistura, à sua maneira, dão-se muito bem um com o outro.

Registei o momento, para que nunca me esquecesse do que me ensinara: é possível amar para lá dos erros, é possí-vel perdoar sem esperar nada em troca. Um cão sabe isso. Um humano esquece.

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A vida é mesmo melhor

quando é partilhada

É um lema que muitos pregamos, mas que poucos com-preendemos ao ponto de o viver genuinamente. Desligamo-nos destas palavras, até que elas se desliguem de nós, no esquecimento da sua materialização prática e real. Mas a vida forçou-me a torná-las minhas. Mais do que minhas, a torná-las em mim. No que sou e no que vivo. Não consigo conceber uma vida sem partilha.

Ter por ter é deixar de ter. Quem tem e apenas se afoga no que guarda para si, deixa de compreender a verdadeira essência que uma coisa pode causar, por poder ser partilha-da com alguém. Desde bens materiais, a dinheiro, a comi-da, a afectos, ensinamentos… É certo - e quem me conhece sabe quão apreciador da individualidade sou - que nunca devemos esquecer o nosso mundo. Aquele onde mais nin-guém entra. É certo que o devemos servir com dignidade máxima. Sem isso, dificilmente conseguiríamos chegar aos outros com o desprendimento necessário de quem se sente digno de si, ao ponto de se poder sentir digno dos outros e do que lhes pode dar. Estou em crer que, com uma individuali-dade segura, criamos a colectividade forte de que o mundo necessita para progredir. E que forma melhor de o fazer do que através da partilha?

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Partilhar é criar entre dois elementos uma ligação única que se eterniza na mensagem de pura entrega que guarda em si. É a possibilidade de extrair prazer duplo, triplo, quá-druplo ou por aí adiante, de um elemento único que nos foi dado. E não importa se o outro já tem o que com ele esta-mos a partilhar. A partilha é o que torna a dádiva única. É a partilha que diferencia o que é dado e não o que é dado que diferencia a partilha. Senão, reparem nesta memória que convosco partilho e que me ensinou tudo isto.

Na última semana de vida da minha tia, dias antes de ela partir, dois grandes amigos da família (o tio Mário e a tia Ana, a quem estarei eternamente grato pelo amor incondi-cional que dedicaram e dedicam aos meus tios), levaram-nos duas caixas dos nossos bolos preferidos, da famosa pastela-ria Garrett. Era - ainda é - nossa tradição almoçarmos consi-go na zona do Estoril e, no fim da refeição, após o tradicio-nal cafezinho de amigos, ir comprar estas divinais iguarias com as quais eu, o sobrinho guloso, sempre me deliciei. Era comum a minha tia Guida e o meu tio Jorge abdicarem de grande parte da caixa, só para me verem feliz e deliciado com aquele pequeno grande prazer da vida. O tio Mário e a tia Ana sabiam-no e, nesse dia, sabendo ainda que não saíamos do hospital a não ser para ir descansar em casa há vários dias, levaram-nos esse mimo duplo. Fiquei genuina-mente feliz. O meu tio e a minha tia também. Um dos meus bolos preferidos dessa pastelaria dá pelo nome de “prata”. Era, também, um dos que a minha tia mais apreciava. A sua caixa vinha repleta deles. A minha, repleta deles e ainda de outras variedades de que muito gosto. Nunca mais me vou esquecer da imagem que nesse dia ficou registada em mim. Sentado no sofá que ladeava a cama da minha tia, abri a mi-nha caixa, pronto para atacar o prazeroso presente. Deitada

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na cama da qual não podia sair, a minha tia abriu a sua. Com a lentidão de movimentos que a fragilidade da doença que a estava a levar lhe permitia, mas sempre com a sua delica-da forma maternal de comigo ser, pegou numa das pratas e estendeu-a em direcção a mim, com o olhar mais terno que lhe recordo. Sorriu e abanou a prata, como quem diz “pega, é tua”. Não soube como reagir. Tantas visitas na sala, tantas possibilidades de partilha e, naquele momento, no preciso momento em que já me encontrava repleto de doces, incluin-do aquele que a minha tia então me oferecia, ela resolvera partilhar comigo, e só comigo, a primeira prata daquela sua caixa. “Não tia, tenho aqui tantas! Essas são tuas, obriga-do…”. Mas a mão continuou estendida. E, mais do que es-tendida, tornou a ser impulsionada na minha direcção, como sinal de insistência. E de novo lhe disse “oh tia, a serio, essas são só tuas, não te preocupes, tenho aqui as minhas”… E de novo insistiu. Sempre serena, sempre com uma incrível do-çura maternal no olhar. Procurei na presença de todos uma espécie de validação para aquele momento e as reacções foram unânimes: “aceita, André!”. Aceitei. Muito comovi-do, aceitei. Hoje mesmo, enquanto escrevo estas palavras, comovo-me. Compreenderão a generosidade desta partilha? Compreenderão o que ela representa? A minha tia estava a morrer. Sabia que estava a morrer. Sabíamos todos que es-tava a morrer. Tinham acabado de lhe dar uma caixa repleta dos seus doces preferidos. Só para si. Para que pudesse ter um dos seus últimos e mais que merecidos prazeres egoís-tas terrenos. Para que não houvesse qualquer sentimento de culpa nisto, tinham tido o amável cuidado de trazer uma outra caixa cheia para mim e para o meu tio. E, ainda as-sim, perante todo este contexto, perante a hipótese de aquela ser a última vez que comia aqueles bolos em específico, a

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minha tia recordara o meu gosto por eles, recordara todas as vezes que me levara àquela pastelaria para que eu os pu-desse degustar, tantas vezes no seu lugar, e recordara todo o amor e gratidão que me tinha - os mesmos que lhe tenho -, resolvendo estender-me, a mim e só a mim, a partilha do que legitimamente podia ser seu e só seu. Com isso, eternizou na minha vida, naquele gesto puramente desprendido de posse, a importância do verbo partilhar. Ensinou-me que o prazer que lhe deu dar a quem sabia que causaria impacto supera o prazer que lhe podia ter dado atacar a caixa de bolos so-zinha, apesar da falta de apetite que o cancro lhe causava. Ensinou-me que mais do que o objecto partilhado, o que se recorda é a partilha. Ensinou-me que, quando partilhamos, extraímos o prazer directo de ter e o prazer (in)directo de ver ter. Ensinou-me que, em última instância, a necessidade de egoísmo se desprende de nós e potencia ainda mais esta convicção de que a vida partilhada é uma vida melhor… Até na morte.

Hoje, sempre que olho para uma prata da Garrett, recor-do-me deste seu ensinamento. E quando não tenho uma pra-ta comigo, tenho a memória do que elas representam para mim. Sempre que me sinto capaz, partilho. Quero poder ser para alguém o que a minha tia foi para mim, com este seu pequeno gesto. Quero ser a confirmação e a eternização do que ela me ensinou.

Hoje, estendo-vos a prata que ela me estendeu. E, como ela, insisto de braço estendido, impulsionando-a na vossa direcção, até que a aceitem e a partilhem com alguém.

Bom proveito.

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Bons amigos

Embora seja uma pessoa muito comunicativa e expres-siva, sou na realidade um introvertido. Valorizo muito os meus momentos de solidão e aproveito-os para me reconec-tar com o mundo e para de novo me sentir preparado para cumprir o que acredito ser a minha missão de comunicar. É por isso, difícil, ser verdadeiramente amigo de alguém como eu e sentir-me verdadeiramente amigo de alguém. Talvez por isso não acredite no conceito de “melhor amigo”.

Quando falo em ser verdadeiramente amigo de alguém, não me refiro, naturalmente, a amizade banal. Refiro-me a amizade real. Das grandes. Das fortes. Das inabaláveis. Das que se conhecem em tudo e em nada. Das que incondicio-nalmente estão lá. Das que superam desentendimentos e se confirmam como reais. Sou exigente na selecção dos que permito ter diariamente na minha vida. Por um lado, porque sou exigente comigo mesmo; por outro, porque a vida e os seus acontecimentos me deixaram sempre alerta para as im-perfeições das relações humanas e para as falhas que nelas existem, falhas que nos expõem a traições das quais apren-di a proteger-me. Procurando naturalmente o equilíbrio que sempre buscamos na vida, concluí desde cedo que não quero na minha vida “melhores” amigos. Bastam-me bons amigos.

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Ambicionar, à partida, alguém que classificamos como “melhor” é, na nossa mente, tão humana e tão frágil por hu-mana ser, associar o termo a perfeição e ausência de erros. Não existe melhor, na amizade. Existe bom. Sei que quero e que tenho bons amigos. Com defeitos, com virtudes. Com o que são. Amigos que me aceitam como o bom amigo que sei ser. Não sou o melhor. Não tenciono ser. Dizer a alguém que é “o melhor” é convidá-lo a desistir de ser bom. É preferível alguém que procure ser bom a cada dia, do que alguém que se julgue o melhor de todos os dias.

Assim sou eu com os meus amigos. Assim são eles co-migo. Não nos consideramos “os melhores” uns dos outros. Consideramo-nos bons amigos uns para com os outros.

Bons amigos. Assim sou eu. Assim são eles. Assim so-mos nós.

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Ser Feliz

Tudo se resume a isto. Na vida, há que ser feliz. Simples, não é? A prova máxima de que a simplicidade é a maior de todas as complexidades.

Ouvimos tantas vezes que “o importante é ser feliz”, que se torna uma convicção banal. E de banal não tem nada. É séria. É muito séria. E só compreenderemos a seriedade deste lema aparentemente banal quando nos virmos con-frontados com o fim. O nosso ou o de alguém que amamos tremendamente.

Lembro-me da última semana de vida da minha tia como se tivesse ocorrido este mês. Depois de duas semanas internada, voltara para casa, onde passara o fim-de-semana, com os resultados completamente estabilizados. Mas o fim-de-semana não foi, de todo, a confirmação prática desses resultados positivamente alterados. Sem conseguir dormir, depois de ter experimentado todas as divisões onde dormir se pudesse tornar possível, a minha tia manifestou uma apa-tia tremenda, um desconforto e uma ansiedade constantes, e até um certo desprendimento acentuado com as coisas deste mundo físico que, presumo, sejam típicas de uma despedi-da que se faz antecipar no pressentimento. Segunda-feira, lá estava ela de volta ao hospital. Não passaram muitos dias, até que o oncologista que a seguia nos fosse dar as notícias

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sobre o novamente alterado panorama. Primeiro, à minha tia. Depois, a nós.

À minha tia, contou o possível. Como em todo o pro-cesso, suavizou a verdade. Suavizou muito a verdade. Co-nhecia-a e sabia que não adiantaria de nada dizer-lhe o que se estava a passar. Ele sabia que ela iria perceber. E perce-beu. “Não se preocupe, Drª Margarida. A Drª está um bo-cadinho pior, porque os seus pulmões se encontram mais fracos. Existem alguns coágulos, e vamos combatê-los. É preciso darmos algumas injecções, para que eles se diluam. A situação era frágil, mas agora é ainda mais frágil. Temos de ter cuidados redobrados. Mas é só isto!”. E, a minha tia, como quem pedia que lhe mentissem, perguntou com lágri-mas nos olhos “então é só mesmo isso, não é doutor? Só preciso de umas injecções e de ter mais cuidado, não é?”. E chorou. Chorou perante as sucessivas confirmações. E fin-giu acreditar nas mesmas. Estávamos todos a colaborar para uma mentira bondosa. Também isso faz parte do percurso em que doenças destas nos lança. Saiu da sala e o meu tio foi consigo. Cumpriram, até ao fim, o ritual que estabeleceram e de que falo no Tia Guida: o médico guardava a verdade nua e crua para o meu tio. Era o nosso trato tácito. E assim foi. O cancro estava completamente espalhado. Não havia nada a fazer. Era uma questão de dias, semanas na melhor das hipóteses. Fiquei sozinho no quarto com a minha tia e com o sapo que sentia preso na minha garganta, querendo travar o choro e a fala emocionada. A minha tia disparava frases como “tu já viste, André? A minha vida vai ser sem-pre isto? Eu não quero. Já chega. Estou muito cansada… Vou sempre melhorar e de novo venho aqui parar. Quan-tas mais injecções vou ter de levar? Quanto mais vou ter de massacrar o meu corpo? Para quê? Já chega… Estou muito

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cansada, estou tão cansada…”. E disse-lhe “tia, tudo o que tu fizeste até hoje foi uma missão impossível. Superaste me-tas, superaste-te, tornaste-te numa inspiração ainda maior do que já eras. Para mim, para os manos, para o tio, para todos! Até para a minha ainda por nascer filha Margarida, que um dia vai saber de tudo isto. E vais ser essa inspiração para todos a quem eu der a conhecer o teu exemplo. Mas nunca deves fazer isso apenas por nós. A vida é tua. Tu é que conheces os teus limites. Quando sentires que já chega, não te forces por nossa causa. Mas não quero que alguma vez penses que foi em vão. Não foi! És uma inspiração pelo que já conquistaste até aqui”. Emocionados, mas ainda com algum controlo sobre a situação, vimos o meu tio entrar com o olhar visivelmente preenchido de lágrimas. E, aí sim, foi muito difícil conter a emoção.

“Senta-te aqui, amor. Estiveste a chorar… Senta-te aqui, amor. Chora”. Pediu a minha tia ao meu tio. E ele sentou-se. Não há justiça mais poética do que a daquele momento que ali vivemos. Tivemos a sorte de nos despedirmos com imen-sa dignidade, com imenso amor, com imenso do que sempre tivéramos entre nós, ao longo da vida e particularmente da-quela fase de contacto com o cancro. O meu tio, fazendo-se de forte e querendo transmitir força à minha tia, repetiu as palavras do médico. A minha tia escutava-o com o olhar terno de quem ama e se despede do amor da sua vida, mas também o olhar de quem sabe que, nesse amor, lhe está a ser contada a mais piedosa de todas as mentiras, uma mentira que ela aceitava, pois já nada importava, a não ser aquele momento, aquela nossa ligação, aquele triângulo de amor. Estávamos os três de mãos dadas. A viver na alma e no cor-po o amor que nos ligava. Nunca, mas nunca, esquecerei este momento. Com os seus pedidos típicos de força para o

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meu tio e dizendo-lhe o quanto o amava, a minha tia viu-o recompor-se e dizer “bom, vamos lá deixar estas choradei-ras de lado e lutar, que tu ainda cá estás e tens de ter força e apoio à tua volta, não podes desistir”. Foi à casa de banho do quarto e, nesse preciso momento, a minha tia disse em surdina, enquanto me encarava a alma, através dos olhos e do olhar: “toma conta do tio”. As palavras que funcionaram como flechas para a minha emoção desencadearam lágri-mas que percorreram o meu rosto e fizeram-me apertar a sua mão com toda a força que o amor podia materializar. Limpei as lágrimas e tentei simular algum controlo. Mas não estava a ser fácil. O meu tio, saído da casa de banho, depois de lavar o rosto, recebeu um pedido disfarçado de cuidado da minha tia: “vai beber um café e apanhar ar, amor, vai!”. Per-cebendo a sua vontade de o ter ausente do quarto para poder dizer qualquer coisa que lhe ia na alma, reforcei o pedido para com o meu tio: “sim, tio, vai apanhar algum ar, eu fico aqui com a tia”. Creio que, por estar a precisar, mas também por ter percebido, acedeu facilmente ao pedido.

Quando o vi sair do quarto, respondi ao que a minha tia me dissera. “Claro que vou tomar conta do tio, nem se-quer tens de me pedir isso. É uma promessa que não terei de fazer, pois sabes que a cumprirei sempre. Nunca te preo-cupes com isso”. Mas a minha tia continuou o que iniciara com aquele “toma conta do tio”. As suas palavras estão para sempre registadas em mim e fizeram-me aprender a maior e mais arrasadora de todas as lições, por ser tão simples. “Eu sei, amor, eu sei que vais tomar conta do tio e quero que o faças, mas também quero que vivas a tua vida. Tens de se-guir em frente e ser feliz” E, referindo-se à promessa que lhe fizera de um dia dar o nome de Margarida à minha primeira filha, resolveu libertar-me do possível peso dessa promessa e

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acrescentar: “Com ou sem filhos, eu só quero que sejas feliz. Acima de tudo, é mesmo isso: quero que sejas muito feliz”.

Aquelas palavras fizeram-me explodir nas lágrimas de despedida que guardara durante todo aquele ano e meio de cancro. Nas verdadeiras lágrimas de despedida e de gratidão pelo que acabara de ouvir e que sentira a vida toda, junto daquela pessoa. Amor. Puro amor. O amor que só quer o que o amor tem para dar: felicidade. A minha tia sempre me aceitou incondicionalmente como eu sou. Sempre me entregou o seu amor. E, no fim, no verdadeiro e derradei-ro limite, perante a certeza que sentia da proximidade da morte, confrontada com todas as exigências que me podia fazer, resolveu fazer-me a mais simples de todas: queria que eu fosse feliz.

E não é mesmo isto? Não é a isto que se reduz o propó-sito da vida, mais longa ou mais curta? Estamos cá para ser felizes. Independentemente das circunstâncias, independen-temente dos cenários que criamos ou que nos criam, temos sempre a escolha de procurar a felicidade. E não importa o que os outros pensam disso. A vida é nossa. E é curta. E obriga-nos a lutar por essa felicidade, desde que ela não pre-judique ninguém no que de mais importante possa existir. Quem ama, só pode desejar felicidade. Não há desculpas! A minha tia, na hora de partir, nos últimos dias que teve, esco-lheu deixar-me estas palavras. Felizmente, comigo, ela vive-ra-as a vida toda. Não deixem para o vosso último momento a hipótese de viver o que vos traz felicidade ou de permitir que quem está ao vosso redor viva o que lhes traz felicidade.

Sejam felizes. Deixem quem vos cerca ser feliz. Come-cem hoje. Comecem agora. Comecem já.

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EPÍLOGO

Idade e sabedoria

Cresci a ouvir que não fui criança. Que cresci depressa demais. Que me tornei mais velho depressa demais. Cresci na esperança de que a idade me fosse trazer a ausência des-tes comentários, mas tal não aconteceu: ainda hoje escuto estas afirmações, apesar de achar que, em tantas áreas, me comporto como um miúdo grande. Porém, conviver com es-tas frases dos outros e consciencializar-me de mim e das realidades que me cercam fez-me aprender a lição que en-cerra o livro: a idade e a sabedoria são irmãs gémeas falsas, mas nunca siamesas.

A idade e a sabedoria são, inevitavelmente, irmãs gé-meas falsas, na medida em que nascem praticamente em simultâneo e na medida em que, a partir desse momento, se desenvolvem com algumas semelhanças, mas não se tor-nam totalmente espelhos uma da outra. Só por si, esta visão destes dois elementos anula à partida a hipótese de, nesta relação de irmandade, existir uma ligação siamesa que obri-ga a um desenvolvimento dependente entre os dois facto-res. A idade é uma coisa, a sabedoria é outra e, se é certo que ambas nascem e se começam a desenvolver no mesmo momento, não é certo que ambas se expandam da mesma

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forma e numa sintonia de dependência perfeita, teorizada e teorizável.

É certo que há idades para tudo e que os ritmos da men-te e do corpo devem coexistir em equilíbrio, para que não sejam causados danos maiores a um ou a outro. Mas o que a idade faz é trazer a possibilidade de experiências novas e/ou repetidas das quais podemos ou não extrair conhecimento. E é nessa extracção de conhecimento que reside a sabedoria. E é aqui que reside a verdade que aprendi de que não há uma idade definida, um número definido, para se aprender algo que se eternize em nós.

Há quem, numa tenra idade, extraia sabedoria do que vive e quem, numa avançada idade, ainda não tenha extraí-do sabedoria do que viveu. O oposto também se verifica. Nesta verificação, compreendemos que, na verdadeira ca-pacidade de aprender e ensinar, somos mais do que o nosso tempo de vida. Somos a vida que encontramos nesse tempo.

Somos pessoas. Somos seres. Somos alma em constante expansão. Somos nós.

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25+E é aqui que peço que completem o livro com o vosso

“mais”. Com as vossas aprendizagens. Escolham pelo me-nos uma que sintam que completará estas partilhas, atri-buam-lhe um título e redijam-na nestas linhas. Partilhem-na nas vossas redes sociais com a hashtag #AMais e #25Mais e completem esta rede de partilha humana da qual todos fa-zemos parte.

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